Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito
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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito
ANAIS DA V JORNADA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DO DIREITO – Resumos expandidos Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. 2 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE FILOSOFIA DO DIREITO E SOCIOLOGIA DO DIREITO ANAIS DA V JORNADA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DO DIREITO – Resumos Expandidos BELO HORIZONTE, 24 A 26 DE NOVEMBRO DE 2011. ORGANIZADORES: Marcelo Campos Galuppo e Vitor Medrado Amaral. ABRAFI 3 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais J82j Jornada Brasileira de Filosofia do Direito (5.: 2011.: Belo Horizonte). Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito / Organizadores: Marcelo Campos Galuppo; Vitor Medrado Amaral. Belo Horizonte: Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito, 2012. 251p. ISBN: 978-85-86480-90-4 1. Direito - Filosofia. I. Galuppo, Marcelo Campos. II. Amaral, Vitor Medrado. III. Título. CDU: 340.12 Editoração: Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do DIireito © Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito Rua da Bahia, 1148, sala 1102 Belo Horizonte - Minas Gerais 30160011 CNPJ: 04.999.866/0001-09 ISBN: 978-85-86480-90-4 4 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito APRESENTAÇÃO A Jornada Brasileira de Filosofia do Direito, evento anual organizado pela Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito – ABRAFI -, já é, em sua V edição, um evento consolidado. Ela reúne os pesquisadores de sua área para discutirem suas pesquisas e contribuírem mutuamente para a consolidação da investigação e do ensino da Filosofia do Direito no Brasil. Nesta V edição, o evento ocorreu entre os dias 24 e 26 de novembro de 2011, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, e contou com conferências dos professores Joaquim Carlos Salgado (UFMG), Tércio Sampaio Ferraz Júnior (USP) e Manuel Atienza (Universidad de Alicante), além de contar com a apresentação de 56 pesquisas selecionadas de seus associados, agrupadas nos 12 grupos de trabalho seguintes: GT 1: LÓGICA, RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA (6 trabalhos); GT 2: DIREITO, ARTE E LITERATURA (5 trabalhos); GT 3: EPISTEMOLOGIA JURÍDICA: O PROBLEMA DO JUSTO E DO JURÍDICO (7 trabalhos); GT 4: RELEITURAS DE KANT (3 trabalhos) GT 5: DIREITO E CULTURA (4 trabalhos); GT 6: DIREITO, DEMOCRACIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL (6 trabalhos); GT 7: RELEITURAS DE CARL SCHMITT (4 trabalhos); GT 8: CORPO, NATUREZA E DIREITO (4 trabalhos); GT 9: DIREITO, ALTERIDADE E ÉTICA (6 trabalhos); GT 10: HISTÓRIA, MEMÓRIA E DIREITO (3 trabalhos); 5 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. GT 11: DIREITO, POLÍTICA E ESTADO (3 trabalhos); GT 12: JUDICIÁRIO, HERMENÊUTICA E CONSTITUIÇÃO (5 trabalhos). Ainda que esses grupos possam variar conforme os trabalhos apresentados em cada evento, sua tabulação apresenta indícios consistentes acerca do estado da arte da pesquisa filosófico-jurídica no Brasil. Uma novidade destes anais é que eles pretendem introduzir, na área de Direito no Brasil, a prática de publicação de resumos expandidos (que compõem os anais), e não de artigos completos. Isso permite uma circulação mais eficaz do conhecimento bem como a possibilidade de se aproveitar a discussão dos trabalhos apresentados realizada no próprio evento para reformulá-los, visando a uma publicação definitiva sob a forma de artigo em periódicos científicos ou de capítulo de livro. A ABRAFI, com a publicação destes anais, pretende cumprir sua missão e contribuir para o avanço da reflexão sobre o Direito e, em especial, sobre a Filosofia do Direito no Brasil. Marcelo Campos Galuppo Presidente da ABRAFI 6 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito ÍNDICE APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... 5 ÍNDICE ......................................................................................................................... 7 A CRISE DE LEGITIMIDADE NA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E OS SORTEIOS ....... 17 A DEMOCRACIA DELIBERATIVA E A GOVERNANÇA SOCIAL ....................................... 23 A FUNDAMENTAÇÃO UTILITARISTA DOS DIREITOS DOS ANIMAIS ............................. 29 A IDENTIDADE DO SUJEITO CONSTITUCIONAL NA (RE)INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO.......................................................................................................... 34 A IMPORTÂNCIA PARA O DIREITO DA CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA À LUZ DAS CIÊNCIAS DA MENTE .......................................................................................... 41 A NOVA RETÓRICA SEGUNDO MANUEL ATIENZA: UMA ANÁLISE DAS CRÍTICAS DIRIGIDAS À TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO DE CHAÏM PERELMAN EM AS RAZÕES DO DIREITO ..................................................................................................................... 46 AS SENTENÇAS ADITIVAS À LUZ DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA ............................. 53 AS TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO COMO MOMENTO DO DIREITO: A EXPANSÃO DA PUREZA KELSENIANA ................................................................................................ 59 A TEORIA TRIDIMENSIONAL E A FILOSOFIA DO DIREITO: A OBSERVAÇÃO DE MIGUEL REALE A FAVOR DA UNIFORMIDADE DIALÉTICA ........................................................ 64 CINISMO E BIOPOLÍTICA COMO ELEMENTOS DA CRÍTICA DE ALAIN BADIOU AOS FUNDAMENTOS DA ÉTICA DOS DIREITOS DO HOMEM ............................................. 71 CRÍTICA À ESSENCIALIDADE DO DIREITO: A RELAÇÃO OBJETIVA ENTRE RAZÃO E MORAL ...................................................................................................................... 78 DE CARL SCHMITT A JACQUES DERRIDA: O CONFLITO E AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO E A DEMOCRACIA ........................................................................................ 83 7 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. DIALÉTICA ENTRE OPINIÃO E VERDADE: CONTRÁRIO, CONTRADITÓRIO E A SÍNTESE DOS OPOSTOS RELATIVOS À ESCRAVIDÃO DOS NEGROS EM MONTESQUIEU ........... 89 DIÁLOGOS ENTRE RONALD DWORKIN E NEIL MACCORMICK: A RELEVÂNCIA DA NOÇÃO DE COERÊNCIA PARA A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA................. 113 ENTRE CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E AUTORIDADE ESTATAL: ................................... 120 BREVES REFLEXÕES SOBRE A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................................................................................................... 120 EUGENIA LIBERAL E A ÉTICA DA ESPÉCIE ................................................................. 127 GUNTHER TEUBNER NO DESAFIO KELSENIANO DE CONCEITUAÇÃO DA JUSTIÇA ... 132 MORAL, DIREITO E EDUCAÇÃO EM KANT ................................................................ 137 O CRIME DE ANAXÁGORAS E A GÊNESE DA IDÉIA DE LIMITE ................................... 144 O DIREITO NOVO E A SINGULARIDADE UNIVERSAL: FOUCAULT COM BADIOU........ 151 O GRAU DE ESPECIFICIDADE DAS NORMAS JURÍDICAS: CUSTOS DE ELABORAÇÃO E APLICAÇÃO DAS CLÁUSULAS GERAIS....................................................................... 160 O LUGAR DA FILOSOFIA NA CIÊNCIA DO DIREITO .................................................... 167 O NAVIO AFUNDADO E O SUBMARINO – A MEMÓRIA DO LEGADO JURÍDICOPOLÍTICO GRECO-ROMANO NA IGREJA MEDIEVAL ................................................. 174 O PROBLEMA DO EXATO CONTEÚDO DA NORMA JURÍDICA NOS PENSAMENTOS DE TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. E HANS KELSEN ......................................................... 182 ORDEM CONCRETA E DECISÃO A PARTIR DO PENSAMENTO DO NÓMOS EM CARL SCHMITT ................................................................................................................. 189 O VALER E O SABER DA JUSTIÇA E DA VERDADE NO DIREITO ................................... 196 PASSAGEM DO ESTÉTICO E PASSAGEM DO JURÍDICO EM CONTEXTO DE CAOS: OU DO EXPRESSAR DA ARTE E DO DIREITO NO LIMIAR DO SÉCULO XX ............................... 203 PODER E JUSTIÇA NAS TRAGÉDIAS DE SHAKESPEARE ............................................. 210 PRISÃO EM FLAGRANTE E IMAGINAÇÃO ................................................................. 217 SÓCRATES E A OBEDIÊNCIA À LEI NO DIÁLOGO CRÍTON .......................................... 224 UMA LEI PROIBITIVA NECESSARIAMENTE RESTRINGE A LIBERDADE? ..................... 229 UM OLHAR SOBRE A CRISE NO ENSINO JURÍDICO: HERÁCLITO DE ÉFESO E A INDISSOCIABILIDADE DO ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO NOS CURSOS JURÍDICOS ................................................................................................................................ 236 ÍNDICE REMISSIVO .................................................................................................. 244 ÍNDICE DE AUTORES ................................................................................................ 249 8 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito 9 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. (AUTO)RECONHECIMENTO DAS PARTES COMO FORMADORAS DE UMA DECISÃO NO PROCESSO Ariane Shermam Morais Vieira 1 Rosana Ribeiro Felisberto 2 Palavras-chave: Reconhecimento; Processo; Legitimidade; Conciliação. Vários autores têm trabalhado com enfoque na teoria do reconhecimento. Dentre eles pode-se citar Taylor, Honneth e Fraser. Os questionamentos sobre o reconhecimento cada vez mais tem ganhado importância na abordagem sobre o assunto, uma vez que também muito se discute sobre o multiculturalismo e a realização de diálogos efetivos entre sujeitos diferentes ou entre grupos culturais diferentes. Diante de uma atuação democrática do Estado de Direito, o reconhecimento de grupos culturais é importante, porém importa também o reconhecimento dos sujeitos individuais dentro do espaço discursivo no processo. 1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 2 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte. E-mail: [email protected]. 10 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Em primeiro lugar deve haver reconhecimento dos sujeitos por parte do Judiciário como sendo efetivamente capazes de dialogar dentro do processo e participarem da construção da decisão resolutiva do conflito expressa por meio da sentença. O Direito formalmente reconhece – e assim deve fazê-lo os magistrados em cada caso – que cada sujeito, enquanto parte de um processo judicial deve ter oportunidades de se manifestar e ser ouvido pelo juiz e pela parte contrária, contribuindo dessa maneira para a prolação da sentença. Em outras palavras, num caso concreto, o juiz deve, por exemplo, reconhecer as partes como sujeitos capazes de produzir provas e expor uma versão dos fatos e dos direitos que serão levadas em conta no momento de prolação da sentença. Outra forma sob a qual o reconhecimento se manifesta no processo judicial é na realização de tentativas e audiências de conciliação entre as partes. O Judiciário tem como um dos motivos que justificam a adoção massiva de audiências de conciliação como sendo o primeiro ato significativo de quase todos os processos, o argumento de que o Judiciário reconhece que as partes – ou os sujeitos – que litigam num processo são capazes de dialogarem e chagarem a um consenso, firmando um acordo entre si, que será posteriormente apenas homologado pelo magistrado. A partir do argumento acima expresso, tem-se que o Judiciário, ao menos em tese, reconhece as partes como legítimas para deliberarem e chegarem a um consenso por si mesmas, fazendo com que seus argumentos sejam efetivamente reconhecidos pela decisão no processo. O mesmo argumento levantado ainda dá ensejo a se colocar que a expansão das tentativas de conciliação pelo Judiciário reconhecem que o consenso entre as partes tende a construir uma decisão mais legítima e mais aceita pelas próprias partes. 11 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. É neste ponto que se insere a discussão trazida pela presente proposta de trabalho. Se cada vez mais a conciliação ganha importância para o poder Judiciário – haja vista, por exemplo, as campanhas e mutirões constantes de conciliação não apenas na Justiça Comum, como também na Justiça do Trabalho – por outro lado é importante observar que não basta apenas o reconhecimento do Judiciário acerca das partes para se conseguir uma decisão legítima e bem aceita pelas partes. É necessário que também as partes se sintam como atores efetivos do processo. Um ponto fundamental na construção da decisão no processo com a participação das partes é o auto-reconhecimento das próprias partes, para consigo e entre si. O que é possível observar na prática – e aqui surge a hipótese do presente trabalho – é que não existe um auto-reconhecimento efetivo das partes no processo. De modo geral, dificilmente as partes se auto-reconhecem como coprodutoras da sentença a partir de sua atuação na produção de provas, na argumentação, nas audiências e nos depoimentos que traz ao processo. Muitas das vezes se imputa ao advogado a condução e a construção da sentença, conjuntamente com o magistrado. Em outras tantas vezes as partes não conseguem visualizar a relação de seus atos e falas no processo com a decisão tomada. Para além desses casos gerais, um aspecto da maior importância é o fato de que, mesmo quando há a realização de conciliação, as partes não se sentem construtoras do processo e da sentença, o que dificulta seu sentimento de legitimidade da mesma. Em casos de relações de consumo não é incomum as empresas optarem por fazer ou não um acordo a partir de uma análise “mercadológica” do que seria mais vantajoso financeiramente diante da jurisprudência recente sobre o assunto. Dessa maneira, não reconhecem a sua própria decisão como fruto de algo que lhe é 12 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito próprio, mas como impelidas compulsoriamente por força de decisões proferidas de forma reiterada pelo Judiciário, tentando minimizar seus prejuízos. Também as partes individuais não se veem como produtoras da decisão, mesmo quando fazem um acordo em audiência de conciliação. A estrutura formal do Judiciário, a presença de um único terceiro que geralmente conduz os trabalhos da audiência de conciliação, a presença em muitos casos de advogados e até mesmo a organização física das salas de audiência e ainda opiniões do senso comum – como a de que o processo sempre demora muito – fazem com que a parte se sita pressionada a tomar uma decisão e, em decorrência disso, não se reconheça como produtora no processo, mas apenas como vítima e, em alguns casos, beneficiária do sistema judiciário. De fato, o sucesso das audiências de conciliação alcança enorme importância no atual contexto social, sendo objeto de uma grande mobilização dos órgãos judiciais. A ideia de um processo guiado pelos ditames da celeridade, economia, e, além de tudo, apto a proporcionar à parte a tutela efetiva de seus direitos, passa pela abertura de possibilidade de as partes resolverem entre si mesmas a controvérsia que as envolve. No entanto, toda a ênfase que é dada à realização das audiências de conciliação e, mais ainda, à sua realização bemsucedida, com as partes chegando a um acordo final capaz de dirimir o conflito existente entre elas, acaba criando uma atmosfera que, ainda que involuntariamente, compele os litigantes à realização de um acordo. Neste contexto, é possível visualizar o reconhecimento, por parte do Direito, das partes como legítimas produtoras de manifestações dentro do processo. O mesmo não pode ser dito sob o ponto de vista das próprias partes, uma vez que, conforme foi explicitado linhas acima, suas manifestações em meio às audiências de conciliação constituem mais o resultado de todo um movimento a favor da auto-composição dos conflitos do que consequência de seu (auto) reconhecimento como legítimas coprodutoras de uma decisão. 13 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Uma vez que a parte não se reconhece como produtora da decisão no processo, o grau de legitimidade que ela sente fica consideravelmente reduzido, o que gera uma insatisfação em relação ao Direito e ao Judiciário. A insatisfação deriva em grande medida da percepção de que suas manifestações ao longo do processo não contribuíram para a construção da decisão final. Por fim, essa carência de auto-reconhecimento ainda tende a levar à parte a uma posição de não assumir sua responsabilidade perante a decisão que foi obtida no processo. Assim é que despontam grandes índices de descumprimento de decisões judiciais e mesmo de acordos feitos entre as próprias partes, que em momento algum reconhecem a si próprias como co-produtoras da decisão final resultante do processo. Diante de tudo o que foi exposto, o auto-reconhecimento das partes como construtoras conjuntas do processo e da decisão é fundamental para que se eleve os graus de legitimidade e cumprimento das decisões, diminuindo ainda uma arraigada cultura de recorribilidade em nosso sistema judiciário. Não basta, pois, o reconhecimento por parte do Estado, as partes também devem se autoreconhecerem. Em síntese, a proposta do presente trabalho é verificar a hipótese de que não existe um auto-reconhecimento das partes no processo judiciário, especialmente no que se refere à realização de audiências de conciliação no âmbito dos juizados especiais e do fórum da cidade de Belo Horizonte. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 14 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradutor: Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crises. Tradutor: João Ferreira. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Polis, 1998. BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Tradutor: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. FELISBERTO, Rosana Ribeiro. Antes do acender das luzes: reciprocidade de poderes no incentivo à cultura. Orientadora: Miracy Barbosa de Sousa Gustin. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito, 2009. FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? a politicalphilosophical exchange. London; New York: Verso, 2003. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. Das necessidades humanas aos direitos: ensaio de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. HELLER, Agnes. FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna. Tradução: Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. PIZZORNO, Alessandro. Introduccion AL Estúdio de La Participacion Politica. In: PIZZORNO, Alessandro; KAPLAN, Marcos; CASTELLS, Manuel. Participacion y cambio social en la problematica contemporanea. Buenos Aires: Siap-Planteos, 1975. RECASENS SICHES, Luis. Tratado general de filosofia del derecho. 4.ed. Mexico: 1970. SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 15 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. TAYLOR, Charles. et. al. Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994. 175p. 16 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A CRISE DE LEGITIMIDADE NA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E OS SORTEIOS Palavras-chave: Sorteio; Democracia Legitimidade; Direito e democracia. Alessandra Margotti dos Santos Pereira 1 Freitrich Augusto Ribeiro Heidenreich 2 Marcelo Campos Galuppo 3 representativa; Crise democrática; Sabe-se que a democracia representativa se encontra em meio a uma crise. O sentimento da população de que os governantes não olham pelos seus interesses e de que esses mesmos não os representam é, praticamente, dominante, segundo dados apresentados por SINTOMER (2010) e MIGUEL (2000). 1 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 2 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 3 Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 17 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. No Brasil, mesmo com a obrigatoriedade do voto, a abstenção alcança índices elevados. Muitos não vão às urnas por desacreditarem no processo eleitoral que atualmente é utilizado. Tendo em vista essa perspectiva, algo se faz necessário para evitar esse sentimento de inexpressividade, apatia política e não representatividade. Como forma de se evitar que a democracia representativa finde e que em seu lugar se estabeleça um governo totalitário ou ainda mais ardil, propõe-se a aplicação de meios democrático-deliberativos que permitam a maior participação do cidadão comum. Para tanto, sugere-se a aplicação de mecanismos, que possam reduzir o sentimento de apatia política e mitigar as estratégias políticas que se valem dos votos de legenda para alcançar maior número de mandatos. Yves Sintomer (2010) demonstra que o sorteio como forma de promoção da democracia tem sido utilizado desde tempos remotos. Em Atenas, séculos V e IV a.C., era uma forma de participação política muito aplicada ao lado da Assembleia Popular e das eleições. A partir do sorteio integrava-se a Boulé (o Conselho democrático de Atenas) e a Helieia (o Tribunal de Atenas). Em Veneza, em meados do século XI, o sorteio também foi utilizado, juntamente com as eleições, para se escolher o doge, o representante máximo do país, dentre os integrantes do Maggior Consiglio. Florença também se valeu do sorteio para integrar diversos cargos do governo, quando o país se encontrava em tempos democráticos. Roma utilizou o sorteio, como afirma Montesquieu (2000), com o fim de integrar tribunais para o julgamento dos crimes privados. Com o advento das revoluções francesa e americana o sorteio desapareceu do meio político, devido ao fato de os revolucionários não compreenderem tal instituto como representativo das minorias. Em contrapartida, a eleição, como forma de escolha dos representantes, permitia a seleção dos melhores, dos mais aptos a governar. 18 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A partir de 1640, o sorteio se atrelou ao judiciário, sendo utilizado nos tribunais do júri, como método de escolha dos jurados nos países da Inglaterra, Estados Unidos e França. Nas últimas décadas, somente, o sorteio voltou à cena política. Os idealizadores dos mecanismos que utilizam o sorteio como meio de escolha de participantes, no início, pretendiam apenas criar uma amostra representativa, um espelho da população tal qual ela é. Após a última década, alguns desses institutos começaram a ser vistos como um meio de permitir a participação popular nas decisões políticas, bem como criar um órgão capaz de opinar, julgar e até mesmo, fiscalizar outros ramos do governo. O primeiro desses mecanismos é o júri de cidadãos, criado por Ned Crosby em 1970. Ele visa o sorteio de 15 a 30 cidadãos comuns chamados a deliberarem sobre certo assunto de ordem pública emitindo, após, um parecer que seria encaminhado aos representantes políticos. O segundo é a conferência de consenso, criada pelo Danish Board Technology em 1987. Essa se encontra nos moldes de um painel, em que especialistas sobre o assunto a ser debatido apresentam o tema para, aproximadamente, 50 cidadãos sorteados começando, em seguida, o debate sobre o tema controvertido. O terceiro instituto a ser destacado é a pesquisa deliberativa. Foi criada por James Fishkin, em 1988, como uma “versão melhorada” das pesquisas de opinião. A pesquisa deliberativa é elaborada com mais de 130 integrantes, escolhidos de forma aleatória, aos quais são passadas informações acerca do assunto a ser debatido. Logo após, é dado um tempo para que deliberem entre si, de forma que todos tenham uma opinião esclarecida para emitir no momento da pesquisa. Esses institutos têm sido profundamente utilizados no mundo contemporâneo. Países como Canadá, Austrália, Dinamarca, Grécia e França já se 19 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. valem desses meios para trazer o cidadão comum a pensar e deliberar sobre questões que a ele atinge diretamente. No Brasil, o sorteio, atualmente, é utilizado como método de escolha dos integrantes do júri e como meio de distribuição de processos, na esfera judiciária; no âmbito administrativo é aplicado na fase final da Lei de Licitações, quando em caso de empate; é aplicado até mesmo no meio esportivo, como método de escolha de árbitros de futebol. Voltando ao foco da crise de representatividade, podemos apontar como suas principais causas: a corrupção, a influência midiática, a apatia política, o sentimento de inexpressividade do voto, a má gestão dos negócios públicos e por fim, o desencanto com o mecanismo eleitoral. Em busca da possibilidade de se minorar os efeitos da crise representativa na atual democracia brasileira, encontramos na proposta de Akhil Reed Amar (AMAR, apud MIGUEL, 2000) um mecanismo que, se adaptado ao processo eleitoral brasileiro, poderia ter muito a contribuir. Inicialmente denominado de “Votação Lotérica” (Votting Lotery), é um mecanismo que alia o sorteio às eleições, com o objetivo de ampliar a participação da minoria, mas, também garantir uma mínima técnica e legitimidade eleitoral. O mecanismo da “Votação Lotérica” ocorre da seguinte forma: primeiramente realiza-se uma eleição, e em um segundo momento, um sorteio, em que cada candidato terá o número de chances proporcionais ao número de votos que angariou durante a primeira fase (as eleições). As vantagens da utilização dos sorteios por meio da votação lotérica podem ser divididas, em nossa análise, como diretas e indiretas. Como vantagem direta, tem-se o fato de a votação lotérica garantir a participação das minorias no processo eleitoral, além de propiciar a redução da apatia política, bem como do sentimento de inexpressividade do voto, uma vez que cada voto seria significativo para assegurar maiores chances de alcançar o mandato. Por outro lado, a votação lotérica poderia incentivar uma maior fiscalização por parte da população, pois, 20 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito uma vez reduzida a apatia, a corrupção seria minorada pelo controle popular, sendo essa uma vantagem indireta do emprego desse mecanismo. Propõe-se a utilização do mecanismo da “Votação Lotérica” para escolha das cadeiras destinadas aos vereadores. Pode-se indagar o porquê da escolha da aplicação deste mecanismo ao nível municipal e não ao nível estadual ou federal. A resposta reside no fato de que seria dificultada a sua eficácia caso aplicado em um quórum eleitoral muito elevado; justamente, uma das vantagens da aplicação desse processo, diz respeito à participação das minorias, pois, em nível local, seria muito mais concreto se falar na busca dos votos desses pelos candidatos. Esse é o motivo pelo qual esse sistema deve ser empregado no processo eleitoral para escolha dos veredadores e não para a escolha dos deputados estaduais e federais. Restando exposto a origem dos sorteios, a sua aplicação no mundo e no Brasil, bem como as causas da crise de representatividade na atual democracia e ainda a proposta de se aplicar o mecanismo da “Votação Lotérica” no processo de escolha dos vereadores, é preciso ressaltar que a aplicação dos sorteios, há pouco tempo, tratava-se de uma possibilidade distante da prática, mas que, após diversos estudiosos se dedicarem ao tema, deixou de ser apenas uma ideia audaciosa para ocupar um lugar em meio a discussões que tem por objetivo encontrar soluções para a problemática da crise na democracia representativa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração 21 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm>. Acesso em: 13 out. 2011. BRASIL, Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003. Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.671.htm. Acesso em: 13 out. 2011. CUNNINGHAM, Frank. Teorias da Democracia: Uma Introdução Crítica. Trad. Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed. 2009. MIGUEL, Luis Felipe. Sorteios e Representação Democrática. Lua Nova, nº 50, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010264452000000200005&lang=pt>. Acesso em: 25 set. 2011. MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. Trad. Cristina Murachco. 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. SINTOMER, Yves. O Poder ao Povo: Júris de cidadãos, sorteio e democracia participativa. Trad. André Rubião. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 22 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A DEMOCRACIA DELIBERATIVA E A GOVERNANÇA SOCIAL1 Freitrich Augusto Ribeiro Heidenreich 2 Palavras-chave: Democracia deliberativa; Governança social; Governabilidade; Representatividade. Para iniciarmos o tema sobre a Democracia deliberativa nada mais necessário do que identificar o conceito etimológico de democracia e de deliberação, e após tais avaliações isoladas, compreender o que seria propriamente a democracia deliberativa. O conceito de democracia, segundo a etimologia, vem do grego (demo = povo), (cratia = poder), portanto, traduz-se como “governo do povo, pelo povo e para o povo” (DE PLÁCIDO E SILVA, 2010, p. 433). Já a deliberação vem do latim “deliberatio, de deliberare, que significa resolver, decidir, é aplicado para indicar toda resolução ou decisão, tomada por uma pessoa ou assembleia, mediante 1 Este trabalho é fruto das reuniões do Núcleo Justiça e Democracia orientado pelo Professor Doutor Marcelo Campos Galuppo. 2 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 23 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. prévia discussão e exame da matéria, assim submetida a esse veredicto” (DE PLÁCIDO E SILVA, 2010, p. 429). Após analisado etimologicamente o conceito de democracia deliberativa, por meio das palavras que as compõem. Cabe agora analisar não o conceito, mas sim a definição de democracia deliberativa. Democracia deliberativa, de acordo com Joshua Cohen, “está enraizada no ideal intuitivo de uma associação democrática na qual a justificação dos termos e das condições de associação procede por meio de argumento e raciocínio público entre cidadão iguais” (COHEN, 1989, p. 17). Portanto, a democracia deliberativa é uma democracia na qual, antes de se deliberar sobre determinada matéria ou forma, se expõe argumentos racionais e se contrapõem as opiniões previamente objetivando o consenso. Para que isso seja possível, a democracia deliberativa exige a existência de alguns pré-requisitos, sendo eles: a. Os indivíduos devem estar abertos às mudanças e a ouvir as posições e as contraposições dos outros, o que se denomina de “reciprocidade” (GUTMANN e THOMPSON, 1996); b. Devem ser apresentados argumentos racionais, ou seja, deve estar presente a “racionalidade”, e por fim; c. Os argumentos devem ser apresentados com o objetivo de se chegar a um “consenso”. À luz de diversos teóricos da democracia, a “racionalidade” é princípio essencial da forma deliberativa, Cass Sunstein, entende que “um sistema democrático em bom funcionamento se fundamenta não em preferências, mas em razões” (SUNSTEIN apud CUNNINGHAM, 1997, p. 94). Também Frank Cunningham ao citar Benhabib que diz que a legitimidade está ligada à racionalidade e, (CUNNINGHAM, 2009) Habermas a compreende como um aspecto elementar da democracia deliberativa. (HABERMAS, 1997) Outro princípio importante da Democracia deliberativa é a “reciprocidade”, denominado assim por Amy Gutmann e Dennis Thompson, (1996) que definiram-no exatamente na ideia de que um indivíduo não respeitará a razão do outro, caso esse não respeite a daquele primeiro. 24 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Para justificar o terceiro princípio, Frank Cunningham, (2009) diz ser o fim último dos democratas deliberativos a busca pelo consenso dos bens comuns. Desta forma, foram apresentados os argumentos necessários para a comprovação dos princípios que regem a democracia deliberativa. Após a apresentação do conceito, definição e princípios da democracia deliberativa é preciso estabelecer a relação entre essa e a ideia de governabilidade - “capacidade política de um governo agir conforme os seus apoios representativos e da sociedade” (ALCOFORADO, 201, p.7) e a de governança social que é uma “estrutura social existente numa determinada localidade, também para viabilizar a ação social e o desenvolvimento” (ALCOFORADO, 2011, p.7) A democracia deliberativa, certamente, tem muito a contribuir dentro dos espaços públicos em favor da governança social. Por meio dos debates públicos e fóruns seria possível alcançar o que Cunningham denominou de “equilíbrio reflexivo”, “isso sigmifica sustentar que as pessoas podem ser convencidas de forma deliberativa pelo raciocínio deliberativo. Pois a deliberação requer que os cidadãos apresentem razões uns para os outros em fóruns públicos” (CUNNINGHAM, 2009, p. 204). Gutmann e Dennis Thompson (1996) ainda complementam ao dizer que a publicidade nas deliberações obrigam os indivíduos a ouvirem os argumentos que são apresentados nas discussões públicas e ainda ressaltam a necessidade do respeito mútuo e do “igual acesso” aos mecanismos de deliberação diretamente efetivos. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais promoveu entre os dias 15 e 24 de fevereiro de 2011, um fórum democrático para o desenvolvimento de Minas Gerais para a discussão das questões que deveriam estar na pauta durante os próximos dez anos. Apesar de plausível a iniciativa do poder legislativo do Estado, esse esforço ainda não é o suficiente, pois podem ser realizadas diversas críticas à forma com a qual foram conduzidos esses mesmos fóruns públicos sob a perspectiva da democracia deliberativa. 25 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Dentre eles: a. O fórum democrático teve como objetivo ouvir autoridades e integrantes da sociedade civil, porém esses não participavam da elaboração direta de propostas de lei, ou votações. Na verdade, durante o fórum só se apresentavam os argumentos, não havia qualquer intento em se alcançar um consenso entre as partes, o que do ponto de vista da democracia deliberativa seria inconcebível; b. Outro elemento que pode ser criticado é o fato de o fórum não garantir uma igual participação de todos os representantes da sociedade civil e por fim, c. Parte dos legisladores não estavam presentes às reuniões, destarte, como debater se a totalidade ou a maioria das partes não estão presentes. (sociedade e representantes do governo) Após apresentadas essas críticas, resta probo que os Fóruns democráticos elaborados pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, apesar de em muito já terem avançado em relação a outros estados, ainda estão distantes do que se poderia dizer ideal. Propõe-se portanto, que, os Fóruns democráticos a serem realizados, além de contarem com uma maior participação dos representantes do poder legislativo, devem possibilitar a uma maior parcela da população a sua participação, não somente nas discussões, a exposição dos argumentos que necessariamente devem ser racionais, mas também durante os processos deliberativos, seja por meio de de referendos, ou pleibiscitos que deveriam ocorrer necessariamente após esses mesmos fóruns. É importante ressaltar que o objetivo desse trabalho não é o de criticar a atuação da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, mas sim o de se propor um mecanismo mais eficaz do ponto de vista da democracia deliberativa, bem como promover a governabilidade e o aprimoramento das ações dentro da governança social. A questão da participação popular deve ser levada com cautela, pois a democracia deliberativa também possui problemas em sua estrutura, dentre eles: a escassez de recursos, a presença do exclusivo auto-interesse (generosidade limitada), desacordos morais básicos, e “entendimento incompleto” do que é 26 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito melhor interesse individual e coletivo. (GUTMANN e THOMPSON apud CUNNINGHAM, 2009, p. 197) Tendo em vista esses entraves à execução de uma democracia deliberativa plena, devemos tratar seu emprego com ressalvas. Destarte, se propõe que o poder legislativo ao realizar fóruns públicos, como o Fórum Democrático, primeiramente analise as matérias que podem ser endereçadas à deliberação popular, ou que estabeleça o limite orçamentário para isso, o que compreendo ser o mais correto, repeitando assim um dos limites da democracia deliberativa que é a escassez de recursos; dessa forma, superando-a. Outros elementos a serem observados são o auto interesse e o “entendimento incompleto”, que por sua vez, devem ser sanados pela própria discussão exaustiva sobre a matéria em questão, de forma que, teram sido realizadas todas as possíveis ações para se alcançar o interesse coletivo e a compreensão do melhor interesse coletivo e individual. Desta forma, será possível o emprego da democracia deliberativa em sua forma mais eficaz possível, respeitando seus princípios e contornando seus limites, de forma a construir uma governança social mais sólida e uma governabilidade mais representativa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALCOFORADO, Flávio. O instituto de governança social: avanços e perspectivas no desenho de um novo arranjo organizacional. II Congresso Consad de Gestão Pública 27 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. – Painel 07: Governança social e reorganização dos espaços públicos no Brasil. Disponível em: < http://www.seplag.rs.gov.br/upload/Painel_07_ Flavio_Alcoforado_formatado.pdf>. Acesso em 04 de novembro de 2011. ALMG. Fórum Democrático para o Desenvolvimento de Minas Gerais. Disponível em: http://www.almg.gov.br/acompanhe/eventos/hotsites/2011/forum_democratico/ o_que_e.html>. Acesso em 04 de novembro de 2011. COHEN, Joshua. Deliberation and Democratic Legitimacy. In: Hamlin, A. & Pettit, P. (éds), The Good Polity. Normative Analysis of the State, Oxford, B. Blackwell, 1989. CUNNINGHAM, Frank. Teorias da Democracia: Uma Introdução Crítica. Trad. Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed. 2009. DE PLÁCIDO E SILVA, 2010. Vocabulário Jurídico. 28ª ed. Atualizado por: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010. GUTMANN, Amy e THOMPSON, Dennis. Democracy and Disagreement: Why Moral Conflict Cannot be Avoided in Politics, and What Should be Done About It. Cambridge, Harvard University Press, 1996. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 28 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A FUNDAMENTAÇÃO UTILITARISTA DOS DIREITOS DOS ANIMAIS Eduarda Cellis da Silva Campos 1 Palavras-chave: Animais. Direito. Utilitarismo. Numa sociedade em constante transformação, teorias, pensamentos e princípios modificam-se e são postos à prova, surgindo frequentemente novas e complexas questões que demandam respostas por parte do Direito. A problemática dos direitos dos animais insere-se neste contexto gerando grandes discussões, sendo, segundo Arthur Kaufmann (2004), uma das funções da filosofia aferir a solidez dos argumentos apresentados por aqueles que defendem ou refutam tais direitos, a partir de sua razoabilidade e coerência. Há diversas teorias defensoras dos direitos dos animais, entre as quais existem divergências com relação à fundamentação, ao conteúdo e às consequências decorrentes de sua implementação. O utilitarismo, uma das mais significativas teorias éticas que tratam sobre o tema, baseia-se, essencialmente, no 1 Graduanda da Universidade Federal de Juiz de Fora. [email protected] 29 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. princípio do bem-estar máximo, partindo do pressuposto de que os homens dirigem suas ações buscando o prazer e evitando a dor. Nessa perspectiva, todos os seres capazes de serem movidos por essas sensações devem receber a mesma importância, incluindo-se animais não humanos. Configura-se como uma ética consequencialista, à medida que avalia uma ação como correta ou não em função exclusivamente das consequências geradas por ela. Um dos principais representantes da posição utilitarista com relação aos animais é o filósofo contemporâneo Peter Singer (2010) que, em seu livro Libertação Animal, defende o princípio básico da igualdade, o qual abrangeria seres vivos não humanos que, segundo Jeremy Bentham, pelo simples fato de serem capazes de sofrer, possuem interesses que devem ser considerados pelo homem. A aplicação do referido princípio não requer igual tratamento para animais e seres humanos, mas implica igual consideração entre eles. Segundo Singer, não existem diferenças tão relevantes entre os animais e os homens a ponto de julgarmos ser a espécie humana superior às demais, ocupando o mais alto nível hierárquico na natureza e desfrutando de plenos direitos sobre seres inferiores. Em certas circunstâncias, a vida de um chimpanzé ou de um cão adulto seria mais valiosa que a vida de um bebê ou de um adulto gravemente retardado. A senciência dos animais, capacidade de sentir dor também presente em seres humanos, ainda que com intensidades diversas, é razão suficiente para que o sofrimento infligido a eles seja considerado da mesma forma que o sofrimento semelhante de quaisquer outras espécies, e não deva, portanto, ser ignorado. A supervalorização de determinada espécie em detrimento dos interesses de outra, resultando em discriminação desta, constiui o chamado especismo, comparado, pelo autor, ao racismo e ao sexismo, formas de discriminação contra negros e mulheres fundadas em características irrelevantes para definição da espécie humana. Há tantas formas de especismo quanto justificativas e desculpas para praticá-lo. Caça de animais selvagens, experimentações científicas cruéis, comércio de couro e peles, torturas dos animais em circos e rodeios, e criação de 30 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito animais com fins alimentícios são algumas das práticas especistas com as quais convivemos sem que haja uma reflexão sobre os malefícios e sofrimentos causados aos animais. A mais propalada prática especista seria a de comer outros animais. Visto que o regime vegetariano é capaz de proporcionar uma vida saudável, não haveria justificativas válidas para que submetêssemos os animais às crueldades e aos sofrimentos vivenciados nas fazendas industriais com o objetivo único de satisfazer o paladar humano. Na hipótese de criação dos animais sem o confinamento, de maneira que fosse possível uma existência agradável, sendo a morte rápida e indolor, a utilização dessa carne seria aceitável. No entanto, essa hipótese encontra-se mais no plano utópico do que no plano real. O especismo originou-se há séculos e sua prática está arraigada na sociedade, sendo, pela maioria, sequer reconhecida como imoral. Para o pensamento pré-cristão, o homem teria sido criado à imagem e semelhança de Deus e recebido d’Ele o domínio sobre toda a natureza. Com a entrada do pecado, a morte passaria a fazer parte da vida de todos os seres vivos, inclusive dos animais. Após o dilúvio, foi permitido ao homem alimentar-se de carne. O pensamento grego era dividido entre aqueles que defendiam os animais e os que acreditavam que eles eram meios para fins humanos, como Aristóteles. Da mesma maneira, encontram-se ideias diversas no pensamento cristão. Um dos representantes desse pensamento, Tomás de Aquino, afirmava que os animais estão para o homem assim como as plantas estão para os animais, considerando, então, não ser errado matá-los ou usar de crueldade para com eles. A partir do Iluminismo, é possível constatar um gradual reconhecimento da senciência dos animais, o que não acarretou, naquele momento, a admissão de seus direitos. Somente no século XIX, surgem lutas por direitos de outras espécies. Com a divulgação da teoria de Darwin, a ideia de superioridade da espécie humana é contestada e, para se manter o especismo, usam-se pretextos como o de que, em seu estado natural, alguns animais matam outros, não havendo motivos para não 31 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. matá-los para nos servirem de alimento. Em seu livro, Ética Prática,Singer refuta tal argumento afirmando que, primeiramente, a maior parte dos animais que se alimentam de carne não sobreviveriam de outra forma, ao passo que para os seres humanos, a inclusão da carne animal em sua dieta seria um luxo e não uma real necessidade. Ademais, seria um paradoxo buscarmos orientação moral nas ações dos animais se os consideramos “selvagens” e irracionais. O ponto fundamental é que enquanto os animais não possuem a capacidade de refletir sobre seus atos, nós somos completamente aptos a ponderarmos sobre a ética de nossa alimentação. Para Singer, seres humanos e animais estão na mesma categoria e possuem direitos, devendo ser regidos pelo princípio moral da igual consideração de interesses. Não sendo encontradas características relevantes que tornem o homem superior aos demais seres vivos, ele deve a estes respeito e alívio de seus sofrimentos. Alegar a existência de um valor intrínseco ao ser humano seria uma forma de apelação daqueles que não possuem argumentos racionais. Embora também defenda os direitos dos animais (através da abordagem das capacidades), Martha Nussbaum (2008) faz importantes críticas à visão utilitarista, especialmente a dois elementos independentes nos quais se baseia o utilitarismo, o ranking de somatório e o hedonismo ou satisfação de preferência. O ranking de somatório leva em conta o bem-estar médio ou total, a soma geral de frustração de preferências e de satisfação relevantes, impossibilitando a exclusão antecipada de resultados altamente desfavoráveis a determinado grupo ou classe. Tal posição pode levar à justificação de absurdos como a escravidão e a subordinação vitalícia de alguns a outros. O hedonismo (Bentham) e a satisfação de preferência (Singer) são fatores problemáticos quando tomados por fundamento, visto que prazer é uma noção extremamente vaga, de difícil precisão em seres humanos, atingindo uma linha ainda mais tênue em animais não humanos. Faz-se também necessária a avaliação de prazer e dor como os elementos mais importantes a serem considerados, porquanto há prazeres reprováveis e parecem existir elementos de valor mais importantes que o prazer na vida animal. 32 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Apesar de o utilitarismo oferecer contribuições para a discussão sobre os direitos dos animais, apresenta grandes problemas em sua argumentação. O fato de os animais sentirem dor e prazer não é fundamento suficiente para torná-los sujeitos de direito, elevando-os à categoria de pessoas, o que é inconcebível para o direito atual. É certo que devam ser protegidos, como nossa Contituição já o faz, mas como objetos de direito e não como sujeitos de direito, atributo exclusivo da pessoa humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Prefácio e tradução Antônio Ulisses Cortês. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004. NUSSBAUM, Martha C. Para além de compaixão e humanidade: justiça para animais não humanos. In: MOLINARIO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. SINGER, Peter. Ética Prática. . São Paulo: WMF Martins Fontes, 2002. SINGER, Peter. Libertação Animal: O Clássico Definitivo Sobre o Movimento Pelos Direitos dos Animais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. 33 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A IDENTIDADE DO SUJEITO CONSTITUCIONAL NA (RE)INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO Flávia Siqueira Costa Pereira 1 Vinícius Silva Bonfim 2 Vítor Amaral Medrado 3 Marcelo Campos Galuppo 4 Palavras-chave: Constituição; Direito e Democracia; História Efeitual; Identidade; Sujeito Constitucional; Reconhecimento. A efetividade dos Direitos Fundamentais na construção dos provimentos estatais está condicionada à abertura da sociedade para a participação dos 1 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 2 Doutorando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Faculdade Pitágoras e da Faculdade J. Andrade. Contato. E-mail: [email protected]. 3 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 4 Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 34 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito cidadãos na interpretação da Constituição. É que a cidadania é um processo contínuo e reflexivo mediante o qual o intérprete da Constituição, utilizando de suas prerrogativas jurídicas e políticas, pode reconstruir a realidade em que se encontra. A construção da realidade se dá também pelo discurso através do qual se pretende reconstruir interpretações da Constituição. É a identidade do sujeito constitucional, conforme defende Rosenfeld, que torna possível que a Constituição seja interpretada pelos sujeitos constitucionais. O processo de construção e reconstrução das interpretações da Constituição fará com esta permaneça sempre atual e legítima frente à sociedade. A análise da identidade do sujeito constitucional, porém, não pode ser vista isoladamente, até porque Rosenfeld não pensa uma tese voltada para a elaboração normativa, mas sim para a reconstrução da realidade desta identidade. É preciso, pois, ter em vista as várias perspectivas que fundam a realidade hermenêutica do sujeito constitucional: a perspectiva propriamente constitucional, a dialógica e também a histórica. O itinerário deste trabalho será, primeiramente, o do estudo da relação basilar entre a construção da identidade do sujeito constitucional e o conceito habermasiano de patriotismo constitucional. Posteriormente, trabalharemos o processo de completude e de reconhecimento desta identidade que se dá pela dialética. Finalmente, estudaremos a contribuição de Gadamer para, concluindo, apresentarmos a identidade do sujeito constitucional como resultante de um processo dialético e dinâmico no qual se insere o interprete da Constituição nas sociedades plurais. A identidade do sujeito constitucional é formada pelo processo permanente de aprendizado em que os sujeitos aprendem com as suas igualdades e diferenças, com os erros e acertos, e é por meio dela que a interpretação da Constituição se realiza dialeticamente. 35 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Os pontos basilares para a perspectiva reconstrutiva da identidade do sujeito constitucional são os pressupostos opostos, consubstanciados na rica e produtiva tensão existente na facticidade e na validade do mundo moderno e que 5 proporcionam melhores interpretações na democracia e no pluralismo . No âmbito de um Estado constitucional democrático, a legitimação é colocada em cheque, questionando-se a sua efetiva realidade sob uma perspectiva democrática. Como é possível, por exemplo, que constituamos um povo, sendo tão diversos uns dos outros? O “povo” não pode significar apenas um referencial quantitativo, manifestado nas eleições, legitimador do processo de decisão pretensamente democrático em uma sociedade. Na verdade, com a tese do sujeito constitucional, a intenção é que “povo” signifique muito mais que isso, representando também um 6 elemento pluralista para a interpretação, uma opinião efetiva e ativa na sociedade . O patriotismo constitucional habermasiano não diz respeito à imposição de uma realidade normativa refletida pela sociedade. Pelo contrário, o que Habermas propõe é a construção, no decorrer da história, de uma identidade coletiva construída pelos próprios cidadãos através de um processo democrático, do qual sao eles partícipes. Rosenfeld, amparando-se em Habermas, defende que a construção de uma identidade do sujeito constitucional deverá se dar a partir de uma Constituição já elaborada por métodos legítimos, atentando, e.g., para o lugar das gerações passadas e futuras. 5 A auto-identificação da sociedade pluralista também como sociedade democrática está ligada ao fato de o Direito ter de garantir a possibilidade de realização de projetos de vida distintos. É através, pois, da garantia da igualdade que se pode falar em auto-identidade democrática da sociedade pluralista. Ver: Galuppo, 2002, p. 210-211. 