Anais parte 2 - Portal de Poéticas Orais

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Anais parte 2 - Portal de Poéticas Orais
Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades
20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina.
ISBN: 978-85-7846-101-0
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
Reitora: Profa. Dra. Nádina Aparecida Moreno
Vice-reitora: Prof. Dra. Berenice Quinzani Jordão
Diretora do Centro de Letras e Ciências Humanas: Profa. Dra. Mirian Donat
Chefe do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas:
Profa. Dra. Mariângela Peccioli Galli Joanilho
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários:
Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes
Comissão organizadora do evento:
Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes -PPG Letras/ UEL (coordenador)
Fabiana Francisco Tibério - PPG Letras/UEL
Felipe Grüne Ewald - PPG Letras/UEL
Juliana Franco Alves - PPG Letras/UEL
Marcelo Rodrigues Jardim - PPG Letras/UEL
Profa. Dra. Marta Dantas Silva - PPG Letras/Artes/UEL
Priscilla Lopes da Silva - PPG Letras/UEL
Profa. Dra. Sonia Aparecida Vido Pascolati - PPG Letras/UEL
Profa. Dra. Suely Leite - Letras/UEL
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
S471a
Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades (1. : 2010 : Londrina, PR)
[Anais do] I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais : Vozes, Performances , Sonoridades / Frederico Augusto Garcia
Fernandes...[et al.] (orgs.) – Londrina : UEL, 2011.
775 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7846-101-0
1. Linguagem poética – Congressos. 2. Literatura – História e crítica – Congressos. 3. Crítica literária – Congressos. 4.
Linguística – Congressos. 5. Poesia sonora – História e crítica – Congressos. I. Fernandes, Frederico Augusto Garcia. II. I
Seminário Brasileiro de Poéticas Orais : Vozes, Performances, Sonoridades.
CDU 82-1.09
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos
da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
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À guisa de apresentação...
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas
dimensões, desmontável, reversível, suscetível de
receber modificações constantemente. (Gilles
Deleuze & Félix Guattari)
O “I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances e Sonoridades”
foi realizado entre os dias 20 e 22 de outubro de 2010, nas dependências do Centro de Letras e
Ciências Humanas (CLCH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e teve como
objetivo principal reunir estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, de modo a criar um
ambiente de encontro e debate de ideias entre pesquisadores da poesia oral, com fins à
cooperação e pesquisas futuras. O evento foi realizado pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras (Estudos Literários) da UEL e contou com o apoio financeiro da Fundação Araucária e
dos cursos de Especialização em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da UEL.
As pesquisas em poéticas orais encontram-se pulverizadas em diferentes áreas do
conhecimento. O arco de áreas envolvidas com a oralidade apresenta uma envergadura que
vai das ciências da saúde, passando pela Psicologia, pelos estudos de línguas indígenas e
vernáculas, pela Linguística Aplicada, História, Antropologia, Sociologia, apenas para citar
algumas disciplinas. Além disso, merece destaque nesse encontro, o que é melhor revelado
nessas duas partes dos Anais, projetos envolvendo os estudos literários, com debates em torno
da oralidade e suas relações com o texto literário, gêneros poéticos orais, a sonoridade e o
emprego da voz em textos poéticos vanguardistas e multimidiáticos.
Os estudos de poéticas orais no Brasil são melhor compreendidos numa
cartografia de estudos e objetos. Empregamos o termo “cartografia” não como um tratado
geográfico (espacial) sobre o qual as críticas e os objetos criticados se desenham, mas como a
descrição de um conjunto de diferentes olhares e pensamentos, numa relação de espaço/tempo
determinada. Trata-se de uma metacrítica sobre o ofício de coleta e análise de textos poéticos
orais. Assim, uma cartografia tem a pretensão de colocar o pesquisador da poesia oral frente a
diferentes correntes de pensamento e também provocar o diálogo entre elas. Permite a ele ter
um olhar crítico sobre o seu próprio fazer, de modo a pensar conceitos e formas de
Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades
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relacionamento com seu objeto de pesquisa. Vista nesta perspectiva, uma “cartografia de
poéticas orais” tem como objetivo principal realizar um estudo dos diferentes olhares críticos
em torno da poesia oral e propiciar o debate em torno de ideias. Os dados coletados pelo
projeto Cartografia de Poéticas Orais do Brasil1, no que diz respeito à região Sul, revelam
também uma pluralidade de áreas de conhecimento envolvidas com as poéticas orais. Num
levantamento preliminar de projetos de pesquisa em 19 IES nos estados do Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul, foram detectados projetos em Artes Cênicas, História,
Antropologia, Geografia, Sociologia, Comunicação e uma predominância de projetos na área
de Letras, com ênfase em Literatura Comparada e Teoria Literária. A realização do “I
Seminário Brasileiro de Poéticas Orais” foi ao encontro do projeto “Cartografias...”, trazendo
pesquisadores de diferentes departamentos e áreas do saber, possibilitando o debate e a troca
de conhecimentos em torno das pesquisas em oralidade e sonoridade.
