entre desejos e cânticos: a invenção da escola azevedo sodré na

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entre desejos e cânticos: a invenção da escola azevedo sodré na
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
ENTRE DESEJOS E CÂNTICOS: A INVENÇÃO DA ESCOLA
AZEVEDO SODRÉ NA CAPITAL FEDERAL (1922-1928)
Pedro Paulo Hausmann Tavares
RIO DE JANEIRO
2014
ENTRE DESEJOS E CÂNTICOS: A INVENÇÃO DA ESCOLA
AZEVEDO SODRÉ NA CAPITAL FEDERAL (1922-1928)
Pedro Paulo Hausmann Tavares
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientador: José Cláudio Sooma Silva
RIO DE JANEIRO
2014
ENTRE DESEJOS E CÂNTICOS: A INVENÇÃO DA ESCOLA
AZEVEDO SODRÉ NA CAPITAL FEDERAL (1922-1928)
Pedro Paulo Hausmann Tavares
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em
Educação.
Aprovada em_______________
Orientador: Prof. Dr. José Cláudio Sooma Silva (UFRJ)
Prof. Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ)
Profª. Drª. Sonia de Castro Lopes (UFRJ)
RIO DE JANEIRO
2014
Dedico este trabalho à memória da minha querida
avó Baby. Amiga de todas as horas, inventou uma
Itália na minha lembrança: com vidros de Murano,
canais de Veneza e corujas de ferro.
Agradecimentos
À Erica Feitosa Hausmann, minha querida mãe, por ter me ensinado a enxergar no
mundo e lutado pela nossa família. Agradeço-lhe pelo carinho, pelas histórias e o
incansável apoio.
Ao meu querido pai, Mario Eugênio Bonetti Tavares, homem admirável e amigo em
todas as circunstâncias. Agradeço-lhe pelas velejadas, pelos ensinamentos e abraços
apertados.
Ao meu irmão João Marcos Hausmann Tavares, eterno companheiro, uma pessoa
fantástica que cativa a todos com sua simplicidade, alegria e competência. Obrigado,
especialmente, pelas nossas viagens maravilhosas pelas terras do sul.
À minha família, por toda a ajuda e companheirismo. Uns estão mais distantes, outros
mais próximos. Obrigado por tudo que vivemos juntos até aqui.
À Aline Souza Oliveira Lanzillotta, por dividirmos muitos momentos felizes, mas
também pelo apoio e compreensão nas horas difíceis. Temos passado por excelentes
períodos juntos.
Ao professor e orientador José Cláudio Sooma Silva, pessoa amiga e talentosa. Muito
obrigado pela confiança, compreensão e apoio. Seus ensinamentos viajam para além dos
espaços universitários. Passo a ver o mundo por outras lentes.
Aos meus amigos Humberto Lapport, Guilherme e Ricardo Mayerhofer, Walter
Campos, Danilo Lima, Alexis Cavinchini, Marcelo Lobianco, Izidro Prieto, Daniel
Lemos, Thiago Strauss, Bernardo Aguiar, Alexandre Sande e Gabriel Gonçalves por
terem divido comigo momentos bons ou difíceis, mas engraçados e felizes.
Às minhas amigas Luciana Guimarães, Priscila Mendes, Carol Coutinho, Palas Brazão,
Renata de Carvalho, Fernanda Duarte, Isabela Mendes, Clarisse Guimarães, Marina
Natsume, Angélica Borges e Gisele Teixeira por compartilharmos vitórias e percalços,
risadas, aprendizados e ensinamentos.
Ao professor José Gonçalves Gondra por sempre ter me apoiado, e acreditado em mim
quando eu ainda era um menino na graduação em Pedagogia da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Convidou-me para fazer parte do seu grupo de pesquisa onde fiz
grandes amigos. Graças aos seus ensinamentos tomei enorme gosto pela História da
Educação.
À professora Sonia de Castro Lopes, com quem aprendi muito. Obrigado pelas
disciplinas onde tive a honra de ser seu aluno. Durante sua orientação melhorei minha
escrita, explorei novas leituras e construí uma monografia sobre a história de um colégio
que, agora, inspira a presente dissertação. Guardo com grande carinho os momentos que
passamos juntos.
À professora Monique Andries Nogueira, por toda a orientação no sentido de me
encaminhar para o Mestrado em Educação da UFRJ.
À professora Irma Rizzini, pelos aprendizados que obtive durante suas aulas. Obrigado
por toda a atenção e apoio, e também por todos os direcionamentos que recebi nas
nossas conversas.
Ao grupo de pesquisa em História da Educação coordenado pelo professor Sooma Silva.
Todas essas amizades foram muito importantes no processo de construção do presente
texto. Dividimos leituras, apresentamos trabalhos em co-autoria e saímos para
comemorar. Pessoas incríveis, com quem aprendi inúmeras coisas. Estiveram sempre
prontas a ajudar nas lutas que fazem parte da vida acadêmica.
Ao Ricardo e à Solange, da secretaria do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, por estarem sempre solícitos e me ajudarem a
solucionar questões administrativas e burocráticas. Deles, recebi sempre um sorriso,
nunca uma antipatia.
Aos amigos do Programa de Estudo e Documentação Educação e Sociedade
(PROEDES/UFRJ), pelas discussões e aprendizados.
À Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por todo o
acolhimento. Vivi grandes experiências nesta instituição. Terei muitas saudades quando
deixar de ser seu aluno.
Resumo
O presente estudo tem como tema principal a Escola Azevedo Sodré, numa
perspectiva que leva em conta os entrelaçamentos de sua fundação com os projetos de
remodelação urbana que vinha sendo empreendido desde o início do século XX na
capital carioca. Com efeito, não apenas reformas urbanas foram realizadas pelas
administrações municipais. Uma cidade que se pretendia “modernizar”, sob a lógica
governamental, precisava contar com uma população instruída e educada para
representar um ideal de comportamentos que se esperava no decurso da década de 1920.
O problema que se apresenta diz respeito aos usos inventivos que se propôs para a
escola. O patrono do estabelecimento de ensino, Antônio Augusto de Azevedo Sodré,
empreendeu uma doação de valores monetários à escola sob a condição de que esta
realizasse três festejos anualmente. Estas festas, estrategicamente, desempenhariam um
papel pedagógico na inculcação de novos hábitos e diferentes condutas na população.
Desse quadro geral, as questões que foram levantadas referem-se à adequação do
prédio para funcionar como escola, posto que ele não foi planejado para tal propósito.
Ao contrário, passou por uma reforma para receber os alunos. Defende-se a ideia de que
esta reestruturação do espaço foi apenas superficial, o que criou dificuldades para o seu
funcionamento. Outra questão levantada refere-se à hipótese de que Azevedo Sodré, por
meio da escola, queria ser lembrado na posteridade; ou, por outras palavras, deixar sua
marca gravada no tempo. Indaga-se, portanto, se este desejo teve ou não êxito.
No que diz respeito aos objetivos da dissertação, pretendeu-se articular a história
do colégio com as ideias de outros autores que, igualmente, elegeram a cidade do Rio de
Janeiro e a década de 1920 como focos de pesquisa. Em relação à metodologia
empregada utilizou-se variadas fontes, empreendendo o princípio de variação de escala
proposto por Jacques Revel (1998). Indícios, pistas sutis, como cartas trocadas pelo
patrono, artigos de jornais, revistas, fotografias, compuseram uma rede de documentos
que, pensados de forma correlacionada, foram discutidos com a intenção de construir
uma história, de acordo com os indícios investigados, sobre a Escola Azevedo Sodré.
Cumpre destacar que o arquivo da escola não estava muito bem organizado, o
que dificultou a coleta do material para a pesquisa, e nos levou a problematizar outros
documentos alheios à esfera oficial da Diretoria Geral de Instrução Pública no período
que nos interessava. As fontes, portanto, não se limitaram a uma categoria específica,
tendo-se preferido recorrer a diversas possibilidades de entrada à temática escolhida
para análise. Assim, a legislação foi perscrutada, especialmente o Decreto 2940 de 29
de novembro de 1928 (rubricado por Fernando de Azevedo) e os Programas para o
Ensino Primário Carioca, datado de 1926 (assinado por Carneiro Leão). Mas, também,
foram empregados outros aportes, como o documento de tombamento do prédio da
escola, ocorrido em 2000, e o livro O ensino na capital do Brasil, elaborado também
por Carneiro Leão em 1926, e que traz uma série de tabelas, gráficos e considerações
sobre a instrução pública do período.
Através desta experiência escolar estudada, foi possível perceber que Azevedo
Sodré obteve, ainda que parcialmente, êxito ao promover a sua memória por meio da
escola. A dissertação apresenta cartas e jornais que falam sobre atividades
desenvolvidas no colégio, mesmo muitas décadas após o falecimento de seu patrono,
que cultuavam a lembrança de Azevedo Sodré.
Palavras-chave
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; AZEVEDO SODRÉ; ESCOLARIZAÇÃO PRIMÁRIA;
HISTÓRIA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO; ADMINISTRAÇÃO FERNANDO
DE AZEVEDO (1927-1930); ADMINISTRAÇÃO CARNEIRO LEÃO (1922-1926).
Abstract
This study's main theme is the Azevedo Sodré School, we are using a
perspective that takes into account the relations between its foundation with urban
renewal projects that were being carried out since the beginning of the twentieth century
in Rio de Janeiro. Indeed, not only urban reforms were carried out by local authorities.
A city that was going through a process of "modernization" under the governmental
logic, needed to have an educated population to represent an ideal of good behaviors,
which were expected during the 1920s. The problem arising is about the inventive uses
that are proposed for the school. The patron of the educational building, Antonio
Augusto de Azevedo Sodré, undertook a monetary donation to the school on the
condition that three festivities should be performed annually. These festivities
strategically should play a pedagogical role in the inculcation of new habits and
behaviors on the population.
A question raised relate to the adequacy of the building to function as a school,
since it was not designed for that purpose. A renovation was performed to receive the
students. We are defending the idea that the renovation of the space was only
superficial, which created difficulties for its operation. Another issue relates to the
hypothesis that Azevedo Sodré, with the school, wanted to be remembered in the future,
or, in other words, create a mark for himself. We are questioning whether this desire
succeeded or failed.
We sought to articulate the history of the college with the ideas of other authors
who also chose to focus on the city of Rio de Janeiro and 1920s. About the
methodology used, we brought different sources, and used the principle of variation of
scale offered by Jacques Revel (1998). Clues, subtle cues, such as letters exchanged by
the patron, newspapers, magazines, images, a network of documents, have been
discussed with the intention of creating a story, in accordance to the evidences
investigated about the Azevedo Sodré school.
The files on the school were not very well organized, making it difficult to
collect the material for the research. This led us to operate other documents outside the
official sphere of the “Diretoria da Instrução Pública” in the period we chose to focus.
The sources, however, were not limited to a specific category. We preferred to use
various entries to the theme. As a result, the legislation was used, especially the Decree
2940 of November 29, 1928 (signed by Fernando de Azevedo). Also the Programas
para o Ensino Primário Carioca, dated 1926 (signed by Carneiro Leão). We also have
operated with other contributions, such as a document that granted no changes should
happen on the school building, the year from this document is 2000. The book O ensino
na capital do Brasil, also signed by Carneiro Leão in 1926, has been used, it brings a lot
of graphs and other considerations about the public instruction on that time.
We are proposing that Azevedo Sodré obtained, at least partially, success in
promoting its own memory with help from the school. The dissertation presents letters
and newspapers that talk about activities at the school, many decades after the death of
his patron. Those activities worshiped the memory of Azevedo Sodré.
Keywords
HISTORY OF EDUCATION; AZEVEDO SODRÉ; PRIMARY SCHOOLING;
HISTORY OF THE CITY OF RIO DE JANEIRO; FERNANDO DE AZEVEDO”S
MANDATE (1927-1930); CARNEIRO LEÃO’S MANDATE (1922-1926).
Sumário
Introdução .................................................................................................................... 14
Capítulo I
Azevedo Sodré e sua escola ......................................................................................... 30
1.1 – Algumas problematizações necessárias .............................................................. 30
1.2 – Médico ou educador? .......................................................................................... 41
1.3 – A Escola Azevedo Sodré .................................................................................... 59
Capítulo II
Reflexões sobre a capital carioca ................................................................................. 76
2.1 – Um debate sobre os anos 1920 ........................................................................... 76
2.2 – Outros olhares sobre o Colégio Azevedo Sodré ................................................. 92
2.3 – Educação reformada ......................................................................................... 102
Capítulo III
Palco para um projeto de modernidade ..................................................................... 116
3.1 – A modernidade e os hinos ................................................................................ 116
3.2 – Jornais e revistas como fonte de pesquisa ........................................................ 125
3.3 – Algumas considerações sobre culturas escolares ............................................. 133
Considerações finais .................................................................................................. 160
Referências bibliográficas ......................................................................................... 170
Fontes ......................................................................................................................... 176
Sites consultados ........................................................................................................ 177
Anexos ....................................................................................................................... 178
Lista de Imagens
Imagem da Galeria de Professores da Escola Nacional de Medicina da Universidade do
Brasil (BACELLAR, 1963) .......................................................................................... 42
Nomes e vigência dos mandatos dos Diretores da Instrução Pública no Distrito Federal
(LEÂO, 1926, p. 202) .................................................................................................. 44
Enchente de 1928, Revista Careta n° 1028, FBN ........................................................ 62
Apresentação da escritura de doação à Prefeitura do Rio de Janeiro, 4 de maio de 1925
...................................................................................................................................... 66
Decreto de tombamento do prédio da Escola Azevedo Sodré, 27 de dezembro de 2000
...................................................................................................................................... 94
Decreto de tombamento do prédio da Escola Azevedo Sodré, 27 de dezembro de 2000
...................................................................................................................................... 95
Escola Azevedo Sodré. Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010 ....... 97
Escola Azevedo Sodré. Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010 ....... 98
Escola Azevedo Sodré. Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010 ....... 99
Escola Azevedo Sodré. Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010 ..... 100
Escola Azevedo Sodré. Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010 ..... 101
Capa do Hino Azevedo Sodré (Domingos Magarinos, 1924) ................................... 120
Letra e música do hino ............................................................................................... 121
Letra e música do hino ............................................................................................... 122
Artigo sobre a escola Azevedo Sodré, (Jornal do Brasil, 5 de setembro de 1925)
.................................................................................................................................... 127
Escola Azevedo Sodré, (Augusto Malta, 1926) ........................................................ 141
Escola Azevedo Sodré. Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010 ..... 142
Carta à escola, 6 de setembro de 1975 ....................................................................... 152
Artigo sobre a escola Azevedo Sodré, (Jornal do Brasil, 21 de novembro de 1982)
.................................................................................................................................... 154
Questionário aplicado aos alunos (LEÂO, 1926, p. 121) .......................................... 157
Tabela com a posição da escola (LEÂO, 1926, p. 121) ............................................ 158
Introdução
Ao contrário do que pensamos, se as
margens limitam e contêm o rio, dão a ele forma e curso, não
são as margens que produzem o rio, mas justamente o
contrário, é o fluxo das águas, o passar incessante de seus
torvelinhos que vai escavando as margens, dando a elas
contornos, é o rio que produz suas margens.
Durval Muniz de Albuquerque Junior
A metáfora proposta por Albuquerque Junior (2007) nos convida a iniciar os
estudos sobre a história da Escola Azevedo Sodré. Não será preocupação da presente
pesquisa pensar esta história de maneira fixa, como se houvesse margens às quais
devêssemos seguir para explicar, evidenciar, mostrar como foi, o período de fundação
do colégio. Ao contrário, pretende-se seguir “o fluxo das águas (...) que vai escavando
as margens” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 29). Busca-se, assim, contar uma
história, entre outras histórias possíveis, sobre o objeto em questão. O pesquisador,
neste curso, se interessa pelos encontros das águas com as margens, pela construção,
pela invenção, do próprio rio.
O autor reflete sobre uma história que não deve ser pensada pelo prisma da
realidade, ou da materialidade, como ponto de partida. Tampouco devemos entendê-la
criando fortalezas na outra margem, aquela da representação, da subjetividade. O
historiador que assim procede, acaba construindo outros castelos, tão ou mais sólidos do
que aqueles que protegem o paradigma da verdade, que pretendia inicialmente
combater. A beleza da metáfora de se pensar a história como rio reside no
reconhecimento de uma terceira margem. “Nem os objetos, nem os sujeitos preexistem
à história que os constitui. A história possui objetos e sujeitos porque os fabrica,
inventa-os, assim como o rio inventa o seu curso e suas margens ao passar”
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 29) Se assim entender seu ofício, o historiador
deverá se colocar no lugar onde “estas variáveis se misturam”.
O que significa pensar a história e escrevê-la desta terceira margem?
Significa primeiro pensar que a história não se passa apenas no lugar da
natureza, da coisa em si, do evento, da matéria, ou da realidade, nem se
passa apenas do lado da representação, da cultura, da subjetividade, do
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sujeito, da ideia ou da narrativa, mas se passa entre elas, no ponto de
encontro e na mediação entre elas, no lugar onde estas distinções ainda são
indiscerníveis, onde estes elementos e variáveis se misturam.
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 28)
“Da terceira margem eu (sou)rio. Sobre história e invenção”. Este é o título do
texto de onde esta passagem foi retirada. O autor cria um jogo de palavras que remete a
um sorriso. Portanto, em primeiro lugar, uma história em que o pesquisador está feliz ao
fazer o seu trabalho. Como que gritasse um basta àquela história carrancuda, propensa a
palavras rebuscadas, afeita a uma produção historiográfica para circular apenas entre
intelectuais. “(Sou)rio”, diz o autor ao celebrar sua pesquisa. Ao mesmo tempo, remete
a uma intenção de se colocar naquele ponto de encontro de que o trecho acima se refere.
Um historiador que não está ao lado das margens do rio, das verdades sobre o passado,
nem ao lado da correnteza, ou da subjetividade, se pensa como um rio que se inventa, se
(re)inventa e se constrói durante o seu percurso.
Assim, o percurso investigativo que trilhei em relação à Escola Azevedo Sodré
não tentou enfatizar uma dimensão exclusiva de pesquisa, o que remete, também, para a
ideia de variação de escala proposta por Jacques Revel (1998). Não há como alcançar o
passado da escola de maneira fiel. Os sujeitos que vivenciaram os anos 1920 na Escola
Azevedo Sodré já, em sua maioria, faleceram. Cerca de 90 anos nos separam daquelas
circunstâncias. Não seria possível, portanto, acessar relatos daquele período por meio,
por exemplo, de entrevistas. Se fosse possível obter estes depoimentos, ainda assim,
conteriam os silêncios selecionados ou, por outro lado, as exclamações preferidas
naquelas falas. Reconhece-se, neste caminho interpretativo, a oralidade como uma
representação do passado (CHARTIER, 1990). O caminho seguido, contudo, devido ao
passar das décadas, foi outro. Recorre-se a fontes como arquivos da escola, jornais dos
anos 1920, dados da administração pública, entre outras. Este material, tal qual se
esperaria da utilização de entrevistas na pesquisa, também contam uma história, entre as
outras que seriam possíveis. Os silêncios, as ênfases propositais, a própria seleção das
fontes, tudo isso foi opção do autor do texto que se constrói.
Além disso, na análise das informações sobre a Escola Azevedo Sodré, pode-se
esperar o uso ético das fontes coletadas. Se não se pode contar com uma análise
verdadeira sobre o tema, uma perfeita fidelidade sobre aquele período na leitura do
presente texto, pode-se, aí sim, esperar uma preocupação de fazer uso coerente do
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material coletado. Isto é importante na direção de não se produzir fontes, de não ler
apenas o que é confortável à pesquisa. Há momentos em que o historiador deparará
com fontes que direcionarão a investigação a um caminho totalmente novo, isto pode
significar o necessário abandono de um linha argumentativa que vinha sendo
empreendida. Por mais que, no ofício de se trabalhar com história, haja um
compreensível luto quando isto ocorre, não nos é permitido, sobre o julgamento
primeiro de nós mesmos, seguir contando uma história que não mais se sustenta depois
da nova fonte que se levantou. Este problema ocorreu na presente pesquisa, houve pausa
para reflexão, e informações que não mais poderiam ser utilizadas foram suprimidas, e
outra história foi narrada com o uso das novas fontes encontradas. Houve etapa em que
se trabalhou com informações imprecisas sobre uma suposta doação, por parte de
Azevedo Sodré, de uma casa à Prefeitura do Rio de Janeiro para funcionar como escola.
Após releitura e coleta de novas fontes, outro entendimento se ergueu. O que Azevedo
Sodré doou, com base na interpretação da escritura de doação disponibilizada, foram
valores monetários à Prefeitura do Rio. Esta diferença de objeto entregue à
administração pública exigiu a reescrita de parte do texto. O trabalho, intelectual e
exaustivo, se fez necessário, de modo que todas as informações aqui apresentadas estão
de acordo com o que a última análise das fontes possibilitou escrever. Neste sentido,
destaca-se, que um compromisso ético precisa acompanhar o ofício do historiador. A
história precisa ser contada com base nas fontes, na leitura dos documentos, na análise
das informações que se conseguiu aglutinar. Nunca o contrário, algo como possuir uma
ideia e buscar intencionalmente fontes que validem a teoria. Se assim procedesse o
historiador, qualquer absurdo poderia ser validado academicamente.
Outra dificuldade que se apresenta na escrita é a colocação de um ponto final ao
trabalho. Toda obra acadêmica precisa se submeter aos prazos, cronogramas e regras
que fazem parte da organização dos cursos ofertados pelas Universidades. Esta
limitação de tempo, forma e objeto apresenta um constrangimento ao pesquisador. Na
análise genealógica proposta por Michel Foucault (1997), o início da história se dilui.
Ao contrário de se buscar um ponto inicial de onde se desenrolam os acontecimentos,
como que numa evolução em direção ao presente, há a ideia dos acasos dos começos,
em que o início, fixo, não existe. Assim, os entrelaçamentos que compõem um
determinado período com outros momentos históricos precisam ser investigados para
contar uma história cujo objeto não é preponderante, mas relacionado às outras
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estruturas que compõem a teia de representações que se objetiva pesquisar. Da mesma
forma que o início está fluído (BARRENECHEA, 2006), o “ponto final” da dissertação
é igualmente um problema para o escritor. Um texto não se encerra. Se acreditássemos
fielmente nos encerramentos, seria equivalente a dizer que a ideia presente foi
suficientemente explorada, ou que se encontrou uma suposta verdade acerca do que foi
contado. Por outro lado, ao pensar numa fluidez para o ponto final, entende-se que
aqueles argumentos necessitam de futuras análises, e principalmente futuras leituras.
Todo texto deseja ser lido, e cada leitor interpretará o trabalho singularmente. Neste
caminho, o final se converte em trampolim, do qual as ideias fazem uso para saltarem
do texto até o momento da interpretação do leitor, que se encarregará de dar
prosseguimento:
criando,
inventando,
involuntariamente,
uma
fluidez
dos
encerramentos. Podemos, neste ponto, retomar a ideia da história como rio. O
pesquisador prepotente, ou o leitor mesquinho, acreditarão que o rio tem um fim: “o
Paraíba do Sul nasce no município de Paraíbuna e termina em São João da Barra” 1.
Quem, ao contrário, aceitar o convite de se aventurar numa interpretação dos finais
como fluidez, representação ou invenção, poderá entender o final do rio como o mar, o
mar em sua dimensão infinita de infinitezas.
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa - MAR PORTUGUÊS (PESSOA, 2012)
Fernando Pessoa, ao falar sobre o mar, remete para uma ideia de grandeza e
desafio. Se pensarmos no oceano como a história, investigá-la será uma tarefa árdua:
“por te cruzarmos, quantas mães choraram”. O trabalho do historiador requer empenho
1
Informações colhidas no site http://portal.iff.edu.br, consulta em 9 de Janeiro de 2014.
17
e método. Mas, ao mesmo tempo, o mar se presta às lágrimas e às conquistas. “Foi nele
que espelhou o céu”, escreve o poeta. Nesta direção, o mar, ou a história, não estão
presos sob uma única forma de interpretação, posto que do céu, “Deus” vê o mar de
outro ângulo. O mar, ou a história, como um espelho, representam a ideia de que não há
uma verdade absoluta, posto que dependendo da posição que se observa o espelho, o
reflexo muda e surpreende. Às vezes o mar está calmo, e reflete as nuvens, em outras
ocasiões o mesmo mar está revolto, assim ocorre com a história, que pode ser contada
por diferentes vieses. Ele precisa ser explorado, navegado, investigado: “tem que passar
além da dor”. A recompensa, no final, será o percorrer do próprio caminho. A história
não se encerra, o historiador a estuda e a veleja. Se assim a entender, não deve ficar
limitado por um espaço único (Portugal), mas lançar-se à tarefa de construir um
entendimento do mundo mais amplo, que leve em conta entrelaçamentos com outras
interpretações do próprio mundo (Além do Bojador). O final, como que se não existisse,
é representado pela metafísica no poema. No caso do estudo da história, o fim, tal qual o
início, não existe de forma sólida. Talvez por isso a melhor maneira de explicá-los seja
por meio da poesia. O historiador deve indagar se pesquisar a história vale à pena,
tamanhos os desafios e percalços. A resposta vem com uma das mais belas escolhas de
palavras já empregadas na língua portuguesa: “Valeu a pena? Tudo vale a pena se alma
não é pequena”.
Debruço-me, agora, sobre alguns aspectos relacionados à minha trajetória de
pesquisador. O leitor pode, todavia, questionar se a minha história reveste-se de
significância para a feitura de uma dissertação. Acredito que muitas das escolhas que
delimitaram este projeto estiveram indissociavelmente ligadas ao meu percurso. Seria,
portanto (e aqui já sinalizo para um caminho teórico importante para essa dissertação)
impossível escrever um texto neutro, que falasse sobre a história de um colégio carioca
de forma absolutamente imparcial. Não foi essa, definitivamente, minha intenção para o
texto que se segue. Nele estarão contidas algumas marcas, minhas escolhas pessoais e
tarefas para o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Estes foram aspectos que, de uma forma ou de outra, construíram,
apagaram ou evidenciaram pontos para este texto.
Estudei na Escola Suíça do Rio de Janeiro, quando criança. Foi neste lugar que
me interessei pela docência, provavelmente por influência dos professores que cruzaram
o meu caminho. No ano de 2001 iniciei a Faculdade de Pedagogia da Universidade do
18
Estado do Rio de Janeiro, onde tive os primeiros contatos com a História da Educação.
Fui convidado pelo professor José Gonçalves Gondra para ser bolsista de iniciação à
pesquisa científica; não hesitei em aceitar. No grupo de pesquisa ao qual estive ligado,
conheci pessoas que me inspiraram e me fizeram cultivar apreço pela história
educacional. Terminada a faculdade comecei a trabalhar como professor do Município
do Rio de Janeiro. Após cerca de três anos ministrando aula na Comunidade do Vidigal,
experiência marcante, senti que era hora de retornar à academia. Entrei para a pósgraduação da UFRJ, mais especificamente no CESPEB (Curso de Especialização
Saberes e Práticas da Educação Básica). Foi onde conheci a professora Sônia de Castro
Lopes. Sob sua orientação, construí uma monografia sobre o Colégio Azevedo Sodré:
um colégio com mais de oitenta anos de história, e que tem algumas peculiaridades
administrativas que me chamaram a atenção. Foi assim que, dentro da grande gama de
estudos em História da Educação, me vi interessado pela história das instituições
escolares no Rio de Janeiro.
Este caminho percorrido por mim, ainda que não livre de percalços, e ciente dos
atravessamentos inerentes ao próprio caminhar, fez com que me inscrevesse no curso de
mestrado da UFRJ, sob orientação do professor José Cláudio Sooma Silva. Neste
quadro, é importante destacar que a dissertação que foi produzida representou uma
continuação da análise empreendida sobre a Escola Azevedo Sodré, na ocasião da
produção da monografia de conclusão do curso de pós-graduação citado.
Passo, agora, a abordar alguns aspectos relacionados à produção do texto, que
objetivam permitir ao leitor uma compreensão dos caminhos trilhados. Além das
informações que foram levantadas, e das análises empreendias, um conjunto de
metodologias foi utilizado para escrever a dissertação. Uma reflexão sobre este processo
constitui, por si mesmo, objeto de interesse, e por isso iluminam-se as abordagens que
foram perscrutadas.
A dissertação versou sobre a história do Colégio Azevedo Sodré, e fez um breve
relato biográfico sobre o patrono do estabelecimento, em diálogo com as ações de
governo que prevaleceram durante a década de 1920. Nessa medida, inseriu-se a
pesquisa na discussão sobre a análise da instituição e operou-se com autores que, como
aportes teórico-metodológicos, emprestaram perspectivas para dialogar o referido
estudo com um quadro mais amplo da história.
19
Os aportes teórico-metodológicos que foram mobilizados pela dissertação
pressupõem uma seleção de autores, entre outros que poderiam ter sido utilizados. Não
se deixou de utilizar as fontes oficiais, como documentos públicos e escrituras lavradas
em cartório. Contudo, fez parte do suporte documental que foi levantado, uma gama de
indícios que se aproximam da visão que Le Goff (1984) faz dos documentos. Assim,
uma fotografia antiga, um texto de jornal, documentos legislativos, cartas internas da
comunidade escolar, entre outros, passaram a constituir fontes importantes para o estudo
realizado.
Algumas fontes foram selecionadas por possibilitarem uma aproximação com o
tema proposto e, a partir de sua análise, alargaram as reflexões concernentes aos anos
1920 e à Administração Carneiro Leão (1922-1926). Carneiro Leão era o Diretor da
Instrução Pública durante o período de inauguração da Escola Azevedo Sodré. Assim,
os Programas para o Ensino Primário Carioca, datado de fevereiro de 1926, e assinado
por Carneiro Leão, possibilitaram uma análise das prescrições educativas relacionadas
aos métodos, saberes e práticas que eram, estrategicamente, estipuladas para as escolas
primárias no período. Nesta mesma linha, o Regulamento de Ensino, decreto 2940,
datado de 1928, constitui um texto legislativo cuja análise levou a questionamentos que
envolvem as ações político-educacionais que circundaram os primeiros anos do nosso
colégio. Portanto, os saberes e os conteúdos propostos por estes documentos circularam
pela Escola estudada, e influenciaram a sua orientação pedagógica. A dissertação se
propôs a analisar estes textos de forma mais aprofundada. Ainda no apontamento das
fontes, o livro Novos caminhos e novos fins A nova política da educação no Brasil, de
Fernando de Azevedo (1935) foi utilizado por compilar um conjunto de representações
educacionais que foram colocadas em circulação no período, através de artigos de
jornais, palestras, discursos, entrevistas.
No que se refere a outras abordagens, busco entender a História da Educação
com base em referenciais diversos: a leitura de autores que contribuíram para o
entendimento da história em sua multiplicidade de temas transversais é um exemplo dos
aportes teórico-metodológicos que foram utilizados na dissertação. Porém, o texto não
tem por objetivo somente realizar uma interpretação da história: pretende valer-se dela
para estabelecer um olhar sobre a escola.
20
A pesquisa bibliográfica é importante para pensar o colégio numa abordagem
teórica. Após realizar um estudo acerca da história que cerca o período de inauguração
do Colégio Azevedo Sodré, em que recorri a autores Como Diana Vidal (2001, 2005),
Clarice Nunes (1996), Jorge Nagle (1976), Marta Carvalho (1998), André Paulilo
(2001, 2007), Sônia Camara (2006) e Sooma Silva (2004, 2008, 2009) que pensam a
educação naquele momento, mas também em outros, parti para uma outra etapa da
pesquisa que consistiu na análise documental. Busquei fontes em arquivos públicos, em
documentos internos do colégio e da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Neste
sentido, acredito que o fato de ser professor no município do Rio tenha facilitado o
processo de coleta de material.
Outro referencial teórico que utilizo, e que propõe uma ação metodológica, é o
texto de Gondra e Tavares (2004). Neste texto que publicamos em conjunto afirmamos:
“Pensada como discurso, uma ação sobre ações, a legislação constitui-se em fonte
importante para a história da educação, renovada por meio de uma abordagem que, ao
lado da exegese, ocupa-se igualmente em apanhá-la na superfície de sua emergência,
voltando-se também para os efeitos que produz no campo onde se inscreve” (p.1).
Frente àquilo que pudemos explorar neste texto, sublinho que estas reflexões também
fizeram parte do conjunto de referenciais aos quais recorri para pensar a história da
Escola Azevedo Sodré e seus entrelaçamentos com textos legislativos.
A pesquisa que se vale de textos legislativos pode operar com as análises sobre
como os sujeitos que receberam as determinações legais as receberam. Assim, a letra
fria da lei é abordada, mas igualmente interessante se torna uma reflexão acerca dos
usos que se empreenderam da legislação.
Outro tipo de preocupação está presente em uma história que não busca os
inícios, exceto quando se reconhece que estes inícios muitas vezes foram obras dos
acasos (FOUCAULT, 1997). Uma história, assim, buscada através de vestígios, como
se o historiador se colocasse no papel do caçador que espreita a presa e chega a ela
através das pistas sutis, como pegadas, cheiro de urina ou pelagem caída no chão
(GINZBURG, 1989).
É claro que a caça não se apresentaria espontaneamente perante o caçador.
Assim como o objeto de pesquisa não se entregará tão facilmente ao historiador. Se este
21
quiser alcançá-lo (ainda que isto não seja plenamente possível, e por isto talvez seja
pertinente falar em apenas um olhar, entre outros olhares, sobre o objeto), terá que
esforçar-se, buscar fontes pouco ortodoxas, vasculhar arquivos e reconhecer a
importância do que antes era jogado fora: como rabiscos gofrados nas carteiras dos
colégios. Esta ideia, que me parece interessante, encontra-se no texto “Raízes de um
paradigma indiciário”, de Carlo Ginzburg (1989).
Por esta razão, práticas governamentais empreendidas podem indiciar estratégias
mais amplas, produzidas no sentido de escolarizar a população dotando-a de hábitos e
comportamentos que seriam interessantes à administração pública em seu projeto de
inventar determinada modalidade de modernidade para a capital carioca. Estudaram-se,
nesta direção, as práticas escolares que, segundo o autor da doação para promovê-las,
deviam ser executadas dentro da Escola Azevedo Sodré. O doador foi o personagem que
acompanhou toda esta pesquisa. Azevedo Sodré, engajado no projeto da construção de
uma modernidade para o Rio de Janeiro, queria que a escola que levava seu nome
representasse um lugar educado, onde os ideais que cultivava pudessem ser transmitidos
aos alunos, e assim retransmitidos às famílias destes. Como estratégia de difusão destes
preceitos, fomentou-se a celebração de festejos, que transmitiam uma mensagem de
boas maneiras ao alunado.
Desse quadro geral, no mês de maio, ao realizar festa que celebrava a
fraternidade americana, a escola se insere num cenário de inovação carioca, que buscava
fundamentar a então capital brasileira como cidade-modelo, capaz de representar junto à
comunidade internacional um exemplo de progresso urbano e virtude social. Aos quatro
de setembro o colégio celebraria o dia do patrono da escola, em que o respeito às
personalidades (no caso o próprio patrono do estabelecimento), contribuía para
transmitir aos alunos um padrão de comportamento que seria necessário à cidade nos
anos seguintes, com uma população instruída e higienizada, dotada de hábitos modernos
de comportamento. Por fim, aos 19 de novembro celebrava-se o culto da bandeira e o
amor à pátria, em que valores cívicos eram ensinados para consolidar a cidade do Rio de
Janeiro como capital federal, cuja população deveria cultivar amor ao país e à
urbanidade recém-adquirida.
Como apresentado, o colégio deveria realizar festejos que celebravam o Rio de
Janeiro enquanto capital, disseminando a ideia de que havia muitos motivos para a
22
população se orgulhar da sua cidade, e assim se esquecer dos tempos coloniais e
imperiais. A inspiração parisiense, percebida na arquitetura de diversos prédios2,
adaptada à nossa geografia, era comemorada como uma nova época em que o Rio devia
ser modelo para outras cidades do Brasil. A escola, acerca deste ponto em específico,
desempenhou um papel na construção e difusão destas ideias. Para se entender como a
escola poderia ser utilizada pela administração pública como local de difusão de uma
mensagem específica, recorreu-se a autores como Sooma Silva (2009), que já
desenvolveram estas ideias em seus estudos. Nesta medida, cabe, aqui, reiterar a
importância da seleção criteriosa de referenciais teóricos adequados. A seguir,
apresentam-se algumas ideias sobre como devem ser empreendidas estas escolhas.
A seleção de referencial teórico que dialogue com o objeto em estudo deve ser
cuidadosamente pensada pelo pesquisador. Se não houver um critério afinado entre o
estudo e os autores que, de algum modo, refletiram sobre temáticas convergentes, podese cair na armadilha de se pautar o texto através da linha sugerida pelos “argumentos de
autoridade”. Entendo por argumentos de autoridade as ideias de autores que receberam
respaldo dos seus pares na academia. Assim, de forma aligeirada, poder-se-ia construir
um texto em história da educação escolhendo os livros, ou as ideias, que darão suporte à
pesquisa, e a partir daí, “encaixar” o objeto em estudo na visão dos autores
selecionados. Pierre Bourdieu (1983) fala sobre as relações de força que são exercidas
dentro do campo científico, e que interferem nos mais variados estudos. É tarefa do
pesquisador saber percorrer e dialogar com estas relações de poder.
A estrutura do campo científico se define, a cada momento, pelo estado das
relações de força entre os protagonistas em luta, agentes ou instituições, isto
é, pela estrutura da distribuição do capital específico, resultado das lutas
anteriores que se encontra objetivado nas instituições e nas disposições e
que comanda as estratégias e as chances objetivas dos diferentes agentes ou
instituições. (BOURDIEU. 1983, p. 12)
Isto quer dizer que um estudo, por exemplo, em história da educação, deve
celebrar o capital acadêmico dos protagonistas do campo, mas ao mesmo tempo saber
articular estas ideias de forma proativa no estudo realizado. Assim, as ideias
2
Alguns exemplos: o Hotel Copacabana Palace, fundado em 1923, representa a tentativa de erguer uma
arquitetura semelhante à da França em terras cariocas. O arquiteto foi o francês Joseph Gire.. Um outro
edifício que marcou esta preocupação foi o teatro Municipal, fundado em 1909.
23
preexistentes, os argumentos de autoridade, devem ser inseridos de modo que sirvam
como reflexão entrelaçada com o objeto proposto. Nesta direção, afasta-se a utilização
de citações dos célebres textos do campo selecionado como simples “respaldo” do que
vinha sendo dito. Ao contrário, deve-se recorrer a elas quando possam ser articuladas e
problematizadas com a proposta do texto científico.
Cabe, neste ponto, sinalizar que na presente pesquisa se recorreu em todos os
capítulos às ideias de outros estudos que dialogam com os anos 1920, a Cidade do Rio
de Janeiro, a historiografia da educação, entre outros temas. Reconhece-se assim um
enorme empenho de tempo, esforço, capital, que estes autores empreenderam para
produzirem estudos de grande qualidade. Reafirma-se a intenção de destacar estes
argumentos de autoridade quando possam se relacionar com os estudos acerca da
história da Escola Azevedo Sodré, e as questões que se abrem a partir desta proposta. A
seleção dos referenciais teóricos é uma etapa deste projeto. A seguir, apresento outra
etapa, que diz respeito aos documentos levantados para construir esta dissertação.
A seleção de uma base documental que ajude a construir uma interpretação
sobre o passado é uma parte fundamental de qualquer projeto de pesquisa. Neste caso
não foi diferente. Contudo, cabe enfatizar a importância de uma seleção plural. Não
parece conveniente enfatizar um único tipo de coleta, posto que a pesquisa tornar-se-ia
enviesada pelo excessivo relevo de um único aporte. Le Goff (1997) enfrenta esta
questão e propõe que o pesquisador recorra a uma interpretação não ortodoxa dos
documentos. Neste sentido, como já apresentado, vestígios do passado, nas suas mais
variadas formas, podem alimentar a pesquisa como fontes importantes de indícios sobre
o objeto em estudo. Parece importante, neste ponto, salientar que isto não quer, de modo
algum, acastelar uma “outra” estrutura documental para a pesquisa, como se os indícios
sutis, os sussurros, as letras semiapagadas pudessem, de um instante para o outro, tomar
o lugar que os textos oficiais – aqueles produzidos dentro da lógica do poder instituído –
sempre tiveram. Os autores que souberam entender a provocação de Le Goff tomaramna como uma tarefa a mais a ser cumprida: procuraram entender as articulações que se
estabelecem entre o discurso oficial e aqueles produzidos na derrapagem do primeiro.
Assim, tanto um documento legislativo quanto um caderno de ex-aluno podem fornecer
pistas importantes, as quais o pesquisador não deve ignorar. A soma de ambos, os
entrelaçamentos que se estabelecem entre variados tipos de documentos, ajudam a
lançar um olhar mais amplo sobre o objeto.
24
O arquivo da Escola Azevedo Sodré, apesar de não muito bem organizado (tratase de uma pasta plástica cheia de papéis), forneceu-me alguns documentos que serviram
para esta pesquisa. Por exemplo, a escritura de doação de valores, feita por Azevedo
Sodré, ao município no ano de 1925 foi importante. Também encontrei nesta pasta uma
carta assinada pela própria filha do patrono do colégio, como forma de agradecer à
direção pela celebração de festas em homenagem ao seu pai. Jornais e revistas serviram
como indícios, sujeitos a análises criteriosas, de cerimônias realizadas no passado da
casa. Documentos do legislativo carioca foram discutidos no presente texto como forma
de relacionar as práticas pedagógicas concebidas para funcionarem no colégio estudado
com as ênfases selecionadas pela Diretoria de Instrução no período. Ainda nesta mesma
linha, o livro O ensino na capital do Brasil, assinado por Carneiro Leão (1926), fornece
tabelas, gráficos e opiniões que ajudam a contar uma história, entre outras possíveis,
sobre os tempos que nos interessam para esta pesquisa.
Neste ponto, cabe observar de que maneira ocorreu a distribuição dos capítulos e
a organização do texto. Para efeito de uma melhor compreensão da estrutura da
dissertação, torna-se pertinente expor, resumidamente, as ideias que serão levantadas ao
longo da narrativa.
O Capítulo I se propõe a apresentar algumas das experiências de vida do patrono
da escola estudada, em que se enfoca a relação do sujeito Azevedo Sodré com a vida na
cidade, e os projetos governamentais em curso na década de 1920. A relação com os
tempos sociais e históricos é realçada, numa perspectiva que também busca trazer para a
análise os entrecruzamentos da vida escolar com os espaços educativos e urbanos do
Rio de Janeiro capital do Brasil.
Procura-se discutir, com apoio de referencial teórico, a “recente” utilização de
biografias em trabalhos acadêmicos. Ocorreu durante muito tempo certo preconceito
dos historiadores no que tange à utilização das biografias como objeto das suas
preocupações investigativas. Este preconceito não era infundado, baseava-se na
premissa de que, para efeito de um trabalho acadêmico, devia-se evitar tom
excessivamente laudatório quando se aborda a figura pública de um sujeito histórico.
Todavia, já no final do século XX houve um movimento historiográfico que se mexeu
numa direção oposta àquela. Assim, poder-se-ia falar num “ressurgimento” dos textos
biográficos na historiografia. Busco iluminar esta tendência, e para isso recorro a três
25
autores: Pierre Bourdieu (2003), Phillipe Levillain (1996) e Giovani Levi (1996). São
todos teóricos, à sua maneira, da revalidação das “histórias de vida” em pesquisas
históricas.
“Médico ou educador?” Com esta pergunta busca-se instigar a curiosidade do
leitor. A dúvida quanto à natureza da atividade profissional de Azevedo Sodré é
justificada. Era comum nos homens públicos que se dedicavam a uma das duas causas,
transbordarem a sua atividade para as duas esferas de preocupação. Assim, quem se
dedicava à saúde, muitas vezes também se dedicava à educação. Buscava-se solucionar
os problemas médico-higiênicos da sociedade dos anos 1920 através de uma promoção
da escolarização da população. Nesta direção destacam-se alguns aspectos da trajetória
de Azevedo Sodré, procurando enfatizar não apenas o “discurso oficial” que se
construiu sobre ele. Este discurso oficial procurava destacá-lo como médico de relevo
da capital, destacado político e fundador da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de
Janeiro, entre outras atividades que exerceu. Um discurso elogioso foi estabelecido. Não
desconsiderei esta tendência de análise, mas procurei dialogar com outras circunstâncias
da sua vida. Nas palavras de Levi (1996): uma “micro-história” investigativa se destaca
na pesquisa. Somadas as duas abordagens, em que se aceita a sugestão de variação de
escala de Revel (1998), pode-se construir uma leitura, entre outras possíveis, do
percurso de Azevedo Sodré. Proponho uma teoria de que o personagem representado
estaria preocupado com o legado que deixaria para a posteridade, nesta direção, fez
doação de capital à escola com o objetivo de que esta se encarregasse se produzir uma
memória coletiva a seu respeito.