6 Segundo Friedrich Müller, para que uma sociedade seja, de fato, democrática, não basta a mera participação dos cidadãos nas eleições. A partir da garantia da efetividade dos direitos humanos, de políticas sociais para a redução das desigualdades e da forma do Estado de Direito, é preciso a participação incessante da população, seja como resistência democrática ou como atividade democrática. Ver: MÜLLER, 1993, p. 124-127. 36 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A luta pelo reconhecimento constitui a função precípua do cidadão enquanto participante da política, já que é somente no exercício da cidadania que se torna possível a efetiva produção de “cidadãos”, ou sujeitos constitucionais. De fato, não há ditadura que possa preparar o indivíduo para a cidadania, que envolve a permanente reconstrução e reinterpretação do que se entende por Constituição. Esse processo dinâmico, aberto e que tem por objetivo negar para uma posterior aceitação é o que Hegel denomina de dialética. Hegel utiliza deste conceito para demonstrar como os indivíduos nas relações sociais buscam a identidade através das diferenças. O desejo por reconhecimento impulsiona o “eu” (self) em busca do outro, uma vez que já tenha experimentado a dor da carência, da ausência e a incompletude. O sujeito volta-se para o outro em busca de 7 reconhecimento , após entender que a sua realização não passa pelos objetos (HEGEL, 2008). O conceito de reconhecimento coaduna-se com o constitucionalismo moderno na medida em que este requer, precipuamente, um Estado Democrático de Direito e a proteção dos direitos fundamentais, pelos quais o legítimo sujeito constitucional deve renunciar a um montante de poder, se submete à prescrição do direito e se limita em face dos interesses fundamentais dos outros. Outro aspecto relevante da identidade do sujeito constitucional diz respeito à historicidade da situação hermenêutica. Com efeito, será possível uma interpretação da Constituição alheia à historicidade do sujeito (o sujeito constitucional) e do objeto (a Constituição)? A Constituição é um projeto em constante construção e reconstrução, o que torna o exercício do Poder Constituinte algo perene, permanente, incessante na história. 7 Para Axel Honneth, a identidade pessoal do indivíduo é fruto do processo de reconhecimento pelo qual, a partir do assentimento e encorajamento de outros, o indivíduo aprende a se remeter a si mesmo como constituído de determinas propriedades e capacidades. Ver: HONNETH, 2003, p. 272. 37 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A história pode ser entendida “como processo aberto de transformação de contextos sociais que permite, na análise desse processo, o reexame do tempo presente” (REPOLÊS, 2007, p. 03). A reconstrução do presente permite o movimento interpretativo permanente e vivo da identidade do sujeito a partir da Constituição. A teoria de Rosenfeld da identidade do sujeito constitucional, na medida em que prevê o desenvolvimento dialético realizado pelo sujeito em relação à tradição, guarda relação com conceito de Gadamer de História Efeitual. Nos dizeres de Gadamer: A consciência da história efeitual ultrapassa a ingenuidade desse comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em experiência e mantendo-se aberta à pretensão de verdade apresentada por essa. A consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na comunidade de experiência que distingue o homem experimentado daquele que está preso aos dogmas (GADAMER, 2005, p. 472). A história efeitual é, em um primeiro momento, a expressão da própria historicidade da situação hermenêutica. É que resta impossível a desvinculação da atividade hermenêutica da história. Nesse sentido, o círculo hermenêutico, para Gadamer, se constitui como uma inesgotável construção da verdade, que não é atingida como se fosse simplesmente um objeto à espera de ser desvendado, mas se dá de maneira dialética na medida em que o círculo hermenêutico, apesar de não ser nem objetivo, nem subjetivo, descreve o movimento da tradição, bem como do intérprete (GADAMER, 2005, p. 388). Tanto a identidade do sujeito constitucional, tal como trabalhada por Rosenfeld, quanto a História Efeitual de Gadamer traçam laços profundos com a tradição histórica, sem, porém, jamais deixar-se aprisionar por ela. Ambas são marcadas pela abertura e dialeticidade na reconstrução contínua da história. 38 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A identidade do sujeito constitucional pode ser apreendida a partir de expressões de auto-identidade no discurso intersubjetivo que vincula todos os atores que estão e serão reunidos pelo mesmo conjunto de normas constitucionais. Nesse sentido, esta identidade é um hiato, um vazio, uma lacuna que pede por completude e necessita, para a sua existência, da sua constante reconstrução, a qual se dá pela interpretação legítima da Constituição. A Constituição, portanto, deve estar aberta a interpretações, ou seja, ter espaço para os diálogos conflitantes que se contrapõem em vista de um entendimento mútuo da Carta Magna. O sujeito constitucional, assim, emerge da necessidade do confronto com o outro, já que, no âmbito do constitucionalismo moderno, o contraste entre o “eu” e o “outro” é consequência do pluralismo que lhe é inerente. “Na medida em que o constitucionalismo deve se articular com o pluralismo, ele precisa levar o outro na devida conta, o que significa que os constituintes devem forjar uma identidade que transcenda os limites de sua própria subjetividade” (ROSENFELD, 2003, p 36). É preciso, porém, atentar para o fato de que os sujeitos constitucionais estão inseridos em determinado contexto histórico que determina em certo sentido a hermenêutica constitucional. Nesse sentido, é inerente ao processo interpretativo da Constituição uma relação dialógica com a tradição em que se insere o sujeito constitucional. Sempre presente, pois, a tradição, marca da historicidade do sujeito, tornase ainda mais evidente a dialeticidade constitutiva do processo de construção da identidade do sujeito constitucional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 39 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 7º ed., Petrópolis: Vozes; São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2005. GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I 2.ed./ Jürgen Habermas; tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. 5º ed. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2008. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Editora 34, 2003. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Trad. Peter Naumann. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. A identidade do sujeito constitucional no Brasil: uma visita aos seus pressupostos histórico-teoréticos na passagem do Império para a República, da perspectiva da forma de atuação do guardião máximo da Constituição. In: XVI Encontro Preparatório do Conpedi, 2007, Campos dos Goytacazes - RJ. Anais Conpedi / Campos dos Goytacazes, 2007. ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Trad. Menelick de Carvalho Neto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. 40 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A IMPORTÂNCIA PARA O DIREITO DA CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA À LUZ DAS CIÊNCIAS DA MENTE Pâmela de Rezende Côrtes 1 Palavras-chave: Natureza humana. Ciências sociais aplicadas. Ciências da mente. Comportamento ético. Comportamento normativo. Este trabalho tem como objetivo discutir a importância do conceito de natureza humana. Em especial, pretende discutir como se faz necessário empreender um diálogo entre as ciências sociais, em especial o direito, e as novas teorias científicas no campo da biologia na busca pela definição dessa natureza. É preciso desmistificar as possibilidades de investigação biológica e desligá-las dos usos antiéticos do século passado, enxergando as pesquisas científicas em campos como a neurociência, a genética e a evolução como necessárias para a compreensão da realidade social. Para tanto, é preciso primeiro situar a discussão num brevíssimo resumo do caminho que o conceito de natureza humana percorreu até encontrarmo-nos em tempos presentes e nos perguntarmos o que é a natureza humana contemporaneamente. 1 Ciências do Estado – UFMG. E-mail: [email protected]. 41 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A busca pela compreensão da essência do ser humano, daquilo que o constitui enquanto tal, e na maior parte das vezes daquilo que o diferencia do restante da natureza, é uma busca antiga e provém da necessidade de explicar o homem e a mulher e a existência da sociedade de maneira racional. Rousseau, ao buscar as raízes do pacto que nos mantém coesos, busca fundamentar suas concepções através do estudo da natureza humana, “pois o homem nasce bom quanto tudo quanto sai da natureza(...)” (DEL VECCHIO, 2000, p.155). É no fim uma busca por aquilo que constitui e define o indivíduo, daquilo que é possível frente a ele mesmo. No entanto, “o tema da natureza humana não parou de suscitar interrogação, de Sócrates e Montaigne e a Pascal, mas só se descobriu o desconhecido, a incerteza, a contradição, o erro. Não alimentava um conhecimento, mas sim a dúvida sobre o conhecimento.” (MORIN, 1988) A busca pela natureza humana, no campo da filosofia e das ciências sociais, foi quase sempre apartada da busca das ciências naturais e encontrava-se num espaço de transcendência e abstração. Colocava o ser humano não no plano da natureza concreta, mas num plano superior que corresponderia às infinitas possibilidades da racionalidade e da ética. Até mesmo a afirmação de que há uma natureza humana, ou seja, algo para além da escolha que definiria o ser humano a priori pode ser complicada, já que “com poucas exceções, os cientistas sociais arrepiam os cabelos quando ouvem falar da hipótese da existência de uma natureza humana” (LEIS, 2004). Pode-se dizer que, no campo do direito, Kant é um dos autores que mais contribuíram para o afastamento entre as motivações humanas e a base biológica e natural do ser humano. “A natureza, dizia Kant, é um sistema de causa e efeito, enquanto que a eleição moral é um assunto de livrearbítrio, para o qual não existe causa e efeito.” (FERNANDEZ, 2008, p.35). Em grande medida, esse medo de encarar o homem e a mulher desnudados da divindade que lhes era imputada advém de certo otimismo quase suplicado quanto ao ser humano. É como se, para que se possa viver em sociedade, seja necessário partir do princípio de que há bondade inerente, seja por um sopro divino de bondade, seja pela consciência. A possibilidade de existirem instintos egoístas, cruéis ou desumanos fere profundamente a visão que se construiu do próprio ser humano. Dispomo-nos a negar nossa natureza, ainda que isso seja 42 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito negar a realidade, em nome de um idealismo infrutífero. Mas o conhecimento que é trazido pela ciência não “autoriza ninguém a ser otimista ou pessimista ”. (LEIS, 2004, p. 41) Contudo, não é mais possível manter esse hiato entre realidade concreta e abstrata, sobretudo com as novas descobertas nas áreas da neurociência cognitiva, da genética do comportamento e da psicologia evolucionista. Essas três áreas de investigação “ trabalham para estender uma ponte entre a natureza e a sociedade, a biologia e a cultura, em uma forma de explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana.” (FERNANDEZ, 2008, p.18). O direito, assim como os demais ramos das chamadas ciências sociais aplicadas, não pode se eximir de acompanhar a discussão sobre a natureza humana à luz das novas ciências, chamadas por Atahualpa como ciências da mente. O direito, esclareço, aqui entendido enquanto sistema de normas que regram a tessitura social, visando possibilitar uma vida em sociedade e estabelecendo limites ao comportamento humano. A resistência quanto a essas pesquisas não advém apenas dos traumas históricos das teorias eugênicas ou que buscavam legitimar um poder político através de diferenças biológicas ou raciais. Numa perspectiva mais profunda, enraíza-se no medo de que não haja espaço para a ética, ou para o direito. Essa é uma visão equivocada dessas teorias. A própria existência de princípios éticos e normativos nos mostra exatamente que somos capazes de construir valores e definir certo e errado. E esses valores não saíram de outro lugar que não o próprio ser humano, em suas limitações naturais e sociais. O comportamento, tanto ético quanto normativo, não é negado pelas áreas científicas supracitadas. Ele deve ser visto inclusive como um produto do cérebro, e, portanto, produto dos mecanismos da evolução da espécie humana. Isso quer dizer que a existência da natureza humana não anula o esforço conjunto em estabelecermos parâmetros para uma boa vida em sociedade. A existência de uma natureza humana, que não é essencialmente boa ou má, possibilita que o estudo do direito, enquanto ciência, 43 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. funde-se em bases científicas e racionalmente discutíveis, e não em abstrações que por vezes se perdem numa linguagem abstrusa e inalcançável. A existência de uma base biológica não anula a importância das interações sociais. A convivência com os demais seres humanos e com o restante da natureza em si é substrato essencial para a construção dos parâmetros de conduta do cérebro humano, e da própria humanidade enquanto valor. Temos uma impressionante memória e capacidade de aprendermos, e o desenvolvimento dessas capacidades pode ser analisado através da teoria evolutiva. Acima de tudo, as ciências da mente não anulam a possibilidade de existir respeito, altruísmo, justiça e reconhecimento. Nossa natureza não nos conforma tal qual nos encontramos no momento presente. Há espaço para as escolhas humanas. Só que elas não podem se dar em um universo infinito de possibilidades, mas dentro de alguns limites impostos pela nossa composição físico-química, por exemplo, ou pelas possibilidades da rede neuronal na leitura de determinada informação. Então, como compreender a natureza humana contemporaneamente? Atahualpa Fernandez, em seu livro, assim a define: “uma arquitetura cognitiva inata estruturada de forma homogênea e funcionalmente integrada”, que não se constitui apenas enquanto genes e neurônios, mas também se utiliza das experiências sociais, culturais e de valores aprendidos nessas experiências (FERNANDEZ, 2008, p.118). Nessa perspectiva, o direito ganha força necessária e eficaz para resolver problemas “adaptativos práticos relacionados com a crescente complexidade da vida em grupo” (FERNANDEZ, 2008, p. 175). O aprofundamento do conhecimento sobre os limites e as possibilidades biológicas do ser humano, se não ignorado pelo direito, tende a aprimorar o estudo das melhores e mais importantes regras a serem estabelecidas . Isso porque compreenderemos até onde podemos ir, e onde precisamos de razões externas a nós para chegar. É sobretudo através das interações sociais e do aprendizado que se constroem os valores que são tão caros e a vida feliz em sociedade. Os mecanismos evolucionais não nos querem afundar na barbárie. Mas também esclarece que não nascemos inevitavelmente para o bem. Se compreendermos a forma pela qual as condições biológicas se nos apresentam, teremos “alguma 44 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito chance de perturbar os seus desígnios, algo que nenhuma espécie jamais aspirou fazer.” (DAWKINS, 2007, p. 40) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Trad. Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Trad. Antônio Carlos. São Paulo: Lejus, 2000. FERNANDEZ, Atahualpa. Direito & Natureza Humana: As Bases Ontológicas do fenômeno Jurídico. Curitiba: Juruá, 2008. LEIS, Héctor Ricardo. O conflito entre a natureza humana e a condição humana no contexto atual das ciências sociais. Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 10, p. 39-45, jul./dez. 2004. Editora UFPR. MORIN, Edgar. A natureza humana: o paradigma perdido. 4a. ed. Lisboa: EuropaAmérica, 1988. 45 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A NOVA RETÓRICA SEGUNDO MANUEL ATIENZA: UMA ANÁLISE DAS CRÍTICAS DIRIGIDAS À TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO DE CHAÏM PERELMAN EM AS RAZÕES DO DIREITO Marco Antônio Sousa Alves 1 Palavras-chave: Atienza; Perelman; Nova Retórica; Teoria da Argumentação. Em As Razões do Direito, Manuel Atienza avalia criticamente diferentes abordagens da argumentação jurídica, propondo, ao final do livro, um projeto teórico próprio (cf. ATIENZA, 2000). Nesse percurso, cinco concepções são analisadas: a tópica jurídica de Theodor Viehweg, a nova retórica de Chaïm Perelman, a concepção não formal da argumentação e o modelo de análise de Stephen Toulmin, a teoria integradora da argumentação jurídica de Neil MacCormick e a teoria da argumentação jurídica como discurso racional (ou um caso especial do discurso prático geral) de Robert Alexy. Para cada concepção analisada, Atienza ressalta seu contexto de surgimento, sua perspectiva teórica geral e uma sempre detalhada avaliação crítica. 1 Professor da Faculdade de Direito Milton Campos. Doutorando em Filosofia pela UFMG. E-mail: [email protected]. 46 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito O objetivo da presente comunicação consiste em analisar as críticas dirigidas por Atienza à nova retórica de Chaïm Perelman. Pretendemos realizar um balanço crítico das objeções feitas por Atienza na tentativa de determinar a justeza e o alcance delas, ou seja, gostaríamos de avaliar até que ponto a nova retórica de Perelman merece as críticas que lhe foram dirigidas. Para esse exercício, as principais críticas feitas por Atienza serão organizadas em quatro grupos, que estruturarão o desenvolvimento deste trabalho: (1) a crítica à problemática relação entre descrição e prescrição; (2) a crítica ao quadro conceitual obscuro e inútil da Nova Retórica; (3) a crítica ao conservadorismo prático de Perelman; e (4) a crítica à ambigüidade do conceito de auditório universal. A proposta da nova retórica de Perelman acentua a mera descrição de nossas práticas argumentativas, dando pouca importância ao aspecto normativo da argumentação, ou seja, não se preocupando em prescrever regras da argumentação racional. Como a lógica se caracterizou, ao longo da tradição filosófica, por sua capacidade de nos prescrever regras para podermos raciocinar corretamente, um estudo lógico incapaz de diferenciar o raciocínio correto do falacioso é tido por incompleto e insatisfatório. Nesse sentido, ATIENZA (2000:110) demonstra grande insatisfação quanto aos resultados da nova retórica: “O que não está tão claro, entretanto, é que a sua nova retórica tenha conseguido realmente assentar as bases de uma teoria da argumentação capaz de cumprir as funções – descritivas e prescritivas – que Perelman lhe atribui”. Atienza acredita que a causa desse relativo fracasso pode ser encontrada na ausência de uma teoria geral da estrutura dos argumentos no Tratado da Argumentação, tal como Toulmin desenvolveu. A retórica de Perelman limitou-se à análise da estrutura de cada um dos tipos ou técnicas argumentativas, descuidando do estudo dos argumentos em geral. Talvez Atienza tenha razão quanto à incapacidade do Tratado da Argumentação de cumprir aquilo que prometeu, ou seja, de assentar as bases descritivas e normativas de uma teoria geral da argumentação. Porém, o fato de estar ausente de sua obra uma teoria geral da estrutura dos argumentos pode ser 47 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. justificado pelo acento dado à riqueza das diversas técnicas argumentativas. Perelman pretende mostrar que é impossível encontrar uma forma geral, aplicável a qualquer argumentação. Ele é cético quanto à possibilidade de se elaborar um diagrama da argumentação, pois, como salienta o próprio ATIENZA (2000:85), “Perelman considera que a estrutura do discurso argumentativo se assemelha à de um tecido (...). Uma conseqüência disso é a impossibilidade de separar radicalmente cada um dos elementos que compõe a argumentação”. É preciso reconhecer que a relação entre descrição e prescrição, fato e valor, é de difícil equação, seja qual for o lado que se acentue. Apesar de ressaltar o aspecto descritivo, o conceito de auditório na nova retórica é também a chave para uma teoria normativa da argumentação. O valor de um argumento é determinado pela qualidade do auditório que consegue convencer e, no limite, pela adesão do auditório universal, que serve, portanto, de critério normativo de racionalidade na argumentação. Como ocorre com os estudos pioneiros, também a teoria da argumentação de Perelman introduz um novo aparato conceitual que se justifica em razão de seu poder heurístico. O Tratado da Argumentação teve o mérito de assentar uma série de conceitos dos quais grande parte dos estudos retóricos posteriores se serviu. Entretanto, ATIENZA (2000:110) considera o aparato conceitual de Perelman obscuro e confuso: “poder-se-ia dizer que, do ponto de vista teórico, o pecado capital de Perelman é a falta de clareza de praticamente todos os conceitos centrais de sua concepção da retórica”. A enumeração das diversas técnicas se sobreporia à proposta sistemática do Tratado da Argumentação e, mesmo nesse levantamento, as classificações utilizadas seriam artificiosas, como a distinção entre procedimentos de dissociação e de associação e aquela entre os argumentos quase-lógicos, os que se baseiam no real e os que fundamentam a estrutura do real. Em suma, para ATIENZA (2000:111), “a classificação dos argumentos que aparece no Tratado está longe de ser clara e inclusive útil”. 48 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Entendemos que a severa acusação de que todos os conceitos centrais de Perelman são confusos parece decorrer, em certa medida, de uma má vontade hermenêutica. Ainda que não encontremos sempre a clareza desejável, também não é verdade (ou é ao menos exagerado) afirmar que são todos sem sentido e de nada servem. Aliás, o quadro conceitual introduzido na primeira parte do Tratado da Argumentação é uma grande referência para os estudos retóricos (como as distinções entre demonstração e argumentação, persuasão e convencimento, auditório particular e universal, dentre outras). Quanto à classificação das diversas técnicas argumentativas, feita na terceira parte do Tratado, Atienza tem razão de desconfiar da descrição oferecida, que realmente parece confusa. Contudo, entendemos que a função dessa parte no Tratado é apenas ilustrativa. O fato de Perelman não se dedicar a essas técnicas em seus outros textos parece insinuar que não está aí o interesse principal de sua proposta teórica. A nova retórica é uma teoria geral da argumentação e a descrição das diversas técnicas se subordina a esse propósito. O próprio Perelman não atribui grande valor à forma como essas técnicas foram organizadas no Tratado, pois também ele sabia de sua imprecisão. Seu único objetivo foi, e nisso ele foi bem sucedido, apresentar os diversos grupos de argumento sob suas formas mais características (cf. PERELMAN & OLBRECHTSTYTECA, 1970:258, §44). Segundo ATIENZA (2000:116), “se, do ponto de vista teórico, o pecado capital de Perelman é a falta de clareza conceitual, do ponto de vista prático esse pecado é o conservadorismo ideológico”. Ao ressaltar a importância do precedente e erigir o princípio de inércia como uma regra argumentativa fundamental, a nova retórica parece dar grande importância àquilo que é comumente aceito, ao status quo. Essa tese foi vista como uma espécie de aceitação da tradição, que seria, ao menos a princípio, tida por razoável. Como conseqüência, a proposta de Perelman acaba por sustentar um perigoso conservadorismo prático, que dificulta qualquer alteração no ethos e aceita sem mais a tradição. Em resumo, suas idéias não assumem uma perspectiva crítica. 49 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Antes de entrar no mérito dessa crítica ideológica, é interessante observar que Perelman se envolveu, ao longo de sua vida, em várias questões políticas e, na maioria das vezes, dificilmente poderíamos dizer que sua participação foi conservadora ou subserviente. Quanto ao mérito da crítica, não é nada clara a conseqüência conservadora que Atienza pretende retirar da importância que a nova retórica confere aos precedentes. É preciso ter em mente que o princípio de inércia não deve ser pensado em um sentido conservador. O que se pretende ressaltar é apenas que toda inovação tem suas raízes na experiência historicamente vivida (cf. PERELMAN, 1970:304). Não existe invenção a partir do nada, posto que há sempre um padrão argumentativo prévio que serve de referência para a criação. Não devemos confundir uma análise lógica dos pontos de partida de uma argumentação com uma análise política conservadora. Perelman não defende a tradição, mas apenas vê nela o solo comum do qual devemos partir em nossas argumentações. Do contrário, nunca se chegaria a um consenso, pois os pontos de partida seriam sempre conflitantes. Sobre a acusação de que não há, em Perelman, uma perspectiva crítica, acreditamos que Atienza minimiza a importância dos auditórios qualificados, e no limite o auditório universal, como garantes da racionalidade da argumentação. Portanto, ao contrário da conclusão de Atienza, Perelman dispõe sim de uma noção de decisão razoável, que permite criticar as práticas meramente persuasivas e manipuladoras, que determinadas argumentações dirigidas a auditórios particulares podem assumir. Contudo, é forçoso admitir que Perelman não conduziu sua teoria nessa direção e não elaborou uma leitura crítica da sociedade contemporânea ocidental. A dificuldade de compreender o que, exatamente, é o auditório universal, levou muitos comentadores a considerar esse conceito impreciso, ambíguo e até sem sentido. Para ATIENZA (2000:114), o auditório universal “desempenha um papel central na construção perelmaniana, mas há algumas razões para duvidar da sua solidez”. Manuel Atienza observa que um ponto fraco da proposta de Perelman está nos critérios de distinção de um argumento fraco ou forte. Uma possível maneira de interpretar o auditório universal, segundo Atienza, é identificá-lo ao conjunto daqueles que argumentam com seriedade e boa fé. Assim, a noção não teria problemas, mas, se fosse apenas isso, seria banal e não justificaria o interesse 50 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito por ela despertado. O grande problema do conceito de auditório universal estaria assim na relação entre o seu aspecto ideal, normativo, e o seu aspecto concreto, fático. Apesar de reconhecer o esforço de Perelman em articular esses dois pólos, ATIENZA (2000:114-115) observa que “isso não se consegue simplesmente construindo conceitos em que ambas as dimensões aparecem sem nenhum tipo de articulação ou pelo menos, sem nenhuma articulação convincente”. Em suma, ATIENZA (2000:116) vê no auditório universal uma mera justaposição incoerente e insustentável: “como conclusão de tudo isso, talvez se pudesse dizer que o auditório universal perelmaniano é, mais que um conceito cuidadosamente elaborado, apenas uma intuição feliz”. Entendemos que o teórico espanhol detectou corretamente o problema, mas não concordamos com a sua conclusão, qual seja, que o auditório universal seja apenas uma intuição feliz e não um conceito bem articulado. Entendemos ser possível oferecer uma harmonização conceitual da ambigüidade presente na noção de auditório universal, que permitiria conciliar em seu interior o aspecto psicológico, lógico, sociológico e filosófico partindo da distinção entre o ponto de vista interno e externo ao auditório (cf. ALVES, 2005). Entendemos que essas críticas conceituais e ideológicas feitas por Atienza não são plenamente aceitáveis e que uma interpretação mais caridosa e consistente da obra de Perelman, e em particular da noção de auditório universal, permite evitar grande parte dos problemas e deficiências que foram identificados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 51 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. ALVES, Marco Antônio Sousa. A argumentação filosófica: Chaïm Perelman e o auditório universal. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2005, 206p. (Dissertação, mestrado em Filosofia, Orientador: Paulo Roberto Margutti Pinto). Disponível em http://hdl.handle.net/1843/ARBZ-7FXHZA. ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2000. PERELMAN, Chaïm. Le Champ de l’Argumentation. Bruxelles: Éditions de l’Université de Bruxelles, 1970. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’argumentation: la nouvelle rhétorique. 2a ed. Bruxelas : Éditions de l’Institut de Sociologie de l’Université Libre de Bruxelles, 1970. 52 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito AS SENTENÇAS ADITIVAS À LUZ DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA Cristiano Soares Barroso Maia 1 Alexandre Araújo Costa 2 Palavras-chave: Sentenças Aditivas; Jurisdição Constitucional; Hermenêutica Filosófica. O presente texto trata das sentenças aditivas, categoria que tem sido introduzida pelo min. Gilmar Mendes na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a partir da experiência italiana. Por meio de tais sentenças, o Poder Judiciário não interpreta um enunciado normativo, mas complementa o ordenamento jurídico mediante a adição de uma norma. O artigo mostra como o STF tem utilizado esse conceito nos últimos anos para justificar uma postura de ativismo judicial e busca compreender esses fenômenos a partir das categorias filosóficas ligadas à aplicação das normas. Em 1 Mestrando em Direito na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected] Professor do Instituto de Ciência Política (IPol) da UnB e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Política e Direito da UnB. Mestre e Doutor em Direito pela UnB. E-mail: [email protected]. 2 53 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. primeiro lugar, avalia-se a relação desta postura com a equidade (epieikeia) de Aristóteles, visto que ele sustentou que a lei lacunar ou defeituosa deveria ser retificada pelo julgador (ARISTÓTELES, 2009, p. 173), como se estivesse “no lugar do legislador”. Mas o núcleo do artigo é a análise das decisões de efeitos aditivos à luz das contribuições da Hermenêutica Filosófica. As sentenças aditivas surgiram na prática da Corte Constitucional italiana, que fora instituída pela Constituição de 1947, responsável pelo restabelecimento do regime democrático após a Segunda Guerra Mundial. Essas decisões partem do 3 pressuposto de que um texto legal pode comportar inúmeras normas , devendo a Corte Constitucional excluir aquelas consideradas incompatíveis com a Constituição ou, em alguns momentos, inserir aquelas necessárias para adequar o texto legal à norma constitucional. Assim, o papel do Tribunal seria o de colmatar o texto legal lacunoso, de forma a “torná-lo constitucional”; ou melhor, ele adicionaria uma norma que deveria ter sido prevista anteriormente no âmbito do texto normativo, para que a lei, se interpretada dessa maneira, seja considerada constitucional e mantida no ordenamento jurídico. o Uma das primeiras decisões nesse sentido foi a Sentença n 168/1963, por meio da qual a Corte Constitucional italiana declarou a inconstitucionalidade do art. 11.1 da Lei do Conselho Superior da Magistratura. Na espécie, a Corte entendeu que tal ato normativo não poderia ter previsto apenas a competência do Ministro da Justiça para dar início a procedimentos sobre magistrados no âmbito daquele órgão, estendendo ao próprio Conselho tal prerrogativa. No Brasil, a aplicação da sentença aditiva está relacionada à mudança da postura do STF quanto à omissão constitucional, sobretudo a partir do julgamento da ADI nº 1351 (DJ 30/03/2007), Relator Min. Marco Aurélio, bem como do Mandado de Injunção nº 708 (DJe nº 206, publicação em 31/10/2008), Relator Min. 3 Na Filosofia do Direito italiana, é marcante a distinção entre texto e norma. Cf. GUASTINI, Riccardo. “Disposizione vs. norma” em Giurisprudenza costituzionale, Parte Seconda. Milano: Giuffrè, 1989, p. 4.; GIANFORMAGGIO, Letizia. L’interpretazione della costituzione tra applicazione di regole ed argomentazione basata su principi. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, Giuffrè, gennaio/marzo, IV Serie, LXII, 1985, p. 89. 54 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Gilmar Mendes. No julgamento do MI 708, o STF, diante da omissão do Parlamento em editar a legislação regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos, os resolveu “estender”, no que fosse cabível, a aplicação das Leis n 7.701/1988 e 7.783/1989, que tratam do direito de greve dos trabalhadores da iniciativa privada, que exerçam atividades consideradas essenciais. A par disso, resolveu atribuir competências para órgãos jurisdicionais, a fim de dirimir os litígios decorrentes da aplicação da citada legislação aos servidores públicos, levando em consideração a abrangência do movimento paredista. No âmbito da ADI 1351 (“cláusula de barreira”), diversos dispositivos da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, tiveram sua inconstitucionalidade declarada, uma vez que, segundo o Supremo Tribunal Federal, estabeleciam parâmetros rigorosos para o funcionamento dos partidos políticos. Caso não satisfeitos os requisitos legais, o partido político teria inúmeras limitações ao seu funcionamento, tais como menos recursos do Fundo Partidário e menos tempo no programa eleitoral gratuito. Nessa ação direta, o STF declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, determinando a vigência de um dispositivo originalmente transitório (art. 57 da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995) de maneira indefinida, até que o Parlamento editasse nova legislação sobre o funcionamento dos partidos políticos. O aspecto comum nos julgamentos supramencionados é a explícita alusão 4 5 à necessidade de se afastar a ideia do legislador negativo , a fim de que o Tribunal 4 Cumpre relembrar que o Supremo Tribunal Federal editou o verbete nº 339 da súmula de jurisprudência predominante, deixando consignado o seguinte: ”não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos, sob fundamento de isonomia”. Assim, embora elaborada no âmbito do controle incidental de constitucionalidade, revela a posição defensiva do Tribunal, em contradição com seus mais recentes julgados. 5 Cumpre esclarecer, desde já, que o Supremo Tribunal Federal, não obstante possuir a função de guardião da Constituição, possui também características de órgão de cúpula do Poder Judiciário. Isso se deve aos desdobramentos históricos pelos quais passou o STF. Num primeiro momento, foi pensado como Suprema Corte, mais próximo do modelo norte-americano. As últimas alterações, contudo, aproximam-no do modelo europeu. Nesse sentido, cf. SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 43 e ss. 55 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. possa proferir decisões de cunho aditivo, tal qual a Corte Constitucional italiana e 6 outros órgãos de jurisdição constitucional da Europa . Afirma-se, outrossim, que só poderá enfrentar novas situações que surgem no seu cotidiano, como a omissão constitucional, se estiver munido de novas técnicas de decisão. Interessante notar que a prática adotada pelo STF diverge sensivelmente daquela adotada pela Corte Constitucional italiana. No caso do MI 708, por exemplo, o Tribunal não enunciou que a Lei de Greve dos serviços essenciais só seria constitucional, caso alcançasse também a greve no serviço público. Apenas entendeu que, enquanto não editada norma pelo Poder Legislativo, referido ato normativo deveria ser aplicado aos servidores públicos, não obstante o argumento de que estaria reproduzindo suposta técnica já adotada há alguns anos na Itália. A ideia de Schleiermacher, um dos precursores da sistematização da hermenêutica, de que a interpretação tinha a finalidade de evitar um malentendido ou algo de estranho no texto (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 31), foi superada, tal como o psicologismo de que o intérprete deve revelar a intenção do autor (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 43). A perspectiva heideggeriana apontou para a historicidade do ato de interpretação (HEIDEGGER, 2010). Gadamer, seguindo essa mesma linha, ressaltou que interpretação, compreensão e aplicação são partes do mesmo momento, ao contrário do que sustentava a velha tradição hermenêutica alemã (GADAMER, 2008, p. 407). A compreensão passou a ser encarada como o aspecto fundamental de realização da pre-sença, que é o in-der-Welt-sein humano (GADAMER, 2006, p. 12). Não só textos, mas qualquer coisa (texto, pintura, gesto, etc.) pode ser objeto de interpretação, pois somente no espaço entre familiaridade e estranheza da 6 “Portanto, é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais europeias. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional” (trecho do voto do Min. Gilmar Mendes na ADI 1351). 56 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito mensagem que nos interpela constitui-se a compreensão de nós mesmos e da alteridade do outro. A sentença aditiva subverte a tensão constitutiva da interpretação jurídica. Não se trata apenas da tensão entre o geral anteriormente dado pelo legislador (texto normativo) e o particular (situação concreta), mas da necessidade de que o julgador interprete o caso particular, para, a partir dele, enunciar o geral (faltante). Não se enquadra a hipótese na conhecida imagem do círculo hermenêutico, que pressupõe a relação entre a parte e o todo. Tampouco a sentença aditiva assemelha-se à epieikeia aristotélica, já que não se trata de flexibilizar a regra geral para um caso particular. Com efeito, está-se diante de uma problemática que desafia a práxis jurídica, pois sobrecarrega o ato de interpretação/aplicação com uma nova exigência, a de que o próprio algo a partir do qual se interpreta seja determinado pelo intérprete. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. 3 ed. São Paulo: 2009. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. 3 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2008. 57 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. GIANFORMAGGIO, Letizia. L’interpretazione della costituzione tra applicazione di regole ed argomentazione basata su principi. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, Giuffrè, gennaio/marzo, IV Serie, LXII, 1985. GUASTINI, Riccardo. “Disposizione vs. norma” em Giurisprudenza costituzionale, Parte Seconda. Milano: Giuffrè, 1989. HEIDEGGER, Martin. El ser y el tiempo. Trad. José Gaos. 2 ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2010. SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Trad. Celso Reni Brada. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. 58 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito AS TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO COMO MOMENTO DO DIREITO: A EXPANSÃO DA PUREZA KELSENIANA Victor Freitas Lopes Nunes Palavras-chave: Momentos do argumentação; Suprassunção. Direito; Moldura kelseniana; Teoria 1 da O Direito é um objeto complexo e dinâmico, o que faz com que toda vez que se consiga encontrar uma parcela de sua verdade, ele se transforme a partir daquilo que foi descoberto. Lidar com um objeto em constante mutação requer a compreensão exata dos movimentos que compõe essas mudanças. Busca-se, portanto, avaliar a importância das teorias da argumentação, de modo a compreender qual é o papel delas para o Direito. Para tanto, estas teorias, bem como a moldura kelseniana (KELSEN, 1998), serão analisadas de modo a 1 Graduando pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista BIC/UFJF no projeto “Contratos de cooperação tecnológica: o interesse de exploração econômica do agente privado, o direito fundamental do inventor de ser reconhecido como titular da patente e o papel das instituições científicas e tecnológicas”, sob orientação do Prof. Dr. Marcos Vinício Chein Feres. E-mail: [email protected]. 59 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. serem compreendidas como universais incondicionados (HEGEL, 2002), que carecem ser reconhecidas como momentos de concretização do Ser Jurídico. Um objeto complexo como o Direito, composto de elementos (universais) incondicionados (HEGEL, 2002), de forma a que esses próprios elementos estabeleçam a lógica de funcionamento do seu ser, deve ser analisado sob a perspectiva do todo. Contudo, jamais deve ser esquecido que ao se alcançar a compreensão, ou parte dela, há que se preservar os momentos que a compõe. A oposição entre diferentes momentos, os quais em princípio se entendem como objetos incondicionados em si, impõe a certeza de que mesmo com a construção de algo diferente a partir deste choque, este novo não será diferente dos momentos, mas sim composto por eles e, por outro lado, os momentos em si não se perderão no todo, mas farão parte dele preservando suas respectivas especificidades consigo. Isto se põe, uma vez que os movimentos em si são a forma pela qual se expressa o todo, forma esta que impõe como conteúdo a própria forma de seus movimentos. Indubitável é a contribuição kelseniana para o Direito, no entanto, a compreensão do mestre austríaco não exaure o objeto, apenas revela uma de suas faces. Já no capítulo I de sua obra mais importante, a Teoria Pura do Direito, Kelsen (1998) revela quão importante é o processo interpretativo para o ser jurídico, sem o qual o objeto perde propriedade imprescindível, ou seja, torna-se não-Direito. Contudo, é no capítulo VIII que é revelada a forma pela qual entendia o autor que seria processada a interpretação das normas pelos agentes estatais (administração pública, tribunais, etc.), a interpretação autêntica (KELSEN, 1998), qual seja a fixação de uma moldura como limiar cognoscitivo de sentido objetivo. Fica estabelecida a moldura, dentro da qual o agente, discricionariamente, por uma decisão eminentemente política, deve buscar a solução para os conflitos postos sob sua análise. Há que se observar que a forma pela qual o Direito se dispõe, segundo Kelsen (1998), é orgânica à medida que o processo de validade de normas se 60 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito estabelece, autonomamente, em consonância com as normas de hierarquia superior até a norma fundamental. O próprio Direito estabelece por e através de si mesmo meios para que seja construído de modo a preservar sua existência. É o Ser Jurídico, portanto, objeto complexo e dinâmico, capaz de (re)produzir-se pela sua forma mesma. A moldura é, nestes termos, parte desta estrutura orgânica, momento dela. Não acreditava Kelsen (1998) que haveria um ponto de vista jurídico que orientasse o processo de escolha dentro da moldura. É contra essa postura que as teorias da argumentação, como as de Alexy e MacCormick, para citas algumas das possibilidades colocadas por Atienza (2006), surgiram, de modo a racionalizar o processo interpretativo. Neste mesmo sentido, Ferraz Jr. (2011) assevera que a aplicação do direito (posto), a qual não se confunde com a interpretação, muito embora esta seja necessária para aquela, é problema do Ser Jurídico. Tem-se, assim, que a norma não está adstrita ao texto legal, mas sim é veiculada através dele. Há que se encontrar, portanto, um meio jurídico para decidir. Importa, aqui, no entanto, não a correção ou as objeções passíveis de serem feitas às teorias da argumentação, mas o papel que elas desempenham no Direito. Mesmo porque, tanto as decisões judiciais, por força do artigo 93, IX da Constituição Federal, quanto os atos administrativos, por força do artigo 50 da lei 9.784/99, devem ser motivados, o que implica em um dever, por parte do agente público, de argumentar a fim de alcançar a melhor decisão. Logo, é a motivação indispensável para a validade dos atos decisórios. Complementarmente ao que defendia Kelsen (1998), no que tange à validade das normas jurídicas através da hierarquia no ordenamento, há a necessidade de motivação das decisões, o que impõe a argumentação no sentido de descobrir tanto a norma insculpida no texto legal, quanto a norma aplicável ao fato, para que se alcance o Direito. Sob esta perspectiva é que tem grande importância as teorias da argumentação, como forma de racionalizar o processo decisório, permitindo 61 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. metodologicamente a aferição da correção das decisões, situando-se ao lado da teoria kelseniana como momento do ser jurídico. Há, desta forma, complementaridade entre as teorias kelseniana e da argumentação. Não são elementos exógenos ao Direito, mas sim endógenos, integram o próprio Ser Jurídico. Não o esgotam, mas o delimitam. Tanto a moldura, que compreende todas as possíveis hipóteses de solução a um entrave jurídico, quanto as teorias da argumentação, que visam estabelecer um parâmetro racional para a escolha dentre as hipóteses postas na moldura, são momentos do Direito. Desta forma, devem ser colocados juntos, mas preservados em suas instâncias, no sentido de buscar-se a melhor solução, obedecendo as possibilidades estabelecidas no ordenamento jurídico, e postulando para cada decisão uma linha de argumentação coerente tanto interna quanto externamente, em prol do Direito. É, pois, necessário que se supere o ideário kelseniano de discricionariedade do agente público sobre as escolhas dentro da moldura. Não se deve esquecer de importantes ensinamentos deste mestre, sobretudo o valor do direito positivo e a necessidade validação das normas conforme a hierarquia do ordenamento, no entanto, quando se trata da escolha da melhor decisão dentro da moldura há que se suprassumir o antigo entendimentos através das teorias da argumentação para que se consiga alcançar através do processo de aplicação das normas o verdadeiro Direito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 62 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito ATIENZA, Manual. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução: Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3º ed. São Paulo: Landy, 2006. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regulamento o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1 fev. 1999. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9784.htm>. Acesso em: 05 nov. 2011. FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução: Paulo Menezes. 5ª ed.. Petrópolis: Vozes, 2002. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. 6º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 63 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A TEORIA TRIDIMENSIONAL E A FILOSOFIA DO DIREITO: A OBSERVAÇÃO DE MIGUEL REALE A FAVOR DA UNIFORMIDADE DIALÉTICA1 Igor Alves Noberto Soares 2 Palavras-chave: Filosofia do Direito; Teoria Tridimensional do Direito; Miguel Reale. Antes de qualquer abordagem, deixo-lhes cientes de que este trabalho não é, puramente, obra de um filósofo, ou seja, não aprofunda nas discussões às quais a Filosofia, como tal, tanto almeja. O que ora o faço é a observação e o estudo da obra de Reale e procedo, rapidamente, com a aplicação desta no fenômeno do Direito, sem que haja discussões mais arraigadas em conceitos e determinismos. Assim, por acreditar que o Direito somente será solidificado através da observação, posso me considerar, se me permitam, um jurista-filósofo. Sem mais delongas, passo à análise do que proponho. 1 Pesquisa realizada em função dos estudos empenhados na disciplina de Sociologia Jurídica, ministrada pelo Prof. Dimas Ferreira Lopes, na Faculdade Mineira de Direito – PUC Minas. O autor agradece aos mestres Dimas Ferreira Lopes e Magda Guadalupe dos Santos, professores da Faculdade Mineira de Direito/PUC Minas, nas respectivas cátedras de Sociologia Jurídica e Filosofia, pela semente da indagação aqui plantada, ainda que na dispersão do meu conhecimento e apreensão do conteúdo, meu cordial agradecimento. 2 Bacharelando em Direito pela PUC Minas, campus Coração Eucarístico. E-mail: [email protected] 64 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Miguel Reale, considerado por muitos o maior jusfilósofo (ou juristafilósofo) brasileiro do séc. XX, contribuiu de forma decisiva para com o estudo da Ciência Jurídica ao nos ofertar a Teoria Tridimensional do Direito, fruto da preocupação dialética em acrescentar ao sistema os elementos interdisciplinares capazes de desenvolver novo entendimento e prática quando das relações sociais. Tais preceitos são basilares para percebermos o fenômeno do Direito e as formas de manifestação deste em sociedade, sejam através das normas jurídicas ou das decisões judiciais aplicadas ao caso em concreto. E Reale já observa, no início de sua obra, que A verificação de que nossa época assiste a uma profunda renovação nos estudos filosófico-jurídicos (...) demonstra que o problema da razão de ser desta disciplina (Filosofia do Direito) não pode ser apreciado in abstracto, mas em suas necessárias correlações com o complexo de fatores históricos e sociológicos dos quais decorre a nova atitude observada (REALE, 2001, p. 1). Deste modo, ao se envolver com a verificação que apontava a Filosofia do Direito como veículo de resposta às indagações da sua época, figurando ser tal questionamento a ausência da aplicação prática exigida para a Ciência do Direito, Reale inova ao propor um aparelho dialético e unificado. Pensada ainda na década de 1940 – e publicada em 1968 -, a Teoria Tridimensional é amplamente aproveitada ao sistema e estudos atuais, vez que apresenta a solução mais acertada acerca das intervenções às quais o Direito deve observar. É importante notar que esta teoria não pode ser visualizada fora do contexto a que o autor remete, qual seja, a apreciação no caso em concreto. E Reale avisa em sua obra que a Teoria Tridimensional é, ao passo das demais, “concreta e dinâmica”, por proporcionar uma conexão dialética entre os fatores que a compõe. Repara o autor que, além da irrefutabilidade entre fato, valor e norma, propõe-se o estudo debatedor, como já observado, entre tais elementos, que são reflexo e exemplificam outras ciências (esta é a base da dialética de Reale). Outro dado importante parte da natureza funcional e dialética entre fato e valor, de cuja 65 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. tensão resulta o momento normativo, relação que mais à frente será debatida com mais afinco. Necessário, antes de toda discussão, esclarecer que a Teoria Tridimensional de Reale não surgiu do nada; tem como base as muitas teorias tridimensionais da Alemanha (vislumbradas nas obras de Emil Lask e Gustav Radbruch), da Itália (Icilio Vanni e Giorgio Del Vecchio) e da França (Paul Roubier) e no tridimensionalismo da Common Law e da Cultura Ibérica. O que diferencia a matéria de Reale das demais teorias é justamente a desvinculação do tridimensionalismo genérico e abstrato, bem como a inexistência, em separado, de cada um dos elementos compositores do Direito, a constar FATO, VALOR e NORMA. É cediço que a norma legitima a ação humana, amparando o conteúdo valorativo desta. Para tanto, Antônio Bento Betioli afirma, perfazendo a mesma linha de Reale, afirma que Conseqüentemente, o Direito não é puro fato, não possui uma estrutura puramente factual, como querem os sociólogos; nem pura norma, como defendem os normativistas; nem puro valor, como proclamam os idealistas (...) O Direito congrega todos aqueles elementos: ‘é o fato social na forma que lhe dá uma norma, segundo uma ordem de valores’ (...) (BETIOLI, 1989, p. 55). Segundo o exposto acima, o primeiro autor o enfatizar tal indissolubilidade, foi Reale, indo além sem tirar desta idéia todos os problemas nela implícitas, justificando sua dimensão como um todo, em qualquer momento da vida cotidiana, ao afirmar: Em geral, os tridimensionalistas (...) têm-se limitado a afirmar o caráter fático-axiológico-normativo do direito, sem tirar desta colocação do problema todas as conseqüências nela implícitas e que, no meu modo de entender, são do mais alto alcance para a Ciência do Direito, não só para esclarecer e determinar velhos problemas como também situar questões novas, reclamadas pelas conjunturas histórico-sociais de nosso tempo (...). (REALE, 2001, p. 53/54). 