No Brasil, os pesquisadores em poéticas orais, geralmente, encontram porto para a
disseminação e o debate de ideias de suas pesquisas em eventos de Antropologia e História
Oral, nos quais se constituem grupos de trabalho ad hoc que tratam de questões inerentes às
poéticas orais como performance, narrativa oral, tradição, memória, identidade, entre outras.
Cabe destacar, entre este tipo de agremiação, o GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL,
que há mais de uma década vem reunindo pesquisadores da área de Letras e Linguística nos
encontros bienais da ANPOLL e realiza também seu encontro intermediário. A realização do
“I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais” rompeu com o paradigma de grupos de trabalho ad
hoc, situando as poéticas orais na berlinda de um debate no qual os apresentadores de trabalho
podiam interagir com conhecimentos de áreas distintas da sua de origem.
Desse modo, a estrutura do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais foi pensada
em torno de 5 grandes eixos temáticos, nos quais a interdisciplinaridade pudesse afluir:
1
O projeto Cartografia de Poéticas Orais do Brasil foi proposto e é coordenado pelo prof. Dr.
Frederico Augusto Garcia Fernandes. Foi gestado durante 4 anos junto ao GT de Literatura Oral e
Popular da ANPOLL e teve início em 2008. Atualmente o projeto apresenta uma equipe de 16
pesquisadores, envolvendo 11 IES (UEL, Unicamp, UFBA, UNEB, UFGD, UFMT, CEFET/MT,
UFPA, UEBA, Unipampa, UFRGS). A respeito do projeto junto ao GT de Literatura Oral e Popular,
ver o sítio: http://www.anpoll.org.br/site/gts/relatorios/GTLiteraturaOralPopularRelatorio20062008.pdf
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a) Questões de Oralidade e Educação
Ementa: emprego do texto poético oral como um instrumental metodológico na
educação.
b) Oralidade e Literatura
Ementa: problemas da representação da oralidade em textos literários e a presença
da voz de narradores/poetas oriundos de uma cultura oral em obras escritas.
c) Mídia e Oralidade
Ementa: estudos sobre os diferentes suportes empregados na disseminação do
texto poético oral, questões inerentes a: transcrição, transcriação, tradução e edição.
d) Performance e Poesia Oral
Ementa:
abordagem
e
análise
de
diferentes
expressões
performáticas,
vanguardistas e populares, em que circulam o texto poético oral.
e) Abordagens Interdisciplinares:
Ementa: pesquisas oriundas de diversas áreas do conhecimento, de modo a
evidenciar trabalhos cuja preocupação principal não é o texto de circulação poética oral, mas
cuja abordagem e análise tornam-se necessárias.
Tais categorias são amplas e flexíveis, sendo que a proposta dos eixos temáticos
teve por objetivo superar algumas dicotomias como “erudito x popular”, “folclórico x
canônico”, “escrito x oral”, comumente empregadas ao texto poético oral. Dessa forma,
pesquisadores de várias áreas do conhecimento encontraram-se envolvidos durante as sessões
de comunicação e as mesas-redondas, o que possibilitou o confronto e o cotejo de enfoques
teóricos e de objetos, abrindo espaço para as contribuições que uma área de conhecimento
pode dar a outra. Aí reside a diferença dessa proposta de evento, cuja contribuição principal
foi a de agregar pesquisadores de diferentes campos do saber, ampliando o escopo de
pesquisas em poéticas orais e de promover o diálogo multidisciplinar em torno de textos
poéticos orais.