Em seguida sistematizamos algumas informações sobre o período de fundação
da unidade de ensino. Nessa linha, foram tecidas algumas considerações concernentes à
coleta de documentos que sustentam as informações apresentadas. Nesta direção, trago
a escritura de doação, em que o próprio Azevedo Sodré faz uma doação de capital para
a promoção de três festividades dentro do colégio que levava seu nome. Este documento
é cuidadosamente analisado, de modo a estabelecer entrecruzamentos investigativos
acerca das preocupações contidas em seu texto com algumas características do período
que se ilumina. A tese defendida é que as festividades que deviam ser celebradas na
escola dialogam com o projeto governamental de promoção de uma modernidade para a
capital do Brasil (SILVA, 2009). Apresento trechos do texto da escritura como forma de
promover um debate sobre o período. Além disso, uma reprodução da escritura estará
26
disponibilizada nos “anexos” desta dissertação, com o objetivo de que, para além das
análises estabelecidas, e ciente das limitações que uma leitura única sobre o tema acaba
por recortar, os futuros leitores possam empreender outras interpretações.
No que se refere ao Capítulo II da pesquisa, dialogo com um conjunto de
referenciais teóricos, suportes documentais, acervos fotográficos, entre outras
estratégias, para tentar uma representação sobre o período dos anos 1920 na cidade do
Rio de Janeiro.
Um dos principais recursos escriturários que o leitor encontrará é a citação de
alguns autores que se debruçaram, à sua maneira, sobre a cidade que pesquiso e o
período enfatizado. A capital do Brasil, no período, já recebeu atenção de um
prestigiado grupo de autores brasileiros, aos quais recorro para ajudar a contar essa
história. Refiro-me, como já apresentado, a Sooma Silva (2009), Clarice Nunes (1994,
1996, 2000), Sônia Câmara (2006), André Paulilo (2001, 2007), Diana Vidal (2001) e
Marta M. C. de Carvalho (1998). Cada um desses autores destaca um aspecto sobre o
período. Longe de considerá-los como fonte esgotada de argumentos, essas seleções de
outros pesquisadores ajudaram a promover o recorte que se encontra no texto que se
descortina.
A seguir, busca-se realçar outras representações sobre o colégio estudado. O
leitor não encontrará, entretanto, em nenhuma parte do texto, um tópico específico que
objetive esgotar os estudos sobre a Escola Azevedo Sodré. Esta preocupação está
presente ao longo de toda a dissertação, de modo que mesmo nos trechos que citam, por
exemplo, os referenciais teóricos, ocorrem menções ao colégio estudado. Esta estratégia
é proposital, pois não faz parte da pretensão desta pesquisa finalizar as possibilidades de
estudo sobre a escola. Nesta direção, encontrar-se-ão ao longo do texto tabelas,
documentos, citações das falas dos personagens que marcaram aquele tempo histórico.
Desse quadro geral, por exemplo, foram enfatizadas duas administrações da
Diretoria Geral da Instrução Pública: a de Antonio Carneiro Leão (1922-1926) e a de
Fernando de Azevedo (1927-1930). Cada um desses períodos produziu documentos
legais, que trazem importantes informações sobre a política educacional que se
desenhava para a população. A fundação da Escola Azevedo Sodré insere-se no
contexto da administração Carneiro Leão, porém, os regulamentos produzidos por
27
Fernando de Azevedo repercutiram logo nos primeiros anos de funcionamento da
unidade de ensino, e por isto são trazidos para formar um conjunto de representações
sobre as reformas de ensino que foram empreendidas na década de 1920. O texto desta
dissertação procura realçar aspectos da legislação que importam à escola pesquisada,
bem como se vale de autores, como André Paulilo (2001), que agudiza a reflexão sobre
o próprio conceito de reforma, e de que maneira deve ser analisado pela história da
educação.
O Capítulo III, finalmente, versa sobre os entrelaçamentos entre as culturas
urbanas e as culturas escolares. Por exemplo, reflete-se sobre o emprego dos hinos na
unidade de ensino estudada. Houve a composição de um hino em homenagem ao
patrono da escola, e este hino devia ser cantado nas manhãs como forma de despertar
ideais de comportamentos que fariam alusão à modernidade que se esperava construir
na cidade do Rio de Janeiro. Os cânticos, assim, ao serem entoados em ordem e com
respeito, propunham uma separação entre os tempos escolares e os outros tempos
sociais, concebidos como anti-higiênicos e desordenados. Versa-se, ainda, sobre quais
eram estas concepções de modernidade para a cidade foco desta pesquisa, em que se
recorreu a autores como Le Goff (1997). No caso, considera-se que no Rio de Janeiro,
com uma região central reconstruída em estilo francês, buscava-se promover novos
comportamentos que dessem conta de produzir uma vivência harmoniosa nestes novos
espaços. Assim, desqualificava-se o passado como forma de promover aqueles novos
presentes.
Para melhor compreender o emprego destes referenciais de modernidade,
sugere-se investigar quais as estratégias empreendidas para difundir estes novos
preceitos na sociedade. Como forma de indiciar o emprego destas metodologias,
recorre-se aos vestígios deixados por jornais e revistas daquela época. Nesta direção,
analisa-se a utilização da imprensa como fonte para a história da educação, em que se
cita outros autores, como Sônia Camara (2004), que utilizaram esta abordagem
investigativa para produzirem suas pesquisas.
Por fim, reflete-se sobre o emprego do termo “cultura escolar” na história da
educação. As culturas produzidas dentro dos espaços da Escola Azevedo Sodré ajudam
a perspectivar algumas categorias que têm sido amplamente discutidas por autores da
área. Sugere-se uma incursão por Augustin Escolano (2000) e Viñao Frago (1995), que
28
refletiram, entre outros assuntos, sobre os tempos e os espaços como aspectos das
culturas educativas. Propõe-se analisar uma fotografia antiga da instituição, e
empreender uma comparação com imagem mais recente. Esta análise ajuda a entender
por quais reformas a casa passou. Estuda-se, também, quais eram as disciplinas
ministradas dentro da escola, e os seus horários de funcionamento, entre outros
aspectos, que interferiam nas atividades escolares.
Termino esta introdução retomando algumas das ideias que foram abordadas em
seu início. As palavras de Durval Albuquerque Junior trazem uma dimensão quase
poética para os estudos históricos. Nesse caminhar, uma preocupação que desponta é
aquela que condiz à busca pela palavra mais bela. Esta cuidadosa harmonização das
expressões, em que a leitura transcende a uma lógica puramente formal, requer um
esforço adicional de escrita, mas a recompensa é enorme. Afinal, ler um texto deve
constituir, antes de tudo, um prazer e um encanto.
O historiador está condenado, como o pai da terceira margem, a navegar
indefinidamente, a nunca aportar em porto seguro, a seguir o (dis)curso, a
realizá-lo. Ancorar em uma das margens, do objeto ou do sujeito, não lhe
garante segurança, porque estas não cessam de ser erodidas, mudadas de
forma pela passagem do tempo. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 30)
A beleza do trecho acima cativa o leitor, e serviu como inspiração para o
trabalho empreendido. Quando as certezas desmoronam, quando as palavras falham, ou
quando o cansaço abate, recorrer ao poeta-historiador funciona como um alento. “Nunca
aportar em porto seguro”, diz o autor, e remete para um sentimento que, acredito, seja
comum aos atuantes no campo. Onde não há certezas, haverá alguma ansiedade, mas ela
é reconfortada pela percepção de que outros pesquisadores a sentem de forma parecida,
e também diferente. A erosão das margens funciona do mesmo modo que a erosão das
certezas sobre qualquer objeto. A história, assim entendida, é um “(dis)curso” em que o
historiador ao mesmo tempo pesquisa e se lança nele. Mas, por outro lado, o “navegar
indefinidamente” torna a tarefa sublime, pois com as margens erodidas pelo passar do
rio, um novo rio se constrói, e um novo campo se abre para ser investigado. Quem
aprecia fazer história verá nisso um desafio e um convite quase irrecusável.
29
Capítulo I
Azevedo Sodré e sua escola
1.1 Algumas problematizações necessárias
O presente capítulo tem por objetivo efetivar uma sistematização da história da
Escola Azevedo Sodré. Para tanto, acredito que seja pertinente, de início, iluminar
alguns aspectos relacionados à trajetória político-administrativa construída por Antônio
Augusto de Azevedo Sodré, patrono da Escola.
Inicio este estudo com uma reflexão sobre os usos de textos biográficos em
trabalhos acadêmicos3. Houve durante muito tempo certo preconceito por parte da
academia no que tange à aceitação de trabalhos com ênfase numa perspectiva
biográfica. Isso porque alegava-se que esses trabalhos não empreendiam uma reflexão
crítica sobre a História e acabavam, portanto, por realizar uma simples glorificação da
pessoa. Entretanto, durante a década e 1990, ocorreu uma movimentação do campo
historiográfico na direção de retomar estudos desta natureza. Nessa linha, os
historiadores passaram a aceitar melhor os trabalhos biográficos como contribuintes
para o exercício de produção do conhecimento em relação ao passado.
A história épica, a história social ou a das mentalidades traziam (e ainda o
fazem) contribuições relevantes para se pensar as experiências construídas pelos sujeitos
sociais em diferentes períodos históricos; contudo, o que parece insuficiente é a
tentativa de se prestigiar, apenas, um destes paradigmas. Desta feita, acredito que
adquire pertinência a proposta sustentada por Jacques Revel (1998) que a partir, e em
função, dos “jogos de escala” defende a variação como princípio orientador do fazer
historiográfico. Essa variação das escalas de análise possibilita as condições para que
sejam estabelecidas interlocuções com os focos que se afigurem como os mais
3
A autora Teresa Maria Malatian também se preocupou com a questão da atualidade das biografias em
trabalhos acadêmicos. Ela tem sua pesquisa vinculada à UNESP, no núcleo de Franca, e se dedicou a uma
pesquisa sobre a produção de biografias nas Universidades do Brasil, tendo verificado que, apesar do
gênero ter sofrido certo preconceito por parte da academia, as biografias não deixaram de fazer parte da
produção intelectual do nosso país. “Por que biografar?” é uma pergunta que a autora se colocou e que
serviu como eixo condutor das ideias aqui apresentadas. A este respeito, ver: MALATIAN, 2008.
30
apropriados frente à proposta de colocar em exame determinadas circunstâncias
específicas.
Cumpre, assim, perceber o olhar que aqui se estabelece perante a trajetória de
Sodré como um enfoque, entre outros possíveis, para se entender as relações do sujeito
com o seu espaço e o seu tempo. Ao prestigiar sua trajetória, esta pesquisa se preocupa
em fornecer indícios que possam ajudar a construir um entendimento sobre os anos
1920 na cidade do Rio de Janeiro.
Assim, a história das pessoas, em seus respectivos tempos, ajuda a indiciar certas
categorias (Ginzburg, 1989) que podem ser úteis à problematização do objeto em
pesquisa. Parto destes pressupostos para analisar a história da Escola Azevedo Sodré.
Nessa empreitada, ao lado das reflexões de Revel (1998) e Ginzburg (1989), estabeleço
diálogo com outros autores – Phillipe Levillain (1996), Giovani Levi (1996) e Pierre
Bourdieu (2003), por exemplo – que se constituem como referências importantes para a
discussão do gênero biografia.
Através da leitura de Phillipe Levillain (1996) se pode conceber uma defesa de
leituras históricas que partem de referências biográficas. O autor empreendeu um estudo
acerca da vida dos papas, o que em sua obra abriu espaço para a discussão de outras
muitas reflexões em história. As relações do papado com a política italiana, ou as
peculiaridades da vida pessoal do pontífice constituíram-se como interesses de pesquisa,
descortinando caminhos para novas indagações que antes não se colocavam. Nesse
sentido, a biografia pode servir como um interessante procedimento para realçar
determinados aspectos que, posteriormente, podem ser incorporados à reflexão
historiográfica.
Levillain (1996) não se restringiu ao estudo do caso das biografias sobre os
papas. Refletiu sobre a própria natureza das biografias e é nesta direção que aponta um
dos seus trabalhos mais discutidos e citados por outros historiadores. Refiro-me ao texto
Os protagonistas: da biografia (1996). Este estudo nos interessa para o caso de Antônio
Augusto de Azevedo Sodré, pois Sodré não estava identificado com os mais humildes,
ou com os anti-heróis presentes em obras como a de Goethe4. Ao contrário, o homem a
4
Fausto (2007), escrito por Johann Wolfgang Von Goethe, é um poema trágico que apresenta a relação
entre um homem comum e o diabo, obra clássica da literatura alemã em que se discute a ideia de antiherói.
31
ser biografado neste estudo era um político de elevada influência na esfera pública da
capital do país. Biografar os governantes, e não os governados, constitui um interesse de
pesquisa controverso na historiografia, esta ideia encontrou altos e baixos na academia
francesa.
Pode-se datar dos anos 19705 a reabilitação das biografias na França. Mas há
textos biográficos elaborados desde a antiguidade clássica. Em Roma, na obra de
Augusto, há estudos históricos sobre a vida do imperador. Durante o séc. XIX, período
de marcada influência do positivismo, as biografias eram produzidas para marcar a
história de reis e generais. A história da vida destas pessoas confundia-se com a história
das próprias batalhas e o seu tempo (Levillain, 1996, p. 146). O autor também aponta
que o Darwinismo produziu marcas para a pesquisa em história, fazendo crer que os
grandes homens encontraram um triunfo que comparava-se ao êxito biológico de uma
espécie. Após os abalos em escala global produzidos pelas duas guerras mundiais,
Walter Benjamim (1940) propôs inverter a lógica de exaltação do triunfante para contar
a história dos perdedores, dos obscurecidos pela história épica. A crítica à ideia de
Benjamin reside na não verificação de estágios intermediários entre os vencedores e os
vencidos. A excessiva polarização entre duas categorias não atenta para as diversas
ralações estabelecidas entre os ricos e os pobres, os vencedores e os vencidos, os fortes
e os fracos. Assim entendido, o fraco encontra táticas (DE CERTEAU, 1998) para obter
força, ou os pobres encontram seus caminhos para viver e consumir bens.
Na década de 1950 houve certa reticência no que se referia à produção de
biografias. Temia-se que ao escolher este caminho, o historiador produzisse um discurso
laudatório. O esforço de Levillain (1996), ao defender a validade da produção de
biografias, é pela sua utilização enquanto instrumento de pesquisa. Focar a atenção para
o herói ou o anti-herói não constitui, em si mesmo, um problema historiográfico. O que
deveria interessar ao historiador, ele sugere, são as perguntas que se abrem a partir da
biografia, seja ela sobre um cidadão comum ou o mais influente dos políticos. Em
outras palavras, esta própria distinção entre cidadão comum e pessoa influente esvai-se
pela conclusão de que os ditos homens simples têm os seus momentos de glória e os
tradicionalmente glorificados invariavelmente agem simples, errática e cotidianamente.
5
O texto de Levillain (1996, p. 141) traz um dado relevante para corroborar esta afirmação: em 1º de
outubro de 1966, tomando a França como recorte espacial, foram computadas 756 teses de doutorado em
história contemporânea, entre estas 46 eram biografias. Na década seguinte, houve uma tendência de
aumento destes números.
32
No trecho a seguir, Levillain (1996) reconhece a dificuldade que se apresenta ao
historiador, pois a ideia de entender um tempo pela história de um homem seria bastante
enviesada. Afinal, o governante que triunfou nas batalhas encarrega-se de apagar os
vestígios deixados por seus opositores. Mais do que isso, promove a sua biografia em
ações populistas como o fez Getúlio Vargas6, ou procura deixar marcas em escritos
como ocorreu em Fernando de Azevedo7 ao produzir o livro A cultura brasileira
(1943). Portanto, contar a história de outras singularidades se apresenta como um
objetivo difícil de ser enfrentado, pois a matéria-prima deste historiador será os
silêncios, e não apenas os discursos inflamados de campanha, será o esquecimento, e
não apenas a memória coletiva. Será, enfim, tanto as ruínas como os castelos, a
oralidade e o texto escrito.
A relação entre o indivíduo e a história sempre suscitou a mesma suspeita que a
relação entre os deuses e a história que os historiadores gregos anteriores ao século
IV não apreciavam muito. Era claro também que o status e o desenvolvimento da
biografia estavam estreitamente ligados ao regime político em que trabalhava o
historiador. E a confusão que ocorreu em Roma a partir de Augusto entre a pessoa
do imperador e o Estado iria levar ao clímax a ambiguidade entre biografia e
história. A duração de um reinado tornou-se o quadro natural da história política. O
fenômeno foi levado a amplificar-se nos tempos modernos com a afirmação das
monarquias. A biografia de um rei, ou de um general, não se confunde com a
história dos acontecimentos que um e outro se envolveram. Mas é difícil manter-se
a distinção. (LEVILLAIN, 1996, p. 146).
Ao propor uma análise biográfica da figura de Azevedo Sodré, o mesmo tipo de
problema se apresenta para o presente trabalho. A maior parte dos textos que encontrei
sobre sua história o colocam em posição de elevado prestígio, praticamente em tom de
agradecimento pelo seu prestativo trabalho junto à esfera pública para a melhoria das
condições da saúde, tendo em vista que era médico, e da educação, já que as duas pastas
estavam intimamente ligadas no período. Ao tentar contar outras histórias possíveis
sobre Azevedo Sodré, pretendi recorrer a fontes que vão além dos relatos biográficos já
produzidos. Mais uma vez, os documentos e os vestígios levantados são todos oficiais,
6
Vargas empreendeu governo em que se utilizava de propagandas para divulgar seu trabalho. Fazia
discursos inflamados, e passou a ser conhecido como o “pai dos pobres”. Vangloriava-se do ineditismo
das leis trabalhistas que introduziu. Recomenda-se para um aprofundamento no assunto a leitura do livro
“O populismo e sua história, de Jorge Luiz Ferreira (2001).
7
Fernando de Azevedo escreveu o livro “A cultura brasileira” cujo ano de publicação é 1943. Nesta obra,
projetada por ele com o objetivo de ser monumental, é importante destacar que havia sido idealizada
como uma introdução ao censo de 1940. Na ocasião este censo era celebrado como o maior trabalho
estatístico já realizado acerca das características do povo brasileiro. Neste sentido, com a pretensão da
monumentalidade, o próprio autor buscava a revalidação de seu espaço intelectual e político na sociedade
brasileira. A este respeito ver: Carvalho, 1989.
33
como uma escritura lavrada em cartório em que ele comparece ao lado do, então,
prefeito da cidade do Rio de Janeiro Alaor Prata8.
A busca por uma análise biográfica de Azevedo Sodré repousará, então, na
persistência no que diz respeito ao levantamento das fontes, além de haver uma
necessária preocupação com a coerência argumentativa. Diante do material disponível,
cabe ao historiador elaborar argumentos que possam ser defendidos a partir da
problematização das fontes. Há, aqui, uma importante preocupação ética, já que não se
pode, sob hipótese alguma, criar fatos, aumentar aspectos que nos interessam.
Levillain (1996) defende, enfim, o uso das biografias, bem como sua validade no
meio acadêmico. Apresenta os usos que se fizeram delas, critica os excessos, mas
termina por propor não uma metodologia para o fazer biográfico, mas um debate que
deve acompanhar toda a análise de quem se aventurar por este campo. O autor
reconhece que ainda hoje se encontra na academia, bem como na literatura, o uso
laudatório das histórias de vida. Critica esta persistência, mas entende as dificuldades de
agir de outra forma. Dialoga com a ideia de representação ao avaliar que a história de
um homem conduz a um olhar, entre outros olhares possíveis, acerca de tempos e
espaços da história. Uma fotografia vista como representação, apresenta um momento,
um olhar, uma escolha. Nunca uma verdade em si mesma. O retrato assim percebido se
compara à biografia, que pode representar9 o mesmo homem que a câmera capturou,
mas tal como o retrato feito pelo fotógrafo, o produto final do historiador será um
momento, um olhar, uma escolha.
A biografia histórica hoje reabilitada não tem como vocação esgotar o
absoluto do ‘eu’ de um personagem, como já o pretendeu e ainda hoje o
pretende mais do que devia. E se a simbologia de seus fatos e gestos pode
servir de representação da história coletiva através de um homem, tal como
o retrato, ela não esgota a diversidade humana [...] (LEVILLAIN, 1996, p.
176).
A ideia de problematizar as fotografias como possibilidade investigativa será
explorada de forma mais sistematizada no segundo capítulo desta dissertação. Por ora,
nos interessa colocar em relevo a perspectiva investigativa privilegiada por Levillain
(1996) em relação aos estudos biográficos que se distanciou, bastante, das ênfases
8
Alaor Prata Leme Soares foi prefeito da cidade do Rio de Janeiro de 16 de novembro de 1922 a 15 de
novembro de 1926.
9
Chartier (1990) discute a ideia de representação e convida o leitor a entender o trabalho historiográfico
não como uma validação do passado, mas como um olhar que se faz sobre este.
34
laudatórias sobre os sujeitos históricos que, em geral, caracterizavam esta modalidade
narrativa até então.
Levillain produziu o Dictionnaire historique de la papauté (2004), tendo
recebido críticas pela ocasião da publicação desta obra. Argumentava-se que o autor
havia elaborado um texto enciclopédico, de características cartesianas, acerca dos papas,
o que contradiria o seu discurso que se opunha a uma história rígida, fragmentada e
planificada. O autor, todavia, produziu um texto que não se prendia ao tom numérico,
quantitativo e explicativo que se poderia esperar de um dicionário; algo que, inclusive,
concorreu para que se tornasse uma fonte reconhecida sobre o papado. Esta discussão se
apresenta de forma importante para o presente trabalho, pois é justamente de um
dicionário que retiro as informações relevantes para elaborar uma representação da
história de Antônio Azevedo Sodré. Refiro-me ao Dicionário de Educadores no Brasil
(FÁVERO e BRITTO, 2002). O cuidado que se deve ter ao utilizar um dicionário de
personalidades se apresenta como uma questão que pretendi enfrentar com esta
pesquisa. Ainda que de boa qualidade, como é o caso da obra citada, deve-se reconhecer
que um questionamento acerca das informações trazidas pela obra deve ser
implementado, para evitar que se tome como simples “verdades” os relatos biográficos
apresentados.
No que diz respeito, ainda, às necessárias críticas àquelas abordagens que
enfatizam, exclusivamente, as dimensões panorâmicas e/ou que concebem a História
como um plano linear que deve ser desvendado pelo pesquisador, podemos recorrer ao
historiador italiano Giovanni Levi, que trabalha na Universidade de Veneza e que
também se debruça sobre o tema das biografias.
Sobre as contribuições de Giovanni Levi10, cabe destacar a pesquisa que realizou
em Piemonte, sobre as pessoas que viviam num povoado chamado Santena nos séculos
XVII e XVIII11 (2000). Documentos das igrejas locais, contas deixadas no comércio e
outros vestígios encontrados na localidade possibilitaram as condições para que
10
O VII Congresso Brasileiro de História da Educação realizou-se na cidade de Cuiabá entre os dias 20 e
23 de maio de 2013. Foi promovido pela Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), com
apoio da Universidade Federal do Mato Grosso. Este é o encontro mais importante dos historiadores da
educação no Brasil. A reunião ocorre para discutir ideias, analisar as produções do campo e promover a
interação entre pesquisadores das mais diversas localidades brasileiras. A cerimônia de abertura contou
com a presença de Giovanni Levi..
11
Levi estudou o povoado de Santena em um procedimento analítico exaustivo. Seu objetivo era
examinar os acontecimentos biográficos de todos os habitantes que deixaram vestígios documentais. Seu
recorte temporal foi um período de 50 anos entre o final do século XVII e início do século XVIII.
35
estudasse a vida das pessoas comuns. O autor interessou-se, por exemplo, pela trajetória
de um exorcista, suas relações com o ambiente e com as pessoas que ali viveram. Isso
contribuiu, decisivamente, para que propusesse questionamentos que sequer
interessariam aos historiadores de algumas décadas atrás. Algo que, sobretudo, se
relaciona à observação das sutilezas sociais, culturais e históricas sobre a vida das
pessoas comuns.
O interesse a respeito da vida travada pelas pessoas comuns nos abre um campo
de investigação para a presente pesquisa. Todavia, seria difícil conciliar a ideia de
perscrutar aspectos sobre as pessoas comuns com uma análise sobre a vida de Azevedo
Sodré. Prestigiado médico, político e educador, tinha espaço garantido na alta sociedade
carioca da época. Ocorre que, mesmo ao se debruçar sobre uma pessoa importante, há
aspectos sobre a vida destas que nos interessam numa abordagem micro-histórica. No
caso desta pesquisa, o viés investigativo cuidará de analisar os entrelaçamentos entre a
vida do homem de renome com o seu entorno, sua relação com os outros sujeitos sociais
e o seu espaço e tempo.
Ao propor um estudo sobre a vida de Sodré, ou de qualquer biografado, uma
primeira estratégia escriturária recai sobre a utilização da história oral. Nesta
perspectiva, se convida a pessoa para falar sobre aspectos da sua trajetória. No caso
deste estudo, pela circunstância temporal, seria impossível empreender este caminho12.
Neste sentido, optou-se por privilegiar não um, mas diversos caminhos investigativos. A
micro-história defendida por Levi (1996) contribui com uma parte da proposta, mas não
pretende esgotar a pesquisa.
Reconheço a importância de observar as questões do cotidiano, porém os
grandes percursos também são dotados de relevância. Nesta direção, cabe um retorno às
interlocuções estabelecidas com as ideias de Jacques Revel (1998). Isso porque, como
foi afirmado, esse autor defende a imprescindibilidade da variação para obter proveito
das contribuições que cada jogo de escala pode trazer para a pesquisa. Por vezes, na
operação historiográfica (DE CERTEAU, 1982), o historiador pode fazer uso de uma
12
Levi (1996), aponta que as biografias contribuem para problematizar questões da micro-história, e
propõe o uso da história oral como um dos caminhos a serem executados pelo historiador. A história oral
é difícil de ser acessada, justamente porque muitas vezes seu objeto de pesquisa se concentra num período
em que as pessoas já faleceram. Ainda assim, ao lado de outras estratégias de pesquisa, como análises de
documentos, pode ser tentada por meio da utilização de registros diversos, como contos e lendas da
localidade, que foram registrados em papel, mas tiveram suas ideias transmitidas por uso da tradição oral.
36
abordagem macro analítica, perscrutando aspectos de grandes percursos históricos, de
países e governos. Em outros momentos, cabe uma análise em pequena escala, em que
se faça um estudo de pequenos grupos, interessando-se por localidades específicas e
pessoas comuns. Ambas as estratégias são válidas, pois diferentes ângulos de
observação produzem uma argumentação mais coerente do que privilegiar esta ou
aquela escala. Tal proposta foi utilizada na execução desta pesquisa, e por isso é
pertinente refletir com cuidado sobre a posição do autor.
A abordagem micro-histórica é profundamente diferente em suas intenções,
assim como em seus procedimentos. Ela afirma em princípio que a escolha
de uma escala particular de observação produz efeitos de conhecimento, e
pode ser posta a serviço de estratégias de conhecimentos. Variar a objetiva
não significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor,
significa modificar sua forma e sua trama. (REVEL, 1998, p. 20).
Assim, Revel expõe sua intenção de promover o que ele chamou de variações de
escala, mas é preciso reconhecer que esta variação produz efeitos sobre o objeto em
questão. Não apenas o foco, ora distante, ora aproximado, irá variar. Os próprios
interesses analíticos são colocados em dúvida e precisarão passar por uma reavaliação
por parte do pesquisador. Isto não significa “dar voz às formigas ou às girafas”, como
em tom irônico os críticos desta perspectiva insistem em duvidar. Trata-se de hesitar
diante das certezas que uma perspectiva monofocal acaba por produzir.
Enquadrar, todavia, Levi num compartimento batizado de “micro-história” seria
tomar por ingenuidade a pesquisa desenvolvida por ele. É preciso deixar claro que ao
optar pela proposta das variações de escola, não é possível dizer que a proposta de
Revel é a “certa”, e a de Levi é “errada”. Criar estas categorias por si só já seria uma
rotulação forçada que não encontra respaldo nas relações sociais. O mesmo livro Jogos
de escala (1998), que contem as proposições de Revel sobre as variações, apresenta um
artigo de Giovanni Levi que tanto sublinha a relevância da pesquisa micro-histórica
quanto enfatiza a validade de outras abordagens. O texto se inicia com a seguinte
sentença “não considero que todo problema histórico ganhe em ser tratado num nível
microanalítico” (LEVI, 1998, p. 203). O que demonstra que o autor, apesar de optar em
diversos textos pela micro-história, não concebe que esta abordagem invalide outras.
Sendo assim, cabe avaliar que a contribuição de Levi para o campo não pode ser
ignorada; principalmente no que tange à produção de biografias, como ocorre na
presente pesquisa sobre a vida de Azevedo Sodré. O autor italiano se interessou sobre a
37
análise de biografias diversas de uma aldeia italiana, biografias singulares sobre
aspectos da vida íntima das pessoas. Este foi um de seus esforços mais reconhecidos no
campo. Contudo, devemos problematizar a própria concepção de biografia, pois ela se
baseia em certas premissas, como o nome próprio, que não estão livres de serem
criticadas quanto à sua natureza.
Pierre Bourdieu (2003) também empresta ideias para pensar a utilização de
biografias, porém a sua abordagem caminha em direção distinta de Levi e Levillain,
sem necessariamente invalidá-las. Bourdieu (2003) reflete sobre o nome próprio, este
agente tão fundamental para a história tradicional. As biografias – ele critica – têm sido
constituídas segundo algumas premissas que pressupõem a linearidade da vida. Nesta
perspectiva, o sujeito nasce, recebe um nome, caminha pela sua trajetória e finalmente
falece. Como se não houvesse as rupturas, as artimanhas, o ambiente, as forças e as
fraquezas que atuam sobre ele.
Esta vida linear, tão convidativa (pela sua simplicidade) ao trabalho
historiográfico, é acompanhada pelo nome que a criança recebe no cartório ou nos ritos
batismais. Este nome é dotado de tamanha potência que a própria lei veda ao sujeito
afastar-se dele. Esta chancela tem sido utilizada pelos historiadores para propor uma
materialidade confortável. À guisa de exemplificação, podemos citar as narrativas
heroificantes acerca da vida de Joaquim José da Silva Xavier. Com frequência
incômoda, tais narrativas baseiam-se nas premissas da existência de um herói épico,
necessário à construção de uma representação de identidade nacional. Ao reforçarem (e
chancelarem) o apelido pelo qual é mais conhecido, Tiradentes, apresentam como
verdade uma trajetória de vida rígida, que não passa pelos descaminhos e rupturas pelas
quais somos (nós, pessoas) forçosamente convidados a lidar. A forca nos livros de
história aparece tal qual a cruz de Cristo, criando um mito através do martírio. José
Murilo de Carvalho discutiu as circunstâncias de criação deste “Mito de Tiradentes” no
livro A formação das Almas (1990), em que apresenta a ideia da construção de um
personagem necessário ao imaginário da recém criada república brasileira, e perscruta
aspectos cotidianos da vida do sujeito representado nos livros de história de todo o país.
38
Bourdieu percebe que a utilização do nome passa a ideia de uma representação
invariável13 do sujeito em todos os momentos da vida. Assim, o nome que aparece nos
boletins escolares da criança é o mesmo que se apresenta no óbito, como se a pessoa ali
representada fosse potencialmente a mesma. Esta lacuna temporal apresenta um
problema, pois não dá conta dos diversos sujeitos que constituem o ser ao longo do
tempo e do espaço.
Assim o nome próprio é o suporte (somos tentados a dizer a substância)
daquilo que chamamos de estado civil, isto é, daquele conjunto de
propriedades (nacionalidade, sexo, idade, etc.) ligadas a pessoas às quais a
lei civil associa efeitos jurídicos e que instituem, sob a aparência de
constatá-las, as certidões de estado civil. Produto do rito de instituição
inaugural que marca o acesso à existência social, ele é o verdadeiro objeto
de todos os sucessivos ritos de instituição ou de nominação através dos
quais é construída a identidade social: essas certidões (em geral públicas e
solenes) de atribuição, produzidas sob o controle e a garantia do Estado,
também são designações rígidas, isto é, válidas para todos os mundos
possíveis, que desenvolvem uma verdadeira descrição oficial dessa espécie
de essência social, transcendestes às flutuações históricas, que a ordem
social institui através do nome próprio (BOURDIEU, 2003, p. 188).
O autor utiliza propositalmente o termo construção da identidade social, para
marcar a ideia de que a identidade social não é dada a priori. Ao contrário, ela é
construída por diversas variáveis que atuam sobre o sujeito. Em sua obra, Bourdieu
convida a atentar, justamente, para estas variáveis, para que não se caia na confortável
premissa platônica de um indivíduo ideal, ou de uma verdade segura para a pesquisa em
história. Em outras palavras, a ideia do nome próprio pressupõe uma rigidez pouco
compatível com os erráticos, por vezes quixotescos, caminhos que compõem a ideia do
ser múltiplo presente na obra do autor francês.
Na mesma direção, devemos duvidar da história linear, ainda que ela se
apresente recorrentemente em diversas pesquisas. Isto não que dizer que a referência ao
nome seja proibida. Negar as representações que compõem a vida em sociedade seria
negar a própria sociedade. Há que se reconhecer o oceano de tradições inventadas
(HOBSBAWN, 1984)
no qual estamos mergulhados, e nos esforçarmos para
problematizá-lo. A leitura de Bourdieu não é contrária ao real, apenas pretende analisá13
Acredito que a categoria de representação aqui presente possa ser relacionada àquela defendida por
Roger Chartier (1990). A sociedade constrói entendimentos sobre variados acontecimentos, estes
entendimentos não constituem a coisa em si, pois foram forjados para representarem o objeto. Ao dizer
que a representação do nome é invariável, o autor entende que esta invariabilidade se dá por uma tradição
histórica em assim empreender. Contudo, por se tratar de uma representação, outras formas de evocar
uma pessoa seriam teoricamente possíveis.
39
lo criticamente. Ainda que não tenha a preocupação de traçar uma estratégia
investigativa sobre a trajetória de uma pessoa, ou um novo método de pesquisa
biográfica, o autor propõe alguns caminhos para o pesquisador que aceita o convite para
refletir sobre estas ideias, e que ajudam a pensar sobre a utilização do gênero biografia
neste trabalho. Apresento um deles a seguir.
Não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social
que, embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do
envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente construído os
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto
de relações objetivas que uniram o agente considerado – pelo menos em
certos número de estados pertinentes – ao conjunto dos outros agentes
envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos
possíveis (BOURDIEU, 2003. p. 190).
Isto equivale a dizer que ao fazer referência a uma trajetória de vida, como aqui
pretendi realizar com o sujeito social Azevedo Sodré, não se deve julgar que ela se
encaixe perfeitamente num projeto de história linear. Há que se buscar compreender as
relações do sujeito com o campo e o tempo onde os eventos sucederam, estando sempre
aberto à possibilidade do acaso interferir decisivamente na construção (sempre
arbitrária) que é narrar a vida de uma pessoa em um texto. Esta tarefa, se tomada
rigidamente, é a priori impossível. Pode-se, contudo, tentar empreender esta jornada se
reconhecermos que a trajetória narrada será apenas uma leitura do real, dentre outras
possíveis.
Nessa incursão sobre algumas questões relacionadas ao uso das biografias em
um exercício de produção de conhecimento historiográfico, restaria, ainda, a
necessidade de sublinhar um alerta. O percurso bibliográfico trilhado por este estudo
selecionou quatro autores (no caso Jacques Revel, Giovani Levi, Philippe Levillain e
Pierre Bourdieu) para respaldar a problematização. Convém explicitar as razões da
escolha por estes autores, dentre um universo de pesquisas acadêmicas que
privilegiaram aspectos que também trariam valiosas contribuições para o presente
estudo. Ocorre que se trata de uma escolha, entre outras possíveis, um caminho, entre
outros a serem trilhados. Seria, enfim, como aponta a literatura de Jorge Luis Borges
(1999)14, impossível compor um mapa que fosse do tamanho de todo o reinado. Para
14
“Naquele império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única província
ocupava toda uma cidade, e o mapa do império, toda uma província. Com o tempo, esses mapas
desmesurados não foram satisfatórios e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do império, que
40
fins de pesquisa, além de inútil, tal mapa seria irrelevante e impraticável quanto à sua
execução.
1.2 Médico ou educador?
Antonio Augusto de Azevedo Sodré foi médico e político, atuava nas áreas da
educação e da saúde no Brasil em um período que coincidiu com o final da primeira
república. Nasceu no Rio de Janeiro em 1864 e veio a falecer na cidade de Petrópolis
em 1929 (SANTOS, 2002).
A fotografia que apresento a seguir retrata Azevedo Sodré com meia idade, em
ângulo que lhe apresenta como figura importante. O retrato deve ser relacionado à
funcionalidade que se esperava para ele: iria para a Galeria de Professores da Escola
Nacional de Medicina da Universidade do Brasil. Azevedo Sodré era um médico
respeitado, foi um dos responsáveis pela fundação, em 1886, da Sociedade de Medicina
e Cirurgia do Rio de Janeiro. Aos 21 anos, em 1885, doutorou-se pela referida
faculdade, em que dissertou sobre os métodos de tratamento da sífilis. Nesta mesma
instituição foi catedrático de patologia interna e a dirigiu nos anos de 1911 e 1912.
Pertenceu à Academia Nacional de Medicina, tendo-a presidido no ano de 1905
(SANTOS 2002). Como se pode observar, sua trajetória como médico esteve ligada à
Universidade do Brasil, neste sentido, a fotografia foi claramente produzida para retratar
um médico que transmitia a ideia de notório saber.
tinha o tamanho do império e coincidia pontualmente com ele. Menos afeitas ao estudo da cartografia, as
gerações seguintes entenderam que esse dilatado mapa era inútil e não sem impiedade o entregaram às
inclemências do sol e dos invernos. Nos desertos do oeste perduram despedaçadas ruínas do mapa,
habitadas por animais e por mendigos; em todo o país não há outra relíquia das disciplinas geográficas.”
(BORGES, 1999, p. 247).
41
Imagem da Galeria de Professores da Escola
Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (BACELLAR, 1963).
No que tange à saúde pública, preocupou-se com a higiene; a ideia do
sanitarismo esteve bastante presente em diversos homens públicos15 de seu tempo. Fez
parceria com Miguel Coutto para estudar questões sobre a febre amarela, enfatizava a
clínica médica e a anatomia patológica como áreas de seu interesse.
Entre os meses de maio/1916 e janeiro/1917, exerceu o cargo de prefeito da
cidade do Rio de Janeiro. Foi o criador do conceito das feiras livres. Tinham elas o
propósito de eliminar o excesso de atravessadores entre o homem do campo e o
consumidor final, pois o que se via no decurso dos anos 1920 eram produtos agrícolas
sendo comprados por preços pequenos junto aos locais de produção, e a partir daí uma
enorme sobretaxação até a chegada do produto à mesa do consumidor. Os últimos
atravessadores neste processo ganhavam a maior parte do lucro. A feira livre permitiu
que o agricultor viesse diretamente à cidade para vender suas mercadorias, permitindo
ganhos tanto para o consumidor quanto para seus produtores. Também mostrou especial
interesse pelo modo de comercialização da carne, pois a precariedade com que vinha
sendo vendida preocupou-o no que se referia às condições de higiene. Para tanto,
colocou carros especiais na Central do Brasil para vender o produto, reduzindo o tempo
entre o abate e a venda para o consumidor final (SANTOS, 2002).
15
Miguel Coutto, Afranio Peixoto, Ulisses Pernambuco de Mello, Miguel Ozório de Almeida, Álvaro
Ozório de Almeida e Belizário Pena são alguns exemplos de homens públicos daquele período que
estiveram envolvidos em saúde e educação, em que higiene pública era uma preocupação permanente.
(SANTOS, 2002)
42
O momento que o Brasil passava era fértil em ideologias civilistas16. A educação
e a saúde eram vistas como “salvadoras nacionais”. Notava-se fortemente um otimismo
pedagógico17 (NAGLE, 1976) e a vontade de empreender a “construção do estado”.
Estes últimos termos utilizados foram escolhidas para citar algumas expressões
comumente utilizadas na época. Sodré compartilhava da ideia de que seriam necessários
grandes investimentos na educação e na saúde da população, para que esta alcançasse o
nível de desenvolvimento das nações mais avançadas da época, que lhe serviam de
inspiração. Em sua atuação como defensor da causa da educação, não deixou de
imprimir uma marca da sua atividade como médico, voltando-se para questões sanitárias
das escolas. Destaca-se que em 1916 foi nomeado Diretor da Instrução Pública do
Distrito Federal; funda duas escolas, sendo uma delas na zona rural. Ainda neste cargo,
reformulou o currículo da Escola Normal, empreendendo uma modificação nas normas
internas, possibilitando às futuras docentes um contato maior com a prática em sala de
aula (SANTOS, 2002). Um sucessor de Azevedo Sodré no cargo de Diretor da Instrução
Pública, Carneiro Leão, escreveu, em 1926, um relatório da sua atividade à frente da
instrução. Consta neste texto uma lista dos Diretores da Instrução Pública no Distrito
Federal, cargo de grande prestígio político.
16
Jorge Nagle (1976) afirma que as ideologias civilistas eram aquelas que buscavam valorizar na
sociedade aspectos caros ao sistema vigente. Apreço ao republicanismo, culto aos símbolos pátrios e
valorização de exemplos políticos do exterior eram alguns exemplos dessas ideias que eram defendidas
pelo governo.
17
Verifica-se aqui uma categoria de análise estabelecida por Jorge Nagle em seu livro “Educação e
Sociedade na Primeira República”. O termo otimismo pedagógico aparece como título de um tópico que
conduz o leitor a refletir sobre uma série de políticas públicas que marcam o período com um certo
caráter inaugural em educação. Decorre, portanto, desta inauguração uma das principais críticas que
Nagle recebeu ao sugerir estas proposições, pois para os críticos uma série de outras possibilidades
deveriam ser levadas em conta. A ideia de otimismo pedagógico também recebeu críticas, pois passa uma
ideia de consenso em torno no movimento educacional, que não encontra respaldo no período em questão.
Ver páginas 95 e 97 do livro citado.
43
(LEÂO, 1926, p. 202)
No que diz respeito aos dados apresentados na tabela acima, observa-se que
Azevedo Sodré permaneceu no cargo do dia 26 de março de 1915 até 5 de maio de
1916. Carneiro Leão (1926) destaca que do ano de 1890 até 1893 o nome do cargo era
“Inspetor da Instrução Pública e Secundária da Capital Federal”. A tabela, portanto,
toma este período como marco temporal para iniciar a apresentação dos nomes e
vigência dos mandatos dos Diretores da Instrução Pública no Distrito Federal.
Como se nota, Azevedo Sodré esteve envolvido tanto no campo da saúde pública
quanto no da educação. Com efeito, tais setores estavam intimamente ligados na
Primeira República brasileira. Afinal, a tentativa de “sanear” a sociedade pressupunha,
também, um esforço para educá-la e vaciná-la contra moléstias contagiosas. O
analfabetismo, neste sentido, pensado como um “câncer social”, tinha que ser extirpado
do Brasil.
Até o presente momento, percebo certo silêncio na historiografia brasileira sobre
a atuação de Azevedo Sodré no movimento sanitarista e educacional da Primeira
44
República. Esta lacuna foi parcialmente preenchida por Santos (2002), que sistematizou
elementos da biografia de Azevedo Sodré, e narrou sua atuação pública em verbete para
o Dicionário de Educadores no Brasil, que inclusive nos serve como uma das fontes
para empreender a presente biografia de Sodré. Porém, pode-se dizer com alguma
segurança que a História da Educação no Brasil não convencionou atribuir a Azevedo
Sodré um número grande de pesquisas, tendo preferido nomes que lhe foram
contemporâneos: Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Carneiro Leão, apenas para
citar alguns.