66 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Assim, a famosa Teoria serve como instrumento esclarecedor de muitas das dificuldades advindas das relações em sociedade, fruto de fatores históricos e sociológicos que evidenciam as exigências humanas em determinada época. Mas o que seria, especificamente, esta Teoria? E, em um segundo plano, como aplicá-la ao estudo da Ciência do Direito? O professor João Virgílio Tagliavini, que fez interessante estudo sobre a obra de Reale, repete as palavras do último e nos ensina que a Teoria Tridimensional do Direito é a união de um fato anterior que motiva o homem e torna eficazes seus atos. Relacionando-se a um valor, o fato toma mais sentido. O valor, percorrendo uma ótica de aceitabilidade social, perdura de geração em geração como meio fortalecedor e legitimador do fato. Logo, há um sentimento que concretiza os fatos, que os motivam. Podemos, neste plano, acreditar que é possível um choque entre fatos e valores, seja pela pluralidade de ações, seja pela pluralidade de sentimentos direcionados ao fato. Para Betioli, fato é todo “acontecimento social que envolve interesses básicos para o homem”; valor é “elemento moral do Direito”, protegido pela lei; e, desfazendo possíveis conflitos, a norma “consiste no padrão de comportamento social imposto aos indivíduos” (BETIOLI, 1989, 56). Temos, portanto, elementos plurais e que variam entre sociedades e grupos. Neste sentido, a norma faz-se instrumento mais eficiente para organizar e regulamentar a vida humana em sociedade, concebendo um dever-ser capaz de nortear tais relações. Indo além, alterando-se os valores (mudanças religiosas e do senso comum, modos de produção e distribuição de renda, entre muitos outros) os fatos serão outros, desejando assim novas atribuições normativas capazes de regulamentar todas estas inovações. Assim, toda renovação de pensamento, de concepções intelectivas e de padrões morais aduzem novos fatos. E todo fato requer tutela de um sistema jurídico que o admita como legítimo [o fato]. Temos, por exemplo, a questão do aborto. É cediço, em nossa cultura, que o aborto fere as idéias religiosas, expurga 67 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. os padrões de comportamento, manifesta a prática desumana que afasta o ser de sua essência. Logo, é rechaçado e inviável aos parâmetros jurídicos, tendo em vista norma do art. 124 do Código Penal Brasileiro que o criminaliza. O que temos, in casu, é a introspecção entre fato, valor e norma. Ora, se estes padrões se alterarem e a sociedade, modificando seu modo de agir e pensar, acreditar que o aborto é viável e correto, dificilmente esta norma se manterá, e o aborto será descriminalizado. Vale ressaltar que essa discussão é viva nos dias atuais, refletindo o que fora observado acima. Neste diapasão, Reale reflete que “o Direito só se constitui quando determinadas valorações dos fatos sociais culminam numa integração de natureza normativa”. (REALE, 2001, 103). Lembro-me das aulas do Prof. Dimas Ferreira Lopes, na Faculdade Mineira de Direito, que conceituava, didaticamente, a união entre fato, valor e norma como que um sorvete de tutti-fruit: é impossível distinguir o sabor de cada fruta em separado, mas o que percebemos é um sabor único formado pela mistura dessas frutas. Assim é o Direito: não é passível de identificação e análise sem a introspecção direta destes fatores; e repito: não em separado, como que em choque, mas em constante debate, em dialética. Para o nosso completo entendimento, Reale nos avisa: Isto posto, quando um complexo de valores existenciais incide sobre determinadas situações de fato, dando origem a modelos normativos, estes, apesar de sua forma imanente, não se desvinculam do ‘mundo da vida’ que condiciona sempre a experiência jurídica” (REALE, 2001, p. 103). Considerando esta relação, é impossível acreditarmos em um sistema que não leve em importância as especificidades sociológicas e culturais idealizadoras da norma jurídica, bem como desvirtue a inclinação do Judiciário, no caso em concreto, aos objetivos sumários de um Direito que, enquanto ciência, deve proceder com as mais justas decisões à sociedade. E justiça, no critério da igualdade é o que nos ensina Rui Barbosa, em sua Oração aos Moços: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”. (BARBOSA, 1999, p. 27). 68 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A primeira e mais acertada conclusão que devemos ter é: o Direito, por si só, não tem a eficácia esperada para resolver todos os conflitos existentes em sociedade. Importante se faz, então, o entendimento interdisciplinar das relações humanas e interdisciplinaridade não significa a sobreposição de ciências, mas o seu devido ajuste e discussão, promovendo uma dialética capaz de uniformidade no entendimento sobre as sensibilidades humanas e a ideal subsunção do Direito ao caso em concreto. A segunda, que para nós é a mais importante, advém do puro entendimento da teoria de Miguel Reale: formado por fato, valor e norma o Direito é uma ciência que se encontra e constante renovação. Para que toda modificação seja aproveitada, necessário se faz a concretização normativa por via do respeito às alterações valorativas e fáticas presentes em sociedade, único instrumento capaz de definir a convivência harmônica e pacífica em sociedade. Muitos podem, ainda, se perguntar: Miguel Reale é um autor interdisciplinar, ou seja, havia, em suas obras, a consciência e o conceito desta amplitude? A resposta é muito simples: ao passo que Celso Lafer é um culturalista, como nos ensina a professora Elza Boiteux, Miguel Reale também o é, mas, para mim, o que difere este autor dos demais é a construção diversificada (importante frisar: dialética) de um fenômeno que se impõe a todos, traduzindo-se em verdadeira implicação de poder e fazer. É claro, Miguel Reale não utilizou tal termo, interdisciplinar, para enfatizar suas idéias (acredito que o caráter interdisciplinar é implícito, Reale não precisa dizer para que o entendamos). Reafirmo, à luz dos estudos de Miguel Reale, que suas ideias são interdisciplinares, para lembrar ao jurista que, sozinho, o Direito, se encarado puramente como norma, não é e nunca será o instrumento mais eficaz de tutela da vida do homem em sociedade. É importante nos abrir às outras Ciências para construirmos o verdadeiro fenômeno jurídico, pautado na dialética, que não refuta pensamentos ou condões, mas que os soma e se deixa levar por esta introspeção. 69 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Rui. Oração aos moços/Anotada por Adriano Gama Kury. 5ª ed – Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. BETIOLI, Antônio Bento. Introdução ao Direito – Lições de Propedêutica Jurídica. BRASIL. Código Penal. 10ªed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. REALE Miguel. Teoria Tridimensional do Direito – 5ªed. rev.e aum. São Paulo: Saraiva, 1994. TAGLIAVINI, J.V. Teoria Tridimensional do Direito segundo Miguel Reale. Disponível em: <http://www.cntp.embrapa.br/agromet/el nino2>. Acesso em: 20 de outubro de 2011. 70 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito CINISMO E BIOPOLÍTICA COMO ELEMENTOS DA CRÍTICA DE ALAIN BADIOU AOS FUNDAMENTOS DA ÉTICA DOS DIREITOS DO HOMEM Eder Fernandes Santana 1 Palavras-chave: Cinismo; Biopolítica; Crítica; Direitos do homem. A reflexão sobre os direitos humanos foi alçada a um eixo teórico da Filosofia do Direito na atualidade. Unanimidade entre os pensadores do Direito, dificilmente se encontra uma palavra crítica com relação aos direitos do homem. Nesse contexto, ganha importância a crítica ampla e profunda que o filósofo Alain Badiou tece, na obra Ética: ensaio sobre a consciência do mal (1995), ao que denomina dispositivo ético dos direitos do homem. O recorte para o presente trabalho se dá com relação àquilo que Badiou traz, como crítica ao que denomina ideologia ética, no bojo da pressuposição da inserção da vida nos cálculos da economia e da política na forma de discurso cínico. 1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 71 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Objetiva-se problematizar a biopolítica e o cinismo como elementos da crítica de Badiou aos fundamentos da ética dos direitos humanos. A contestação de Badiou se centra em dois sentidos. O primeiro, na ideia de uma “identidade natural ou espiritual do Homem” (BADIOU, 1995, p. 19). Isso está no âmago da doutrina ética atual, a qual, segundo ele, é entendida como “legislação consensual referente aos homens em geral, suas necessidades, sua vida e sua morte” (Idem). O segundo sentido, explicitação do primeiro, é a contestação da “delimitação evidente e universal do que é o mal, do que não se coaduna com essência humana” (Idem). Badiou qualifica de zombaria a proclamação do fim das abstrações mortais das ideologias, feita pelos defensores da ética contemporânea, fundada no retorno ao Homem abstrato e a seus direitos. É zombaria porque, ao recorrer a categorias abstratas, como Homem e Direito, a ética contemporânea dos direitos do homem se converteria, segundo Badiou, em “ideologia ética”. Com o conceito de cinismo desenvolvido por Vladimir Safatle, em Cinismo e falência da crítica (2008), verifica-se pertinência do esforço de crítica de Badiou à ideologia ética. O desafio é de tentar compreender como a ideologia permanece nas sociedades “pós-ideológicas”, que, segundo Safatle, não recorrem a meganarrativas teleológicas para fundamentar “[...] processos de legitimação de estruturas de racionalização social” (2008, p. 11). Não obstante, essa transparência teria se tornado “o cerne da opacidade constitutiva de nossa realidade partilhada” (idem, ibidem). A zombaria resulta do cinismo. Este como modo de racionalização das múltiplas esferas de interação social unificadas na forma de vida hegemônica do capitalismo contemporâneo (SAFATLE, 2008). Safatle justifica o caráter hegemônico da forma de vida capitalista no fato de esta “[...] implementar modos de conduta e valorização que realizam a normatividade intrínseca ao processo de reprodução material da vida [...]” (SAFATLE, 2008, p. 12). A hipótese central de Safatle é de que “[...] os regimes de racionalização das esferas de valores da vida social na modernidade capitalista começaram a 72 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito realizar-se (ou, ao menos, começaram a ser percebidos) a partir de uma racionalidade cínica” (2008, p. 13). Cínica porque se vê a si mesma e se legitima como figura da racionalidade. É possível entender o esforço de Badiou como direcionado a contraditar o cinismo da ideologia da ética dos direitos humanos. A orientação ética criticada por Badiou tem como referência explícita uma leitura da filosofia de Immanuel Kant. Um amplo, porém parcial, retorno a Kant, de quem se conserva, essencialmente, a existência de “[...] exigências imperativas, formalmente representáveis, que não devem ser subordinadas a considerações empíricas ou a exames de situação” (BADIOU, 1995, p. 20). Ao que Badiou (1995) acrescenta, do que se conserva da imagem kantiana: a referência desses imperativos ao Mal; que um direito, nacional e internacional, deve sancioná-los e, por consequência, os governos devem fazer figurar tais imperativos em sua legislação, e a possibilidade de sua imposição. O núcleo da crítica de Badiou reside na constatação de que a ética é concebida ao mesmo tempo como capacidade a priori de distinguir o Mal (porque, segundo o uso moderno da ética, o Mal – ou o negativo – vem primeiro: supõe-se um consenso sobre o que é bárbaro) e como princípio último de julgamento político: é exatamente o que intervém de maneira visível contra um Mal identificável a priori (BADIOU, 1995). Como decorrência, o direito e o Estado de Direito são identificados na referência ao Mal. O direito, como “direito ‘contra’ o Mal”, e o Estado de direito, legitimado porque “somente ele autoriza um espaço de identificação do Mal” (BADIOU, 1995, p. 21) e fornece o aparato judiciário de arbitragem. Em Para uma nova teoria do sujeito (1994), entre os pressupostos levantados por Badiou nesse núcleo de convicções, sobressai suposição de sujeito humano geral e a subordinação da identificação desse sujeito ao reconhecimento do mal que lhe é feito. 73 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. O que Badiou (1994) considera inaceitável é a identificação desse homem abstrato a partir do mal que lhe sucede, a sua definição como vítima. Os “direitos humanos” são os direitos ao não-Mal: não ser ofendido ou maltratado em sua vida (horror à morte e à execução), em seu corpo (horror à tortura, às sevícias e à fome), nem em sua identidade cultural (horror à humilhação das mulheres, das minorias etc.) (BADIOU, 1995). A suposição de um sujeito humano universal e a identificação do homem como vítima, o reconhecimento universal do mal que lhe é feito – eis os fundamentos da ética dos direitos do homem segundo Badiou (1995, p. 22). Esse reino da ética se caracteriza pela combinação niilista de resignação diante do necessário e vontade puramente destrutiva (BADIOU, 1995). O filósofo entende por niilismo a vontade do nada, reverso de uma necessidade cega. A ética vem cimentar tanto a resignação às necessidades econômicas quanto a impotência da vontade do nada. A necessidade econômica, ou a lógica do Capital, seria o eixo da organização das subjetividades. A política parlamentar passa a transformar o espetáculo da economia em opinião consensual que remete a subjetividade a uma impotência rancorosa, cujo vazio se vê preenchido pelo processo eleitoral e pelos discursos políticos. Alia-se a ética em seu papel de ratificar a ausência de qualquer projeto, de qualquer política emancipatória, ao aceitar o jogo do necessário como base objetiva de todos os juízos de valor (BADIOU, 1995). A hipótese central deste trabalho é o aspecto biopolítico da crítica de Badiou aos fundamentos da ética contemporânea dos direitos humanos, porque o niilismo ético se sustenta num “[...] desejo mortífero, que promove e oculta num mesmo gesto um domínio integral da vida” (BADIOU, 1995, p. 46). Michel Foucault, em Microfísica do poder (2004), levanta a hipótese de que o capitalismo, em seu desenvolvimento na passagem do século XVIII para o XIX, promoveu a socialização do corpo enquanto força de produção, força de trabalho. Acrescenta que o controle sobre os indivíduos começa “no corpo, com o corpo”, que é “uma realidade biopolítica” (FOUCAULT, 2004, p. 80). Por biopolítica, 74 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Foucault, em A vontade de saber (2006, p. 155), entende “[...] o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do podersaber um agente de transformação da vida humana”. O poder sobre a vida é exercido sob duas formas: a anátomo-política do corpo humano no interior das práticas disciplinares, que asseguram a extorsão da força de trabalho, sua utilidade e docilidade; e via controles regulares numa biopolítica da população exercidos sobre o “corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (FOUCAULT, 2006, p. 152). A biopolítica remete, no pensamento de Foucault, à passagem da consideração do eixo saber-poder à questão da arte de governo. Por governo, entende, num sentido largo, os “[...] mecanismos e procedimentos destinados a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens” (FOUCAULT, 2010, p. 43), no eixo dos domínios do saber, do poder e da subjetividade. Dessa construção foucaultiana, importa ressaltar que, embora a vida tenha sempre feito parte da história, com a modernidade e o desenvolvimento do capitalismo, o investimento sobre a vida exclui a dimensão política e implica constituição de subjetividades com o fim de controle do corpo, do tempo e das forças. O conceito de biopolítica ocupa o centro da reflexão do filósofo italiano Giorgio Agamben, especialmente na obra Homo sacer (2010), que, ao contrário de Foucault, que refere a biopolítica à modernidade, o faz à tradição do pensamento político ocidental. Para Agamben (2010), biopolítica é a politização da vida nua (zoé, ou vida natural), redução das pessoas a sua pura existência biológica. A “inscrição da vida nos mecanismos do poder estatal” resulta em que a “proteção da vida pode ser também cálculo sobre a vida, pode ser igualmente descarte da vida” (NASCIMENTO, 2010, p. 146). “Num sentido eminentemente jurídico, poderíamos 75 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. ainda entender a vida nua como aquela despida de seu estatuto de direito, nua de personalidade, desprovida da capacidade de contrair direitos e obrigações” (NASCIMENTO, 2010, p. 139). Com Agamben (2007), a advertência de que é chegado o momento em que é preciso cessar de ver as declarações universais de direitos como proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que pretendem vincular o legislador e levá-lo a respeitar princípios éticos eternos. Urge, segundo o filósofo italiano, considerar as declarações de direitos de acordo com a sua função histórica real na formação do moderno Estado-nação, qual seja a de representar a figura original de inscrição da vida natural na ordem jurídico-política. Como aspecto do niilismo, a ética dos direitos humanos oscila entre dois desejos: um conservador, o reconhecimento da legitimidade da ordem própria à situação ocidental, a economia objetiva selvagem imbricada ao discurso do direito; e um desejo de catástrofe. A análise da crítica de Alain Badiou à ética dos direitos do homem, tendo por base a concepção de cinismo desenvolvida por Vladimir Safatle e a de biopolítica, por Michel Foucault e por Giorgio Agamben, permite afirmar que a inserção da vida nua na política, resultante da governamentalidade fomentada pelo liberalismo, encontra na ética contemporânea e ocidental dos direitos humanos um perfil de sua face cínica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010 (Humanitas). 76 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito BADIOU, Alain. Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Trad. de Antônio Transito, Ari Roitman. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Trad. de Emerson Xavier da Silva. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. História da Sexualidade 1. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: Curso no Collège de France 1979-1980: excertos. Tradução, transcrição e notas Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro: Achiamé, 2010. NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben. 2010. 193 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. 77 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. CRÍTICA À ESSENCIALIDADE DO DIREITO: A RELAÇÃO OBJETIVA ENTRE RAZÃO E MORAL Marcelo Corrêa Giacomini 1 Palavras-chave: Essencialismo; Moral; Razão; Direito. Este estudo objetiva, de um modo geral, realizar um questionamento sobre a concepção essencialista do Direito, problematizando se o Direito teria uma propriedade em si, ou, mais especificamente, tentaremos questionar se o Direito prescindiria, para existir, de certa eticidade. Dentro desse enfoque, procuraremos refletir sobre o discurso que proclama que o Direito deve aparecer onde a moral é falha ou ineficaz. Nesse sentido, contra-argumentaremos tentando traçar uma perspectiva em que o pensamento que acusa essa falha da moral, ou pouca capacidade de eficácia da moral em relação a coercibilidade, adviria justamente por meio de um juízo racional-moral, não em relação a um racionalidade jurídica própria que a corrigisse, ou através de um conceito de Direito. Desse modo, nos posicionaremos no sentido de afirmar que a razão possuiria suficiente autoridade universal para não depender de uma eticidade do Direito, exterior a ela, para poder produzir uma auto-crítica. Tomaremos como base, portanto, a ideia de que o juízo moral seria aquele que nos permitira a crença em um aspecto universal da ação 1 Mestre em Estudos Linguísticos pela UFMG. E-mail. [email protected]. 78 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito prática, e que a descoberta de uma essencialidade do Direito não atingiria, nem para melhor nem para pior, esse fator de universalidade. Neste ponto, procurar-se-á argumentar, primeiramente, que não seria necessário, para se estabelecer normatização às ações que procuram uma autoridade universal na razão, de se buscar um fundamento fora da própria racionalidade prática. Nesse sentido, a construção racional da norma, através de seu sentido incondicional, está inserida tanto na justificação axiológica do fenômeno jurídico, quanto no reconhecimento da necessidade de coercibilidade da lei. Em segundo lugar, procurar-se-á defender a ideia de que não haveria um momento de chegada cuja positivação do Direito representasse uma eticidade (ética como propriedade essencial), momento histórico em que a justificação da prerrogativa de ter direitos se fundamentasse apenas na ideia da existência desses direitos. Não pretenderemos, com isso, propor um norte ou um sentido do debate, clássico na teoria jurídica, da relação entre direito e moral, ou entre moral e ética. Nosso ponto de debate gira em torno da concepção entre razão e Direito, na busca por uma verdade redentora ou essencialidade que seja o fundamento último do fenômeno jurídico. Tentaremos, portanto, refletir sobre o instigante e inovador trabalho da jusfilósofa Brochado (2006) que procurou desenvolver a concepção do Direito como maxium ético. Nesse sentido, a autora procurou representar a eticidade, a essência do Direito, estipulando que: A ideia de eticidade do direito que pretendemos apresentar, transita pelo momento da objetividade jurídica em si mesma, já pressuposta na intersubjetividade ou como derivada dela. E é na objetividade em si que a eticidade é considerada como realização máxima do direito, não como direito positivo apenas, mas como o projeto de direito que se constrói sucessiva e historicamente sobre ele, e que já surge nas 79 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. consciências como forma jurídica, e não estritamente moral (singular) (BROCHADO, 2006, p. 201). A partir desses elementos inseridos acima, como essencialidade, singularidade ou individualidade da moral, realização máxima, que procuremos nos apoiar para elaborar uma crítica sobre a necessidade de certa essencialidade do Direito. Para tanto, procuraremos nos apoiar em duas análises de Richard Rorty, como forma de “limpar o terreno”, de modo a se representar como a forma dualista de se representar a essencialidade de determinado objeto, ou, no caso, o Direito, a partir de uma concepção de se chegar a uma verdade redentora. Por outro lado, poderemos chegar à análise de Thomas Nagel, que defende a incondicionalidade da razão como instância última de justificação. Dessa forma, razão e busca de uma essencialidade não necessariamente precisão se conjugar, ou seja, a busca por uma universalidade moral não necessariamente deve estar vinculada a uma representação essencialista seja da moral seja do Direito ou da ética. Refutando, desse modo, determinados tipos de concepções essencialistas, Rorty provoca o vocabulário metafísico enquanto constituído por meio dos fundamentos dualistas propondo que seria válido considerarmos a importância da prática e da ação, sem que seja necessário determinar a separação entre uma realidade intrínseca das coisas, onde esta provocaria uma busca por uma verdade incondicional e necessária, e outra realidade que viveria no mundo das aparências, tida pelos metafísicos como falsamente contingente e relativista. O antiessencialista no pensamento Rorty vê as coisas como não pertencendo a uma instância última de significação. O antiessencialista procura conceber a análise dos objetos como formas de contextualização desse objeto à rede de crenças a que esse objeto estaria submetido. Ao contextualizar a relação entre crenças e verdades sobre os objetos ou sobre as coisas, Rorty afirmaria sua recusa em aceitar que determinadas definições, conceitos ou descrições tenham um caráter de mais verdade ou de mais essencialidade que outros que são 80 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito utilizados de forma prática, mas que não estão necessariamente incluídos na legitimidade epistemológica, pautada por aquele tipo de dualismo metafísico. Com a finalidade de clarificar mais sobre a concepção antiessencialista proposta por Rorty, vale a transcrição dessa longa citação, onde Rorty esclarece com propriedade essa metáfora ou argumento dos números: Para entender o que estou querendo dizer, perguntem-se qual a essência do número 17 – o que o 17 é em si mesmo, independentes de suas relações com os outros números. Com isto, o que se quer é uma descrição do número 17 de um tipo diferente de qualquer das seguintes descrições: 17 é menor que 22; 17 é maior que 8; 17 é a soma de 6 e 11; 17 é a raiz quadrada de 289; 17 elevado ao quadrado é 4.123.105; 17 é a diferença entre 1.678.922 e 1.678.905. O que há de cansativo em fazer todas essas descrições é que nenhuma delas parece se aproximar mais do número 17 que qualquer outra. O que é igualmente cansativo é saber que, obviamente, poderíamos fazer um número infinito de descrições alternativas do número 17, e todas elas seriam igualmente “acidentais” ou “extrínsecas”. Nenhuma dessas descrições parece nos dar uma pista para alcançarmos a intrínseca dezesseteidade do dezessete – o aspecto singular do 17, que faz dele o número que é. Pois a escolha de qual dessas descrições de 17 devemos aplicar é obviamente uma questão do que temos em mente – em primeiro lugar, a situação particular que nos levou a pensar no número 17 (RORTY, 2000, p. 65). Independentemente da relevância epistemológica desse tipo de argumento, o posicionamento antiessencialista nos serve para podermos visualizar como um juízo objetivo não necessita de corresponder a uma realidade intrínseca, um estado do ser que explicite como os fenômenos verdadeiramente são. O problema maior é tentarmos contrapor a necessidade ( ou aparente necessidade) de se estipular uma objetividade essencialista do Direito, como quer a jusfilósofa, com o relativismo ou o subjetivismo apontada na moral. Nesse sentido, Nagel procuraria considerar a razão como uma forma de colocar a instância da razão como modo onde: 81 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. (...) a razão deve ser uma forma ou categoria de pensamento que constitua uma instância para além da qual não haverá apelo – uma instância cuja validade é incondicional, pois é necessariamente chamada a atuar em todo desafio em que ela própria se envolva. Isto não quer dizer que não haja apelo contra os resultados de qualquer exercício particular da razão, já que é fácil cometer erros em matéria de raciocínio ou encontrar-se completamente à deriva no tocante a quais conclusões será permitido extrair dos raciocínios. (NAGEL, 2001. P. 16). Desse modo, procuramos associar as concepções desses dois autores, em muitos pontos contrárias, para poder criticar a busca de uma essencialidade jurídica, como forma de exterioridade que superaria a racionalidade prática da moral, sem que se busque analisar a possibilidade da moral não representar uma subjetividade ou abstração. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROCHADO, Mariá. Direito & Ética: a eticidade do fenômeno jurídico. São Paulo: Landy, 2006. NAGEL, Thomas. A Última Palavra. Trad. de Carlos Felipe Morais. São Paulo: UNESP, 2001. RORTY, Richard. Pragmatismo: a filosofia da citação e da mudança. Trad. de Cristina Magro e Antônio Marcos Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2000. 82 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito DE CARL SCHMITT A JACQUES DERRIDA: O CONFLITO E AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO E A DEMOCRACIA Bruno Meneses Lorenzetto 1 Katya Kozicki 2 Palavras-chave: Política; Conflito; Amizade; Democracia; Alteridade. A partir do pensamento de Jacques Derrida se desenvolve uma estratégia de leitura que partindo daquilo que é familiar, “natural”, permite chegar ao seu oposto, rumo à sua ambivalência. Em alguma medida este jogo de palavras indica aquilo que será desenvolvido no presente artigo: a procura pela ambivalência e a desestabilização das dicotomias amigo e inimigo e daquilo que é familiar, pertencente à casa e o exterior, estranho e suas respectivas influências no campo político na modernidade. 1 Professor do Programa de Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected] 2 Mestre e Doutora em Filosofia do Direito pela UFSC. Visiting Researcher Associate no Center for the Study of Democracy, University of Westminster, Londres, 1998-1999. Professora dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná e da Pontíficia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected] 83 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Assim, a filosofia de Derrida possui sentido político naquilo que se refere à relação entre a aporia e a decisão, e não no que diz respeito à filosofia unilateral da aporia nem naquilo que concerne a uma filosofia unilateral da decisão; ou seja, a aporia seria o lugar no qual se encontra a força política da desconstrução. A própria ideia de uma leitura desconstrutiva pressupõe uma leitura clássica, das tendências dominantes do texto. Apenas após a realização deste tipo de leitura, ou através dela, ou em conjunto com ela, a leitura desconstrutiva se coloca para apontar as aporias e os becos e tornar as coisas mais difíceis. Por consequência, o político seria um espaço do indecidível, constituindo ao mesmo passo uma chance e um risco e, nesta perspectiva, é possível aproximar as posições de Derrida com as de Hannah Arendt, para quem o político constitui uma espécie de risco, pois o político é o campo próprio da ação, que comporta certa imprevisibilidade e irreversibilidade, mas que, ao mesmo tempo, também abrange a ideia da natalidade, ou seja, a possibilidade da irrupção do novo, do inesperado. O projeto de Derrida consiste em apresentar um debate sobre o político que vá além do princípio da fraternidade. Ou seja, se a política se coloca em uma postura para além das dimensões primárias identificadoras como a da casa, da família, da nação homogênea, da mesma língua e do mesmo povo, ela ainda mereceria o nome de política? Pois, como afirma Derrida, o conceito de política, em raras vezes se anuncia, sem alguma forma de aderência, vinculação, ao Estado e à família, sem alguma filiação esquemática. A partir disso é possível nortear a questão da amizade como uma questão permeada pelo político. Para Arendt, a ação e a reação jamais se restringem, entre os homens (inter homines esse), a um círculo fechado, e não é possível, em decorrência disso, limitá-la com qualquer pretensão de segurança. Para Arendt, a impossibilidade de limitação seria típica da ação política, pois, qualquer ato, mesmo em circunstâncias restritas, carrega a semente da ilimitação, eis que um ato ou uma palavra (a ação e o discurso) são suficientes para que todo um conjunto ganhe uma nova disposição. 84 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Em outro prisma da mesma questão, para Carl Schmitt o político está relacionado com os laços de amizade e inimizade, refere-se à criação de um “nós” em oposição a um “eles” e, além disso, constitui um reino da decisão, não da discussão livre. Seu tema principal é o conflito e o antagonismo e isto indica precisamente as fronteiras da possibilidade de formação de um consenso racional, o fato de que todo consenso se baseia forçosamente em atos de exclusão. Uma das principais preocupações de Schmitt era com a manutenção do lugar do político na modernidade, em especial em sua época, na qual foi observado o crescimento do parlamentarismo democrático, ao qual opôs críticas severas. Para Schmitt, a relação entre amigo-inimigo representa o critério específico que determina a dimensão política das relações sociais, assim como belo e feio no âmbito estético, custo e benefício no plano econômico. Na interpretação de Chantal Mouffe, aquilo que importa para Schmitt é a possibilidade de traçar uma linha de demarcação entre aqueles que pertencem ao demos, e que, por isso, possuem direitos iguais, e aqueles que, no campo político, não podem estar protegidos pelos mesmos direitos iguais, pois não fazem parte do demos. Ademais, o conceito central de democracia não se refere à humanidade, mas a um povo, de tal forma que não pode haver uma democracia da humanidade como os liberais a projetam. Derrida desconstrói a perspectiva de Schmitt em dois movimentos. Primeiro, ao insistir que a decisão deve ser transpassada pela aporia, pela qual toda a teoria da decisão deve estar enlaçada. Assim, a figura do inimigo, condição do político enquanto tal toma forma a partir da descoberta de sua perda, ou seja, desde a descoberta da possibilidade da perda do inimigo e do político. Por isso, a responsabilidade pelo outro, uma hetero-nomia, o nomos da alteridade, se rebela contra o decisionismo presente no conceito de soberania ou exceção. 85 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Em segundo lugar, para Derrida a inversão da repulsão pelo inimigo em atração pode vir a ocorrer se não existir um amigo em certo lugar (externo) e lá apenas for encontrado o inimigo, de modo que a necessidade de um inimigo pode transformar a inimizade em amizade. A preocupação infinita com o outro também leva Derrida a refletir sobre as consequências da perda do inimigo. A perda do inimigo, hostis, não representaria um progresso, uma reconciliação ou a abertura pra uma era de paz e fraternidade humana. Este projeto universalista da amizade seria um contra-senso, pois não seria possível falar de um inimigo da humanidade. Segundo Derrida: “Um crime contra a humanidade não é um crime político”. A humanidade não possui um inimigo, eis que, qualquer um que fale em nome da humanidade enquanto humanidade desloca o discurso e deixa de falar sobre o político em seu sentido schimittiano. Acresce-se que a formação da identidade, pessoal ou coletiva, constitui-se a partir da confrontação com um inimigo. Por este motivo, Schmitt acaba por priorizar a figura do inimigo em detrimento do amigo em suas teorizações. É translúcida a identificação do inimigo na obra de Schmitt, enquanto que o papel do amigo, aquilo que constitui o nós é colocado em segundo plano. A prevalência do inimigo ocorre pelo fato de que ele permite a uniformidade, o fortalecimento do espírito comunitário contra o mal externo, alheio, do outro. A diferença é aquilo que a identidade procura, assim como o inimigo no campo político, mas possui dificuldade em fixá-la, segurá-la em um lugar, ou seja, estabilizar sua identificação. Em suma, a diferença trataria de um problema de identidade, do mesmo. De acordo com Bonnie Honig, pluralistas e mais recentemente multiculturalistas têm procurado domesticar ou limitar a diferença ao tomar identidades ou afiliações como seus pontos de partida, ao tratar a diferença como simplesmente uma identidade diferente dentro de uma comunidade maior. Seriam insuficientes, para a autora, os projetos que procuram teorizar a democracia e a diferença, que apesar de afirmarem as diferenças, lhe limitam um 86 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito espaço de segurança, exterior, alheio ao campo democrático. De modo que as diferenças e conflitos que surgem já são preparados, com o fim de reafirmar espaços de segurança – no caso, privados – como a casa. Assim, a política entra em uma degenerescência pois se identifica com o familiar, o qual passa a ter a tarefa de garantir, tanto ao pluralismo como, ao multiculturalismo, docas seguras para aportar seus conceitos. Em termos schmittianos, a partir da oposição entre o nós e o eles, pode-se indicar que a constituição, a formação de um povo e de sua auto-imagem, sempre toma parte em um campo de conflito e, demanda a existência de forças concorrentes. De fato, não há articulação hegemônica sem a determinação de fronteiras, a definição daqueles que ficam do lado de fora. Tornou-se necessário, portanto, não apenas a desnaturalização, a desconstrução da amizade, mas também suas “adjacências”, como a casa. Se a casa e a nação precisam ser resignificadas, arquitetadas sobre outra narrativa, este processo demanda uma outra imagem do próprio útero, o qual é histórica e psicanaliticamente a âncora, o sonho máximo da casa. Assim, ao invés de se pensar a relação entre mãe e feto como a da perfeita simbiose, observa-se que há a relação entre uma identidade genitora e outra “alienígena”, diferente, e até mesmo “invasora”. Uma relação que é, ao mesmo tempo, cooperativa, mas também conflituosa. Desta maneira, o objetivo central do presente artigo é buscar novas formas de (re) articulação entre o direito e a democracia, as quais permitam ampliar o espaço do jogo democrático e o reconhecimento efetivo do outro e da alteridade. A vivência democrática implica uma lógica de exclusão e inclusão característica das sociedades contemporâneas, o outro que tanto o discurso jurídico quanto o discurso político projetam. Assim, uma nova maneira de pensar a amizade, a partir de Derrida, permitiria a construção de laços de solidariedade efetivos e a ampliação da coesão social necessários ao aprofundamento da 87 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. democracia. Do mesmo modo, permitiria também redimensionar o papel do Direito nas sociedades contemporâneas. 88 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito DIALÉTICA ENTRE OPINIÃO E VERDADE: CONTRÁRIO, CONTRADITÓRIO E A SÍNTESE DOS OPOSTOS RELATIVOS À ESCRAVIDÃO DOS NEGROS EM MONTESQUIEU Luiz Augusto Lima de Ávila 1 Palavras-chave: Lógica; Contraditório; Síntese dos opostos; Hermenêutica; Escravidão. 1 Possui Doutorado em Letras - Linguística e Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010), Mestrado em Teoria do Direito (2004) e Mestrado em Direito Internacional e Comunitário (2000) pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes (1994). É especialista (lato senso) em Direito Processual (1999), Direito do Trabalho (1998) e Direito Empresarial (1997) pela Faculdade de direito do Oeste de Minas e especialista em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2006). É Professor Adjunto III na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e leciona na área de Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, com ênfase em Teoria do Direito (Filosofia do Direito, Lógica, Linguística, Hermenêutica, Introdução ao Estudo do Direito e Metodologia do Trabalho Científico). Leciona a disciplina de Metodologia do Trabalho Científico, lógica e Hermenêutica nos Curso de Pós-Graduação (Especialização) em Direito Tributário, Direito de Empresa, Direito do Trabalho e Direito Processual junto ao IEC - Instituto de Educação Continuada da PUC Minas. E-mail: [email protected]. 89 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Dadas as vicissitudes contextuais, a acepção do termo dialética é tão variável que, para sua inteligibilidade, impõe-se o seu dimensionamento prévio ou o sentido em que esta sendo tomado. Se seu autor, qualquer que seja ele, o usa a esmo, sem uma preocupação maior em defini-lo, perde-se, às vezes, a oportunidade fundamental de dimensioná-lo ou de lhe dar sentido; pois, o que há de apodítico no vasto campo daquilo que é somente dialético? No entanto, diante de tal problemática é que se propõem, para a inteligibilidade da dialética ao longo da história, duas grandes linhas que podem ajudar no seu dimensionamento e sentido, ou seja, a história da dialética antiga e a nova dialética. A dialética antiga, assim se definindo até Hegel (1770 – 1831), tem sua origem na Grécia antiga. O vocábulo, de origem grega, é dimensionado pelo substantivo “logos” e pelo prefixo “dia”. “Logos” designa palavra, discurso, ou 2 mesmo razão e “dia” designa a ideia de reciprocidade e de intercâmbio. Dada a etimologia do termo, podemos inferir que dialética é a arte da palavra ou a arte da discussão; não no sentido de retórica cujo fundamento está na verossimilhança, mas, sim no sentido de arte da palavra que convence e que leva à compreensão, cujo fundamento é a probabilidade. Neste sentido abrange tanto a demonstração quanto a refutação, a partir da adoção do princípio de contradição. O princípio da contradição ou da não-contradição são dimensionado dentre duas proposições em oposição contrária e por alternação, ou seja, que uma delas seja a negação da outra, que uma delas seja universal e a outra particular e que ambas sejam verdadeiras, no primeiro caso, ou que uma delas seja falsa, no segundo caso. Por exemplo, dado certo número natural “n” e o dimensionamento dentre duas proposições temos: Todo número “n” é par e Nem todo número “n” é par, em que ambas podem ser verdadeiras, para o primeiro caso, ou uma delas deve ser falsa, no segundo caso. A princípio, se não aparentemente, temos que proposições contraditórias não podem ser verdadeiras simultaneamente; uma contradição, ou seja, uma proposição que implicasse a conjunção aditiva de duas 2 Dialéigein (troca de idéias, troca de palavras, conversa ou discurso); dialéktos (troca de impressões, conversa ou discussão); dialektikós (tudo aquilo que diz respeito à discussão); dialektiké (arte de discutir). 90 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito proposições contraditórias, como por exemplo Todo número “n” é par e Nem todo número “n” é par, não poderia ser verdadeira. 3 Aristóteles atribui a Zenão (490 A.C.) a descoberta da dialética, pois, a usa, pela primeira vez na história, em defesa de seu mestre Parmênides (540-470 A.C.) que expõe uma filosofia diametralmente oposta à de Heráclito (546-480 A.C.). Zenão formula a ideia de que uma coisa é, ou não é. Quanto ao vir-a-ser é de todo impossível, pois, não se pode dimensionar ou conceber uma mistura de ser e não ser, ou seja, uma coisa que é preta e vira branca, não é nem preta nem branca; uma coisa, no caso, tem que ser preta ou branca. Assim, se pode inferir que a experiência parece indicar que tudo muda, mas, é um engano dos sentidos; tratase do campo da opinião que se contenta com a aparência. Assim, entre opinião e verdade, o filósofo afirma que esta última não pode ser se não una e imutável, pois, o ser é unidade e imobilidade. Zenão não se preocupa em provar uma tese, mas, sim, destruir a tese do adversário. Esta dialética negativa só procura demonstrar que a tese daquele com quem se argumenta vai contra o princípio da não contradição e, por isto, sua tese é absurda. Com o célebre paradoxo de Aquiles, Zenão ilustra bem o caso, ou seja: perseguindo uma tartaruga, Aquiles percorre uma infinidade de pontos que o separa da tartaruga. Quando atinge o lugar de onde ela havia partido, deve tornar a partir para atingir o lugar onde ela está agora e assim por diante. Dada a perspectiva abstrata ínsita à própria razão, Aquiles nunca chegaria a apanhar a tartaruga. Entretanto, ele a alcança e, neste sentido, o movimento tal como é demonstrado no mundo da experiência é um absurdo. 3 ou criação? Qual o pressuposto ou marco teórico, dada a inteligibilidade dos universais como palavras que designam coisas, correspondente a afirmação de ser descoberta ou de ser criação? No presente caso, o termo descoberta é o correspondente à perspectiva ideal e/ou “realista” (não empírica). 91 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Zenão pouco se interessa pela veracidade das premissas daquele com quem argumenta, pois, certas ou erradas, o importante é que sejam admitidas. Zenão, então, parte do mesmo ponto de vista (argumento “ad homine”) e rebate pela dialética. Quando quer demonstrar, por exemplo, que não há pluralidade das coisas, argumenta: se as coisas são plurais ou se há uma pluralidade de coisas (uma premissa pitagórica), elas devem ser grandes e pequenas. Pequenas ao ponto de não terem qualquer grandeza e grandes ao ponto de não serem infinitas. E sendo estas as premissas para conhecer a pluralidade, nos deparamos com o que acaba por ser uma contradição, pois, a pluralidade implica divisibilidade. E se são as coisas, então, infinitamente divisíveis, de forma que aquilo de que fazem parte é infinitamente grande, logo: não pode haver pluralidade das coisas. Neste caso, a soma dos elementos em grandeza não poderá dar qualquer coisa que tenha uma 4 grandeza. Os sofistas, que surgem no período de Péricles, conhecem e dimensionam a dialética como um “trunfo”, cujo objetivo é fazer com que seus discípulos vençam na vida política e tomem conta do poder, mas, principalmente, tenham acesso à palavra e, por ela, à razão. A dialética, nessa perspectiva, dá espaço à retórica ou se faz artística, como um método, na busca pela verdade. Apenas uma habilidade em se servir de argumentos aparentemente válidos para iludir o adversário ou perceber no outro a intenção de iludir. No entanto, coube a Sócrates (468 a.C.) o grande mérito de restabelecer a dialética, já não tanto no sentido de uma dialética negativa como em Zenão, mas, como uma dialética positiva ou maiêutica, ou seja, criando um clima de cordialidade e dispondo o discípulo a aceitar um ponto de partida comum com o mestre, e não partir de uma resposta arbitrária, Sócrates finge desconhecer o que o discípulo lhe perguntou. A resposta de Sócrates é uma pergunta, o que leva o interlocutor, aos poucos, a descobrir, por si mesmo, as verdades que indagou. Sócrates dá exemplos fáceis ao discípulo, obrigando-o a um raciocínio que o leva do universal para o particular, ou seja, pela indução chega-se a uma definição universal ou, mais propriamente, geral. 4 Por exemplo: dois mais dois já não são quatro, dado o princípio de contradição, ou seja, 2+2 ≠ 4. 92 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Platão (427 a.C.), discípulo de Sócrates, conservando, em parte, a arte do diálogo e da discussão socrática, dimensiona, com a teoria sobre as ideias, outra dialética que lhe é própria, ou seja, pela dialética é possível que certos homens ultrapassem o mundo das aparências. Mais especificamente, trata-se da alma que viveu, outrora, no mundo das ideias, e que perdendo o mundo racional se rende a um corpo. A vista das coisas sensíveis, a alma se recorda ou se lembra do mundo das ideias, e, assim, se eleva do mundo que a cerca (múltiplo e mutável) para as ideias unas e imutáveis, ou seja, do mundo dos sentidos para o mundo da racionalidade, pela dialética. Segundo Platão, pela dialética o filósofo foge do mundo visível e passa a conhecer a verdade, descobre a superioridade da unidade 5 sobre a multiplicidade, da harmonia sobre a desordem. Em meados do século IV a.C., a academia de Isócrates, na perspectiva dos sofistas, propunha ao educando o desenvolvimento da “virtude” ou da capacitação para lidar com questões pertinentes à polis a partir da arte de emitir opiniões 6 prováveis sobre coisas úteis ; já, a academia de Platão propunha que a base para a ação política ou para qualquer outra ação deveria ser a investigação científica (epísteme), de índole matemática. A ação humana, segundo Platão, pretendendo ser correta e responsável, não pode ser norteada por valores instáveis, ou seja, 7 formulada segundo o relativismo e a diversidade das opiniões. O prof. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. argumenta que: após a morte de Sócrates, Platão passara a descrer da persuasão como possibilidade de guiar os homens, descobrindo que a verdade é mais forte que a argumentação, ou seja, reconhecendo que a 5 A aplicação prática da dialética platônica aparece exposta na “República”, mais precisamente, nos livros II, III, IV e V. 6 Na democracia ateniense, em que os destinos eram definidos em grande parte pela atuação dos oradores, a arte da persuasão, como a palavra manipulada com os recursos retóricos, era um fator imprescindível à eficácia do desempenho de um papel relevante na Cidade-Estado. 7 Em Platão, a negação do relativismo e da diversidade de opiniões para a determinação da ação humana como correta e responsável, ou seja, que a verdade, com um poder de coerção sem violência, é mais forte que a argumentação – o que vem a representar uma reação ao julgamento, à condenação e à morte (execução) de Sócrates descritos em Fédon. 93 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. verdade tinha um poder de coerção sem violência” (FERRAZ JR., 1980, p. 12). Aristóteles de Estagira, ainda jovem e proveniente da Macedônia, em Atenas (367 ou 366 do séc. IV a.C.) e com o intuito de dar prosseguimento aos estudos, diante das duas propostas, opta pela academia de Platão; no entanto, distinguindo raciocínio dialético, raciocínio apodítico e raciocínio erístico, buscando dar maior consistência à retórica - instrumental preferido dos sofistas -, Aristóteles se coloca em uma perspectiva distinta da de seu mestre. Neste período, se exaltavam as discussões doutrinárias que polemizavam a teoria das ideias, discussões como aquelas expostas na República de Platão. Assim, a liberdade para a discordância, para a persuasão e para a argumentação – que imprimiu em Aristóteles um ritmo intenso de pesquisas, oitivas e disputas – inspira a academia tornando-a um espaço fecundo para a disputa intelectual e o ecletismo cultural. O poder da técnica retórica ou a capacidade de persuadir ou de convencer pelo discurso é de demonstração própria dos sofistas. No entanto, a relação do discurso com a verdade, para os sofistas, era algo secundário, ou seja, não se 8 importavam em estabelecer uma distinção entre verdade (aletheia) e opinião (doxa). Nesta fase do platonismo, iniciada também com o diálogo de Teeteto, os conceitos dogmáticos e as opiniões irredutíveis deixam de ser o norte para aqueles que se propunham à busca da verdade. Assim, com a tradição socrática, em que princípios e teorias eram partilhados e o argumento de autoridade (autos epha) era descartado, se dava a independência e o amadurecimento intelectual de Aristóteles. 9 Em Teeteto, Sócrates a partir da maiêutica , questiona o conhecimento e a 10 sabedoria; argumenta sobre o movimento como a causa de tudo o que devém e 8 Sobre esta distinção, entre verdade e opinião, nos deteremos mais adiante. Trata-se de uma engenhosidade obstétrica para a parturição de idéias. 10 O que vem a ser ou o que pode vir a ser. O devir em oposição ao ser e ao dever ser. 9 94 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito 11 parece existir e o repouso como o não-ser ou a destruição , de modo que, se nada podemos admitir como existentes em si mesmo, as cores, por exemplo, resultariam do encontro dos olhos com o movimento particular de cada uma e a cor por nós designada como existente não é o olhar tão pouco a coisa olhada, mas algo intermediário e peculiar a cada indivíduo; que os homens são a medida de todas as coisas (Protágoras), menos o homem inteligente. O conhecimento não pode ser, então, nem sensação, nem opinião verdadeira, nem a explicação racional acrescentada a essa opinião verdadeira. O método socrático, de caráter ético e educativo, baseava-se na dialética. 