Estes Anais reúnem parcela dos trabalhos apresentados durante o evento.
Divididos em duas partes, de modo a facilitar seu acesso e download, eles apresentam um
amplo panorama cartográfico de como os estudos em poéticas orais podem ser pensados no
País. O leitor encontrará em tela artigos que variam de temas como a oralidade na literatura
brasileira, passando por capoeira, rap, teatro, ensino de literatura, literatura grega clássica,
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francesa, infantil, a poética indígena, a poética de aboios e de rezadeiras, polipoesia, entre
outros.
Esperamos que a grande profusão dos trabalhos aqui apresentados oxigene ainda
mais o diálogo entre os pesquisadores e que as pesquisas configurem-se como uma porta de
entrada para que conheçamos a poética das vozes de muitos brasileiros ainda distantes dos
bancos escolares.
Londrina, 17 de julho de 2011.
Os organizadores
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Índice
Parte 1 – Acessar pelo outro arquivo
Elefante de Francisco Alvim: poética do improviso?
Adriano de Souza
1
A representação do demônio na literatura popular
Amanda Crispim Ferreira e Raimunda de Brito Batista
13
A palavra como impulso do gesto: reflexões sobre o teatro de Joaquim Cardozo
Ana Carolina Paiva
32
Ao som do repente: a poética do improviso
Andréa Betânia da Silva
50
Tradição, história e poética no samba de roda baiano
Ari Lima
63
Causos e assombrações na coleção Lua Cheia: uma análise do distanciamento do
narrador oral
Carina Bertozzi de Lima
70
Capoeira Angola: versos, veredas e vadiação
Carla Alves de Carvalho Yahn
79
Sertão de linguagem: Rosa, Mallarmé, Heidegger
Cleia da Rocha Sumiya e José Sérgio Custódio
94
O Mito de Sísifo no poema “Desastre”, de Cesário Verde
Cristian Pagoto
108
Catatau: vozes do cogito em performance
Dalva de Souza Lobo
122
Da oralidade enquanto procedimento de organização discursiva
Dante Henrique Mantovani
134
Expressões idiomáticas, gírias, e discussão da história nacional em Rasga Coração, de
Oduvaldo Vianna Filho
Éwerton Silva de Oliveira
157
O discurso poético de Heráclito: memória e oralidade
Felipe Augusto Vicari de Carli e Roosevelt Araújo da Rocha Júnior
174
O espetáculo da violência no conto “Júri”, de Luiz Vilela
Francielle Aparecida Miquilini de Arcega e Moacir Dalla Palma
189
A poética da oralidade e a performance do leitor
Gláucia Helena Braz
204
Mulher e oralidade: as possíveis marcas do discurso patriarcal na canção Doidinha de
seu Jorge
Guilian Scorsim Omura, Jullyana Araujo Lopes e Moacir Dalla Palma
220
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viii
O prego – análise de um poema para crianças feito canção
Helena Ester Munari Nicolau Loureiro
235
A poética do sarau medieval: liturgia e semiose
Jander Antônio Sá de Araújo
249
A saúde pela palavra vocalizada: performances de rezadeiras da Paraíba
João Irineu de França Neto
253
Oralidade e educação. Poéticas orais em sala de aula: relatos e retratos
Josebel Akel Fares
264
A modernidade no “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade
Kayan Gusmão e Cristian Pagoto
280
O caipira e sua música
Laurindo Stefanelli
295
O universo configurado pela poesia do cancioneiro popular gaúcho: o homem, a 306
mulher, o amor, suas relações e pontos de vista de um sobre o outro
Lisana Bertussi
Oralidade e performance na obra de Klévisson Viana
Lívia Petry Jahn
316
Ricardo Azevedo: folclore ou “literatura oral”?