É pertinente afirmar que Azevedo Sodré destacou-se como político durante o
período da Primeira República no Brasil, período que por esta razão se tornou o foco da
presente pesquisa. Ao partir para uma análise mais aprofundada sobre o período, surge
invariavelmente o controverso nome de Jorge Nagle, que se debruçou sobre o tema.
Jorge Nagle (1976) dissertou sobre a dificuldade de se fazer política educacional
no Brasil do período. Atribuiu à Primeira República uma marca rígida como o otimismo
pedagógico, que consistia num conjunto de expectativas da sociedade sobre a educação,
e que considero um pouco exagerada, já que não percebo o consenso em torno do tema
que o autor procurou estabelecer com esta expressão. Apesar disso, seu livro Educação
e Sociedade na Primeira República continua a ser um dos principais títulos sobre o
período do início do século XX no Brasil. Segundo ele, o ideário da Escola Nova
combatia a política do coronelismo, que persistia na sociedade brasileira. A ideia de que
o coronelismo18 como forma de fazer política contribuiu para o atraso na implementação
de uma educação pública de qualidade, que atendesse às diversas camadas da população
está presente em seu texto. Nagle sugere, inclusive, que esta inoperância gerou um
enorme imobilismo social durante a Primeira República:
Qual o sistema de sustentação da estrutura de poder – ainda vigente na
última década da primeira república e origem do imobilismo estrutural – que
começa a sofrer os primeiros abalos durante este tempo? Em resposta breve,
pode-se dizer que o coronelismo foi o formador da base da estrutura do
poder no Brasil e que sua supremacia incontestável permaneceu durante a
primeira república (NAGLE, 1976, p. 3).
18
Jorge Nagle (1976) entende por coronelismo uma estrutura de poder que se verificou no Brasil na
Primeira República, tal estrutura de poder tinha seu começo no plano municipal através da figura dos
coronéis, e tinha por característica a fraude do sistema eleitoral, o apadrinhamento de familiares para
exercerem cargos públicos e o mandonismo.
45
Azevedo Sodré se envolveu com o pensamento da Escola Nova. Uma das
características deste movimento, como aponta Sônia Câmara (2006) era a busca pela
superação do sistema tradicional de ensino19. Tentava, ainda, acabar com a política
coronelista, e as consequências negativas que surtiam para a educação. Nagle procura
fixar uma marca que ficou deste período, o entusiasmo pela educação, que transmite
uma ideia de unidade, e que não leva em conta, por exemplo, os críticos ao movimento,
assim como a inexistência de uma zona de consenso entre os seus integrantes. O autor
cita a frase “Escolarização, o motor da história” (p. 100), que pensava que a
implementação de um largo contingente de escolas colocaria o Brasil no rumo das
nações mais desenvolvidas do mundo. Vejamos o que diz sobre este otimismo
pedagógico que, segundo ele, tomou conta do Brasil durante a Primeira República:
De um lado, existe a crença de que, pela multiplicação das instituições
escolares, da disseminação da educação escolar, será possível incorporar
grandes camadas da população na senda do progresso nacional, e colocar o
Brasil no caminho das grandes nações do mundo; de outro lado, existe a
crença de que determinadas formulações doutrinárias sobre a escolarização
indicam o caminho para a verdadeira formação do novo homem brasileiro
(escolanovismo). A partir de determinado momento as formulações se
integram: da proclamação de que o Brasil, especialmente no decênio dos
anos vinte, vive uma hora decisiva, que está a exigir outros padrões de
relações e de convivências humanas, imediatamente decorre a crença na
possibilidade de reformar a sociedade pela reforma do homem, para o que a
escolarização tem um papel insubstituível, pois é interpretada como o mais
decisivo instrumento de aceleração histórica (NAGLE, 1976, p. 99 e 100).
Como se pode perceber na citação acima, Nagle atribui àquela sociedade uma
busca pela modernização do país, e considera que a mesma se uniu em torno da
educação como o motor do país. Esta afirmação é, ao meu ver, um pouco difícil, pois
passa a ideia de harmonia em torno da pauta. Apesar de tal rigidez, Nagle esteve certo
ao verificar o imenso debate que ocorreu na década de 1920 sobre os rumos da
educação brasileira, no qual Azevedo Sodré esteve bastante envolvido.
Azevedo Sodré participou da vida política do Distrito Federal, atual cidade do
Rio de Janeiro, nos anos 1920. Teve uma ação política ligada ao movimento dos
19
Os “escolanovistas” esforçaram-se para criar um contraponto entre o “novo e o velho”,
“científico/arcaico”, numa tentativa de promover sua visão de escola para o Brasil. Sônia Câmara (2006),
como apontado no texto, aborda esta temática. Outra autora que explorou este assunto foi Diana Vidal
(2003), em texto intitulado “A Escola Nova e o processo educativo”.
46
pioneiros da educação, e acreditava que através da escolarização do povo poderia
contribuir para colocar o Brasil no rumo das grandes nações desenvolvidas da época.
Políticos deste período tinham uma marca em comum, queriam fazer história e
contribuir ativamente neste processo. Se pudessem ser lembrados na posteridade como
“homens de ação”, fariam grandes esforços para alcançar este objetivo. Um bom
exemplo deste tipo de pensamento está no legado deixado por Fernando de Azevedo.
Ao lado de Azevedo Sodré, Fernando de Azevedo era político do período, e queria ficar
para a posteridade como “transformador da escola”, foi Diretor da Instrução Pública do
Distrito Federal entre 1927 e 1930. Nas reformas ocorridas durante este período ele se
coloca como o principal personagem. Neste sentido, é válido dizer que Antônio
Carneiro Leão (Diretor da Instrução Pública de 1922-1926, portanto, na gestão anterior
à de Fernando de Azevedo) pode ter deixado de receber o reconhecimento que merecia
por ter contribuído ativamente no projeto de implementação dos ideais da escola nova.
Convém fazer referência a Marta Carvalho (1998), pois esta reflete sobre a memória
construída por Fernando de Azevedo, que acaba por negligenciar outros atores do
processo. À sua maneira, Azevedo Sodré também se preocupou em deixar sua marca.
Uma das teses que defendo é a de que o fomento à Escola Azevedo Sodré foi o caminho
encontrado por ele para ser lembrado após a sua morte.
Observando este tipo de comportamento é possível estabelecer algumas ideias,
ou padrões de comportamento da época, para que possamos entender que tipo de
objetivo teve Azevedo Sodré ao doar para o Distrito Federal as sessenta apólices
municipais de sua propriedade para incentivar a realização de festas no colégio que
levaria seu nome. Um colégio público é algo que tende a perdurar no tempo, e ao
carregar em seu nome a homenagem a um homem público, tal personagem passa a
deixar um legado de afirmação histórica, que possibilita a contínua lembrança de sua
história pessoal.
Vejamos o que diz Santos no já citado Dicionário de Educadores no Brasil
sobre Azevedo Sodré no contexto do final da Primeira República: “O importante, desta
forma, é reiterar a participação ativa de Sodré na política e na agitação das ideias no
campo da educação e da saúde.” (SANTOS, 2002, p. 98). Azevedo Sodré, apesar de ter
sido ativo parlamentar e político em geral, defensor das causas nacionais, teve até hoje
seu nome pouco lembrado pela história da educação. Foi, talvez, negligenciado por
47
consequência da campanha autoafirmativa promovida por Fernando de Azevedo, e que
já havia impedido estudos mais aprofundados sobre Antônio Carneiro Leão, pelo menos
até meados da década de 1990.
Azevedo Sodré foi eleito, em 1918, pelo Estado do Rio de Janeiro como
deputado federal. Suas ideias antioligárquicas e sua defesa da higiene pública, bem
como propostas de caráter educacional não lograram muito êxito, pois encontraram
pesada resistência proveniente dos setores mais conservadores da sociedade. Os seus
pares na Câmara dos Deputados votavam contra as suas propostas, ou se valiam de suas
ideias para propor novas leis, de modo que triunfavam sem creditar a autoria a Azevedo
Sodré. No caso do teatro de egos da Câmara, em que proliferavam discursos inflamados
e requintados, afeitos à autopromoção, a fala de Azevedo Sodré destoava do ambiente.
Deputados ligados à igreja católica, que se viam ameaçados por suas ideias de laicidade
na educação, contrapunham pesada resistência política. Talvez pela escassez de aliados
no legislativo não tenha alcançado maior êxito, um dos poucos com quem conseguiu
manter parceria foi Pinheiro Guimarães, colega da faculdade de medicina. Nas
transcrições dos debates parlamentares do ano de 1921, lê-se que este colega se referiu a
Azevedo Sodré da seguinte forma: “O destino do Professor Sodré (...) tem sido o de um
inovador mal compreendido no momento da ação, e de um espoliado na hora do
triunfo” (apud, SANTOS, 2002). Sua atuação como defensor da Educação Nova sofreu
com a resistência dos representantes das oligarquias na política, como era comum
naquela década, em que este debate estava na pauta das ações. Os políticos mais
conservadores viam-se ameaçados pelos que se propunham a inovar a legislação.
Uma das discussões em que Azevedo Sodré se envolveu foi a que dizia respeito
ao sistema pedagógico a ser implantado para o país, foi um defensor do ensino
profissional, porém não pretendia implantar uma escola profissional nos moldes
tradicionais, custeadas pela união e com mestres especializados. Temia que esta
alternativa seria por demais dispendiosa e alcançaria um número reduzido de alunos.
Nesse movimento, propôs que se adotasse o tipo de ensino profissional que havia na
Alemanha e na Inglaterra. Seriam escolas voltadas para o público de baixa renda, sem
oficinas instaladas, em que os alunos que já trabalhassem em fábricas, oficinas ou
manufaturas, receberiam uma complementação do ensino nas escolas. Desta forma, não
precisariam abrir mão dos seus vencimentos, e poderiam continuar a ajudar as suas
famílias. Era uma estratégia para combater a evasão que se verificava no ensino
48
profissional, em que os alunos não terminavam os estudos por terem que se dedicar a
uma profissão (SANTOS, 2002).
Como afirmado, Azevedo Sodré viveu num período em que a educação e a
saúde pública estavam intimamente ligadas. Como médico, tinha a visão de que não
apenas a saúde, mas também a educação mereceria a criação de um ministério próprio.
Talvez tenha sido este debate uma das mais importantes marcas que ficaram da atuação
de Sodré enquanto parlamentar. Vejamos o que diz Santos sobre este período.
A referência à necessidade de um Departamento Nacional ou um Ministério
da Educação é da maior importância, porque reflete a clareza de visão de
Azevedo Sodré. Como batalhador da criação do Departamento Nacional da
Saúde Pública, que se efetivou por decreto legislativo em 2 de janeiro de
1920, parecia-lhe igualmente fundamental a criação de uma instituição
congênere para a educação. Entretanto, seu olhar alcançava mais longe,
preconizando a elevação das áreas da saúde e da educação ao nível
ministerial (SANTOS, 2002, p. 100).
Ao defender a criação de um ministério para a educação, não encontrou muito
êxito até o final de sua vida. Esta discussão continuou até o período do Estado Novo
Varguista, em que se debateu a importância das duas pastas. As decisões sobre a pauta,
tomadas neste período, relacionaram-se com aquelas da década de 1920. O texto de
Santos, apesar de sua inegável boa qualidade, não foge do tom laudatório de relato
triunfal da vida do biografado. Expressões que aparecem acima como “batalhador” e
“clareza de visão” são exemplos deste tom que aparece em Santos e nos arquivos da
Faculdade de Medicina. Este mesmo tom foi a marca das fontes diversas que coletei
para
a
efetivação
desta
biografia.
A
personalidade
de
Azevedo Sodré, e sua defesa por setores tão caros à sociedade, fizeram com que
alcançasse reconhecimento e prestígio, que certamente eram merecidos, mas creio que
seja pertinente percorrer, ainda que de forma introdutória, algumas fontes que não
aquelas oficiais. Santos, ao escrever o seu verbete, faz uso de atas dos poderes
legislativos, planilhas da administração pública, entre outras fontes que recebiam
sempre a chancela do Estado. Estas fontes são, sem dúvida, importantes, e se alinham
com uma abordagem macro-histórica. Todavia, neste momento, acredito que seja
providencial empreender uma variação de escala (REVEL, 1998). Nessa medida,
ilumino uma carta que Azevedo Sodré escreveu que, acredito, possa indiciar outras
circunstâncias interessantes.
49
No ano de 1904, em carta20 endereçada ao médico Adolpho Lutz, Azevedo
Sodré solicita a sua participação no Congresso Internacional de Medicina e Cirurgia,
que ocorreria em Lisboa no ano de 1906. Pode-se observar um tom de formalidade no
escrito, e a sugestão de temas a serem abordados no certame científico. Neste ponto,
verifica-se o seu interesse pela causa indígena: “Eu estimaria que V. relatasse um
assunto de patologia indígena, por exemplo: ancilostomíase, beribéri, lepra etc” (Sodré,
1904)21. Neste sentido, indicia-se o seu cuidado pela questão do índio na Brasil. Em
certa medida, foi um precursor e debatedor dos problemas vivenciados pelos indígenas,
principalmente no que dizia respeito à saúde, os nativos brasileiros não possuíam as
defesas em seu organismo contra as moléstias trazidas pelo homem branco. Este debate
ganharia força algumas décadas mais tarde com a expedição dos irmãos Villas-Bôas22, e
a política indigenista proposta por eles.
Essa carta, no entanto, ainda se apresenta como um escrito formal, em que
Azevedo Sodré atuava como médico e congressista. Nesta medida, poderia ser
enquadrada na categoria dos documentos formais e tradicionais à pesquisa em história
da educação. A sua eleição para discutir aspectos mais específicos de sua trajetória,
alinhados à ideia da micro-escala de observação, se deve à sua própria natureza de carta,
escrita à mão a um amigo, em que também se verificava a estima pessoal que o autor da
Carta tinha pelo destinatário.
Mais adiante, será apresentada a escritura de doação de sessenta apólices
municipais, de sua propriedade, à prefeitura do Rio de Janeiro para a promoção de
festejos na escola objeto deste estudo, em que também se pode perceber outra
característica íntima de Sodré: no final de sua vida, estava preocupado com a sua
memória após o seu falecimento.
Após realizar uma análise da biografia de Azevedo Sodré, cabe indagar sobre
um dos últimos atos públicos que pôde realizar em sua vida. Poucos anos antes de
falecer, como já foi dito, no ano de 1925, ocorre a doação de valores monetários à
20
Esta carta encontra-se arquivada na Fundação Oswaldo Cruz: coleção Hist. cienc. saudeManguinhos vol.10 no.1, Rio de Janeiro, Jan./Apr. 2003. A pesquisa foi realizada no site
http://www.scielo.br/scielo em visita no dia 21 de agosto de 2013.
21
Este trecho foi transcrito da carta apresentada na nota anterior.
22
Orlando, Leonardo e Cláudio Villas-Bôas participaram da expedição Roncador-Xingu e foram
defensores da questão do índio no Brasil. A demarcação do parque indígena do Xingu represnetou uma
vitória política da causa dos irmãos Villas-Bôas (VILLAS BÔAS FILHO, 2006).
50
prefeitura do Distrito Federal. Com base na análise deste documento, a Escola Azevedo
Sodré passa a ser o foco de atenção desta pesquisa, em que contribuirá para repensar
algumas questões, políticas e educacionais, que estavam em pauta no decurso dos anos
1920.
Desse quadro, cumpre sublinhar, a pesquisa se insere no campo da história das
instituições escolares no Brasil. Esta linha de investigação tem sido objeto cada vez
mais frequente das pesquisas em história da educação. Ainda que a eleição de alguns
congressos como espaço de análise não permita vislumbrar todo o universo de pesquisas
que ocorre em uma localidade, tomados os devidos cuidados, se pode estudar e perfazer
um levantamento dos trabalhos apresentados e buscar entender em qual direção e quais
preocupações têm mobilizado os historiadores em atividade no Brasil.
Tomo como objeto de estudo o VII Congresso Brasileiro de História da
educação, que ocorreu na cidade de Cuiabá entre os dias 20 e 23 de maio de 2013. O
tema central problematizado foi “Os circuitos e fronteiras da história da educação no
Brasil”. Outro espaço que elejo para avaliar quais intencionalidades de pesquisa têm
mobilizado os pesquisadores é o XII Seminário Internacional “As Redes Educativas e as
Tecnologias: Transformações e Subversões da Atualidade”, que ocorreu na Cidade do
Rio de Janeiro entre os dias 3 e 6 de junho de 2013. Este seminário, por se tratar de um
evento da educação em geral, e não específico da história, e também por ser um
seminário internacional, poderia não servir como bom espaço de observação dos focos
dos trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros em história da educação. Todavia,
houve ênfase na história das instituições, e a maior parte dos artigos inscritos
corresponderam aos trabalhos de participantes de grupos de estudo em atividade no
território brasileiro.
Qualquer escolha de local para análise apresenta problemas, não se pode de
forma alguma cair na zona de conforto epistemológica em que se toma o todo pela
análise da parte. Esta simplificação grosseira leva o pesquisador a conclusões
apressadas. Por essa razão, ao escolher dois eventos para análise, é preciso ter em mente
que as conclusões a que chegaremos têm o seu limite até onde cada caso alcança. Os
dois eventos citados referem-se ao ano de 2013, portanto decorre daí a obviedade que
tais análises não servem para problematizar o campo num longo período. Outra questão
que se deve colocar é que o campo produz uma série de outros artigos e pesquisas que
51
não são inscritos nos congressos, portanto o referido evento representará apenas o que
foi possível aglutinar em sua organização, que pode apresentar dificuldades tanto
financeiras como de deslocamento, cito apenas duas, para os pesquisadores que queiram
inscrever-se. Dito isso, não se deve desprezar a importância desse tipo de evento, ainda
que apresente dificuldades para juntar as pesquisas, eles têm o mérito de servir como
um dos poucos espaços em que pesquisadores, por vezes muito distantes
geograficamente entre si, podem reunir-se para debater seus trabalhos23.
Como exposto, busca-se promover uma maior integração entre os pesquisadores
em atuação no Brasil, em que os limites do campo são avaliados, assim como as
aproximações entre estudos de unidades federativas por vezes muito distantes. Neste
contexto, em que o campo deseja refletir sobre distanciamentos e proximidades entre os
Estados, tem-se em mente uma pesquisa comum, que perpassou os estudos em história
da educação no passado, que segue ocorrendo no presente. Refiro-me à história das
instituições escolares no Brasil. Esta busca pela história dos nossos colégios, faculdades
e institutos, é comum a diferentes pesquisadores brasileiros, pois cada um deles tem
interesse por conhecer os caminhos, percalços e características das instituições da sua
comunidade.
O CBHE, para fins de organização da estrutura do evento, organizou-se em dez
eixos temáticos, nos quais a pesquisas individuais e coletivas poderiam inscrever-se. Os
eixos eram os seguintes: estado e políticas educacionais na história da educação
brasileira, etnias e movimentos sociais, fontes e métodos na história da educação,
história da educação das crianças - jovens e adultos no Brasil, história da profissão
docente, história das culturas e disciplinas escolares, histórias das instituições e práticas
educativas, impressos – intelectuais e história da educação, ensino de história da
educação e, por fim, patrimônio educativo e cultura material escolar.
Como se pode verificar, o eixo no qual a presente pesquisa se enquadra
corresponde ao que trata da história das instituições e práticas educativas. Houve um
23
Gondra (2005), serviu como inspiração para efetivar este estudo dos trabalhos apresentados no campo.
No texto em que fala sobre Michel Foucault, percorre revistas da área da História da Educação para
encontrar os locais em que aparece referência ao pensador francês. A metodologia apresentada para o
levantamento dessas informações, assim como a discussão em torno dos limites que a verificação com
base nas revistas apresenta, serviram como parâmetros e inspiração para a ida aos congressos citados,
com apresentação de trabalhos sobre minha pesquisa. Decorre deste texto a ideia que me levou à
utilização do mesmo tipo de levantamento de informações para a pesquisa que realizo acerca de uma
instituição educacional. O texto fala sobre a importância de Foucault para o campo, e, sem dúvida, suas
ideias aparecem matizadas ao longo do meu texto.
52
total de 66 trabalhos individuais inscritos e aceitos neste eixo, dos quais 40 fazem
menção específica para uma instituição a ser analisada. Deve-se, entretanto, levar em
consideração que a forma como este número foi levantado se restringiu à leitura dos
títulos inscritos no congresso. Neste sentido, alguns trabalhos podem não conter
explicitamente em seu título uma referência a uma instituição, mas em seu conteúdo
haver tal disposição. Da mesma forma, uma comunicação que apresente em seu título
uma referência a certa escola, pode em seu conteúdo focar as práticas educativas em
geral. O número de 40 estudos sobre instituições, portanto, apesar de impreciso, nos
remete à ideia de que a categoria instituição escolar tem sido objeto frequente de
investigação dos historiadores em educação. No universo de dez eixos apresentados no
congresso, haver um eixo que, como exposto acima, trata majoritariamente das
instituições de ensino, demonstra que os estudos com este foco têm o seu espaço bem
estabelecido no campo.
O Seminário Redes não é um espaço para discussão de temas específicos da
história da educação. Tem a intenção de problematizar o campo educacional na
atualidade. Observa-se a sua organização em eixos temáticos, em que houve a divisão
em seis deles, são os seguintes: Redes educativas, cotidianos e práticas culturais,
transformações e subversões da atualidade; currículo, política e cultura, transformações
e
subversões
da
atualidade;
educação
inclusiva
e
processos
educacionais,
transformações e subversões da atualidade; estudos da infância e da juventude,
transformações e subversões da atualidade; história da educação e instituições,
transformações e subversões da atualidade e, por fim, processos formativos e
desigualdades sociais.
Nota-se que um dos eixos temáticos fala sobre a História da Educação. O que
chama a atenção é a palavra que vem logo a seguir ao nome do eixo temático:
instituições. Remete à ideia de que a história das instituições tem recebido certo
destaque nas pesquisas dos historiadores da educação, e os trabalhos apresentados no
seminário confirmam esta suposição. De um total de quarenta e sete trabalhos inscritos
no referido eixo temático, dezesseis citam em seu título uma referência a uma
instituição educativa específica. Levando-se em consideração que o conteúdo dos
trabalhos não foi analisado, este número pode ser maior, pois os textos muitas vezes
fazem referência a instituições no corpo das ideias apresentadas. As instituições
prestam-se e servem de apoio para problematizar muitas outras questões em educação, e
53
os trabalhos apresentados no seminário Redes dão um bom exemplo disso. O texto
inscrito e apresentado pela pesquisadora Isabella Paula Gaze disserta sobre a Escola
Profissional Visconde de Mauá. A escola alicerça as ideias que a autora defende sobre o
uso das imagens para a história da educação, e discute como o colégio se inseriu e
recebeu a Reforma Fernando de Azevedo. Seu trabalho expõe 28 fotografias da escola,
mas não se limita à sua análise – busca refletir sobre o colégio em profunda relação com
os tempos dos anos 1920, o final da Primeira República. No mesmo seminário, há
relações refletidas entre a histórias das instituições e as culturas escolares, entre a
história das instituições e a educação dos negros no período que antecedeu a abolição e
entre a história das instituições e os caminhos e (des)caminhos que levaram a
representação da profissão docente, para citar apenas três das formas encontradas de se
relacionar instituições educativas e outras ênfases da história da educação.
Dessa forma, o interesse desta pesquisa, que é apresentar um colégio menos
conhecido do grande público, de tamanho reduzido, mas que traz contribuições
significativas ao campo por se relacionar com o período e o projeto de implementação
da Educação Nova no Brasil, representa uma mudança de escala24 que poderá contribuir
com outros estudos em execução no nosso campo.
Acerca desse aspecto, importa registrar que foram realizadas pesquisas no banco
de teses e dissertações da CAPES buscando encontrar trabalhos acerca da Escola
Azevedo Sodré. Essas consultas não retornaram resultados, o que indica a ausência de
estudos sobre a instituição. Sendo assim, esta pesquisa busca trazer para o debate um
novo espaço, repleto de limitações e, ao mesmo tempo, infinitas potencialidades de
pesquisa. O texto, todavia, não se limita à história da escola. Como já foi mencionado,
ocorrerá um esforço em relacioná-la aos estudos sobre os anos 1920 na cidade do Rio de
Janeiro. Sobre este período há uma série de estudos já realizados25. Nenhum deles, é
claro, será igual ao anterior, pois cada um trará as ênfases e silêncios preferidos pelos
seus autores. A relação dos anos 1920 com a história da Escola Azevedo Sodré é um
caminho a mais, um diferente olhar.
24
Um colégio no bairro da Tijuca, pode apresentar uma microescala, que dialogará com um quadro mais
amplo da educação carioca nos anos 1920, portanto uma escala mais aproximada com a macroanálise
histórica (REVEL, 1998).
25
Vidal (2001); Paulilo (2001, 2007); Nunes (2000, 1996, 1994); Carvalho (1998); Abdala (2003); Silva
(2004, 2009); Camara (1997, 2006), por exemplo.
54
Apesar das críticas que pesam sobre certas partes da obra de Nagle, que já foram
inclusive abordadas na presente pesquisa, o autor continua a ser uma das principais
referências no que tange ao período da Primeira República. Ele defendeu sua tese em
Araraquara; tendo recebido o título “Educação e sociedade no Brasil (1920-1929)”.
Como se observa, estudou a fundo o período em questão, tornando-se referência
importante quando pesquisadores de história da educação realizam estudos com este
recorte temporal. Sua forma de analisar aquele tempo, com ênfase no campo
educacional, o fez ser bastante citado em estudos da história da educação.
O livro de Jorge Nagle (1976)26 apresenta em sua primeira parte um conjunto de
informações acerca da política e da sociedade na Primeira República, apresento-as de
forma resumida a seguir: ela teve seu início em 15 de novembro de 1889 com a
proclamação da república. Estendeu-se até o fim do governo de Washington Luis, seu
último presidente, derrubado pela revolução varguista em 1930. Com o destronamento
de D. Pedro II e a implementação do governo republicano surge o que mais tarde
chamou-se de “República da Espada”, pois o militarismo ainda estava muito presente na
vida da sociedade. Havia o medo de que se restaurasse a monarquia; a “espada” era, por
conseguinte, a fonte garantidora dos ideais republicanos. Com o fim deste receio, e as
bases do novo tipo de governo já mais ancoradas na sociedade, houve espaço para o
surgimento de outro período dentro da Primeira República, chamado de “República
Oligárquica”, que era sustentada em sua base municipal pelos coronéis. Nesta fase
predominou os presidentes dos estados, em uma política dos governadores criada por
Campos Sales. Em 3 de novembro de 1930 Getúlio Vargas toma posse como “Chefe do
Governo Provisório” e tem fim tanto a República Oligárquica, como a Primeira
República como um todo. Jorge Nagle, ao falar sobre o período acima mencionado,
escolheu as seguintes palavras:
O final da Primeira República, como se percebe, caracteriza-se pelo esforço
de romper o sistema de representação coletiva vigente. Claro, ao esforço
oposicionista respondia o situacionismo das formas mais variadas, tentando
manter a tradicional composição do poder (NAGLE, 1976, p.5).
26
Outro autor que se debruçou sobre o período da Primeira República foi Renato Lessa (1999). Seu livro
diferencia-se da abordagem encaminhada por Nagle (1976) ao propor uma representação do período
entendendo-o mais como uma invenção das pessoas que viveram os seus tempos, e menos como uma
sucessão de eventos que fossem vistos como uma evolução em relação à monarquia.
55
Neste sentido é preciso destacar que na Primeira República ocorreu um embate
entre os defensores do sistema vigente, representados pelas oligarquias do café,
principalmente as do Estado de São Paulo e Minas Gerais, e os que se opunham a este
sistema. A concentração de poder nas mãos dos representantes destes dois estados ficou
conhecida como “Política do Café com Leite”. Este acordo foi formalizado no governo
de Campos Sales e fez com que se alternassem no poder o Partido Republicano
Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM). Esta alternância no poder,
voltada para as antigas oligarquias, desagradava aos representantes da nascente indústria
do país, que se concentrava principalmente em São Paulo. Também levantaram-se
contra o sistema alguns movimentos revolucionários, como a revolução de 1924,
movimento tenentista sob a liderança de Isidoro dias Lopes. A cidade de São Paulo,
onde se concentravam os revoltosos, chegou a ser bombardeada pelas forças leais ao
governo federal. A Coluna Prestes foi outro importante movimento revolucionário
ocorrido no período, liderados por Luis Carlos Prestes, os combatentes marcharam pelo
interior do Brasil numa luta contra as tropas regulares do governo, terminaram vencidos
em 1927. Neste sentido, deve-se entender a não hegemonia e não homogeneidade dos
sistemas de poder do período, havia uma intensa busca por espaço político em que
variados grupos buscavam legitimação das usas ideias. Crescia no exército uma
insatisfação contra o governo que vinha desde os movimentos tenentistas. A crise de
1929 abalou a economia, gerando maiores insatisfações. Em 1930 inclusive os oficiais
de alta patente do exército apoiaram a deposição de Julio Prestes e a tomada do poder
por Getúlio Vargas.
Consideremos, agora, uma reflexão importante sobre este período. A
escolarização, como políticos da época referiam-se à educação em geral, esteve num
momento de estruturação e redefinição de valores. Sobre as reformas no Distrito Federal
acerca do ensino técnico, que particularmente nos interessam por razão que exponho
adiante, Jorge Nagle diz o seguinte:
O principal documentário desta fase da história do ensino técnicoprofissional é o “Relatório Luderitz’, apresentado ao Ministro da
Agricultura, Indústria e Comércio em 1924. Neste documento, o chefe do
serviço de remodelação expõe um novo conjunto de ideias e princípios que
devem orientar a estruturação do ensino profissional técnico no Brasil.
Especialmente chama a atenção para a “necessidade de se cuidar do preparo
das elites técnicas” e para as vantagens da educação industrial do povo.
Primeiro, porque nos países cultos, a capacidade produtiva do operário é
56
atribuída à sua cultura técnica; segundo, porque a “educação do proletariado
é um meio de defesa da administração superior do país contra a invasão
incondicional do capital industrial estrangeiro e contra os pruridos do
radicalismo” (Nagle, 1976, p. 166)
Escolhi citar um trecho em que Nagle aborda o setor da educação técnica, pois é
justamente sobre esta área que Azevedo Sodré, foco principal do nosso estudo, ao agir
como parlamentar preocupado com a educação, orienta seu fazer político. Este trecho
possibilita ainda algumas considerações importantes: no Relatório Luderitz, como
exposto acima, temos mais um exemplo da preocupação do legislador brasileiro em
comparar o nosso país com os chamados “países cultos”, como se estes fossem bastiões
da excelência educacional. Além disso, verifica-se uma intenção de, através da
educação, limitar o avanço de ideais revolucionários, sejam eles comunistas ou
anarquistas, em nosso solo. Tal relatório foi redigido pelo “Chefe do Serviço de
Remodelação”; a simples existência de tal cargo evidencia um período de intensa
reestruturação educacional.
Como já foi dito, em 1916, Azevedo Sodré torna-se Diretor da Instrução Pública
no Distrito Federal e promove uma intensa reorganização no que tange ao ensino
profissionalizante. O político falou à Câmara dos Deputados, constatando uma profunda
deterioração do ensino profissional existente: “[Há] Uma falência quase completa de
todos os esforços até então empregados no sentido de organizar, desenvolver e
disseminar a educação técnica na cidade.” (Azevedo Sodré, Câmara dos Deputados,
Documentos parlamentares, 1929, p.29). Preocupado com este quadro desalentador,
tenta remodelar o ensino técnico distrital.
A melhoria do ensino técnico vinha ao encontro de uma busca por melhores
condições de ensino que era manifestada abertamente por intelectuais e políticos
preocupados com a educação. Azevedo Sodré era um destes políticos, defendia a causa
na Câmara dos deputados. A mesma causa era refletida pelos intelectuais do período,
como Heitor Lyra, em espaços como a ABE (Associação Brasileira de Educação) que
será abordada com mais atenção no capítulo seguinte. Muitas das mudanças que eram
propostas, ainda que houvesse resistências, orbitavam em torno das preocupações do
movimento da Escola Nova.
57
Assim, pode-se dizer que o período do final da Primeira República foi, no
Distrito federal e em outros estados, uma época de grandes reorganizações e
inaugurações educacionais. Sobre o escolanovismo propriamente dito, corrente que deu
consistência teórica ao movimento político de reformas na instrução pública, Nagle
aborda o tema da seguinte maneira:
Ao estabelecer a doutrina do não constrangimento nas diversas esferas da
vida social – política, econômica, social e cultural – a doutrina liberal
firmou, ao mesmo tempo, o princípio básico das liberdades. Dessa forma,
não surpreende observar que o enraizamento da Escola Nova se tenha
processado pouco depois do triunfo das ideias liberais, na verdade, o
escolanovismo representou, ortodoxamente, o liberalismo no setor da
escolarização. (NAGLE, 1976, p. 242)
A escolha
de Nagle por representar o escolanovismo de forma ortodoxa,
atribuindo-o uma marca rígida, caminha na direção de fixar estruturas sólidas para o
movimento, o que se afasta da ideia que defendo que percebe no escolanovismo uma
multiplicidade de forças em disputa por legitimidade. Ainda que se verifiquem marcas
liberais nas suas ideias, havia propostas que se afastavam desta tendência. Mesmo a
aludida defesa da laicidade, como aponta Marta Carvalho (1998), nos debates ocorridos
na ABE, um local de defesa da Escola Nova, havia um velado cunho moral, pautado em
princípios cristãos da concepção de família idealizada.
Azevedo Sodré neste cenário foi um agitador de ideias, mas morreu no ano da
crise da bolsa de valores de Nova Iorque, auge das mudanças políticas que vivia a
época. Seu falecimento o impediu de ver a Escola Nova ganhar escopo de agenda
política em caráter universalizante. Tinha a intenção de ver as ideias deste movimento
em prática numa escola, o que gerou seu movimento de doação de valores para a
produção de festas na escola que lhe homenageou. As festas seriam ao ar livre, como
apontava um dos princípios do movimento escolanovista.
Portanto, as ideias que serão apresentadas a seguir dizem respeito à fundação da
escola. Elas não capturam a substância daquele período, ou a sua realidade.
Representam um olhar sobre o objeto, que, assim espero, seja coerentemente defendido.
58
1.3 A Escola Azevedo Sodré
Cumpre, neste ponto, tendo discorrido sobre alguns referenciais teóricos que
sustentam os caminhos investigativos escolhidos para esta pesquisa, e também analisado
alguns percursos trilhados por Azevedo Sodré em sua trajetória de vida, iniciar uma
etapa do texto em que se estuda o colégio que dá nome à presente pesquisa. Todavia,
seria impossível compartimentalizar as etapas do texto de modo estanque, em que
houvesse um momento específico e puro sobre a história da instituição. Ao contrário, o
que ocorre é que cada parte do texto versa sobre um assunto, mas se utiliza de
estratégias escriturárias que por vezes recorrem a um ou outro elemento diferente
daquela proposta inicial. Por exemplo, inicio este olhar sobre o espaço escolar com uma
análise sobre uma ação de Azevedo Sodré.
Azevedo Sodré, ao promover atividades culturais por ocasião da fundação do
colégio que lhe homenageou, almejava criar um espaço inovador, que rompesse com os
padrões antigos de educação que se verificavam no bairro da Tijuca. Sobre os padrões
antigos de escolarização que procurava combater, cabe fazer referência ao Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova. Apesar de ter sido formalmente assinado no ano de
1932, condensa as ideias sobre novos caminhos para a educação que estiveram
intensamente em debate nos anos 1920. Há uma clara preocupação do texto em afastarse da dita escola tradicional. Não faltam no documento críticas aos padrões anteriores
de ensino. Para efeito desta pesquisa, ilumino o seguinte trecho: “Nessa nova concepção
da escola, que é uma reação contra as tendências exclusivamente passivas,
intelectualistas e verbalistas da escola tradicional” (AZEVEDO, 1932, p. 49). Há, neste
documento, também uma reação à concepção de ensino do modelo tradicional, que via
os alunos como necessariamente passivos à instrução recebida. “A nova doutrina, que
não considera a função educacional como uma função de superposição ou de acréscimo,
segundo o qual o educando é “modelado exteriormente” (escola tradicional), mas uma
função complexa de ações e reações em que o espírito cresce de “dentro para fora”.”
(AZEVEDO, 1932, p. 49). Como se observa, O Manifesto propunha uma escola que se
concentrasse no aluno, e no estabelecimento de uma boa relação entre professores e
estudantes. A escola Azevedo Sodré, apesar de ter sido fundada durante o exercício do
59
governo do prefeito Alaor Prata27 (1922-1926), período em que estas ideias ainda
estavam em debate, destaca-se que as propostas da Escola Nova influenciaram
decisivamente os seus primeiros anos de funcionamento. Assim, cabe uma análise mais
atenta ao colégio estudado, e ao bairro em que foi construído.
A Tijuca tem tradição no ensino do Rio de Janeiro. Localizam-se neste bairro
colégios antigos e importantes como o Militar, o Instituto de Educação e o Pedro II. O
colégio Azevedo Sodré, apesar de menos conhecido, possui uma história, que abre
caminhos para considerações que o presente trabalho procurou desbravar. O ponto de
partida para a pesquisa foi uma visita ao casarão, em estilo colonial, no qual o colégio
está instalado e que é tombado pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional)28. A escolha do foco no período de fundação do colégio se deveu
aos acontecimentos marcantes na área educacional que sucederam nos anos 1920. O
colégio, por exemplo, foi fundado no contexto da administração Carneiro Leão (19221926), que será objeto de estudo específico no capítulo dois desta dissertação. Outros
pontos importantes que se relacionam ao período são os debates em torno da Escola
Nova e a criação da Associação Brasileira de Educação (ABE) que, como Marta
Carvalho (1998) expõe, foi a reunião de intelectuais que se iniciou em 1924, com o
objetivo de discutir os novos caminhos da educação no país. Uma das intenções deste
grupo foi a de criar a Federação de Associações de Ensino, que reuniria educadores de
todas as partes do Brasil para problematizar a modernidade e a instrução pública.
Busquei fontes em locais diversos para a realização desta pesquisa. Percorri
arquivos públicos e documentos internos da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.
Mas, foi no arquivo escolar da Azevedo Sodré que encontrei um documento que me
chamou muito a atenção. Deparei-me com um arquivo não muito bem organizado, uma
pilha de papéis fotocopiados, algumas notícias de jornais recortadas, alguns documentos
que aparentavam ter muitos anos e, infelizmente, muito pouco registro das atividades
letivas e pedagógicas dos primeiros anos da instituição. Dentro de uma pasta plástica
encontrei uma cópia antiga da escritura de doação das sessenta apólices municipais, em
que Azevedo Sodré buscou promover a realização de festejos na escola que o
homenageassem. Este documento traz significativas informações que me ajudaram a
27
Informação sobre a fundação da escola foi colhida do Guia das Escolas Tombadas do Rio de Janeiro,
fornecido pela prefeitura da cidade do Rio de Janeiro às escolas tombadas. Há uma página que fala sobre
a escola Azevedo Sodré (p. 15), que está disponibilizada nos anexos desta pesquisa.
28
O decreto de tombamento está registrado sobre o número 19342, na data de 27 de dezembro de 2000.
60
analisar aspectos daquele período de surgimento da escola. Pedi para copiar aquela
folha de aspecto velho, mas que para mim tinha grande importância. Sabia que aquelas
palavras seriam muito úteis para minha pesquisa. Qual não foi a minha decepção ao
receber a primeira resposta negativa: “você só está autorizado a olhar”, falou a diretora.
Um sentimento desanimador foi inevitável, mas insisti e aos poucos fui convencendo-a
a mudar de opinião. Acredito que a minha profissão como professor de ensino
fundamental do Município do Rio de Janeiro tenha contribuído para torná-la mais
receptiva ao meu pleito. Afinal, eu estava pesquisando um colégio da mesma rede da
qual faço parte. Isso, sem dúvida, facilitou o processo de coleta do material.
Ocorre, compreensivelmente, certo receio por parte de qualquer direção de
disponibilizar o seu arquivo para alguém que se propõe a escrever sobre a escola.
Perguntas como “será que o referido estudo pode comprometer o nosso trabalho?”, ou
“será que este pesquisador é mesmo de confiança?”, ou “quais são as verdadeiras
intenções deste pesquisador?”, ou ainda “será que meus superiores aprovam a feitura
desta pesquisa?” surgem na cabeça dos responsáveis pela direção do colégio. Todavia,
documentos de tanta idade, notícias de jornais e o Projeto Político Pedagógico da casa
são de domínio público. Expliquei a ela que aquele receio era injustificado e consegui,
por fim, a autorização de que precisava. De modo geral, descontando este breve e
superado incidente, fui bem recebido na Azevedo Sodré e, apesar do excesso de
trabalho que o planejamento do ano letivo de 2011 reservava para uma direção no mês
de janeiro, a diretora se disponibilizou gentilmente a me apresentar as dependências
escolares e me contar a sua visão sobre a história do colégio que dirigia.
O colégio situa-se na Rua Barão de Ubá, número 331, Praça da Bandeira. Inserese no contexto da Grande Tijuca. A região em que a escola se situa é a Praça da
Bandeira, local com carências históricas de infraestrutura. As constantes enchentes que
assolavam a região levavam a população local a cobrar soluções por parte da
prefeitura29. Os projetos de contenção das águas pluviais datam do início do século XX,
mas não chegaram a sair do papel. Carlos Kessel (2001) estudou A cidade do rio de
Janeiro durante o período da administração do prefeito Carlos Sampaio (1920-1922), e
29
A Praça da Bandeira está situada num ponto que recebe a afluência dos rios que tem nascente no Alto
da Boa Vista. Quando chove, o volume de água se acentua e os alagamentos se tornaram frequentes
quando ocorreu a impermeabilização do solo tijucano. O problema das enchentes é antigo e causa
diversos transtornos para a região que possui elevado número de colégios. As crianças são as maiores
afetadas, e as doenças como a leptospirose tornaram-se um problema de saúde pública. (KESSEL, 2001,
p. 56).
61
aponta um intenso imbróglio político para resolver os problemas das enchentes, mas que
não logrou muito êxito: “Carlos Sampaio pleiteou junto ao presidente da república a
transferência, para o município, de todas as instâncias da administração, arrecadação, e
decisão referentes às águas e esgotos. Apesar do empenho de Epitácio Pessoa, o
Congresso não aprovou as mudanças.” (KESSEL, 2001, p. 56). Estratégias políticas de
relação com a população foram adotadas por parte do governo, entre elas as escolas
exerceram o papel de referendar a presença política na área. Para grande parte das
famílias, o contato com a prefeitura era difícil, e as escolas serviam como referência do
próprio governo. Em 1928 houve uma grande enchente, que foi retratada na fotografia a
seguir, Coletada da Revista Careta, que está disponível na Biblioteca Nacional.
Enchente de 1928, Revista Careta n° 1028, FBN
Outro aspecto que deve ser mencionado diz respeito à ocupação dos bairros do
subúrbio. O centro da cidade, durante os anos 1920, já passara por um intenso projeto
de reestruturação urbana promovido por Pereira Passos e prefeitos sucessores. Muitos
habitantes tiveram que sair à força das regiões centrais para dar lugar ao “progresso”,
representado, por exemplo, pela abertura da Avenida Central, que data de 1906. O livro
de Jaime Larry Benchimol Pereira Passos: Um Haussmann tropical (1992) foi uma
produção que iluminou aspectos da viagem de Passos à Paris em estudo que lhe serviu
de inspiração para as intervenções urbanas que empreendeu no Rio de Janeiro.
62
O sucessor de Pereira Passos na prefeitura foi Francisco Macelino de Sousa
Aguiar. Desta administração, é válido dizer que estava comprometida com o ideal de
cidade apresentado pelo seu antecessor. Nesta medida, foi o autor do projeto do Palácio
Monroe e da Biblioteca Nacional, e procurou fazer um governo marcado pelo
continuísmo das reformas urbanas por que passava a cidade. Esteve, também, engajado
na assistência médica à população. Criou o Posto de Assistência, que depois se tornou o
hospital Souza Aguiar30.
Após o final da administração de Souza Aguiar, estiveram à frente da prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro: Serzedelo Correia, Bento Ribeiro e Rivadávia Correia.
Ainda que não se possa homogeneizar as análises sob estas administrações, visto que
cada uma era dotada de suas especificidades, pode-se dizer que em certa medida não
promoveram uma ruptura da concepção de cidade proposta por Pereira Passos.