12 A dialética socrática se desenvolvia pela “refutação” e pela “maiêutica”. A primeira parte do método era a destrutiva, com a qual Sócrates procurava levar seu interlocutor a uma situação de aporia, forçando-o, ao menos intimamente, a reconhecer sua própria ignorância em relação ao assunto examinado. Já a segunda parte do método era a construtiva, pela qual Sócrates procurava, através da maiêutica ou dialética bem conduzida, levar seu interlocutor a uma aproximação da verdade sobre o problema posto, qualquer que seja ele. 11 “que nenhuma coisa é uma em si mesma e que não há o que possas denominar com acerto ou dizer como é constituída. Se a qualificares como grande, ela parecerá também pequena; se pesada, leve, e assim em tudo o mais, de forma que nada é uno, ou algo determinado ou como quer que seja. Da translação das coisas, do movimento e das misturas de umas com as outras é que se forma tudo o que dizemos existir, sem usarmos a expressão correta, pois a rigor nada é ou existe, tudo devém.” (...) “De fato, o calor e o fogo que geram e coordenam todas as coisas, são gerados, por sua vez, pela translação e pela fricção, que também consistem em movimento.” (...) “A constituição do corpo não se deteriora com o repouso e a preguiça e não se conserva admiravelmente bem com a ginástica e o movimento?” (PLATÃO, Teeteto, 1988) 12 A dialética de Sócrates confundia-se com o seu próprio dialogar, ou seja, “Ao fazê-lo, Sócrates valia-se da máscara do ‘não saber’ e da temida arma da ‘ironia’”. Pois, se “Os sofistas mais famosos punham-se em relação aos ouvintes na soberba atitude de quem sabe tudo. Sócrates, ao contrário, punha-se diante dos interlocutores na atitude de quem não sabe, tendo tudo para aprender. Porém muitos equívocos foram cometidos em relação a esse ‘não saber’ socrático, a ponto de se ver nele o início do ceticismo. Na verdade, ele pretendia ser uma afirmação de ruptura” (REALE, 1990, p. 96-97). 95 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Neste sentido, as pesquisas, as oitivas e as disputas praticadas por Aristóteles eram direcionadas, a partir das críticas aos sofistas, para a restauração do valor da opinião e a sua desvinculação do arquétipo da mera arbitrariedade. Aristóteles, no livro da Tópica, toma como objeto de investigação a retórica, a arte da disputa, argumentando que: Nosso trabalho se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicarmos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraços (ARISTÓTELES, 1973, p. 11). A Tópica, como resultado desta investigação, evidencia o raciocínio dialético que se caracteriza partindo de proposições conforme as opiniões geralmente aceitas. A Tópica ou raciocínio dialético se diferencia do raciocínio apodíctico, que se caracteriza partindo de proposições verdadeiras, e do raciocínio erístico, que se caracteriza por partir de opiniões que parecem ser geralmente aceitas, quando realmente não o são, ou seja, quando a natureza da falácia é de uma evidência imediata ou de fácil apreensão. O raciocínio dialético prima pela índole de suas premissas, pelas opiniões geralmente aceitas, acreditadas e verossímeis, pois são proposições que parecem ser verdadeiras à todos ou à maior parte ou aos filósofos, sábios, notáveis ou eminentes. Assim, as demonstrações da ciência são apodícticas ao passo que as argumentações retóricas são dialéticas. Esta última se apresenta como uma arte de trabalhar com opiniões postas e, dada a perspectiva de persuasão e um procedimento crítico, é instaurado entre elas um diálogo ou confrontação ou disputa, mas não no sentido contencioso ou erístico. Assim, distinguindo raciocínio dialético, raciocínio apodíctico e raciocínio erístico, Aristóteles estabelece a dessemelhança entre verdade e opinião; e 96 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito restaura o valor da opinião que fundada no consenso, dada a persuasão e a crítica, 13 é desvinculada do arquétipo da mera arbitrariedade . E assim, a história da nova dialética, a partir de Hegel, tem Heráclito (546 – 480 a.C.) e Aristóteles (384 a.C.) como seus precursores e Karl Marx (com a dialética da alternativa) como um expoente contemporâneo desta nova dialética. Esta linha da dialética busca seu fundamento na síntese dos opostos e não mais no princípio da não contradição. Heráclito, buscando descobrir a razão última das 14 coisas serem, pergunta: “o que de fato existe?” Afirma não haver uma resposta que pudesse ser satisfatória, pois, nenhuma abarcaria o cerne da questão. Então, examinando a natureza, descobre um elemento que é comum a todas as coisas: o vir-a-ser ou o devir, ou seja, se o ser é essencialmente movimento, então tudo flui e 15 nada permanece . O vir-a-ser é a única realidade universal e tudo o mais é apenas aparência. A inteligência deve penetrar o âmago das coisas e perceber o que o ser não é e que não-ser é não-ser. O vir-a-ser dos seres é devido a um conflito dos contrários, que se opõem e se mantêm entre si, pois, todo o vir-a-ser está ligado a uma destas vias que na realidade não passam de uma só. Os contrários, como duas forças cósmicas antagônicas, seguem a gênese e as destruições periódicas das coisas. Uma desagrega: a discórdia e a guerra, que é a causa e origem da pluralidade; A outra agrega: a concórdia e a paz, que reduz todas as coisas à unidade. O vir-a-ser é colocado entre os contrastes e são justamente as oposições que formam a fonte desta dinâmica que produz o movimento. Os contrários são, 13 E dada à negação da arbitrariedade a partir do consenso, “Aristóteles, ao tecer observações sobre as teorias de seu mestre, no lugar de um tom irônico ou destrutivo, utiliza-se de expressões próprias ao homem de ciência que caminha em busca da superação dos antecessores e do estabelecimento de verdades sólidas, como se pode depreender do consignado textualmente na Política (Pol., II, 6, 1265 a, 10)” (BITTAR, 2003, p. 18). 14 A mesma preocupação metafísica de seus predecessores. Se olharmos o ria, os sentidos vão mostrar como se a gente se banhasse nas mesmas águas. Os sentidos nos mostram as coisas não como elas são. 15 Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. 97 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. pois, a coisa fecunda, cheia de vida. E assim, é a sucessão das coisas que nos deixa, então, apreciar os contrastes, ou seja, sem a doença não haveria saúde; sem o mal, o bem; sem a fome, a abundância; sem a fadiga, o repouso; sem o escuro, o claro; etc. E assim, Heráclito pôde afirmar que todas as antíteses são só aparentes. TUDO É NADA E NADA É. Consideremos, no entanto, para a inteligibilidade da questão, a incursão em um extrato do texto L´Esprit des Lois (livro XV, capítulo 5) de Montesquieu, relativo à escravidão dos negros, ou seja: Livro XV: Como as leis da escravidão civil têm relação com a natureza do clima. Capítulo V - Da escravidão dos negros. Se eu tivesse que sustentar o direito que tivemos de tornar os negros escravos, eis o que eu diria: Os povos da Europa, exterminando os da América, tiveram que escravizar os da África para abrir e limpar tantas terras. O Açúcar seria muito caro se não fizéssemos que escravos cultivassem a planta que o produz. Aqueles de que se fala são negros dos pés até a cabeça; e têm o nariz tão achatado que é quase impossível ter pena deles. Não é possível nos convencer de que Deus, que é muito sábio, tenha posto uma alma, especialmente uma boa alma, em um corpo todo negro. É tão natural pensar que a cor constitui a essência da humanidade que os povos da Ásia, que fazem eunucos, sempre privam os negros da relação que têm conosco de um modo mais pronunciado. Pode-se determinar a cor da pele pela dos cabelos, que era, entre os egípcios, os melhores filósofos do mundo, de tão grande consequência, que matavam todos os homens ruivos que lhes caíssem nas mãos. 98 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Uma prova de que os negros não têm senso comum é que dão maior valor a um colar de vidro do que ao de ouro, que, nas nações civilizadas, é de grande importância. É impossível supor que essas pessoas sejam homens; porque, se supuséssemos que eles são homens, começaríamos a crer que nós mesmos não somos cristãos. Mentes ou espíritos pequenos exageram demais a injustiça que se faz aos africanos. Pois, se esta fosse como dizem, será que não teria ocorrido aos príncipes da Europa, que fazem entre si tantas convenções inúteis, fazerem uma convenção geral em favor da misericórdia e da piedade?16 (Montesquieu. 1864. P. 203-204) 16 Livre XV : Comment les lois de l’esclavage civil ont du rapport avec la nature du climat. Chapitre V - De l'esclavage des nègres. Si j'avais à soutenir le droit que nous avons eu de rendre les nègres esclaves, voici ce que je dirais : Les peuples d'Europe ayant exterminé ceux de l'Amérique, ils ont dû mettre en esclavage ceux de l'Afrique, pour s'en servir à défricher tant de terres. Le sucre serait trop cher, si l'on ne faisait travailler la plante qui le produit par des esclaves. Ceux dont il s'agit sont noirs depuis les pieds jusqu'à la tête; et ils ont le nez si écrasé qu'il est presque impossible de les plaindre. On ne peut se mettre dans l'esprit que Dieu, qui est un être très sage, ait mis une âme, surtout une âme bonne, dans un corps tout noir. Il est si naturel de penser que c'est la couleur qui constitue l'essence de l'humanité, que les peuples d'Asie, qui font des eunuques, privent toujours les noirs du rapport qu'ils ont avec nous d'une façon plus marquée. On peut juger de la couleur de la peau par celle des cheveux, qui, chez les Égyptiens, les meilleurs philosophes du monde, étaient d'une si grande conséquence, qu'ils faisaient mourir tous les hommes roux qui leur tombaient entre les mains. Une preuve que les nègres n'ont pas le sens commun, c'est qu'ils font plus de cas d'un collier de verre que de l'or, qui, chez des nations policées, est d'une si grande conséquence. Il est impossible que nous supposions que ces gens-là soient des hommes; parce que, si nous les supposions des hommes, on commencerait à croire que nous ne sommes pas nous-mêmes chrétiens. De petits esprits exagèrent trop l'injustice que l'on fait aux Africains.Car, si elle était telle qu'ils le disent, ne serait-il pas venu dans la tête des princes d'Europe, qui font entre eux tant de conventions inutiles, d'en faire une générale en faveur de la miséricorde et de la pitié? (MONTESQUIEU, 1864, p. 203-204). 99 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A referida incursão no extrato relativo à escravidão dos negros, do texto L´EspritdesLois (livro XV, capítulo 5) de Montesquieu, é uma investigação feita por Oswald Ducrot que, em Provar e Dizer, afirma que: Montesquieu recorre a um procedimento frequentemente utilizado pela literatura militante do século XVIII, ele finge colocar-se o lado da opinião de seus adversários e expõe os argumentos que segundo eles justificam a escravidão (Se eu tivesse que sustentar o direito que tivemos de tornar os negros escravos, eis o que eu diria:). e ele mostra que esses argumentos (ex: o açúcar seria muito caro se a cultura não fosse assegurada pelos escravos; a raça negra é uma raça inferior destinada a servidão e que não sofre com isso. ) antes sugeririam conclusões opostas, tornando claro o absurdo e a injustiça do que pretendiam justificar. (DUCROT. 1981. P. 147-148) E, nesse sentido, no que concerne ao texto de Montesquieu sobre a Escravidão, segundo Ducrot, Montesquieu cede aos escravagistas o raciocínio acima indicado e cuja análise é assim deduzida: O texto comporta duas proposições explícitas A nos somos cristãos; B os negros são homens. O raciocínio dos escravagistas toma por premissa (1) B A (= se nós supuséssemos que eles são homens começar-seia a crer que nos mesmo não somos cristãos) (2) Não B (= é impossível que essas pessoas sejam homens) Para obter a conclusão (2) a partir da premissa (1) é preciso - aplicar a premissa à lei lógica dita de contraposição (p q é equivalente à q p). Obtém-se então não A não B o que dá se se elimina a dupla negação (3) A B 100 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Dai implicitamente uma premissa suplementar que parece depender da evidência A (= nós somos cristão) - concluir de (3) utilizando-se a nova premissa A (4) não B (= os negros não são homens) Toda ironia de Montesquieu consiste em sugerir como também aceitável um percurso que partindo da mesma premissa (1), isto é B A tomaria como premissa suplementar não A, mas B (= os negros são homens). Com essa premissa B com efeito e a premissa (1) (= B não A) é-se levado a concluir não-A (= Nós não somos cristãos) (DUCROT. 1981. p. 148). Se abarcarmos a perspectiva dos escravagistas de que é impossível supor que essas pessoas sejam homens como uma premissa suplementar, porque, se supuséssemos que eles são homens, começaríamos a crer que nós mesmos não somos cristãos (Montesquieu. 1864. P. 203-204) como premissa categórica, a validade da conclusão implicaria, necessariamente, na proposição de que é 17 impossível supor que essas pessoas sejam homens como descrito no silogismo abaixo: Primeira premissa: B A [se os negros não são homens, então nos somos cristãos] Segunda premissa: B [os negros não são homens] 17 Cuja validade podemos observar na tabela de valores abaixo: Conc. 2ºprem 1º premissa A B A B BA B A BA B A V V F F V F V V V F F V V V V F F V V F F V V V F F V V V V F V 101 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Conclusão: A [nos somos cristãos] Da análise acima, considerando os mesmos pressupostos, ou seja, A (nos somos cristãos) e B (os negros são homens), podemos inferir, em princípio, que, a partir da equivalência por contraposição, ou seja, quando a premissa categórica nega o consequente da premissa condicional e a conclusão nega o antecedente da premissa condicional implicados em uma condicional relativa ou simplesmente (A) B, caso em que o argumento é válido ou lógico e correspondente ao modus tollens, temos que: se A B é equivalente à B A, então B A é equivalente a A B. Ou seja, se [se nos somos cristãos, então os negros são homens] é equivalente a [se os negros não são homens, então nos não somos cristãos], então, [se os negros são homens, então nos não somos cristãos] é equivalente a [se nos somos cristãos, então os negros não são homens]. O raciocínio que Montesquieu adota, inicialmente, pode ser descrito 18 através do seguinte silogismo : Primeira premissa: B A [se os negros são homens, então nos não somos cristãos] Segunda premissa: B [os negros são homens] Conclusão: A [nos não somos cristãos] e, como vimos, se B A é equivalente por contraposição a A B, para obter a conclusão B, a partir da primeira premissa B A ou da sua contrapositiva A B, é preciso tomar como premissa suplementar a proposição correspondente a A. 18 Cuja validade podemos observar na tabela de valores abaixo: 2ºprem Conc. 1º premissa A B A B BA B A BA B A V V F F V F V V V F F V V V V F F V V F F V V V F F V V V V F V 102 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito E com essa premissa suplementar A é-se levado a concluir B, como demonstrado 19 nos silogismos abaixo: Primeira premissa: A B [se nos somos cristãos, então os negros não são homens] Segunda premissa: A [nos somos cristãos] Conclusão: B [os negros não são homens] Primeira premissa: B A [se os negros são homens, então nos não somos cristãos] Segunda premissa: A [nos somos cristãos] Conclusão: B [os negros não são homens] 19 Cuja validade podemos observar na tabela de valores abaixo: 2ºprem Conc. 1º premissa A B A B AB A B A B A B V V F F V F V V V F F V F V V V F V V F V V V F F F V V V V F V Cuja validade podemos observar na tabela de valores abaixo: 2ºprem Conc. 1º premissa A B A B BA B A BA B A V V F F V F V V V F F V V V V F F V V F F V V V F F V V V V F V 103 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A ironia, apontada por Ducrot, consiste no fato de Montesquieu sugerir, ao assumir o mesmo raciocínio de seus adversários escravagistas, uma contingência fundada na equivalência por contraposição, ou seja, tanto é possível B e é possível não B, quanto é possível A e é possível não A, e, portanto, o aceitável a partir da contingência. Mas, se Montesquieu apela para um método comumente empregado pela literatura militante do século XVIII, fingindo colocar-se a favor da perspectiva de seus adversários, então o faz no sentido de que quando afirma B A [se os negros são homens, então nos não somos cristãos], por equivalência ou substituição, nega a implicação aditiva dos negros serem homens e nós sermos cristãos, ou seja, [B e A], como demonstrado abaixo: A B A B B A BeA [B e A] V V F F F V F V F F V V F V F V V F V F V F F V V V F V Mas, diferente da estratégia adotada por Montesquieu, que recorre a um método comumente empregado pela literatura militante do século XVIII, fingindo se colocar a favor da perspectiva de seus adversários, como poderíamos pensar refutar o argumento dos escravagistas? Ou seja, como poderíamos conceber o contrário, o contraditório e a síntese dos opostos contrária à simples perspectiva do princípio da não contradição? Refutar o argumento dos escravagistas implica, necessariamente e contrário a fingir se colocar a favor da perspectiva de seus adversários como um método comumente empregado pela literatura militante do século XVIII, negar a perspectiva dos adversários, que para o caso em questão são os escravagistas. Ou seja, [B A] ou negar que [se os negros são homens, então nos não somos 104 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito cristãos], por equivalência ou substituição, implica B e A ou os negros são homens e nós somos cristãos, como demonstrado abaixo: A B A B B A BeA [B e A] [B A] V V F F F V F V V F F V V F V F F V V F V F V F F F V V V F V F Mas, as proposições podem ser formadas a partir de funções proposicionais quantificadoras. Tal que, para a proposição Todos os humanos são mortais, observamos que dada qualquer coisa no universo, se ela (coisa) é humana, então ela (coisa) é mortal, ou seja, dado qualquer x no universo, se x é humano, então x é mortal ou (x) [Hx Mx]. E como vimos acima, há funções proposicionais cujos exemplos de substituição são conjunções aditivas de proposições singulares. Assim, (x) [Hx Mx] ou Dada qualquer coisa no universo, se ela (coisa) é humana, então ela (coisa) é mortal, ou seja, Dado qualquer x no universo, se x é humano, então x é mortal ou, simplesmente, Todos os humanos são mortais, por equivalência ou substituição, temos (x) [Hx e Mx] ou Existe, pelo menos, uma coisa que é humana e que é mortal, ou seja, Existe, pelo menos, um x tal que x é humano e x é mortal ou, simplesmente, Algum humano é mortal. Nesse sentido, a partir do quadro de oposições, podemos observar que (x) [Hx Mx] e (x) [Hx e Mx] são, respectivamente o contrário e o contraditório de (x) [Hx Mx]. Ou seja, Dado qualquer x no universo, nego que se x é humano, então x é mortal e Existe, pelo menos, um x tal que x é humano e x não é mortal são, respectivamente, o contrário e o contraditório de Dado qualquer x no universo, se x é humano, então x é mortal, como desmonstrado no quadro de oposições abaixo: 105 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A V h m [h m] F F [h e m] hem V V E F V F [h m] hm O hem [h e m] F Consideremos, no entanto, para a inteligibilidade do texto L´Esprit des Lois (livro XV, capítulo 5) de Montesquieu, relativo à escravidão dos negros, uma incursão pela equivalência por substituição a partir do argumento dos escravagistas e, assim, considerar uma hipótese para o problema de como poder conceber o contrário e o contraditório como uma síntese dos opostos e não mais uma simples perspectiva do princípio da não contradição. Nesse sentido, a partir do quadro de oposições, podemos observar que, () B A ou Em absoluto ou necessariamente, se os negros são homens, então nos não somos cristãos, por equivalência ou substituição, implica () [B e A] ou Em absoluto ou necessariamente, nego que [os negros são homens e nós somos cristãos]. Mas, () [B A] ou Em absoluto ou necessariamente, nego que se os negros são homens, então nos não somos cristãos e () B e A ou É possível que os negros sejam homens e nós sejamos cristãos são, respectivamente, o contrário e o contraditório de () B A ou Em absoluto ou necessariamente, se os negros são 106 F V V Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito homens, então nos não somos cristãos, como demonstrado oposições abaixo: A 20 no quadro de F ba [b a] V [b e a] bea E V V F F F [b a] V ba O bea [b e a] F Assim, se há funções proposicionais cujos exemplos de substituição são conjunções aditivas de proposições singulares, considerada as mesmas proposições implicadas em uma condicional relativa (se, então), então, as proposições podem ser formadas a partir de funções proposicionais quantificadoras, de tal modo que 20 Como podemos observar na tabela de valores abaixo: b a b a ba [b a] bea [b e a] V V F F F V V F V F F V V F F V F V V F V F F V F F V V V F F V 107 V F V Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. uma implicação aditiva, como B e A, pode assumir o possível não ser ou não necessariamente ser, e isso decorre do argumento de que: a questão costuma remontar a Jorgensen (1937), que propôs um problema por ele denominado 'quebra-cabeça', e que Ross (1941 e 1971) chamou de 'dilema de Jorgensen'. De acordo com Ross, uma inferência prática como: Você deve manter as suas promessas. Essa é uma das suas promessas. Logo, você deve manter essa promessa. carece de validade lógica. Não é logicamente necessário que um sujeito que estabelece uma regra geral deva também estabelecer a aplicação particular dessa regra. Que isso se verifique ou não depende de fatos psicológicos. Não é raro acrescenta Ross que um sujeito formule uma regra geral, mas evite a sua aplicação quando se vê afetado. Entretanto, se examinarmos bem, essa idéia é decididamente estranha. (2000. P. 35-36) (...) isso não parece ter relação com a lógica, que como a gramática é uma disciplina prescritiva: não diz como os homens pensam ou raciocinam de fato, apenas como deveriam fazê-lo. (ATIENZA. 2000. P. 37) Nesse sentido, consideremos o seguinte silogismo: Primeira premissa: Um negro não deve ser (ou não é) um homem Segunda premissa: Ele é um negro Conclusão: Logo, Ele não deve ser (ou não é) um homem Primeira premissa: (x) [nx hx] Segunda premissa: n(Meugnin) 108 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito h(Meugnin) Conclusão: Implicação Aditiva: (x) [nx e hx] Nesse sentido, a partir do quadro de oposições, podemos observar que, () n h ou Em absoluto ou necessariamente, se alguma coisa é negra, então essa coisa não é homem, por equivalência ou substituição, implica () [n e h] ou Em absoluto ou necessariamente, nego que [uma coisa é negra e essa coisa é homem]. Mas, () [n h] ou Em absoluto ou necessariamente, nego que se uma coisa é negra, então essa coisa é homem e () n e h ou É possível que uma coisa seja negra e essa coisa seja homem são, respectivamente, o contrário e o contraditório de () n h ou Em absoluto ou necessariamente, se uma coisa é 21 negra, então essa coisa não é homem, como demonstrado no quadro de oposições abaixo: A 21 F nh [n h] V [n e h] neh E V F F Como podemos observar na tabela de valores abaixo: b a b a ba [b a] bea [b e a] V V F F F V V F V F F V V F F V F V V F V F F V F F V V V F F V 109 V Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. F V [n h] nh O neh [n e h] F Assim, a síntese dos opostos decorre do contraditório, ou mais especificamente, da admissibilidade do contraditório, de tal modo que as proposições contraditórias n h e n e h sejam verdadeiras a um só tempo e contrária à perspectiva do princípio da não contradição. V F V Mas, como descreveríamos o contrário e o contrário se as proposições indicadas em E for [ n h] e em O for [ n h]? Ou seja, se a ordem dos valores correspondentes ao contrário indicado implicar em uma inversão, que não é corresponde a uma inversão direta ou de valor a valor (de vfff para fvvv), mas, sim, na ordem dos valores (de vfff para fffv). Consideremos, para tanto, o quadro de oposições abaixo: A V nh n e h F [n e h] [ n h] V V F F E 110 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito [n h] O neh REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1º edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução de novos textos Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003. ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Lisboa: Editorial Presença, Vol. XIII, 2003. ARISTÓTELES. Tópicos. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. A. Pickard - Cambridge. 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São Paulo: Martins Fontes, 2001. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2003 112 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito DIÁLOGOS ENTRE RONALD DWORKIN E NEIL MACCORMICK: A RELEVÂNCIA DA NOÇÃO DE COERÊNCIA PARA A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Cláudia Rosane Roesler 1 Ricardo Antonio Rezende de Jesus 2 Palavras-chave: Argumentação jurídica; Coerência; Integridade. A análise das justificativas que fundamentam as decisões jurídicas é tema cada vez mais relevante nas democracias ocidentais de cunho liberal. Entre os 3 diversos fatores que explicam esse interesse pela argumentação jurídica , destaca- 1 Doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Brasilia-DF. Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília (UNB). Brasilia-DF.Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Para um desenvolvimento desses fatores, Cf: ATIENZA, Manuel El Derecho como argumentacion. 2ed. Barcelona: Ariel, 2007, p. 15-19. 113 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. se a ascensão da democracia como forma de governo - e como forma de sociedade – e do Estado Democrático de Direito ou, caso se prefira, do Estado constitucional, como modelo de organização jurídica. Ocorre que com a perda da força explicativa da tradição e da autoridade como justificativas do poder político, restou, como fonte de legitimidade, o argumento racional, a força persuasiva das razões, a possibilidade de demonstração do ponto de vista. Na verdade, é possível dizer que é constitutivo da ideia de democracia o debate de argumentos e pontos de vista contrários. Daí que o interesse pelo saber sobre bem argumentar se mostra quase como uma consequência natural da vida nesse tipo de sociedade. Também no que toca ao Estado Democrático de Direito, uma das características que lhe podem ser apontadas é a exposição pública das razões que justificam as decisões jurídicas. É preciso dar a conhecer o porquê de uma decisão reconhecer ou eventualmente restringir direitos. Nesse contexto, a preocupação com uma teoria da argumentação jurídica se revela importante na medida em que propõe estabelecer critérios que demonstrem estar uma decisão justificada ou não e, por isso mesmo, possibilitar aos afetados uma oposição. Observa-se que a preocupação com a coerência como expressão de uma racionalidade, é um critério recorrente para auferir a correção argumentativa das decisões judiciais. Esta noção de coerência pode aparecer travestida em outro nome, ampliada ou reduzida a depender da linha de raciocínio articulada por cada autor, mas é sempre enfatizado que deve transparecer na decisão, tanto de maneira interna - racionalidade entre os argumentos utilizados na decisão; quanto externa - conexão racional entre os argumentos utilizados, os fatos narrados e o ordenamento jurídico como um todo. Partindo desses pressupostos, o presente trabalho pretende dialogar com as teorias formuladas por Dworkin e MacCormick as quais, ainda que partindo de pontos de vista inicialmente distintos, estão mais próximas na atualidade, sendo que a relevância dada à noção de coerência nos parece ser um dos pontos de convergência entre ambas. Assim se dá por avaliarmos que, em face das alterações feitas por Neil MacCormick em sua teoria, condensadas na obra “Retórica e Estado de Direito”, as posições dos autores acabam por se complementar. 114 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito O trabalho tem por objetivo, pois, identificar essas posições complementares dos dois autores em torno da noção de coerência e sua relevância para a argumentação jurídica. Ao fim, espera-se que tais concepções possam auxiliar a construir um modelo para avaliação crítica das decisões judiciais no Brasil, com ênfase naquelas proferidas pelo STF. Reportando-nos inicialmente a Dworkin, vemos que a coerência é uma dimensão de um conceito mais amplo e genérico que é o de integridade. Para esse autor, a coerência que interessa para o direito como integridade é uma coerência de princípio, o que quer dizer que os vários padrões que fundamentam o uso da coerção pelo Estado contra seus cidadãos devem ser consistentes “no sentido de expressarem uma visão única e abrangente de justiça” (DWORKIN, 1995, p. 134). Para MacCormick, “A coerência impõe um constrangimento real e importante aos juízes” (MACCORMICK, 2008, p. 265). Há um dever jurídico e moral de demonstrar que as decisões decorrem do direito pré-existente ou que, mesmo diante de uma situação absolutamente inédita, os fundamentos usados para solução de casos estão em sintonia com princípios gerais aceitos pela comunidade. Essa exigência, por sua vez, conecta-se com os ideais de igualdade de tratamento e de universalização dos fundamentos das decisões, na medida em que se espera que situações semelhantes gerem soluções semelhantes. É certo que o próprio requisito de coerência está condicionado pelo ideal maior que deve ser a busca para que seres humanos “vivam juntos em razoável harmonia e com alguma percepção de um bem comum no qual todos participam” (MACCORMICK, 2008, p. 253). Analisando a elaboração teórica de MacCormick, comparando os delineamentos sobre a coerência em suas duas obras de referência, constata-se que é aqui que há uma maior aproximação de suas ideias com as de Dworkin. Num primeiro momento, o critério de coerência parecia estar satisfeito com um requisito formal de adequação entre direito (e aqui incluídos, princípios, regras e mesmo decisões anteriores) existente e a decisão que se está analisando. Em 115 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Retórica e Estado de Direito aparecem termos que identificam uma preocupação com a legitimidade em um sentido muito mais substancialista. Deixa-se claro que, para uma decisão ser considerada justificada, do ponto de vista da coerência, ela precisa estar sintonizada a princípios aceitos pela comunidade, mas princípios esses que reflitam um ideal de uma vida satisfatória, de mútuo respeito e busca por igualdade. Há uma grande proximidade entre essa ideia e a relação entre integridade e comunidade de princípios proposta por Dworkin. Para Dworkin, uma questão que se impõe é saber por que obedecemos aos princípios jurídicos. Em outras palavras, de onde tais princípios retiram sua legitimidade? Segundo Dworkin, obedecemos porque vivemos em uma comunidade de princípios: Os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem em termos mais gerais do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam. Assim, cada membro aceita que os outros têm direitos e que ele tem deveres que decorrem desse sistema, ainda que estes nunca tenham sido formalmente identificados ou declarados. Também não presume que esses outros direitos e deveres estejam condicionados à sua aprovação integral e sincera de tal sistema; essas obrigações decorrem do fato histórico de sua comunidade ter adotado esse sistema (grifamos) (DWORKIN, 1995, p. 211). Há, pois, uma complementaridade/tensão entre a comunidade de princípios e o ideal de integridade que se quer desenvolver. Os princípios acolhidos pela comunidade devem transparecer nas decisões políticas e jurídicas que afetam essa comunidade, de modo que lhe assegurem legitimidade. O ideal de integridade, por sua vez, na medida em que se baseia em uma relação de igualdade e mútua consideração entre os membros da comunidade constitui um limite para a construção das decisões da comunidade. A teoria de MacCormick, todavia, desce a detalhes importantes que podem auxiliar aqueles que se propõem a um olhar crítico sobre a decisão judicial. 116 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito MacCormick, por exemplo, distingue entre consistência e coerência, deixando claro que uma decisão pode ser consistente, mas não necessariamente 4 coerente . Assim, enquanto a consistência é a ausência de contradição lógica entre duas ou mais regras, a coerência é a “compatibilidade axiológica entre duas ou mais regras, todas justificáveis em vista de um princípio comum” (MACCORMICK, 5 2008, p. 301) . MacCormick decompõe também o critério da coerência em coerência normativa e coerência narrativa. A coerência narrativa diz respeito aos fatos e se revela um importante componente na justificação das decisões jurídicas. É preciso que, ao fundamentar uma decisão, os fatos narrados façam parte de uma seqüência inteligível de eventos que façam sentido como um todo. O teste para verificar a coerência fática não pode prescindir dos elementos da experiência racional, juízos probabilísticos de senso comum, combinados com causalidades produzidas pelo conhecimento científico. A coerência narrativa assim ilustrada é a nossa única base para sustentar conclusões, opiniões ou veredictos sobre fatos do passado. Uma certa ideia de racionalidade cumpre papel importante nisso. Nem a experiência intelectual nem a experiência prática são uma mera sucessão caótica de impressões. (...). Um corpo crescente de teorias científicas que, de certo modo, contam como elaborações especializadas dos princípios básicos, tornam o nosso mundo um mundo inteligível pra nós (MACCORMICK, 2008, p. 292-293). 4 Apesar dessa distinção entre coerência e consistência não estar muito clara na obra de Dworkin, ela pode ser extraída da discussão que o autor faz sobre o convencionalismo. O autor sugere que o convencionalismo se satisfaria com a consistência enquanto o direito como integridade exigiria uma coerência de princípio. Cf. DWORKIN, Ronald. Law’s empire, p.132 e ss. 5 MacCormick trabalha com a idéia de que há uma sobreposição entre as noções de valores e princípios. “Princípios jurídicos dizem respeito a valores operacionalizados localmente dentro de um sistema estatal ou de alguma ordem normativa análoga” (Retórica e Estado de Direito, p. 251). Para Atienza (As razões do direito: teorias da argumentação jurídica, p. 187), MacCormick, na verdade faz equivaler princípios e valores, pois “ele não entende por valor apenas os fins que de fato são perseguidos e sim os estados de coisas considerados desejáveis, legítimos, valiosos; assim, o valor da segurança no trânsito, por exemplo, corresponderia ao princípio de que a vida humana não deve ser posta em perigo indevidamente pelo tráfego de veículos”. 117 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. MacCormick chama atenção, ainda, para o fato de que a argumentação por analogia é uma importante aplicação da ideia de coerência na justificação das decisões em casos difíceis. A analogia, como ato de estender uma regra ou princípio jurídico para regular outra situação, aparentemente sem solução específica, implica a demonstração, por parte do interprete, de que há conexão racional – semelhanças plausíveis - entre as situações em comparação. O certo é que, seguindo a teoria de MacCormick, seja argumentando com base em princípios, seja se servindo da analogia, é preciso justificar a solução conectando-a aos 6 princípios e valores que constituem o sistema jurídico como um todo. Ante o exposto, temos que, para ambos os autores, a coerência deve ser um ideal perseguido pelo ordenamento jurídico como um todo, e também pela decisão judicial. Isso porque a decisão, com potencial para se transformar em precedente, torna-se parte do ordenamento jurídico. Além disso, vista como um microssistema, a decisão deve ser coerente internamente de modo que as premissas que a fundamentem não entrem em contradição. A teoria de MacCormick ultrapassou a ideia de coerência apenas como um requisito formal de adequação entre o direito posto e o direito que aparece na solução de cada caso concreto. Passou-se a exigir a demonstração de que a solução construída é coerente com ideias de uma vida social voltada para o mútuo entendimento e respeito recíproco. A coerência do ordenamento passou, portanto, 6 Nesse ponto, como o próprio MacCormick reconhece, a proximidade com Dworkin é marcante. Pois, como adverte Dworkin: “Será a integridade apenas coerência (decidir casos semelhantes da mesma maneira) sob um nome mais grandioso? Isso depende do que entendemos por coerência ou casos semelhantes. Se uma instituição política só é coerente quando repete suas próprias decisões anteriores o mais fiel ou precisamente possível, então a integridade não é coerência; é, ao mesmo tempo, mais e menos. A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal, às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo” (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 263-264). Cf, também, CALSAMIGLIA. Albert. El concepto de integridad em Dworkin. Doxa: cuadernos de filosofia del derecho.n.12, 1992, p. 155-176. 118 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito a estar mais próxima de um ideal de integridade do direito, nos termos propostos por Dworkin. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATIENZA, Manuel. El Derecho como argumentacion. 2ed. Barcelona: Ariel, 2007. ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. CALSAMIGLIA. Albert. El concepto de integridad em Dworkin. Doxa: cuadernos de filosofia del derecho.n.12, 1992. DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, Tradução de Conrado Hubner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 119 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. ENTRE CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E AUTORIDADE ESTATAL: BREVES REFLEXÕES SOBRE A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Joyce Karine de Sá Souza 1 Andityas Soares de Moura Costa Matos 2 Palavras-chave: Desobediência Civil. Evolução do Estado. Direitos Fundamentais. Constitucionalismo. Filosofia do Direito. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, datada de 10 de dezembro de 1948, traz uma série de direitos elencados como sendo essenciais ao homem que convive em sociedade civil sob tutela jurídica estatal, “para que o homem não seja compelido, como último recurso, à 1 Graduanda em Direito pela FEAD, atualmente no 9º período. Monitora da disciplina Filosofia do Direito no curso de Direito da FEAD. E-mail: [email protected]. 2 Graduado em Direito, Mestre em Filosofia do Direito e Doutor em Direito e Justiça pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto de Filosofia do Direito e disciplinas afins na Faculdade de Direito da UFMG. Membro do Corpo Permanente do Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Professor Titular de Filosofia do Direito no curso de Graduação em Direito da FEAD. E-mail: [email protected] 120 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito rebelião contra a tirania e a opressão”. A Declaração não tem natureza vinculativa, porém vários Estados-Nação se inspiraram nela para orientar suas Constituições (Alemanha e Portugal) como forma de positivar um núcleo de direitos necessários em uma era na qual se verificou que quando o poder ilimitado é conferido ao Estado, sua legitimidade se faz mediante o terror e da barbárie, como observamos nos totalitarismos modernos, nazismo e fascismo. Quando os direitos fundamentais ganham positivação constitucional, esta determina o modo pelo qual as ações do Estado se orientarão e este realiza suas atividades conforme o direito. Forma-se assim o Estado de Direito. No entanto, ressalte-se que o rol de direitos fundamentais considerados atualmente não é exaustivo. Sua construção é gradual e não busca um fim. À medida que o homem passa por circunstâncias históricas em que há agressão, em qualquer de suas formas, aos direitos humanos fundamentais, seja por parte do Estado ou por parte de terceiros, põe-se a necessidade de proteger ainda mais sua essência. Tal dever de proteção não se configura apenas na forma estatal, quando a Constituição protege os direitos fundamentais contra as investidas do Poder Público em face do cidadão ou quando age como guardiã desses direitos contra terceiros. De fato, o maior interessado na proteção dos direitos humanos fundamentais é o próprio homem. Como cidadão, é legítimo que resista à opressão quando o Estado se torna um adversário ou se omite no dever de proteção aos seus direitos. As razões pelas quais o “direito de se resistir à opressão” não foi referenciado nas Constituições liberais do século XIX que se basearam na Declaração Revolucionária de 1789 (lê-se no art. 2º da declaração: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão), nem na maioria das modernas Constituições posteriores ao terror e à barbárie vividos pela humanidade durante a ascensão dos nacionalismos totalitários, são de ordem histórica e político-ideológica. Trata-se de um daqueles inumeráveis “esquecimentos” que o pensamento jurídico não aborda e finge não existir. Posição cômoda, porém irresponsável e anticientífica, como todas aquelas 121 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. que privilegiam o útil em detrimento do verdadeiro. Os valores da ordem e da segurança jurídica sempre foram privilegiados pelo pensamento jurídico ocidental, de maneira que a aceitação da desobediência civil como categoria integrante da dogmática tradicional mostra-se, se não paradoxal, ao menos problemática. Contudo, faz-se necessário debater o tema da desobediência civil na seara do Direito, uma vez que a ciência jurídica não se encerra na dogmática tradicional e positivada, nem se limita a ela. A desobediência civil pode ser entendida como uma postura política individual que, mediante ação organizada e consciente, contesta a supremacia e a validade da ordem jurídica vigente em sua inteireza ou em pontos isolados que, no entanto, conformam o arcabouço essencial de tal ordem. Bem se vê que a desobediência civil não é uma simples revolta ou negativa de cumprimento de normas jurídicas quaisquer. Trata-se, evidentemente, de uma revolta qualificada, e que normalmente busca um objetivo maior, ou seja, o desobediente se orienta rumo a uma finalidade que transcenda a mera negativa de cumprimento de determinados mandamentos legais. Da mesma maneira, pode-se sustentar com acerto que a desobediência civil não se assemelha e nem dá lugar, necessariamente, à anarquia pura e simples, que é a ausência de qualquer ordem jurídica. Também não se confunde a desobediência civil com a objeção de consciência, uma vez que esta preceitua uma contraprestação do objetor caso este não concorde com o mandamento da norma, tal como ocorre com a recusa de prestação de serviço às Forças Armadas por motivos ético-filosóficos. O objetivo do desobediente é demonstrar que a injustiça não se coaduna com as ideias pelas quais se sustenta o Estado de Direito. A desobediência civil não se define pela negativa de qualquer ordem, de qualquer governo e de qualquer direito. Trata-se, ao contrário, de questionar e de resistir a uma específica ordem, a um tipo de governo e a um particular direito, que, por diversas razões, são tidos por imorais e injustos. Na verdade, o conceito de desobediência civil é fluido e ainda está por se fixar. A definição acima apresentada constitui-se como simples moldura para melhor compreendê-la em uma perspectiva jurídico-crítica. É claro que tal moldura comporta importantes variações. Note-se, por exemplo, que depois de Gandhi – de sua teoria e, com 122 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito muito mais razão, de sua prática – não se pode sustentar que a desobediência civil caracteriza-se como postura individual. Mahatma Gandhi foi talvez um dos primeiros líderes políticos a convencer grandes massas populacionais a desobedecer a ordem constituída, custasse o que custasse. É evidente que a partir de então não se pode desconsiderar o potencial coletivo da desobediência civil, que, tradicionalmente, sempre foi vista como contestação individual, a exemplo do contido na clássica obra de Thoreau. Outro aspecto importante a se enfrentar na conceituação de desobediência civil diz respeito ao modo como tal postura se concretiza: por meio de atividades pacíficas – como a política da não-cooperação de Thoreau e de Gandhi, a exigência incondicional de paz feita por Tolstói e o repúdio ao mal e não às pessoas más, como pregava Luther King – ou, ao contrário, para ser eficaz a desobediência civil precisa assumir posturas violentas, lançando mão de recursos armados e da possibilidade de matar e morrer, como parecem insinuar Santo Tomás de Aquino, Thomas Hobbes, John Locke e Heinrich von Kleist? Caso se adote o viés agressivo da teoria da desobediência civil, seguramente a linha que a separa de grupos extremistas paramilitares será bastante tênue. Porém, não há que se dizer que posturas terroristas se enquadrem no conceito de desobediência civil. Ao contrário, o terrorismo não procura um diálogo com a ordem posta, tenta subvertê-la para impor uma nova ordem, buscando o poder por meios exclusivamente violentos. Apesar dos vários problemas que envolvem a noção de desobediência civil – seu estatuto teórico, sua natureza jurídica, seus limites, etc. – é plenamente possível vislumbrar-lhe a riqueza, que somente agora começa a ser descoberta pela doutrina jurídica. Vivemos em uma época na qual a humanidade abriu mão de sua autonomia moral, deixando as decisões essenciais a respeito de sua existência para serem tomadas pela autoridade, seja ela jurídico-estatal ou financeira. Hoje a consciência individual capitula diante da autoridade. O homem individual – não individualista ou egoísta, mas essencial, no sentido que Ortega y Gasset dá ao termo – representa uma espécie em extinção. 123 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A alienante sociedade de massas, a banalização das relações humanas, o domínio estatal estabelecido e mantido por tecnocracias financeiro-mundiais e a tendência ao aplainamento cultural do planeta por umas poucas potências belicistas são constatações que permeiam nosso quotidiano. Essa vaga pósmodernidade, na qual a humanidade apenas sobrevive, somente pôde se instalar devido ao abandono quase completo de algo que sempre caracterizou o homem: sua consciência individual. O reconhecimento do estatuto jusfundamental da desobediência civil, bem como a exposição das razões que ocasionaram sua desvalorização histórica pelo pensamento jusfilosófico aparecem como formas de salvaguardar – ou mesmo de resgatar – a dignidade da pessoa humana diante da massacrante e crua realidade do poder. De fato, existem diversas formas de se posicionar diante da opressão de um Estado. Objeção de consciência, anarquismo e desobediência civil são formas de se resistir à opressão, à violência institucionalizada, aos mandamentos de um poder irracional, às leis que conformam o arcabouço de uma ordem. Não obstante, apesar da desobediência civil se assemelhar em algum ponto a tais fenômenos, carrega em si o pleno exercício da consciência individual, uma vez que não se encerra na permissão ou na vedação pelo poder estatal de sua realização. O cidadão encontra-se na posição de indivíduo frente ao Estado e não como súdito que se dobra ao poder irresistível do Leviatã. Sem dúvida, a desobediência civil é um ato legítimo ante as não incomuns atrocidades do poder, fazendo parte do elenco dos chamados direitos fundamentais, sendo necessário considerá-la enquanto tal para se equacionar o problema das relações conflitivas entre autoridade e consciência individual no Estado Democrático de Direito. A positivação do direito de se resistir à opressão, entendido como direito fundamental em alguns ordenamentos jurídicos modernos, representa uma limitação ao poder, tratando-se de mecanismo interno do próprio Estado de Direito para impedir a violação dos direitos fundamentais tanto por parte daqueles que dominam a máquina estatal quanto por parte de terceiros. Apesar das formulações jusnaturalistas (Sófocles, Santo Tomás de Aquino, Hobbes, Locke) que lhe deram substância, a noção de desobediência civil nunca encontrou seu locus teórico específico na tessitura filosófica do Direito. Tal se deve, 124 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito em grande parte, à própria natureza da ideia, que guarda em si um forte matiz contestatório. Por outro lado, a verdadeira história do Direito e do Estado ainda está por se escrever, conforme sugere François Ost, já que o pensamento jurídico tradicional, ao se comprometer com a orientação ideológica liberal-capitalista, acabou por se encerrar em si mesmo e, assim, desconsiderar – consciente ou inconscientemente – realidades muito mais ricas. Há toda uma teoria da desobediência civil a se desenvolver no campo estritamente jusfilosófico, apesar do avanço dos estudos relativos ao assunto na ciência e filosofia políticas, que, por óbvio, consideram o fenômeno por meio de perspectivas muito diversas daquela especificamente jurídica, que é exatamente a da decidibilidade. Não obstante o tratamento lacunoso e superficial que se vem dispensando à noção de desobediência civil na seara jurídica – especialmente na Teoria do Estado e na Filosofia do Direito –, ainda assim pode-se enquadrá-la como um direito fundamental. A desobediência civil não configura uma exceção no Estado Democrático de Direito, uma espécie de último recurso para se utilizar em momentos de grave crise institucional. Ao contrário, a ideia de desobediência civil constitui, ao lado de outras noções caras ao pensamento liberal clássico (v.g., autonomia da vontade, proteção à propriedade, liberdade política), a própria base de tal tipo de Estado, sendo, portanto, um direito fundamental. Se, como afirma o constitucionalismo contemporâneo, os direitos fundamentais se fundam na França revolucionária de 1789 e na Declaração de Independência Norte-Americana de 1776, parece-nos bastante claro que são necessários não apenas para originar o Estado de Direito, mas também – e principalmente – para sua manutenção. A desobediência civil, entre todos os outros direitos fundamentais, expressa a inalienável possibilidade de se “desfundar” o pacto político quando o mesmo tenha sido corrompido ou se mostrado excessivamente injusto e arbitrário. Se a soberania realmente pertence ao povo, e é graças a tal soberania que o Estado se mantém, não nos parece absurdo afirmar que aqueles que construíram o Estado podem, por diversos motivos, desconstruí-lo. Do contrário, a sociedade civil corre o risco de assumir a 125 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. aventura sem volta da obediência cega à autoridade, que, interessada em maximizar o poder e o imperium, não hesita em sacrificar os direitos fundamentais, sejam eles quais forem, em nome das sempre obscuras raisons d’État. Não se deve admitir que o Estado, a autoridade e o governo sejam vistos como monstros que, à semelhança das criaturas contidas na caixa de Pandora, escaparam definitivamente ao controle, nada se podendo opor à sua vontade de poder. Na verdade, são criações sociais que têm por missão a realização de finalidades igualmente sociais, sem o que não se justificam. A aceitação da desobediência civil como um dos direitos fundamentais representa uma espécie de garantia segundo a qual aqueles que concederam o poder podem retomá-lo a qualquer momento, desde que compareçam razões fortes o bastante para justificar a quebra do status quo. Nesse sentido, não falta à desobediência civil relevância jusfilosófica e evidência histórica, uma vez que originalmente compôs o rol de direitos fundamentais de primeira geração assumidos pelos revolucionários franceses de 1789. 