Luciane dos Santos
329
Performances da literatura de cordel no espaço da migração: uma peleja teórica entre J. 344
Barros e Maxado Nordestino
Luciany Aparecida Alves Santos
Valère Novarina e o uso performativo da linguagem na dramaturgia contemporânea
Marcelo Bourscheid
364
Parte 2
Cora Coralina, um caso de oralidade
Márcia Batista de Oliveira
374
Entre o oral e o escrito: a criação de uma oralitura
Margarete Nascimento dos Santos
393
A voz em sua pluralidade interna e externa
Maria Auxiliadora Cunha Grossi
407
Um estudo de propostas de leitura de poesia em livros didáticos
Maria de Lourdes Bacicheti Gonçalves
428
Aboio: poética de um canto de trabalho
Maria Laura de Albuquerque Maurício
447
O influxo árabe no português brasileiro derivado do contato de línguas: a herança léxica 458
dos escravos africanos e dos imigrantes libaneses
Maria Youssef Abreu
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ix
Ritmo e poesia em performance: uma análise das relações entre texto e música no RAP 480
dos Racionais Mc’s
Marília Gessa
“A voz é a pessoa”: performance de dona Rita na Lapinha Sagrado Coração de Jesus
Marinaldo José da Silva
501
Agamben e a Tucandeira: o contemporâneo em um canto arcaico dos índios SateréMawé
Mário Geraldo da Fonseca
513
Explorando a contação de mitos, causos e histórias tradicionais do norte do Paraná no
ensino de história: o recurso à oralidade como elemento de análise
Mario Junior Alves Polo
526
As narrativas urbanas e a internet: por uma poética da oralidade relacionada às novas
tecnologias
Mauren Pavão Przybylski
541
Narrativa, tradição e experiência: análise de aspectos da literatura
tradicional/oral/popular em A viagem do elefante, de José Saramago
Max Alexandre de Paula Gonçalves
563
Experimentalismo e (não) oralidade como representação da violência em O paraíso é
bem bacana
Moacir Dalla Palma
575
Representações de luta: a retratação do homem sertanejo e de sua vida na literatura de
cordel e no filme Vidas secas
Paulo Estevão Mortati Fuzinelli
591
Representações identitárias em cantigas de roda
Rafael Rodrigues da Silva e Renata Fonseca Monteiro
607
O narrador e o cantador: seus aspectos e papéis referentes à Literatura de Cordel
Raphaela Cristina Maximiano Pereira
619
A coita que se conta/canta (vozes da ausência)
Renata Farias de Felippe
635
Memória e testemunho: a maldição de ter vivido em “Dama da noite”, de Caio
Fernando Abreu
Ricardo Augusto de Lima
643
Valor estético e ruptura na linguagem de Augusto dos Anjos
Rogério Caetano de Almeida
657
Ogum: uma performance híbrida nos terreiros de umbanda
Roncalli Dantas Pinheiro
666
Poesia grega arcaica: oralidade e performance
Roosevelt Rocha
673
Acentuação corporal da palavra
683
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x
Sandra Parra Furlanete
Oralidade e vocalidade: diferentes possibilidades do conceito de voz na poesia
contemporânea de língua inglesa
Sílvia Regina Gomes Miho
688
Poética da voz: palavra e performance na cantoria de viola
Simone Oliveira de Castro
705
Polipoesia e recuperação da performance da voz
Vinícius Silva de Lima
722
O umbigo de Adão: o olhar crítico de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) em
conferências
Vitor Celso Salvador
733
Arte e loucura: Fernando Pessoa(s)?
Vivian Karina da Silva
751
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CORA CORALINA, UM CASO DE ORALIDADE
Márcia Batista de Oliveira2
Cora Coralina, em sua escritura, traz um passado em que se é possível adentrar
uma realidade diversa. A oralidade é a tônica de sua obra: O primeiro livro lançado pela
autora, aos 70 anos – “no tarde da vida”, diz ela – é intitulado Meu Livro de Cordel em que
ela mostra por meio de versos vigorosos o cerne de sua poesia e é com esse mesmo vigor que
ela realiza a abertura de sua primeira obra:
Meu Livro de Cordel
Pelo amor que tenho a todas as estórias
e poesias de Cordel, que este livro assim o seja,
assim o quero numa ligação
profunda e obstinada com todos os anônimos
menestréis nordestinos, povo da
minha casta, meus irmãos do nordeste
rude, de onde um dia veio meu Pai para
que eu nascesse e tivesse vida. (CORALINA, 1987, p.1)
Essa apresentação lírica já infere a tonalidade e o compromisso de sua obra com
os simples, assim a fala do povo é colocada no interior da obra de modo natural, também são
naturais as expressões utilizadas pela autora, como quem demonstra que pertence a região e
está impregnada dos costumes de sua gente.
Meti o peito em Goiás
E canto como ninguém.