Rivadávia Correia teve como seu Diretor da Instrução Pública o médico Azevedo Sodré,
do qual já falamos no início deste capítulo. Este último assumiu a prefeitura, mas não
ficou muito tempo no cargo, sendo sucedido por Amaro Cavalcanti em 1917. Peregrino
da Silva, Paulo de Frontin e Milcíades Freire foram os seus sucessores. Muitos destes
administradores tinham formação em engenharia, o que marcava suas gestões à frente
da prefeitura com o viés das obras públicas31.
Em 7 de junho de 1920 assume a prefeitura Carlos Sampaio, sob o qual foi
escrito o livro A Vitrine e o Espelho, (2001) de Carlos Kessel, que enfatiza o período da
sua administração. Nesta obra, o autor destaca uma tendência da produção
historiográfica em contemplá-lo com um tom elogioso, repercutindo as obras da sua
gestão, como o arrasamento do Morro do Castelo. A cidade, assim, seria tratada à luz de
seus personagens emblemáticos, sem um aprofundamento crítico: “a historiografia
tradicional quase que se limitou a relacionar as obras realizadas durante a sua
administração e a acrescentar traços biográficos.” (KESSEL, 2001, p. 3) O autor
procurou afastar-se deste enviesamento no seu livro. E, a título de introdução, realçou as
poucas produções históricas que souberam analisar o período do início dos anos 1920,
ou seja – a administração Carlos Sampaio - com um olhar que se afastasse da ideia de
uma cidade que evoluía, sendo, ao contrário, inventada pelos sujeitos que a habitavam.
30
31
Informações contidas no livro A Vitrine e o Espelho (KESSEL, 2001, p. 13).
Informações contidas no livro A Vitrine e o Espelho (KESSEL, 2001, p. 15, 16 e 17).
63
Todo este viés foi substituído, mais recentemente, pela análise crítica
presente nas referências a sua participação em alguns episódios da história
da cidade, como o da demolição do famoso cortiço “cabeça de porco”,
discutida por Lilian Fessler Vaz no artigo “notas sobre o Cabeça de Porco”,
publicado na revista Rio de janeiro. (KESSEL, 2001, p. 3)
O já citado livro de Benchimol (1992) traz em sua conclusão uma análise que
busca estudar as continuidades, ao menos no que diz respeito aos aspectos urbanísticos
e administrativos, entre a gestão de Pereira Passos e alguns de seus sucessores, como
Carlos Sampaio. O prefeito que geriu a cidade após o ano de 1922 foi Alaor Prata, que
nos interessa para a presente pesquisa, pois foi durante o exercício do seu cargo que
ocorreu a fundação da Escola Azevedo Sodré, nosso foco de pesquisa.
Outro autor que se ocupou em analisar as transformações urbanas por que
passava a cidade neste período foi Oswaldo Porto Rocha (1995). Ele estudou como
ocorreu a estruturação da Estrada de Ferro Central do Brasil, que se deu algumas
décadas antes. Em 1861 tem início o serviço regular de transporte de pessoas.
O caminho percorrido pelo trem contribuiu em grande parte para a interiorização
da ocupação urbana. A estação de São Cristovão nos interessa particularmente, pois foi
umas das cinco primeiras estações a serem abertas, ao lado de Freguesia de Santana,
Engenho Velho, Inhaúma e Irajá (ROCHA, 1995, p. 36). A estação citada servia como
porta de entrada para o subúrbio e data deste período o aprofundamento da ocupação da
Praça da Bandeira, que estava inserida na área de influência da estação de São
Cristóvão. Seis décadas após a inauguração da estação, portanto na década de 1920, a
região da Praça da Bandeira já estava consolidada como um bairro que mesclava
comércio e habitações dormitório. Vejamos o que diz Rocha sobre a interiorização que
o trem possibilitou:
O trem possibilita a ocupação de áreas que hoje são chamadas de
suburbanas, algumas das quais recebem seus nomes em função da própria
construção da ferrovia. Cascadura, por exemplo, é um nome originário da
resistência do solo na ocasião da abertura dos leitos naquela área. (ROCHA,
1995, p. 37).
É certo que em 2013 seria impossível relacionar a Praça da Bandeira com o
subúrbio. A região se relaciona muito mais com o Centro da Cidade ou a Zona Norte.
Nos anos 1920, que são o foco desta pesquisa, a região já se encontrava bastante
adensada, e, por influência da estação de trem que se avizinhava, se inseria numa zona
de transição entre o centro e o subúrbio da cidade, estava ocupada principalmente pelos
64
trabalhadores de baixa renda, e é para os filhos destes que a escola Azevedo Sodré
direcionou a sua atividade pedagógica.
No dia 4 de maio de 1925, o Diretor Geral da Instrução Pública Carneiro Leão
escreve ao diretor da Escola Azevedo Sodré, que havia sido criada há apenas dois
meses, para dar-lhe conhecimento da escritura de doação, feita por Azevedo Sodré à
Prefeitura do Distrito Federal, que dizia respeito à doação das sessenta apólices
municipais já mencionadas. O documento, apesar de breve, nos fornece indícios para
investigar este primeiro semestre do ano de 1925, ano de fundação da escola. Apresento
abaixo este documento com a finalidade de permitir ao leitor observar características da
burocracia do período. Nota-se um documento bastante formal, escrito à máquina de
escrever e, mais importante, chancelado com o carimbo da Diretoria Geral da Instrução
pública do Distrito Federal. Ao final, observa-se a assinatura de Carneiro Leão, como a
derradeira forma de oficializar o texto e revesti-lo, ao mesmo tempo, de legitimidade.
65
66
O texto acima não foi entregue de forma isolada à diretoria da escola Azevedo
Sodré, trouxe anexada a cópia da escritura de doação, que é um documento com
características incomuns às outras escrituras lavradas em cartório na época. Ocorre que
no documento que analisarei a seguir aparecem certas diretrizes que o colégio deveria
seguir para concretizar a doação e o desejo do doador. Com base nestas singularidades,
podemos obter pistas sobre as intenções de Azevedo Sodré. Defendo a ideia de que ele
estava bastante satisfeito com a homenagem que recebeu da administração pública,
dando a uma escola o seu nome. Azevedo Sodré, então, se valeria da fundação desta
escola para ser lembrado na posteridade, queria deixar uma marca naquele e em outros
presentes. Portanto, a escola deveria contar com subsídios excepcionais, além dos
conferidos pela prefeitura a qualquer escola, para realizar atividades de cunho
educacional. Estas homenagens se evidenciam com a composição de um Hino com o
nome “Azevedo Sodré”, que deveria ser cantado pelos alunos como uma das formas de
lembrança da generosidade do seu patrono. O hino enquanto dispositivo de incentivo à
modernidade será discutido no capítulo três desta dissertação, por ora, voltemo-nos ao
texto da escritura de doação.
No dia 27 de março do ano de 1925 o escrivão Alvaro Teixeira, do Décimo
Oitavo Ofício de Notas, formalizou a doação feita por Azevedo Sodré. Ao fazer
referência ao ano citado, Teixeira busca legitimar a escritura mencionando Jesus Cristo.
Nessa linha, o primeiro registro formal documentado que encontrei da escola Azevedo
Sodré recorre a Jesus para marcar que o ano em questão refere-se ao nascimento do
filho de Deus, “Saibam quantos esta virem que, no ano do nascimento de nosso senhor
Jesus Cristo de mil novecentos e vinte e cinco” (TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86). É
desta forma que o documento tem início, mas o local da cerimônia, ao invés do próprio
cartório, como se poderia esperar para se lavrar uma escritura, foi o gabinete do
prefeito. Esta escolha não parece ter sido nada casual, pois estariam presentes ao evento
duas distintas personalidades da época: o próprio prefeito e Azevedo Sodré. Por esta
razão, suponho, o tabelião deslocou-se pra a prefeitura, e não o inverso, rumo ao ofício
de notas.
Teixeira, em seu texto oficial, ao citar a presença de Azevedo Sodré, faz um
brevíssimo relato de sua biografia. A escolha das palavras que constam neste trecho nos
emprestam ideias para observar quais singularidades da vida de doador interessavam
mais ao governo da época, representado pela oficialidade do tabelião: “Perante mim,
67
tabelião, compareceram, como outorgante o doador, o DOUTOR ANTÔNIO
AUGUSTO DE AZEVEDO SODRÉ, médico, casado, professor da faculdade de
medicina do Rio de Janeiro” (TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86). Importa verificar que,
dentre outras atividades que Azevedo Sodré desempenhou durante sua vida, como
educador, deputado, prefeito da cidade, o que chamou a atenção de Teixeira foi a sua
carreira na medicina e seu estado civil, casado. As famílias tradicionais da época
deveriam contar com o homem, que trabalhava, a mulher, que cuidaria dos filhos e
zelaria pela família, e finalmente os filhos. Azevedo Sodré não fugiu deste modelo, o
que lhe conferia a impressão de integridade perante a ocasião. O texto observa que os
presentes eram residentes da cidade do Rio de Janeiro, o que contribuía para subscrever
a doação como um evento para a cidade.
Alaor Prata, prefeito, também esteve presente como representante da Prefeitura
do Distrito Federal, que seria a recebedora da doação dos recursos. Teixeira menciona a
presença de testemunhas, que garantiriam a autenticidade e veracidade dos atos
formalizados. Dessa forma, a assinatura do prefeito e de Sodré não seriam suficientes
para a homologação estatal. Neste sentido, precisa o Estado se valer das testemunhas
para dizer que a pessoa é, de fato, aquela pessoa. Por outro lado, e da mesma forma, a
própria máquina estatal reconhece-se limitadamente abstrata. De fato, o governo
consiste em nada mais do que o conjunto de pessoas que receberam esta ou aquela
atribuição para governar. Ele não existe como um ente anterior e extrínseco às relações
humanas; precisa, pois, o Estado, eleger seus representantes e conferi-los com titulações
para que possa existir enquanto órgão dotado de legitimidade. No caso, Teixeira é o
representante eleito, e é ele que dá fé ao ato que outorga a doação que estudamos:
Os presentes domiciliados nesta cidade e reconhecidos como os próprios
pelas testemunhas adiante nomeadas e estas por mim, tabelião, do que dou
fé, bem como de me haver sido distribuído esta escritura pelo bilhete que
fica arquivado (TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86)32.
Verifica-se neste ponto o que chamo de triângulo de representações. Uma forma
de legitimação tripartidária que confere a legitimidade de que o rito necessita. Convém,
para iniciar esta reflexão, perceber que nenhuma doação ocorre pela natureza do desejo,
32
É importante destacar que a ortografia presente no documento era a oficial por ocasião dos anos 1920.
Uma escolha cabe ao pesquisador ao lidar com textos antigos. Há a possibilidade de se reproduzir
fielmente o texto com a ortografia do período estudado, ou fazer a conversão para a ortografia da
atualidade, desde que se faça uma ressalva de que esta modificação tenha sido executada. No caso do
presente pesquisa, optei pela segunda possibilidade.
68
ainda que dotado de generosidade. Se pensarmos na própria ideia da propriedade
privada como invenção, nos afastamos da ideia de que alguém poderia naturalmente
ceder algo a alguém. A propriedade, tal qual o nome próprio exposto por Bourdieu
(2003), configura-se ideia abstrata que existe pela força da crença que as pessoas lhe
conferem. E para que uma cessão possa ocorrer, uma série de ritos, ou, em outras
palavras, para utilizar uma terminologia contida na obra de Hobsbawn (1984), de
tradições, precisam ocorrer para que tenham efeito no mundo jurídico. Assim tem início
o triângulo de representações que percebo na escritura estudada. Alaor Prata e Azevedo
Sodré, suponho por meio dos indícios expostos, estiveram presentes na reunião, e são o
primeiro vértice do triângulo. Mas só tem legitimidade para efetuar as assinaturas por
meio da existência do segundo vértice do triângulo: testemunhas que afirmam serem
eles próprios quem afirmam ser. Mas quem confere legitimidade às testemunhas? O
Estado, ou o terceiro vértice, está representado pela figura do tabelião. Nas palavras de
Teixeira descritas acima, ele afirma que “dá fé” da presença solene das testemunhas.
Estas, assim, além de comprovarem a presença do outorgado e do outorgante, também
necessitaram de que o Estado lhes conferisse legitimidade. Ocorre, assim, o triângulo de
representações em que cada ângulo dá credibilidade ao vértice seguinte para que a
abstração da doação possa existir no ordenamento institucional do Distrito Federal.
Foram doadas um total de sessenta apólices municipais com valor de duzentos
mil réis cada, a juros de 7% ao ano. Sob a perspectiva de Azevedo Sodré, o retorno
financeiro advindo deste investimento, forneceria subsídios materiais para que a escola
pudesse promover atividades culturais. Entretanto, conjugadamente a essas iniciativas,
foram registradas pelo doador algumas determinações que deveriam ser incorporadas ao
calendário letivo escolar. A primeira delas referia-se à obrigação de se comemorar, em
algum dia do mês de maio, o “Dia da Fraternidade Americana”. A segunda condizia à
celebração, no dia 4 de setembro, do que ele chamou de “O dia do Patrono da Escola”,
inclusive com a cantoria pelos alunos de um hino com o nome “Azevedo Sodré”. A
terceira, finalmente, instituía que no dia 19 de novembro haveria a necessidade de
realização dos festejos voltados para despertar o “Culto da Bandeira e o Amor da
Pátria”.
A doação realizada e o conjunto de determinações estipuladas por Azevedo
Sodré devem, necessariamente, ser relacionados àquelas ações de governo que, no
decurso dos anos 1920, foram concretizadas ansiando associar as preocupações com o
69
disciplinamento social às medidas de remodelação urbana. Afinal, ensinar e multiplicar
a “fraternidade”, o respeito às “personalidades importantes” e o “culto aos símbolos
pátrios e ao país” concorreriam para a difusão de um repertório de comportamentos que,
sob a lógica governamental, era idealizado como indispensável para a tentativa de
ingressar a capital numa determinada concepção de modernidade. Tal concepção
pautava-se, sobretudo, na harmonização dos tempos e espaços sociais com a
imprescindibilidade de educar e disciplinar a população em suas interações cotidianas.
A inserção da escola enquanto espaço de promoção de determinada modalidade de
modernidade pretendida pelo governo será tema explorado no capítulo três desta
dissertação. Por enquanto, cabe retornar ao texto da escritura de doação para verificar
como estas determinações feitas por Azevedo Sodré tornaram-se oficiais.
De pleno acordo com sua esposa e filhos, Azevedo Sodré faz a doação das
apólices municipais, cujos juros advindos destes investimentos deveriam ser entregues à
direção da Escola para a realização dos festejos.
Desejoso de concorrer para se tornar ainda mais eficiente a educação
ministrada nesta escola, e convencido do alto valor educativo das festas
escolares, quando bem organizadas, resolveu, de pleno acordo com sua
esposa e filhos, instituir um pequeno capital (TEIXEIRA, 18º ofício, livro
86).
Azevedo Sodré, entretanto, pareceu não confiar plenamente na direção da escola
para a condução das festividades. Como exposto acima, afirma que a festa precisa ser
bem administrada para que possa gozar de um alto valor educativo. Resolve prover o
capital para a efetivação das cerimônias. Porém, ao contrário de permitir que o próprio
colégio, em reuniões internas, pudesse escolher os melhores caminhos a serem seguidos
para realizar as festividades, delimita claramente quais festas precisariam ocorrer, e
também como deviam ser tais cerimônias. A doação dos recursos financeiros esteve
condicionada à exata adequação do colégio às exigências de seu patrono.
Ficando esta doação subordinada às cláusulas seguintes: 1ª) As referidas
sessenta apólices que neste ato, perante mim, tabelião, e as testemunhas, o
que porto por fé, o outorgante entrega ao representante da outorgada,
permanecerão depositadas nos cofres municipais e serão inalienáveis (...),
2ª) Os juros dessas sessenta apólices serão semestralmente entregues à
diretoria da ESCOLA AZEVEDO SODRÈ e são destinadas ao custeio de
três festas escolares, que se realizarão todos os anos nesta escola. 3ª) Cada
festa consistirá em uma curta preleção sobre o seu objetivo, feito em
linguagem ao alcance de todas as crianças; em cantos escolares e hinos
70
patrióticos; em recitativos e representações apropriadas; em jogos
recreativos; exercícios ritmados; danças infantis e na distribuição de
merenda a todas as crianças (TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86).
Esses são eventos de importância para a fundação do colégio. Cumpre sublinhar que as
determinações estipuladas pelo doador foram aceitas pelo prefeito Alaor Prata e é neste
período que tem início as atividades letivas no colégio Azevedo Sodré. Este conjunto de
obrigações possibilita algumas considerações. Em primeiro lugar, a necessidade de
cumprir determinações estipuladas por um representante da sociedade civil, ou seja,
alguém de fora das atribuições de um cargo público, é incomum para a época. A maioria
das instituições de ensino estava subordinada exclusivamente aos textos legais, como
por exemplo o decreto 2940, de 29 de novembro de 1928, que fixa expressamente a sua
produção de efeitos no campo da instrução. Tanto é que assim, que revoga todas as
disposições em contrário às normas que passa a estabelecer: “art. 764: Ficam revogadas
as disposições em contrário.” (Decreto 2940, 1928, p. 334). No caso do Colégio
Azevedo Sodré, o público e o privado se confundem na criação da escola, e às
legislações em vigor somam-se uma legislação específica para o colégio, pois os atos
formalizados na escritura de doação estudada nesta dissertação têm valor de contrato,
assinado por ambas as partes e as testemunhas. Para todos os efeitos, têm valor de lei.
Já foram descritas acima quais eram as festas pretendidas pelo homenageado
com o nome da escola. Cada festa citada devia ser executada de forma específica, nos
moldes que aparecem no texto da escritura de doação. Mais uma vez encontram-se
dispositivos que cerceiam a liberdade do colégio em favor das obrigações desenhadas
por Azevedo Sodré. A esse respeito, vale acompanhar a seguinte passagem:
A) A primeira festa, a realizar-se em dia do mês de maio, será consagrada a
“FRATERNIDADE AMERICANA” – cada país da América será
representado por criança, convenientemente caracterizada. A professora,
encarregada da preleção, insistirá em termos adequados, sobre a estima e
solidariedade que devem reinar entre todas as nações do nosso continente;
dirá qual a significação elevada das vitórias da paz e porque a guerra é
sempre uma calamidade; lembrará o nobilíssimo procedimento da Argentina
e do Chile e do Brasil, confiando a um árbitro, decisão desse árbitro, para se
evitar uma luta armada que seria desastrosa; exaltará a generosa conduta
que, com respeito ao Uruguai, teve o governo Brasileiro, por iniciativa do
Barão do Rio Branco, e com aplauso de toda a nação (TEIXEIRA, 18º
ofício, livro 86).
71
O colégio Azevedo Sodré ficou conhecido nos anos 1920 como um local onde se
exerciam “As festividades do homem”, este termo foi cunhado pelo Jornal do Brasil
(edição de 5 de setembro de 1925), em grande parte por causa das obrigações de
comemorar as datas estipuladas pelo seu patrono. Cabe indagar se após estas
determinações, o colégio realmente efetivou a realização dos festejos. As consultas e
pesquisas concretizadas junto aos jornais e revistas da época indiciam que é bastante
provável que tais celebrações tenham ocorrido nos anos que sucederam a inauguração
do colégio33.
Ao propor uma festa que levaria o nome de “Fraternidade Americana”, Azevedo
Sodré faz referência ao momento que o mundo vivia. A Primeira Guerra mundial havia
tido o seu término em 1918. A segunda guerra mundial, que ocorreu em grande medida
em decorrência de questões mal resolvidas no conflito anterior, teve seu início em 1939.
Portanto, os anos 1920 caracterizaram-se como um período de entre-guerras. Ainda que
os conflitos armados tenham se localizado principalmente em solo europeu, africano e
territórios ao oeste do Pacífico, o continente americano não deixou de viver graves
consequências da guerra. No caso do Brasil, houve o recebimento de um largo
contingente de imigrantes, que aportavam no Rio de Janeiro para fugir da luta na
Europa e Japão. Estas questões ainda estavam bastante presentes no imaginário popular.
Ao fazer referência a um dia para celebrar a fraternidade, Azevedo Sodré se alinhava
com as projeções daqueles que concebiam a escolarização do social como um
movimento imprescindível para reforçar e multiplicar os laços de pertencimento, os
vínculos de nacionalidade e os ideais de pacificação34.
No documento analisado, a fraternidade mencionada diz respeito ao caso
específico das Américas. José Maria da Silva Paranhos Júnior35 foi um diplomata e
geógrafo de renome ainda no Império do Brasil. Antes da mudança do sistema de
governo, recebeu o título de Barão do Rio Branco. Na República, teve atuação
destacada na resolução de conflitos latino-americanos para demarcações de fronteiras. O
33
Estas afirmações são sustentadas pela publicação do Jornal do Brasil em 1925, edição do dia 5 de
setembro. A este respeito, o capítulo 3 deste texto versará com atenção sobre a reportagem.
34
Nessa mesma esteira de considerações é digno de friso, por exemplo, o espetáculo educacional que
exaltava os “ideais de pacificação” realizado em 18 de maio de 1927 no campo do Fluminense Futebol
Clube que contou com a participação de, aproximadamente, 3 mil alunos das escolas primárias da cidade
do Rio de Janeiro. A este respeito, conferir: (SILVA, 2009).
35
O barão do Rio Branco é o patrono da diplomacia brasileira e até hoje tem o seu nome vinculado à
formação de diplomatas no Brasil.
72
Acre, por exemplo, possui capital denominada Rio Branco, pela solução negociada na
disputa com o governo boliviano por aquele território, em que o Brasil se apossou das
terras, sem haver
necessidade de beligerância. Neste sentido, a demarcação das
fronteiras para configurar o desenho territorial que o Brasil possui hoje estava na pauta
da agenda política nos anos que antecederam a criação da Escola Azevedo Sodré. Por
esta razão, o “Dia da Fraternidade Americana” refere-se às questões de fronteira,
lembrando da solução negociada e pacífica para as últimas questões territoriais que
foram resolvidas por ocasião da Primeira República. O caso do Uruguai citado na
escritura de doação refere-se a uma disputa pelo Rio Jaguarão e a Lagoa Mirim, em que
o Brasil, por incentivo de Rio Branco, concedeu ao país vizinho a posse sobre os
territórios sem que um conflito tenha emergido (VIANA FILHO, 2008). Azevedo
Sodré, neste sentido, desejou celebrar a “indole pacífica” do governo brasileiro,
estimulando as crianças a amarem o seu país por essa “nobre” razão.
No caso da segunda festa mencionada na escritura de doação, há a menção ao
festejo “Dia do Patrono da Escola”. Azevedo Sodré, nas diretrizes marcadas para a
escola, busca atenuar a promoção pessoal que um culto à sua pessoa representaria,
afirmando que esta seria uma data para render homenagens a todos os brasileiros
ilustres. Há, no entanto, referência ao termo “civilizador”, para descrever o alcance da
escola. O que alude para a intenção de promover, por força da educação popular, os
ideais de modernidade e civilidade que pretendia o governo.
B) a segunda festa, a realizar-se no dia quatro de setembro, será consagrada
ao “PATRONO DA ESCOLA”. A professora, insistindo sobre os fins da
escola e seu alcance civilizador, renderá homenagem a todos os brasileiros
ilustres que tem concorrido para o desenvolvimento e eficiência da
educação nacional (TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86).
Cumpre sublinhar que, no caso, o patrono da escola era o próprio doador, que
estipulou as regras a serem seguidas pela escola. Apesar de diluir o culto à sua pessoa
com a citação de outras “personalidades importantes”, me parece emblemático a
composição de um hino denominado “Azevedo Sodré”, que encontrei no arquivo do
colégio, e que remonta ao período de sua fundação. As crianças eram convidadas a
cantar trechos como “tuas vitórias importantes”, “teus santos ideias” ou ainda “lembrar
sua nobreza”. Este hino remete à ideia de que a escola, bem como seu patrono,
possuíam causas nobres e, por esta razão, deviam servir como exemplo de conduta para
os alunos presentes nas cerimônias.
73
Não apenas as diretrizes gerais das festividades estavam prescritas na escritura
de doação. Ocorrem direcionamentos que deveriam ser transmitidos pelos professores
da casa, o que é bastante incomum. Nas outras instituições de ensino da cidade os
professores se subordinariam à direção escolar e, em última instância, à administração
pública. O caso do homenageado pela prefeitura, ainda que este viesse a se tornar o
patrono da escola, prescrever atividades para os professores que ali trabalhariam é uma
singularidade que encontrei apenas neste colégio. A conduta a ser seguida pelas
professoras está bastante clara no trecho a seguir, que remete à terceira festividade:
C) A terceira festa, a realizar-se no dia dezenove de novembro, será
consagrada ao “CULTO DA BANDEIRA E AMOR DA PÁTRIA”. – a
professora, em sua preleção, insistirá sobre os dois seguintes temas: 1º “o
principal dever de um cidadão é amar, honrar e servir a sua pátria,
trabalhando pela prosperidade e renome da mesma”, 2º “ a todos os
brasileiros incumbe o dever de manter intacto, sempre unido, sem secessão,
o vasto patrimônio territorial que lhes foi legado pelos antepassados”
(TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86).
A festividade que celebraria o “Culto da Bandeira e Amor da Pátria” buscava
ensinar aos alunos o valor que o território nacional possuía. Esta preocupação territorial
estava, também, presente na festa sobre a “Fraternidade Americana”, o que demonstra a
preocupação de Azevedo Sodré, e do governo em geral, com as ainda frágeis fronteiras
do continente latino-americano. Um país forte, do qual seus habitantes deveriam se
orgulhar, representaria por si mesmo um ensinamento aos alunos, que se inseririam
assim num conjunto de preocupações governamentais que dizia respeito ao culto aos
símbolos pátrios e à promoção de determinada modalidade de modernidade. Estas eram
características comuns às ações de governo dos anos 1920.
No final da escritura de doação, Azevedo Sodré desobriga a diretoria da escola
recém-criada de prestar contas da utilização do capital advindo dos juros que as apólices
doadas renderiam. Todavia, como exposto na própria escritura de doação, há certa
ambiguidade da conferência de autonomia ao colégio. Há trechos em que à escola é
permitida maior independência. Em outros momentos, como os que os professores são
obrigados a agir conforme regras expressas, verifica-se uma tendência mais repressiva
de administração escolar:
4º Sendo de reconhecida capacidade e integridade moral, a atual diretora da
ESCOLA AZEVEDO SODRÉ, e as professoras que, no futuro, forem
designadas para este mesmo posto, devendo forçosamente possuir dotes
74
morais, que justifiquem a confiança nelas depositada pelo Governo
Municipal, ficam, tanto aquela como estas, desobrigadas de prestar contas
das importâncias dos juros das apólices que lhes foram entregues e do modo
pelo qual as empregaram (TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86).
A autonomia conferida à escola expressa acima foi uma das formas escolhidas
por Azevedo Sodré para concluir a escritura de doação. O documento precisaria ser do
interesse da prefeitura para que esta o aceitasse sem contraexigências. Por fim, Alaor
Prata, como representante do Distrito Federal, aceita os termos contidos no documento e
o assina, na presença das testemunhas e de Azevedo Sodré. A análise deste documento
nos instiga a pesquisar acerca dos anos que sucederam o ato normativo.
Pela outorgada foi dito, perante as mesmas testemunhas, que aceitava a
presente escritura nos termos em que está redigida. Assim disseram, e me
pediram lhes lavrasse em minhas notas esta escritura, que, lhes sendo lida e
as testemunhas, a todo ato presentes, Manoel Cardoso de Lemos e Carlos
Moreira Coelho, assinam todos, perante mim, Alvaro Rodrigues Teixeira,
que escrevi. (a.a.) A. A. de Azevedo Sodré – Alaor Prata Soares – Manoel
Cardoso de Lemos – C. M. Coelho – trasladada hoje. E eu Álvaro Rodrigues
Teixeira, tabelião, assino em público o ramo (TEIXEIRA, 18º ofício, livro
86).
Finalizado o estudo sobre esta escritura, indaga-se, em primeiro lugar, se estas
deliberações foram efetivamente executadas na instituição nos anos seguintes. A minha
interprestação é afirmativa, com base em reportagens de jornais da época, como a
publicada no Jornal do Brasil (edição de 5 de setembro de 1925). A este respeito o
capítulo três deste estudo trará maiores informações. Uma segunda indagação que o
estudo sobre este documento sugere, é sobre o espaço em que ocorria a atividade letiva.
Se houve períodos em que a escola funcionou em local diverso da Rua Barão de Ubá.
A escola nem sempre funcionou no prédio da rua descrita. O Inspetor escolar
Alvaro Rodrigues comunicou por meio da imprensa (Jornal do Brasil, 27 de setembro
de 1929), que, por motivo de obras de segurança a unidade escolar, com todas as
professoras e alunos, seria transferida por tempo indeterminado para a Rua Senador
Furtado, número 94. Sabe-se, porém, que o colégio não ficou muito tempo despejado da
sua sede. No início da década de 30 as aulas já haviam retornado para a Rua Barão de
Ubá. Sodré faleceu no ano de 1929, portanto não teve muito tempo para acompanhar as
atividades da escola que carregava o seu nome.
75
Capítulo II
Reflexões sobre a capital carioca
2.1 Um debate sobre os anos 1920
Será importante dialogar com os autores que pensaram a cidade do Rio de
Janeiro nos anos 1920. Este texto já se ocupou em explicitar os autores que servem de
embasamento teórico geral para o trabalho, alinhados com a linha historiográfica que se
pretende expor. Porém, um olhar mais atento para o local elegido como foco do estudo
faz-se necessário. O município do Rio de Janeiro, que na época era a capital da
república, já foi objeto de estudo de uma série de historiadores no Brasil. Historiadores
da educação, em especial, estudaram as ações de governo no campo educacional, bem
como suas repercussões nas salas de aula dos anos 1920. Cabe, portanto, estudar estes
autores, cujas ideias aparecerão de forma mais sistematizada neste capítulo.
No que diz respeito à produção do conhecimento em História da Educação
Carioca, como se sabe, a década de 1920 foi de grande importância, pois se aproximava
o fim da Primeira República, se discutiam os temas relacionados à Educação Nova e se
objetivava através das ações de governo, instaurar o que convinha chamar de
modernidade carioca. Encontram-se a seguir alguns dos temas que foram eleitos para
serem abordados na pesquisa que realizo, fazendo referência aos autores que os
problematizaram.
Sooma Silva (2009), a partir da problematização dos diferentes sentidos que
foram atribuídos à concepção de modernidade na antiga capital nos anos 1920, discutiu
em sua tese de doutorado os entrelaçamentos, cada vez maiores, das esferas citadinas
com os saberes e práticas educacionais do ensino primário. Nessa medida, debruçandose sobre o caráter histórico das experiências educacionais e de governo tencionadas na
época, analisou tanto as interferências das circunstâncias do viver urbano nas escolas
quanto, e fundamentalmente, as apropriações transformadoras que as instituições de
ensino efetivavam com o objetivo de ensinar uma cidade que deveria ser apreendida
pelos alunos, familiares, enfim, pela população carioca.
76
Clarice Nunes (1994, 1996, 2000), pensa as questões que problematizam a
modernidade, ou os projetos de modernidade, que foram propostos para a capital
federal. Como explorado em suas obras, as instituições escolares, bem como a própria
organização do espaço citadino, serviram para propagar um repertório de
comportamentos que, sob a lógica governamental, era concebido como o mais adequado
para a população. A autora tece, ainda, considerações sobre os entrelaçamentos das
culturas escolares com as culturas urbanas, pois uma dependia da outra, e ao mesmo
tempo eram constituídas e desconstruídas pelos viveres dos sujeitos que habitavam a
cidade.
Sônia Câmara (2006) e André Paulilo (2001, 2007) são exemplos de autores que
estudaram as transformações urbanas que, de diferentes maneiras, assolaram a cidade do
Rio de Janeiro nos anos 1920. Esses autores pesquisaram as medidas sanitárias
adotadas, as ações dos políticos (com ou sem respaldo da legislação), os saberes
jurídicos e o aparato administrativo e, mais importante para esta dissertação, as
intervenções no sistema educacional executadas. Seus estudos aprofundam as
contradições e (des)encantos vivenciados no período, e procuram mostrar que tais
projetos de modernidade não estavam perfeitamente definidos em lugar algum. Nessa
medida, a modernidade se apresentava muitas vezes de forma vaga, muito mais como
oposição ou repúdio àquilo que veio antes, do que como um conjunto organizado de
regras e metas a cumprir.
Ao eleger o Instituto de Educação como espaço para focar a sua pesquisa, Diana
Vidal (2001) consegue fazer os entrelaçamentos com outras esferas de análise que o
estudo acerca das instituições escolares possibilita. A autora dedica especial atenção às
práticas de leitura e escrita que foram, inclusive, objeto de outras pesquisas que
realizou36. Os espaços e tempos escolares da instituição são abordados, e se entrelaçam
com a concepção de modernidade que se verificava em outros aspectos sociais.
Marta M. C. de Carvalho (1998) procura analisar como a Associação Brasileira
de Educação (ABE) tornou-se uma arena onde se disputavam o prevalecimento das
ideias pedagógicas ou a inserção político-social de educadores. A pauta da ABE
propunha o estabelecimento de práticas, saberes e métodos de ensino alinhados com o
36
Vidal (2005) estuda a leitura e a escrita no final dos oitocentos e início do século XX. Apesar de não
focar os anos 1920, esta pesquisa ajuda a refletir sobre as discussões que antecederam as ações de
governo do final da Primeira República.
77
projeto de modernização da própria educação. Para este fim realizavam-se conferências,
palestras e congressos, que legitimavam a Educação Nova e se contrapunham àquilo
que era definido como “modelo tradicional” de ensino. A análise de Carvalho contribui,
assim, para pensarmos as relações e influências que as discussões travadas na ABE
tiveram no decurso da década de 1920. Seu impacto, sabemos, não foi pouco.
Os anos 1920 foram escolhidos como foco para este trabalho, pois continham
um discurso educacional que visava introduzir o “novo” nas salas de aula. O “novo”, no
caso, compreendia muito menos uma proposta concreta de ensino a seguir, se
concentrando muitas vezes num discurso de desqualificação do “velho”, ou das práticas
escolares que vinham sendo produzidas desde os tempos do Império no Brasil.
Combatia-se, portanto, antigos hábitos como o uso de castigos físicos, a separação por
gênero nas escolas e a vinculação dos colégios à Igreja Católica37.
Ao lado dos debates em torno da educação, considera-se que no período exposto
esteve também em curso um projeto de grande reestruturação urbana da capital da
república, onde se pretendia “modernizar” os espaços públicos. Este projeto, de certa
forma, expunha uma continuidade da ideia de cidade pensada pelo prefeito Pereira
Passos, cujo mandato se estendeu de 1902 a 1906. Na historiografia recente um grupo
de pesquisadores (BENCHIMOL, 1992 e SOOMA SILVA e PAULILO, 2012), se
ocupou em adensar a argumentação que enxerga um prolongamento do ideal das
intervenções de Pereira Passos mas administrações seguintes. Ao se referirem à
mudança de enfoque preconizada pelos prefeitos que sucederam Pereira Passos, que
passaram a priorizar intervenções higienistas, econômicas e de combate à especulação
imobiliária (principalmente no Centro e Zona Sul), em detrimento de atentar para os
problemas enfrentados pela maioria da população (que seriam tratados num momento
posterior), Sooma Silva e Paulilo escolheram as seguintes palavras:
Essa mudança se evidenciava na prática de se nomear engenheiros para a
Prefeitura, afinal, no período de 1906-1930, outros quatro engenheiros
exerceram o cargo: Amaro Cavalcanti (1917-1918), Paulo de Frontin
(1919), Carlos Sampaio (1920-1922) e Alaor Prata (1922-1926)
(CARVALHO, 1994). No entanto, para além da mesma formação
profissional, percebe-se uma aproximação em grande parte das práticas
37
Esteve em curso no período um intenso debate em torno dos pressupostos da Educação Nova. Esse
debate foi condensado no Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, datado de 1932 e que teve, entre
seus signatários, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira.
78
administrativas implementadas por estes prefeitos em relação aos anos
Pereira Passos (SOOMA SILVA E PAULILO, 2012, p. 129).
O maior símbolo destas reformas talvez tenha sido a abertura da Avenida
Central, que buscou reestruturar o centro da cidade do Rio de Janeiro, até então
entendido pela administração pública como um retrato do atraso e abandono: ruas
estreitas, higiene precária e presença de cortiços onde viviam um considerável número
de pessoas.
A abertura da Avenida Central forçou um deslocamento destas populações para
os subúrbios cariocas, e permitiu a construção de prédios imponentes como o Teatro
Municipal e a Biblioteca Nacional38. A higiene também recebeu atenção especial, com
leis que proibiram, por exemplo, o uso daquela área como estábulos de cavalos que
provocavam mau cheiro.
No que se refere à escolarização da população, cabe destacar que uma cidade
que se pretendia moderna, devia incutir e multiplicar nos habitantes costumes e hábitos
condizentes à nova proposta. Assim, o analfabetismo deveria ser reduzido, a civilidade e
o patriotismo estimulados, cabendo, em grande parte, à escola desempenhar a função de
produzir e/ou estimular estes comportamentos no seio da população.
A partir destas demandas, uma série de leis, decretos e programas foram
publicadas, contudo, para efeito desta pesquisa39, optou-se por concentrar a atenção nos
Programas de Ensino, assinados por Carneiro Leão em 1926. Essa escolha foi
intencional, pois os Programas foram produzidos durante seu exercício como Diretor
Geral da Instrução Pública no Rio de Janeiro, em período que nos permite perscrutar
aspectos do viver citadino dos anos 1920.
Carneiro Leão era o Diretor da Instrução Pública durante o exercício da
administração do prefeito Alaor Prata. Os Programas para o Ensino Primário Carioca,
datados de fevereiro de 1926 e assinados por Carneiro Leão, possibilitam uma análise
38
O Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi finalizado em 1909, e o atual prédio da Biblioteca Nacional
foi finalizado em 1910.
39
Esta etapa da pesquisa que estuda os impactos dos programas de Carneiro Leão no viver urbano
carioca, de modo resumido, foi apresentado no III Encontro de História da Educação do Estado do Rio de
Janeiro, que ocorreu na PUC-RJ em novembro de 2013, em coautoria com a mestranda Rosana Maria de
Souza Alves.
79
das prescrições educativas relacionadas aos métodos, saberes e práticas que eram
estrategicamente estipulados para as escolas primárias na década citada.
Os Programas compreendem uma série de medidas a serem tomadas e uma
descrição dos conteúdos que deveriam ser transmitidos aos alunos, metas políticas e
reflexões acerca da educação. Na introdução do documento, há uma apresentação onde
constam reflexões sobre os valores da sociedade da época, bem como as transformações
que se esperava, por meio da educação, introduzir na sociedade. Para a efetivação desse
empreendimento, ressaltam, por exemplo, a tarefa que caberia aos homens públicos:
O dever de todo homem de estado é observar quais os defeitos e falhas de
seu povo, para fazer com que se oriente a escola desde o jardim de infância
até a universidade. Na direção mais conveniente a uma reação eficaz. A
escola pode tornar-se não apenas um fator de preparação para a vida, mas da
melhor preparação. (PROGRAMAS, 1926, p. 183).
No trecho acima, observa-se uma intenção de avaliar quais os “defeitos” do
povo, para fazer com que a escola viesse a solucioná-los. É preciso lembrar que a
educação e a saúde compartilhavam pastas comuns do governo, havendo uma ideia de
que os colégios pudessem ser o “remédio” de que a sociedade necessitava.
A partir daí, indicia-se que o alcance da modernidade poderia advir de um
investimento na instrução das massas, posto que, ao afirmar que a escola seria a “melhor
preparação para vida”, os programas apontam para um otimismo em relação ao papel da
escola no protagonismo das ações de mudanças que deviam ser introduzidos no Rio de
Janeiro, concepção que, conforme apontado por Popkewitz (1997), se coaduna aos
pressupostos epistemológicos que se tornaram lugar-comum no pensamento reformista
moderno: a possibilidade de utilização da escolarização a serviço do progresso, a partir
da intervenção sistemática humana junto às instituições sociais. Este aludido projeto
político de escolarização das massas teria alcançado tamanho êxito na sociedade, que
muitas das suas premissas passaram a ser internalizadas pelas práticas comportamentais
da população (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001).
Observa-se também, com isso, uma vinculação da escola a um planejamento dos
comportamentos adequados para a convivência em sociedade, de modo que, por meio
da instrução pública, se pretendia estimular a busca pelo modelo de sujeito mais
adequado para o viver citadino. Neste contexto, considerava-se que adquirir uma
80
profissão era indispensável, tendo em vista que uma carreira formal estaria mais de
acordo com a modernidade que se pretendia produzir. Ao contrário, um mercado de
trabalho informal se vinculava justamente às vicissitudes típicas das décadas passadas, o
que se pretendia superar, conforme aparece em outro trecho do documento:
A partir do terceiro ano, sempre que a oportunidade se lhe apresente, o
professor deverá conversar com as crianças sobre as profissões da região, do
Distrito Federal do País, acentuar as aptidões físicas, intelectuais e morais
requeridas em cada qual, mostrar o inconveniente de uma carreira mal
escolhida, chamar a atenção para a importância de uma escolha acertada.
(PROGRAMAS, 1926, p. 184)
Como se observa, há a presença de uma preocupação moral no encaminhamento
profissional. Além disso, o texto enfatiza a importância da escolha da profissão e delega
ao professor a incumbência de conversar com os alunos sobre estas questões. Apreendese daí que os professores, por estes meios, além de ensinarem as matérias das quais os
próprios programas tratam, deviam ensinar através do bom exemplo.
Cabe, ainda, realizar uma análise dos conteúdos que se esperavam ensinar aos
alunos por meio da escola. Os programas, nessa linha, salientam que a linguagem deve
ter certo destaque dentre as outras disciplinas ministradas: “a linguagem é uma função
natural, que deve ser guiada e aperfeiçoada pela educação. O seu programa na escola
terá, ao mesmo tempo, de ser influenciado e influenciar os programas de todas as
disciplinas” (PROGRAMAS, 1926, p. 185). A ênfase nos modelos de linguagem
corrobora a busca por um elemento de unificação nacional, em concordância com as
políticas internacionais executadas pelo Barão do Rio Branco, que no decurso dos anos
1920 era tido como uma inspiração para o projeto republicano. Assim, deveria servir de
exemplo para os alunos, de modo que após o término da escola, viessem a reproduzir os
valores inspirados pelo afamado diplomata: civilismo, respeito aos símbolos pátrios,
não-beligerança e educação.
Rio Branco foi muito admirado na década de 1920, justamente pelo seu
protagonismo nas ações de definição do território nacional brasileiro e relações com os
países vizinhos no período de transição para a república. A necessidade de valorizar a
língua portuguesa estava presente na sua esfera de preocupações, posto que o Brasil é
cercado por uma comunidade espano-ablante, o que mais uma vez se alinha aos
elementos apontados por Popkewitz (1997), quando aponta como uma estratégia
importante que se inscreve na relação saber-poder, a partir do advento do Estado Nação
81
e da escola de massa, a necessidade de incutir naquela população diferentes laços de
pertencimento.
Estas prescrições apontadas por Carneiro Leão afetaram o cotidiano das escolas
do período, e por isso interessam à pesquisa sobre o colégio Azevedo Sodré. A história
destes espaços será utilizada como estratégia escriturária para que se torne possível o
estabelecimento de interlocuções com as pesquisas dos autores apontados acima, que
selecionaram a cidade do Rio de Janeiro e a Educação Primária como temáticas de
estudo e os anos 1920 como foco de análise. Nessa medida, embasado na variação de
escala sugerida por Jacques Revel (1998), as atenções de investigação estarão centradas
tanto nas especificidades da Escola Azevedo Sodré quanto nas relações dos tempos e
espaços escolares deste estabelecimento de ensino com as outras circunstâncias do viver
urbano carioca.
Falar sobre o colégio Azevedo Sodré no período de sua fundação, isto é, os anos
1920, pressupõe refletir sobre os entrelaçamentos das circunstâncias daquela sociedade
com estudos sobre o espaço e o tempo da capital do país. Cabe, portanto, recorrer a
autores como Clarice Nunes (1996), que no livro Missionários do Progresso realça a
ideia de se “ler a escola lendo a cidade” (p.156). Isso significa que a autora sugere
justamente pensar estes entrecruzamentos sociais e urbanos. Tarefa que, igualmente, me
proponho a realizar. Impossível estudar o colégio foco desta pesquisa sem um olhar
atento à cidade do Rio de Janeiro e as implicações que decorrem das relações das
esferas escolares com as esferas urbanas.