126 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito EUGENIA LIBERAL E A ÉTICA DA ESPÉCIE Letícia Alonso do Espírito Santo 1 Palavras-chave: Autonomia; Dignidade; Direito; Igualdade. A sociedade está em constante transformação e, por conseguinte, multiplicam-se as preocupações relacionadas à evolução biotecnológica. Numa sociedade onde os pensamentos, os princípios e valores são sempre mutáveis, é difícil para o Direito acompanhar todas as inovações. Segundo Jürgen Habermas (2004), atualmente, o darwinismo social e a ideologia do livre comércio parecem se renovar com o neoliberalismo globalizado. Devido ao surgimento de novas tecnologias capazes de alterar a base biológica dos indivíduos, tem havido uma grande repercussão as questões ligadas à autonomia e disposição do próprio corpo. Geralmente, defende-se a eugenia positiva tendo como fundamento a autonomia, no entanto, como isso afetaria a nossa identidade como iguais - abalaria nossa ética da espécie? Nosso conceito de vida razoavelmente boa, concepção de bem de John Ralws (1996), é aceitável desde que não atinja a esfera de terceiros, logo, até que ponto essas modificações biológicas podem ser toleradas por um Estado liberal? 1 Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]. 127 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. As pesquisas com embriões e o DGPI (diagnóstico genético de préimplantação) são assuntos em destaque e demonstram como essas inovações podem acarretar em uma instrumentalização do ser humano. Afinal, a permissão da seletividade de indivíduos abala o Princípio da Igualdade, porque se permite uma escolha dos melhores e exclusão dos que consideramos inadequados socialmente. A manipulação de genes abarca questões relativas à identidade da espécie, porque abala a autocompreensão normativa do indivíduo como ser autônomo no meio social. Onde estariam enquadrados os deficientes? Não somente a mídia, mas também a medicina tem sua responsabilidade no que tange a criação dos feios e dos deficientes. É necessário se ater a essa seletividade que pode decorrer dessas modificações. Na sociedade capitalista são notáveis diversas desigualdades, até mesmo em países considerados desenvolvidos. Desse modo, os indivíduos que não possuírem recursos suficientes não terão acesso a essas tecnologias, o que poderá desencadear em um proletariado genético: “os filhos dos pobres”. O conceito de justiça distributiva ou social visa fazer com que todos tenham uma “vida boa”, respeitando a dignidade do ser humano, pois este constitui fim em si mesmo. Para Ronald Dworkin (2005), a permissão das técnicas eugênicas só abala a justiça distributiva porque a desigualdade já existe em nosso meio. Acredita que a justiça distributiva deveria redistribuir os recursos, equiparando os indivíduos sem os nivelar por baixo, impedindo que os mais favorecidos tenham acesso, pois permitindo que esses usufruam, as novas tecnologias trarão benefícios diretos ou indiretos aos demais cidadãos. Destarte, é necessário cuidado, pois a liberação de técnicas eugênicas, que serão acessíveis somente aos mais favorecidos economicamente, orientada apenas pelas regras no mercado, pode modificar o modo como entendemos a relação entre mérito e justiça distributiva. Eugenia consiste em uma ciência que estuda as condições mais propícias para a reprodução e o aprimoramento humano. A eugenia negativa se refere à lógica da cura de doenças e a positiva ou liberal é referente ao aperfeiçoamento humano. Já Platão (1996), na República, levou em consideração elementos de eugenia, quando afirmou que os seres humanos tinham origem distinta, e que esta deveria ser levada em conta para a organização da pólis. É possível afirmar que 128 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Hitler também utilizou das técnicas disponíveis para tratar da questão da eugenia. Desta forma, é perceptível que, tanto Hitler quanto Platão acreditavam na interconexão entre política e fundamentos biológicos do ser humano. Habermas também volta sua preocupação para esse aspecto, porque essas mudanças genéticas podem alterar nossa própria autocompreensão e também nossas relações políticas e sociais, fundamentadas na noção de iguais direitos. A ética é proposta como o estudo da vida correta, um modelo de vida a ser imitado (HABERMAS, 2004). Indisponibilidade da base biológica é segundo Habermas, um pressuposto necessário da autodeterminação e das relações igualitárias. O caráter irreversível das modificações genéticas em embriões, por exemplo, acarretaria na desigualdade das relações entre pais e filhos. Dworkin (2005) acredita que essas são questões que não devem ser resolvidas no âmbito da justiça, são valores independentes ou separados, não devendo o Estado intervir. Entretanto, o Estado intervém até mesmo em questões que não envolvem a vida de uma pessoa, como, por exemplo, maltratar animais; logo, o Estado também deve intervir para proteger o embrião ou os cidadãos mais carentes. A vida humana não pode ser considerada um bem como qualquer outro, a inserção da moral na ética da espécie torna consciente o valor da liberdade e igualdade. Alterações genéticas podem alterar o auto-entendimento do homem como eticamente livre e moralmente guiado por normas. Para Rawls (1996), se a questão da eugenia liberal não pode ser resolvida como uma questão de justiça deve ser deixada ao arbítrio de cada um, de tal forma que não haja corte entre eugenia terapêutica e de aperfeiçoamento. No entanto, para Habermas (2004), o Estado deve intervir, nem que seja em nome do pluralismo, pois as técnicas eugênicas são incompatíveis com o liberalismo, tocando nas relações de simetria e igualdade entre as pessoas. Dworkin (2005) é contrário à intervenção do Estado na relação entre os indivíduos, já para Habermas, a partir da democracia, acredita que a relação do indivíduo para com o Estado não possui privilégio frente à relação de indivíduos entre si. 129 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Kant teria convertido, através do imperativo categórico, o livre-arbítrio em autonomia. O poder de se auto-determinar é de suma importância e todo indivíduo deve ter sua autonomia assegurada pelo Estado, mas também necessita que essa seja regulada. Vale ressaltar que, a eugenia teve início nos Estados Unidos, mas se propagou com o nazismo. Logo, o Estado é de direito, mas também é e deve ser democrático. A atuação do Estado deve estar em consonância com o direito, com as leis, entretanto, isso não é o suficiente. A democracia abarca uma noção dos indivíduos como iguais e, as técnicas eugênicas que promoverem uma maior desigualdade entre os cidadãos devem ser analisadas mais a fundo. O Estado deve investir em métodos que melhorem a vida dos indivíduos, e deve monitorar o que está sendo feito e com que meios. A eugenia positiva se for monitorada apenas pelas regras do mercado ou do liberalismo, atingirá gravosamente a esfera de terceiros, abalando o conceito de igualdade, que já se encontra em descrédito na sociedade capitalista e neoliberal. O mínimo ético, que é composto pelos valores que julgamos essencial proteger, não pode ser esquecido no momento da utilização de técnicas eugênicas. Regular consiste em estabelecer uma moldura a partir da qual se pode lidar com informações praticas (Weinberger, 1991). As práticas eugênicas não devem simplesmente ser proibidas, pois podem trazer benefícios. No entanto, permitir uma eugenia liberal a priori, pode trazer consequências irreversíveis aos indivíduos que sofrerem a intervenção ainda na fase embrionária e também pode contribuir para o aumento da desigualdade entre os indivíduos, violando assim, respectivamente, a liberdade ética e a horizontalidade dos direitos fundamentais. Não basta deduzirmos que está técnica está em conformidade com o ideal de “vida razoavelmente boa” compartilhado intersubjetivamente. Há a necessidade de uma ampla discussão e uma averiguação de como essas práticas influiriam no contexto social, como incidiriam na vida dos indivíduos, nos pensamentos ideais e, ate mesmo, no reconhecimento como iguais. Não basta apenas sermos capazes de realizar tais técnicas, é necessário que elas sejam adequadas para não acarretarem em maiores preconceitos e desigualdade nas relações sociais. 130 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DWORKIN, R. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. Tradução Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. HABERMAS, J. O Futuro da Natureza Humana. A caminho de uma eugenia liberal? Tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004. HO. Mae-Wan. A morte do determinismo. Folha de São Paulo. Caderno Mais! São Paulo: 25/03/2001, p.16-18. PLATÃO. A república. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, 433a. RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996. WEINBERGER, Ota. Law, institution, and legal politics: fundamental problems of legal theory and social philosophy. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1991. 131 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. GUNTHER TEUBNER NO DESAFIO KELSENIANO DE CONCEITUAÇÃO DA JUSTIÇA Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes 1 Palavras-chave: Justiça; Teubner; Kelsen; Relativismo; Autopoiese. Este trabalho pretende relacionar a problemática sobre a conceituação da justiça, trazida por Kelsen em seu artigo “O que é a justiça?”, com a proposta conceitual exposta por Teubner no artigo “Self-subversive Justice: Contigency or Transcendence Formula of Law?”. Kelsen, no referido trabalho, denunciou todas as fórmulas de justiça já criadas como fórmulas vazias. Sua pretensão, entretanto, não foi reputá-las totalmente inúteis, pretendeu, apenas, evidenciar a estrutural impossibilidade delas cumprirem a missão a que se propuseram, a qual seria o estabelecimento de padrões racionais de normatização das ações humanas capazes de garantir o tão desejado bem comum. O esforço kelseniano se valeu primordialmente da lógica para demonstrar que as fórmulas mais conhecidas como o “dar a cada um o que é seu”, a regra de ouro kantiana ou os cálculos utilitários, não são capazes de resolver as questões controvertidas da justiça na prática. A resolução de tais 1 Graduando do 8º período da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Grupo de Pesquisa: Direito, Teoria da Argumentação e Inovações tecnológicas; liderado pelo Prof. Dr. Marcos Vinício Chein Feres. E-mail: [email protected]. 132 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito questões sempre acaba por depender de uma hierarquização de valores externa às fórmulas de justiça que acabam por determinar o resultado da aplicação da fórmula. Com isso, Kelsen desferiu um golpe às proposições conceituais de justiças universais capazes de garantir a felicidade dos povos, golpe este que não foi rebatido por quaisquer das recentes formulações neo-kantianas de justiça, como a de Rawls ou de Habermas. A impossibilidade da formulação de uma ideia de justiça capaz de garantir o bem comum aos homens tem sido desconsiderada por diversos autores que, ainda hoje, buscam na estrutura semântica da velha filosofia europeia a possibilidade de fundar uma justiça universal por meio dos conceitos de reciprocidade universal, consenso e racionalidade. Teubner, por sua vez, não ignora a problemática posta por Kelsen, mas acredita poder superá-la por meio de uma nova compreensão ontológica trazida pela Teoria dos Sistemas, a qual pretende denunciar a insuficiência da estrutura semântica da velha filosofia europeia para dar conta do mundo contemporâneo. Conceitos centrais como sujeito e objeto deveriam, no atual estágio estrutural de diferenciação funcional da sociedade, dar lugar à distinção entre sistema e ambiente, mudança que, por si só, já exige o repensamento da própria noção de realidade. Hoje a questão da justiça deveria deixar de buscar seus fundamentos nos antigos conceitos citados acima para estruturar-se pelos conceitos de assimetria, relação sistema-ambiente e alteridade não racional. Ao propor tais mudanças a Teoria dos Sistemas se inclui como teoria, ou seja, se reconhece como um elemento do sistema científico que se observa e observa seu ambiente. Isso significa o reconhecimento de sua posição social, fato que evidencia suas limitações, negando qualquer possibilidade de imposição de um sentido à toda realidade, restringindo-se apenas à estruturação conceitual autopoiética. Para começar, a justiça de Teubner pretende-se histórica, negando, portanto, quaisquer pretensões de universalidade temporal ou espacial. Caso se detivesse por aí não haveria acréscimo à construção kelseniana, entretanto a 133 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. intenção de Teubner não é afirmar o relativismo, mas sim apontar a conexão existente entre o direito e a forma de estruturação da sociedade contemporânea, que seria a diferenciação funcional autopoiética e não mais uma estruturação segmentária e estratificada. Na proposta histórica da Teoria dos Sistemas de base luhmanniana, adotada por Teubner, evolução social não significa progresso para melhor, apenas mudança. Dito isso, devemos notar a mudança histórica da estrutura de diferenciação dos subsistemas sociais ocorrida durante os séculos XVI e XVIII, na qual se passou de uma diferenciação estratificada para uma diferenciação funcional. Nesse modelo se nega a existência de uma sociedade pósmoderna, mas considera-se as teorias pós-modernas como as primeiras tentativas de descrição de uma modernidade mais madura. No que tange à justiça, a primeira consideração necessária é a de que a Teoria dos Sistemas não considera que a atual sociedade funcionalmente diferenciada seja mais ou menos justa que a antiga sociedade estratificada. Tal evolução social deve ser considerada para por em evidência a mudança de afinidade semântica da ideia de justiça, que numa sociedade estratificada estruturava-se sob os núcleos de justiça comutativa e distributiva, visando a igualdade dos segmentos e das hierarquias sociais. É sempre bom esclarecer que na Teoria dos Sistemas a referência a tais hierarquias sociais não dizem respeito aos sujeitos mas aos sistemas sociais diferenciados. Ao atingir a diferenciação funcional, ocorre o fim da hierarquia entre os sistemas, de forma que a justiça em um sistema jurídico autopoiético devesse passar a ser entendida como uma auto-descrição do direito que destrói seu próprio objetivo ao realizar-se na necessária formação de nova injustiça. Considerando-se a sociedade funcionalmente diferenciada, não há espaço para uma ideia de justiça fundada na reciprocidade, devendo tal conceito dar lugar à assimetria. Notando a fragmentaridade da sociedade hodierna, que se estrutura em diversas racionalidades binárias não hierarquizadas, deixa de ser plausível qualquer construção fundada na reciprocidade entre os seres humanos, da mesma maneira que é solapada a esperança de uma justiça unitária garantidora do ideal de boa sociedade. Aí se nega a justiça absoluta, chamada por Kelsen de belo sonho da humanidade, mas não para afirmar o subjetivismo da justiça, mas para considerá-la em cada uma das suas manifestações monocontextuais, ou seja, afirma-se a 134 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito existência de justiças estruturalmente distintas, diferenciando-se em moral, política, econômica, jurídica. Dessa forma, Teubner nega, devido à atual estruturação social, qualquer possibilidade de formulação de um meta-princípio de justiça capaz de unificar todos os demais, ou mesmo de estabelecer uma prevalência entre eles. Concentrando-se na justiça do direito, Teubner identifica sua dinamicidade fundada nos litígios concretos caso a caso e na produção social de normas. O abandono da insistência em consenso e universalismo surge com a visão da justiça como auto-observação do sistema jurídico, exercendo um autocontrole consciente da relação entre sistema e ambiente. Dessa forma, a justiça deixa de ser um princípio para ser uma auto-observação sistêmica geradora de distúrbios sociais por acrescer complexidade ininterruptamente. Teubner esclarece que tal concepção de justiça não deve ser vista com total ceticismo, como se fosse apenas um objeto formal em resposta às exigências de consistência conceitual. O ponto de maior relevância desta definição seria a localização da justiça jurídica exatamente nas fronteiras do direito, de forma que a invocação da justiça como fórmula de contingência modificadora da realidade jurídica tornaria evidente a relação do sistema com seu ambiente, relacionando consistência interna com demandas externas. Assim, a justiça redirecionaria a atenção do direito à sua adequação ao mundo fora dele, com isso a justiça seria uma auto-transcendência do direito. Teubner considera a conceituação desta auto-transcendência como o ponto mais difícil da construção da justiça, situando-se no problemático hiato entre estrutura e aplicação do direito. Nesse momento o autor relaciona as propostas de Luhmann, Derrida e Emmanuel Levinas para concluir que a justiça seria, em última instância, a própria tentativa de superar a ruptura entre imanência e transcendência, sendo um processo de transformação da injustiça dentro do direito. Com isso, Teubner chega a afirmar que a busca por justiça é a obstinação do direito – seu verdadeiro vício – que é, ao mesmo tempo, inventivo e destrutivo. 135 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Por meio de toda uma novidade semântica, Teubner vai além de Kelsen por relacionar a justiça jurídica à forma específica de diferenciação sistêmica da atualidade. Entretanto, de certa maneira, Teubner concretiza o objetivo kelseniano, que nos parece ser a não petrificação da justiça em fórmulas ahistóricas desconectadas da realidade social na qual se encontram. Com isso, por meio da proposta de uma semântica adequada à atualidade, parece ser possível relacionar de forma mais adequada a autonomia do direito, traduzida em sua autopoiese, com os desejos sociais, traduzidos na justiça como auto-observação jurídica em relação com seu ambiente, constituindo uma justiça como auto-subversão. 136 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito MORAL, DIREITO E EDUCAÇÃO EM KANT Vìtor Amaral Medrado 1 Palavras-chave: Kant; Direito; Moral; Educação; Liberdade. Apesar do conhecido esforço sistemático do filósofo de Königsberg, além de no Sobre a Pedagogia, Kant tratou do tema da educação em diversos livros. Na Antropologia em Sentido Pragmático, por exemplo, estabelece como característica da educação a moralização pela arte e pelas ciências (KANT, 1996a, p. 240-241). Outro exemplo é na Metafísica dos Costumes quando descreve a antropologia prática como desenvolvedora, difusora e fortalecedora dos princípios morais através da educação (KANT, 2003a, p. 59). Seja como for, o texto Sobre a Pedagogia, bem como, de resto, a universalidade da abordagem de Kant sobre a educação, parece revelar um papel essencial da educação na filosofia kantiana. Nesses termos, pode-se formular a seguinte pergunta: qual o lugar da educação no pensamento kantiano? A partir da 1 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 137 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. resposta desta pergunta, outra: como devemos proceder à educação? E por fim: qual o lugar do Direito na pedagogia kantiana? O itinerário deste trabalho, pois, será a da investigação crítica a respeito do lugar da educação na filosofia kantiana. Em um segundo momento, investigaremos como, então, deve ser o processo educacional. Por fim, pretendemos demonstrar e analisar criticamente o papel de destaque que o Direito possui neste processo. Alguns estudiosos, dentre eles, Kate A. Moran, vêem uma aparente contradição entre a filosofia moral kantiana e os seus estudos sobre a educação moral, já que, a princípio, a moral kantiana parece ser independente da sua pedagogia. Nesse sentido, o problema: como conciliar uma moral formalista e os estudos de cunho pedagógico? Kant procura na própria ideia de humanidade, enquanto comunidade ética, a saída para a aparente contradição. Nesse sentido, no mesmo texto expõe: Deve-se orientar o jovem à humanidade no trato com os outros, aos sentimentos cosmopolitas. Em nossa alma há qualquer coisa que chamamos de interesse: 1. Por nós próprios; 2. Por aqueles que conosco cresceram; e, por fim, 3. Pelo bem universal. É preciso fazer os jovens conhecerem esse interesse para que eles possam por ele se animar. Eles devem se alegrar pelo bem geral, mesmo que não seja vantajoso para a pátria, ou para si mesmos (KANT, 2002a, p. 8). A interpretação de Moran é que o objetivo maior, já presente na moral kantiana, de uma comunidade ética, segundo a fórmula do imperativo categórico do reino dos fins, resolve a aparente contradição, já que a educação moral concorre para o aperfeiçoamento moral da humanidade, concorrendo também, pois, para consecução do reino dos fins (MORAN, 2009, p. 482-483). É que as determinações do sujeito empírico atuam como obstáculos ao 2 pleno agir moral do sujeito transcendental . Em vista de superar essas dificuldades, 2 O imperativo categórico é possível porque diante da pressuposição da idéia da liberdade tomamos conhecimento que fazemos parte também de um mundo inteligível, possuindo, por isto, uma vontade que, sendo pura, pode ser lei para si mesma (razão prática), i.e, uma vontade autônoma. Todavia, a 138 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito é necessário que façamos uso de instrumentos capazes de, afastando as determinações maléficas do sujeito empírico, possamos a agir moralmente. Assim: Precisamos da antropologia prática para que sejamos capazes de acolher em nossa vontade, pela via da educação e do exercício, as leis morais em seus princípios e também assegurarmos sua eficácia, seja pelo aprendizado na nossa formação moral, seja pela força externa do direito (OLIVEIRA, 2006, p. 452). Como não existimos apenas enquanto sujeitos transcendentais, mas, ao contrário, somos falíveis, mas também passíveis também de aperfeiçoamento moral, é preciso cultivar o espírito através da educação, nos tornando mais aptos ao agir moral (OLIVEIRA, 2006, p. 447). O procedimento educacional em Kant se dá por meio de pares de estágios consecutivos: a educação negativa (recomendações e disciplina) e a educação positiva (civilização, cultivo e moralização). Em relação à educação negativa, para os objetivos deste trabalho, é apenas importante assinalar para o momento da educação negativa chamada disciplina. Ela está ancorada na lição de fazer a criança entender que não deve interferir na liberdade dos outros. Em uma palavra: trata-se de impedir o abuso da liberdade (MORAN, 2009, p. 477). Ultrapassada a fase da educação negativa, o educando está pronto para adentrar a fase da educação positiva. Esta envolve, de início, o cultivo através do ensino e/ou aprimoramento de habilidades intelectuais e físicas, mas principalmente da habilidade de compreensão, julgamento e razão (MORAN, 2009, p. 477). vontade possui também realidade sensível, logo, não necessariamente está em consonância com a lei moral, daí se explica a necessidade do imperativo categórico, que ordena o cumprimento do dever. Ver: KANT, 2002b, p. 84-87. 139 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. O come do processo educativo em Kant se dá na moralização. Nesta, o educando finalmente discute os problemas morais de forma específica. Todavia, é preciso que os estudantes tenham, primeiramente, uma base sólida de princípios morais. Assim, inicialmente ocorrerá um catecismo moral, i. e., o ensino de deveres básicos de virtude, e, posteriormente, será dado aos estudantes a oportunidade de problematizar a moral e dialogar sobre ela, através de exemplos históricos e casuísmo (MORAN, 2009, p. 477). Por todo exposto, pode-se concluir, juntamente James Scott Johnston, que o processo educacional tem por finalidade o ensino da própria autonomia ao educando. (JOHNSTON, 2007, p. 244). Atentando para o último momento da educação positiva, qual seja a moralização do educando, em especial no que concerne ao necessário ensino dos deveres básicos de virtude, i. e, o catecismo moral, o Direito possui grande relevância para o processo educativo kantiano. É que o Direito, na medida em que trabalha com casos em que se aborda a moralidade, ou justiça, de condutas, teria um papel exemplificador dos deveres de virtude. Aprendendo e seguindo às normas jurídicas, o educando teria uma boa amostra dos valares morais da sociedade que ele deverá internalizar. Nesse sentido, Kant lamenta o fato de que falta quase totalmente em nossas escolas uma coisa que, entretanto, seria muito útil para educar as crianças na honestidade, isto é, falta um catecismo do direito. Este deveria conter em versão popular de casos referentes à conduta que se há de manter na vida cotidiana e que implicariam naturalmente sempre a pergunta: isso é justo ou injusto? (KANT, 2002a, p. 91). A iniciação no Direito importaria a interiorização dos deveres de virtude necessários para se proceder à discussão e problematização da moral, último momento do processo de catecismo moral. Nesse sentido, o Direito, além de atuar como fator decisivo para a catequização moral. A sua falta em escolas, não poderia deixar de gerar um incômodo no filósofo de Königsberg. 140 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Na medida, ainda, que a educação tem por objetivo dar ao educando a maior liberdade possível, garantindo, ao mesmo tempo, que o seu uso não prejudique a igual liberdade de outros, o constrangimento jurídico (sanção jurídica), imposto ao educando para garantir a coexistência de liberdade iguais, consubstancia-se em verdadeiro instrumento de educação, para o fim de “ensinar a usar bem a liberdade” (KANT, 2002a, 33), para que o educando não dependa dos outros (autonomia) (KANT, 2002a, 34). Kant, mesmo sem adentrar no assunto, tem a expectativa de que o catecismo de Direito possa levar à assimilação dos Direito Humanos, qualificados como “a menina dos olhos de Deus sobre a Terra” (KANT, 2002a, p. 24). A educação jurídico-moral é, pois, para Kant, um dos meios mais eficazes para se promover o aprendizado dos deveres de virtude no seio da sociedade. Além disso, através de estudos de casos jurídicos populares, o educando poderá, finalmente, alcançar a capacidade de fundamentação de máximas-morais, podendo agir autonomamente. Em uma palavra: através do Direito, o indivíduo se torna livre, tanto no que tange ao resguardado da sua liberdade civil frente à possíveis abusos, como em relação à liberdade moral (transcendental), pela qual estará, então, preparado para agir moralmente, assim como realiza, ao mesmo tempo, a comunidade ética. Em meio ao grande número de estudos sobre Kant no Brasil e no exterior, talvez uma parte essencial da doutrina deste filósofo tenha sido, injustamente, pouco estudada. Trata-se da pedagogia kantiana, a qual, procuramos mostrar, é essencial para a compreensão da sua Ética, uma vez superada a aparente incompatibilidade entre elas. É que, levando em conta a ideia de um reino dos fins (da humanidade, enquanto comunidade Ética), é preciso integrar à Ética os meios, sem os quais, não poderemos atingir tal finalidade. 141 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Nesse diapasão, à formalidade e à consequente universalidade da Ética kantiana, faz-se necessário impor um elemento empírico, particular, fundamental para a efetividade da teoria. Trata-se das condições empírico-antropológicas necessárias para que o indivíduo possa agir moralmente. Ora, é por meio da educação ou, em Kant, educação moral, que o indivíduo vai adquirir a maior parte das condições empíricas necessárias ao agir por dever, já que é através da educação que o homem se torna capaz de ser livre. A educação moral, por sua vez, guarda íntima relação com o Direito. Em primeiro lugar o Direito está relacionado com a Disciplina, i.e., com a educação negativa. Nesse sentido, o Direito atua como limitador da liberdade externa do indivíduo (aspecto liberal). O Direito, todavia, possui um papel essencial no processo educativo na medida em que é um dos principais instrumentos para a consecução da educação positiva, pela interiorização de valores morais da sociedade, os quais, posteriormente, vão servir para a capacitação do indivíduo na formulação de máximas morais. Impossível, pois, a desvinculação da Ética e da pedagogia kantiana e, as duas, do Direito. Em Kant, o Direito, a Moral e a Educação estão igualmente e interdependentemente a serviço do aprimoramento moral da humanidade, enquanto comunidade ética, o que somente pode se dar, através da liberdade. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS 142 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito JOHNSTON, James Scott. Moral Law and Moral Education: Defending Kantian Autonomy. Journal of Philosophy of Education Society of Great Britain. Published by Blackwell Publishing, 9600 Garsington Road, Oxford OX4 2DQ, UK and 350 Main Street, Malden, MA 02148, USA, Vol. 41, p. 233-245, 2007. KANT, I. Anthopology from a pragmatic point of view. Tradução do alemão por Lyle Dowdell. Carbondale & Edwardsville, Southern Illinois University Press, 1996a. KANT, I. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003a. KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002b. KANT, I. Sobre a pedagogia. 3. ed. Piracicaba: UNIMEP, 2002a. MORAN, Kate A. Can Kant Have an Account of Moral Education? Journal of Philosophy of Education Society of Great Britain. Published by Blackwell Publishing, 9600 Garsington Road, Oxford OX4 2DQ, UK and 350 Main Street, Malden, MA 02148, USA, Vol. 43, p. 471-484, 2009. OLIVEIRA, Mário Nogueira de. Para inspirar confiança: considerações sobre a formação moral em Kant. Trans/Form/Ação [online]. Vol. 29, p. 69-77, 2006. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732006000100005. Acesso em 02 de outubro de 2011. 143 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. O CRIME DE ANAXÁGORAS E A GÊNESE DA IDÉIA DE LIMITE Loisima B. B. M. Schiess 1 Lossian B. B. Miranda 2 Palavras-chave: Impiedade; Aproximações sucessivas; Quadratura do círculo; Lei da inércia; Constitucionalismo discursivo. Recentemente encaminhamos ao XXV Congresso Mundial de Filosofia do Direito e Filosofia Social o artigo Physikalische und Mathematische Verbindungen Von Justiz Division, no qual propomos que o método matemático de exaustão tem orígem na prática forense. Para isto nos baseamos em analogia existente entre a técnica forense antifontiana da vizinhança enumerativa indutora de causalidade (aproximação sucessiva) e a conjectura de Antifonte acerca da quadratura do círculo. No presente trabalho nos concentramos nos motivos que levaram este logógrafo ateniense a propor esta quadratura, e os desdobramentos desta proposta. 1 2 AMB – Secretaria de Assuntos da Mulher Magistrada. E-mail: [email protected]. IFPI – Coordenação de Matemática, Piauí. E-mail: [email protected]. 144 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Neste artigo propomos que a conjectura de Antifonte sobre a quadratura do círculo se enquadra no plano de defesa da liberdade de expressão de Anaxágoras por ocasião do processo judicial que contra ele foi instalado por crime de impiedade. A partir de fontes históricas construímos um vínculo entre este processo judicial e o desenvolvimento da análise matemática, da mecânica clássica e do constitucionalismo discursivo de Robert Alexy. O presente trabalho reforça a tese unitarista acerca da identidade de Antifonte, bem como os vínculos filosóficos e históricos entre o direito e as ciências exatas. Em decorrência de questões políticas, objetivando atingir os partidários de Péricles e os seus principais colaboradores, entre os quais estava Anaxágoras, fonte primordial de suas idéias inovadoras, foi instituído um decreto estabelecendo acusação pública para as pessoas que fossem negligentes para com a religião e ensinassem novos ensinamentos sobre as “coisas do alto”. Tal era o caso de Anaxágoras, que ensinava que o sol era formado por metais incandescentes e a lua, uma pedra. Nas questões agrárias do antigo Egito teve-se a necessidade jurídica de se encontrar um quadrado equivalente (de igual área) a um retângulo previamente dado. Isto levou naturalmente ao problema teórico de se tentar achar a média geométrica de dois números previamente dados, conforme nos indica Aristóteles em De Anima. Relativamente a esta mesma questão, a quadratura do retângulo via régua e compasso, era conhecida pelos primeiros discípulos de Pitágoras. Anaxágoras (500-428 a.C.), citado por Plutarco em Sobre o Exílio, é tido como o primeiro pensador na Grécia ao qual se atribui a tentativa deliberada de efetuar a quadratura do círculo, via régua e compasso, assim procedendo durante um período em que esteve preso em Atenas por volta de 430 a.C. Quatro anos após, Antifonte de Atenas (480-411, Grécia) conjectura a quadratura do círculo ao mesmo tempo em que enuncia o método de exaustão. Tendo sido a prisão de Anaxágoras um fato político relevante, e sendo Antifonte o primeiro e o mais famoso logógrafo ateniense no período, numa população com 150 mil habitantes 145 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. não escravos e 35 mil cidadãos, muito provavelmente Antifonte interagiu com Anaxágoras por ocasião de sua prisão. A análise matemática se inicia com a conjectura de Antifonte, a qual faz referência à exaustão de qualquer quantidade de uma grandeza a partir de sucessivas retiradas de partes cujas quantidades não sejam menores que a metade da quantidade anterior restante da referida grandeza. Pela citação que faz Plutarco, talvez Anaxágoras possa ter chegado a este resultado. Porém nada restou de seus trabalhos a este respeito, além da vaga referência deste escritor grecoromano. Quanto às contribuições de Antifonte relativamente à sua proposta de quadratura do círculo, as principais informações vêem de Aristóteles e seus comentadores Simplício e Temístio. A análise dos discursos de Antifonte nos revela sempre a presença de um plano traçado e de argumentos fundamentados sobre a verossimilhança. Para ele, bem como para a tradição jurídica subseqüente, a verdade é algo de difícil acesso. Se for possível chegar-se a ela, deve-se fazer todo esforço possível. Se não, deve-se buscar o que for mais parecido com a verdade, o que mais se aproxime dela. Antifonte elabora seus argumentos persuasivos construindo uma seqüência de informações que vão, a cada etapa, se aproximando cada vez mais, por verossimilhança, daquilo que mais pareça com a verdade. Aristóteles percebeu claramente que a proposta de demonstração de Antifonte para a quadratura era diferente do pensamento geométrico. Inclusive a classificou de irrefutável para os padrões da época. Infelizmente o estagirita não desceu aos detalhes e às motivações que levaram Antifonte a propô-la. Não há evidências, da leitura do que restou sobre Antifonte, de que sua conjectura acerca da quadratura do círculo se refira exatamente a uma quadratura usando exclusivamente régua e compasso. O que efetivamente se conclui é que ele afirmava, partindo das aproximações indutoras de causalidade, que o círculo deveria ser uma figura geométrica para a qual deveria existir um quadrado cuja área fosse igual à área do círculo. O que ele realmente nos propõe é calcular a partir de aproximações sucessivas. 146 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito O que seria a atividade do geômetra, relativamente à quadratura do círculo, naquela época, senão a construção com régua e compasso? Se Aristóteles afirma que não é próprio do geômetra refutar a proposição de Antifonte, muito provavelmente é porque Aristóteles julgava que a proposta de Antifonte não era de quadratura via régua e compasso, mas de caráter mais genérico, não excluindo, inclusive, a possibilidade daquela construção. Se assim não foi, como justificar que vários matemáticos imediatamente posteriores a Antifonte, tais como Dinostratos, com a curva de Hípias, e o próprio Arquimedes com sua famosa espiral, propusessem quadraturas do círculo através de métodos alternativos? Fora da questão da quadratura do círculo, não se observa o nome Antifonte em textos matemáticos. O círculo, que usualmente simbolizava a lua e o sol, representava, entre os antigos gregos, a divindade. Por outro lado, o quatro, na mesma religião, representava o quadrado, o sólido e o mundo manifestado onde atuam nossos sentidos. Defendemos a opinião de que a proposta de quadratura do círculo feita inicialmente por Anaxágoras e prosseguida por Antifonte se enquadrava em seu plano de defesa judicial. A vida de Anaxágoras foi inteiramente voltada para o pensamento científico. Para ele o que mais interessava era a liberdade de poder ensinar aquilo que julgava ser verdadeiro. Se Anaxágoras e Antifonte provassem que o círculo e o quadrado eram equivalentes, pelo menos no plano do simbolismo grego, reduziriam a divindade ao mundo material. Vemos aí um plano de defesa da dignidade do professor Anaxágoras, feita por seu muito provável aluno Antifonte. Grande parte da matemática atual foi desenvolvida a partir das tentativas de se fazer a quadratura do círculo. Tal é o caso da análise matemática, que surge diretamente da conjectura de Antifonte, e da teoria dos números algébricos e transcendentes. Em física, o princípio da inércia de Aristóteles-Galileu, tal como elaborado por Galileu em Diálogo, segunda jornada, Opera, VII, pp. 171-174, segue a técnica da vizinhança enumerativa indutora de causalidade de Antifonte, visto que é um 147 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. resultado ideal não observável no mundo físico o qual é o limite de procedimentos fáticos observáveis. Também convém notarmos que este resultado de Galileu segue o procedimento básico da busca do ponto médio estabelecido em Ética a Nicômaco de Aristóteles, pois a lei da inércia surge como um ponto médio, entre uma infinidade de outras situações possíveis, a saber, uma infinidade contínua de possibilidades de a bola esférica subir a superfície polida inclinada em movimento retardado ou descer pela mesma em movimento acelerado. Para finalizar, notemos que o constitucionalismo discursivo de Robert Alexy se enquadra plenamente dentro do método antifontiano da vizinhança enumerativa indutora de causalidade, pois o discurso ideal é um limite de discursos reais, os quais podem aproximá-lo. Além do mais, os procedimentos de ponderação, mormente a fórmula peso, buscam pontos de equilíbrio entre as infinitas possibilidades arbitrárias possíveis, e tudo através de etapas sucessivas que vão se aproximando do resultado ideal exigido pela pretensão de correção. Uma das principais pretensões à correção, sob o ponto de vista “alexyano”, é o conhecimento da verdade. Cada sujeito possui o direito de conhecer a verdade, embora esta seja de modo absoluto inatingível. No entanto, cada um possui o direito de dela se aproximar tanto quanto possível, podendo fazer uso de todos os meios idôneos para isto. A quadratura do círculo proposta por Anaxágoras e Antifonte constituiu parte da tese de defesa da liberdade de expressão de Anaxágoras por ocasião de sua condenação pelo crime de impiedade. A técnica básica de persuasão de Antifonte era a aproximação por verossimilhança, a qual foi a mesma que ele usou para criar o método de exaustão na tentativa de fazer a quadratura do círculo e defender a memória de Anaxágoras. A lei da inércia, a teoria aristotélica da justiça e o constitucionalismo discursivo de Alexy são idéias que tomam por base o método antifontiano de vizinhança enumerativa indutora de causalidade. 148 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução Luís Afonso Heck. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. ANTIFONTE - Testemunhos, fragmentos, discursos. Edição bilíngue. Prefácio e tradução: Luís Felipe Bellintani Ribeiro. São Paulo: Edições Loyola, 2009. ARISTÓTELES. Moral a Nicómaco. Tradución de Patricio de Azcárate. Medina y Navarro, Editores. Calle del Rubio, núm. 25. (Imprenta de la Biblioteca de Instrucción y Recreo, Rubio 25, Madrid.) XXIV + 319 páginas, 1873. BECKMAN, Petr. Historia de (pi). Conforme disponibilizado no sítio eletrônico <http://books.google.es/books?id=t6W9ipT2ZGcC&printsec=frontcover&dq=histori a+de+pi#PPA42,M1>. Em 11.10.2011. CARVALHO, João Pitombeira de. 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O presente texto se insere no âmbito de projeto de pesquisa que tem como problemática central a possibilidade de aplicação da proposta de direito novo, lançada por Michel Foucault, pela via da singularidade universal talhada por Alain Badiou, como aporte a uma metodologia jurídica pluralista. Como ponto de partida, a constatação de Mônica Sette Lopes (2008, p. 33) acerca do quadro atual, em que se debate a Ciência do Direito, “de frustração: a insatisfação com a insuficiência de todo o abrangente quadro teórico para conter o conflito”. A escolha da concepção de singularidade universal de Badiou se sustenta no pressuposto de que ela possibilita o reposicionamento do Direito a partir desse quadro de frustração. 1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 151 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Percebe-se a pretensão de universalidade da Ciência do Direito: dizer de Todo o conflito, sob acabamento classificatório. A contenção teórica e legal do conflito se dá por um dizer. Porém, “Tudo não se diz” e, entre os sentidos trabalhados por Jean-Claude Milner (1987, p. 44) para entender essa afirmação, vem ao caso: “sempre faltam palavras para dizer alguma coisa, ou: existe o impossível a dizer”. No campo da psicanálise, Oswaldo França Neto (2009, p. 120/121) afirma que “a loucura, ao tentar absorver-se pelo Direito, coloca-o em situação delicada, de suspensão, em que sua ação exige reposicionamentos dificilmente universalizáveis”; e dá outros exemplos relativos aos impasses causados pela inscrição jurídica e social “dos loucos, dos menores infratores, dos imigrantes ilegais e de todos aqueles que colocam em xeque a universalidade instituída, o local por excelência onde novas subjetividades possam vir a ser pensadas”. Simone Goyard-Fabre (2002), em síntese crítica, por vezes ácida, reúne trabalhos que entende terem como denominador comum a mesma propensão reducionista, de desagregação e dissolução do direito. Esses trabalhos, a autora os distingue em três correntes: a) o materialismo, de inspiração marxista, em que inclui de Marx a Ernst Bloch, passando por Louis Althusser; b) o historicismo, de Edmund Burke a Friedrich Carl von Savigny; e c) o vitalismo antijurídico, de Nietzsche a Foucault. Da leitura de Goyard-Fabre (2002, p. 187), se pode extrair, por sua pertinência à questão de pesquisa, que nesses trabalhos, especialmente do vitalismo, não há somente uma “propensão reducionista” do direito, que seria identificável a partir de um não direito, mas, em especial, uma tomada de posição frente à crise do legalismo, da tirania do normativo e das “vertigens do universal”, dos quais resulta ofensa à espontaneidade e à singularidade. Extrai-se ainda uma recusa da “uniformidade identitária para valorizar a diferença” e da “homogeneização de tudo o que a vida pode apresentar de heterogêneo”. Lopes (2008) traz elementos para a análise do quadro (clínico?) de frustração jurídica apontado. Afirma a quimera do ideal de uma vida inteiramente 152 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito regulada, que supõe um sentido único para as regras estabelecidas pelo sistema parlamentarista; o que coloca a questão da ambigüidade das regras e das diferentes interpretações para um sistema complexo de regras gerais. Como questão interpretativa, eis o paradoxo: formulação de regras, a partir de uma “vocação aglutinadora das palavras”, que “deixasse a menor margem possível para a avaliação ponderadora do intérprete”, ao lado da necessidade de “deixar a textura aberta que permite a adaptação da regra à variedade das situações” (LOPES, 2008, p. 33). Esse paradoxo aponta para a frustração: a tentativa de recobrir o conflito com palavras não convive com a textura aberta às novas situações, com reforço da incerteza e da imprevisibilidade. A ciência gagueja. O conflito é objeto de disputa. Lopes (2008, p. 33) argumenta que se possam considerar os tribunais “lugar de definição dos riscos do conflito”. Os tribunais apontam uma predefinição, opções antecipadas e avaliação de comportamentos das partes. Segundo Galanter (1993, p. 73) “Os tribunais não produzem apenas decisões, emitem também mensagens”. Evidencia-se embate das partes com o tribunal pela configuração do conflito e decorrente reconhecimento de direitos. De outro lado, importante a sinalização da autora no sentido de colocar, com base em Andreas Auer, a idéia de legalidade em discussão. Com François Ost, Lopes (2008, p. 33) põe a “dificuldade de se analisar objetivamente ou de isolar as manifestações empíricas do fenômeno jurídico”. Ost afirma que a validade da norma resulta de critérios jurídicos formais e explícitos e ainda de uma inteligibilidade reconstruída pelo aplicador com referência a princípios e valores implícitos. A situação da Ciência do Direito impõe repensar o direito em novas bases. Uma proposta nessa direção é a lançada por Michel Foucault, em aula no Collège de France publicada no volume Em defesa da sociedade (1999), porém não levada a cabo por esse pensador francês. Foucault propõe um direito novo, ao mesmo tempo antidisciplinar e liberto do princípio da soberania. 153 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Com respeito à proposta de Foucault, João Chaves (2010, p. 60) identifica leituras otimistas e pessimistas. É possível identificar Chaves entre os pessimistas, ao concluir que, na obra de Foucault, “não há um destino coerente ou coordenadas minimamente precisas para uma teoria do direito” (CHAVES, 2010, p. 166). Como leitura otimista, Márcio Fonseca (2002, p. 247/248) entende que a idéia de direito novo assume conotação precisa e se refere a “práticas do direito que estariam mais próximas da afirmação da autonomia e da liberdade dos indivíduos”. A proposição por Foucault a que se pense um direito novo é questão que se mantém em aberto e com potencial para desdobramentos teóricos. Em especial, por ser desenvolvimento dos estudos das relações de poder e subjetividade, e por se direcionar à consideração de uma dimensão ética. Nesse bojo, o dispositivo da biopolítica é fundamental para se repensar o direito. Michel Foucault, em Microfísica do poder (2004), levanta a hipótese de que o capitalismo, em seu desenvolvimento na passagem do século XVIII para o XIX, promoveu a socialização do corpo enquanto força de produção, força de trabalho. Acrescenta que o controle sobre os indivíduos começa “no corpo, com o corpo”, que é “uma realidade bio-política” (FOUCAULT, 2004, p. 80). Por biopolítica, Foucault, em A vontade de saber (2006, p. 155), entende “o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana”. O poder sobre a vida é exercido sob duas formas: a anátomo-política do corpo humano no interior das práticas disciplinares, que asseguram a extorsão da força de trabalho, sua utilidade e docilidade; e via controles regulares numa biopolítica da população exercidos sobre o “corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (FOUCAULT, 2006, p. 152). É no trabalho de Giorgio Agamben que o conceito de biopolítica alcança contornos que interessam ao objeto da presente pesquisa, pela via do conceito de estado de exceção. Com base na leitura de Agamben, França Neto (2009b, p. 123) traz o exemplo da loucura. O ordenamento não localiza o manicômio senão 154 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito excluindo-o, porque o louco excede ao universal pretendido pela ordem – a loucura como resto inabsorvível –, no que se constitui como segregação do ilocalizável. Articulam-se, na última fase das elaborações de Michel Foucault os temas do direito novo, do governo e da resistência como atitude crítica, no eixo dos domínios do saber, do poder e da subjetividade. Alain Badiou propõe a ética de uma verdade: “o que dá consistência à presença de alguém na composição do sujeito que induz o processo dessa verdade” (BADIOU, 1995, p. 51). Nesse campo, a resistência, em Badiou (1995, p. 23), guarda relação àquilo “que não coincide com a identidade de vítima”. Passa ainda pela disputa do campo da ética, na tarefa filosófica de “arrebatar as palavras àquele que prostitui o seu uso” (BADIOU, 1995, p. 45). A constituição do sujeito político está hoje, na análise de Badiou (1999, p. 37), suspensa pelas potências cegas da economia, em razão da consequente supressão, por essas potências, da decisão política. Decorre indispensável perguntar pela possibilidade de direito sem que haja um sujeito político. É uma questão premente e que se coloca, ademais, diante da concepção de Badiou (1999a, p. 89) a respeito da justiça, a qual designa como “aquilo graças a que uma filosofia designa a verdade possível de uma política”. A verdade de uma política se funda sobre a igualdade subjetiva da capacidade de discernir o justo e o pensamento é a capacidade da verdade para o humano, para além da predicação identitária, de “estar a serviço de um valor universal” (BADIOU, 1999a, p. 90/91). O universal, para Badiou (2008, p. 41), é experimentável na trajetória singular do pensamento como disposição subjetiva. A singularidade universal se constitui pela subtração de toda descrição predicativa. Pela via subtrativa, não há negação da existência de identificações, mas o reconhecimento do seu caráter precário e a busca da garantia de existência de um sujeito. O universal se apresenta como singularidade subtraída aos predicados identitários, ainda que proceda neles e através deles. A pretensão singular ao universal pela oposição subtrativa às particularidades evidencia que o jogo dos predicados identitários, ou a lógica dos 155 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. saberes descritivos da particularidade, não permite prever ou pensar uma singularidade (BADIOU, 2008). A via subtrativa, afirma França Neto (2009b, p. 656) “não nega a existência de identificações”, reconhece-lhes o caráter precário e busca “garantir a existência de um sujeito”, e o universal estaria “no que, em diagonal, provocaria uma brecha”, “desfazendo a totalização da situação”. Um universal que se dá pela subtração aos predicados identitários impostos por uma pretensão de Tudo-dizer. Sob essa luz, cabe persistir na vinculação entre a política, a ética e o direito na formulação de uma metodologia inserta no pluralismo anti-legalista evidenciado pela teoria crítica. E seguir na resistência ao “monismo legislativo – ou absolutismo legalista” a que se refere António Hespanha (2007, p. 51). Hespanha (1998, p. 15) discorre que a história do direito, como saber formativo, tem como missão “problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo”. Como conseqüência da conceituação, estabelecida pela teoria política alemã, da soberania como “faculdade exclusiva de criar o direito” (HESPANHA, 2007, p. 46), a teoria do direito e o método de encontrá-lo e desenvolvê-lo foram colonizados por essa natureza normativa da soberania, pela qual a soberania do Estado se funda na unidade do direito e o direito fica reduzido à lei. Cuida-se de proceder a uma crítica à metodologia jurídica que se vislumbra na trilha da refutação do direito como um a priori, eis que, conforme Lucas Gontijo (2011, p. 118), “parte da experiência, não só porque cada caso é único, mas porque só se interpreta a partir da sua experimentação e não se interpreta senão frente a um caso específico”. A afirmação do singular implica atravessamento da particularidade. Decorre, potencializar o pluralismo metodológico proposto por António Hespanha com a ruptura levantada por Alain Badiou (2009, p. 90) com o legalismo estatal, cuja lei é “sempre predicativa, particular e parcial”, por entender que o estatal remete ao “que enumera, nomeia e controla as partes de uma situação”. 