Canto as pedras canto as águas,
As lavadeiras, também
(...) Cantei a casinha velha
De velha pobrezinha.
Cantei a colcha furada
Estendida no lagedo;
Muito sentida,
Pedi remendos pra ela.
Cantei a mulher da vida
2
Coordenadora do Projeto Palavras Andantes SME Londrina
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Conformando a vida dela. (CORALINA, 1987, p.11)
Desse modo, seus textos são portas para um universo de pessoas simples
marcadas pelo sofrimento e oprimidas pelas rígidas normas sociais, vivendo numa sociedade
que é o microcosmo do Brasil Pós República, aspiram à modernidade, mas está presa pelos
laços da tradição. Como nesse poema que a poeta reflete a respeito do apego das pessoas às
suas convicções:
Há um determinismo constrangendo as criaturas.
Minha gente do Estado de Goiás, muitos poderiam estar,
senão ricos, remediados
As mudanças para Goiânia, suas ofertas, lotes, casas e chácaras,
terrenos baratos em sua volta. Um decreto do Governador
Oferecendo lotes na “nova” a todos os proprietários da “velha”
Que requeressem no sentido de compensação generosa,
consequente a desvalorização da velha Capital.
E prossegue demonstrando certa perplexidade:
(...) Qualquer um podia pagar. Rejeitara esses, os ladinos.
Não acreditavam, tinham medo de perder suas vinte pratas.
Cá ficaram no “ora vejam”.
Os destemidos e crédulos avançaram e estão na crista da valorização
Imobiliária (...) (CORALINA, 1987, p.179)
As expressões utilizadas por Cora Coralina chegam à obra com traços de
oralidade, como a expressão “ladina” (que indica esperteza) “remediada” (que indica uma
situação financeira definida), remetem a uma tradição oral, ou mesmo um texto de caráter
popular, e na tecitura das histórias e dos poemas, observa-se a falar popular. Desse modo, a
poeta trata de assuntos relativos à sua terra não como alguém que reporta um fato, mas como
alguém que discute, interfere e revive tal realidade.
Nesse contexto, a dualidade político-social irá refletir nas ações e no discurso das
pessoas, os jovens querem experimentar as inovações, enquanto os velhos professam as
tradições. Assim, é possível afirmar que a escritura de Coralina possui uma relação intrínseca
com a história, uma vez que elementos históricos perpassam a vida autora. Seus versos
abordam as temáticas e as preocupações vigentes o que torna sua obra atemporal, pois traz
questões, que até nos dias atuais são polêmicas, por meio dos discursos das pessoas relegadas
à margem social. Com sensibilidade, Coralina adentra esse universo e através de sua memória
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lírica retoma a infância, a juventude e a própria maturidade, estabelecendo relações dessas
fases com a do espaço de vivência, se inserindo nele.
Goiás, minha cidade...
Eu sou aquela amorosa
De tuas ruas estreitas,
Curtas,
Indecisas,
Entrando, saindo
Uma das outras.
Eu sou aquela menina feia da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha. (CORALINA, 1985, p.47)
As pessoas e os locais que a acompanharam nessa trajetória, como parte da região,
são o mote para sua poesia: os becos, a periferia, os rios, as casas em decadência são cantadas
com lirismo, trazendo ainda, retratos do cotidiano que vem entremeado com discursos
folclóricos, neles estão impressos as crenças populares, remontando de forma lírica, alguns
ritos religiosos. Um exemplo é o poema Santa Luzia que traz um subtítulo “Recriação de
cantigas folclóricas”. A forma em que ele é construído rememora-se as ladainhas proferidas
nas novenas.
Santa Luzia passou por aqui
No seu cavalinho
Comendo capim.
Santa Luzia guarda os meninos
inocentes, que tudo vêem
meus olhos, um dia, foram
meninos de Santa Luzia.
Santa Luzia passou por aqui
No seu cavalinho
Comendo capim.
A simplicidade das rimas e até certa ingenuidade dos versos (por aqui/ comendo
capim) empresta ao texto um tom de bênçãos, mostrando a fé popular e os ritos. Evocando os
milagres da Santa realizados em pessoas que são conhecidas por um eu lírico que se coloca
como testemunha dos fatos, a fim de ratificar e dar cunho de verossimilhança. Como é o caso
do menino que pediu a Santa que o permitisse ver só um pedacinho do sol o que foi atendido,
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se dando o milagre, fazendo o menino ver para sempre. Ou ainda, a histórias de habitantes da
cidade:
Maria era peticega
Santa Luzia sarou.