Cumpre, assim, falar que se pretendeu introduzir uma estética moderna na
arquitetura dos colégios, o que contribuía para a percepção de uma cidade que se
modernizava, e que, portanto, precisava de escolas com fachadas imponentes e
grandiosas. Estas características eram caras à administração pública, que pretendia
imprimir na cidade o mesmo tipo de impacto e magnitude. Diana Vidal (2001) foi uma
autora que se ocupou em estudar esta relação entre a “estética moderna” e demais
equipamentos urbanos. A autora enfatiza a esfera de preocupações governamentais que
levaram à fundação, em 1930, do Instituto de Educação, que se ligava à necessidade de
introduzir na cidade colégios de grande apelo visual. Todavia, ainda que se
apresentassem colégios de aparência condizente à cidade que se pretendia construir, é
necessário refletir sobre os usos que se faziam destes espaços.
82
Sabe-se, como já foi dito nesta pesquisa, que nos anos 1920 esteve intensamente
em debate o projeto da Escola Nova. Sua efetivação no campo pedagógico, porém, não
foi imediata. Havia, contraditoriamente, na mesma rede escolar do Rio de Janeiro,
programas educativos bastante conflitantes entre si. Ocorria, por exemplo, como
exposto no trecho a seguir, uma presença ainda relativamente firme de concepções
jesuíticas dentro da educação que era praticada.
O interessante é que esta arquitetura, ao mesmo tempo que mantinha a
função disciplinadora do projeto arquitetônico jesuíta, elevava o potencial
de trabalho, capitalizando o tempo no cálculo dos espaços ocupados ou
percorridos. Associava-se, portanto, a flexibilidade do uso à rigidez do
formato. Ambas alcançavam uma caracterização estético-formal
comprometida com a moda “moderna”. Isto é, o efeito da forma era
moderno, mas não propriamente a sua função, o que nos leva a afirmar que,
na arquitetura moderna das escolas públicas cariocas, persistiu, apesar das
diferenças observáveis, uma atitude contemplativa. (NUNES, 1996, p. 192)
A autora fala de uma atitude contemplativa em relação aos colégios, o que
remete à ideia que se propalava de se alcançar uma estética moderna para a cidade por
meio, parcialmente, da construção de escolas com esta aparência. Não seria possível
traçar uma única arquitetura para os colégios do período, visto que estes eram bastante
heterogêneos quanto à sua forma40. O interesse da pesquisadora sobre o tema da
arquitetura escolar se deve à sua possibilidade de utilização como fonte que indicia
novos aspectos para serem analisados sobre a educação do período. Assim, entende a
dimensão dos espaços educativos como uma, entre outras, das culturas escolares. No
livro citado, as culturas escolares não são pesquisadas isoladamente. Ao contrário, são
estudadas justamente no ponto de sua junção com outras circunstâncias que interferem
no viver das pessoas na urbe, como a política, a saúde pública, obras de infraestrutura
ou a segurança percebida.
Na obra, a autora entende que uma das marcas das discussões políticoseducacionais da década de 1920 foi o debate em torno da Educação Nova. Ao utilizar o
termo teatralização para se referir à atuação dos educadores e políticos em geral que
travaram esta disputa, se afasta da ideia de que a passagem de um pretenso “modelo
40
O colégio Azevedo Sodré foi adaptado para o uso escolar, tendo sido antes uma casa de família. No
período, porém, houve a construção de escolas pensadas para receberem tal uso. Estas, talvez mais do que
a primeira, possam indiciar melhor os modelos estéticos formais que se pretendia introduzir no período
dos anos 1920. A Escola Uruguai representa este modelo, tendo sido fundada em 1929, apresenta uma
fachada de características neocoloniais. O colégio Gonçalves dias, localizado em São Cristovão, reflete
uma terceira categoria de escola. Ela havia sido concebida como tal no período imperial, e fora reformada
no governo Passos ganhando um segundo andar.
83
tradicional” de educação para uma nova abordagem pedagógica tenha tido algo que se
aproximasse de uma evolução, ou que tenha ocorrido de forma natural. Opostamente,
Nunes enfatiza a ideia que considera as transformações ocorridas no período como fruto
de um intenso embate pela prevalência de cada posição. A todo avanço das ideias laicas
dentro da escola pública, se contrapunha uma proposta de manutenção da formação
católica para os alunos cariocas. É válido dizer que alguns dos mais conhecidos teóricos
da Escola Nova, como Anísio Teixeira ou Fernando de Azevedo, haviam estudado em
colégios jesuítas, o que evidencia não apenas uma transição da abordagem prevalecente,
mas principalmente uma grande disputa por espaço político, verbas púbicas e ideais.
A batalha entre as ideias retrógradas e as novas ideias prosseguia. Real e
teatralizada pelo heroísmo dos educadores da cidade. Cada escola pública
carioca foi atingida e reagiu de acordo com sua especificidade, por um
movimento que, em última instância, era um dos traços da expansão da
soberania laica e que possuía uma característica muito peculiar: o
movimento da Escola Nova atualizou o apelo soteriológico unindo-o às
racionalizações trazidas pelas ciências humanas e pelas técnicas de controle
social (NUNES, 1996, p. 201)
Ainda sobre a efervescência das discussões em torno da Escola Nova, Nunes
procurou destacar que cada colégio público reagiu de acordo com suas especificidades.
Para efeito deste estudo, cabe indagar qual posição adotou a Escola Azevedo Sodré na
intensa disputa citada. Antônio Augusto de Azevedo Sodré havia participado do
movimento reformador da educação. Todavia, é preciso considerar, teve em sua vida
uma influência muito maior, ou ao menos mais duradoura, da formação católica. Ele
nasceu no ano de 1864, tendo vivenciado na sua juventude a transição da monarquia
para a república, e apenas no final de sua vida, participado mais intensamente do debate
escolanovista. Outros educadores que marcaram a década de 1920, como Anísio
Teixeira e Fernando de Azevedo, possuíam não mais do que vinte e poucos anos no
final da Primeira República. A idade avançada talvez possa ter suscitado um motivo a
mais, para construir a admiração pública colhida por Sodré no final de sua vida. Mesmo
tendo vivido a maior parte de seus dias num período onde a presença da igreja católica
era mais abrangente, soube transitar entre os dois espaços educativos, o secular e o
confessional, tendo escolhido converter-se num defensor da educação pública laica.
Falece em 1929, deixando diretrizes a serem seguidas para a escola que levava o seu
nome. Nestas prescrições havia indícios de uma proposta de educação vinculada à
Escola Nova, mas também marcas muito presentes do positivismo. Destaca-se, por
84
exemplo, como marca do positivismo que estava presente nas prescrições deixadas por
Azevedo Sodré, a obrigatoriedade ao culto da bandeira. Na festa intitulada “CULTO
DA BANDEIRA E AMOR DA PÁTRIA” lê-se que “o principal dever de um cidadão é
amar, honrar e servir a sua pátria” (TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86). Os alunos, nesta
perspectiva, se alinhariam aos princípios contidos no estandarte: “Ordem e Progresso”,
lema inspirado na ideologia positivista de Augusto Comte, a qual já havia influenciado
fortemente os republicanos na transição da monarquia para o novo sistema de governo.
O colégio, após o falecimento de Azevedo Sodré, se alinha com a abordagem
escolanovista, como ocorreu com boa parte das escolas cariocas no início dos anos
1930, mas deve ser percebido como um espaço em que tal presença sucedeu de acordo
com as representações de escola e táticas de convivência das pessoas que o constituíram
(DE CERTEAU, 1998).
A questão das técnicas de controle social e a influência das ciências humanas
nos pressupostos da Escola Nova foram abordadas por Nunes (1996). Com efeito, as
escolas foram utilizadas como estratégia disciplinar (SILVA, 2009), para disseminar um
repertório de comportamentos que deviam ser ensinados à população, para que
adotassem hábitos condizentes à cidade que se pretendia moderna. Ao lado destas
preocupações, destaca-se a transição de um modelo calcado na valorização das ciências
da natureza, que prevaleceu durante o século XIX e início do século XX, através das
ideias positivistas, para uma maior atenção despendida às ciências humanas, como a
História e a Geografia. Esta transição não passou à margem das preocupações dos
defensores da Escola Nova, sendo perceptível uma clara intenção de inserir com mais
abrangência as matérias típicas das ciências do homem nas salas de aula cariocas. Tal
preocupação pode ser encontrada nos Programmas assinados por Carneiro Leão em
1926. Numa extensa explicação sobre as disciplinas a serem ministradas nas salas de
aula da instrução pública, há, para todos os anos da educação da criança, um
detalhamento dos conteúdos a serem ministrados em História e Geografia. Interessa
perspectivar que tais disciplinas contavam com o mesmo peso e valoração no currículo
das ditas disciplinas da natureza.
Seria impossível desconsiderar a importância de refletir acerca dos
entrelaçamentos entre o Colégio Azevedo Sodré e as outras iniciativas de construção de
prédios que foram empreendidas no período. Os colégios haviam sido pensados para
desempenhar uma função de educar a população. Ainda que se questione historicamente
85
os significados de se educar uma população41, percebe-se um interesse governamental
na inauguração de colégios. A inauguração do Instituto de Educação foi um exemplo de
espaço que tinha esta dupla função: educar os alunos e representar a cidade enquanto
local digno e capital da nação. Vidal (2001) estudou com atenção o caso deste Instituto.
O edifício foi inaugurado no ano de 1930, ainda como uma Escola Normal. Sua
arquitetura, em estilo neocolonial, foi planejada para possuir dimensões simétricas, que
representassem um efeito de monumentalidade. Situado na Rua Mariz e Barros, não
muito longe da escola Azevedo Sodré42, viu sua natureza administrativa mudar já no
ano seguinte, quando as escolas primária e secundária, além do jardim de infância,
foram incorporadas, de modo que se compusesse o que se entende por Instituto de
Educação. Em 1931 assumiu a Diretoria Geral da Instrução Pública o baiano Anísio
Teixeira. Teixeira se empenhou dedicadamente para garantir o bom funcionamento do
Instituto, trazendo elementos da Escola Nova para a prática formativa do IE. Como
administrador da casa, Anísio convidou Lourenço Filho.
Para efeito desta pesquisa, é importante destacar a questão da arquitetura escolar.
No caso do Instituto de Educação, viu-se uma preocupação quanto às condições para o
exercício do ensino e da aprendizagem no seu interior. As salas eram espaçosas, os
corredores amplos, e a iluminação eficiente. O que contrasta com a adaptação que foi
concretizada na Escola Azevedo Sodré, antes uma casa colonial. Ainda que a
comparação entre os dois edifícios, procurando enquadrá-los numa mesma categoria de
“escola carioca do período” não seja imediatamente possível, visto que tinham
dimensões muito diferentes, faixas etárias de alunos não correspondentes e projetos
pedagógicos distintos, esta análise conjunta ajuda a entender como os projetos de
educação do período possuíam propostas diferenciadas, explicitando um projeto de
escolarização do social (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001) difuso em inúmeras leis,
decretos, ações governamentais e projetos pedagógicos. Muito mais do que um modelo
de educação no período, o que se pretende indiciar com esta pesquisa são exemplos das
estratégias e táticas (DE CERTEAU, 1998) encontradas por aqueles sujeitos para
41
Clarice Nunes (1996) e Sooma Silva (2009), são exemplos de autores que procuraram discutir o
significado de se educar a população, visto que o termo possuía uma acepção diferente em diferentes
momentos históricos. Em comum, ao analisarem os anos 1920, os dois autores defendem a ideia de que
uma população educada seria uma forma de adequá-la ao repertório de comportamentos que se pretendia
para a cidade modernizada.
42
A Escola Azevedo Sodré está situada a apenas 554 metros da portaria dos fundos do Instituto de
Educação. Ambos encontram-se nas proximidades da Praça da Bandeira.
86
experimentarem o seu viver citadino. Nesta linha, observa-se o cuidadoso planejamento
arquitetônico do Instituto de Educação, tendo-se em mente, para efeito de comparação,
a precariedade dos espaços disponibilizados para o colégio Azevedo Sodré.
As salas, construídas dentro dos princípios ergonômicos, possuíam grandes
janelas, propiciando aeração e iluminação naturais, controladas por cortinas
e janelas basculantes. Luzes artificiais garantiam as condições de
visibilidade do recinto nos dias de menos luminosidade do inverno e à noite.
O projeto procurava obedecer ao preceito de manter uma luminosidade de
18 velas por pé quadrado, considerada como ideal, porque capaz de proteger
os órgãos de visão (VIDAL, 2001, p. 34).
A preocupação com a saúde dos alunos era uma característica importante do
projeto acima destacado, que contrasta com a reforma por que passou o colégio objeto
desta pesquisa para convertê-lo em escola. O pátio para recreação no Instituto de
Educação era amplo e bem ajardinado, no caso da Escola Azevedo Sodré não havia um
local adequado para as crianças brincarem, por exemplo, na hora do recreio. Esta
inadequação obrigava43, inclusive, durante as festividades e apresentações de alunos, à
plateia, amontoar-se nas janelas e escadas para assistir os cânticos e solenidades.
Vidal reconhece a importância da dimensão arquitetônica como uma categoria
que produz efeitos nas culturas produzidas e reproduzidas nos espaços escolares, e onde
estes se relacionam com os espaços urbanos. Porém, há uma série de outras categorias
que devem ser consideradas quando se propõe um estudo sobre as instituições e práticas
formativas. Nenhum estudo dará conta de explicar a totalidade das relações
estabelecidas entre um colégio e o seu entorno. Haverá sempre um recorte. E, em última
análise, quem o seleciona é o pesquisador. Em seu livro, ainda demonstrando
preocupação com os espaços escolares e citadinos, a autora propõe uma análise das
práticas de leitura executadas no início das atividades do Instituto de Educação. O mais
interessante, neste caso, é a proposta defendida que enxerga as práticas de leitura como
elementos de uma teia construída por agentes difusos, que visa produzir efeitos
benéficos para os espaços públicos em geral, através do desenvolvimento da leitura e da
escrita, como se estas pudessem levantar uma sociedade adormecida no tempo, e
encaminhá-la para a modernidade.
43
A fotografia colhida junto ao acervo do Jornal do Brasil, disponibilizada no capítulo 3 desta dissertação
registra uma solenidade sendo executada pelas crianças, enquanto os pais se amontoavam em espaços
improvisados para assistirem seus filhos.
87
Neste sentido, nos anos 1920, a leitura e a escrita foram selecionadas como
estratégias governamentais para educar a população, de modo que os maus hábitos
pudessem ser superados por outro padrão comportamental: mais adequado a uma cidade
higienizada, educada e moderna. O analfabetismo era visto como causa de profundas
mazelas sociais, como a criminalidade, precarização da saúde, delinquência e má
conservação dos espaços públicos. Ao contrário, se a população fosse instruída, os
vícios seriam substituídos por virtudes, a informalidade do trabalho daria lugar às
carreiras mais valorizadas, a sujeira nas ruas e calçadas não precisaria ser limpa com
tanta frequência, pois a população trataria de sujar menos a cidade, o
subdesenvolvimento urbano e social ficaria para trás, cedendo lugar à modernidade que
era, enfim, uma pretensão política colocada na agenda das ações. A educação era vista
como um importante meio para alcançar este objetivo.
Corpo e mente disciplinados eram o novo objetivo da educação carioca.
Hábitos higiênicos velariam por um corpo perfeito, mas somente a leitura e
os estudos possibilitariam o desenvolvimento do pensamento racional e
científico solicitado pela nova era: a emersão do trabalhador capacitado e da
elite meritocrática, necessária à modernização da sociedade brasileira. A
escola, finalmente, exercia sua missão democrática (VIDAL, 2001, p. 201).
Posto que a escola devia, nas palavras de Vidal, “exercer sua missão
democrática”, se verifica como as esperanças eram direcionadas para as circunstâncias
que deveriam ser trabalhadas naqueles espaços e tempos institucionais. Ao democratizar
o ensino, a cidade também se tornaria mais democrática, acessível para um maior
número de habitantes. No início da década de 1920 a capital carioca era a única cidade
brasileira a ultrapassar o número de um milhão de habitantes44, o que demonstra a
imprescindibilidade de efetuar as reformas de que os espaços urbanos necessitavam para
comportar esta população. O aumento do número de moradores trazia consigo novos
desafios. O fluxo de imigrantes e o surgimento das primeiras favelas, em conjunto com
o adensamento da Zona Norte, criaram a necessidade de instalar nestes locais, ou
próximo deles (ROCHA, 1995), escolas para transmitir e ensinar os conteúdos, as
disciplinas e os hábitos considerados mais importantes para a população. A inauguração
de escolas em regiões periféricas permitiria evitar longos deslocamentos para que os
alunos saíssem de suas casas e chegassem aos edifícios escolares. Assim, como efeito
44
Fonte: IBGE. Em 1920 o Rio de Janeiro tinha 1.147.599 habitantes.
88
benéfico desta reorganização espacial da cidade, o trânsito dos veículos automotores
poderia ficar livre e menos solicitado.
A leitura, investida de novas responsabilidades, era vista como capaz de
converter as massas em uma população digna de representar a capital do país. Além dos
órgãos de visão, que seriam mais imediatamente associados à leitura, havia o
entendimento de que uma saúde plena era indispensável aos habitantes do Rio de
Janeiro. Nesta direção, um corpo com os sentidos apurados, a respiração calma e a
mente firme representavam um modelo a ser alcançado. Por esta razão que começou a
haver uma maior preocupação com a boa adequação dos prédios escolares para as
práticas educativas. Não adiantaria uma equipe pedagógica capacitada, se os locais
destinados ao ensino, ao invés de estimular a escrita e a leitura, causasse as doenças que
justamente impediriam estas habilidades. O Instituto de Educação foi um exemplo de
edifício em que estas preocupações estiveram presentes ainda na etapa dos desenhos
arquitetônicos.
O corpo dos sujeitos aprendizes, cada vez mais, passou a ser dimensão
fundamental para o cotidiano escolar, a educação física e outros trabalhos manuais,
presentes na grade curricular, capacitavam a mente para a necessidade de concentração
das matérias que envolviam mais diretamente a leitura e a escrita. “O desenho era
recurso importante no ensino da escola secundária, especialmente porque disciplinava a
observação” (VIDAL, 2001, p. 150). As atividades com as mãos eram estimuladas, pois
dotavam os dedos com os movimentos finos necessários à boa caligrafia. A postura
ereta era cobrada dos estudantes, pois colaborava com a possibilidade de boa ventilação
dos brônquios pulmonares. A higiene também recebeu especial atenção, pois sua
ausência acarretaria maus odores e outras secreções corporais que desviariam a atenção
ao que era mais importante: a aula dos professores, a gentil convivência entre os alunos
e o afinco aos estudos.
Ler associava-se ao estudo. Nesse sentido, tornava-se uma prática que
necessitava do corpo, como um todo para a sua realização. Além do cuidado
com a vista, o leitor precisava manter uma boa alimentação e bom estado
dos dentes, sob pena de contrair doenças e comprometer o bom
aproveitamento da leitura e do estudo. À saúde do corpo, acrescia-se a saúde
do ambiente. Luz, temperatura, umidade, vestuário, instalações e material
deveriam ser regulados, evitando desperdícios devido à má condução das
atividades (VIDAL, 2001, p. 228).
89
Como se observa no trecho destacado, as saúdes do corpo e do ambiente eram
vistas como importantes elementos do processo ensino-aprendizagem. Ao contrário de
estudá-las individualmente, de forma cartesiana, a autora preferiu pensá-las como
constitutivas das culturas escolares (VIDAL, 2005). Tanto o corpo como os espaços
interferem nas relações dos alunos com o ambiente e a comunidade escolar, e é nesta
escolha de abordagem que se verifica uma das contribuições de Vidal que mais se
aplicam a esta pesquisa sobre o colégio Azevedo Sodré. Ocorre que os estudos sobre o
Instituto de Educação não se furtam a uma análise dos entrelaçamentos com as culturas
citadinas cariocas dos anos 1920 e início dos 1930. São nestes espaços movediços que a
pesquisa se insere, nos encontros e desencontros possíveis entre as duas instituições.
Vidal não foi a única a refletir sobre o papel das instituições educacionais nos
anos 1920. Ainda que se debruçasse sobre um órgão de natureza diversa, Marta
Carvalho (1998) trouxe grande contribuição para a história da educação que trata sobre
o período. Sua pesquisa conduz a uma reflexão sobre o papel da ABE (Associação
Brasileira de Educação) na construção das representações sobre a educação que foram
concebidas na década focada. Um grupo de intelectuais fundou, em outubro de 1924, a
Associação. Porém, como a autora observa, sua inauguração foi decorrência da tentativa
frustrada de criação de um partido político, que iria chamar-se “Acção Nacional”.
Pensar sobre o papel que esta arena de debates desempenhou no período ajuda a
questionar transversalmente alguns conceitos bastante difundidos na história da
educação, como o “entusiasmo pela educação” e o “otimismo pedagógico” (NAGLE
1976). Esta linha de estudos tornou-se hegemônica na historiografia das décadas de
1960 e 1970. Ao questionar como estas estruturas não eram rígidas, ou como o
entusiasmo muitas vezes cedia lugar ao pragmatismo político e a autopromoção dos
intelectuais que lutavam por espaço, a autora lança um novo olhar sobre a ABE, e
constrói um repertório de representações que nos serão úteis para estabelecermos uma
análise do período focado, em que a escola Azevedo Sodré não está isolada do teatro
político que sacudiu o pensamento educacional do final dos anos 1920 e início dos anos
1930.
Assim, entende-se que a ABE não foi um campo neutro de discussões. Ao
promover uma política educacional com valores advindos do exterior, nota-se uma
percepção hegemônica de que o Brasil estava mergulhado num mar de não-educação,
90
não-higiene e não-civilidade, sendo necessário recorrer a modelos estrangeiros para
imprimir um padrão desejável de comportamentos na população.
A ABE teria sido um dos instrumentos mais eficazes de difusão do
pensamento pedagógico europeu e norte-americano, e um dos mais
importantes, se não o maior centro de coordenação e de debates para o
estudo e solução de problemas educacionais, ventilados por todas as formas,
em inquéritos, em comunicados à imprensa, em cursos de férias e nos
congressos que promoveu nas capitais dos Estados (CARVALHO, 1998, p.
31).
Os “problemas educacionais” aludem, mais uma vez, para a percepção de que o
Brasil estava vinculado ao atraso, sendo necessário introduzir o moderno na agenda das
ações políticas e educacionais. A ABE torna-se, assim, um dos mais importantes
espaços em que se debatiam os rumos da educação. Cabe destacar que não apenas em
conversas os tópicos sobre instrução pública eram discutidos. Os seus membros
valeram-se sistematicamente da imprensa para difundir as ideias que lhes interessavam,
e realizaram conferências para aprofundar os diálogos.
Nos debates promovidos pela ABE percebia-se uma nítida intenção de se
estabelecer um controle social, de tal modo que as massas pudessem receber uma
educação específica que as estimulasse com práticas civilistas e patrióticas, valorizando
sempre a família, a ordem e o dever, de modo a moldar a personalidade no sentido de
construir uma identidade nacional que interessava às elites, no caso, a elite intelectual,
como os dirigentes da ABE se autoproclamavam. Esta educação voltada para as massas
devia ser oferecida pelo Estado sob a forma do ensino primário, como é o caso da
Escola Azevedo Sodré.
Os fundadores da ABE se esforçaram para ocultar a forma como a Associação
havia sido criada. Não seria visto de forma positiva pela sociedade a informação de que
seu surgimento derivava de uma tentativa malograda da formação de um partido
político. Neste sentido, houve um esforço para estabelecer uma boa imagem. Foi com
este objetivo que se preocuparam em divulgar valores que consideravam ser apropriados
para a cultura brasileira, como a família e a pátria. Heitor Lyra, que havia sido o
idealizador do projeto da Associação, teve seu nome muito lembrado pelas
administrações seguintes, mesmo após seu falecimento. Isto se deu numa tentativa de
vincular a imagem da ABE ao de Heitor, que gozava de grande prestígio na memória da
91
elite intelectual brasileira. Ele era lembrado como um homem bem intencionado, atento
com a educação, e despreocupado em aferir benefícios pessoais com a causa.
2.2 Outros olhares sobre o Colégio Azevedo Sodré
As pesquisas que se debruçam sobre a ABE podem contar com um repertório de
fontes relativamente bem organizado. O Arquivo Público Nacional e a Biblioteca
Nacional, ambos localizados no centro do Rio de Janeiro, são exemplos de instituições
que disponibilizam para consulta, por exemplo, artigos de jornais em que constam
alguns dos mais importantes debates travados na Associação. Também há largo
referencial sobre as conferências promovidas por ela. O acervo está, em ambos os casos,
sistematizado para consulta pública. Porém, na busca por fontes de pesquisa acerca da
escola de que trata este texto, talvez por ser uma instituição menos conhecida pelo
grande público, o material para consulta não está tão acessível. Sendo necessário muitas
vezes a busca em arquivos pequenos e desorganizados, como o que há no prédio da
Escola Azevedo Sodré.
Neste sentido, a coleta das fontes apresenta dificuldades para o historiador, que
muitas vezes se depara com órgãos públicos sem uma cultura de preservação de
documentos. Alguns periódicos antigos, assim como livros e revistas de grande valor
histórico, correm o sério risco de serem perdidos devido à inexistência de uma política
conjunta, eficaz e colaborativa, entre as três esferas de governo da federação. A má
comunicação, por exemplo, entre o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional) que atua como representante do governo federal, e o IRPH (Instituto
Rio Patrimônio da Humanidade), que atua junto ao governo do município do Rio de
Janeiro, levou a algumas informações desencontradas em torno do tombamento do
prédio da Escola Azevedo Sodré.
Enquanto o arquivo do IPHAN, situado no Palácio Gustavo Capanema no
Centro do Rio, está melhor equipado, com acervo digitalizado, o mesmo não ocorre
com o arquivamento dos processos no IRPH, que se situa na Rua Gago Coutinho em
Laranjeiras. Fui informado de que, após longa procura pelos funcionários do Instituto
em 12 gavetas que configuram o arquivo, não conseguiram encontrar o processo
92
número 12/001.236/97, que trata do tombamento do prédio onde se situa a Escola
Azevedo Sodré. Colhi o decreto nº 19342 que torna efetivo, juridicamente, o
tombamento. Apresento-o na página seguinte.
93
94
95
Como se pode observar, o decreto não traz detalhadamente informações sobre o
tombamento dos prédios. Ocorreu o tombamento conjunto de quatorze escolas
municipais, todas elas localizadas no bairro da Tijuca. A Tijuca, neste texto legal, é
tomada como área de ampla abrangência. O colégio está situado na Praça da Bandeira,
que na geografia carioca é considerada como um sub-bairro tijucano. Os prédios foram
considerados de importância histórica para o patrimônio municipal, e por isso viram-se
contemplados pelo decreto. O IRPH, mais de oito décadas após a fundação da escola,
considerou que o prédio não sofreu modificações arquitetônicas que o desabilitasse para
entrar no grupo das escolas que mantiveram valor histórico na Grande Tijuca. O que me
levou a produzir uma breve coleta de fotografias no ano de 2010, na esperança de
mostrar algumas características relativas ao funcionamento da Escola Azevedo Sodré na
década de 1920, o que só foi possível devido à sua natureza de bem tombado. Com base
nestas informações, proponho indiciar algumas das principais características da casa que
foi adaptada para funcionar a Escola Azevedo Sodré.
As salas de aula possuem portas que remetem para um espaço de circulação na
varanda do antigo casarão. A varanda, neste sentido, assume uma dupla função, sendo
utilizada para contemplação do jardim, e para a entrada e saída dos alunos e
funcionários. Esta segunda utilização, que se aproxima dos usos de um corredor, é
precária, como se pode observar na imagem apresentada abaixo. O espaço é bastante
estreito para a circulação de um grande número de pessoas, o que pode acarretar
problemas nos períodos de pico de demanda, como o início do dia letivo, em que alunos
entram em conjunto no prédio para se acomodarem nas salas de aula. Outros períodos
de pico são a saída, no final do dia letivo, e os horários de recreio. Um grande afluxo de
crianças correndo naquelas dependências pode causar acidentes e prejudicar o
funcionamento da escola. Esta varanda havia sido projetada para receber um pequeno
número de moradores e convidados dos donos da moradia, uma vez que a casa
funcionara antes como residência familiar.
96
Escola Azevedo Sodré, Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010.
Corredores adequados, projetados em prédios novos que receberiam as escolas,
como no caso do Instituto de Educação, precisam ter uma ampla largura que possibilite
a utilização simultânea por alunos e professores nos horários de maior demanda. Além
disso, devem possuir boa iluminação, corrimões em suas laterais e chão aderente, que
evite escorregões. No caso da Escola Azevedo Sodré, como se apresenta nas duas
fotografias abaixo, há notória precariedade, principalmente na questão do piso que foi
escolhido. Os ladrilhos hidráulicos foram bastante utilizados nas construções cariocas
do final do século XIX, e início do século XX, são fabricados individualmente com
utilização de 28 tonalidades. Após sua instalação, era aplicada uma resina para torná-los
mais brilhantes e resistentes ao tempo. Possuem inegável beleza, mas seu uso em
ambientes escolares deve ser cuidadosamente avaliado. No caso das varandas da escola
Azevedo Sodré, recebem chuva nos dias de mau tempo, acumulam poças d’água e
ficam bastante escorregadios. Na utilização anterior da casa, um número reduzido de
97
pessoas andava sobre eles, sendo um problema contornável. Mas, quando recebem o
afluxo de alunos na nova atribuição que lhes foi aferida, podem provocar tombos e
acidentes de diferentes proporções.
Escola Azevedo Sodré, Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010.
O caso do pátio disponível para as atividades recreativas da hora do recreio é
outro exemplo da inadequação da casa onde funciona a Escola Azevedo Sodré. Abaixo,
disponibilizo uma fotografia da área onde acontece a maior parte das brincadeiras. Um
parco terreno, espremido entre o colégio e o muro da casa adjacente. A inexistência de
uma quadra adequada dentro da instituição tornaria os exercícios de ginástica,
recomendados pela legislação de ensino vigente45, impossíveis de serem executadas no
colégio estudado. Um terreno amplo, que pudesse acolher as crianças e permitir um
lugar apropriado para brincadeiras e atividades físicas conduzidas pelos professores já
era reconhecido como elemento importante da arquitetura escolar, embora muitos
45
Os programas, assinados por Carneiro Leão, tratam dos exercícios ginásticos, recomendando
explicitamente sua execução nas escolas primárias. A introdução do documento já estabelece esta
recomendação. (PROGRAMMAS, 1926, p. 189).
98
colégios não dispusessem objetivamente de um local propício para a prática. Os
programmas abordam o tema da seguinte forma: “Hoje, raríssimas são as escolas que,
por
falta
de
espaço,
não
executam
regularmente
os
exercícios
físicos”
(PROGRAMMAS, 1926, p. 190). O texto, entretanto, entende por espaços apropriados
para a atividade, locais próximos ao colégio. Sugere a execução da atividade física,
quando não há espaço disponível dentro da própria escola, em praças, parques ou
terrenos à beira-mar: “Sempre, não longe, há um jardim, uma praça, um campo de jogo,
onde os escolares podem ir facilmente para a aula de educação física.”
(PROGRAMMAS, 1926, p. 190). A adaptação por que passou a casa da escola Azevedo
Sodré, e outros colégios cariocas, para funcionarem como instituição de ensino, deixou
alguns inconvenientes com os quais as equipes de profissionais da educação tiveram
que aprender a lidar. O casarão que se estuda está situado no centro do terreno, como
era comum nas residências daquela região, isto tornava as áreas para jardins e pátios
externos reduzidos, o que acabou comprometendo o espaço para o recreio e educação
física das crianças.
Escola Azevedo Sodré, Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010.
99
A questão das janelas é outro exemplo dos improvisos que marcaram a transição
de residência para a Escola Azevedo Sodré. Para a boa leitura e escrita dos textos dentro
das salas de aula, recomendava-se uma iluminação adequada, de modo a proteger os
órgãos de visão. Além da iluminação desejável, a amplitude das janelas também
permitiria a manutenção das temperaturas mais amenas. Isto era importante porque,
especialmente no verão, as temperaturas podiam ficar muito elevadas. Neste sentido,
tornava-se indispensável a existência de uma boa ventilação nos ambientes internos. No
caso do colégio estudado pode-se perceber a ocorrência simultânea de dois tipos de
janelas. Na fotografia abaixo apresenta-se uma janela ampla, com dupla abertura, o que
permitia além de boa iluminação, a ventilação que era necessária nos dias mais quentes.
Escola Azevedo Sodré, Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010.
No caso da fotografia disponibilizada a seguir, podem-se perceber janelas
menores, com apenas uma abertura, o que tornaria a iluminação interna menos adequada
para a prática dos estudos nas salas de aula. Além da questão da iluminação, este tipo de
janela também impedia uma ideal circulação de ar, o que aumentaria a sensação térmica
nos dias de maior calor, principalmente quando se tem em mente uma aglomeração de
100
até quarenta alunos no mesmo espaço46. A respiração conjunta e o calor dos corpos dos
estudantes contribuía para o aumento da temperatura, o que certamente prejudicava os
trabalhos nas dependências da escola Azevedo Sodré.
Escola Azevedo Sodré, Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010.
A análise sobre os espaços educativos presentes no colégio foi importante como
forma de avaliar a capacidade da casa para receber uma instituição de ensino. Muitas
escolas fundadas na década de 1920 não foram construídas para este fim, o que tornava
46
O decreto 2940, datado de 29 de novembro de 1928, estabelece em seu artigo 134 o número máximo de
40 alunos por classe nas escolas públicas de ensino primário. (REGULAMENTO DE ENSINO, 1928, p.
186)
101
as suas dependências precárias, e distantes da motivação que lhes aferiam a
incumbência de modernizar o país por meio da educação. Contraditoriamente, os
discursos que propagandeavam a imprescindibilidade da Escola Nova conviveram com
a precariedade e ineficiência das instalações disponíveis.
2.3 Educação reformada
A questão das reformas educacionais que foram introduzidas pelos governos do
Rio de Janeiro e da federação é discutida por Paulilo (2001)47, uma vez que a década de
1920 foi recheada destes atos jurídicos. Neste período, como já foi esboçado neste texto,
houve grande discussão pública em torno das ideias da Escola Nova. Algumas destas
ideias saíram do papel por meio de reformas como as promovidas por Fernando de
Azevedo, ou pelos Programas de Carneiro Leão. Um dos méritos do autor é refletir
acerca destas legislações sobre prismas que transbordam a veia pedagógica, remetendo a
uma análise sócio-histórica dos efeitos e causas das referidas reformas.
A partir do momento que optei por tratar dos mecanismos, das técnicas e
das tecnologias utilizadas pelo poder público para reorganizar a instrução
pública encontrei imediatamente duas hipóteses: por um lado, o aparelho
público de ensino seria um instrumento estratégico para manter a sociedade
civil em paz diante do Estado; por outro, a instrução pública seria pensada
como dispositivo de transformação cultural. (PAULILO, 2001, p. 27)
O autor fala de mecanismos de controle social, nos quais o Estado se vale de
reformas para empreender estratégias de dominação sobre as massas receptoras dos
projetos de instrução, que estavam em debate nos círculos políticos-intelectuais, como
por exemplo a ABE (CARVALHO, 1998). Neste sentido, as reformas são entendidas
como um projeto em construção, no qual a instrução pública é tratada pelo governo
como instrumento de pacificação e harmonização dos sujeitos a serem escolarizados.
Sob outra perspectiva, as reformas são tratadas e estudadas como passíveis de
remodelação dos comportamentos, ansiava-se por uma população carioca que deixasse
47
André Luiz Paulilo escreveu em 2001 uma dissertação de mestrado entregue à USP (Universidade de
São Paulo) sob a orientação de Diana Vidal. Apesar de a instituição ser paulista, o foco das suas análises
recaiu sobre a cidade do Rio de Janeiro, capital da república durante a década de 1920. A qualidade do
seu texto e a escolha da cidade como foco dos estudos, especialmente por se concentrar no período que
coincide com a inauguração da Escola Azevedo Sodré, tornaram sua obra de grande valor para a presente
pesquisa.
102
para trás as culturas da informalidade, vícios e má higiene, e introduzisse novos hábitos.
Uma nova cultura, moderna e escolar, se buscava por parte dos governos. Esta ótica de
análise também permitiu a Paulilo estudar o ponto de vista da recepção das reformas, no
qual burlas e maquinarias eram exercidas pelas massas para reproduzirem as culturas
formatando-as ao seu viver citadino.
As reformas repercutiram em diferentes esferas da sociedade, sendo
indubitavelmente percebidas pelos colégios públicos, especialmente aqueles de
instrução primária. Estas escolas lidavam com as crianças de pouca idade, que eram
consideradas mais habilitadas para receberem os conteúdos, assimilarem os novos
padrões comportamentais e dedicarem-se aos preceitos higiênicos que se pretendia
introduzir. Neste sentido, as estratégias reformadoras recaíram sob o ensino primário.
Decorre daí o nosso interesse no texto do autor para a presente pesquisa, pois nesta
perspectiva a escola Azevedo Sodré teria sido utilizada como local de inculcação de um
modelo cultural estrategicamente desenhado. O colégio citado fazia parte da rede
municipal de instrução pública do Rio de Janeiro. André Paulilo repercute as reformas
que marcaram a década de 1920, na qual a rede de instrução carioca desempenhou um
papel importante. Neste sentido, o colégio se torna parte de uma proposta mais ampla
que visava reformar não apenas a educação, mas a sociedade brasileira. Uma revolução
na qual o livro e o lápis tomariam o lugar da pólvora: “na reestruturação do sistema de
educação pública vislumbrou-se um meio de cumprir um amplo programa de reforma
social, uma espécie de revolução branca, sem armas.” (PAULILO, 2001, p. 25). A ideia
de solucionar antigos problemas sociais por meio das reformas no ensino foi, para o
autor, uma característica importante deste período.
A cidade do Rio de Janeiro passava por um momento de profunda remodelação
do espaço urbano. Porém, estas reorganizações privilegiavam certas regiões, como a
central, e punham à míngua outras partes da cidade, como o subúrbio carioca. As
escolas eram vistas como instrumento capaz de apaziguar as relações, possivelmente
explosivas, as regiões e circunstâncias cotidianas citadinas. Era, portanto, de se esperar,
que tivesse havido um profundo investimento público na construção de escolas, o que
não aconteceu, como destaca um relatório de Carneiro Leão em 1924 48. Consta no
referido texto que havia 2301 docentes para trabalharem em 300 colégios, que
48
Estes índices foram colhidos na dissertação de André Paulilo (2001, p. 50)
103
funcionavam em 231 prédios. Entre estes prédios 75 pertenciam ao próprio município e
outros 156 funcionavam mediante o pagamento de aluguel pela prefeitura. Leão destaca
que entre 1914 e 1924 houve redução do número de escolas, e aumento do corpo
docente. Estes dados indiciam um hiato entre o discurso em que se propunha a
introdução de uma pedagogia capaz de elevar a cidade à modernidade e sua efetivação
no campo da construção de escolas para executarem as propostas da Educação Nova. O
próprio Carneiro Leão, no mesmo relatório, reclama da redução do orçamento para as
escolas primárias. Em 1917 o número estava na casa dos 20% em relação ao orçamento
geral, em 1924 esta porcentagem havia sido reduzida, o que motivou sua crítica.
Portanto, percebe-se um movimento contraditório em que pesa o aumento do corpo
docente municipal, e a redução dos prédios escolares. Solicitou que as obras públicas se
concentrassem na construção e inauguração de escolas, para que fossem ocupadas por
professores do próprio município que estariam trabalhando em condições de improviso.
Esta ação deveria ser concomitante à contratação de novos professores, para que num
curto prazo a cidade contasse com um número adequado de escolas, providas com um
corpo docente em número adequado para o funcionamento das mesmas.
Este apelo de Leão se justificava numa capital que se pretendia moderna, mas
que ainda convivia com uma população carente em relação à saúde e educação públicas.
O saneamento básico era precário na maior parte dos bairros, o transporte coletivo era
ineficiente e não conectava todas as regiões da cidade. A este respeito SILVA;
MORGADO; SOUZA, 2013 salientam, por exemplo, as distâncias que deviam ser
percorridas para se chagar às zonas rurais da cidade, implicando numa dificuldade de
locomoção com a qual os professores eram obrigados a lidar. O percurso do Centro até
Guaratiba, por exemplo, levava quase cinco horas, uma parte do trajeto até as escolas
localizadas nessas regiões deveria ser percorrida a cavalo.
Documento colocado em circulação pela Diretoria Geral de Instrução
Pública (DGIP) registra o tempo que era despendido em um deslocamento
da estação de trem Central do Brasil até uma escola localizada na Barra
(Guaratiba): 4h50. Contudo, ao lado desse tempo total, desperta interesse a
particularização que a DGIP empreendeu ao percurso: 1) da estação de trem
Central do Brasil até a de Campo Grande: gastava-se 1h20; 2) na estação de
Campo Grande embarcava-se num bonde até a estação da Ilha5: gastava-se
1h30; 3) da estação da Ilha até a escola em Barra de Guaratiba, ia-se a
cavalo: gastava-se 2h. (SILVA; MORGADO; SOUZA, 2013, p. 6)
104
Nesta perspectiva, os autores convidam a refletir sobre as diferentes cidades que
compunham a cidade do Rio de Janeiro. A historiografia sobre o período dos anos 1920
escolheu concentrar suas atenções sobre as regiões centrais do município, o que se
justifica pelo maior número de documentos acerca desta região que estão disponíveis
para consulta. Ao se debruçar sobre regiões mais afastadas, o pesquisador se deparará
com menor acervo documental. Além disso, o centro urbano concentrava o cotidiano
político não apenas do município, mas também da república. Não espanta, portanto, esta
ênfase que se tem percebido nos estudos sobre o período. Esta escolha, entretanto, deve
ser percebida como uma seleção, para não se entender equivocadamente a cidade
amarrada em panos de homogeneização. Os autores, ao selecionarem como objeto de
estudo o não-centro, trouxeram para a historiografia uma série de outras considerações
que ajudam a contar as histórias que compunham o Rio de Janeiro.
Nesta medida, observaram que os colégios localizados em regiões mais afastadas
–os distritos rurais da cidade–, eram, por vezem, percebidos pela DGIP como locais
para onde os professores que não cumpriam com suas obrigações poderiam ser enviados
a título de punição. “Transferência compulsória para as escolas da zona rural” (SILVA;
MORGADO; SOUZA, 2013, p. 8) era a penalidade para os professores que, por
exemplo, reincidiam nas faltas ao seu serviço. Esta percepção de uma região da cidade
como uma espécie de exílio forçado indicia as desigualdades que marcavam o cotidiano
carioca, uma cidade heterogênea que impunha uma série de dificuldades para o
exercício da docência.
Como se observa, um grupo de autores (SILVA; MORGADO; SOUZA, 2013 e
PAULILO, 2001) tem se dedicado a estudar a cidade através de fontes incomuns à
historiografia tradicional. Estas fontes também, e por outro lado, possibilitam estudos
sobre outros objetos que ajudam a compor um olhar sobre um Rio de Janeiro que não se
resume aos gabinetes dos prefeitos, ou as praças ajardinadas do Centro da Cidade. Este
outro Rio muitas vezes convivia com a Cidade Oficial sem ser notado pela elite
intelectual a decisória, que neste período deslocou seu eixo de ocupação, por meio da
especulação imobiliária, para Botafogo, Urca e Flamengo49.
49
(ROCHA, 1995) Aponta para as transformações urbanas que passava a cidade. Na década de 1920 o
bairro de Botafogo recebia a construção de mansões, o bairro da Urca nesta década recebeu a construção
do Hotel Balneário, enquanto a orla do Flamengo recebia tratamento paisagístico. Portanto, indicia-se a
que eram, muitas vezes, as regiões preferidas pelas pessoas de maior renda.