156 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Ao Direito, à Ciência do Direito propriamente, fica o desafio de romper a continuidade com as disciplinas derivadas da prática de controle que visa à representação do indivíduo nos grupos definidos pelo Estado. Como operar esse corte, se a própria legislação é instrumento para essa definição identificatória? Em primeiro lugar, ao seguir a linha antiestatalista e se subtraindo ao princípio da legalidade, ao expor seu caráter ideológico. Em seguida, assumindo o pluralismo metodológico potencializado em sua operação via singularidade universal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: Homo sacer, II, 1. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio). AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010 (Humanitas). BADIOU, Alain. Ética e política. In: GARCIA, Célio. Conferências de Alain Badiou no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 37-45. BADIOU, Alain. O que é pensar filosoficamente a política? In: GARCIA, Célio. Conferências de Alain Badiou no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 89-96. BADIOU, Alain. Oito teses sobre o Universal. Revista Ethica. 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Regras são normas jurídicas mais precisas com especificações claras da obrigação (e.g. a velocidade limite é 100km/h), enquanto que os parâmetros são normas vagas, abertas e mais intuitivas (e.g. dever de dirigir cuidadosamente). As experiências da Alemanha com uso da cláusula geral da boa-fé objetiva foram investigadas para compreensão das potenciais externalidades positivas e negativas na aplicação de normas abertas. Foi observado que o transplante legal de 1 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected]. 160 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito um instituto jurídico aplicado de modo eficiente no país inventor não garante o sucesso institucional no país que o importa. O contexto cultural (NORTH, 2005, p.36) e a disponibilidade de elevado capital humano especializado (SCHÄFER, 2006) influenciam na eficiente aplicação judicial das cláusulas gerais. Assim, a qualidade e a eficiência do ativismo judicial decorrente da aplicação de cláusulas gerais como a boa-fé objetiva é questionada no Brasil. SCHÄFER (2006, p. 119) teorizou a respeito da eficiência de parâmetros, normas jurídicas abertas, e regras, normas jurídicas específicas, em países pobres e ricos. A principal inquietação da pesquisa do referido autor foi a de que as cláusulas gerais e standards não funcionavam bem e/ou não eram efetivos em países subdesenvolvidos. Construiu, assim, uma correlação direta entre baixo capital humano nos países subdesenvolvidos e a deficiente aplicação de normas jurídicas mais vagas e abertas. Assim, a discussão envolvendo a função econômica das cláusulas gerais está inserida neste debate mais amplo sobre a eficiência entre normas jurídicas mais abertas e flexíveis e regras jurídicas mais precisas. Estudos ainda incipientes sobre a função econômica da boa-fé objetiva são frutíferos em fornecer insights sobre a eficiência da cláusula geral. Todavia, a maioria dos estudos de economia sobre a boa-fé nos contratos tem enfatizado, sobretudo, seus efeitos positivos, sem aprofundar os potenciais efeitos adversos de cláusulas gerais como a boa-fé objetiva. Segundo MACKAAY (2008, p.8), ainda é muito difícil encontrar estudos de análise econômica de cláusulas gerais como a boa-fé, pois a maioria explora o tema incidentalmente. Portanto, ainda é um tema em processo de teorização. Em termos gerais, o argumento econômico em favor das cláusulas gerais é de que normas mais vagas e abertas são mais eficientes do que normas mais precisas e específicas. Assim, cláusulas gerais como a boa-fé objetiva seriam capazes de reduzir os custos de transação, possibilitando as partes economizarem no momento de elaboração do contrato ao não terem de especificar todos os termos, alocando os riscos para o futuro. Neste caso, assume-se que os custos de 161 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. especificação na elaboração do contrato são muito altos e a probabilidade de ocorrência de contingência é baixa. Desse modo, um possível evento imprevisível que suscite uma revisão contratual é mais eficientemente resolvido se for possível ser aplicada uma cláusula geral aberta como a boa-fé objetiva. Diversamente, os argumentos econômicos contrários à boa-fé objetiva enfatizam a incerteza e a falta de clareza que pode ter lugar a partir da aplicação de cláusulas gerais abertas como a boa-fé. A cláusula geral é entendida como ineficiente na medida em que abre a porta para um ativismo judicial arbitrário, aumentando a insegurança jurídica. Previsões legais e contratuais menos claras e mais vagas desencorajam o investimento. Ademais, o perigo dos Tribunais realizarem uma aplicação equivocada de uma cláusula geral como a boa-fé objetiva multiplica os custos para a celebração de contratos futuros. Outro efeito pode ser percebido: normas abertas e cláusulas gerais podem induzir a uma maior informalidade que destrói o incentivo das partes em celebrar contratos em linguagem formal jurídica. Tradicionalmente, entendia-se que quanto mais as normas jurídicas fossem específicas, mais previsível seria o resultado. Todavia, a maior especificidade das regras cria também custos relacionados à alocação não eficiente, uma vez que regras não abarcam perfeitamente todas as circunstâncias da conduta sob regulação. Regras podem catalogar excessivamente circunstâncias não relevantes e não prever exatamente todas as circunstancias prováveis. Geram, portanto, problemas de super-inclusão e sub-inclusão (KAPLOW, 1992, p.586). Assim, regras podem produzir perdas sociais, considerando que previsões legais precisas ex ante não são capazes de se ajustar adequadamente a circunstâncias não previstas que só são conhecidas ex post. Soma-se, ainda, o problema de se criar normas jurídicas complexas e desnecessariamente detalhadas. Podem surgir normas contraditórias e antinomias. Nesse contexto, regras não necessariamente colaboram para um sistema jurídico mais claro e consistente. Há também custo adicional de as regras ficarem obsoletas com o tempo e estarem sujeitas à mudança. Quando os custos adicionais são muito altos, standards (parâmetros e normas mais abertas) são preferíveis. 162 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Por outro lado, há normas jurídicas que são intencionalmente elaboradas de forma mais vaga e aberta como um standard para tornar o processo de elaboração do direito mais eficiente, transferindo-o dos legisladores para os juízes. Temas que são muito controversos na arena política e que requerem uma custosa negociação podem ser regulados por standards por um menor preço. Os Tribunais, em tese, estariam melhores informados e especializados para julgar eficientemente a questão. O processo de aprendizagem descentralizada é percebido como vantajoso enquanto standards podem ser progressivamente especificados e concretizados ao longo do tempo. Todavia, o custo do processo de criação do precedente é extremamente elevado. Por esta razão, a opção por standards e normas mais vagas e abertas é recomendável em casos de heterogeneidade (ambigüidade relativa à conduta a ser regulada) e quando o ambiente é freqüentemente sujeito à mudança. Standards, todavia, demandam uma particularização e especificação judicial que pode conduzir à insegurança jurídica. Abrir a porta para especificação judicial significa também ter de considerar os custos do erro judicial. Normas jurídicas vagas e abertas representam um custo adicional no monitoramento e fiscalização das atividades dos Tribunais, uma vez que tornam o controle social contra a corrupção mais difícil; em oposição as regras que usualmente são apontadas como uma alternativa para coibir usurpação e equívocos judiciais (POSNER; EHRLICH, 1974, p. 266). Em resumo, regras aumentam os custos de elaboração da norma jurídica ex ante, minimizando os custos de aplicação judicial e administração da justiça ex post; enquanto os parâmetros – standards – economizam os custos de especificação ex ante, aumentando, no entanto, os custos de especificação da aplicação judicial que se dá ex post. Nesse sentido, a escolha eficiente entre regras e parâmetros envolve a escolha entre um sistema legal que privilegia legislador ou o juiz como produtor das normas jurídicas. A atividade de criação das normas jurídicas na esfera de competência do legislador (upper level) e a aplicação na esfera de competência do judiciário (lower level) depende da maturidade institucional do país envolvido. Como a performance institucional reflete competências individuais de legisladores, assessores jurídicos, advogados, juízes, a 163 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. existência de profissionais especializados é uma variável importante a ser analisada. A contribuição de SCHÄFER (2006, p.128) possibilitou o avanço do debate nos seguintes pontos: i. a eficiente distribuição do capital humano entre o setor que elabora regras (centralized upper-level) e o setor de interpretação e aplicação das normas vagas (descentralized lower-level) do sistema jurídico influencia na escolha ótima entre a vagueza e a precisão das normas jurídicas; ii. O processo de elaboração de regras, centralizado na atividade política do legislador, envolve a geração de um bem público; iii. Decisões tomadas no topo (upper-level) são menos flexíveis e se distanciam dos problemas; iv. O investimento de capital humano no topo (upper-level) é realizado para tornar as normas jurídicas mais precisas. Todos esses elementos em conjunto permitem concluir que, havendo um ambiente com vasta disponibilidade de capital humano altamente qualificado e especializado, a mudança do sistema baseado em regras para um baseado preferencialmente em standards e normas jurídicas mais vagas é eficiente e recomendável. Para SCHÄFER (2006, p. 133) um sistema baseado em standards é mais vantajoso em países industrializados e desenvolvidos, que podem se beneficiar da grande oferta de juízes altamente treinados para criar o direito a partir do caso. Ganham com o processo de aprendizagem que tem lugar com a atividade de interpretação e aplicação do direito realizada de forma descentralizada da base para o topo, aprimorando, assim, o sistema jurídico. Por outro lado, o elevado custo de aplicação e administração de cláusulas gerais em países em desenvolvimento, associada à existência de capital humano insuficiente para atender a demanda, é um problema que repercute na eficiência da prestação jurisdicional. A experiência verificada no Direito Europeu Continental com a introdução de cláusulas gerais como a boa-fé objetiva e a dignidade da pessoa humana são fundamentais para que se percebam os efeitos da inversão que vem acontecendo em países em desenvolvimento, como o Brasil. Enquanto que os Estados europeus privilegiaram uma aplicação criteriosa das cláusulas gerais, observando a eficiência e a repercussão social a longo prazo; o que se verificou no Brasil foi uma 164 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito banalização daquelas que foram chamadas para fundamentar (justificar) toda sorte de decisões. Isso acaba por transformar as cláusulas gerais num recurso estratégico e muitas vezes retórico que alimenta um ativismo judicial, cuja qualidade é questionável. Estados que já alcançaram um grau de maturidade elevado e vivenciaram historicamente experiências de transição, como o caso da Alemanha, podem hoje se beneficiar das externalidades positivas da aplicação das cláusulas gerais. O custo de administração e controle de um sistema jurídico baseado preferencialmente em standards é extremamente elevado. A introdução de standards demanda profissionais com formação altamente especializada, que não é satisfatória em países em desenvolvimento como o Brasil, cujos juízes lidam diariamente com uma quantidade enorme de processos, submetendo-se a metas de produtividade que não avaliam a eficiência de sua decisão, nem a sua repercussão no bem-estar social a longo prazo. Desse modo, escasso capital humano em um sistema jurídico que privilegie standards e cláusulas gerais é extremamente temerário. Ao invés de cláusulas gerais reduzirem os custos de transação, o efeito é o oposto. Na insuficiência ou deficiência de capital humano especializado, há o aumento exagerado dos custos de transação. O Brasil está inserido no contexto daqueles países que mantém uma ampla e custosa estrutura judiciária, mas que ainda não alcançou o nível adequado de capacidade institucional e qualificação especializada para aplicação de standards, como teorizado pela análise econômica. Esse estudo pretendeu, assim, lançar o novo olhar da análise econômica para um antigo problema – a ineficiente aplicação judicial das cláusulas gerais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 165 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. KAPLOW, Louis. Rules versus Standards: An Economics Analysis. Duke Law Journal, Vol.42,N. 3, Dec., 1992, pp. 557-629. MACKAAY, Ejan & LEBLANC, Viollete. 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Em A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental (2006), Edmund Husserl diagnostica a crise existencial e histórica das ciências européias, cindidas e incapazes de dialogar entre si, o que implicaria também uma crise da filosofia, incapaz de ser a metalinguagem destinada a nomear a totalidade, e assim dar unidade às ciências. Essas crises enunciam enfim, a própria crise da razão ocidental, que se assenta sobre o binômio ciência e filosofia. Em seu ensaio, Husserl salva ambas, apostando que a própria razão permite-nos aprender e explorar novos territórios imersos no mundo-da-vida e diversificar os temas e as abordagens existentes. 1 Faculdade de Direito da UFMG (mestrando). E-mail: [email protected] Faculdade de Direito da UFMG (mestranda). E-mail: [email protected] 3 Faculdade de Direito da UFMG (professora). E-mail: [email protected]. 2 167 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. O texto indicado pode ser visto como um dos marcos inaugurais do debate sobre o tema a partir do início do século XX e que reverbera em questões atuais. Assim, a nossa comunicação propõe-se ao resgate dessa discussão no âmbito da relação sempre dúbia entre filosofia política, filosofia do direito e ciência do Direito. Dúbia porque, em que pese a anunciada e repetida necessidade de se romperem as tradicionais fronteiras entre os saberes (SANTOS, 1987), a prática acadêmica de produzir ciência, e em especial a ciência jurídica, parece ter dificuldade em desenvolver pesquisas que efetivamente promovam diálogos entre disciplinas (NOBRE, 2003). Permeando essa dificuldade aparentemente técnica, gravitam questões 4 fortes particularmente difíceis de responder em tempos de tanta fluidez, velocidade e incertezas: o que é ciência, e em que medida ela se diferencia da filosofia? O que é ciência do Direito e o que a distingue da filosofia do Direito? E qual é o lugar da filosofia política na ciência jurídica? É preciso reconhecer, de início, a complexidade das questões e a dificuldade – ou impossibilidade – de oferecer respostas completas. Afinal de contas, estamos acostumados a oferecer soluções teóricas sempre parciais, coerentes com determinado ponto de vista, escola, referências bibliográficas, programa de pós-graduação... Ainda assim, cientes da incapacidade de oferecer uma solução final, nos contentamos em apresentar o próprio esforço de compreensão como produto. Segundo Horkheimer (1983), deve-se reconhecer que o sucesso da ciência positivista reside na adoção de estratégias descontextualizadas, pois, para que seja possível a observação científica, é preciso isolar o objeto de seu contexto único, com a finalidade de extrair seus elementos essenciais. Dessa forma, a ciência pôde se especializar e potencializar seus resultados, mas criou o seguinte paradoxo: na medida em que conhecemos mais de cada vez mais objetos, conhecemos menos a perspectiva integral em suas inter-relações. 4 Sobre a classificação de questões forte e de questões fracas na modernidade, indispensável a leitura de Santos, 2008. 168 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Como solução para esse problema, o filósofo da Escola de Frankfurt apresenta a necessidade de se recontextualizar a Filosofia – que também teria sofrido esse processo de especialização - para capacitá-la em sua tarefa de, a partir dos resultados das ciências particulares, estabelecer conexões interpretativas de uma perspectiva integral. Essa tarefa da filosofia, entretanto, deveria ser realizada a partir de modelos localizados e contextualizados, com base em diagnósticos específicos, sem recorrer a sistemas filosóficos abstratos que pretendam apresentar explicações últimas (Horkheimer, 1983a). Com base nesse quadro e a partir de um diálogo com Weber (1993) e Lukács (2003), Horkheimer confirma o “problema da jaula de ferro” e anuncia que, nesse processo de especialização, a política, originariamente orientada por valores, torna-se cada vez mais orientada com respeito a fins, com características mais burocráticas e tecnocratas. Por outro lado, a especialização da ciência em instituições (universidades, institutos, academias, etc.) também apresenta o esvaziamento do discurso valorativo das pesquisas. Diante desse problema, Horkheimer (1983) apresenta a necessidade de se reconhecer o caráter político da própria teoria, composta ao mesmo tempo de empirismo e idealidade. Sobretudo a filosofia deve ser compreendida como uma tomada de posição assumida diante dos dados e, nesse sentido, deve se aproximar da política para debater e anunciar o mundo que queremos. Portanto, quando a ciência elege um objeto de estudo, esse processo é permeado por valores. Quando uma determinada questão aparece como problemática, ela reflete os valores e interesses de uma determinada sociedade. Entretanto, os resultados das pesquisas científicas não devem ser axiologicamente orientados. Reconhecido o componente político de toda teoria, cabe ao cientista dar um passo atrás em seu objeto para verificar os valores que o elegeram como tal. Cabe, por sua vez, ao filósofo, dar dois ou três passos atrás para refletir não apenas sobre os valores que selecionaram determinado objeto, como também sobre o que fazer com os resultados apresentados. 169 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Na medida em que se compreende atualmente o direito como instrumento de integração social decorrente de um processo no qual legitimidade e legalidade se apresentam como as duas faces da mesma moeda (HABERMAS, 2003), afirma-se que além de a ciência do Direito, enquanto teoria, apresentar estruturalmente componentes políticos, seu objeto é também eminentemente político. Essa afirmação é ratificada e fortalecida pelo acoplamento estrutural promovido pela constituição entre os sistemas políticos e jurídicos, na medida em que o primeiro oferece validade ao segundo e por sua vez, o segundo oferece legitimidade ao primeiro (LUHMANN, 2002; CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2011). Nesse sentido, Marcos Nobre afirma que: o sentido último de uma norma jurídica é o resultado de uma disputa interpretativa cuja lógica é fundamentalmente política. Tanto no nível da regulamentação como no da aplicação, as normas ganham sempre um rumo interpretativo determinado e nunca definitivo. (NOBRE, 2008) Com Pierre Bordieu (2003), podemos agregar a essa reflexão o fato de que a filosofia do direito, filosofia política e ciência do direito encontram-se em campos que disputam o poder de nomear o mundo. Fazer a compreensão de cada um prevalecer, como “a” interpretação do objeto estudado não é apenas um problema epistemológico; é acima de tudo um problema político e social, que se reflete em uma disputa pela dominação da cultura. No caso do campo jurídico, manifesta-se, de forma típica, nas disputas entre os teóricos (professores universitário etc.s) e os práticos (advogados etc.) em torno da prerrogativa de “dizer o direito”. (BOURDIEU, 2003.) Como visto, enquanto teorias, essas três áreas de conhecimento apresentam componentes eminentemente políticos, fato que é potencializado na medida em que todas elas convergem seus focos de atenção a um objeto que agrega, a um só tempo, questões referentes ao poder e às normas jurídicas. Na disputa pela interpretação correta, a filosofia do direito, a filosofia política e a ciência jurídica correm o risco de, ao apagar outras possibilidades de olhares, perderem de vista elementos importantes para conhecer seu objeto e principalmente para tomar posições diante das questões que se apresentam. A 170 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito parcialidade das soluções teóricas oferecidas reflete a posição em que nos encontramos no interior do campo de produção do saber científico, caracterizado pela luta em torno do exercício do poder de nomear o mundo por meio de um trabalho classificatório. Ao questionar se ainda restam perguntas à filosofia do direito em um mundo globalizado, Agustín Squella (2005) afirma a necessidade da teoria se colocar a certa distância do fenômeno para que ela possa colaborar com a tarefa de oferecer respostas difíceis a questões difíceis. A partir do mesmo pressuposto, mas incluindo os argumentos expostos por Horkheimer, na espiral filosófica que pretendemos demonstrar aqui – contínuos afastamentos e questionamentos em relação à teoria e à prática -, vislumbra-se a necessidade de um posicionamento metodológico politicamente orientado. Dito de outro modo, assumindo a complexidade como marca da pós ou hiper-modernidade, e reconhecendo como valor a necessidade de inclusão de diversas perspectivas na construção do conhecimento e nos processos de tomadas de decisões, a adoção de posturas abertas, dialogais, inter e transdisciplinares aponta como comportamento positivo para lidar com a relação entre ciência jurídica, filosofia do direito e filosofia política. Uma última questão deve ser indicada: reconhecer o caráter político de toda teoria, seja ela científica ou filosófica, não é o mesmo que reduzir a política à teoria. Como alerta final, diante do desafio hoje de fazermos ciência e filosofia para uma “sociedade de risco”, é importante apontar a necessidade de agregar conhecimentos “profanos” e “a-científicos”, os conhecimentos plurais que são produzidos pelas ações sociais e políticas realizadas concretamente (REPOLÊS, 2006). 171 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; GOMES, David Francisco Lopes. A Constituição entre o Direito e a Política: novas contribuições para a teoria do poder constituinte e o problema da fundação moderna da legitimidade. In: Constitucionalismo e História do Direito. Belo Horizonte: Pergamum, 2011. CHAMON JUNIOR. Filosofia do Direito na Alta Modernidade: Incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005 HARBERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. 1, 2003 HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Em: HORKHEIMER, Max. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. HORKHEIMER. Filosofia e Teoria Crítica. In: BENJAMIN, Walter, HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor W., HABERMAS, Jürgen. Textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983a. p.155-161. (Os Pensadores) HUSSERL, Edmund. A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia. Centro de Filosofia / Universitas Olisiponensis, Phainomenon / Clássicos de Fenomenologia, Lisboa, 2006, pp. 119-152. Disponível em http://ensinarfilosofia.com.br/__pdfs/e_livors/32.pdf. Acesso em 02 nov. 2011. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México DF: Universidad Iberoamericana, 2002 172 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003. NOBRE, Marcos. 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São Paulo: Cultrix, 1993. 173 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. O NAVIO AFUNDADO E O SUBMARINO – A MEMÓRIA DO LEGADO JURÍDICO-POLÍTICO GRECO-ROMANO NA IGREJA MEDIEVAL Philippe Oliveira de Almeida 1 Palavras-chave: Filosofia da História do Direito; Idade Média; Recuperação do Direito Romano; Formação do pensamento jurídico ocidental. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche notabilizou-se por recorrer a metáforas escatológicas para refletir acerca da Vida do Espírito. O autor comparou a consciência ao estômago, organismo que incorpora e assimila a si a substância de outros, com o fito de conservar a vida. Nesse esquema, o esquecimento seria 2 equivalente à digestão – e a memória, à dispepsia . O sistema filosófico hegeliano apresenta-se como memória do Espírito no tempo; em contrapartida, o sistema filosófico nietzschiano se propõe ser, até certo ponto, ode ao esquecimento. À filosofia compete ruminar e absorver, no presente, o passado da cultura. Nietzsche trava uma luta estrênua com a história, e, ansiando por originalidade, tenta, em vão, libertar-se da influência de seus predecessores. Como sugere o crítico literário 1 Mestrando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. E-mail: [email protected]. 2 Termo médico que designa "dificuldade de digestão", popularmente conhecida como "indigestão". 174 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Harold Bloom, “Nietzsche enlouqueceu porque não conseguiu parar de estudar as nostalgias, mesmo quando clamava por inovação” (BLOOM, 2009, p. 248-249). Daí que, na obra do filósofo, o esquecimento e a memória configurem sintomas, respectivamente, da saúde e da enfermidade da consciência. A propósito, Nietzsche afirma: Esquecer não é uma simples vis inertiae [...], mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. [...] – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento! O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue “dar conta”... Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve prometer: não sendo um simples não-maispoder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade [...] (NIETZSCHE, 1998, p. 47-48). Para Nietzsche, o sentido histórico pode tornar-se nocivo à vida dos indivíduos e dos povos, pois, no entender do autor, todo agir requer esquecimento; devemos nos instalar, “sem vertigem e medo”, “no limiar do instante” (NIETZSCHE, 2003, p. 08-09). Somente como memória da vontade, isto é, como instrumento útil ao desenvolvimento de uma civilização, pode a cultura histórica ser preservada. Valendo-se do arsenal teórico de Nietzsche, o filósofo francês Rémi Brague defende a existência de dois modelos de apropriação cultural: a digestão e a 175 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. inclusão. A primeira representaria “o processo de apropriação no qual o objeto é tão profundamente interiorizado que perde sua dependência”, sendo suprimida “toda diferença entre o sujeito que se apropria e o objeto apropriado” (BRAGUE, 2010, p. 203). A segunda, em contrapartida, se constituiria em “uma apropriação em que aquilo que é apropriado é mantido em sua alteridade e cercado pelo próprio processo de apropriação, processo cuja própria presença reforça a alteridade daquilo que é apropriado” (BRAGUE, 2010, p. 203). Aqui residiria, para Brague, a diferença entre o Ocidente, marcado pela via da inclusão, e as demais civilizações, caracterizadas pela via da digestão. Segundo o autor, a Europa seria uma cultura excêntrica, isto é, cujo centro radica-se fora dela mesma, projetado na Antiguidade. Ruminante, incapaz de dissolver o passado no presente, a civilização ocidental se manteria permanentemente aberta ao saber dos antigos, dominada pelo problema da “consciência histórica”, da consciência da realidade como história. Daí que as revoluções, não raro, surjam ao homem ocidental como renascenças. “Triunfo da barbárie e da religião” – nesses termos o historiador inglês Edward Gibbon referiu-se à Idade Média. Media aetas, intermezzo entre a Civilização greco-romana e a Civilização tecnocientífica hodierna, o Medievo representaria uma ruptura face às luzes da Antiguidade. Nesse cenário, a Igreja teria atuado para que a fé se sobrepusesse à razão, o dogmatismo se impusesse ao pensamento sistemático autônomo. Contrariando tal leitura, dirá o historiador do Direito Michel Villey: “A despeito de nossos preconceitos, não há nada mais contrário ao dogmatismo que a inteligência medieval, respeitosa da transcendência, consciente da fragilidade de todas as opiniões humanas, dialética, disposta a acolher a contradição” (VILLEY, 2005, p. 127). Nessa esteira, Brague negará a tese da incompatibilidade entre a fé bíblico-cristã e a ciência greco-romana, e identificará, na Idade Média, a radicalização do modelo da inclusão: tomando emprestado elementos da cultura greco-latina, a Cristandade, capitaneada pela Igreja, reivindicaria, a todo momento, a herança do mundo antigo, sendo, dessa maneira, atravessada por uma série ininterrupta de renascenças. Na lição de Brague, “a Idade Média é uma época, talvez a única época da história, que jamais aceitou ser uma Idade Média. Sempre 176 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito quis ser um renascimento, desde o início. E nunca hesitou em ir buscar fora de si aquilo de que necessitava [...]” (BRAGUE, 2010, p. 64). Nesse sentido, o Ocidente latino teria, ao longo do Medievo, aprendido a aprimorar, desenvolver e prolongar informações culturais do passado, não pretendendo, entretanto, exauri-lo; jamais esquecendo a alteridade de suas fontes, volta incessantemente a elas. Como afirma o historiador Jacques Le Goff, a Idade Média é a “barqueira dos valores e das conquistas do passado na Europa” (LE GOFF, 2007, p. 21). Na preservação do legado da cultura antiga, a Igreja desempenhará papel determinante. É o cristianismo, como aponta Le Goff (2007, p. 26), o instrumento que possibilitará a fusão entre os germânicos e os latino-europeus. Diante das invasões bárbaras, a religião, na bela imagem proposta pelo escritor G. K. Chesterton, “transformou um navio afundado [qual seja, o Império Romano] em um submarino. [...] depois de ficarmos enterrados sob o entulho de dinastias e clãs [formas de organização política dos germânicos], nós nos levantamos e nos lembramos de Roma” (CHESTERTON , 2008, p. 242). “Antes do eclipse da cultura greco-latina [nos ensina Roberto S. Lopez], uma plêiade houve de pensadores originais que consorciou a nova religião e a filosofia” (LOPEZ , 1965, p. 38). Não houve uma supressão, mas, antes, uma suprassunção do cultura antiga pela fé bíblico-cristã. Na lição do helenista Werner Jaeger: “Desde luego, el proceso de cristianización del mundo de habla griega dentro del Império romano no fue de ningún modo unilateral, pues significo, a la vez, la helenización del cristianismo” (JAEGER, 1965, p. 12-13). Assim, tornaram-se indissociáveis os destinos da fé bíblica e do pensamento greco-romano. Reconhecendo-se como legatária do Império Romano, a Igreja trabalhou, não raro contra o sistema feudal, pela manutenção do saber – e do poder – da Antiguidade. É evidente que, ao revisitar o mundo antigo, a Igreja não pretendia arrastar consigo, inutilmente, as indigestas pedras do saber histórico – transformado em “ciência do vir-a-ser universal” (NIETZSCHE, 2003, §4). Ao contrário, procurava conhecimentos estrategicamente aplicáveis a seus problemas 177 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. mais imediatos – combates contra inimigos internos e externos. Para falarmos como Nietzsche, buscava ela uma memória da vontade. Natural, pois, que a tradição do pensamento jurídico-político do Império Romano tenha sido progressivamente resgatada pela religião – ou, mais precisamente, pelo Bispo de Roma. Com o fito de, por um lado, assegurar a unidade doutrinária e institucional do Catolicismo (contra inimigos internos), e, por outro, garantir a independência do “poder eterno” ante o “poder secular” (contra inimigos externos), a Igreja de Roma se espelhou na estrutura organizacional do Império. A invasão lombarda forçou o Bispo de Roma a tornar-se um soberano secular. Ademais, as reivindicações de autonomia das Igrejas de Jerusalém, Constantinopla, Antioquia e Alexandria face ao Trono de São Pedro levaram-no a recorrer a um discurso de legitimação que remetia à ordem jurídico-política da Antiguidade, visando a salvaguardar poderes jurisdicionais noutras dioceses. O Romano Pontífice fez-se, então, o principal herdeiro do Império Romano, e a Igreja, gradualmente, começou a organizar-se como uma monarquia papal centrada em Roma. Acerca do tema, ensina Lopez: A velha Roma, do Tibre, destronada pelos Bárbaros, desvalorizada pelos Bizantinos, abandonada pelos burgueses e pelos nobres, encontrou na sua miséria uma nova razão de grandeza. As bases da sua carreira medieval vieram-lhe do passado antigo. A doutrina da supremacia do Bispo de Roma sobre os colegas tinha se desenvolvido lentamente, no tempo em que a cidade era a capital dum imperador pagão; mais rápidos foram os seus progressos com os imperadores cristãos ali não residentes. Em 445, um dos últimos Augustos do Ocidente, Valentiniano III, ordena ao episcopado das suas províncias que aceite como lei “tudo quanto for sancionado pela autoridade da Sé apostólica”. Todavia, esta autoridade choca ainda com tenazes resistências interiores e exteriores (LOPEZ, 1965, p. 33). A aristocracia e o clero, instruídos no saber dos antigos, garantem a autoridade de uma nova elite cristã. O governo dos bispos irá, mesmo, reciclar a arquitetônica administrativa do mundo antigo, trabalhando pela coesão da Cristandade. Ensina Le Goff: 178 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito o Ocidente da Alta Idade Média é uniformizado por essa cristianização. Em primeiro lugar está o governo, em toda essa área, dos bispos cujo poder cresce, particularmente na administração das cidades, e entre os quais se distinguirá, a partir do século VII, um grupo mais importante de superiores chamados arcebispos. Com os bispos, o Ocidente cristão se divide em territórios que são, na essência, retomados das antigas divisões administrativas romanas. São as dioceses (LE GOFF, 2007, p. 40-41). 3 Abundante literatura moderna mostra que, em sua busca por legitimidade, o Bispo de Roma utilizou diversos documentos falsos – dentre os quais os mais conhecidos são os Decretos de Pseudo-Isidoro e a Doação de Constantino –, na tentativa de vindicar sua filiação ao Império. Como, certa feita, disse Nietzsche: “Quando não se tem um bom pai, é preciso inventar um”. Opondose à anarquia feudal, a Igreja, mais e mais burocratizada e uniformizada, muitas vezes ocultou, sob a bandeira do “retorno às origens”, o esforço de invenção de uma Antiguidade que viesse ao encontro de suas aspirações sociais. Porém, tais empreitadas não desprivilegiam o papado medieval; antes, acentuam a dimensão de politicidade que ele tentou conferir à “consciência histórica”. Enquanto dinastias e clãs marcavam seus domínios pela força das armas, a Igreja procurava fundamentar seu projeto de transformação do mundo temporal na lembrança do Direito Romano, abandonado quando o sistema coercitivo que subsidiava o Império desmoronou. Seja traduzindo, seja transcriando, no presente cristão, o pensamento jurídico-político dos pagãos, a Igreja não repudia, mas acolhe a razão greco-romana, em seu aspecto mais concreto: no âmbito da eticidade do Direito. Sobre as falsificações, poderíamos dizer, parafraseando La Rochefoucauld: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”. Após a “querela das investiduras”, a Igreja trabalhou para afirmar a potestas absoluta e a libertas Ecclesiae, implementando uma técnica jurídica marcada pela racionalização formal-normativa e estruturando uma ciência jurídica 3 Por todos, v. DÖLLINGER, Ignaz von. O papa e o concílio. Tradução de Rui Barbosa. São Paulo: Saraiva, 1930. 179 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. 4 apta a interpretar e comentar a técnica jurídica implantada . Como conseqüência desse empreendimento, a Baixa Idade Média assistiu ao renascimento do Direito Romano e da razão grega. Referido renascimento, porém, foi antecedido de um diálogo, jamais interrompido, entre as elites pensantes da Alta Idade Média e o saber dos antigos. A tradição judaico-cristã não derrotou o paganismo, mas se apropriou de estruturas da cultura greco-romana para satisfazer suas pretensões holísticas e sobreviver em uma Europa caracterizada pelas cisões decorrentes das migrações dos povos bárbaros. A progressiva transferência do poder legislativo no seio da Igreja, que passou dos concílios ao papa, demandou a inclusão de mecanismos do passado. Há uma dialética de continuidade-descontinuidade entre a Antiguidade e o Medievo, irredutível ao esquema ternário que representa o período medieval como Idade das Trevas, oco de onda entre duas cristas” (BRAGUE, 2010, p. 51). A demanda precede a oferta: o renascimento medieval do século XII e o renascimento humanista do século XIV não procurariam o modelo dos antigos, se já não o houvessem encontrado. O encontraram, dantes, no legado da Igreja medieval. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERMAN, Harold J. Direito e revolução: a formação da tradição jurídica ocidental. Tradução de Eduardo Takemi Kataoka. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. BLOOM, Harold. Onde encontrar a sabedoria? Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 4 Acerca do tema, recomendamos a leitura de BERMAN, Harold J. Direito e revolução: a formação da tradição jurídica ocidental. Tradução de Eduardo Takemi Kataoka. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. 180 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito BRAGUE, Rémi. Mediante a Idade Média – filosofias medievais na cristandade, no judaísmo e no islã. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2010. CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. DÖLLINGER, Ignaz von. O papa e o concílio. Tradução de Rui Barbosa. São Paulo: Saraiva, 1930. JAEGER, Werner. Cristianismo primitivo y paideia griega. Tradução de Elsa Cecilia Frost. México: Fondo de Cultura Económica, 1965. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2007. LOPEZ, Roberto S. Nascimento da Europa. Tradução de A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Edições Cosmos, 1965. NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, segunda dissertação. NIETZSCHE, Friedrich W. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 181 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. O PROBLEMA DO EXATO CONTEÚDO DA NORMA JURÍDICA NOS PENSAMENTOS DE TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. E HANS KELSEN André Almeida Villani 1 Palavras-chave: Norma jurídica; Linguagem; Hermenêutica jurídica; Ferraz Jr., Hans Kelsen. O debate a cerca do problema da norma jurídica enquanto conceito perdura há muito. Considerado por diversas correntes, em especial as positivistas, como objeto central do Direito, o conceito de norma jurídica tem em sua definição, identificação e aplicação alguns dos maiores problemas tanto da Filosofia do Direito, da Teoria Geral do Direito, quanto da própria Linguagem. Nesse sentido, o que pretende-se discutir neste trabalho é justamente a questão do que se constitui a norma jurídica e, principalmente, como tal conceito é operacionalizado, em especial no campo da Linguagem. Para tanto, há de se levantar, inicialmente, os marcos teóricos sob os quais está fundado este trabalho. Tais marcos são, basicamente, dois: o pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Jr. e a Teoria Pura de Hans Kelsen. 1 Faculdade de Direito da UFMG. [email protected] 182 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A dupla abstração para Ferraz Jr. O já clássico problema dos enfoques teóricos de Ferraz Jr. – o enfoque dogmático e o enfoque zetético – servirá de ponto de partida. Afirma o jusfilósofo que o problema da Ciência do Direito deriva justamente de seu objeto, o direito (conceito que engloba a ideia de norma jurídica), não ser um dado, mas um resultado, que deve, não só a sua existência, mas também sua própria realização, a uma prática interpretativa (FERRAZ JR., 2010, p. 16). A partir disso, de acordo com o autor, as diversas teorias do direito tentam explicar tal objeto de acordo com diferentes enfoques, genericamente classificados como dogmático e zetético. De maneira geral, há de se expor aqui ideias desse pensador relativas aos dois enfoques. Quanto ao primeiro, é de grande importância a própria função da norma jurídica. Segundo Ferraz Junior, o direito, enquanto dogmática, está diretamente ligado à possibilidade de sua operação, tendo em vista a decidibilidade de conflitos. A explicação de tal fato pode ser dada expondo-se a relação entre o jurista e o fato social, relação essa que ocorre de maneira essencialmente mediata. Por sua vez, essa mediação se dá sob a afirmativa de que o jurista só pode compreender o fato social por meio da norma jurídica, que atua como um critério comum, tido como um dado objetivo. Consiste tal ato num procedimento de incidência, aplicação do direito à realidade social. Contudo, encontra-se aqui o primeiro problema a ser enfrentado pelo jurista, o de identificação do direito a ser aplicado. Atua neste momento, então, o pensamento dogmático, na tentativa de identificar premissas com base no princípio da inegabilidade dos pontos de partida (FERRAZ JR., 2010, p. 67). Ora, tais premissas não podem ser outra coisa senão as próprias normas jurídicas. Tem-se, nesse procedimento de identificação, a primeira abstração. Já com relação ao enfoque zetético, há de se retratar aqui o problema da interpretação da norma jurídica. Ferraz Jr. parte da ideia de que as normas jurídicas utilizam-se de palavras, que são signos linguísticos. Dessa forma, para que se aplique a norma (após o primeiro processo de abstração), é necessário estabelecer 183 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. um sentido à mesma, que perpassa, justamente, pela interpretação desses signos. Este processo, por sua vez, ocorre de maneira complexa, dentro de um detalhado fenômeno comunicativo (que não necessita de ser, aqui, explicitado) e busca não um sentido verdadeiro da norma, mas, retomando o aspecto da decidiblidade para o qual se volta o direito, o sentido mais adequado, que melhor realiza o sentido axiológico do mesmo, no qual, segundo Ferraz Jr (2010, p. 222), está incluída, até, a noção de justiça. É esta, pois, a segunda abstração. Confirma-se assim, o problema inical da Ciência do Direito proposto por Ferraz Jr., no qual se comunicam zetética e dogmática, por meio de um processo de dupla-abstração referente à norma jurídica. Na análise feita pela Teoria Pura do Direito, acerca do estudo do seu objeto, observa-se que a norma jurídica é o elemento maior do direito: é somente por ela que tem a conduta humana relação com a Ciência jurídica. Tal fato se deve à própria natureza da norma, enquanto esquema de interpretação, como expões o pensador: “Norma” é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Neste ponto importa salientar que a norma, como sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui (KELSEN, 2009, p. 6). Partindo desse conceito, Kelsen delimita os sentidos em que uma conduta humana pode ser traduzida. Quando um indivíduo realiza um ato de vontade visando a conduta de outro, sempre haverá um “dever-ser” subjetivo relativo ao primeiro. Contudo, somente quando tal “dever-ser” tiver um sentido objetivo é que o mesmo será dotado de obrigatoriedade, não somente do ponto de vista daquele que realiza o ato de vontade, mas, inclusive, do de um terceiro desinteressado (KELSEN, 2009, p.8). Ora, somente uma norma pode estabelecer o sentido objetivo de um ato. A partir disso, pode-se dizer que o sentido objetivo de Kelsen, isto é, quando um ato de vontade é dotado de obrigatoriedade, devido à norma jurídica, 184 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito representa um primeiro processo de abstração no mesmo sentido em que a identificação do direito a ser aplicado o é para Tercio Sampaio Ferraz Jr.. Dando continuidade, passa-se agora à diferenciação de norma jurídica e proposição jurídica no pensamento de Hans Kelsen, o que será necessário para se estabelecer a segunda abstração no âmbito da Teoria Pura. Com a intenção de se fundar uma Ciência do Direito, Kelsen afirma que esta é responsável, unicamente, por descrever o direito, seu objeto. Levando em conta que o direito tem como elemento principal a norma jurídica, uma Ciência do Direito tem de realizar enunciados, até mesmo valorativos, a cerca desse elemento. Ora, da mesma forma que uma fórmula da Física referente ao ponto de ebulição da água não se confunde com a própria água, um enunciado ou proposição referente a uma norma jurídica também não podem ser confundidos com a própria norma. É nesse sentido que uma proposição jurídica, isto é, “juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem” (KELSEN, 2009, p. 80) não se confundem com as normas jurídicas, que, por sua vez, não são enunciados, mas mandamentos, imperativos. Tal qual afirma o autor em outra obra (KELSEN, 1986, p. 34): “(...) enunciado é o sentido de um ato de pensamento, e a norma, como foi observado, é o sntido de um ato de vontade intencionalmente dirigido a uma certa conduta humana.” Por isso, afirma Kelsen, uma norma não é verdadeira ou falsa, tal qual uma proposição, mas válida ou inválida. Através de tal diferenciação, afirma Kelsen que as normas podem ser expressas por meio da linguagem, de acordo com fórmulas (proposições), mas que essas não se confundem já que aquelas são, na verdade, puramente o sentido de um ato, não provido de verbalização. Há neste ponto a segunda abstração, isto é, a formulação verbal, feita através da linguagem daquele sentido (objetivo) dado pela norma jurídica a um ato da conduta humana. Por fim, tendo em vista os processos descritos de dupla abstração da norma jurídica no pensamento tanto de Tercio Sampaio Ferraz Jr. quanto de Hans 185 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Kelsen, a intenção deste trabalho é a de realizar uma comparação entre ambos e estabelecer a possibilidade de se chegar ao exato conteúdo da norma jurídica. Ao se comparar os processos de dupla-abstração anteriormente expostos chega-se a algumas conclusões. Com relação à primeira abstração pode-se dizer que, de certa forma, ambos os autores descrevem um mesmo processo, porém, de pontos de vista diferentes. Ferraz Jr., quanto a essa matéria, observa o direito pelo prisma do operador do direito, isto é, qual direito que deve ser aplicado a determinada conduta. Kelsen, por sua vez, o faz sob o o prisma da Ciência: é necessário identificar qual conduta humana pode ser colocada no âmbito do direito, isto é, aquela que pode ser traduzida num sentido objetivo dado por uma norma. Percebe-se, assim, que ambos os processos são processos de identificação. Quanto à segunda abstração parece, à primeira vista, que divergem os pensadores. Tercio afirma que as normas utilizam-se de palavras, ao passo que em Kelsen, as proposições jurídicas são as fórmulas da linguagem. Entretanto, afirmam ambos a mesma coisa: não há como se alcançar o exato conteúdo da norma jurídica. Para o primeiro, há de ser realizado um processo de interpretação, enquanto que para o segundo, a prórpia verbalização da norma já constitui coisa distinta dessa. Sendo esse um processo complexo, abstração da abstração (da conduta humana (ser) até um sentido ou uma interpretação normativa (dever-ser)) realizado, principalmente, por meio da linguagem, é possível inferir que não há como ter acesso direto à norma jurídica. Essa deverá sempre ser expressa por meio da língua, de tal forma que interpretações e problemas hermenêuticos sempre envolverão a definição deste conteúdo. Tal fato conduz a um outro problema, como, então, pode-se chegar à decisão de um conflito, sendo esse um dos maiores própositos do direito? Retornando à questão linguística, Ferraz Jr. afirma que o próprio conflito se dá numa situação comunicativa estruturada de acordo com as próprias normas (FERRAZ JR., 2011, p. 288). A decisão, portanto certamente envolve um processo hermeneutico, já que envolve linguagem. De acordo com Kelsen, tal processo é feito, ao se aplicar o direito, pelos órgãos competentes. Nesse, verifica-se nas relações entre as normas jurídicas do ordenamento (enquanto sistema dinâmico), 186 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito certa determinação do ato de aplicação do direito, que se dá pela hierarquização entre as normas, de modo que uma superior delimita uma inferior. Contudo, tal determinação nunca é completa (KELSEN, 2009, p. 388), de forma que a mesma forma uma moldura, dentro da qual deve-se fundamentar a interpretação dada. Ora, muito do que Kelsen se esforçou para realizar (delimitar o objeto da Ciência do Direito), no plano de aplicação da norma jurídica torna-se bastante amplo: dentro dessa moldura, qualquer interpretação é possível. Tem-se aí um novo problema. A partir disso, vê-se que contribuição do jusfilósofo brasileiro, neste ponto é bastante relevante. Para Ferraz Jr. o conflito jurídico é institucionalizado, o que lhe dá uma característica única e fundamental: a finitude. Essa, por sua vez, devese à noção de controle, poder. Nesse sentido, o discurso dogmático, baseado nos topoi, que não pode se desvincular da argmunetação e do uso racional da linguagem, voltado para a operacionalidade do direito e para o processo decisório, possui não somente uma função descritiva, como também, valorativa, que perpassa questões ideológicas, capazes de definir mais claramente o processo de interpretação. Sendo assim, a moldura kelseniana parece mais bem delitmitada, minimizando o problema da interpretação do conteúdo da norma jurídica. Por fim, deve-se lembrar que não há, neste trabalho, a pretensão de se resolver o problema exposto, mostrando um caminho para o que está contido na norma jurídica, bem como uma solução para o processo decisório, mas justamente apontar essas questões e esclarecê-las, expondo-as por meio de uma análise comparativa de teorias já consolidadas na doutrina jurídica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 187 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 6º ed, 2011. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 8º ed., 2009. KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. 188 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito ORDEM CONCRETA E DECISÃO A PARTIR DO PENSAMENTO DO NÓMOS EM CARL SCHMITT Gabriel Lago de Sousa Barroso 1 Palavras-chave: Filosofia do Direito; Filosofia do Estado; Ordem Concreta; Antítese phýsis-nómos. O trabalho tem por objeto analisar como o conceito grego de nómos é recepcionado na obra do jurista e filósofo político alemão Carl Schmitt (1888-1985), a partir de sua tentativa de fundamentação da ordem jurídica e axiológica por meio do conceito de ordem concreta. A investigação procura, com isso, unir coerentemente duas fases do pensamento de Carl Schmitt, a saber: i) a fase dedicada ao problema da soberania como decisão, expressa sobretudo na primeira versão do escrito Teologia Política (1922); ii) a fase de crítica parcial ao decisionismo, em que Schmitt procura fundamentar sua teoria a partir do conceito de ordem concreta, expressa no escrito Sobre os três modos de se pensar a ciência jurídica (1934). 1 Mestrando em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Email: [email protected]; [email protected]. 189 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. A hipótese do trabalho é que Carl Schmitt, no escrito de 1934, empreende a crítica parcial do decisionismo expresso em Teologia Política, pois reformula seu próprio conceito de decisão em conexão com o conceito de ordem concreta. A decisão aparece, então, não como uma creatio ex nihilo da ordem jurídica e axiológica, mas como o restabelecimento de uma ordem nomotética perdida em meio ao relativismo cultural de uma sociedade – a decisão que reafirma a ordem concreta. A reflexão de Schmitt se conecta aqui com sua recepção do conceito de nómos, na medida em que procura interpretá-lo para além da clássica antítese phýsis-nómos, buscando a essência originária do conceito, anterior à relativização imposta por essa oposição. O nómos aparece como as raízes culturais, coincidentes com a ordem concreta, a partir da qual é possível fundar, em um segundo momento, a ordem normativa. A instabilidade dessa ordem concreta é cancelada pela decisão, que restabelece a univocidade do nómos relativizado. Partindo dessa hipótese, o itinerário do trabalho se divide em três momentos: i) um breve incurso filológico sobre a evolução do conceito de nómos na cultura grega e sua ligação com a fundamentação da Ética (em sentido amplo) enquanto disciplina filosófica; ii) a interpretação do conceito de nómos por Schmitt e sua relação com o conceito de ordem concreta; iii) a reelaboração do conceito de decisão, segundo a teoria da ciência jurídica fundamentada na ordem concreta. A Ética enquanto disciplina do pensar filosófico emerge na Grécia antiga a partir da crise da pólis como substância ética imediata, e de seu surgimento como ciência resultam certamente problemas em dois campos diversos, antes consolidados em plena harmonia com as sociedades existentes: por um lado, tratase de um problema de prescrição, ou seja, de investigação da boa ação ou determinação de uma normatividade do agir; por outro lado, encontra-se o problema da Ética na sua fundamentação, a velada busca pela recuperação da unidade axiológica perdida, a partir de bases que se revelem suficientemente seguras para suportar a construção do homem em sociedade. Enquanto a prescrição era já parte constituinte do costume da sociedade grega arcaica, certamente a necessidade de fundamentação é uma preocupação típica de uma ciência do éthos, sem a qual não pode almejar qualquer aceitação (LIMA VAZ, 2004, p. 61-68). 190 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito A fundamentação se faz necessária a partir do momento em que valores constitutivos da pólis tradicional tornam-se problemáticos. É certo que o século V a.C. foi, para os gregos, repleto de profundos questionamentos morais, principalmente ligados aos conceitos fundamentais daquela sociedade – o bem, o justo, a virtude. O ápice desse movimento de desconstrução é atingido no século IV a.C., com o relativismo moral presente nas doutrinas sofistas. Há uma reviravolta no discurso sobre valores, de modo que entre os gregos passa-se a falar sobre aquilo que existe “por phýsis” em contraposição àquilo que “não existe por phýsis”, ou seja, que “existe por nómos” (GUTHRIE, 1995, p. 57). O nómos – a lei ou o costume – deixa de ter um conteúdo sagrado, unívoco, contrapondo-se à phýsis – a natureza ou a realidade. Assim é que, enquanto Hesíodo pôde falar de Zeus, como aquele que promulgou “uma lei para todos os homens” (PLATÃO, 2002, 322 d, p. 2 66-67), Górgias se refere já em uma lei da ocasião . O nómos adquire um conteúdo relativo, bem como a organização social sofre com as ausências de bases rígidas. A phýsis é vista como realidade, aquilo que sequer faz sentido querer demonstrar. Do jogo desses dois termos, ou da tentativa se fundar leis em bases correspondentes à realidade, seja qual for essa realidade, depreende-se uma linha-mestra para a compreensão da Ética na história da Filosofia. Este problema – a fundamentação do nómos – é encontrado também nas reflexões de Carl Schmitt, transvestido em sua crítica ao normativismo e na tentativa de fundar a ciência do direito em um pensamento que supere certas aporias do decisionismo, o que resultará, na obra de Schmitt, na fundamentação do direito em um pensamento da ordem concreta. A noção de ordem concreta (konkrete Ordnung) encontra-se exposta no escrito de Schmitt intitulado Sobre os três modos de se pensar a ciência jurídica. Schmitt procura diferenciar o pensamento do direito em três diferentes possibilidades: o direito como regra, modo que se identifica com o normativismo; 2 DIELS, Hermann; KRANZ, Walther. Die Fragmente der Vorsokratiker: Gorgias. Vol II. 10ª ed. Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1961, fr. 06. 191 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. como decisão, cuja expressão é o decisionismo; e, por fim, pensar o direito como ordem concreta, posição que Schmitt defende e apresenta como predominante na tradição alemã. Cada modo do pensar jurídico arroga para si a certeza de haver desvelado o sentido e a essência do direito. Para o pensamento de ordem concreta, a ordem ou o jurídico não é concebido como regra ou conjunto de regras, já que a regra é apenas o instrumento dessa ordem primordial, assumindo, é verdade, uma função reguladora, mas apenas restrita frente ao todo que constitui a ciência jurídica. O jurídico, em realidade, pressupõe uma ordem característica de cada povo, sobre a qual é baseada toda a regulação normativa. Mas em que consiste essa ordem concreta que antecede a regulação normativa? A análise feita por Carl Schmitt do fragmento do poeta grego Píndaro, o nómos basileús, indica um caminho para a determinação desse conceito. O fragmento foi recepcionado a partir de Heródoto e do Górgias de Platão, em trecho em que Cálicles empreende forte crítica a Sócrates. O fragmento diz: Rainha é a lei de tudo o que há no mundo: dos deuses, dos mortais. É ela que com seu pulso de ferro justifica os mais violentos atos (PLATÃO, 2002, 484 b, p. 183). Lei é a tradução para nómos, que reina sobre os mortais e imortais. Segundo Schmitt, o normativismo, revelando sua impessoalidade característica, interpreta a passagem de forma a concluir que só a lei deve governar, Lex como único Rex, em contraposição aos governos pautados por decisões pessoais, fundados no arbítrio da vontade individual. Schmitt interpreta de forma bem diferente o fragmento. Segundo ele, o vocábulo nómos não poderia ser interpretado aqui como norma ou regra, mas significa necessariamente direito, “o qual é tanto norma como decisão, como, 192 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito sobretudo, ordem”, já que “noções com as de rei, senhor, vigilante ou governor, mas também juiz e tribunal, nos transladam imediatamente às ordens institucionais concretas que não são meras regras.” (SCHMITT, 1996, p. 14). A interpretação tida por “normativista” evoca a prevalência da norma abstrata sobre a realidade, tornando-a imputável de forma a domá-la. No entanto, ainda que as normas procurem formar a realidade, não mantém uma conexão genética com ela. O direito como basileús não pode ser só um conjunto de regras, não pode resumir o Estado a uma mera função da norma. O normativismo, na verdade, não afirma a Lex como Rex, mas submete o Rex à lei, criando uma ordem normativa contra o governante. “A lei destrói, com esse ‘governo da lei’, a ordem concreta do rei ou do governante; os senhores da Lex suplantam o Rex” (SCHMITT, 1996, p. 15). Schmitt resolverá esse problema identificando o fundamento do direito em algo anterior à regulação abstrata. A ordem enquanto nómos basileús indica o conceito total de direito, o qual compreende uma ordem e comunidade concretas, certamente não definidas pela artificialidade da norma abstrata que pretende regular a realidade. A interpretação de Schmitt, em verdade, exclui a antítese phýsis-nómos e afirma, ao contrário, um nómos original, próximo da phýsis concreta. O nómos relativizado implica em sua artificialidade, pois parte do pressuposto de sua produção consciente pelo homem, como a norma abstrata em nosso sistema jurídico. Como Aristóteles refere-se ao dinheiro, que é produzido segundo o nómos, ou seja, por convenção (ARISTÓTELES, 1133a [30]), também a norma poderia ser produzida independentemente da realidade que procura regular. O nómos é aqui um Dever imposto, distante do Ser que o conforma. O pensamento de ordem concreta impõe, portanto, a exclusão de uma dualidade como ser e dever ser, mas também se refere a um nómos que deve ser considerado indistinto de uma phýsis contraposta. A ordem, em verdade, funda-se 193 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. na própria phýsis como realidade, que é o nómos de um povo considerado segundo sua tradição e existência. Em conformidade com a proposta de um pensamento de ordem concreta e o problema da fundamentação do nómos, Schmitt irá reformular a abrangência de seu conceito de decisão, como formulado anteriormente na Teologia Política. A decisão passa a se referir à ordem concreta, e, da força pessoal de decisão do soberano que em Hobbes criava ex nihilo essa ordem, Schmitt retira a possibilidade de sobrevivência do Estado pela reafirmação da ordem. Por esse motivo, a decisão deve ser compreendida, “desde o pensamento da ordem concreta, como consequência de uma ordem já dada, como restabelecimento e não como estabelecimento da ordem.” (SCHMITT, 1996, p. 30). A decisão, situada fora de uma “ordem jurídica”, surge dessa ordem e procura restabelecer seu domínio. A decisão repõe a normalidade. A norma é insuficiente, pois não engloba o conceito de exceção, e, assim, pressupõe a 3 normalidade, um “médium homogêneo”, para que possa ser efetiva . A decisão, no entanto, também pressupõe algo, isto é, pressupõe os fundamentos de uma vida concreta, mas vai muito além das limitações da norma jurídica, pois devido à pessoalidade que lhe é característica pode lidar com o descontrole da exceção, reestruturando, mediante um ato, a ordem perdida. Fica aqui mais que evidente as conexões com o pensamento de ordem concreta e com o problema da fundamentação do nómos. A “ordem” que permanece é aquilo que Schmitt chamaria, mais tarde, de ordem concreta. A ordem é o nómos, a partir do qual emana tanto a regra quanto a decisão. Este o significado real do nómos basileús. O direito ou a ordem concreta compõe tanto a norma quanto a decisão, mas a norma não pode jamais arrogar para si o título de verdadeira realidade, da mesma forma que a decisão não cria uma ordem ex nihilo, mas apenas reestrutura uma unidade perdida. 3 Ver: SCHMITT, Carl. Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. 8ª ed. Berlin: Duncker & Humblot, p. 19. 194 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1133a [30]. DIELS, Hermann; KRANZ, Walther. Die Fragmente der Vorsokratiker: Gorgias. Vol II. 10ª ed. Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1961. GUTHRIE, W. K. C. Os Sofistas. São Paulo: Paulus, 1995. LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. 4ª ed. São Paulo: Loyola, 2004. PLATÃO. Diálogos. Protágoras, Górgias, Fedão. Trad. Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2002. PLATÃO. Protágoras. Trad. Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2002. SCHMITT, Carl. Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. 8ª ed. Berlin: Duncker & Humblot. SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica. Trad. Montserrat Herrero. Madrid: Tecnos, 1996. 195 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. O VALER E O SABER DA JUSTIÇA E DA VERDADE NO DIREITO Arnaldo Afonso Barbosa 4 Palavras-chave: Justiça; Verdade; Direito Objetivo; Direito-ciência. Intriga-me primeiramente a desproporção dos intensos cuidados dispensados à justiça do direito objetivo em relação à justiça do Direito-ciência. Quanto à justiça do direito objetivo, pode-se dizer que tem sido o tema mais recorrente da literatura jurídica em matéria filosófica, seja para afirmá-la como elemento interno, estruturante, do direito objetivo, no âmbito de uma Ontologia Jurídica, seja para afirmá-la como elemento externo do direito objetivo, de caráter político, norteador do direito objetivo, no âmbito de uma Axiologia Jurídica. Em ambos os casos, ou o direito objetivo como ente de justiça ou o direito objetivo como função da justiça. Quanto à justiça do Direito-ciência, grassa um profundo silêncio, certamente devido à convicção de que a justiça só se predica dos atos da vontade e 4 Faculdade de Direito [email protected]. da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: 196 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito não dos atos da inteligência. Não cabendo, pois, predicar a justiça da ciência, não caberia predicá-la à Ciência do Direito. Em outras palavras, não havendo ciência justa ou injusta, não haveria Ciência do Direito justa ou injusta. No que tange à verdade no direito, intriga-me o negligenciado estudo da verdade tanto no âmbito do direito objetivo quanto no âmbito do Direito-ciência, negligência muito mais sentida naquele âmbito do que no âmbito do Direitociência. Inquietante, ademais, a desproporção, em desfavor do estudo da verdade no âmbito do direito objetivo, em relação aos estudos que se realizam no âmbito do Direito-ciência, ainda que mesmo nesse âmbito haja quem lhe negue qualquer pertinência. Por outro lado, grassa a convicção de que seria um nonsense falar-se num “direito verdadeiro”. O que melhor lhe corresponderia à noção intencional, é a de direito vigente, enquanto expressão da existência do direito objetivo, ou modo próprio do existir do direito objetivo, ou do direito válido, seja formalmente, seja materialmente, seja socialmente válido. Direito objetivo verdadeiro no sentido de vigente ou válido, pois. A vigência ou a validade, modo de existir do direito objetivo, vê-se, não se exaure nos aspectos formais de sua elaboração ou nos aspectos sociais de sua observância e aplicação. Garcia Maynez alude à validade material do direito objetivo, fazendo-a corresponder à conformidade de seu conteúdo com os ditames dos valores positivos em função dos quais as consequências jurídicas são imputadas normativamente aos fatos jurídicos. Nesse ponto transparece a ligação de interdependência entre a verdade jurídica e a justiça jurídica, ou seja, entre o direito verdadeiro e o direito justo. Direito de verdade (verum) é direito justo (bonum), e direito justo (bonum) só pode ser o direito verdadeiro (verum), pois do jus falsum nada se pode predicar enquanto direito, pois direito não é, nem, pois, a justiça (bonum). 197 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Todas essas inquietações se entrosam e culminam em uma superior indagação: seria admissível uma justiça do direito objetivo ou do Direito-ciência sem uma concomitante verdade do direito objetivo ou verdade do Direito-ciência? Ou seja, uma justiça jurídica sem uma verdade jurídica? No exato ponto da resposta a essa superior indagação reside o sentido desta comunicação que nada mais representa, para mim, do que um ponto de parada para refletir, agora com a ajuda dos filósofos desta Jornada, sobre a busca de uma concepção que tenho esboçado em minhas aulas, concernente à íntima relação de interdependência existente entre os valores da justiça e da verdade no direito. Entendo que o valor jurídico da justiça está condicionado pelo valor jurídico da verdade, pois um juízo de justiça que tem como assento um juízo de falsidade, não pode ser senão um juízo de falsa justiça, ou seja, um juízo de injustiça. Entendo também que, embora interdependentes, o valor condicionado da justiça jurídica é superior em amplitude ao valor condicionante da verdade jurídica, uma vez que a justiça implica não só a consciência da verdade, mas, sobretudo, a ação conforme a verdade, sendo que o valor da verdade implica, antes, a consciência da verdade. Dada uma tal interdependência, não me parece compreensível e justificável a razão pela qual tanto se fala em justiça do direito objetivo e tão pouco se fala em verdade do direito objetivo; praticamente nada se fala em justiça do Direito-ciência e, quando algo se fala, tão pouco também se fala em verdade do Direito-ciência e, quando tão pouco se fala, algumas vezes, como já observado, é para negá-la no âmbito dessa ciência. Sobre a interdependência primária do valer e do saber dos valores jurídicos da justiça e da verdade, inicio com a proposição de costumeira lembrança, de que tanto a justiça quanto a verdade são valores jurídicos como, destarte, também o são muitos outros valores. 198 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Trata-se em geral da justiça jurídica como se fosse um valor predicável propriamente do direito objetivo, enquanto que a verdade, um valor predicável propriamente do Direito-ciência. A justiça do direito objetivo é entregue assim à 5 Ontologia Jurídica, não cuidando ela da verdade do direito objetivo. E da verdade do Direito-ciência, cuida a Epistemologia Jurídica, não cuidando ela da verdade do direito objetivo. Não me parece ir nisto uma simples distinção. Parece-me que é feita aí uma separação entre essas disciplinas do conhecimento filosófico em razão de se fazer uma separação, não só uma distinção, entre os valores da justiça e da verdade jurídicas, fazendo-se esta anterior separação em razão de se fazer também, em última análise, uma separação entre o ser (valer) e o saber dos valores. Perceptível separação, uma vez que, como já observado, a Ontologia Jurídica cuida intensamente da justiça do direito objetivo e nem tanto ou nunca, talvez, da verdade do direito objetivo e, por sua vez, a Epistemologia Jurídica cuida da verdade do Direito-ciência, negligenciando a verdade do direito objetivo. Ao invés de simplesmente distinguir para não confundir e melhor compreender o foco tanto da Ontologia Jurídica quanto da Epistemologia Jurídica, o que se nota pela rama dessa separação, tendo em vista o trato da mesma pelas correspondentes e referidas disciplinas, é que de uma convencida separação se trata. Finalmente, distinta é a questão da “verdade no Direito-ciência”, a qual se refere não mais à ciência verdadeira e justa, mas à função da verdade no Direitociência ou ao trato que a Ciência do Direito dispensa ao valor da verdade. 5 Assumido o conceito segundo a qual o valor é um dos elementos essenciais do direito, como, por exemplo, da concepção das teorias tridimensionais do direito. 199 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. 6 7 8 Desde Jesus, Platão, Aristóteles , os filósofos se perguntam incansavelmente sobre a verdade, sedentos de um maior e melhor saber sobre sua natureza, possibilidade e importância em todos os campos do saber. Mas os filósofos do direito, o que nos têm revelado sobre a função e a importância da verdade no campo do Direito-ciência? Podemos elencar diversas respostas, mas me permito explorar apenas uma: a que encontra fundamentação na visão de um ilustre jurista, presença marcante e enriquecedora nesse evento, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., de que a moderna Ciência Dogmática do Direito não lida com a verdade. Vejamos o que diz esse jurista: Partindo do conceito de que a investigação científica “sempre faz frente ao problema da verdade” (FERRAZ JR., 2008, p. 63), ou seja, da pressuposição máxima das ciências, sejam quais forem, e sejam quais forem os seus objetos, que é a da alternativa “falsa ou verdadeira”, (FERRAZ JR., 2008, p. 63) diz o jurista que o fenômeno da positivação cortou a possibilidade de a ciência do direito trabalhar com enunciados científicos, ou seja, que aspiram a verdade, descritivos da realidade e transmissores de uma informação precisa sobre a realidade. Assim, Essa situação modifica o status científico da Ciência do Direito, que deixa de se preocupar com a determinação daquilo que materialmente sempre foi direito, com o fito de descrever aquilo que, então, pode ser direito (relação causal), para ocupar-se com a oportunidade de ditas decisões, tendo em vista aquilo que deve ser direito (relação de imputação). Neste sentido, seu problema não é propriamente uma questão de verdade, mas de decidibilidade (FERRAZ JR., 2008, p. 63.64). 6 “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida...” (João, 14:6). “Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que as diz como não são." (Crtas.,385b;v.Sof.,262 e; Fil.,37c). 8 "Negar aquilo que é, e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade." (Met.,IV,7,1011b 26 e segs.;v.V,29.1024b 25). 7 200 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Coerentemente, relata o jurista, os enunciados da Ciência do Direito são de caráter persuasivo, assumindo a forma de orientações, recomendações e exortações, (FERRAZ JR., 2008, p. 59-60), não sendo, por isto, verificáveis e refutáveis, como são os enunciados das teorias científicas (FERRAZ JR., 2008, p. 64). Enfim, diferentemente das ciências que têm à frente, sempre, o “problema da verdade”, (FERRAZ JR., 2008, p. 63) o problema da Ciência do Direito é outro, “não é propriamente uma questão de verdade, mas de decidibilidade” (FERRAZ JR., 2008, p. 64) Enfim, assim sendo, a chamada Ciência do Direito cumpre, de fato, “as funções típicas de uma tecnologia” (FERRAZ JR., 2008, p. 60). Se assim for, resta cabalmente explicada a indiferença da Filosofia do Direito pelo valor da verdade no Direito-ciência e, coerentemente, no próprio direito objetivo. Se o problema do Direito-ciência é um problema antes ligado à razão da vontade (decidibilidade), pertinente à Ética, pois, do que à razão da inteligência (verdade), pertinente à ciência, pois, inútil perquirir sobre esta, e importante perquirir sobre aquela; inútil perquirir sobre a verdade e importante perquirir sobre a justiça independentemente da verdade. Estão aí, levados às últimas consequências, na análise fria e terrível de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., os resultados da continuada indiferença da Filosofia do Direito pela verdade no Direito-ciência: a negação da própria Ciência do Direito e a redução do saber jurídico a uma Tecnologia Jurídica, em que o problema central não é mais a realização do valor de justiça ancorado no valor da verdade, mas simplesmente a decidibilidade de conflitos. Cansados do discurso filosófico da justiça desacompanhado do discurso filosófico da verdade, ou seja, do discurso abstrato, sem pé na realidade do mundo e da vida, já que a verdade é a única via de acesso racional à realidade, os cientistas do direito desligaram-se de ambas. Inventaram um tipo de saber de status diverso do “status científico da Ciência do Direito” (FERRAZ JR., 2008, p. 89) Inventaram uma Dogmática Jurídica cujos enunciados têm sua validade ancorada tão somente na relevância prática, (FERRAZ JR., 2008, p. 90) formulando-se em função de 201 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. corroborar a previsão de que “uma problemática social determinada seja solucionável sem exceções perturbadoras” (FERRAZ JR., 2008, p. 89). Adeus, pois, ao valer e ao saber da justiça e da verdade no direito. Adeus... à humanidade. Termino essas reflexões, em sua grande parte bem verdes ainda reflexões, para dizer aos filósofos dessa Jornada, que continuo acreditando que fora da realidade não há saída para a Humanidade. Que a única via de acesso racional à realidade é a verdade. Que a verdade, no que concerne ao direito e ao Direitociência, é função da justiça. Que há uma Ciência do Direito a construir com base na verdade e em função da justiça, e que há uma Tecnologia do Direito a construir com base nessa Ciência do Direito, e não independentemente dela, o que seria a nossa ruína. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 6ª. ed. rev. amp. Atlas: São Paulo, 2008. 202 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito PASSAGEM DO ESTÉTICO E PASSAGEM DO JURÍDICO EM CONTEXTO DE CAOS: OU DO EXPRESSAR DA ARTE E DO DIREITO NO LIMIAR DO SÉCULO XX Thiago Álvares Feital Victor Hugo Criscuolo Boson 9 10 Palavras-chave: Arte; Direito; Pós-guerra; Racionalidade. Pretende-se discorrer acerca da revisão da criteriologia do justo e do belo ante a crise mundial do início do século XX, que acabou por inaugurar, no caso da arte, ou retomar, no caso do direito, concepções que representaram a emergência de novas mentalidades. A tais fenômenos denominamos passagem do estético e passagem do jurídico. Já no mundo grego Aristóteles havia lançado a idéia de que a poesia, a pintura e a escultura constituíam artes miméticas, orientadas para a tentativa de imitação da natureza. Em Aristóteles a mimese enquanto tentativa de reprodução 9 Graduando em Direito pela UFMG. E-mail: [email protected]. Graduando em Direito pela UFMG. E-mail: [email protected]. 10 203 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. do real, reprodução que carrega a capacidade de criação, não o faz passivamente, num imitar apático dos fenômenos, mas acrescenta uma nova dimensão, transfigurando a realidade representada na realidade da obra. Com isso, a Antiguidade aporta o conceito de simulação: a obra perfeita é aquela capaz de dissimular a sua condição de objeto de arte, capaz de fazer o espectador tomar a aparência pela realidade. É, ela mesma, um aparente que se quer real, que se dá por real. A perfeição na arte grega, portanto, consiste, como nos elucida o mito de Pigmaleão, na capacidade de fazer da Galatéia simulacro uma Galatéia mulher, isto é, fazer com que o objeto artístico se transmute, aos olhos do espectador, naquilo que pretende ser. A obra Laocoonte (I-II a.C. aproximadamente) produzida no período helenístico, – período no qual há uma exacerbação da necessidade de aproximação entre a arte escultórica e a simulação do belo – tem servido de ilustração à estética grega, oferecendo material para debates acalorados no âmbito da Estética. Trata-se de um exemplo magistral de simulação: o corpo nu, de modo a evidenciar a tensão muscular, a boca entreaberta prestes a gritar, a expressão de desespero, o abdômen contraído... Toda a técnica empregue em Laocoonte encontra-se a serviço da condução do espectador, deslocando-o da representação rumo à realidade. É preciso que a obra transite do mármore à carne, que o mármore simule a carne. Ainda que não seja prudente empregar generalizações para um período da História da Arte tão fértil e contraditório, parece que o legado aristotélico é continuado – no que concerne à compreensão do trabalho de criação como trabalho mimético – pelo Renascimento. Comungando do mesmo ambiente e das mesmas preocupações, filósofos e artistas encontraram nos studia humanitatis as ferramentas necessárias para a construção de uma arte que fosse, como quer Botticelli, “o mundo mais uma vez, parecido como não parecido com ele”. A assertiva de Botticelli nos conduz àquilo que o período terá de mais característico: o artifex florentino não deseja mais fazer de sua obra uma simulação, como pretenderia um contemporâneo do Laocoonte. O que se deseja agora é provocar uma obliteração das formas reais em favor de uma suposta forma ideal. A partir de então, nenhuma técnica será empregue para convencer o espectador de que o que tem diante de si é a própria realidade. Muito antes pelo 204 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito contrário, se as formas devem ser perfeitas, se as linhas devem convergir com exatidão para o ponto de fuga e se as cores devem ser vivas e frescas, é porque a arte, incumbida de desvelar o mundo das Ideias, não pode se dar ao luxo de ostentar imperfeições. Neste sentido, o mármore – que para Michelangelo, nada era além do suporte onde poderiam ser desveladas as grandes ideias – retoma o seu lugar no mundo da técnica, torna a ser pedra e não se exige mais que sua natureza seja dissimulada. Assim, o seu David não pretende ser um simulacro de homem, mas a manifestação da beleza que emana de Deus numa aproximação muito particular da filosofia de Ficino. O artifex não é mais um escamoteador, mas um deus. Michelangelo pintando, esculpindo e projetando, é o próprio Deus a construir o mundo; o “mundo mais uma vez” de Botticelli. Num panorama muito breve, do Barroco (1600, aproximadamente) ao Realismo (1830, aproximadamente), do Academicismo à Art Naïf, a arte ocidental caminhará conservando, de certo modo, a máxima de que a arte deveria articularse enquanto mimesis da realidade, o que, naturalmente, não elidiu em momento algum a possibilidade de criação de “outros mundos”, mas vinculou todo exercício do imaginário a um compromisso para com a figuração, pelo menos até o despontar do século XX. Subvertendo os valores até então em voga – aqueles zelosamente guardados pelo seu baluarte, o academismo – o século XX lança-se, primeiramente, à aventura de dilacerar o liame entre Arte e Natureza. Assim, é paradigmática a declaração de Emil Node: “A imitação fiel e exata da natureza não cria uma obra de arte. Uma estátua de cera, que se confunde com o modelo natural, nada provoca além de repugnância”. Trata-se de manifestação explícita do desejo de romper com o aristotelismo (a teoria do mimetismo nas artes), rompimento, aliás, que o artista afirma ter se adiantado algumas décadas ao seu próprio pronunciamento: “‘A arte mais perfeita encontramo-la entre os gregos. Na pintura, Rafael é o mestre dos 205 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. mestres’. Era isso o que ensinavam todos os professores de arte havia vinte ou trinta anos.” Num segundo momento, ainda de subversão e ruptura para com o real, movimentos como o Surrealismo e a Scuola Metafisica vão se encarregar de expurgar a razão, talvez definitivamente, da arte, através do reconhecimento cada vez mais corrente de que “a loucura constitui um fenômeno inerente a todas as manifestações artísticas”. A explicação de Lyotard para que o abandono dos grandes relatos artísticos tradicionais ocorresse no despontar do século XX se dá pelo fato de tal contexto ter sido marcado como período de desestabilidade da realidade, que já não poderia mais constituir matéria para experiência da representação, dado seu caráter caótico. De fato, os tormentos de duas grandes guerras, disputas bélicas e ideológicas, insegurança política e econômica, excesso das formas de violência, em caráter global, assinalaram para um dos contextos mais sombrios da história universal. Se a arte respondeu a tal conjunto de transformações de modo a abandonar o normativismo das formas e da tentativa de representação do real, esvaziando-se de parâmetros usualmente utilizados, a construção do direito caminhou em sentido outro, qual seja, o de apegar-se materialmente à racionalidade ética para atuar como instrumento de liberdade. A relação entre direito e razão configurou-se, desde os remotos tempos de construção da cultura humana, jamais como algo evidente, mas sempre numa relação dialeticamente problematizada. Mas é com a Modernidade que essa dialética apresenta-se como dicotomia. A tradição denominada juspositivista, que tem suas origens em Hobbes, tende a apresentar o direito e a racionalidade como idéias excludentes, de forma que o fenômeno jurídico desvincula-se de qualquer pretensão ético-politica. Tal distanciamento entre direito e razão –que aqui pode ser traduzida por justiça - surge com a pretensão de uma separação da análise do Direito de todas as circunstâncias e esferas sociais que o rodeiam. Assim, o 206 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito distanciamento do direito de sua base social, ética, política, cultural e antropológica é também a desvinculação entre direito e racionalidade. Nesse sentido é que John Austin, em seu positivismo, apresenta o soberano não somente como ente prolator da norma, mas como figura inexorável para a composição de sua juridicidade. Elide do direito positivo qualquer metafísica ou importância axiológica, que se traduz em direito posto, resumido em vontade emanada por autoridade e desvinculado de qualquer perspectiva moral. Idéia esta sintetizada pela máxima de que “o critério de legalidade é questão de fato, não de valor.”. Também em Kelsen, o direito teria por característica basilar o formalismo, é válido independentemente de seu conteúdo ou finalidade, até mesmo porque o fundamento de sua validade – a norma fundamental – não abarca nenhuma substância material. Separando abissalmente direito e moral, em sua teoria é de sublinhar a completa ausência de preocupação com a idéia transcendente de justiça, pois a configuração da norma, que implica na de regra, já é critério autosuficiente do justo e do injusto, num culto apologético ao pleno arbítrio do legislador. Assim é que, brevemente, numa síntese das diversas doutrinas cuja matriz seja vinculada à idéia do formalismo, o aparte entre direito e moral fora responsável historicamente pela condução de uma arbitrariedade identificável, ausente de quaisquer parâmetros substancialmente racionais. Mas ainda que a cultura ocidental tenha se abatido pelo mito jurídico da arbitrariedade do soberano, podemos dizer, com Bobbio que, em sentido oposto ao da matriz juspositivista – que analisa o jurídico abrindo mão de seu conteúdo axiológico – o filósofo do direito não se contenta em conhecer a realidade empírica do direito, mas quer investigar o problema do valor do direito, com base no qual se julga o direito passado e se procura influir no direito vigente. 207 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Dessa forma, ante um contexto caótico de duas grandes guerras e instabilidades, a majoritária resposta da filosofia do direito caminhou no sentido de não mais legitimar os abusos do soberano, impregnando ao “construir” do direito uma fundamentação racional, pretensamente ética, instaurando-se a passagem do jurídico. O pós-guerra mostrou ao mundo a fragilidade de uma idéia de direito que se alija de horizontes éticos, não sendo demais lembrar a sordidez da patologia nazi-facista, que fez o homem repensar-se enquanto pessoa, retomando a consciência de sua centralidade, simbolizada pela conquista da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). É assim que na seara da filosofia do direito, consolidou-se como tendência a defesa de paradigmas que se evidenciam pela aproximação entre direito e moral a partir de uma dimensão valorativa e, sobretudo, substancialmente racional. Há um volta ao direito natural, por meio da afirmação das correntes jusnaturalistas pós-kantianas –inauguradas no século XIX; sendo que a idéia de direito natural passa a ser concebida não mais como transcendência eterna e imutável, mas como conteúdo variavelmente determinável e que pretende conduzir o direito por imperativos racionalmente consentidos. Assinalamos Radbruch como ponto de partida para uma teoria pós-kantiana dos direitos naturais no pós-guerra, ao lançar mão de célebre artigo acerca da justiça, um epílogo à defesa da liberdade, seguido por outros tantos autores, como Del Vecchio e Maritain, na seara internacional, valendo lembrar, no contexto brasileiro, o pensamento de Edgar Mata Machado. Em suma, desconsiderando diversas teorias e simplificando por demais a questão, dizemos que o jusnaturalismo reaparece no debate jusfilosófico do pósguerra como tentativa de racionalização de uma conjuntura jurídica escassa de substancialidade ético-normativa, num esforço próprio de efetivação da paz. Ante a crise mundial do início do século XX, houve uma revisão da criteriologia do justo e do belo, marcada pelo rompimento entre arte e razão e pelo reencontro histórico entre discurso jurídico e racionalidade. 208 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Enquanto o paradigma da arte abandonou o intento de transmitir ao intérprete a noção de verdade por meio da representação mimética do objetorepresentado, ou mesmo de desvelar o mundo das ideias, que se fazia mediante um exercício plenamente racional pela busca do belo, a filosofia do direito abandonou em grande medida o legado de uma tradição formalista – que aduzia a não vinculação do jurídico à reprodução de qualquer idéia transcendente – apegando-se à pretensão de ordenação materialmente racional, na tentativa de constituir-se o avatar da paz para o futuro. Ante um contexto de caos, o artista, ente também político, pugnou por projetar no estético o protesto aos abusos de seu tempo, por meio de um apelo às imagens do não sentido, do inimaginável, caótico e instável, inaugurando um novo modus faciendi artístico, em que o mesmo pensar é também ser. O direito, por meio da filosofia do direito, por outro lado, deontologicamente, objetivou-se no sentido de constituir-se negação do real, superação da desordem, perfazendo um dever-ser pautado por diretrizes morais transcendentes (jusnaturalismo póskantiano), escassas de materialização naquele momento repleto de incertezas. Assim é que, à guisa de conclusão, talvez possamos tomar direito e arte como instâncias catárticas; esta, expressando sensivelmente o ser do artista no objeto-arte, e, aquele, constituindo-se projeção da racionalidade ética mediante a objetivação de imperativos de dever-ser convergentes para a afirmação da liberdade em detrimento do poder. 209 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. PODER E JUSTIÇA NAS TRAGÉDIAS DE SHAKESPEARE Rodrigo A. Suzuki D. Cintra 1 Palavras-chave: Shakespeare; Tragédia; Teoria do Poder; Teoria da Justiça; Moralidade. Existe uma dificuldade inicial em falar sobre poder e justiça na obra de Shakespeare. O autor não escreveu tratados ou ensaios sobre o assunto. O que podemos fazer é procurar na tessitura de suas peças, na armação do enredo, na caracterização das personagens, nas metáforas e outros jogos de linguagem, elementos que apontem para uma leitura que torne possível pensar o poder e a justiça neste autor. Da mesma maneira que ele não tratou diretamente destes temas, nos parece que talvez seja possível encontrar elementos que os caracterizem através de uma análise, por assim dizer, um tanto quanto tortuosa. Não investigaremos o poder e a justiça diretamente, nas obras em que é mais que óbvio que tenham uma dimensão política, como no caso dos dramas históricos ingleses, mas sim, através de um caminho mais sinuoso, procuraremos, nas grandes tragédias, os contornos de uma concepção de poder afinada diretamente pela dimensão da justiça. 1 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campus Campinas. Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP. E-mail: [email protected]. 210 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Sustentamos, no entanto, que apesar desse caráter esguio com que conduziremos nossa análise das dimensões relativas ao poder e a justiça, Shakespeare foi um pensador político de primeira ordem. Sua poesia dramática explora nas tragédias, através das deliberações e ações públicas de políticos, homens do Estado e cidadãos os problemas essenciais associados com a vida e o jogo político (MURLEY; SUTTON, 2006, p. 2). Isto tudo significa, sobretudo, que alçaremos o texto à dimensão de imagem. As imagens traçadas ao longo das peças têm uma capacidade de síntese fenomenal e podem nos ajudar a construir e, consequentemente preencher de significado, a relação entre poder e justiça na obra trágica de Shakespeare. Como podemos ler em uma frase de Caroline Spurgeon: [...] o poeta, sem o saber, deixa a descoberto seus gostos e desgostos, observações e interesses, associações de ideias, atitudes mentais e crenças mais profundas, em suas imagens e através delas, os retratos verbais que desenha a fim de iluminar algo completamente diferente nas falas e nos pensamentos de seus personagens (SPURGEON, 2006, p. 14). O que está em jogo na tragédia shakespeariana, nos parece, é uma concepção em que poder e justiça se manifestam de uma maneira indissociável. O que significaria dizer, por certo, que a questão da efetividade do exercício do poder depende necessariamente de uma certa legitimidade que somente a justiça poderia proporcionar. A análise desta imbricação necessária aponta para nossa hipótese de que a tragédia se configura enquanto modo de pensar, sentir e representar em uma certa construção que coloca em jogo o campo do direito e o campo do político a partir de uma estrutura estética. Nesta relação de dependência recíproca entre o núcleo estruturante da política, ou seja, o poder, e o núcleo central do direito, a justiça, podemos encontrar, na obra de Shakespeare, uma dimensão verdadeiramente cósmica a interferir nestes conceitos. Essa cosmologia, própria de um pensamento ainda não liberto completamente da esfera religiosa como centro, como não poderia deixar 211 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. de ser, trás consigo toda uma maneira trágica de entender o mundo da vida. O conceito de justiça no período elisabetano é de uma verdadeira expressão da ordem do cosmos. Como explica Mcginn (SISSON, 1963, p. 13), uma espécie de justiça cósmica controla a sequência de eventos, de modo que tudo leva ao melhor. Existe um motivo maior, mais profundo, para as coisas acontecerem da maneira como acontecem. Vale dizer: o que acontece, deveria acontecer. O que implica em uma visão moralizante de causalidade. O dramaturgo escrevia, em suas peças, um posicionamento em que a justiça humana refletia sua concepção de justiça divina (SISSON, 1963, p. 02). Podemos ler em Shakespeare que quando as coisas vão mal, caminhando para a injustiça, não é somente a sociedade organizada que sai perdendo, mas tudo se passa como se a própria natureza estremecesse. Mas claro que esse modo de pensar também implica em uma certa moralidade específica. Shakespeare era um grande moralista neste sentido. Hazlitt, sobre o assunto, escreve que, em certo sentido, Shakespeare não era, de forma alguma, um moralista; e, em outro sentido, ele foi o maior de todos os moralistas. Ele foi um moralista no mesmo sentido em que a natureza também é (HAZLITT, 2006, p. 175). Shakespeare, como reforça Mcginn, traz a moralidade para o coração de seu drama porque a moralidade, ela mesma, é parte da natureza. É parte do que nós chamamos, comumente, de natureza humana, nossa natureza como pessoas responsáveis e autônomas (HAZLITT apud McGINN, 2006, 178). A leitura das obras do dramaturgo parece confirmar a afirmação de Rousseau: “Aqueles que tratam de política e moralidade separadamente nunca compreenderão nenhuma das duas.” Com efeito, a ligação entre política e direito, em Shakespeare, passa sempre por uma moral própria da tragédia. Afinal, a moralidade é parte da natureza, se por natureza entendermos tudo aquilo que diz respeito ao mundo da vida. É curioso, nesse sentido, que Shakespeare não copia a natureza exatamente, na medida em que podemos ter, perfeitamente, príncipes que, apesar de estarem no poder, não têm qualquer legitimidade porque não estão compromissados com ideais de justiça. Shakespeare conforma a natureza, descreve o que é próprio dos homens e do mundo de modo a criar uma natureza a sua imagem e semelhança. Aqui, o termômetro do real é plenamente invertido, não lemos as obras a partir de sua comparação com o real. Mas acompanhamos o real a 212 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito partir da leitura das grandes obras. Somente alguns gênios da história de uma cultura compartilhada podem tornar isso possível. Shakespeare é um deles. É dessa maneira que, na caracterização dos personagens shakespearianos, os governantes precisam obrigatoriamente ser justos. Os personagens shakespearianos são, sobretudo, pessoas que estão imersas em um universo em que a ética comanda. Eles são definidos por suas qualidades morais, seus vícios e virtudes, sua propensão ao bem e ao mal (HAZLITT apud McGINN, 2006, 178). E no caso dos governantes, é evidente que os bons governantes são aqueles que atendem o interesse da comunidade como um todo, enquanto os maus governantes correspondem aqueles que pensam apenas na dimensão de como alcançar o poder e nele se manter. Isso traz uma exigência de caráter moral, político, jurídico e estético. Talvez mais que isso: é uma obrigação natural, pensando em natureza como tudo aquilo que pode ser útil ao homem. Na construção da degradação por que passam homens e mulheres de poder nas tragédias, Shakespeare, inevitavelmente, trata do poder e da autoridade política a partir de uma perspectiva múltipla. A capacidade de fazer escolhas, dentro deste universo múltiplo, parece ser essencial para a correta compreensão da dimensão trágica. Os personagens shakespearianos deliberam escolhas, implementam decisões e refletem sobre as consequências de terem escolhido uma possibilidade, ao invés de outra. Todas as grandes tragédias shakespearianas lidam com o momento essencial em que a escolha é feita, tornando possível que uma complicação se estabeleça e que a peça se encaminhe para um momento de resolução. Se os personagens não são, propriamente, predeterminados, são, pelo menos, predispostos a certas escolhas devido a suas personalidades e a influência das circunstâncias (ALVIS, 2000, p. 04). O trágico, em sua perspectiva moderna, shakespeariana, assim o é porque ao meio de uma profunda liberdade de ações individuais, escolhemos sempre o caminho errado. O que não significa que não somos responsáveis por nossos atos. No mundo elisabetano, estamos em um universo essencialmente cristão, no qual o 213 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. princípio do livre-arbítrio é de suma importância (HELIODORA, 2004, p. 122). O que ocorre é que a essência da política, que podemos dizer está em nossa capacidade de escolha, ou seja, nas nossas ações, pode ser diretamente conectada a essência do trágico. O dispositivo trágico também opera na dimensão de um mundo de escolhas. A questão é que ao meio da multiplicidade de ações, o trágico sempre aponta para a fatalidade. Esse é, de certa maneira, o caráter triste e inexorável da política, representado pela dimensão da fortuna, deusa desregrada e contingente. Na tragédia shakespeariana, se seguirmos os ensinamentos de A. C. Bradley, o que encontraremos é que os atos dos heróis, de certa maneira, contribuem sempre para a sequência de atos que resultará no desastre final. Tudo se passa como se eles mesmos fossem autores de seu próprio infortúnio. A escolha por uma determinada ação encaminha para outra, sendo a sua causa, e ao final do encadeamento de ações, temos o desastre (BRADLEY, 2009, p. 08-09). Como elucida Bradley: A catástrofe é, basicamente, a reação ao ato abatendo-se sobre a cabeça do agente. É um exemplo de justiça; e a ordem que, presente tanto dentro dos agentes como fora deles, faz com que ela se cumpra infalivelmente, é, portanto, justa. O rigor da sua justiça é terrível, sem duvida, pois a tragédia é uma história terrível; mas a despeito do medo e da compaixão, conta com a nossa aquiescência, porque nosso senso de justiça é satisfeito (BRADLEY, 2009, p. 22). Discordamos, no entanto, profundamente, da leitura de Bradley quando diz que é um erro chamar a ordem do mundo trágico de justa. Para este autor, qualificar de “justo” o mundo trágico seria utilizar tal palavra de uma maneira vaga, não explicada. Está certo que, devido ao fim trágico, os personagens podem não receber, efetivamente o que merecem. Cordélia, Desdemona e Ofélia, por exemplo, são vítimas de profunda injustiça na ordem de suas respectivas peças. Porém, a tragédia vai se desenvolver, exatamente, em torno desta injustiça. O ato do herói que põe em movimento a sequência de eventos que culminarão no final trágico o responsabiliza e, ao mesmo tempo, introduz a injustiça na lógica da peça. É somente ao fim da tragédia, depois de inúmeras mortes, intrigas, lutas pelo poder, brigas familiares, que Shakespeare vai providenciar um desfecho em que a 214 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito ordem e a justiça voltam a prevalecer. É uma certa ideia de trágico que organiza o mundo da política e do jurídico de maneira conjunta, portanto, reconhecemos, sim, uma ordem justa a servir de horizonte final das tragédias de Shakespeare. Claro que isso não vai significar um final feliz, na medida em que se tratam de tragédias, mas, pelo menos, apontará para um final em que a justiça foi restabelecida e o poder volta, de alguma maneira, a obedecer o direito, ou seja, a ter uma legitimidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIS, John E. Introductory: Shakespearean poetry and politics. In: ALVIS, John E.; WEST, Thomas G. (orgs.). Shakespeare as a political thinker. Durham: Carolina Academic Press, 2000. BRADLEY, A. C. A tragédia shakespeariana. São Paulo: Martins Fontes, 2009. HAZLITT, Willian apud McGINN, Colin. Shakespeare´s philosophy – discovering the meaning behind the plays. New York: HarperCollins Publishers, 2006. HELIODORA, Bárbara. Reflexões Shakespearianas. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004. MURLEY, John A.; SUTTON, Sean D. Poetry and politics: an introduction and retrospect. In: MURLEY, John A.; SUTTON, Sean D. (orgs.). Perspectives on politics in Shakespeare. Oxford: Lexington books, 2006. SISSON, C. J. Shakespeare´s tragic justice. London: Methuen & Co. LTD, 1963. 215 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. SPURGEON, Caroline. A imagística de Shakespeare. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 216 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito PRISÃO EM FLAGRANTE E IMAGINAÇÃO Ana Clara Matias Brasileiro 1 Clara Souza Garcia Saar 2 Marcelo Campos Galuppo 3 Palavras-chave: Prisão em flagrante; Presunção; Imaginação; Decisão judicial. Partindo da definição posta por Robert Nozick em “The Nature of Rationality” a qual se refere à imaginação como habilidade de pensar em novas e úteis possibilidades, é possível perceber que a imaginação é elemento fundamental na formulação de hipóteses. Nesse sentido, nota-se sua importância para a ciência do direito, principalmente no que tange questões em que é preciso pressupor um fato que fundamentará decisões judiciais. 1 Graduanda do 3º período do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail de contato: [email protected]. 2 Graduanda do 3º período do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 3 Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 217 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. No cerne dessa discussão tem-se a questão da prisão em flagrante presumido, prevista no Art. 302, IV CPP, o qual ocorre quando alguém é encontrado logo depois da ocorrência do fato, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor do delito. Observa-se que esse tipo de flagrante consiste numa ficção, uma vez que se toma o ato praticado como continuação do delito cometido, expandindo os limites da flagrância, inicialmente composto pela observação visual do ato de execução do crime (flagrante próprio). A presunção/imaginação consiste no ato de relacionar um fato já conhecido a outro que se espera conhecer, de modo que torne possível unir esses dois eventos e formular uma hipótese. É possível perceber claramente essa construção relacionada à questão do flagrante a partir de um exemplo. João namora Maria, que é amada por Pedro. João toma conhecimento do fato e jura matar Pedro. Algumas semanas depois João é visto portando uma arma próximo à casa de Pedro, onde esse é encontrado morto, com um tiro no peito, logo após a visita de João ao bairro. João seria preso em flagrante, uma vez que foi visto próximo ao local e portando a arma do crime, além de ter exteriorizado, previamente, a vontade de realizá-lo. Entretanto, nota-se que não é possível afirmar com absoluta certeza a culpa de João pelo delito. Essa seria, então, presumida, imaginada por meio das ligações realizadas entre a declaração da vontade de João (jura de morte a Pedro), o fato de ele ter sido encontrado com a arma próximo à casa da vítima no dia do crime, e ter ocorrido, de fato, a morte de Pedro. Essa presunção ocorreria fundamentando-se nas verdades particulares, já descritas acima, atreladas umas as outras por meio da imaginação daquele que efetuou a prisão. No entanto, poderia também se presumir que, ao ter sido preterido por Maria, Pedro dá um tiro em seu próprio peito, configurando uma hipótese de suicídio. Nesse caso, João, que havia saído em direção à casa de Pedro com intenção de matá-lo, o encontra morto e toma a arma para si, sem que tenha, no entanto, nenhuma relação com o crime. Nota-se com esse exemplo que, quando não se sabe de fato o que ocorreu, principalmente na ausência de testemunhas oculares, ou gravações que mostrem a execução do ato, o passo inicial da investigação é dado por meio das hipóteses, formuladas pela imaginação. Parte-se 218 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito de um fato que é suposto – não precisa ser provado nem enunciado – para chegar a um fato desconhecido, que se presume (Malatesta, 2005, p. 194). Apesar de a presunção estar positivada no Código de Processo Penal Brasileiro, observa-se, por parte dos aplicadores do direito, restrições à utilização da palavra imaginação para se referir ao processo de formulação de hipóteses. A tendência é buscar respostas nas alternativas já conhecidas, ignorando o fato de que muitas vezes a resolução do caso concreto requer justamente o oposto. Nesse sentido, vê-se que a dificuldade relacionada à imaginação ocorre quando se tenta substituí-la pela lógica simplista, possuidora de um "um caráter objetivo" que lhe é dado pela lógica formal. Nesse caso, é escolhida como verdadeira a hipótese mais lógica, provável, nos termos matemáticos, esquecendo-se que o papel de formular hipóteses cabe apenas ao ato de imaginar. Sendo assim, é notável a propriedade da frase “without the imaginative generation and testing of new possibilities, rationality alone will get us only to a local optimum, to the best of the alredy given alternatives” (Nozick, 1993, p. 173). Vê-se, então, que sem a imaginação serão consideradas apenas hipóteses já conhecidas, que podem ser de grande valor ou não dependendo do caso concreto. Marilena Chauí fundamenta, nesse sentido, o perigo da permanência no senso comum, uma vez que nem tudo que se presume, nem tudo o que se pressupõe, nem tudo que se intui como correto ou errado realmente o é. Percebese, então que não é possível encontrar a certeza naquilo que foi presumido, diferentemente do que acreditam os aplicadores do direito e sua visão objetivista. O que é possível, por meio da imaginação, presunção, é a formulação de hipóteses que podem ou não ser verdadeiras. A formulação dessas hipóteses é apenas o primeiro passo da investigação de um crime, de modo que é impossível negar a existência da imaginação no meio judicial, embora não seja possível, mesmo que por meio da utilização de outro termo, vincular a imaginação/ presunção à certeza imediata da autoria de um delito. 