105
Ao mesmo tempo que monumentos à civilização e à modernidade eram
construídos pelo Estado na cidade do Rio de Janeiro, convivia-se com um
grau quase absoluto de miséria social e abstenção na participação política. A
remodelação e o saneamento da cidade não resistiam às novas táticas de
ocupação do espaço urbano, e a República degenerava pelos vícios do seu
sistema eleitoral. Na década de 1920, tal desregramento das formas sociais
construídas para o uso do espaço público nas duas primeiras décadas
republicanas trouxeram consigo o passado projetado na derrapagem do
presente. A fugacidade do tempo reabilitou a imagem de progresso como
característica irrevogável da vida. (PAULILO, 2001, p. 49)
O autor lembra das construções que visavam conferir à cidade uma aparência
moderna, como a derrubada do Morro do Castelo, a abertura da Avenida Central e a
construção de prédios imponentes como o Theatro Municipal e A Biblioteca Nacional.
Tais monumentos eram erguidos como monumentos à pretensão de deixar o passado
para trás, da superaração dos vícios e da inserção do novo. Porém, uma grande parcela
da cidade não foi contemplada pelas reformas urbanas. Um dos méritos do texto de
Paulilo é perceber a relevância destas obras e construções para a vida das pessoas,
reconhece que na condução das reformas urbanas, as pás e as enxadas deixaram
cicatrizes no sentimento dos sujeitos e na forma como estes percebiam o lugar onde
moravam. Muitos autores descreveram este período com ênfase na cidade enquanto
atmosfera estanque à vida de seus habitantes. Um Rio de Janeiro, nesta perspectiva,
descolado de sua gente, representado sobre o prisma das ruas, avenidas, prédios e
monumentos. O autor, prudentemente, evitou este caminho.
As escolas passaram a ser utilizadas como instrumento para se alcançar os
padrões de moralidade e civilidade que o governo pretendia. Isto se fazia necessário
numa cidade que modernizara sua região central, mas que excluiu uma parcela
importante da população. A escolarização seria, portanto, um caminho para solucionar
este problema. Havia o senso comum de que através da construção de escolas, os
próprios sujeitos, mais educados e harmonizados com a cidade que se construía, se
encarregariam de não sujar as ruas, prevenir as doenças e melhorar suas casas,
embelezando a cidade. Assim, os ventos da modernidade poderiam soprar para outras
regiões que não aquelas contempladas imediatamente pelas obras públicas.
Com o consenso de que se necessitava escolarizar as massas presente nos
discursos governamentais, uma questão de fundo se colocava para os dirigentes que
lidavam com a instrução pública: quantos anos de escola as crianças deveriam
frequentar no ensino primário para que este ideal de comportamentos fosse
106
internalizado por elas? No ano de 1911 o período de duração do ensino primário
completo era de 6 anos. Depois do ano de 1919 este tempo havia sido reduzido,
chegando aos 5 anos de duração. Já na administração Carneiro Leão, esta duração foi
para 7 anos. No caso da Reforma Fernando de Azevedo o tempo ficou em 5 anos,
somados 2 anos de ensino complementar50. Estas alterações relacionadas ao tempo
necessário para a instrução primária evidenciam a descontinuidade dos projetos
políticos-pedagógicos que os anos 1920 experimentaram. “Não se fez outra coisa além
de controlar o tempo que os programas escolares necessitariam para abrirem espaços de
aproximação entre as aspirações culturais da elite política, tais como a conformação
moral e estética, a valorização do trabalho” (PAULILO, 2001, p. 44). Apesar de haver a
ideia de que a escolarização do povo era fundamental, este consenso não refletiu numa
política continuada de instrução pública no período citado. Novos governos queriam
deixar a sua marca, e para isso muitas vezes preocuparam-se em criar esquecimentos em
relação ao governo anterior.
A valorização do trabalho era importante para a elite política, pois uma
população que trabalhasse continuamente seria menos suscetível aos vícios, aos furtos e
aos maus hábitos, portanto, mais educada e adaptada ao projeto de cidade concebido. A
estética era percebida como elemento importante no projeto de escolarização, assim, os
alunos deveriam vir uniformizados para as aulas e os professores com roupas
condizentes à necessária moralidade que sua atividade profissional necessitava. O Rio
de Janeiro deveria representar a nação com ares de boa higiene e arquitetura inspirada
em modelos europeus. As escolas, na medida do possível, deveriam contar com
fachadas grandiosas que confirmariam as pretensões estéticas da urbe.
As questões comportamentais não são menos importantes, os preceitos de
moralidade ensinados nos colégios eram superficialmente laicos, porém com velado teor
cristão (CARVALHO, 1998). Estas análises conduzem a reflexões, que se
consubstanciam como problema historiográfico, quando se pretende pensar acerca dos
entrelaçamentos das práticas educacionais com o projeto de modernização citadino que
foi executado no Rio de janeiro na década de 1920. As referências aos argumentos de
autores consagrados aqui apresentadas são uma forma de enxergar o período, mas não
50
Informações colhidas na dissertação de André Paulilo, p. 43.
107
devem ser percebidas como validação das ideias que defendo no texto. São um viés,
entre outros possíveis, de entender aquela ocasião.
Já se falou acerca da reforma conduzida por Carneiro Leão em 1926. Os
Programas para o Ensino foram tratados de forma diversa pelos historiadores. Há
divergências no que tange à sua natureza de reforma da instrução pública, posto que se
tratava de um texto com sugestões curriculares e metodológicas para lidar com a
escolarização carioca. Fernando de Azevedo, que sucedeu Leão enquanto Diretor Geral
da Instrução Pública, também deixou a sua marca reformadora. No que diz respeito aos
textos que produziu durante o exercício de seu cargo51, há maior consenso na
historiografia que lida com o período em considerá-los como uma reforma, já que
produziram efeitos mais diretos no campo da instrução. A Escola Azevedo Sodré,
enquanto instituição que participava da rede municipal de educação do Rio de Janeiro,
sentiu os efeitos dessa reforma, e por isto será importante um olhar mais atento ao
referido texto legal.
Uma autora que se debruçou sobre as concepções de cidadão carioca presentes
na obra deixada por Fernando de Azevedo foi Sônia Câmara (2004). Interessa saber
qual cidadão os textos legais pretenderam formar, pois esta concepção de sujeito diz
muito sobre o projeto de modernidade que foi tentado pela política da ocasião.
Uma
cidade moderna precisava contar com uma população modernizada, com hábitos que
fizessem jus aos novos tempos. Defende que sobre três pilares fundamentais idealizouse o cidadão modelo da cidade: a saúde, a moral e o trabalho. Estas três categorias
deveriam caminhar juntas, pois refletiam um padrão comportamental que se
diferenciava daquele que a escola tradicional havia formado no povo carioca. Esta
antagonia entre Escola Tradicional e Escola Nova aparece com frequência nos discursos
do período.
(Fernando de Azevedo) procurou antagonizar Escola Nova e Escola
Tradicional, a fim de reafirmar a importância dos pressupostos científicos,
técnicos, metodológicos e pedagógicos advindos dos referenciais da escola
reformada e nova. Neste sentido, podemos dizer que o projeto de reforma
que Fernando de Azevedo pretendia desenvolver encontrava-se assentado
em três pilares centrais: a saúde, a moral e o trabalho. A partir desses
parâmetros, acreditava poder traçar um novo perfil para as novas gerações,
51
Convém lembrar que Fernando de Azevedo permaneceu no cargo de Diretor Geral da Instrução Pública
no período que vai de 1927 a 1930.
108
estabelecendo, portanto, a base necessária para a reconstrução do país
(CÂMARA, 2004, p. 161).
Como se observa, o projeto que deu sustentação ao encaminhamento político da
Escola Nova esteve em muitas ocasiões pautado na desconstrução, crítica e
desvalorização da chamada “escola tradicional”. Fernando de Azevedo não foi exceção
a esta tendência percebida nos discursos dos intelectuais da década de 1920. Carvalho
(1998) aponta que tais propostas eram fruto de intensos debates, que muitas vezes não
alcançavam consenso entre os grupos de intelectuais que brigavam por espaço político.
A propalada ênfase na cientificidade, técnica e método característicos do escolanovismo
visava o enfrentamento dos hábitos cultivados pelas gerações passadas, de forma a
moldar novos hábitos para as gerações seguintes. Estas últimas seriam incumbidas de
mudar o país para melhor, e neste sentido seria indispensável uma sólida formação
escolar.
O texto legal produzido por Fernando de Azevedo repercutiu amplamente no
cenário escolar carioca do final da década de 1920. Como vimos, os programas por ele
dirigidos nos interessam como ferramenta de pesquisa acerca das culturas e dos
entrelaçamentos que a legislação produz em sua relação com os receptores dos efeitos
que ela implica à sociedade. Cabe sinalizar, todavia, que Azevedo não foi o único autor
das ideias contidas no decreto. Ocorreu a criação da Comissão de Planejamento e
Reestruturação do Ensino e das Escolas, que contava com a participação de Frota
Pessoa, Renato Jardim e Jonathas Serrano. Neste caso, cabe ainda refletir sobre uma
participação mais ampla na produção do texto legal. O nome das pessoas citadas conduz
a uma objetivação do entendimento de quem foram os autores do decreto. Porém,
seguindo o pensamento de autores como Foucault (1997) e Chartier (1990), a lei se
tornaria uma representação das vontades produzidas por relações de poder que atuam na
sua conjuração. Isso não deve, todavia, levar o pesquisador a desconsiderar critérios
técnicos e documentais na construção do entendimento acerca da elaboração de
pareceres, regulamentos e legislações. Fernando de Azevedo considerava que as leis
existentes acerca da instrução pública eram fragmentadas e confusas, o que fazia
perceber, segundo ele, a inação estatal perante os problemas educacionais. Tomou,
assim, a iniciativa de redigir um texto que visava enfrentar estas questões de forma mais
sistematizada. Suas ações resultaram no Decreto do Ensino, nº 2940 de 22 de novembro
109
de 1928. Este decreto condensava um conjunto de textos com prescrições, normas e
considerações que objetivavam estabelecer parâmetros a serem seguidos pelas escolas, a
fim de operacionalizar o seu sistema.
As propostas contidas neste Decreto, salienta Câmara, visavam moldar a criança
para que pudesse representar a cidade do Rio de Janeiro e o país como um ambiente
moderno e higiênico52. Há notória ênfase no higienismo e no papel da escola no que
tange à promoção da saúde da população.
Fomentar um projeto que conseguisse extirpar do cenário carioca os males
do seu atraso, identificados com o analfabetismo, e a doença, significava a
possibilidade de o estado estabelecer as bases para promover o ajustamento
e a inserção da capital e, por conseguinte, do país à ordem capitalista
internacional fomentando e potencializando progressos técnicos e científicos
na edificação de uma nova ideia de civilização. Entre as formulações
apresentadas, o projeto de reforma previa uma ampla reestruturação do
ensino, inspirando-se no propósito de atribuir à escola uma tarefa “social” e
“nacional”, desenvolvendo para isso a sua renovação interior a fim e
adequar o ensino à criança. (CÂMARA, 2004, p. 162)
Este trecho cita as intenções que ajudaram a construir o decreto 2940. Havia
uma necessidade de operacionalizar a instrução pública de modo a torná-la mais
eficiente para educar a população de uma cidade que crescia rapidamente e que se
modernizava. Cabe, portanto, perscrutar este documento de forma indiciária, para que
ele nos forneça pistas acerca deste projeto de invenção da modernidade carioca. Suas
ênfases constituem interesse de pesquisa. Além disso, como aponta Luciano Mendes de
Faria Filho (1998), em texto que fala sobre a utilização da legislação como fonte
importante parta a História da Educação, os esquecimentos contidos na letra da lei
também fornecem material para análise, pois são fruto da organização e seleção das
pessoas que o redigiram. Caberia, assim, indagar as razões que levaram à não inserção
de determinado conteúdo na norma.
O decreto explicitava a intenção de imprimir uma educação moral, na qual se
despertasse a consciência do dever nos alunos, o que indica a necessidade de moldar
não apenas um cidadão apto a ler e escrever, mas um que forjasse a nação que se
52
Vale lembrar, ainda, que o decreto 2940 foi produzido um ano antes da quebra da bolsa de Nova
Iorque, portanto o cenário internacional ainda vivia um otimismo econômico que era percebido no Brasil
como uma oportunidade para modernizar a economia da nação, estabelecendo novas relações comerciais
com o resto do mundo.
110
procurava estabelecer. O dever, quando cumprido, tornaria a sociedade menos apta a
rebeldias contra o sistema vigente. É neste sentido, inclusive, que a lei fala sobre uma
educação que além de moral, também fosse cívica. O civilismo seria despertado por
meio de cerimônias em que o amor à pátria devia ser entendido como parte integrante
de uma boa educação. Quando fosse oportuno, as matérias deviam falar sobre
brasilidade, o que estava de acordo com um projeto de modernidade baseado no culto de
símbolos como a bandeira e o hino nacional.
Art. 81 (A educação integral) se realizará: (...) d) pela educação moral que
utilize todos os meios para impressionar o espírito da criança no sentido de
gerar e despertar a consciência do dever; e) pela educação cívica, por meio
do exemplo constante e da realização oportuna de cerimônias, capazes de
estimular e desenvolver sentimentos de civismo, imprimindo-se ao ensino
das matérias mais suscetíveis de recebê-lo, caráter marcadamente brasileiro.
(DECRETO DE ENSINO, 1928, p. 168)
A educação por meio do exemplo era vista como indispensável. Neste sentido,
os professores deviam possuir elevada reputação, de modo a inspirar nos alunos a
consciência do dever-fazer. Para garantir a manutenção da moralidade, da higiene e da
ordem, era necessário estabelecer uma inspeção nas escolas, de modo que os preceitos
validados pelo governo como ideais fossem cumpridos. Assim, insistiu novamente na
importância dos cargos de inspetor escolar e inspetor médico. O primeiro cuidava para
que os métodos, os conteúdos, os horários de entrada e saída fossem observados. Cabia
ao inspetor escolar, ainda, fiscalizar a atuação de professores e zelar pelo bom uso das
verbas públicas. No caso do inspetor médico, não menos importante do que o inspetor
escolar, devia garantir a higiene das crianças, o asseio dos uniformes, os bons hábitos
para a saúde do corpo. Preocupava-se com a iluminação das salas de aula, o arejamento
das dependências dos prédios e a qualidade de itens como água e comida. Numa
sociedade preocupada em forjar o novo através do apagamento dos modelos anteriores,
vistos como inadequados e anti-higiênicos, se entende a intensa fiscalização a que os
colégios ficavam submetidos.
Há presença e citação de uma educação que deveria seguir os preceitos
higiênicos, o que alude para uma iniciativa de se limpar o social por meio da instrução
pública. No que tange a esta agenda, competiria às mães trabalharem em conjunto com
as escolas para formarem os filhos, e educá-los para uma convivência sem máculas.
111
Art. 83. (Os círculos de pais terão) o objetivo de: c) ministrar às mães
noções de puericultura e princípios gerais da educação especialmente
higiênica. (DECRETO DE ENSINO, 1928, p. 169)
Este artigo revela a esperança do governo em contar com a participação das
famílias no projeto de instrução realizado. A instituição familiar era percebida como
importante numa sociedade que zelava por valores morais. O artigo 81, em outro trecho,
fala da importância de se estabelecer “a mais estreita colaboração da escola e da
família”. Como apresentado acima, elege as mães como núcleo central. Competiria a
elas cuidarem da saúde, higiene e asseio dos alunos.
Estiveram também presentes neste Decreto de Ensino uma série de trechos que
remetem às ideias da Escola Nova. Fernando de Azevedo era um defensor fervoroso
desta concepção de ensino, e a inseriu em diversos artigos. Há, por exemplo, uma
preocupação em estabelecer um maior contato com a natureza, a fim de tornar a
educação menos rígida e mais humana. Passeios, excursões e caminhadas deviam ser
promovidos pelos professores, pois contribuiriam com a saúde das crianças, seu bem
estar e dariam a tranquilidade necessária para os momentos internos de sala de aula.
Art. 104. O ensino será dado pelo método intuitivo, recomendando-se a
observação direta da natureza, na escola ou em excursões e as projeções
fixas ou cinematográficas. (DECRETO DE ENSINO,. 1928, p. 175)
O artigo nº 104 fala sobre a aplicação do método intuitivo nas escolas. Esta
proposta se contrapunha ao método tradicional de ensino, e era baseado na observação
direta das coisas, contato com a natureza e maiores liberdades para as crianças, sem, por
exemplo, a aplicação de castigos físicos. No trecho acima ainda se destaca a
importância da nascente indústria do cinema, e considera-a uma ferramenta importante
para a aplicação do referido método.
Cumpre, por fim, destacar, alguns artigos presentes neste decreto que discorrem
sobre o funcionamento das escolas, o seu regime de turnos, número de crianças por
turma e avaliação a ser aplicada aos estudantes. Estas análises, mais objetivas, somamse à reflexão sobre os efeitos e causas do projeto de escolarização estabelecido. Não são
excludentes, mas complementares.
O trecho a seguir fala sobre os turnos de funcionamento das escolas de ensino
primário, o que nos interessa particularmente, pois remete à forma como se
organizavam os tempos na escola Azevedo Sodré.
112
Art. 130. As escolas fundamentais e os grupos escolares poderão funcionar
em regime de dois turnos, sob direção única, com professores diferentes
para cada um desses turnos, desde que medeie entre o da manhã e o da
tarde, meia hora, no mínimo. (DECRETO DE ENSINO,. 1928, p. 185)
A pesquisa acerca do regime dos turnos se inscreve num estudo mais amplo
sobre os tempos educativos. Havia a necessidade de separá-los dos outros tempos
sociais, e para isso criara-se um tempo específico, delimitado por rituais cívicos, em que
a criança sofreria este “sequestro” pelo estado para receber a instrução pública. Mais do
que um dever de entregarem seus filhos para serem instruídos, os pais muitas vezes
percebiam esta atitude como um direito importante conquistado. Sooma Silva (2004)
aprofunda a discussão em torno da obrigatoriedade do ensino que, uma vez mais, foi
enfatizada na Reforma Fernando de Azevedo (1928): “dispunha o Decreto de 1928 a
obrigatoriedade de matrícula no ensino primário gratuito a todas as crianças com idade
compreendida entre 7 e 12 anos” (SILVA, 2004, p. 137)53. Assim, a instrução das
crianças tornar-se-ia um dever das famílias. Por outro lado, o autor discute que este
dever era percebido de formas distintas pelos pais dos alunos. No que tocava, por
exemplo, ao horário de entrada das crianças nas escolas primárias, havia insatisfações
quanto ao fechamento dos portões à 7:30h da manhã. O autor cita um artigo de jornal 54
em que um leitor fazia severas críticas às normas da DGIP:
Segundo o artigo, o fato das crianças serem, na maioria das vezes, as
responsáveis pela realização das compras matinais da família estava
impossibilitando-as de cumprirem integralmente as exigências do novo
horário das escolas do 1º. turno. Tal acontecimento, agravado pelas
irredutíveis medidas de punição aos atrasos dos alunos advindas da
Diretoria de Instrução, contribuía para que muitas das crianças “deix[assem]
de comparecer, perdendo, assim, as aulas”. (SILVA, 2004, p. 155)
Nesta linha, o autor indicia uma série de resistências da população no que tocava
ao cumprimento das normas estabelecidas pela DGIP. Assim, a instrução pública, longe
de alcançar a pretendida remediação das mazelas da sociedade por meio da escola,
afetava os sujeitos de maneiras singulares, implicando para cada escola e para cada
família uma série de circunstâncias próprias. Deste modo, faz-se perceber que o esforço
53
Sooma Silva, em coautoria com Schueler (2013), escreveram um texto intitulado “Obrigatoriedade
escolar e educação da infância no Rio de Janeiro no século XIX”. Os autores destacam o comparecimento
de dispositivos legais referentes à obrigatoriedade no Brasil, pelo menos, a partir da segunda metade do
século XIX. Estuda-se, em particular, os casos da província do Rio de Janeiro (1849) e da Corte Imperial
(1854). Esta questão será retomada no capítulo III desta dissertação.
54
O Globo, 26 de maio de 1928
113
homogeneizador da norma não conseguia fazer valer estritamente as suas
determinações.
Este direito, ou dever, da educação primária, não seria cumprido
satisfatoriamente se as turmas não se estruturassem adequadamente para que a escola
ofertasse a instrução. Para tanto, a questão do número de alunos por turma foi
mencionado pelo Decreto analisado.
Art. 134. O número máximo de alunos matriculados de cada classe fica
fixado em 40. (DECRETO DE ENSINO, 1928, p. 186)
A questão do número de crianças por turma era importante, pois o orçamento
para a instrução era limitado, e havia o projeto de estender a instrução pública para um
número maior de crianças. Seria, portanto, necessário, encontrar um número ideal de
estudantes por classe, de modo que fosse possível abranger uma maior parte do
território com a educação. Mas, ao mesmo tempo este número deveria ser tal, que não
tornasse as turmas superlotadas, o que tornaria o trabalho do professor impraticável. A
questão do número de alunos por classe também era importante para o planejamento
financeiro do município, uma vez que a utilização de turmas menores, apesar de
defendidas pelos textos legais, impunha vultosos dispêndios do erário público. Como já
apresentado neste capítulo, os cofres municipais não dispunham de grandes reservas
para enfrentar os desafios que a instrução pública carioca conferia aos governos.
Por último, destaca-se a avaliação que o Decreto estabeleceu como norma nas
escolas primárias. A avaliação seria a forma como a assimilação dos conteúdos pelos
estudantes seria medida nas escolas, de modo que pudessem registrar um boletim
específico para cada estudante, e, estatisticamente, considerar a efetivação do projeto de
escolarização em curso.
Art. 136. Haverá durante o ano letivo, em maio, agosto e novembro, três
provas cujo julgamento será feito pelo diretor da escola e dois adjuntos por
ele designados. (DECRETO DE ENSINO, 1928, p. 186)
Art. 137. Na segunda quinzena de novembro, se efetuará em todas as
escolas a promoção dos alunos, segundo o aproveitamento revelado, sem
indicação de grau. (DECRETO DE ENSINO, 1928, p. 186)
Além da questão das provas, o art. 144 do referido decreto estabelecia que as
crianças deviam chegar sempre no horário correto, usar uniformes, cuidar do asseio, ter
bom procedimento dentro e fora da escola, apresentar justificativa assinada pelos pais
114
no caso de falta às aulas e sujeitarem-se, sempre que as autoridades de ensino julgarem
necessário, aos exames médicos e de higiene (DECRETO DE ENSINO, 1928, p. 188).
Assim, cumpririam com um conjunto de comportamentos considerados adequados ao
novo modelo de sociedade que se procurava estabelecer.
O estudo acerca do Decreto 2940 de 1928 se soma à pesquisa realizada sobre os
Programas de Carneiro Leão, que mais diretamente se relacionam com a fundação da
Escola Azevedo Sodré. Porém, a proposta de ensino que consta no texto legal assinado
por Fernando de Azevedo também surtiu efeitos na atividade docente da escola
pesquisada, pois se inscreve num período imediatamente posterior à vigência do
mandato de Carneiro Leão como Diretor Geral da Instrução Pública. Os autores que
sustentaram os argumentos apresentados no capítulo constituem uma seleção, entre
outras possíveis, de abordagens que permitem estabelecer um olhar próprio sobre estes
tempos e estes espaços, que afinal já foram tão estudados pela historiografia da
educação brasileira. Como vimos, não apenas historiadores da cidade do Rio de Janeiro
se interessaram sobre a temática defendida. Por tratar da capital do país, palco de
importantes acontecimentos na área da educação naquela ocasião, este enfoque foi
escolhido por uma série de outros autores, o que por um lado aumenta o desafio de se
pesquisar sobre algo já explorado, e por outro viés contribui com nova ideias para quem
se propõe a ingressar nesta seara.
115
Capítulo III
Palco para um projeto de modernidade
3.1 A modernidade e os hinos
Um dos interesses desta pesquisa se debruça sobre os anos 1920, período em que
a cidade do Rio de Janeiro era a capital do Brasil. Sobre a década em questão, como
exposto no capítulo anterior, vários autores se esforçaram para empreender estudos
acerca dos costumes, práticas pedagógicas, urbanismo e sociedade (SILVA, 2009;
NUNES, 1996; CÂMARA, 2006; PAULILO, 2007; VIDAL, 2001; CARVALHO,
1998, por exemplo). Portanto, meu interesse pelo foco selecionado não é novo e nem
inexplorado, o estudo acerca da Escola Azevedo Sodré, em sua relação com o governo,
o público e a cidade objetiva trazer para o debate uma instituição que possa somar e
contribuir com as outras pesquisas do campo.
A cidade vivia um período de reestruturação urbana. Em 1905, por ordem do
então prefeito Francisco Pereira Passos, ocorre a abertura da Avenida Central, que
procurou, de algum modo, acompanhar o modelo parisiense das avenidas abertas pelo
Barão Georges Eugène Haussmann em Paris na década de 1850. Sobre esse aspecto,
cumpre assinalar que Pereira Passos havia feito uma viagem de estudos à capital
francesa, onde assistiu as reformas que pretenderam abrir ruas largas onde antes havia
vielas que facilitariam a eclosão de revoltas populares e a infestação de moléstias
contagiosas. Sooma Silva (2009) estudou com atenção esta relação entre as reformas
empreendidas em solo parisiense no século XIX com aquelas sucedidas no Rio de
Janeiro no início do século XX. Acompanhando os períodos de “bota abaixo” na capital
brasileira, primeiramente sob a iniciativa de Pereira Passos e, depois, com prefeitos que
o sucederam, trouxe um conjunto de importantes informações:
Tal periodização vai ao encontro daqueles estudos sobre a História da
cidade do Rio de Janeiro que, promovendo uma aproximação entre o Barão
Georges Eugène Haussmann, Pereira Passos e mandatários sucessores,
assim denominaram os prefeitos cariocas das duas primeiras décadas do
116
séculos XX: os “Haussmanns Tropicais”. Isso porque, tanto na capital
francesa quanto na carioca, as reconfigurações do traçado arquitetônico
constituíram-se como uma constante. Nesse particular, por um lado, deve-se
sublinhar que Haussmann foi, ao longo de 17 anos (1853-1870), o
responsável principal pelo planejamento da cidade; por outro, Pereira Passos
acompanhou pessoalmente, de 1857 a 1860, como funcionário da
embaixada brasileira em Paris, o trabalho das “pás e picaretas
haussmannianas” (SOOMA SILVA, 2009, p. 70)
O autor chama a atenção para um artigo publicado no ano de 1928 no Rio de
Janeiro55, que considera a administração Passos como promotora dos “primeiros golpes
de picaretas” na capital. Em seguida o artigo destaca os anos 1920, em que sucedeu a
“segunda remodelação da nossa cidade”. Esta iniciativa de realçar dois períodos
distintos de forma cronológica indicia uma percepção da cidade através da lógica das
“pás e das enxadas”, como se as intervenções mais importantes ocorridas no período
fossem aquelas de remodelação urbana, o que remete a uma valorização das obras
públicas em detrimento de intervenções de cunho social.
No caso do Rio, o centro da cidade era composto por cortiços e ruas estreitas. A
abertura da Avenida Central tinha um caráter higiênico, para evitar a proliferação de
miasmas na região central 56, também possuía uma dita alusão à modernidade, inspirada
em modelos do exterior. Uma cidade educada precisava possuir uma grande “artéria de
circulação” moderna e limpa. A modernidade pretendida tinha também um caráter de
contraposição aos modelos do Império, vistos como uma fase a ser definitivamente
superada no Brasil. A cidade passou a necessitar de hábitos que satisfizessem este novo
modelo que pretendia ser enfatizado.
No período focado, a década de 1920, o prefeito Alaor Prata cumpriu mandato
entre os anos de 1922 e 1926. Assim como Pereira Passos, também era engenheiro,
nomeou para a Direção Geral da Instrução Antônio Carneiro Leão. Esta eleição merece
destaque, pois as práticas de escolarização produzidas no período tiveram, assim
55
[...].”(ASTAROTH. “Século XX... remodelações”, 28 de julho de 1928
“Os experimentos científicos de Pasteur e Koch já apontavam, desde a década de 1870, que não era a
inalação do ar contaminado, mas sim os germes infecciosos propagados pelo contato indireto
estabelecido entre as pessoas de uma determinada localidade, os responsáveis pela profusão de doenças
contagiosas. Ainda assim, o projeto de remodelação da cidade caracterizou-se pelo emprego de
estratégias de intervenção pautadas, primordialmente, na teoria dos miasmas. E, desta feita, avenidas
foram rasgadas, ruas alargadas, morros destruídos, moradias aniquiladas objetivando a livre circulação
dos fluidos, do ar e da água, de modo a assegurar a boa saúde dos cariocas” (SOOMA SILVA, 2004, p.
42).
56
117
entendo, uma preocupação de educar as massas através de uma escolarização do social
(VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001), para que pudessem vivenciar a nova cidade que se
pretendia construir. Hábitos de higiene eram uma preocupação nas salas de aula, assim
como a necessidade de incutir valores cívicos de amor à pátria, brasilidade e culto à
bandeira e outros símbolos pátrios. As escolas, nesse movimento, tinham o papel de
disseminar as pretensões governamentais entre a população.
Entre os símbolos pátrios, o Hino Nacional tinha grande destaque. Epitácio
Pessoa, presidente do Brasil entre 1919 e 1922 oficializou a letra que falava sobre o
gesto de Dom Pedro I às margens do rio Ipiranga em São Paulo57. Mesmo na República,
decidiu-se por adotar uma letra que cultuava um gesto do imperador que simbolizava a
independência. Contraditoriamente, era justamente um país independente e livre daquilo
que se passava a conceber como as “mazelas do Império” que os cânticos visavam
promover na década de 1920. O hino era tido como elemento que inspiraria um padrão
adequado de comportamento, em que o país deveria ganhar destaque internacional:
“Fulguras, ó Brasil, florão da América, Iluminado ao sol do Novo Mundo!” (Hino
Nacional, parte dois) e “Verás que um filho teu não foge à luta” (Hino Nacional, parte
dois). A escola seria um local propício para se afastar o “velho” e promover uma “nova”
vida entre os sujeitos. O hino, assim, devia ser cantado com respeito e harmonia nas
escolas, de modo que promovesse um presente melhor do que o passado, como consta
nas palavras de Carneiro Leão: “naquelas épocas - que foram de ontem e já são antigas
– aprender a ler, escrever e contar bastaria muitas vezes. Agora, porém, é urgente
arrastar a escola da margem da vida para dentro da própria vida” (LEÃO, 1926, p. 44).
A escola, neste sentido, ganhava a atribuição de promover não apenas os saberes
elementares, mas de inspirar um padrão comportamental adequado ao porvir 58. Os
alunos deviam cultuá-lo e celebrá-lo todas as manhãs, ou início de turnos, como
mostram as tabelas com as grades diárias das atividades que apresento neste capítulo.
Não apenas o Hino Nacional era celebrado. Algumas escolas possuíam o seu
próprio hino, que durante o hasteamento da bandeira devia ser cantado após a execução
do Hino Nacional. Encontrei o Hino da Escola Azevedo Sodré no arquivo do colégio.
Sua letra traz algumas ênfases que pretendo analisar como forma de perscrutar os
57
Presidência da República: www.planalto.gov.br. Acesso em 9 de fevereiro de 2014.
No tocante aos esforços das ações governamentais de, ao longo do século XIX, atrelar à instrução as
preocupações educacionais relacionadas à conformação de comportamentos adequados, condutas ideais e
modos disciplinados, ver: SCHUELER, 1999; GONDRA & SCHUELER, 2008.
58
118
interesses que eram celebrados pelo colégio, e que fazem alusão ao ideal de
modernidade que se buscava adotar na cidade capital. Optei por incluir o texto no corpo
deste texto devido à sua importância, pois introduzi-lo nos anexos desta pesquisa seria
uma forma de subaproveitar as informações disponibilizadas através de sua leitura. O
hino em questão teve sua letra composta por Domingos Magarinos, e sua música por
Rosina Mendonça.
Abaixo disponibilizo a capa do material. Onde se observa uma escolha de
caligrafia elegante e adornos clássicos. A palavra Hino está envolta em um semicírculo
que remete a uma coroa de louros. As coroas de folhas, desde a antiguidade,
representavam um símbolo de vitória e conquista59. Usada por reis e imperadores na
Grécia e também em Roma. Envolver, portanto, a palavra Hino em um símbolo da
antiguidade buscaria enfatizar a grandiosidade dos seus propósitos60. No caso das
escolas primárias da década de 1920, o que se buscava enfatizar com este tipo de
adereço seriam os ideais republicanos, a ordem e a valorização do saber escolar como
promotor de transformação social. Acompanhando essa linha argumentativa, pode-se
indiciar na capa abaixo algumas preocupações estratégicas relacionadas ao esforço de
revestir o conteúdo do hino com a eloquência necessária para produzir um efeito de
inspiração nos alunos que deviam cantá-lo.
59
O dicionário Aurélio, no verbete “coroa” estabelece esta vinculação entre a coroa e a vitória. Realço
que nos jogos olímpicos este símbolo era utilizado.
60
O atual prédio da Biblioteca Nacional, que se situa na Avenida Rio Branco, foi inaugurada durante o
governo de Nilo Peçanha em 1910. Trata-se também de um exemplo de arquitetura clássica num edifico
que visava guardar livros, ou o conhecimento. Sua fachada com as colunas em destaque faz uma clara
alusão à Acrópole de Atenas.
119
120
121
122
Teu grande nome celebrado / pelo esplendor das sagrações / como no bronze está
gravado / dentro dos nossos corações / Acolhe bondosamente / generoso protetor /
Espreito reverente / que traduz o nosso amor / Só para ter (trecho ilegível) / Faz-nos
lembrar nova cruzada / Tuas vitórias imortais / Nessa campanha denodada / Pelos mais
santos ideais / Faz-nos lembrar tua nobreza / Tua coragem varonil / Combater pela
grandeza / A excelsa glória do Brasil / Como uma estrela refulgente / Um áureo sol a
refulgir / Cintilará eternamente / A iluminar nosso porvir
(Hino Azevedo Sodré, Domingos Magarinos, 1924)
A letra foi disponibilizada acima para que se possa fazer uma análise de seu
conteúdo. A música foi composta para piano e a data é de novembro de 1924. A
expressão “iluminar nosso porvir”, ao ser cantada pelas crianças no início das
atividades, sinaliza para uma proposta de conduta a ser seguida dali para frente, como
que os hábitos, as condutas e os conteúdos aprendidos na Escola Azevedo Sodré
devessem produzir um efeito social. Há também uma nítida presença de palavras que
remetem à grandiosidade, que enfatizam a magnitude do aprendizado conquistado
dentro de seus muros: “estrela refulgente” e “vitórias imortais’ são exemplos dessas
palavras. Há, ainda, o termo “novo” logo no início, que remete a algo melhor do que o
passado. Sintoniza com o ideal da Escola Nova, que estava em discussão no período
focado, e que pretendia desvincular a nova educação que se produziria dali em diante
dos modelos tradicionais de ensino. Por fim, observa-se um tom de enaltecimento;
indicia-se que seja ao patrono da escola. “Faz-nos lembrar tua nobreza, tua coragem
varonil”. O culto a uma personalidade buscaria, através do exemplo, ensinar um padrão
de comportamento a ser seguido, um caminho virtuoso que deveria ser a meta dos
alunos daquela unidade escolar. O que insere o colégio no bojo de um projeto de
escolarização que buscou construir um projeto de modernidade específico na capital.
Sobre a questão da modernidade, importa refletir sobre os seus diversos
conceitos que compõem uma colcha de representações na historiografia. Não há,
portanto, como falar sobre uma modernidade uniforme. Se voltarmos alguns séculos no
tempo, poder-se-ia representá-la em oposição ao paradigma escolástico dos tempos
medievais, superado por um princípio da primazia da razão estabelecido por Renée
Descartes, e que extrapolou para diversas áreas das ciências no iluminismo e na
revolução industrial. O termo, todavia, adquire novas representações à medida que
123
novos grupos sociais se apropriam da terminologia para promover, normalmente através
de uma ruptura com o passado, as suas novas ideias. Nos anos 1920 abordar o tema da
modernidade era lugar comum. No Brasil, em 1922, ocorreu a Semana de Arte
Moderna, já no campo educacional, o movimento da Escola Nova se apropriou do termo
para defender uma oposição de valores em relação à escola tradicional, e propor novos
(modernos) padrões de ensino.
Contudo, para discutir acerca destas variações do termo se torna importante
recorrer a alguns autores que se debruçaram sobre o problema. Seleciono dois para
estabelecer uma breve interpretação, e pensar sobre a forma como a modernidade será
empregada na presente pesquisa. Marlos Rocha (2004) escreveu um livro intitulado
“Matrizes da Modernidade Republicana”, em que se afirma que a República Brasileira
se apropriou do termo modernidade para estabelecer um contraponto à monarquia: “Se
preserva nas diferentes atualizações do paradigma republicano a raiz comum: a ideia de
incorporação do povo à nação, bem como o da insuficiência do povo, fazendo a matriz
republicana distinta da do Império” (ROCHA, 2004, p. 18). Assim, o autor procurou
estabelecer a ideia de que esta acepção do termo modernidade baseava-se, em parte, na
percepção de que o povo estaria alijado da política no império, e da urgência, na
república, de trazê-lo para os processos decisórios no país. Essa linha de argumentação,
apesar de ter encontrado certo consenso na historiografia brasileira, parece-me
insuficiente como leitura do período. Pesa contra esta explicação uma tendência de
observar a República como uma superação do Império (Cf GONDRA e SCHUELER,
2008). Buscarei, a título de complementação do estudo, recorrer a outro autor que,
apesar de não focar sua pesquisa no caso brasileiro, dá conta de uma interpretação da
modernidade que se aproxima da sua utilização no presente texto.
Le Goff (1997) estudou como a oposição Antigo/moderno se desenvolveu na
historiografia. Procura demonstrar que o termo tem sido, muitas vezes, utilizado de
forma equivocada pelos historiadores. Sugere uma pergunta, que depois enfrenta no seu
texto: “Será legítimo que o historiador reconheça como moderno o que as pessoas do
passado não sentiram como tal?” (LE GOFF, 1997, p. 3). A resposta reside na leitura
das diversas utilizações do termo: exaltar o presente, denegrir o passado, distinguir ou
afastar um tempo remoto. “Tanto se destaca uma modernidade para a promover como
para a vilipendiar” (LE GOFF, 1997, p. 4). Assim, quando aparece o termo na história,
o historiador, ao contrário de tomá-lo como ponto de partida para uma proposição de
124
ideias, deve senti-lo como objeto de pesquisa, um outro problema a ser investigado.
Uma curiosidade se abre ao estudo no sentido de identificar indícios que levaram esta
ou aquela sociedade a desqualificar o passado e celebrar o presente.
A oposição antigo/moderno desenvolveu-se num contexto equívoco e
complexo. Em primeiro lugar, porque cada um dos termos e
correspondentes conceitos nem sempre se opuseram um ao outro: ‘antigo’
pode ser substituído por ‘tradicional’ e moderno, por recente’ ou ‘novo’ e,
em seguida, porque qualquer um dos dois pode ser acompanhado de
conotações laudatórias, pejorativas ou neutras. (LE GOFF, 1997, p. 2).
Nos anos 1920 esta proposição de modernidade estava acompanhada da
pretensão de elevar o país ao nível de instrução dos países mais desenvolvidos, e, ao
mesmo tempo, criar uma representação de brasilidade que passava, entre outros
aspectos, pelo culto dos símbolos pátrios, como apresentado neste estudo em relação
aos hinos. As estratégias que mobilizo para refletir acerca da modernidade pretendida
pelo governo se relacionam com as práticas educacionais incorporadas pela Escola
Municipal Azevedo Sodré. Portanto, importa estudar os atos de Azevedo Sodré em
relação ao colégio que levava seu nome como elementos de construção de uma
identidade e invenção de um projeto de ensino.
Como já foi afirmado, o patrono do estabelecimento, Azevedo Sodré,
condicionou a doação de valores monetários à escola ao cumprimento de um calendário
de festividades. Contudo, cabe indagar se os festejos realmente aconteceram. A simples
presença das determinações a serem cumpridas, presentes no escritura de doação já
analisada, não permite inferir a imediata celebração das cerimônias. No Brasil, ocorre
com frequência o que se convencionou chamar de inocuidade da lei, onde o texto legal
entra em vigor, mas a sociedade deixa de obedecer à norma (BARCELLOS, 2002). O
problema permanece em pauta, e as práticas pedagógicas que entraram em vigor no
colégio estudado tornar-se-ão objeto de investigação.
3.2 Jornais e revistas como fonte de pesquisa
O arquivo escolar, basicamente inexistente, pelo menos no que diz respeito aos
anos de interesse para esta pesquisa, não ajudou muito na coleta de fontes para a
problematização daquilo que se experimentou na escola. Igualmente, frente aos mais de
125
90 anos que nos separam da década de 1920, não consegui encontrar ex-professores e
ex-alunos da casa.
Desse quadro geral, cumpre reafirmar que os problemas concernentes à
operacionalização de estudos interessados em pesquisar eventos mais afastados em
termos cronológicos não são novos, e nem exclusivos dos meus estudos. Nessa linha, e
ciente da impossibilidade de “esgotar” todos os enigmas e mistérios que estiveram
envolvidos em outros presentes que não os nossos (SILVA e LEMOS, 2013), pareceume pertinente direcionar minhas estratégias de análise para alguns dos desafios
formulados por Carlo Ginzburg (1989). Isso porque este autor convida os pesquisadores
a investigar seu objeto através de indícios, vestígios do passado, que permitem montar
quadros explicativos coerentes acerca do(s) passado(s).
Nesta direção, o emprego de jornais e revistas como indícios que auxiliam na
pesquisa de determinado objeto em história da educação tem sido uma estratégia
escriturária de autores (CÂMARA, 2004; LEMOS e BORGES, 2009; SOOMA SILVA,
2009), que os utilizam como pistas para investigar o passado. As maneiras de se
apropriar dos veículos impressos como fontes para a pesquisa não são uniformes. Cada
pesquisa estabelece variações estratégicas no emprego da imprensa como fonte.
“Cumpre reafirmar que a ênfase desta pesquisa em relação aos periódicos se encontra
nas apropriações que seriam realizadas pela população carioca a partir da circulação dos
mesmos” (SOOMA SILVA, 2009, p. 102). O autor, nesta perspectiva, se concentra na
apropriação que os leitores fazem da notícia, o que afasta a sua pesquisa da utilização
mais comum de jornais e revistas como fonte em pesquisas acadêmicas, que se
preocupam exclusivamente com o texto redigido. Proponho incursionar, para efeito da
pesquisa acerca da Escola Azevedo Sodré, por uma publicação veiculada em jornal da
década de 1920.
Selecionei para esta dissertação uma reportagem publicada no Jornal do Brasil,
que, como aponta Sooma Silva (2009)61, era um veículo impresso que já no início do
século XX alcançava grande tiragem de exemplares. A matéria que apresento abaixo é
datada de um sábado, dia 5 de setembro de 1925. O tamanho da fonte é pequeno, e há
palavras com partes esbranquiçadas. A ortografia é a oficial do período. Para facilitar a
61
Sooma Silva (2009, p. 102). Aponta que o Jornal do Brasil, fundado em 1891, no ano de 1902 tinha
uma tiragem de exemplares que chegava ao número diário de 62.000.
126
leitura, optei por reproduzir o texto em seguida, convertendo a gramática para a
atualidade.
127
ESCOLA MUNICIPAL AZEVEDO SODRÉ
A FESTIVIDADE DO HOMEM
Satisfazendo o desejo do Dr. Azevedo Sodré, manifestado quando fez a doação de
sessenta apólices municipais de duzentos mil réis cada uma, de juros anuais de 8%, à
escola de que é patrono sob a condição de serem feitas, anualmente, três festas, uma em
maio, comemorando a fraternidade americana. Outra em setembro, destinada a
homenagear a memória daqueles que, no Brasil, mais tenham feito pela educação
popular. E outra em novembro, no dia da festa da bandeira, a escola Azevedo Sodré
realizou ontem uma graciosa festividade infantil.
Às 15 horas, com a chegada do Dr. Carneiro Leão, que foi recebido pelos Srs. Dir.
Paulo Machado, inspetor do Distrito, Bento Ribeiro de Castro, médico escolar, e D.
Domitilla Lemos Nunes, diretora da escola. Teve inicio a festividade que obedeceu ao
seguinte programa:
1ª parte – Hino Azevedo Sodré, palavras de crianças, pelo Sr. Diretor da Instrução.
Canção de marcha.
2ª parte – O pinhal com exercícios de ginástica-ritmada. Jogos das bolas, Contos de
fadas.
3ª parte – Bailado das ciganas. As três artes. Cena num jardim. Homenagem ao Dr.
Azevedo Sodré. Hino Nacional.
Entre o grande número de pessoas presentes, além do patrono da escola e das
autoridades municipais já apontadas, vimos a Sra. Arthur Cesar de Andrade, Sra. Luiz
de Azevedo Sodré, Dr. Albino Sodré, Sra. João Guimarães, D. D. Afonsina Chagas
Rosa, Orminda Rodrigues, Maria do Carmo Feital, Augusta Sá, Ambrosino Aragão,
Felicidade Moura Castro, Sara Regadas, Lucilda Giovanni, Maria de Andrade Ramos,
Izaura Carvalho de Azevedo, Corinta de Almeida, Clara Maciel, Oleta Mendonça,
Idalina Meirelles e Cecília Ferreira.
A festividade, que muito agradou os convidados da professora catedrática Domitilla
Lemos Nunes, se prolongou até depois das 17 horas, tendo sido oferecida, a essa hora,
aos convidados, um delicado serviço de doces, e aos alunos uma profusa merenda de
doces e biscoitos, tanto do agrado da petizada.
Algumas considerações se fazem necessárias com a leitura do artigo de jornal.
Ele nos fornece pistas sobre as concepções de modernidade que o governo e o conjunto
da sociedade procuraram instituir nos anos 1920. Em primeiro lugar, somos levados a
indiciar que as festividades aconteceram, pois são relatadas no texto da matéria e
128
fotografadas para publicação. Outra informação que se percebe é a preocupação em
explicitar a presença de pessoas de relevo na sociedade: o patrono da escola (Azevedo
Sodré); o Diretor Geral da Instrução Pública (Antonio Carneiro Leão); o inspetor Paulo
Machado e o médico Bento Ribeiro, por exemplo.
Tudo isso cria uma representação de um espaço educado, capaz de converter as
multidões em sujeitos de seu tempo, com hábitos corretos e boas maneiras de se
comportar. Esses padrões de comportamento eram indispensáveis à pretensão de
ingressar a capital na modernidade que se propalava, e para este fim, o exemplo de
personalidades médicas, diretores e inspetores, deveria pautar as ações das massas. O
jornal, assim, ao veicular notícia em que celebra a presença de “personalidades”, se
insere num conjunto de instituições que compõem uma teia de representações de
sociedade a ser construída. Não seria de se esperar que a DGIP se incumbisse sozinha
das iniciativas que visavam reestruturar a sociedade. Neste processo estiveram
envolvidos uma série de outros órgãos que, em conjunto, coordenadamente ou não,
executavam a difusão dos preceitos a serem seguidos pelos sujeitos daquele tempo. As
revistas, os jornais, as escolas, o governo, a polícia, os clubes de regatas, as igrejas e o
comércio, cada um deles, entre outros, exerciam influências cruzadas no sentido de
inventar uma tradição de modernidade para a cidade. É possível dizer, inclusive, que
entre os próprios sujeitos-alvo desta campanha, haveria validações e resistências
(SOOMA SILVA, 2009) em relação ao projeto de reestruturação citadino por que
passava a cidade.
A análise das fotografias não deve ser tratada superficialmente. Na foto menor,
observa-se um grupo de crianças enfileiradas, como que para cantar os hinos pátrios. O
que transmite a ideia de ordem, progresso e disciplina, categorias sociais que eram
almejadas pela prefeitura e outros níveis governamentais. Todavia, não podemos
imediatamente avaliar a festividade segundo essas categorias, pois o retrato captura uma
fração daquele presente, sem necessariamente representar a sua totalidade. Michel
Foucault (1996) analisa o enfileiramento de alunos como uma estratégia de docilização
dos corpos, em que as relações de poder são exercidas de formas múltiplas, entre elas o
nível corpóreo e biológico não escapa à sujeição representada pela formação de uma
fila. O autor vê nesta prática disciplinar escolar um exemplo da utilização e influência
de regimentos militares no espaço colegial. Ao posicionar um soldado atrás do outro,
formando uma linha, as patentes superiores podiam se posicionar à frente dos homens,
129
para ter uma visão contínua e desobstruída do comportamento dos subordinados. Assim,
quem ousasse fugir às diretrizes, relaxasse em sua postura, podia ser imediatamente
percebido e receber a punição adequada. Os colégios passaram a se utilizar de
estratégias similares, de modo que os alunos pudessem ser controlados e que o
disciplinamento fosse assegurado. No caso, o respeito que se pedia era perante os hinos
cantados. O Hino Nacional e o Hino Azevedo Sodré necessitavam que as crianças
demonstrassem zelo pelos símbolos apresentados, pois havia a vontade de criar uma
consciência de amor ao país e admiração aos seus heróis.
Vincent, Lahine e Thin (2001) foram outros autores que estudaram os
comportamentos escolares, como os apresentados na fotografia. A escolarização, para
eles, teria alcançado tamanha importância na sociedade, que seríamos levados a crer que
as práticas e hábitos apreendidos nos colégios são “naturais”. Como se sempre as filas
em linha, o hábito de levantar o dedo para pedir atenção, a entrada em banheiro segundo
critério de sexo, tivessem existido desde tempos remotos que ignoramos quais sejam.
Os autores afirmam que este aprendizado foi desenvolvido para a escola e pela escola,
no sentido de incorporar práticas à sociedade de acordo com a necessidade de uma
nascente elite industrial, econômica e intelectual. Nenhuma outra instituição sequestra
os tempos dos sujeitos de forma tão abrangente como a escola. Assim, a obrigatoriedade
escolar seria ao mesmo tempo um direito e um dever. No caso dos anos 1920, por meio
do livro “O ensino na capital do Brasil” (1926), indicio que as discussões em torno da
obrigatoriedade estavam presentes nos discursos e nas preocupações da política carioca.
Carneiro Leão aborda a temática em diversas passagens. Abaixo, apresenta-se uma
análise que se refere à tendência das crianças abandonarem os estudos, muitas vezes por
causa de dificuldades financeiras. Uma solução simplista para o problema seria o
recrudescimento das práticas punitivas aos pais que não garantissem a frequência dos
filhos nas escolas. Leão, entretanto, parece perceber que esta medida seria insuficiente,
sendo necessário, para combater a evasão, estímulos às famílias que mantivessem as
crianças nos colégios.
A tendência das crianças pobres a deixarem as escolas logo depois dos
primeiros anos escolares não é um fato exclusivamente nosso. Mesmo nos
países em que a instrução é obrigatória, os governos se tem encontrado na
contingência de fornecer pensões aos pais para que os filhos permaneçam
nos estudos além de certo grau, (LEÃO, 1926, p. 15)
130
Pode-se perceber também, mais uma vez, a busca de exemplos estrangeiros
como modelo a ser alcançado pela administração pública carioca. No mandato de
Fernando de Azevedo, como consta no art. 86 do Decreto 2940 de 1928, havia presença
de dispositivos legais que visavam garantir o comparecimento dos alunos nas escolas:
“São obrigadas à frequência escolar todas as crianças de 7 a 12 anos de idade”
(DECRETO DE ENSINO, 1928). Os pais dos alunos da Escola Azevedo Sodré,
portanto, devem ter experimentado esta dupla preocupação: aquela que quer
proporcionar um ensino de qualidade aos seus filhos, e aquela outra em que eles têm,
obrigatoriamente, que levar as crianças para as aulas. À percepção da escola como
direito, somava-se um dever, cujo descumprimento poderia ser punido com multa62.
Não se deve, entretanto, com base nos artigos legais apresentados acima,
considerar que Carneiro Leão ou Fernando de Azevedo tenham introduzido a
obrigatoriedade do ensino no Rio de Janeiro. Silva e Schueler (2013) apontam que os
debates em torno da obrigatoriedade do ensino já alcançavam grande repercussão no
Brasil imperial. Falando sobre a Província do Rio de Janeiro, os autores citam reformas
educacionais que continham preocupações acerca da gratuidade ou obrigatoriedade:
No campo educacional, destacou-se o encaminhamento de importantes
reformas, como a de Luiz Pedreira do Coutto Ferraz (Lei de 14 de dezembro
de 1849), não por acaso, também autor do projeto de reforma educacional
implementada na Corte, em 1854, quando exerceu o cargo de Ministro dos
Negócios do Império. (SILVA e SCHUELER, 2013, p. 249)
O primeiro documento citado, apesar de apontar para a gratuidade do ensino
provincial, não continha, explicitamente, medidas coercitivas no sentido de criar uma
obrigação aos pais para que matriculassem seus filhos nas escolas: “No entanto, em
momento algum do documento, foram explicitados o princípio da obrigatoriedade
(...)”(SILVA e SCHUELER, 2013, p. 250). Já no que diz repeito ao documento da
Corte, datado de 1854, percebe-se a introdução de dispositivos para tornar o ensino
obrigatório: “O Regulamento de 1854 também estabeleceu a obrigatoriedade do ensino
primário de 1º grau, ou 1ª classe, para os indivíduos livres entre 7 e 14 anos, sob pena
de multa de 20 a 100 réis aos pais (...)” (SILVA e SCHUELER, 2013, p. 251). Nesta
linha, infere-se que a obrigatoriedade do ensino, longe de ter sido “inaugurada” pelas
62
O art. 87 do decreto 2940 de 1928 estipula uma multa que variava de 5$000 até 200$000. Todavia, os
pais tinham o direito de serem notificados com até 8 dias de antecedência para solucionarem o problema.
Além disso, ficava estabelecido que a “autoridade competente” determinaria a multa, conforme seu
critério.
131
administrações de Carneiro Leão e Fernando de Azevedo nos anos 1920, já vinham
sendo discutidas no Brasil pelo menos durante o século XIX. Não nos parece, todavia,
importante buscar um “marco inicial” para o ensino escolar obrigatório no país. O
mérito do texto de Silva e Schueler (2013), neste sentido, foi trazer informações que
ajudam o leitor a perspectivar a presença da temática no Império, em que estas
preocupações se articulavam com outras aspirações do governo, na tentativa de educar a
população de acordo com os interessem do sistema vigente à época.
O ano da publicação do artigo de jornal apresentado anteriormente, como já foi
dito, é 1925. Portanto, com base nas informações apresentadas, indicia-se que naquela
ocasião a discussão em torno da obrigatoriedade do ensino continuava em pauta. A
presença dos pais e responsáveis na cerimônia citada faz-nos inferir que, para além
desse debate, os pais estavam na escola independentemente da lei, percebiam-na como
um direito de seus filhos, a ponto de prestigiarem a festividade com a própria presença,
de modo voluntário. Carneiro Leão (1926), aponta em seu livro que a discussão em
torno do ensino obrigatório estava em cena. Porém, outros problemas a serem
enfrentados pela DGIP constam no texto. Entre eles aparece a precariedade dos prédios
escolares. O autor, para analisar a situação, estabelece uma comparação com o caso da
cidade de Montevidéu, no Uruguai:
No Uruguai, em 1925, era pelo Anuário do Ensino declarado o seguinte: “El
pais lucha con la falta de edifícios apropriados. Casi todos los del
departamento de Montevidéo carecen de luz, de ventilacion y de espacio
sufficientes y muchos de ellos agregan a esos defectos la humidad de las
paredes”.
Montevidéu possui 109 escolas, das quais 45 boas, 18 regulares e 39 más.
São próprios apenas 19 e casas de aluguel 84 ou quatro vezes e meia mais.
No Distrito Federal temos 300 escolas, das quais segundo indicação recente
dos Srs, Médicos Escolares 130 boas, 113 sofríveis e 57 más, funcionando
em 231 prédios, dos quais 75 próprios e 156 de aluguel. (LEÃO, 1926, p.
39)
O texto indicia uma preocupação com a precariedade dos colégios do Rio de
Janeiro, e a necessidade de investir na reforma das escolas, o que esbarraria na
insuficiência de recursos. Leão reclama das limitações que a escassez financeira
impunha ao projeto de modernização dos colégios: “Fora do pagamento imediato,
ninguém desejava contratar com a Prefeitura” (LEÃO, 1926, p. 37). Ocorre, também,
um reconhecimento de que este problema vinha sendo enfrentado por países vizinhos.
132
Justificava-se, assim, a inoperância do Distrito Federal como um sintoma crônico das
dificuldades econômicas dos países da América Latina. Muitos colégios do Rio de
Janeiro sofriam de problemas estruturais semelhantes aos que o texto indica para o caso
do Uruguai. Por meio da notícia de jornal apresentada, infere-se que a Escola Azevedo
Sodré, ao menos no que tange à escassez de espaços, sofria de precariedade similar.
A fotografia maior não deixa claro qual momento da festividade procura
registrar, há a presença de adultos e crianças no mesmo espaço, em situação que ansiava
exprimir certo grau de informalidade. Observa-se alguns meninos sentados no colo de
pessoas adultas e outras crianças sentadas sobre o parapeito da janela. Todos parecem
querer contemplar algo que está sendo exibido, o que faz muito sentido a partir da
análise do texto jornalístico. Alguma exibição de dança ou canto, por parte de um grupo
de alunos, ocorria na festividade, e os espectadores se amontoaram para assistir. O que
chama a atenção é a inexistência de uma área adequada para a realização de
apresentações63.
O determinado, por assim dizer, “tom de improviso” que parece caracterizar as
acomodações da plateia exposta na fotografia nos fornece pistas sobre a adaptação por
que passou o prédio para funcionar como escola, uma reforma que demonstra certa
inadequação perante a prática a que se destina.
Assim, cabe dialogar com autores que ajudam a perspectivar a categoria de
espaços escolares, que no caso da Escola Azevedo Sodré, foram adaptados à prática que
se propôs para eles. Estes, por sua vez, se inserem em um estudo mais amplo sobre as
culturas escolares. A seguir, apresentarei um conjunto de ideias, análises sobre textos,
fotografias e gráficos, que lançarão luz sobre não apenas os espaços, mas também os
tempos educativos e as culturas produzidas dentro da escola.
3.3 Algumas considerações sobre culturas escolares
A história sobre a Escola Azevedo Sodré convida a refletir sobre algumas
singularidades que acompanharam o período de sua fundação. Já foi apresentada a ideia
de que ela se inseria em um debate acerca das propostas da Escola Nova, e as formas de
63
Nas visitas que fiz ao colégio não encontrei um palco para receber as cerimônias. Como está
apresentado no capítulo dois desta pesquisa.
133
implementação destas novas ideias na rede municipal de educação do Distrito Federal.
A reflexão sobre a escola, em que se procurou estabelecer um diálogo contínuo com a
cidade que a abrigava e a década dos anos 1920, empresta material para estabelecer um
estudo sobre, entre outros aspectos, tempos e espaços educativos. Posto que a escola
necessitaria se adequar ao projeto de reestruturação espacial por que passava a cidade, e,
ao mesmo tempo, estes estudos se relacionam com a sua época.
Busaca-se realçar a percepção que os sujeitos teriam a partir das intervenções
que foram, estrategicamente, impostas pela DGIP. Nesta ótica se objetiva realçar
diferentes aspectos das culturas escolares no Distrito Federal. Interessa um olhar oficial,
pautado pela análise dos textos legais, mas é igualmente interessante perspectivar como
estes regulamentos do ensino eram recebidos pelos colégios. Perscrutar a inserção dos
decretos da DGIP no seu destino – as escolas - seria uma forma de entendê-los como
produtores de culturas dentro dos colégios. As táticas utilizadas pelos professores para
subvertê-los ou, ao contrário, a rigorosidade na sua adoção, são elementos que
interessam à pesquisa.
De forma indiciária, sublinho um artigo de jornal publicado no ano de 1920 que
procurou discutir esta questão. O texto, apesar de retroceder alguns anos à fundação da
Escola Azevedo Sodré, remete a uma recepção pouco harmoniosa dos decretos dentro
dos espaços escolares. Os professores, além do acúmulo de trabalho do ano letivo,
tinham que lidar com diversos requerimentos. Sobre a insistência do Diretor Geral da
Instrução Pública, o Sr. Leitão da Cunha, em distribuir circulares, diz a Crônica do
Jornal64:
No que ele é fértil é em espalhar circulares. É um deus nos acuda de
circulares de todos os gêneros e feitios. Sobre o material existente nas
escolas, já ele fez o professorado fazer algumas dúzias, Até parece que o
homenzinho, enquanto espera um segurado para examinar, se entretém a
redigir circulares, amolando a paciência do professorado, que, à míngua de
docentes, está com um trabalho exaustivo. (JORNAL DO BRASIL, 29 de
março de 1920)
O trecho destacado acima indicia que havia, muitas vezes, uma recepção dos
textos legais diversa daquela que a Diretoria de Instrução esperava: os docentes, ao
invés de acatarem docilmente as circulares, se revoltavam contra o que julgavam
64
A coluna “Chronica do Ensino” era um espaço do Jornal do Brasil que objetivava dar voz ao
professorado carioca. Muitas vezes a opinião dos professores era condensada pelo redator do texto.
Observa-se uma assinatura no final do espaço: “Junior”, é como consta.
134
trabalho desnecessário. Assim, na derrapagem dos textos oficiais, nas artimanhas do
cotidiano, se inventavam tradições e se criavam culturas. É nesta linha de investigação
que procurei concentrar a presente pesquisa.
Além da referida análise da contra recepção dos documentos oficiais, um diálogo
com os anos 1920 precisa ser empreendido, período de marcantes acontecimentos na
vida política da capital do país. Na educação, as bases do movimento da Escola Nova
estavam sendo construídas, e é no bojo deste projeto que ocorreu a fundação da
Azevedo Sodré.
As intenções de Azevedo Sodré, e o estabelecimento das diretrizes para a escola,
se relacionam com o projeto de reconfiguração urbana por que passava o Rio de Janeiro.
Ao propor regras de conduta aos alunos e professores, as diretrizes caminham na
direção de um ideal de modernidade que se buscava para a cidade e as práticas diárias
da população desde o início do século, com as reformas empreendidas pelo prefeito
Pereira Passos65. Uma cidade civilizada, com espaços públicos em estilo europeu e sua
região central valorizada, precisava em igual medida contar com uma população
instruída e educada, com hábitos de higiene condizentes com a capital do país. A escola,
neste sentido, tornou-se o local ideal para que os valores pretendidos fossem lecionados
aos alunos, e assim retransmitidos às famílias. José Cláudio Sooma Silva reflete sobre
este quadro:
Nessa medida, no decurso da década de 1920, foi-se intensificando a
concepção de que para modernizar a capital, para além das reformas
arquitetônicas, era necessário remodelar as práticas de sociabilidade. Nesse
específico, pode-se aludir para uma alteração nas estratégias administrativas
empreendidas pela prefeitura. Em vez do apoio a medidas coletivas que
durante as suas execuções exigiam a participação dos habitantes, passava-se
a privilegiar iniciativas que se propunham a disciplinar e harmonizar os
espaços e tempos sociais, mas que esperavam contar com a colaboração da
população. (SILVA, 2008 p. 131)
Sobre esta análise cumpre sublinhar que o autor vê a escola passar a ser utilizada
pela prefeitura como forma de disciplinar a população, com o objetivo de modernizar a
65
A administração do engenheiro Pereira Passos ocorreu no período compreendido entre os anos de 1902
e 1906. Nasceu em 1836, em 1857 muda-se para Paris, cidade que fortemente influenciará sua
administração carioca. Foi convidado pelo presidente Rodrigues Alves a assumir o posto de prefeito.
Empreende grandes obras públicas. A construção da Avenida Central foi uma das mais importantes, à
frente da comissão encarregada para este projeto esteve Paulo de Frontin. Outra obra de relevo foi a
reestruturação da região portuária, à frente da comissão destas obras esteve Francisco Bicalho. Para mais
informações sobre este período, ver (Rocha, 1995).
135
capital, harmonizando espaços e tempos sociais. Este trecho merece destaque, pois
ajuda a refletir sobre as culturas escolares: Viñao Frago (1995) pensa o tempo escolar, e
Augustim Escolano (2000) pensa sobre os espaços escolares. Estas são dimensões que a
escola Azevedo Sodré, sob a ótica do governo, deveria contribuir para disciplinar. Os
tempos escolares relacionam-se com os tempos, horários, prazos ou datas, aos quais os
cidadãos deveriam submeter-se. Outra situação à que a comunidade escolar ficava
submetida eram os momentos da inspeção quanto à higiene, uma preocupação constante
dos regulamentos de ensino dos anos 1920. Os que se desviassem destes padrões
estariam sujeitos a intervenções e punições, sob o escrutínio do diretor66: Nesta direção,
cabe iluminar a sujeição forçada a que ficavam submetidos constantemente as crianças.
Competia ao subdiretor das escolas: “revistar diariamente os alunos, para lhes verificar
as condições de asseio do corpo e do vestiário, e informar ao diretor daqueles que
estiverem doentes.” (DECRETO DO ENSINO, 1928, art. 125). A escola, ao dialogar
com a dimensão mais íntima do indivíduo (seus corpos), trabalhava na direção de tornar
a utilização do aparato de polícia ou exército desnecessária.
Os espaços escolares, por sua vez, relacionam-se com a cidade pretendida pelos
projetos citadinos em curso (SILVA, 2008). Contribuíam para a difusão de um
repertório de percepções espaciais em que o centro da cidade, valorizado, devia ser
frequentado por um novo público. Para promover a redistribuição dos antigos
moradores do centro, em novas (e afastadas) regiões da urbe, escolas foram construídas
nestas regiões como forma de difusão da visão oficial de cidade, defendida pelo projeto
governamental. “Nessa medida, a partir, principalmente, de meados da década de 1910,
constata-se um crescimento contundente das formas alternativas de moradia (favelas,
cortiços, casebres)” (SILVA, 2009, p. 220).
Pode-se, assim, indiciar que as festas promovidas dentro da Escola Azevedo
Sodré, desempenhavam um papel de promoção e inserção da vida em regiões não
centrais da cidade.
As reflexões de Augustin Escolano acerca de questões relativas ao espaço
escolar contribuem ao processo de entendimento da Escola Azevedo Sodré enquanto
instituição que não está isolada dos demais lugares da cidade do Rio de Janeiro. Ao
66
Decreto do ensino, nº 2940, de 1928: art. 124, 12) Conhecer das faltas praticadas pelo pessoal docente
ou administrativo, para aplicar a necessária punição, quando for de sua alçada, ou levar o fato ao
conhecimento da autoridade superior.
136
contrário, insere-se numa rede de relações espaciais que constituem uma nova
identidade urbana que se propõe à capital federal, principalmente através das reformas
empreendidas no início do século XX pelo engenheiro-prefeito Pereira Passos, e que
seguiram ocorrendo nas administrações seguintes, que a tinham como parâmetro. Tais
reformas buscavam consolidar a cidade como capital moderna, dotada de arquitetura
europeia, com suas avenidas largas e praças ajardinadas.
Alaor Prata, também
engenheiro, que fora prefeito durante o período de inauguração do colégio, é um
exemplo de governante que conduziu a cidade na “pá e na enxada”, dando
prosseguimento às reformas iniciadas pelo seu colega de duas décadas passadas. Houve
durante este período uma tradição de prefeitos engenheiros67, cujas habilidades em
conduzir reformas emprestavam à cidade que administravam. Augustin Escolano (2000)
afirma que:
En cuanto forma de escritura, la arquitectura puede ser examinada, a este
respecto, como uma textualidad conformadas a ciertas reglas constructivas
que comportan sentido em sus propias estructuras, o como um orden que
transmite, a través de sus trazados y símbolos, uma determinda semântica,
es decir, uma cultura (ESCOLANO, 2000, p. 9)
Nesta direção, reflete-se sobre a arquitetura adaptada do colégio, que como
muitas outras instituições de ensino da cidade, não foi planejada para servir como
escola, mas foi reconfigurada para atender às necessidades inerentes a ela. Muitas casas
da cidade passaram por reformas para a instalação de colégios, sinal da pressa
governamental em educar a população. Fernando de Azevedo (1958) descreve um
quadro detalhado das arquiteturas e espaços escolares no ano de 1928, portanto poucos
anos após a abertura da Escola Azevedo Sodré:
[Havia na cidade do] Rio de Janeiro 236 prédios ocupados por escolas, dos
quais 147, de aluguel e 89 próprios municipais. Esses 147 prédios, [...] são
casas de residência a maior parte em péssimo estado de conservação e
algumas mesmo, em ruína. Fossem, porém excelentes todas essas casas de
moradia, em que se instalaram as escolas, seriam ainda inteiramente
inadequadas ao fim a que a administração as destinou. [...] Dos 89 prédios
municipais, mais de 60 são residências particulares, prédios velhos
adquiridos pela prefeitura e adaptados grosseiramente a fins escolares. Daí
se conclui que até hoje, em quase quarenta anos de regime republicano, não
67
A tradição de prefeitos engenheiros consolidou-se no período entre 1906 e 1930. Os prefeitos não eram
eleitos por voto direto da população, mas indicados para assumirem o cargo. Além de Pereira Passos,
outros quatro engenheiros administraram a cidade do Rio de Janeiro na época: Amaro Cavalcanti (19171918), Paulo de Frontin (1919), Carlos Sampaio (1920-1922) e Alaor Prata (1922-1926), A esse respeito,
ver: SILVA, 2009.
137
foram construídos na metrópole brasileira senão pouco mais de 20 prédios
escolares, ou seja, em média um prédio de dois em dois anos [...]
(AZEVEDO, 1958, p. 58-59).
O colégio Azevedo Sodré se encaixa na descrição feita por Fernando de
Azevedo, era anteriormente um imóvel residencial, e ao ser incorporado pela
administração pública, passou por reformas apenas superficiais para ser transformado
em escola.
Havia por parte dos ideários do movimento da Escola Nova uma preocupação
em fundar escolas em prédios concebidos e planejados para funcionarem para fins
educacionais, o que acabou não ocorrendo (ou ocorrendo em pequeno número) devido
principalmente às dificuldades orçamentárias que enfrentava a pasta de educação. Segue
um indício da penúria por que passava a pasta da instrução pública no ano de 1926: “o
problema é essencialmente financeiro, e escapa às possibilidades da Diretoria de
Instrução” (LEÃO, 1926, p. 13), queixava-se o Diretor da Instrução sobre a
impossibilidade de manter um grande contingente de alunos nas escolas.
Ainda sobre a questão dos espaços escolares, convém sublinhar alguns pontos
presentes nos Programas para o Ensino Primário Carioca, datado de 1926 e assinado por
Carneiro Leão68. Havia na política educacional do período uma forte influência de
modelos escolares do exterior69. Os Programas citados acima propuseram a aplicação de
tests ao estilo americano como forma de encaminhamento do aluno ao ano seguinte.
Todavia, dentro do município do Rio de Janeiro havia uma série de variantes que
dificultariam a aplicação homogênea da norma. “Como a aplicação não há de ser feita
imediatamente em todo o distrito federal e a administração ensaiando-a e alargando-a
como vem fazendo desde o começo de 1924, mostra a prudência com que é preciso
agir.” (p. 191). Observa-se neste ponto um reconhecimento das variantes geográficas
que influenciavam a vida escolar. Um modelo aplicado à região central poderia não ser
68
Os Programas de 1926 foram redigidos por uma comissão de educadores presidida por Carneiro Leão.
Integravam essa Comissão: Deodato de Moraes, Paulo Maranhão, Eulina de Nazareth, Floripes Anglada
Lucas, Isabel da Costa Pereira Mendes, Heitor Lyra da Silva, J.P. Fontenelle, Delgado de Carvalho,
Carlos Porto Carrero, Teófilo Moreira da Costa, Nereu Sampaio, Edgard de Mendonça e Arthur Joviano
(PROGRAMAS, 1926, p. 193).
69
(LEÃO, 1926, p. 13) faz uma longa menção aos países mais desenvolvidos, no que diz respeito à
tendência de crianças pobres a abandonarem os estudos que se verificava no Distrito Federal do Brasil.
Usa exemplos do exterior em que as crianças pobres recebiam estímulos para permanecerem nos colégios.
No caso da Suíça, além de fornecer a instrução para todos os moços necessitados, o governo ainda pagava
às suas famílias uma soma equivalente ao que os filhos receberiam caso estivessem trabalhando fora para
ajudarem em casa. O texto de Carneiro Leão também menciona os casos da Alemanha, dos Estados
Unidos, da França, da Austrália e da Inglaterra.
138
adequado às regiões rurais da cidade. Como visto, a questão dos espaços está presente
em variados aspectos das culturas escolares, e por isso tem recebido maior atenção por
parte dos historiadores da educação.
Ao falar de espaços escolares, não se deve negligenciar a ideia de arquitetura
escolar, em seguida daremos especial atenção à reforma por que passou o colégio
Azevedo Sodré. A análise será feita através de reflexão que parte de duas fotografias da
escola. Cumpre, primeiramente, refletir sobre o papel da fotografia em estudo histórico.
Esta análise será importante, pois dialoga com a metodologia empregada para estudar as
fotografias da instituição.
Ao analisar uma fotografia e estabelecer reflexões com base nas representações
que a imagem nos convida a refletir, dialogo com Peter Burke (2004), particularmente
no que diz respeito às suas considerações acerca dos cuidados que os historiadores
devem adotar. Ao recorrer ao uso imagético em trabalhos acadêmicos, as fotografias
devem ser discutidas dentro do próprio texto, ao contrário de utilizá-las como validação
imediata do que vinha sendo dito. Questões como o ângulo em que foram tiradas, se
houve (ou não) encenação para capturar o momento, limitação tecnológica do
equipamento usado, órgão contratante da documentação fotográfica, biografia do
fotógrafo, entre outros fatores que interferem na produção das imagens, devem ser
levados em consideração no momento da sua análise.
A imagem em uma pesquisa em História da Educação, ao contrário do ditado
popular, precisa das mil palavras, pois utilizá-la como mera ilustração configura um
subaproveitamento de suas potencialidades. Ela não deve, portanto, servir como enfeite
para o trabalho. Deve dialogar com o texto acadêmico e receber, por parte do autor, uma
análise acerca das intencionalidades que revestiram o momento de sua captura. Vejamos
o que Burke (2004) sublinha sobre qual tem sido a tendência dos historiadores no que
tange à utilização de fotografias em suas pesquisas:
Quando utilizam imagens, os historiadores tendem a tratá-las como meras
ilustrações, reproduzindo-as nos livros sem comentários. Nos casos em que
as imagens são discutidas no texto, essa evidência é frequentemente
utilizada para ilustrar conclusões a que o autor já havia chegado por outros
meios, em vez de oferecer novas respostas ou suscitar novas questões.
(BURKE, 2004, p. 12)
139
Encontra-se a seguir uma fotografia do ano de 1926, portanto um ano após a
inauguração da escola. Seu autor foi Augusto Malta70. O casarão ainda não havia
passado pelas reformas que mais tarde conferiram à escola a configuração espacial
necessária às práticas e usos que se pensou para ela71. Observa-se a fachada sem o nome
do colégio e sem os três postes para o hasteamento de bandeira, que mais tarde foram
instalados com o objetivo da realização do festejo “culto da bandeira e o amor à pátria”.
Nota-se, também, o objetivo de dar certa formalidade à fotografia. O fotógrafo, ao
escolher o ângulo de apresentação do colégio, o retrata de forma propositadamente
gloriosa, para incluir o estabelecimento no conjunto de aspirações urbanas por que
passava o Rio de Janeiro. A escola desempenharia um papel importante na inculcação
de padrões estéticos para os espaços públicos, pois o que era ensinado, como salienta
Souza (2008), não era de livre escolha das instituições de ensino. Ao contrário, o
currículo era pré-estabelecido pela Diretoria Geral de Instrução Pública através de
diretrizes. Portanto, as crianças aprendiam a valorizar o patrimônio público, e cuidar do
prédio escolar. Um edifício bonito, bem cuidado e grandioso serviria como exemplo de
civilismo para a população.
70
Augusto Malta, por mais de trinta anos trabalhou como fotógrafo contratado pela prefeitura do Rio de
Janeiro, o que ajuda a entender as escolhas temáticas, os ângulos e intenções que optou para formar o seu
acervo. Sooma Silva (2009) pondera sobre a atuação de Augusto Malta como contratado da prefeitura do
Rio de Janeiro. Nesta medida, ao analisar as fotografias de Malta, deve-se inseri-lo no contexto ao qual se
destinava a sua produção. Ricardo de Hollanda (2003, p. 143, apud Silva, 2009, p. 142) analisa o trabalho
de Malta da seguinte maneira: “Ainda que vinculado a uma prática documental [...] este fotógrafo subia
morros e favelas, focalizando caminhos estreitos e conjuntos musicais. Imagens que demonstram o seu
interesse pelo humano”. Malta retratava nas suas imagens “negros ex-escravos, velhinhos asilados,
crianças, homens, mulheres dos diversos segmentos da sociedade carioca, prostitutas, operários e
comerciantes, entre outros” (idem). Assim, apesar da fotografia que optei por utilizar seja da fachada de
um prédio, como era comum aos registros fotográficos sobre escolas à época, cumpre sublinhar que Malta
demonstrava, em parte do seu acervo, este interesse por um objeto diverso.
71
Outro autor que nos empresta ideias para pensar a questão do espaço escolar é Luciano Mendes de
Faria Filho (1998).
140
Augusto Malta, 1926. Acervo da Escola Azevedo Sodré (Apresenta-se, nos anexos, outra imagem de Malta).
Nota-se que esta foto ainda não apresenta a reforma por que passou o colégio
para hasteamento da bandeira. Os cânticos relativos às ideias de civilidade e respeito à
ordem pública tornaram-se uma forma de assegurar um ambiente em que as
insatisfações eram reprimidas em prol do bem maior: a república e a cidade. Precisavase, portanto, instalar a estrutura para que as bandeiras fossem erguidas e expostas ao
vento. A frente do colégio foi o local escolhido por tornar públicas as cerimônias, de
modo que os transeuntes da rua observassem o ocorrido, e a mensagem tivesse sua
abrangência estendida. Na pesquisa junto ao arquivo do colégio e em outras fontes, não
encontrei fotografias dos primeiros anos destas festividades junto ao mastro principal do
colégio, mas encontrei o hino que era cantado e celebrado pelos alunos como forma de
homenagem ao seu patrono. Recorri, então, a uma fotografia de minha autoria, que
embora seja de um período bastante posterior, retrata a reforma realizada na fachada do
colégio. Ano de 201072, nota-se que a escola já passara pelas reformas que a adaptariam
à utilização escolar. Observa-se, especialmente, a existência de três postes para
72
Justifica-se o emprego de uma fotografia bastante posterior ao período de fundação da escola, pois,
como consta no capítulo 2 desta pesquisa, o imóvel não sofreu grandes alterações neste período, o que o
habilitou para ser tombado no ano de 2000. As diferenças entre a fotografia mais antiga, de Augusto
Malta, e a de minha autoria indiciam aspectos da reforma por que passou o estabelecimento, porém não
devem ser consideradas como provas definitivas.
141
hasteamento de bandeiras. A presença destes postes indicia a escolha do local como
espaço de realização dos cânticos matinais de que trata o quadro 2 que será apresentado
a seguir.
Acervo pessoal, Pedro Paulo Hausmann Tavares, 2010
Construiu-se até o momento uma análise da relação da escola com os diferentes
espaços, sejam educativos ou de outra natureza. É bem provável, todavia, que não se
possa falar em espaços que não sejam educativos, pois eles contêm certa pedagogia em
sua natureza, são constantemente assimilados pelas pessoas, o que configura um ato
pedagógico. Os espaços mudam, as casas são construídas e destruídas sobre eles, e os
sujeitos precisam entendê-los e estudá-los, para então percorrê-los. Nessa perspectiva,
andar por entre o mundo torna-se uma experiência pedagógica, de formas escolarizadas
ou não escolarizadas. Porém, a dimensão espacial é apenas um dos aspectos que
interessam ao historiador da educação.
No que diz respeito à dimensão do tempo, o autor Antonio Viñao Frago (1995)
faz considerações importantes. A categoria histórica de tempo escolar nos servirá de
apoio para pensar problemas que envolvem a escola Azevedo Sodré.
Uma de las modalidades temporales es el tiempo escolar, um tiempo
también diverso y plural, individual e institucional, condicionante de y
condicionado por otros tiempos sociales; um tiempo aprendido que
conforma el aprendizaje del timepo, uma construción, em suma, cultural y
pedagógica; um hecho cultural. (VIÑAO FRAGO, 1995, p. 72)
142
O trecho acima fala do tempo escolar como uma das modalidades temporais.
Para o historiador da educação é uma abordagem relevante, que contribui com o estudo
dos tempos históricos em geral. O tempo histórico para Darnton (1986) não tem como
ser acessado fielmente pelo historiador. Nem deveria ser esta a sua intenção, pois um
resgate do que se fazia em outros presentes (o passado) seria impossível, tendo em vista
que cada análise de diferentes pesquisadores será única. E da mesma forma, a vida das
pessoas que habitavam outros presentes era singular. Por mais que o pesquisador se
esforce para alcançá-las, o estudo será sempre inatingível pela própria natureza
subjetiva do objeto. A proposta, então, caminha na direção de utilizar referências
diversas para pensar aspectos deste tempo histórico. Surgem, assim, algumas respostas,
mas ao mesmo tempo novas curiosidades se abrem, o que torna a produção
historiográfica uma tarefa continuada, que não se esgota com esta ou aquela pesquisa.
Os tempos educacionais, nesta direção, são aspectos que procuram oferecer perguntas
ao historiador.
O estudo acerca dos tempos educacionais é importante para esta pesquisa, pois
alguns elementos que cercam a história da Escola Azevedo Sodré se relacionam com a
perspectiva temporal. Apresentam-se aspectos da atividade escolar que nos chamam a
atenção: horários de entrada e saída dos alunos, momentos de inspeção médica, hora dos
cânticos matinais. Estes elementos compõem os tempos educativos, em sua relação com
a cidade, e convidam à reflexão. Sobre o caso específico da “hora dos cânticos”, em
que os hinos pátrios eram cantados, cabem algumas considerações.
O hino em homenagem ao patrono dialoga com os tempos sociais cariocas dos
anos 1920. Percebe-se nesta música um exemplo da utilização da escola para disseminar
ideais de civilismo, ideia republicana que marcou fortemente a educação brasileira
naquela década (PAULILO, 2001). O hino deveria servir como instrumento pedagógico,
harmonizando os tempos escolares, servia para conferir formalidade à entrada dos
alunos no colégio. As crianças deveriam perceber que aquela manhã que se iniciava
(aquele tempo) se distinguia dos tempos de lazer, necessitava enfim, de concentração e
estudos. O hino representaria, assim, um marco temporal que separava o mundo da rua
da atividade escolar. Nesta perspectiva, os tempos escolares deviam ser revestidos de
um tom de formalidade, o que estava de acordo com o projeto de modernização das
práticas dos sujeitos. Para que tal empreitada tivesse êxito, era necessário distinguir os
tempos sociais e citadinos, insalubres e desordeiros, dos tempos da instrução, que
143
remetiam à ordem e civilidade. Esta separação precisava de um tom cerimonioso, os
cânticos e a formação respeitosa perante a bandeira representavam esta teatralização do
cotidiano como instrumento de inculcação de práticas de modernidade.
A escritura de doação, em que Azevedo Sodré já no final de sua vida, abre mão
do seu patrimônio em favor do município, nos empresta ideias para tecer algumas
considerações, pois seríamos facilmente levados a crer que tal gesto de abnegação
patrimonial o convertesse em símbolo de mérito. Ao contrário de referirmo-nos a ele
como um homem a frente de seu tempo, como Sodré e outros73 políticos vinculados ao
movimento da Escola Nova foram percebidos por um grupo de autores da história da
educação, devemos percebê-lo como um Homem em seu tempo, posto que estava imerso
na política, religião, nos conflitos e disputas do final da Primeira República. Impossível
desvinculá-lo de seu contexto. Busco, assim, evitar um tom laudatório de enaltecimento.
Azevedo Sodré quis, com a doação, ser lembrado como homem público que esteve
preocupado com a educação das crianças em sua época, mas ao mesmo tempo, e
certamente, viveu as contradições que marcaram o seu período.
O colégio passou a estampar seu nome, e nos ajuda a estudar a categoria do
tempo escolar. Pensado como um espaço em que os tempos escolares se relacionam
com os tempos sociais e com o seu entorno, percebe-se que as famílias dos alunos
lidavam com o tempo de diferentes formas, assim como os professores e a escola. Não é
possível, portanto, falar de tempo escolar (no singular), pois o que há são diversos
tempos que se relacionam e interferem no cotidiano da escola. A organização do ano em
semestres, o calendário de provas, os momentos de inspeção governamental são
exemplos de como os diversos tempos influenciam no pensar do colégio abordado.
Ao realçar a categoria de tempo escolar, o pesquisador deve ter em mente o
efeito que produz em sua emergência no cotidiano: “Assim, o projeto de modernização
carioca jogava até mesmo com a multiplicidade de variações dos acontecimentos das
vidas aceleradas de seus milhares de habitantes” (SILVA, 2008, p. 112). Sooma Silva,
neste sentido, submete o estudo acerca dos tempos sociais e escolares a uma dimensão
mais íntima: a vida dos sujeitos que percorriam a cidade. Afinal, importa perspectivar
que o tempo é perceptível por diferentes vieses, a partir da percepção que os sujeitos
73
Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Cecília Meirelles, entre outros, foram figuras públicas que se
vincularam ao movimento da Escola Nova.
144
fazem dele. Nesta direção, constitui objeto de interesse de quem se propõe a pesquisar
os tempos em ambiente escolar, a duração das aulas, dos recreios, o horário de entrada e
saída, se as aulas eram de horário integral ou parcial, aulas noturnas ou diurnas.
Percorrer estes caminhos é tarefa indispensável. Todavia, há a questão das fontes: o
arquivo da Escola Azevedo Sodré, como já foi sinalizado, não é amplo e não se
encontra devidamente organizado. Um caminho a ser percorrido, então, seguindo o
pensamento de Ginzbug (1989) é alcançá-las por outros meios. Como se sabe, o Colégio
Azevedo Sodré fazia parte da rede de educação primária da cidade do Rio de Janeiro.
Guardava em comum com outras escolas da rede não apenas a subordinação à Direção
da Instrução Pública, mas muitas das regras de horários de entrada e saída, duração das
aulas, divisão do conteúdo programático etc. Nessa direção, enfoco como indiciários os
quatro quadros que foram explorados por Silva (2008, p. 121-23) referentes: 1) ao
horário de funcionamento das escolas primárias em 1926 e 2) às grades diárias de
disciplinas das escolas primárias também em 1926:
QUADRO 1: Horário de funcionamento diário das escolas primárias em 1926
Manhã: 7h50 às 12h10
Escolas de dois turnos
Tarde: 12h20 às 16h40
Escola de turno único
11h às 16h
Fonte: (Programas para o Ensino Primário Carioca, 1926, apud SILVA, 2008, p. 121-23)
O colégio em foco se enquadra no âmbito das escolas de dois turnos. Portanto,
indicia-se que os horários destacados acima tenham sido aplicados à Azevedo Sodré. O
quadro refere-se aos colégios da cidade do Rio de Janeiro no ano de 1926, o que insere
o colégio em pauta no grupo ao qual a tabela se refere.
A análise da grade diária das disciplinas convida a refletir sobre o currículo em
execução durante a década de 1920. O estudo dos currículos compreende as matérias e
as áreas do conhecimento mais valorizadas de uma determinada sociedade. Assim, o
pesquisador em história é levado a indiciar certas categorias que haviam sido
priorizadas pelo grupo estudado com base no currículo que foi estruturado em
determinada época. Entretanto, cabe uma ressalva: a simples presença de uma disciplina
na grade diária não representa um fato consumado, posto que as prescrições daqueles
145
saberes e práticas que deveriam ser ensinados aos alunos estariam sujeitadas pelas
possíveis apropriações transformadoras concretizadas, cotidianamente, pelos sujeitos
das ações educativas. Não se deve, entretanto, desprezar as informações contidas numa
tabela como a apresentada abaixo. Ela disponibiliza indícios que devem ser levados em
consideração pelo pesquisador em história para construir a sua interpretação. No caso,
sobre quais áreas do conhecimento se pretendia disseminar. Ao conferir a uma
disciplina específica um espaço dentro do currículo oficial, essas matérias ganham uma
enorme possibilidade de difusão, portanto a seleção da “geometria”, por exemplo, em
detrimento de disciplinas como “história” ou “geografia”, excluídas das grades diárias
apresentadas abaixo, configuram um realce, que parece proposital, de um núcleo
curricular “da natureza”.