219 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Para que haja a fundamentação da certeza judicial é preciso observar, antes de tudo, a diferença entre verdade e certeza, pois embora os dois conceitos estejam relacionados, nem sempre é possível tomá-los como sinônimos, tendo em vista que o primeiro é conformidade entre ideia e realidade, enquanto o segundo consiste em acreditar conhecer tal correspondência. Dessa forma, é percebida a possibilidade de erro em relação a esse tipo de percepção que fundamenta a convicção de se ter conhecimento. É preciso, antes que se discuta a certeza, buscar o modo como se chega à verdade. Apenas quando o espírito (alma) a percebe, ela pode ser tomada como posse pelo homem. Essa percepção pode ocorrer de diversas formas, embora exija em todas elas a faculdade da inteligência, que, para alguns, pode alcançar a verdade por si só (verdade inteligível), ou com auxilio dos sentidos (verdade sensível). É necessário descartar do âmbito da certeza criminal, toda convicção fundamentada apenas pelas verdades inteligíveis, uma vez que essas originam certezas puramente lógicas; racionais, de modo que desconsideram a materialidade dos fatos humanos e a necessidade de obtê-los por meio dos sentidos (Malatesta, 2005, p. 28). Desse modo, observa-se que a Ciência do Direito, principalmente no que se refere ao Direito Penal e Processo Penal, busca a certeza mista, que combina a consciência do mundo físico através da sensibilidade com o intelecto, responsável pela reflexão daquilo que foi tomado pelos sentidos. Kant afirmava que o conhecimento é alcançado quando, a partir do plano da sensibilidade, os objetos são fornecidos, e o plano do entendimento torna possível pensá-los. Uma das críticas feitas por esse filósofo se refere ao fato de a verdade ser vista como harmonia entre o conhecimento e seu objeto, fundamentando-se nas regras do entendimento e princípios da sensibilidade, descartando a verdade material das proposições empíricas (Ricoeur, 2006, p. 56). Em Kant, também se faz presente a noção de que a imaginação é elo entre os dois “troncos”, sensibilidade e entendimento, que fundamentam o conhecimento humano. A partir dessas definições, tem-se que a prova é obtida a partir de um fato material que guia a outro, cuja natureza pode ser física ou moral, de modo que 220 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito esse conduz ao conhecimento de um novo acontecimento, antes despercebido, que será o fundamento da prova. Desse modo, nota-se que cabe ao intelecto nortear, por meio do raciocínio, a ligação entre desconhecido e o que já é sabido. É fundamental ressaltar a importância da realidade objetiva na construção da certeza no juízo criminal. Essa necessidade é vista devido às variadas formas em que um delito pode ocorrer, além das diversas conexões com objetos e sujeitos que poderão ser úteis à solução do caso. Nesse sentido, torna-se clara a impossibilidade de determinar todas as possibilidades da manifestação de um crime, considerando que cada caso é um caso individual possuidor de suas próprias características. Dessa forma, o mais importante a se destacar, no que tange à certeza e à verdade criminal, consiste no fato de que não há verdades evidentes da razão, mas apenas verdades possíveis, fundamentadas pelas provas, que devem servir de base para o convencimento, afastando as hipóteses que interfiram na certeza, de forma a estabelecer sua legitimidade. Nota-se, portanto, que o convencimento é tido como o apogeu da convicção, considerando sua justificação pelo intelecto. Ele deve ocorrer baseando-se essencialmente nas provas, desvencilhando-se de tudo aquilo que lhe for estranho, inclusive as concepções pessoais do juiz. É apresentada também na obra “A lógica das provas em matéria criminal”, a definição da sociabilidade do convencimento (2005, p. 55), que prevê que, para que a certeza moral do juiz seja legitimada, coincida com a consciência social, de modo que a certeza da criminalidade possa ser reconhecida por qualquer homem. A partir dessa exposição das definições de verdade e certeza, insere-se a questão da prisão em flagrante. O flagrante é insuficiente para garantir a condenação do acusado, de modo que se tem a necessidade de percorrer todo o caminho em direção ao convencimento do juiz acerca do crime. O que de fato ocorre em relação à flagrância é a possível diferenciação do valor da prova em cada uma das espécies definidas pela doutrina. Por exemplo, na ocasião de um flagrante próprio, aquele em que há certeza visual do crime, a prova será tomada como de excelente valor, fundamentando em sua forma a “segurança da culpabilidade” – 221 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. termo do Min. Adaucto Cardoso (Betanho, Moura, & de Moraes, 2004, p. 432). Da mesma forma, é vista a relativa força probante do flagrante impróprio e presumido, uma vez que não é encontrada em nenhum desses a mesma certeza visual observada no flagrante próprio. Nesses casos, tem-se que o percurso verdade – certeza – convencimento visto no processo, deverá ser feito baseando-se na conexão do sujeito ao fato por meio da imaginação; presunção. É importante ressaltar que, caso haja a condenação de um réu preso em flagrante, com base no Art. 302, inciso III ou IV CPP, é possível considerar que houve a positivação do uso da imaginação por meio da sentença, uma vez que se toma como impossível o conhecimento real dos fatos, de modo que a condenação é fundamentada pela hipótese, fomentada pela imaginação, mais plausível e provável, baseando-se, evidentemente, pelos requisitos necessários para a ocorrência de uma sentença condenatória. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, R. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001. BETANHO, L. C., MOURA, M. T.; DE MORAES, M. Z. Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, volume 3. São Paulo: Revista dos Tribunais 2004. BITTAR, E. C.; DE ALMEIDA, G. A. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas S.A 2002. CASTELO BRANCO, T. O. Da prisão em flagrante: doutrina, jurisprudência, legislação, postulação em casos concretos. São Paulo: Saraiva,1980. 222 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. In: Vade Mecum Saraiva. São Paulo: Saraiva, 2011. DICIONÁRIO MICHAELIS. Editora Melhoramentos. Uol. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=presumir. Acesso em 2011 de Outubro de 12, 2009. MALATESTA, N. F. A lógica das provas em matéria criminal. Campinas: Bookseller, 2005. NOZICK, R. The nature of rationality. Princeton: Princeton University Press, 1993. RICOEUR, P. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 2006. TOURINHO FILHO, F. D. Processo Penal, 3º volume. São Paulo: Saraiva, 2007. 223 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. SÓCRATES E A OBEDIÊNCIA À LEI NO DIÁLOGO CRÍTON Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho 1 Palavras-chave: Platão; Sócrates; Lei; Justiça. Assim como vários foram os estudiosos que tentaram interpretar o diálogo Críton de Platão, numerosas foram as conclusões a que eles chegaram. Sócrates foi visto desde sofista, passando por precursor de uma espécie de contrato social e apologista do direito positivo, até um mero escravo da lei. Neste trabalho não se buscará concluir a hercúlea tarefa de se chegar ao verdadeiro significado do diálogo. O objetivo é tão somente analisar os argumentos apresentados por Sócrates e verificar a utilidade destes para a Filosofia do Direito, especialmente no tocante à legitimidade e obediência à lei. Para a realização do trabalho a metodologia utilizada será somente o estudo do diálogo Críton e de textos que tratem desta obra. Não serão examinados outros textos de Platão, tão pouco de outros autores como Xenofonte. O diálogo se dá entre Sócrates e seu amigo Críton, e se inicia com os empenhos deste para que o mestre de Platão fuja da prisão. Críton diz que Sócrates estaria agindo injustamente ao ficar na prisão e aceitar a pena capital, pois 1 Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]. 224 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito deste modo ele facilitaria a própria morte como querem seus inimigos. Além disso, afirma que seria vergonhoso caso Sócrates morresse, pois o povo acharia que tendo a possibilidade de pagar para salvar seu amigo da prisão, Críton teria escolhido poupar seu dinheiro. Por fim, Críton ainda pondera que ele seria privado para sempre da companhia de seu amigo caso ele morresse, e que, ao aceitar a punição, Sócrates iria deixar seus filhos órfãos e abandonados. Após ouvir os argumentos de Críton, Sócrates afirma que ainda que o destino esteja contra ele, jamais poderá abandonar os princípios básicos que sempre professou, pois estes sempre lhe afiguraram o mesmo e sempre foram estimados de igual maneira. Assim, manterá seu antigo hábito de analisar todas as razões apresentadas e somente se sujeitar à única que lhe pareça mais justa. Só tentará sair da prisão sem a anuência dos atenienses se tal ação for justa; sendo injusta, deve-se renunciar a tal ideia. Os argumentos desenvolvidos por Sócrates podem ser divididos em duas partes: a primeira, em que Sócrates debate diretamente com Críton, e a segunda, chamada de prosopopeia das leis, em que estas são personificadas e dão continuidade ao diálogo. A primeira parte se inicia com Sócrates afirmando que não devemos levar em consideração as opiniões daqueles que são insensatos e ignorantes, pois destas só poderá sobrevir o mal, a injustiça e a ruína. Devemos somente ouvir aquele que sabe o que é justo e o injusto, e este único juiz é a verdade. O segundo argumento de Sócrates é o de que jamais devemos cometer injustiças, ainda que sejamos vítimas delas, pois todas as injustiças são em si mesmas, indignas e maléficas, diga o que disser a multidão, decorram delas o bem ou o mal. Na segunda parte, em que as leis conversam diretamente com Críton, essas dizem a Sócrates que foram elas que permitiram seu nascimento, sustento e educação, sendo, deste modo, seu filho e servo, e devendo-lhes respeito e veneração. Como uma forma de gratidão é preciso obedecer, honrar e humilhar-se diante da pátria mais do que diante de um pai, e sendo ímpio praticar uma 225 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. violência contra o último, muito mais ímpio é praticá-la contra a pátria. Por fim, elas afirmam que as atitudes de Sócrates, ao longo da vida, demonstram que as leis de Atenas sempre lhe agradaram e lhe pareceram justas. Ao permanecer na cidade pelos seus setenta anos Sócrates demonstrou concordar com a maneira de a cidade administrar a justiça, e, deste modo, assumiu o compromisso de cumprir as leis, não sendo justo desobedecê-las, mas somente tentar persuadi-las caso estas lhe pareçam injustas. Após a apresentação de todos os argumentos, Sócrates conclui que deveria permanecer na prisão e morrer, pois estaria cometendo um ato injusto ao fugir da cidade. A questão que então se coloca é: nos dia de hoje seria possível um cidadão da pólis decidir tomar a mesma atitude de Sócrates? Dois mil e quinhentos anos nos separam do diálogo de Platão. Esta distância alterou profundamente a ideia que temos a respeito da pessoa e do Estado. Não compartilhamos mais do pensamento grego no qual o indivíduo é visto como uma unidade que só possuía um sentido dentro da pólis. Assim, caso pudesse decidir, dificilmente alguém abriria mão de sua vida para não cometer uma injustiça contra o Estado. Mas o Críton não se refere somente a estas situações extremas, e aqui está sua pertinência para a Filosofia do Direito contemporânea. As leis do diálogo não são comandos impostos, não se tratam de regras aplicadas por meio da coerção. Também não são regras cumpridas simplesmente porque o cidadão não tem escolha e só lhe cabe obedecer às regras vigentes. São normas com as quais cidadão concorda e aceita. Leis firmadas por meio de um compromisso assumido de forma livre e renovado diariamente. É verdade que independentemente do fundamento da obrigação legal ser a vontade divina, uma coação, a falta de opção ou o ânimo individual, em todos os casos existirá um dever de cumprir as regras, e pode até ser que em um Estado onde o nível de coerção sobre o indivíduo seja altíssimo, o grau observância das leis seja maior do que onde elas sejam cumpridas devido à vontade individual. Mas apenas onde existam leis que o cidadão considera justas, e por isso concorde livremente em submeter-se a elas, existirá de fato uma democracia. Somente assim as leis de fato terão força, 226 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito pois seu fundamento não será externo, mas sim interno, a livre vontade do cidadão. É importante ressaltar que não está se pregando uma obediência cega às leis, nem tampouco a sacralização delas. O fato de ser justo cumprir as leis que livremente aceitamos não significa necessariamente que o conteúdo delas e das decisões judiciais também será justo. O diálogo nos mostra claramente que a observância dos comandos estatais pode levar-nos a injustiças, no caso, a morte de Sócrates. Mas, ainda que soframos injustiças, não deveríamos retribui da mesma forma, pagando o mal com o mal. Se os indivíduos passassem a simplesmente ignorar e descumprir as normas da pólis sempre que as tomassem como injustas, todo o Estado desmoronaria. Como as próprias leis de Atenas declaram, um Estado não pode subsistir se os indivíduos não obedecem as sentenças legais. O que o diálogo propõe é que ao se deparar com uma regra ou decisão injusta cabe ao cidadão confrontar tal ordem. A postura não pode ser de fuga, omissão, e sim de aproximação, de uma dialética que tem o intuito de construir algo melhor. Deve-se buscar, por meio da persuasão, mostrar que o Estado está agindo de modo injusto, e deste modo convencê-lo a adotar uma postura compatível com os ditames da justiça. Conclui-se que o importante não é uma obediência pacífica das ordens estatais, e sim uma postura ativa do cidadão, postura esta que o ligue às leis, tanto por meio de um compromisso assumido livremente, e que é renovado todos os dias, quanto por meio de um embate, que busca alcançar uma sociedade de fato justa. Este é o caminho para alcançarmos um Estado vivo e diretamente coletivo que deixamos para trás há dois mil e quinhentos anos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 227 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. KENLEN, Hans. A Ilusão da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LACERDA, Bruno Amaro. Direito Natural em Platão. Curitiba: Juruá Editora, 2009. PLATÃO. Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. ROBLEDO, Antonio Goméz. La ley en el pensamiento platônico. In: Platón: Los Diálogos Tardíos. Sankt Augustin: Academia Verlag, 1994. ROMILLY, Jacqueline de. La ley en la Grecia clásica. Buenos Aires: Biblos, 2004. VLASTOS, Gregory. Studies in Greek Philosophy. New Jersey: Princeton University Press, 1995. 228 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito UMA LEI PROIBITIVA NECESSARIAMENTE RESTRINGE A LIBERDADE? João Andrade Neto Palavras-chave: Liberdade; fundamentais; Ponderação. Licença; Independência; Conflito de 1 direitos Este trabalho se insere no âmbito de estudos da Teoria Geral do Direito, com repercussões para a Hermenêutica Jurídica, o Direito Constitucional e a Teoria dos Direitos Fundamentais. Frequentemente, quando uma nova lei entra em vigor e proíbe uma conduta antes considerada lícita, o Poder Legislativo e a própria lei são acusados de restringir indevidamente a liberdade dos cidadãos. Diante dessa crítica, as autoridades estatais e os setores da sociedade que apoiaram a promulgação do ato legislativo tendem a defendê-lo mediante a formulação de argumentos acerca da razoabilidade, da utilidade e da necessidade da regra legal. Alegam que o prejuízo aos direitos dos cidadãos é insignificante ou muito inferior às vantagens advindas 1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); analista judiciário lotado no Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG); aluno do Núcleo Acadêmico de Pesquisa (NAP), da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). E-mail: [email protected]. 229 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. da situação social que a lei favorece; que ela é benéfica à maioria da população e atende aos interesses da sociedade como um todo; e que, diante da gravidade do problema social que se pretendia resolver, não havia outra opção. Nesses termos, o debate público se constrói entre aqueles que apoiam a medida, apesar das restrições à liberdade que ela implica, e aqueles que a desaprovam porque ela restringe desarrazoada, inútil ou desnecessariamente a liberdade de ação dos indivíduos. Raramente se problematiza, porém, a premissa de que a promulgação de uma lei proibitiva limita a liberdade. Um caso recentemente ocorrido no Brasil é exemplar. Em 20 de junho de 2008, foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b), que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) (BRASIL, 1997). A finalidade da Lei Seca, como ficou popularmente conhecida, era, de acordo com o caput do art. 1º da Lei 11.705/2008: “[...] estabelecer alcoolemia 0 (zero) e [...] impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool [...]” (BRASIL, 2008b). Entre as mais significativas mudanças promovidas pela nova legislação, destaca-se a nova redação dada ao caput e ao parágrafo único do art. 276 do CTB pelo inciso III do art. 5º da Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b). Os dispositivos alterados passaram a dispor que o condutor em cujo sangue for detectada qualquer concentração de álcool estará sujeito a multa, suspensão do direito de dirigir por doze meses, retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado, e recolhimento do documento de habilitação (BRASIL, 1997). A lei admite que o Poder Executivo regulamente as margens de tolerância para casos específicos (BRASIL, 1997). Isso foi feito pelo Decreto 6.488/2008, art. 1º, §§ 1º, 2º e 3º, segundo os quais, até que uma resolução do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) discipline a matéria, nos termos de uma proposta a ser formulada pelo Ministro de Estado da Saúde, a margem de tolerância será: de um décimo de miligrama de álcool por litro de ar expelido dos pulmões, se a aferição for feita por aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro); e de dois decigramas de álcool por litro de sangue nas demais situações. (BRASIL, 2008a). 230 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Essa e outras mudanças promovidas pela Lei Seca provocaram a reação da Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel). A entidade ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.103 (BRASIL, 2011), na qual alega faltarem razoabilidade e proporcionalidade ao inciso III do art. 5º da Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b), o qual alterou o caput e o parágrafo único do art. 276 do CTB (BRASIL, 1997). A impetrante defende que a redação original do CTB “[...] já era bastante drástica [...]” e, “Agora, desceram o limite a zero [...]”, de modo que “[...] um único copo de chope ou vinho pode ultrapassar esse limite [...]” (BRASIL, 2011). A Abrasel afirma ser um erro punir qualquer dosagem de álcool no sangue, sem exigir que essa concentração seja capaz de “[...] influenciar, afetar, comprometer a lucidez, ou algo parecido [...]”. Argumenta que “[...] os acidentes de trânsito provocados pela influência do álcool ocorrem somente a partir da concentração de 8 decigramas por litro de sangue [...]” (BRASIL, 2011). Entende que a Lei Seca como um todo prejudica o direito de lazer da maioria dos indivíduos, que bebem “[...] como parte da atividade social [...]”, e é nociva aos agentes econômicos envolvidos com restaurantes e entretenimento, “[...] setor econômico que ocupa mais de 10 milhões de brasileiros [...]” (BRASIL, 2011). Não se desconhece que pendem contra outros dispositivos da Lei Seca alegações da inconstitucionalidade. Tais acusações se resumem basicamente à violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência e da não incriminação. No entanto, aqui, a análise se concentrará apenas nos principais argumentos invocados contra o inciso III do art. 5º da Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b). Eles constituem, como demonstra a petição inicial da ADI 4.103, argumentos sobre a razoabilidade, a utilidade e a necessidade da nova regra, que atenta, segundo afirma a impetrante, contra a “liberdade individual” do cidadão (BRASIL, 2011). Partindo dessa situação-problema, pretende-se demonstrar que as discussões acerca da constitucionalidade de um ato legislativo, como a Lei Seca 231 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. (BRASIL, 2008b), tendem a mascarar a verdadeira premissa em que se baseia grande parte da opinião pública, especializada ou não: a suposição de que toda lei proibitiva restringe o direito dos indivíduos à liberdade de ação. Os argumentos sobre a razoabilidade, a utilidade e a necessidade da lei pressupõem essa ideia de violação à liberdade, mas defendem ou atacam tal violação conforme os prejuízos trazidos a alguns cidadãos pela nova determinação legal sejam compensados ou não pelos benefícios advindos para a coletividade. Em geral, ignora-se que a promulgação de uma lei pelo Poder Legislativo, por si só, não restringe a liberdade das pessoas, uma vez que não existe um direito de liberdade a priori. Para tanto, adota-se como marco teórico da investigação a afirmação de Dworkin (2007, p. 411) de que é “absurdo” supor a existência de “[...] qualquer direito geral à liberdade [...]” do modo como ela “[...] tem sido tradicionalmente concebida por seus defensores [...]”: como a ausência de restrições impostas “[...] ao que um homem poderia fazer, caso desejasse [...]”. O autor propõe duas concepções para o termo liberdade: a licença, que diz respeito ao “[...] grau em que uma pessoa está livre das restrições sociais ou jurídicas para fazer o que tenha vontade [...]”; e a independência, que se refere ao “[...] status de uma pessoa como independente e igual e não como subserviente.” (DWORKIN, 2007, p. 404). Uma vez que “Toda lei prescritiva diminui uma liberdade como licença, antes disponível para os cidadãos [...]” (DWORKIN, 2007, p. 405), admitir que o sistema jurídico garante essa liberdade a priori leva ao paradoxo de que nenhuma liberdade é garantida, pois a própria existência do Direito, e dos direitos e deveres individuais que o compõem, nega a possibilidade de os indivíduos agirem com licenciosidade. A liberdade juridicamente reconhecida é, portanto, aquela entendida como o direito de independência (ou não submissão). Nesse sentido, nem todas as leis proibitivas ameaçam a liberdade individual. Ao contrário, grande parte delas é necessária para protegê-la. Só violam a liberdade aqueles atos legislativos que desrespeitam o direito dos indivíduos de serem tratados com igual consideração, o que ocorre em “[...] situações nas quais os homens fossem [são] impedidos de fazer alguma coisa que [...] devem [poder] fazer” (DWORKIN, 2007, p. 412), ou seja, nos casos de restrições “[...] a atos particulares considerados 232 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito especialmente importantes [...]” (DWORKIN, 2007, p. 277), como as liberdades fundamentais. Decorrem dessa concepção de liberdade, que tem raízes em Montesquieu (1979) e Constant (1985), conclusões substancialmente diferentes daquelas que se podem obter a partir da conhecida distinção de Isaiah Berlin (2002) entre a liberdade negativa (o agir sem sofrer limitações de terceiros) e a positiva (o governar a si mesmo). Dworkin (2007) concilia a liberdade com as restrições impostas pela lei. Ele permite entender que toda prescrição coletiva constrange a vontade dos indivíduos sobre os quais incide, sem que por isso eles se tornem necessariamente menos livres. Considerando essa doutrina e a situação-problema anteriormente identificada, a hipótese deste trabalho é que as restrições impostas por uma lei ao suposto direito de os indivíduos agirem de modo licencioso não são contrárias ao Direito, já que a liberdade como licença não é juridicamente tutelada. As restrições, no entanto, podem constituir ameaças à liberdade entendida como independência – e nesse caso são antijurídicas –, mas apenas quando a prescrição legal ofende liberdades específicas dos cidadãos, constitucionalmente asseguradas. Só nessas hipóteses de ofensa real a direitos, há que se cogitar da razoabilidade, da utilidade e da necessidade de uma lei, pois os juristas que admitem esses mecanismos de ponderação – e nem todos os admitem – condicionam a possibilidade de sopesamento, por óbvio, à existência de dois princípios ou direitos opostos a sopesar (BARROSO, 2008). Se não há uma liberdade ameaçada, não pode haver ameaça a ser ponderada. No caso da Lei Seca, portanto, não têm razão aqueles que alegam que a baixa concentração de alcoolemia exigida dos condutores pelo inciso III do art. 5º da Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b) e pelo Decreto 6.488/2008 (BRASIL, 2008a) é desarrazoada, inútil e desnecessária. Os argumentos nesse sentido erram, na medida em que pressupõem a existência de um conflito entre as novas proibições legais e o direito de liberdade como licença – direito que, na verdade, não existe. 233 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Nem há que se falar em ameaça à liberdade como independência em função de uma suposta limitação imposta pelo inciso III do art. 5º da Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b) a direitos fundamentais, como a liberdade de ir e vir. Ninguém possui o direito de dirigir depois de consumir bebidas alcoólicas, e o Estado está autorizado a exigir dos condutores habilitados o cumprimento de certas condições para manter a habilitação. Ressalte-se, por fim, decorrer dessa mesma autorização que o Poder Público não só pode como deve coibir os conhecidos e elevados índices brasileiros de acidentes de trânsito causados por motoristas alcoolizados – uma vez que esses acidentes, sim, ameaçam liberdades fundamentais ou causam danos a direitos constitucionalmente assegurados, como a vida, a incolumidade física e a propriedade dos demais cidadãos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE NETO, João. Liberdade e segurança: um conflito entre direitos fundamentais? Anais: artigos completos/I Congresso da Associação Mineira de PósGraduandos em Direito. Belo Horizonte: Pergamum, 2010. BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 24 set. 1997, p. 21201. 234 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito BRASIL. União. Decreto 6.488, de 19 de junho de 2008. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 20 jun. 2008a, p. 6. BRASIL. Lei 11.705, de 19 de junho de 2008. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 20 jun. 2008b, p. 1. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4103. Relator: Ministro Luiz Fux. Requerente: Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento - Abrasel Nacional. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=410 3&classe=ADI&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 4 nov. 2011. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: Revista Filosofia Política, n. 2. Porto Alegre: L&PM, 1985. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously: with a new appendix, a response to critics. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978. HÖFFE, Otfried. Justiça Política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do estado. Tradução de Emildo Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la. Do espírito das leis. Introdução e notas de Gonzague Truc; tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. col. Os Pensadores. 235 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. UM OLHAR SOBRE A CRISE NO ENSINO JURÍDICO: HERÁCLITO DE ÉFESO E A INDISSOCIABILIDADE DO ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO NOS CURSOS JURÍDICOS Sandrelise Gonçalves Chaves Palavras-chave: Heráclito de Éfeso; ensino/pesquisa/extensão; Cursos jurídicos. Indissociabilidade 1 do Durante uma recente apresentação dos seminários na disciplina “Hegel, 23 Nietzsche e Heidegger – Leituras Pré-socráticas” , em que foi apresentado o texto de Heráclito de Éfeso constante da obra “Os Pré-socráticos” de José Cavalcante de Souza (1978), surgiu a ideia de relacionar os pensamentos do filósofo originário com a questão atual da educação jurídica no país. 1 Graduada em Direito pela FEAD. Especializada em Consultoria Jurídica Empresarial pelo PRAETORIUM. Mestranda em Direito e Justiça no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Linha de Pesquisa: Direito, Razão e História. Projeto de Pesquisa: Hermenêutica como Instrumento de Realização da Justiça, sob orientação do Professor Doutor Andityas Soares de Moura Costa Matos. Advogada. E-mail: [email protected]. 2 Seminário apresentado no dia 26/10/2011. 3 Disciplina ministrada pelo professor Doutor Andityas Soares de Moura Costa Matos. 236 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Este resumo pretende apresentar o início da pesquisa com vistas a um artigo, e até parte da Dissertação de Mestrado, que tem como tema principal a crise na educação jurídica brasileira. A análise pretendida neste resumo, entretanto, é voltada, especificamente, para a dissociação entre ensino, pesquisa e extensão – funções básicas e essenciais à vivência universitária – numa perspectiva hermenêutica, valendo-se dos fragmentos de Heráclito de Éfeso, comentados por Hegel. Nesse momento é importante esclarecer que há também comentários sobre Heráclito advindos de outros autores, como Nietzsche e Heidegger, contudo, para este resumo, dada a limitação a ele inerente, a análise ficará adstrita aos comentários de Hegel. O maior desafio nessa pesquisa é saber como articular, por meio do pensamento heraclitiano, os três vieses da educação (ensino/pesquisa/extensão), 4 que, na prática, encontram-se desvinculados, como ressalta Hupffer ao dizer que “sua operacionalização converte-se no maior desafio do ensino no século XXI, exigindo esforço para ultrapassar as fronteiras da sala de aula e, assim, construir um currículo vivenciado.”. Sobre a crise no ensino jurídico, Matos (2010), ao fazer uma leitura da obra de Rodrigues (2005), ressalta que não se trata de uma crise, mas várias crises jurídicas sendo as principais para esse estudo, as crises “crise didático-pedagógica” na qual se estabelece a diferença entre o acúmulo de conhecimento e o real aprendizado e a “crise curricular” já que as instituições de ensino buscam cumprir apenas o mínimo necessário para o funcionamento. Nessas duas crises, revela-se a ausência da pesquisa e da extensão e, também, da interdisciplinaridade que possibilitaria aos estudantes uma visão mais abrangente do Direito. E, tendo em vista o diálogo proposto como tema, cabe saber como as ideias de Heráclito de Éfeso podem contribuir para o problema da ausência de articulação entre ensino, pesquisa e extensão nos cursos jurídicos. 4 HUPPFER, 2006, p. 290. 237 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Pretende-se demonstrar como filósofo Heráclito de Éfeso pode contribuir para a melhoria da educação jurídica no Brasil, resgatando a necessidade de se articular as funções básicas do ensino superior, fazendo com que os bacharéis em Direito se conscientizem acerca da função social do curso jurídico. Para tanto, é necessário: a) investigar os problemas relacionados a massificação do ensino jurídico, principalmente a dissociação do ensino/pesquisa/extensão; b) buscar os fragmentos de Heráclito com vistas ao enfrentamento do tema; c) propor uma correlação dos temas, do ponto de vista hermenêutico; e d) contribuir, por meio do estudo, para uma visão inovadora e (re)estruturadora do ensino jurídico no país. Para a elaboração de trabalhos científicos na grande área da Filosofia do Direito, mais especificamente na Hermenêutica Jurídica, é apropriado o uso de métodos analítico-descritivo – para uma abordagem teórico-reflexiva sobre a educação no país –, jurídico-dialético – valorizando a interpretação – e jurídicoteórico – para acentuar os aspectos conceituais, ideológicos e doutrinários do campo que se pretende investigar. Sendo assim, revelar-se-ão os sentidos conceituais, ideológicos e doutrinários das contribuições feitas por Heráclito e os autores que se propuseram a estudar o dito filósofo. São, pois, justamente essas vertentes que orientam a criação de um sistema teórico-metodológico que permita olhar/analisar o objeto (crises do ensino jurídico), propondo-lhe, no entanto, soluções possíveis. E, para ordenar as informações, o raciocínio, que aqui será o indutivodedutivo, uma vez que ambos se complementam e, se vistos isoladamente, podem prejudicar no desenvolvimento do tema. 238 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Heráclito de Éfeso é considerado um dos pensadores pré-socráticos de maior relevância, por tratar “com vigor o problema da unidade permanente do ser 5 diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias”. Em síntese, depreendem-se dos fragmentos do filósofo originário as seguintes afirmações: a) existência de uma unidade fundamental em todas as coisas; b) que todas as coisas estão em movimento. Obviamente, há outras afirmativas que podem ser retiradas dos fragmentos, mas essas duas importam, por hora, ao presente estudo. 6 Hegel , ao comentar os fragmentos, ressalta que Heráclito foi o primeiro a trazer para o pensamento filosófico a metafísica especulativa, com vistas a conhecer toda a realidade. Dessa visão faz-se necessário pensar que o conhecimento da realidade como um todo não é possível através do conhecimento fragmentado. Nesse 7 mesmo sentido, Matos comenta a perspectiva humana de tudo dividir sendo que “o grande desafio que nos impõe quando tentamos entender a origem de tudo reside em uma limitação demasiado humana: nossa visão bipolar da realidade, sem a qual não conseguimos organizar minimamente a vida”. 8 Para Heráclito – de acordo com a citação do Sexto Empírico – “A parte é algo diferente do todo; mas é também o mesmo que o todo é; a substância é o todo e a parte”. Nesse ponto, cabe o questionamento motivador da pesquisa: como o pensamento heraclitiano de processo/movimento, pode contribuir para a articulação do ensino, da pesquisa e da extensão nos cursos jurídicos? 5 SOUZA, 1978, p.73. SOUZA, 1978, p. 92. 7 MATOS, 2011, p. 100. 8 SOUZA, 1978, p. 94. 6 239 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. O movimento é como princípio da natureza segundo o qual “Tudo flui 9 (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo” . Fazendo uma ligação ao conhecimento que deveria ser produzido nos cursos de graduação em Direito, esse também está (deveria estar) em constante movimento. 10 Contudo, com o aumento descompassado de cursos jurídicos no Brasil com vistas ao quantitativo (quantidade de alunos, arrecadação de valores pelas instituições de ensino superior privadas etc.), a qualidade da educação jurídica vem sofrendo com a (re)produção de conhecimento sem qualquer conteúdo reflexivo 11 ou crítico, contrapondo-se a qualidade que era almejada por Heráclito. 12 Tais habilidades (capacidade de reflexão e crítica) podem e devem ser trabalhadas mediante a articulação daquilo que se aprende em sala (ensino), com o aprimoramento através da pesquisa e com a exteriorização que se dá através da extensão. Nesse movimento, é possível a apreensão da realidade pelos alunos dos cursos de graduação em Direito, permitindo-os o aprendizado capaz de torná-los aptos a efetivamente produzir conhecimentos que vise à melhoria dos espaços nos quais eles se inserem. Entretanto, não é ocorre pela “maioria esmagadora dos 13 cursos de Graduação em Direito” que se dedicam apenas ao ensino (o que também é questionável). Esse deveria ser o objetivo de todo e qualquer curso de graduação: aprimoramento de conhecimento para a melhoria da vida. E, sobretudo, deve ser o objetivo das graduações em Direito, pois “o Direito oferece a seus cultores uma formação humanística rigorosa, disponibilizando-lhes conhecimentos básicos sobre 9 SOUZA, 1978, p. 92. Do site da OAB colhe-se a informação atualizada de que “existem hoje nada menos que 1.174 cursos de direito em todos os estados – um aumento de 612% em relação aos 165 credenciados em 1991” (OAB, 2011). 11 “Um para mim vale mil, se for o melhor” (DK 22 A 49) 12 “Heráclito afirma que o universo é gerado não segundo o tempo, mas segundo a reflexão” (DK 22 A 5) 13 MATOS, 2007, p.119 10 240 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito 14 o mundo em que vivemos” e dali advém (ou deveria advir) os egressos capazes de lutar pela Justiça – fim maior do Direito. A articulação do tripé (ensino/pesquisa/extensão) se dá a partir do momento que o ensino em sala de aula, gera as dúvidas que motivam a pesquisa, pesquisa essa que será experimentada muitas vezes através da extensão que novamente gerará conhecimentos para troca de experiências em sala de aula, tornando-se um ciclo. É nessa contraposição que se dá o conhecimento da realidade. E aqui, retomando o pensamento de Heráclito que proporcionou essa 15 reflexão, os homens se tornam descompassados (axýnetoi) em relação a verdade quando se atêm as coisas de forma particular. Ou seja: o conhecimento da realidade se dá com a compreensão da oposição dos contrários e das partes como um todo. Assim entendeu Hegel quando afirma que “os homens acham em geral que quando devem pensar algo, isto teria que ser alguma coisa singular; isto é a 16 ilusão” . À luz de tais considerações, pode-se pensar que a dissociação do ensino, da pesquisa e da extensão não permite ao indivíduo o conhecimento da realidade. De outro ângulo, se articulados, colocados em contraposição, permitem a verdadeira educação jurídica, pois isso levaria ao Lógos, visto aqui como “essa coisa que é e não é, mas se torna, movendo-se da passagem do Ser para o não-Ser, 17 perceptível apenas no fluir” . Há cerca de quinhentos anos antes de Cristo, o filósofo tido como “Obscuro” apresentou suas reflexões sobre o mundo. Seus fragmentos, atravessando os longos mais de dois mil e quinhentos anos, lido e relido por outros 14 MATOS, 2007, p. 39. “Destes logos sendo sempre os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir que tão logo tenham ouvido; (...)” (DK 22 B 1). 16 SOUZA, 1978, p. 102. 17 MATOS, 2011, p.96. 15 241 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. autores, ainda permite o repensar sobre a contemporaneidade, sendo um 18 “passado-sempre-presente” . As lições de Heráclito sobre o mundo como um constante processo de transformação, propõe um pensar sobre a fragmentação o conhecimento que temos hoje nos cursos jurídicos. Dessa forma, o que se pode concluir a partir das contribuições do filósofo 19 20 originário é que somente o na luta dos contrários , nasce a harmonia , ou seja: na articulação das funções básicas da universidade, se dá a verdadeira educação jurídica. Sendo assim, sem qualquer pretensão conclusiva, já que esse é apenas o começo de uma pesquisa (de um pensamento), vale reafirmar, nas palavras de Hegel, esse citando Sócrates, que “aquilo que nos foi transmitido de Heráclito valeu 21 sua conservação” e nos convida à reflexão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HUPFFER, Haide Maria. Educação jurídica e hermenêutica filosófica. Tese – doutorado – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Direito, Orientação Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, Ciências Jurídicas, 2006, 381p. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Direito: perguntas e respostas: questões teóricas, acadêmicas e ético-profissionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 18 MATOS, 2011, p. 96. “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei (...)” (DK 22 B 53) 20 “ (...) o contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia” (DK 22 B 8) 21 SOUZA, 1978, p.102 19 242 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. “É mesmo o ser e o pensar”: notas sobre realidade e linguagem no pensamento grego originário. Revista Ética e Filosofia Política, n° 14, volume 2, Outubro de 2011, p. 87-102. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Massificação e crise no ensino jurídico. In: GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; LIMA, Paula Gabriela Mendes (Coord.) Pedagogia da Emancipação: desafios e perspectivas para o ensino das ciências sociais aplicadas no século XXI. Belo Horizonte, Fórum, 2010, 263p, p. 83-110. OAB. Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Disponível <http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=22173> Acesso em 31 de julho 2011. em SOUZA, José Cavalcante de (org.) Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 243 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. ÍNDICE REMISSIVO Alteridade, 84 Ciências sociais aplicadas, 42 Amizade, 84 Cinismo, 72, 73, 78 Anaxágoras, 146, 147, 148, 149 Cláusulas Gerais, 161 Animais, 29, 33 Coerência, 114 Aplicação judicial eficiente, 161 Comportamento ético, 42 Aproximações sucessivas, 145 Comportamento normativo, 42 Argumentação jurídica, 114 Conciliação, 10 Arte, 205, 206, 207 Conflito, 84 Atienza, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 62, 109, 118 Conflito de direitos fundamentais, 231 Atienza, Manuel, 47 Constitucionalismo, 121, 150, 173 Autonomia, 128 Constitucionalismo discursivo, 145 Autopoiese, 133 Constituição, 22, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 41, 55, 56, 62, 64, 114, 122, 173, 174 Biopolítica, 72, 152 Ciência do Direito, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204 Ciências da mente, 42 Contraditório, 90 Crise democrática, 17 244 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Crítica, 22, 28, 72, 173, 174 Educação, 90, 138, 143, 244 Cursos jurídicos, 238 Escravidão, 90, 101 Custo-benefício, 161 Essencialismo, 79 Decisão judicial, 219 Estado de Exceção, 152 Democracia, 17, 22, 23, 24, 28, 84 Evolução do Estado, 121 Democracia deliberativa, 23 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio, 62, 183, 184, 185, 186, 187, 188 Democracia representativa, 17 Desobediência Civil, 121 Dignidade, 128 Direito e democracia, 17 Direito e Democracia, 28, 34, 40, 173 Direito Novo, 152 Filosofia da História do Direito, 175 Filosofia do Direito, 33, 46, 55, 65, 66, 72, 84, 90, 121, 126, 145, 160, 173, 175, 183, 190, 203, 224, 226, 228, 240 Filosofia do Estado, 190 Direito Objetivo, 198 Formação do pensamento jurídico ocidental, 175 Direito Romano, 175, 180, 181 Governabilidade, 23 Direitos do homem, 72 Governança social, 23, 28 Direitos Fundamentais, 35, 121, 231 Heráclito, 92, 98, 99, 238, 239, 240, 241, 242, 243, 244 245 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Hermenêutica, 54, 55, 59, 90, 231, 238, 240 Hermenêutica Filosófica, 54, 55 Hermenêutica jurídica, 183 História Efeitual, 34, 38, 39 Idade Média, 175, 177, 180, 181, 182 Kelsen, Hans, 61, 62, 133, 134, 136, 137, 173, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 209 Legitimidade, 10, 17 Lei, 20, 22, 55, 56, 57, 64, 145, 193, 226, 232, 233, 235, 236, 237 Lei da inércia, 145 Identidade, 34 Liberdade, 15, 138, 231, 236 Igualdade, 15, 40, 128, 129 Licença, 231 Imaginação, 219 Linguagem, 113, 183 Impiedade, 145 Lógica, 90 Independência, 126, 231 Metodologia Jurídica Pluralista, 152 Indissociabilidade do ensino/pesquisa/extensão, 238 Miguel Reale, 65, 66, 70, 71 Integridade, 114 Moldura kelseniana, 60 Jurisdição Constitucional, 54 Momentos do Direito, 60 Justiça, 12, 23, 55, 121, 133, 160, 198, 226, 230, 237, 238, 243 Moral, 28, 79, 138, 143, 144, 150 Kant, Immanuel, 43, 74, 131, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 222 Moralidade, 212 Natureza humana, 42 246 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Nomos, 190, 191, 192, 193, 194, 195 Presunção, 219 Nova Retórica, 47, 48 princípios, 25, 27, 29, 44, 77, 95, 116, 117, 118, 119, 128, 138, 140, 141, 154, 222, 227, 233, 235 Ordem Concreta, 190 Prisão em flagrante, 219 patriotismo constitucional, 35, 36 Processo, 10, 221, 222, 224, 225 Perelman, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53 Quadratura do círculo, 145 Norma jurídica, 183 Perelman, Chaïm, 47 Physis, 190, 191, 192, 194, 195 Platão, 94, 95, 129, 193, 202, 226, 228, 230 Poder, 15, 22, 38, 54, 56, 57, 122, 212, 231, 232, 234, 236 Política, 54, 84, 98, 168, 173, 190, 191, 195, 237, 245 Ponderação, 231 Racionalidade, 205 Razão, 79, 238 Reconhecimento, 10, 34 Regras, 161, 163 Relativismo, 133 Representatividade, 23 Schmitt, Carl, 84, 190 senciência, 30, 31 Pós-guerra, 205 Sentenças Aditivas, 54 Precisão, 161 Shakespeare, William, 212, 213, 214, 215, 217, 218 247 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Singularidade universal, 152 Teoria da Justiça, 212 Síntese dos opostos, 90 Teoria do Direito, 34, 90, 138, 168 Sócrates, 43, 93, 94, 95, 96, 193, 226, 227, 228, 229, 244 Teoria Tridimensional do Direito, 65, 66, 68, 71 Sorteio, 17 Teubner, Günther, 133, 134, 135, 136, 137 Standards, 161, 164, 167 Sujeito Constitucional, 34 Suprassunção, 60 Teoria da argumentação, 60 Teoria da Argumentação, 47, 133, 224 Tragédia, 212 Utilitarismo, 29 Vagueza, 161 Verdade, 40, 59, 198 248 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito ÍNDICE DE AUTORES Alessandra Margotti dos Santos Pereira ............................................ 17 Alexandre Araújo Costa ...................................................................... 54 Ana Clara Matias Brasileiro .............................................................. 219 Andityas Soares de Moura Costa Matos .................................. 121, 238 André Almeida Villani ....................................................................... 183 Ariane Shermam Morais Vieira .......................................................... 10 Arnaldo Afonso Barbosa................................................................... 198 Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes ..................................... 133 Bruno Meneses Lorenzetto ................................................................ 84 Clara Souza Garcia Saar .................................................................... 219 Cláudia Rosane Roesler .................................................................... 114 Cristiano Soares Barroso Maia ........................................................... 54 Daniel Carvalho Ferreira ................................................................... 168 Eder Fernandes Santana............................................................. 72, 152 Eduarda Cellis da Silva Campos .......................................................... 29 249 Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011. Flávia Siqueira Costa Pereira .............................................................. 34 Flavianne Fernanda Bitencourt Nóbrega.......................................... 161 Freitrich Augusto Ribeiro Heidenreich ......................................... 17, 23 Gabriel Lago de Sousa Barroso ......................................................... 190 Igor Alves Noberto Soares .................................................................. 65 João Andrade Neto ........................................................................... 231 Joyce Karine de Sá Souza .................................................................. 121 Katya Kozicki ....................................................................................... 84 Lara Marina Ferreira ......................................................................... 168 Letícia Alonso do Espírito Santo ....................................................... 128 Loisima B. B. M. Schiess ................................................................... 145 Lossian B. B. Miranda ....................................................................... 145 Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho ..................................... 226 Luiz Augusto Lima de Ávila ................................................................. 90 Marcelo Campos Galuppo .............................................. 17, 23, 34, 219 Marcelo Corrêa Giacomini.................................................................. 79 Marco Antônio Sousa Alves ................................................................ 47 Maria Fernanda Salcedo Repolês ..................................................... 168 250 Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito Pâmela de Rezende Côrtes................................................................. 42 Philippe Oliveira de Almeida ............................................................ 175 Ricardo Antonio Rezende de Jesus ................................................... 114 Rodrigo A. Suzuki D. Cintra ............................................................... 212 Rosana Ribeiro Felisberto ................................................................... 10 Sandrelise Gonçalves Chaves ........................................................... 238 Thiago Álvares Feital......................................................................... 205 Victor Freitas Lopes Nunes ................................................................. 60 Victor Hugo Criscuolo Boson ............................................................ 205 Vinícius Silva Bonfim .......................................................................... 34 Vítor Amaral Medrado........................................................................ 34 Vìtor Amaral Medrado ..................................................................... 138 251