QUADRO 2: Grade Diária de Disciplinas (1º e 2º Anos)
Turno das
Horas
7h50 às 12h10
Turno das
Horas
12h20 às 16h40
Turno das
Horas
11h00 às 16h00
Formatura e
Cânticos
7h50 às
8h00
Formatura,
Cânticos e
Entrada
12h20
às
12h30
Formatura,
Cânticos e
Entrada
11h00 às
Educação Física
8h00 às
Aritmética
12h30
às
Linguagem
11h15 às
8h30
11h15
12h15
12h50
Entrada e Pausa
8h30 às
Pausa
8h40
12h50
às
Pausa
12h15 às
12h20
12h55
Linguagem
8h40 às
Linguagem
9h40
12h55
às
Aritmética
12h20 às
12h50
13h55
Pausa
9h40 às
Pausa
9h45
13h55
às
Pausa
12h50 às
13h00
14h00
Aritmética
9h45 às
10h05
Desenho
14h00
às
Desenho
13h00 às
13h30
14h30
146
Recreio
10h05 às
Recreio
10h25
14h30
às
Recreio
13h30 às
14h00
14h50
Pausa
10h25 às
Pausa
10h30
14h50
às
Pausa
14h00 às
14h05
14h55
Geometria
10h30 às
Geometria
10h45
14h55
às
Geometria
14h05 às
14h25
15h10
Desenho
10h45 às
11h15
Trabalhos
Manuais
15h10
às
Trabalhos
Manuais
14h25 às
Pausa
15h15 às
15h15
15h55
Trabalhos
Manuais
11h15 às
Pausa
12h00
15h55
às
15h20
16h00
Saída
12h00 às
Educação Física
12h10
16h00
às
Educação Física
15h20 às
15h50
16h30
Saída
16h30
às
Saída
15h50 às
16h00
16h40
Fonte: (Programas para o Ensino Primário Carioca, 1926, apud SILVA, 2008, p. 121-23)
QUADRO 3: Grade Diária de Disciplinas (3º e 4º Anos)
Turno das
Horas
7h50 às 12h10
Turno das
Horas
12h20 às 16h40
Turno das
Horas
11h00 às 16h00
Formatura e
Cânticos
7h50 às
8h00
Formatura,
Cânticos e
Entrada
12h20
às
12h30
Formatura,
Cânticos e
Entrada
11h00 às
11h15
Educação Física
8h00 às
8h30
Aritmética
12h30
às
13h00
Linguagem
11h15 às
12h15
147
Entrada e Pausa
8h30 às
Pausa
8h40
13h00
às
Pausa
12h15 às
12h20
13h05
Linguagem
8h40 às
Linguagem
9h30
13h05
às
Aritmética
12h20 às
12h55
13h55
Pausa
9h30 às
Pausa
9h35
13h55
às
Pausa
12h55 às
13h00
14h00
Aritmética
9h35 às
Desenho
10h05
14h00
às
Desenho
13h00 às
13h30
14h30
Recreio
10h05 às
Recreio
10h25
14h30
às
Recreio
13h30 às
14h00
14h50
Pausa
10h25 às
Pausa
10h30
14h50
às
Pausa
14h00 às
14h05
14h55
Geometria
10h30 às
Geometria
10h50
14h55
às
Geometria
14h05 às
14h25
15h15
Desenho
10h50 às
11h15
Trabalhos
Manuais
15h15
às
Trabalhos
Manuais
14h25 às
Pausa
15h15 às
15h15
16h00
Trabalhos
Manuais
11h15 às
Educação Física
12h00
16h00
às
15h20
16h30
Saída
12h00 às
12h10
Saída
16h30
às
Educação Física
15h20 às
15h50
16h40
Saída
15h50 às
16h00
Fonte: (Programas para o Ensino Primário Carioca, 1926, apud SILVA, 2008, p. 121-23)
148
QUADRO 4: Grade Diária de Disciplinas (5º, 6º e 7º Anos)
Turno das
Horas
7h50 às 12h10
Turno das
Horas
12h20 às 16h40
Formatura e
Cânticos
7h50 às
Educação Física
Turno das
Horas
11h00 às 16h00
12h20
às
12h30
Formatura,
Cânticos e
Entrada
11h00 às
8h00
Formatura,
Cânticos e
Entrada
8h00 às
Aritmética
12h30
às
Aritmética
11h15 às
8h30
11h15
11h55
13h00
Entrada e Pausa
8h30 às
Pausa
8h40
13h00
às
Pausa
11h55 às
12h00
13h05
Linguagem
8h40 às
Linguagem
9h30
13h05
às
Linguagem
12h00 às
13h00
13h55
Pausa
9h30 às
Pausa
9h35
13h55
às
Geometria
13h00 às
13h30
14h00
Aritmética
9h35 às
10h05
Geometria
14h00
às
Recreio
13h30 às
14h00
14h30
Recreio
10h05 às
Recreio
10h25
14h30
às
Pausa
14h00 às
14h05
14h50
Pausa
10h25 às
Pausa
10h30
14h50
às
Desenho
14h05 às
14h35
14h55
Geometria
10h30 às
Desenho
11h00
14h55
às
Trabalhos
Manuais
14h35 às
Educação Física
15h20 às
15h20
15h25
Desenho
11h00 às
Trabalhos
15h25
149
11h30
Manuais
às
15h50
16h00
Trabalhos
Manuais
11h30 às
Educação Física
12h00
16h00
às
Saída
15h50 às
16h00
16h30
Saída
12h00 às
12h10
Saída
16h30
às
16h40
Fonte: (Programas para o Ensino Primário Carioca, 1926, apud SILVA, 2008, p. 121-23)
As tabelas acima estão divididas em três grupos. O primeiro deles compreende
as disciplinas ministradas para os alunos matriculados entre o primeiro e o segundo
anos. O segundo grupo abrange as disciplinas para os alunos do terceiro e quarto anos, e
a última tabela destaca as disciplinas para os alunos de quinto, sexto e sétimo anos.
Ocorre em todos os grupos algumas disciplinas, com variações do horário em que eram
ofertadas. Em todas as ocasiões verifica-se que as aulas começavam com a
imprescindibilidade de cânticos e formatura das crianças; o que aponta para uma ênfase
na disciplina e na ordem, características que se almejava imprimir na sociedade. Os
cânticos buscavam glorificar virtudes da República, e a formatura sinalizava aos alunos
a necessidade de agir conforme uma ideia de autodisciplina. Esta educação dos corpos
seria importante nos tempos escolares que se seguiriam à cerimônia. Assim, o
burburinho das ruas, as brincadeiras e a informalidade deviam ficar do lado de fora dos
portões do colégio, para darem lugar ao controle e harmonia que se esperava para as
classes. A Educação Física também é uma disciplina que aparece em todas as ocasiões,
visava conferir um momento a mais para as atividades que se concentravam na
dimensão corporal. Havia apreço pelo desporto e higiene, e um entendimento de que
através da atividade física os vícios e a indolência ficariam para trás. O que sinalizava
para a vontade de construir um novo tempo para a nação, um tempo moderno e
higienizado.
Outras disciplinas que aparecem com frequência nas tabelas disponibilizadas são
aritmética, geometria, desenho e linguagem. A análise destes quadros ajuda a construir
uma ideia do que se valorizava enquanto instrução e práticas formativas. A ocorrência
150
da disciplina trabalhos manuais não deve ser vista como forma de atenuar o núcleo
rígido das ciências da natureza: uma mão que aprendia a percorrer as sutilezas próprias
dos trabalhos manuais era uma mão instruída, vista como menos propensa ao furto e à
balbúrdia. Estas práticas sociais, ao serem escolarizadas, ganham uma dimensão de
agenda política. Os adultos que forjaram os currículos pretenderam ensinar aquelas
disciplinas às crianças da geração seguinte. Nesta medida, portanto, acompanhando o
pensamento de (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001), a escolarização se diferenciava de
educação. Pois, a educação não necessariamente ocorre dentro de um espaço delimitado
e institucionalizado para a sua prática. A escolarização, por sua vez, ocorre dentro de
um ambiente legitimado e concebido para este fim. Nesta direção, infere-se que a
Escola Azevedo Sodré, entre outras escolas da rede municipal de educação da cidade do
Rio de Janeiro, desempenhava um papel de docilização das práticas cotidianas,
conformando-as aos preceitos que a Diretoria de Instrução queria difundir na população.
Esta análise acerca do projeto de escolarização em curso no período focado,
ajuda a entender os motivos que levaram o Patrono do Estabelecimento a promover
atividades de teor cívico dentro da escola. Como político que era, Azevedo Sodré estava
envolvido na promoção da modernidade que se buscava empreender no Rio de Janeiro.
Contudo, não é possível afirmar que esta tenha sido a única razão que explica as suas
ações destinadas à escola. Uma outra possibilidade seria a intenção de deixar uma marca
para a posteridade.
Talvez seja possível, nessa última linha de investigação, dizer que Azevedo
Sodré alcançou o seu objetivo: é lembrado pelas comunidades do Estácio e Tijuca, por
quem tinha especial apreço. Sobre esse aspecto, optei por incluir uma carta endereçada à
diretora da Escola Azevedo Sodré que foi redigida pela filha do patrono da instituição.
O documento aponta para a permanência dos festejos que ansiavam homenagear
Azevedo Sodré. A filha foi visitar o estabelecimento de ensino e se emocionou ao ver
que a memória de seu pai ainda era lembrada. Uma das hipóteses que defendo é a de
que Azevedo Sodré executou a doação dos valores monetários ao colégio com o
objetivo de ser lembrado no futuro.
151
Carta à escola, 6 de setembro de 1975. Acervo da Escola Azevedo Sodré
152
Nesta carta, a filha de Azevedo Sodré agradece à escola pela celebração de uma
cerimônia em homenagem ao seu pai. A data da carta é 6 de setembro de 1975, portanto
apenas dois dias após a data que consta na escritura de doação analisada no capítulo um
para a festividade “Dia do patrono da escola”. Como visto, Azevedo Sodré, em 1925,
havia condicionado a doação que fez à prefeitura ao festejo de datas que julgava
importantes. Entre elas, no dia 4 de setembro, devia haver uma cerimônia em que sua
memória fosse cultivada. Com base nas informações que a carta permite analisar, inferese que a escola atendeu ao apelo do seu patrono.
Consta no texto um trecho em que se pode indiciar o apreço de Azevedo Sodré
pelas cerimônias, cânticos e hinos: “Exatamente como seria do agrado de meu pai, com
hinos e cânticos folclóricos tão bem ensaiados” (DE ANDRADE, 1975). Há um
especial agradecimento à professora de música, que cuidou dos ensaios. Assim, a
própria preparação das cerimônias constituía uma atividade pedagógica, que requeria
atenção e comprometimento. A carta também sugere que os alunos da escola deviam
confeccionar trabalhos sobre Azevedo Sodré, o que mais uma vez aponta para a
permanência de atividades letivas em que o patrono do colégio era celebrado. Consta,
por fim, que um dos alunos desejava tornar-se médico. Talvez, e aqui empreendo uma
livre interpretação, o aluno tenha se mirado no exemplo de Azevedo Sodré, cuja
memória foi ensinado a admirar na escola que frequentava.
Em seguida, por meio de uma notícia de jornal, apresenta-se outro indício de que
a memória de Azevedo Sodré tem sido celebrada no colégio, como era de seu desejo.
Consta na escritura de doação analisada no capítulo um, que ele ficou agradecido pela
escola ter recebido o seu nome. Por meio da doação que promoveu, estimulou
atividades que fomentassem não apenas o civilismo, mas também o culto à sua própria
imagem. A partir daí, infere-se que tinha o objetivo de prestigiar o colégio. Assim, a
instituição se encarregaria de facilitar a lembrança de seu nome através das gerações.
Uma das formas que encontrei de verificar se o seu projeto teve êxito, e se a sua
memória foi cultivada por aquela comunidade, deu-se através da análise de uma
cerimônia ocorrida no início da década de 1980. Apresento-a a seguir. Esta visão nos
permite analisar alguns aspectos da Escola Municipal Azevedo Sodré. No dia
21/11/1982 Antonio Batalha publica na imprensa uma fotografia em que alunos da
Escola Azevedo Sodré aparecem em atividade pedagógica com formato de feira livre
orientada pelos professores.
153
Jornal do Brasil, 21/11/1982, fotógrafo: Antonio Batalha
Lê-se na reportagem que os alunos conseguiram arrecadar duzentos mil
cruzeiros nesta atividade, que sucedeu da seguinte forma: “A feira foi armada na Rua
Barão de Ubá, em frente ao colégio, onde os feirantes, - entre 7 e 10 anos de idade com uniforme da escola venderam (...) produtos hortifrutigranjeiros, roupas usadas,
plantas e artesanato que fizeram durante todo o ano.” (Jornal do Brasil, 21/11/1982) A
notícia conta que enquanto prefeito do Distrito Federal, Azevedo Sodré, como
apresentado na biografia do capítulo um, foi o criador do conceito das feiras livres no
Rio de Janeiro. Ao relembrar o feito de Sodré, os alunos do colégio prestaram
homenagem ao idealizador da instituição. O texto fala que a feira foi realizada para
comemorar o “aniversário do patrono do colégio, que instituiu as feiras livres em 1916”
(Jornal do Brasil, 21/11/1982). Esta notícia ajuda a indiciar o possível “êxito” alcançado
por Sodré, aponta que a escola se tornou um espaço em que se preserva a sua memória.
154
Convém, para efeito do estudo empreendido sobre a memória que se construiu a
respeito de Azevedo Sodré na escola que recebeu o seu nome, salientar que a categoria
de “memória”, longe de constituir um objeto fixo, tem sido palco de diferentes
interpretações74 por parte de historiadores. Pierre Nora (1993), por exemplo, procura
distinguir história e memória. A memória, para ele, seria parte da vida e dos
entendimentos cotidianos que construímos a seu respeito: “a memória se enraíza no
concreto” (NORA, 1993, p. 9), ou: “a memória é um fenômeno sempre atual, um elo
vivido no eterno presente” (NORA, 1993, p. 9). Por outro lado, a história exigiria uma
atenção cuidadosa, uma “operação intelectual” (NORA, 1993, p. 9), pois está ao lado da
representação que se constrói sobre o passado. No caso da presente pesquisa não optouse pela seleção de um conceito específico em detrimento de outro, preferiu-se trabalhar
com diferentes representações que se construíram sobre a memória do patrono da escola
no espaço que procurou promover.
Infere-se, portanto, que uma memória, composta por diferentes vieses, entre
outras que seriam possíveis construir, se estabeleceu no colégio em relação ao seu
patrono. Ela indicia que as intenções de Azevedo Sodré, ao promover a escola, tiveram
êxito. Uma outra forma de analisar esta questão se dá através das informações acerca da
qualidade do ensino ali disponibilizado para os alunos. Importa perscrutar estes dados,
na medida que Azevedo Sodré tinha o objetivo de que a escola que carregaria seu nome
fosse de boa qualidade. De nada adiantaria emprestar o seu nome a um colégio, se a
imagem representada fosse de um espaço desqualificado. Neste ponto, seria equivalente
a dizer que a escola funcionaria como “propaganda negativa” do projeto desempenhado
pelo patrono.
No que diz respeito à memória produzida sobre Azevedo Sodré, foi pertinente
trazer informações de décadas posteriores ao período de fundação da escola, pois a
intenção de ser lembrado na posteridade só se realiza transcorridas algumas décadas.
Por essa razão, a notícia de celebração do aniversário de Azevedo Sodré, datada dos
anos 1980, foi discutida. No caso seguinte, aquele que verifica a qualidade do ensino
administrado na instituição, optei por realçar um período adjacente à fundação do
colégio, posto que se relacione mais diretamente com as doações financeiras
74
Para outros autores que repercutem a questão da problemática em torno da memória, ver: RICOEUR,
(2007) e SEIXAS (2004). Marc Bloch (2001), estudou o conceito de “rastro”, o que contribui com os
estudos sobre a memória.
155
promovidas por ele, que objetivavam promover um ensino eficiente. Não é intenção
desta pesquisa, portanto, pesquisar informações sobre o ensino, e a qualidade deste, em
períodos muito posteriores à década de 1920.
No relatório de 1926, escrito por Carneiro Leão, há referências à escola Azevedo
Sodré. O texto fala que o inspetor escolar Paulo Maranhão, se incumbiu de visitar
diversas escolas, entre elas o colégio foco desta pesquisa, para aplicação de “tests”
pedagógicos, com objetivo de organizar as crianças por “idade mental”. Com base no
resultado destes tests, seria possível reagrupar os alunos em turmas mais homogêneas. O
resultado desta avaliação seria, inclusive, aceito para promoção de alunos ao ano
seguinte. “em 1925 o trabalho se estendeu ainda mais, conseguindo os 7º e 5º distritos
realizar as promoções de fim de ano exclusivamente por tests e durante algumas horas”
(LEÃO, 1926, p. 123). O texto, assim, realça os benefícios dessa forma de a avaliação:
“nesse ano fomos mais adiante, e iniciamos, em março e abril, a preparação de classes
homogêneas” (LEÃO, 1926, p. 123). A tabela que disponibilizo adiante diz respeito aos
testes de aritmética, e ajuda a indiciar em que posição a Escola Azevedo Sodré ficou em
relação a outras escolas do município.
A seguir, disponibiliza-se o questionário aplicado.
156
(LEÃO, 1926, p. 121)
Apresenta-se agora o resultado da aplicação do teste, dividido entre diferentes
colégios. A Escola Azevedo Sodré aparece entre outras escolas do município, o que
ajuda a indiciar, por meio dos resultados obtidos, aspectos sobre o desempenho dos
alunos que frequentavam as suas aulas.
157
(LEÃO, 1926, p. 121)
Com base nessas informações, podemos aproveitar alguns dados. No caso das
crianças de 9 anos de idade, os alunos da escola Azevedo Sodré tiveram um
desempenho próximo da média, tendo acertado duas questões, quando a média ficou em
1,9. Houve, entretanto, escolas como a José Pedro Varela, em que os alunos dessa faixa
etária acertaram 8 questões. Houve fraco desempenho no que diz respeito às crianças de
10 anos. Os alunos da Azevedo Sodré acertaram no máximo 4 questões, quando a
média, entre as outras escolas, estava em 8,6. Este desempenho se modifica quando
analisamos as crianças de 11 anos. Os alunos da Azevedo Sodré acertaram no máximo 8
questões, quando a média ficou em 4,8. No caso dos alunos de 12 e 13 anos, os
resultados da Azevedo Sodré ficaram próximos da média das outras escolas. Nos anos
seguintes, em que se analisam as crianças de 14, 16 e 17 anos, o resultado desta escola
manteve-se sempre abaixo da média dos outros colégios.
158
Não se pode, todavia, considerar que esta tabela promova uma representação do
ensino na Escola Azevedo Sodré. Deve-se considerar, por exemplo, que ela diz respeito
apenas a uma disciplina, entre outras que havia no currículo. Contudo, ainda que não se
objetive compor um quadro geral da qualidade do ensino na referida escola, os gráficos
indiciam, ao menos parcialmente, que o colégio não encontrou destaque entre as outras
instituições do município do Rio de Janeiro. Ficou, numa análise abrangente, dentro do
que se pode chamar de uma média geral entre os colégios. O patrono da escola não teria,
com base no que esta tabela permite indiciar, o seu nome vinculado a um espaço de
excelência. Porém, analisando as mesmas informações de outra forma, pode-se vincular
o seu nome a um colégio inserido no contexto histórico e social da cidade, o que aponta
para um entrecruzamento entre as histórias do homem Azevedo Sodré com a instituição
de ensino que leva o mesmo nome. Ambos foram personagens de seu tempo, tendo
vivido conflitos, êxitos e insucessos, como se pode esperar entre os sujeitos que
percorrem a história.
Neste capítulo abordaram-se diferentes temáticas, que foram desde a utilização
de um artigo de jornal que fala sobre a celebração de festividades na Escola Azevedo
Sodré, até os entrelaçamentos das culturas urbanas com as culturas escolares do ensino
primário que, sob a lógica governamental, foram empregados como dispositivos que
tencionavam incutir e multiplicar determinadas concepções de modernidade para a
capital carioca e sua gente. Desta feita, meus esforços de escrita foram mobilizados
objetivando explicitar que tais concepções de modernidade no período, sobretudo,
gravitavam em torno da associação das preocupações alusivas ao disciplinamento social
com as medidas de remodelação urbana.
As pesquisas sobre das dimensões discutidas, como a qualidade do ensino, as
representações sobre o patrono da escola, ou a análise feita acerca do tempo e do
espaço, ajudaram a compor um estudo mais amplo sobre as culturas escolares em sua
relação com a Escola Azevedo Sodré, o seu entorno e o seu tempo. Com esta ampliação
de foco, permitiu-se que o colégio fosse investigado por diferentes vieses, o que ajudou
a compor uma representação sobre a sua história.
159
Considerações finais
Um texto de qualquer área do conhecimento, mas especialmente da História da
Educação, apresenta dificuldades ao autor no que tange à colocação do “ponto final”.
Reconhece-se a exacerbação deste problema porque, por princípio, a pesquisa não se
conclui; ao passo que o texto já se inicia com a obrigação de ser finalizado (DE
CERTEAU, 1982). No final da década de 1980 Francis Fukoyama escreveu o ensaio
The end of History, em que defendia que o triunfo do liberalismo possibilitaria o final
da argumentação histórica. Esta ideia foi amplamente refutada pela comunidade
internacional de historiadores. Curiosamente, se admitirmos uma microanálise da
trajetória que o levou a escrever sua pesquisa, a própria produção do the end of History
constitui, à sua revelia, uma continuity of History.
Nessa direção, cumpre sublinhar que a presente pesquisa sobre a Escola
Azevedo Sodré poderia, em tese, perdurar indefinidamente. Contudo, para efeito de uma
produção no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação, há que se cumprir
prazos, que se adequar às normas de escrita da ABNT, e explorar um assunto que
contribua com os interesses da comunidade acadêmica que se propõe, neste caso, a
produzir História da Educação no Brasil. Assim, não seria possível escrever, se o autor
o desejasse, uma dissertação em formato de poema, ou produzir uma dissertação cuja
produção demorasse vinte anos. Reconhece-se, portanto, que há que se submeter aos
limites impostos pelo campo. Há que se concluir o texto, ainda que o horizonte alvoreça
infinitamente diante das linhas da escrita. Esta pressão, ao mesmo tempo, constitui uma
prisão e uma liberdade. Prisão porque os prazos e as regras podem, e invariavelmente o
fazem, abater algumas ideias que poderiam ser exploradas na pesquisa. Mas, isto
também constitui um arrebentar dos grilhões. Diante das estruturas que compõem o
campo acadêmico, o pesquisador precisa por fim à sua pesquisa para que novas
pesquisas se iniciem.
Nesse ponto, de início, cabe promover uma retomada do título desta dissertação
para empreender uma análise daquilo que esteve envolvido na sua escolha. Esta reflexão
contribui com um retorno a algumas ideias que foram discutidas ao longo dos três
160
capítulos. “Entre desejos e cânticos: a invenção da Escola Azevedo Sodré na capital
carioca (1922-1928)” foi selecionado como forma de indiciar alguns caminhos
investigativos que foram trilhados no texto. Desta feita, cada palavra aparece de maneira
criteriosa e permite tecer considerações que dialogam com as ênfases que foram
preferidas para esta pesquisa que se encerra. Nesta linha, proponho nos próximos
parágrafos uma explicação de cada elemento que o compõe.
Os “desejos” remetem para as intenções de Azevedo Sodré. Ao longo do texto
da dissertação defendeu-se a ideia de que o patrono da escola tinha certos anseios com a
doação que promoveu: queria que o seu nome fosse lembrado pelas gerações futuras e o
colégio seria uma forma de promover esta memória. Estava agradecido pela
homenagem, como consta nas palavras do tabelião que lavrou a escritura: “penhorado
pela homenagem que a outorgada o rendeu” (TEIXEIRA, 18º ofício, livro 86). Por esta
razão fez a doação ao colégio sob a condição de que este promovesse, anualmente, três
festas específicas. Não cabe, aqui, reeditar uma explicação sobre cada um dos festejos
selecionados por Azevedo Sodré, mas nos interessam os tempos em que desejava ver a
vigência do seu intento: “faz, de hoje para sempre, doação à outorgada” (TEIXEIRA,
18º ofício, livro 86). “Para sempre” é um período muito longo, de modo que alcançar
seus objetivos neste futuro indefinido só poderia ser atingido por meio de um “desejo”
seu. Poucos anos após a doação, Azevedo Sodré faleceu (1929). Com base nas
informações que foram possíveis trazer para esta pesquisa, sugere-se a questão de que
em seus últimos dias, inclusive por ter frequentado as festas promovidas na escola,
estava satisfeito com os resultados alcançados com seu gesto. Seus “desejos” teriam, ao
menos no seu campo de percepção, sido atendidos.
Os “cânticos” que aparecem na primeira parte do título referem-se aos festejos
que eram promovidos na Escola Azevedo Sodré, e também aos momentos de
“Formatura e Cânticos” (Programas para o Ensino Primário Carioca, 1926 apud SILVA,
2008, p. 121-23), que ocorriam todos os dias na hora da entrada dos alunos no colégio.
Um hino foi composto em homenagem ao patrono da escola, o que remete para a ideia
de que, por meio do exemplo de Azevedo Sodré, os alunos deveriam se mirar nos heróis
da nação e, assim, representar um ideal de comportamento a ser seguido. Esta
construção de novos hábitos, ensinados à população, ajudou a compor um projeto de
modernidade que se esperava empreender na capital carioca. Por meio das informações
apresentadas nesta pesquisa, indicio que as músicas, os hinos e as canções faziam parte
161
das culturas que foram inventadas na Escola Azevedo Sodré. Os cânticos, nesta direção,
eram executados dentro de uma lógica que visava promover, por meio da música, novas
maneiras de se comportar junto aos alunos. Estes, por sua vez, se encarregariam de
difundir, estrategicamente, esta concepção de cidade escolarizada para as suas famílias.
Em seguida aparece a palavra “invenção”, para contribuir com as análises sobre
o período de fundação da Escola Azevedo Sodré. A categoria de “invenção” tem sido
utilizada por autores que buscam desnaturalizar o seu objeto de pesquisa, afastando as
premissas das certezas. Algo que foi inventado, em outras palavras, foi construído de tal
forma a funcionar diante das teias de operações que constituem a História, portanto não
é natural, não foi sempre daquele jeito, não tem um início fixo e uma tendência
evolutiva.
Como foi citado no texto desta dissertação, Hobsbawn (1984) escreveu A
Invenção das Tradições, De Certeau (1998), por sua vez, escreveu A Invenção do
Cotidiano. No caso do historiador inglês apresenta-se uma ideia de que a realeza
britânica produziu os rituais que a consolidam na sua posição monárquica. Os ritos que
representam a coroa, longe de serem sagrados, permanentes, imutáveis, como a própria
rainha precisa fazer crer, foram inventados e constituídos por uma rede de relações de
poder que as desenharam com aparência de “oficiais”. De Certeau, ao falar sobre o
cotidiano, remete para as práticas inventivas que os sujeitos precisam operar para
tornarem suas vidas mais toleráveis frente aos constrangimentos de diversas ordens que,
de algum modo, se encontram presentes no viver social. Nesta direção, no que tange à
Escola Azevedo Sodré, enfatiza-se uma perspectiva que a entende como fruto das
relações de seu tempo e seu espaço. Parece, assim, menos interessante buscar definições
rígidas para o colégio, ou pontos culminantes de sua trajetória, como o início ou o final.
Os usos inventivos que foram articulados para operarem entre seus muros pareceram a
esta pesquisa muito mais relevantes.
Por força das disputas que ocorrem no campo científico, qualquer pesquisa
precisa se submeter a certas preocupações da academia em que se insere. Não seria,
assim, possível falar sobre “qualquer coisa”, posto que certas necessidades de
delimitações se impõem aos projetos. Neste sentido, aparecem no título os recortes
espaciais e temporais que serviram de balizas para a elaboração do estudo. A invenção
da Escola Azevedo Sodré, portanto, teria ocorrido “na capital carioca”, entre os anos
162
1922 e 1928. Estas chaves de entrada, porém, foram pensadas muito mais como forma
de situar o leitor sobre o que esperar do texto, do que como “caixas rígidas” em que a
pesquisa se insere. De fato, a dissertação preocupa-se majoritariamente em desenvolver
assuntos acerca da capital do Brasil à época de fundação da escola, mas isso não quer
dizer que o texto não opere com outras articulações. Ao mesmo tempo, o recorte
temporal entre os anos 1922 e 1928 refere-se, primeiramente, ao período em que
Antonio Carneiro Leão esteve à frente da DGIP, que tem início em 1922. O ano de 1928
foi selecionado, principalmente, por causa do Decreto 2940, de 29 de novembro de
1928. O texto foi assinado por Fernando de Azevedo e registra algumas prescrições que
deviam ser seguidas logo nos primeiros anos da Escola Azevedo Sodré. Mais uma vez,
isso não quer dizer que todos os assuntos da pesquisa se concentraram neste período.
Não foi, definitivamente, esta a nossa intenção. A própria utilização do termo
“invenção” já se distancia de um recorte temporal rígido e imutável. Nossa preocupação
caminhou na direção de articular o período selecionado com as outras trajetórias
históricas que ajudaram a moldar as representações que foram construídas na década de
1920.
Foi possível abarcar com o texto, nesta direção, algumas ideias intercruzadas
sobre a história da Escola Azevedo Sodré com reflexões que basearam-se em ideias de
outros autores do campo. Destaco, neste específico, a comparação que foi empreendida
entre o Instituto de Educação, pensado estrategicamente para funcionar como local de
ensino, e Escola Azevedo Sodré, adaptado para tal propósito. Diana Vidal (2001)
iluminou os fazeres arquitetônicos que estiveram presentes na construção do Instituto:
corredores largos, iluminação adequada, ventilação. Ao passo que esta dissertação
procurou dialogar com a “inadequação” da escola estudada. Um olhar sobre estes
diferentes espaços, ambos educativos, possibilitou indiciar outras apropriações, e
diferentes usos citadinos, das instituições de ensino como estratégia de difusão de laços
de pertencimento ao solo carioca.
Em relação aos tempos educativos, procurou-se investigar os entrelaçamentos
que ocorrem entre as preocupações presentes, por exemplo, na legislação do período, e
sua aplicação no colégio estudado. Neste sentido a dissertação discorreu sobre as grades
diárias das disciplinas, as matérias que eram ofertadas, os turnos da atividade escolar.
Propôs-se que por meio da formação dos alunos, no início da atividade discente, em que
deviam cantar hinos e celebrar a bandeira, os tempos sociais separar-se-iam dos tempos
163
educativos. Esta separação era importante para “inventar” um rito que inculcasse nas
crianças a necessidade de respeito ao colégio. Por outro lado, estes mesmos ritos
marcariam um entendimento de que as vivências urbanas, afeitas à indolência e ao não
higiênico, deveriam ser “deixadas do lado de fora” da escola.
Isso posto, acredito que seja este o momento, também, de discorrer sobre os
limites da presente dissertação. Toda pesquisa concluída tem limites, os “não ditos”,
ainda que muitos deles tenham sido “pretendidos”, quando da formulação do projeto.
Falar sobre eles não é tarefa fácil, pois castiga o algo de narcisista que ocorre em todos
os pesquisadores. Importante é, entretanto, enfrentar a questão.
No que condiz ao estudo sobre a Escola Azevedo Sodré aqui apresentado, talvez
tenha faltado um maior aprofundamento em questões sobre a vida das pessoas que
percorreram os espaços entre os muros daquela escola. Essa iniciativa foi tentada,
quando, por exemplo, iluminou-se um artigo de jornal em que professores da rede
queixavam-se do excesso de trabalho; ou quando analisou-se uma carta do médico
Azevedo Sodré endereçada ao amigo Adolpho Lutz; ou, ainda, quando fotografias do
prédio escolar foram trazidas, em que se buscava refletir sobre a “inadequação” do
edifício para a prática escolar apregoada pelos discursos dos “renovadores”. Todavia,
creio, os usos inventivos dos espaços pelos alunos, professores, poderiam ter sido mais
explorados. Houve, em certas ocasiões, excessiva ênfase em documentos oficiais da
escola, ou do governo, para empreender as análises. Justifico: o acervo do colégio não
continha muito material que remontasse aos anos de sua inauguração. O caminho
selecionado para enfrentar este desafio remete às preocupações que habitam a obra de
Robert Darnton (2011). Neste ponto, entendo, reside um dos méritos da presente
dissertação: se não foi possível explorar o que inicialmente se pretendia, por que não
iluminar outros assuntos quando estes são descobertos, ou construídos, durante o
processo investigativo? Darnton, à sua maneira, refletiu sobre esta questão. Os contos
populares vinham sendo interpretados de modo, no seu entendimento, equivocado:
“Fromm e vários outros exegetas psicanalíticos não se preocuparam com as
transformações do texto” (Darnton, 2011, p. 25). Nesta direção, entende-se, os
documentos não devem ser tratados de forma superficial, em outras palavras, não devese empreender um estudo objetivo sobre o seu conteúdo. Deve-se, ao contrário,
promover um questionamento das relações de força que estiveram presentes quando da
produção, ou invenção, dos textos, das leis, das cartas ou jornais (no seu caso, os contos
164
populares). Sobre a forma, no seu entendimento, equivocada, como os contos populares
vinham sendo tradicionalmente interpretados por pesquisadores que se preocuparam em
analisá-los, Darnton afirma o seguinte:
Aborda-os, por assim dizer, horizontalizados, como pacientes num divã,
numa contemporaneidade atemporal. Não questiona suas origens, nem se
preocupa com os outros significados que possam ter tido em outros
contextos, porque sabe como a alma funciona e como sempre funcionou.
(Darnton, 2011, p. 26)
Em seguida, o próprio Darnton sugere uma alternativa a este viés investigativo.
Propõe uma estratégia diferente de interpretação dos contos populares, que, no nosso
caso, procurou-se aplicar em relação aos documentos levantados para a pesquisa:
Na verdade, no entanto, os contos populares são documentos históricos.
Surgiram ao longo de séculos e sofreram diferentes transformações, em
diferentes tradições culturais. Longe de expressarem as imutáveis operações
do ser interno do homem, sugerem que as próprias mentalidades mudaram.
(Darnton, 2011, p. 26)
Nesta direção, no caso do estudo empreendido sobre a Escola Azevedo Sodré,
procurou-se investigar os documentos oficiais por um viés diferente dos usos objetivos
de seus significados. Darnton fala no trecho em destaque sobre “significados que
possam ter tido em outros contextos”. Esta preocupação é muito importante, e
acompanhou as análises empreendidas na dissertação que se encerra. Acompanha-se,
por exemplo, os significados atribuídos à “modernidade” nos anos 1920. Ao contrário
de tomar a categoria como premissa, fez-se mister a preocupação acerca do contexto de
construção de determinada modalidade de modernidade no período focado. Defende-se
a ideia de que a cidade do Rio de Janeiro vinha passando, desde as reformas
empreendidas pelo prefeito Pereira Passos, por um profundo projeto de reconfiguração
urbana, em que não apenas a cidade deveria ser “modernizada”, mas também os hábitos
e os comportamentos da população, para que a capital pudesse representar uma
verdadeira façanha republicana. O convite de Darnton em iluminar vestígios estranhos à
historiografia tradicional (os contos populares, na sua pesquisa), considerando-os como
documentos históricos, também foi aceito por esta dissertação: um hino chamado
“Azevedo Sodré”, três festas que deviam ser celebradas, recortes de jornais e revistas
foram, como proposto por Darnton (2011) e Le Goff (1990), problematizados numa
tentativa de interpretá-los levando-se em conta um questionamento sobre os
165
entrelaçamentos, as relações de poder, as invenções, que estiveram presentes nos
momentos de sua emergência.
A autoria da presente dissertação, se tomada de forma objetiva, poderia ser lida
logo na primeira página, abaixo do título. Não nos cabe, aqui, negar o texto como
invenção do sujeito. Mas, nos é possível problematizar esta “função autor”. Michel
Foucault (2010), em discurso proferido na aula inaugural do Collège de France em 02
de dezembro de 1970, começa questionando a própria natureza autoral da palestra que
se iniciava: “em vez de tomar a palavra, gostaria de estar a sua mercê, e de ser levado
muito para lá de todo começo possível” (FOUCAULT, 2010, p. 1). Nesta direção,
ocorre a diluição da autoria, como que se devêssemos levar em conta as relações de
poder que interferem e acabam por produzir novos discursos que não têm um lugar fixo
no tempo. No caso da presente pesquisa, não quero, com isso, considerar rigidamente
que as minhas ideias foram produto de superestruturas alheias à minha vontade.
Também não era essa a intenção de Foucault. Procura-se, apenas, tomar a concepção de
autoria de forma fluída, como a metáfora do rio de que se fala na Introdução. Assim,
reconhece-se que os discursos inventados para produzir o texto contaram com a
colaboração de todos os outros discursos que atravessaram a pesquisa. E que não
cessarão de atravessá-la após o seu término. Foucault fala de uma inquietação que sente,
e que deve acometer outros pesquisadores em também outros lugares:
Inquietação face àquilo que o discurso é na sua realidade material de coisa
pronunciada ou escrita; inquietação face a essa existência transitória
destinada sem dúvida a apagar-se, mas segundo uma duração que não nos
pertence; inquietação por sentir nessa atividade quotidiana e banal porém,
poderes e perigos que sequer adivinhamos; inquietação por suspeitarmos das
lutas, das vitórias, das feridas, das dominações, das servidões que
atravessam tantas palavras em cujo uso há muito se reduziram as suas
rugosidades. (FOUCAULT, 2010, p. 2)
Esta inquietação se exacerba diante dos constrangimentos que, como agora,
encerram a pesquisa. Nas palavras do pensador francês, ocorrem inúmeros
atravessamentos nos discursos, e os que foram produzidos para legitimar esta pesquisa
sobre a Escola Azevedo Sodré não são exceções. Houve lutas, feridas, inspirações que
vieram de fora e construíram, em rede, o texto que agora alcança a sua foz. Por outro
lado, cabe sinalizar, outros caminhos se abrem à porta. Novas pesquisas surgirão, outras
serão esquecidas. As vindouras pesquisas, em programa de doutorado em História da
Educação, trarão marcas, cicatrizes, que foram produzidas no curso desta dissertação.
166
Também, por outro lado, apagamentos poderão ser levantados, numa (re)invenção
permanente da pesquisa.
Foucault tem uma característica de escrita que lhe é bastante peculiar: para
estimular o debate, com alguma frequência, emprega a estratégia escriturária de inventar
uma beligerância contrária ao seu discurso para reforçar aquilo que anseia defender.
Diga-se de passagem, o faz com maestria. Poderia haver constrangimentos diante da
‘sua” proposta de relativização da autoria. Os que se sentiram órfãos do seu texto
quereriam seu reconhecimento de volta:
Mas você fala do autor, que a crítica reinventa quando já é tarde, quando a
morte chegou e já não resta nada senão uma massa emaranhada de coisas
ininteligíveis; é necessário por um pouco de ordem em tudo isso, imaginar
um projeto, uma coerência, uma temática que é procurada na consciência ou
na vida de um autor que, com efeito, é talvez um tanto fictício. Mas isso não
impede que ele não tenha existido, o autor real, esse homem que irrompe
pelo meio de todas as palavras usadas, que trazem em si o seu gênio ou a
sua desordem. (FOUCAULT, 2010, p. 8)
Michel Foucault responde à crítica afirmando que seria “absurdo, claro, negar a
existência do indivíduo que escreve e que inventa” (FOUCAULT, 2010, p. 8). Afirma
que ao lado da produção, e não contra ela, ocorrem atravessamentos que pulverizam o
excessivo peso que a historiografia tradicional, durante muito tempo, conferiu aos
autores das suas obras monográficas. No caso da pesquisa que realizei, cabe uma
indagação sobre a função “algoz”. Quem terá a coragem de chamar para si a
responsabilidade de afirmar: “Este é o fim!”? É o autor que coloca o “ponto final”, mas
ao mesmo tempo os prazos, as regulações, as orientações, as discussões, as disciplinas
cursadas influenciam nesta decisão. Para efeito desta pesquisa, acredita-se que um
pouco dos dois argumentos sejam válidos. Uma “terceira margem” emerge no rio, como
proposto por Albuquerque (2007).
Nesse quadro, parece pertinente apontar para algumas pesquisas que podem vir a
ser elaboradas com base nas ideias que surgiram através da discussão em torno da
Escola Azevedo Sodré. O eixo temático com o qual este trabalho se identifica é a
História das Instituições Escolares no Brasil. O mérito que se alcançou foi o de trazer
para o debate historiográfico um colégio de menores proporções, menor apelo político
do que outros que já foram abordados em diversas pesquisas, como o Instituto de
Educação e o Colégio Pedro II. As escolas miúdas, os colégios do cotidiano, não tinham
167
a visibilidade das grandes instituições de ensino da cidade, mas cumpriram (ou
deveriam cumprir) um papel importante na inculcação de padrões de comportamento
nos sujeitos numa tentativa de se enfatizar determinada modalidade de modernidade nos
anos 1920.
Nessa tentativa de se enfatizar determinada modalidade de modernidade na
capital, por diversas ocasiões, os exemplos de projetos de escolarização advindos do
exterior foram destacados. Especialmente no que tange à obrigatoriedade escolar, o caso
alemão era citado. No período compreendido entre os anos 1919 até 1933 a Alemanha
era chamada de República de Weimar. Vivia-se uma época de ascensão de um regime
fascista, que se utilizou das escolas germânicas para difundir na população algumas
ideias que, mais tarde, foram adotadas pelo nazismo: supremacia da raça ariana,
revanchismo contra os países que impuseram à unser land uma doída derrota na
Primeira Guerra Mundial e repulsão ao comunismo soviético. No caso brasileiro, os
anos 1920 também experimentaram, como esta dissertação procurou esboçar, a
utilização de escolas para construir um repertório de comportamentos que, dentre outros
aspectos, passavam pelo interesse em reforçar laços de pertencimentos, vínculos de
nacionalidade, amor ao trabalho pela população carioca.
Perante essas considerações, um possível desdobramento para esta pesquisa que
se encerra seria aquele interessado em analisar duas escolas, uma no Brasil e outra na
Alemanha, procurando demonstrar como a escolarização do social desempenharia um
papel importante frente às necessidades, possibilidades e exigências sociais dos dois
países. Nessa linha, aproximações e distanciamentos seriam perscrutados.
O estudo sobre a escola alemã contribuiria com reflexões acerca das estratégias
de escolarização (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001) empreendidas em solo
germânico para legitimar, à sua maneira, uma concepção de modernidade específica. A
palavra “neue” (nova) era empregada para promover a experiência republicana, e as
escolas se encarregaram de disseminar esta preocupação. No que diz respeito à
arquitetura e à estética, no período, as ideias da BAUHAUS encontraram grande
repercussão. Era uma forma de proporcionar uma nova leitura da utilização dos espaços.
Essas propostas encontraram acolhimento nas escolares alemãs (SELLE e JUTTA,
1981). Cunhou-se a expressão Bauhaus, schule der moderne, o que indicia aspectos
sobre aquela concepção de modernidade que seriam estudados pela tese de doutorado.
168
Para efeito de uma comparação, em que aproximações, distanciamentos e outras
relações seriam estudadas, iluminar-se-ia uma escola em solo carioca. Tal qual esta
dissertação procurou enfatizar, buscar-se-ia estudar as concepções de modernidade que
estiveram em evidência na década de 1920 no Rio de Janeiro (SILVA, 2009), e como o
colégio se encarregou de promovê-las. Assim, os anos 1920 permaneceriam como foco
da pesquisa, e os diferentes significados atribuídos à modernidade constituiriam rica
fonte de investigação.
Após sugerir-se uma possibilidade de pesquisa que se valha, também, do
percurso que foi trilhado com este trabalho, chegamos, agora, às últimas linhas do texto
da dissertação. Ciente das insuficiências que ocorreram, mas feliz com o que foi
possível alcançar, proponho encerrar com a ideia de que a Escola Azevedo Sodré se
inseriu nas experiências de vida, nas promoções de ideais, nos esquecimentos e
memórias das pessoas que esbarraram com ela em suas trajetórias. Espera-se, assim, que
os silêncios promovidos possam ser futuramente perscrutados, e que nossas ênfases
contribuam com outros estudos que venham a ser realizados.
169
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maio de 1916 a 15 de janeiro de 1917).
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