José tinha branca
A menina dos olhos.
Santa Luzia deu jeito.
Virou o branco em preto
E José está homem p´raí
Tocando pistão na banda
O emprego da expressão recorrente na modalidade oral “peticega” e “branca /a
menina dos olhos” aparecem como recurso do autor para tornar o texto mais coloquial e
informal e, embora Coralina utilize procedimentos característicos da modalidade falada
informal, com um léxico bem conhecido dos interlocutores/leitores, com estruturas sintáticas
simples, a mensagem se torna literária pelo ritmo e pelo tom declamativo e também pela
maneira em que retrata a fé do povo. A religiosidade premente da poeta dá a dimensão da
revelação de sua vivência de forma catártica demonstra sua fé na vida, nas pessoas a de sua
formação de raiz católica: é comum nos textos de Cora encontrar uma prece, uma reza ou
trechos de uma oração revestida de lirismo, como na
Meu Deus, acordai o coração dos
Oração do pequeno delinquente “...
meus juízes.”(CORALINA,1985,p.233). Entre outras
citações semelhantes o eu lírico realiza uma verdadeira profissão de fé, ratificando
poeticamente suas raízes.
As principais festas da cidade de Goiás, como não poderia deixar de ser, são
as festas religiosas populares: Semana Santa, com a Folclórica Procissão do
Fogaréu; Folia de Reis, Folia do Divino, Festas Juninas, Festa de Sant’Ana,
Padroeira da Cidade, Festa do Rosário, Festa de Nossa Senhora da
Conceição, Festa de Santa Luzia, (DOSSIÊ DE GOIÁS, 1996).
Tais festividades fizeram parte da formação da poeta, retoma de forma lírica as
festividades de sua terra natal e sua crença nos santos que se alternam com uma forma telúrica
de ver a vida:
Nossa Senhora das sementes...
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Ajudai todas elas- boas ou más
A bem cumprir seu destino
De sementes,
Lançando do seu pequenino
Coração vital
O esporo à raiz fálica
Que as confirmarão na terra
E na sequencia das gerações
Através dos tempos
Nossa senhora das raízes... (CORALINA, 1987 p.50)
Os elementos da natureza impressos nessa oração demonstram uma preocupação
natural do homem do campo, da necessidade das sementes germinarem e resultarem numa
boa colheita, o eu lírico vai irmanando-se com eles e mostrando a íntima relação da autora
com a terra e tudo o que a envolve: os campos lavrados, o encanto das colheitas, os produtos
da terra, os animais que nela vivem são materiais dessa apaixonada poesia, em que o discurso
dos simples está entrelaçado, como o que está presente no Poema do Milho:
As pragas todas, conluiadas.
Carrapicho. Amargoso. Picão.
Marianinha. Caruru-de-espinho.
Pé-de-galinha. Colchão.
Alcança, não alcança.
Competição.
Pac . . . Pac . . . Pac . . .
a enxada canta.
Bota o mato abaixo.
arrasta uma terrinha para o pé da planta.
“... - Carpa bem feita vale por duas..."
Quando pode. Quando não... sarobeia.
Chega terra O milho avoa.
Os provérbios, que aparecem no poema apresentam o pensamento vigente e são
recolhidos de uma tradição oral e formam essa literatura comprometida retratar uma paisagem
agreste ao mesmo tempo em que traz o registro do discurso. Ou ainda:
" O mio tá bonito ... "
"-Vai sê bão o tempo pras lavoras todas . "
"- O mio tá marcando . . . "
Condicionando o futuro:
"- O roçado de seu Féli tá qui fais gosto ...
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Um refrigério "
"- O mio lá tá verde qui chega a star azur..."
- Conversam vizinhos e compadres.
Milho crescendo, garfando,
esporando nas defesas...
Milho embandeirado.
Embalado pelo vento.
"Do chão ao pendão, 60 dias vão". (CORALINA, 1987, p.169)
Como no poema o Pouso de Boiadas: “A bóia se alaga rumo da aguada /Aguada
boa é o que vale” (CORALINA, 1987, p.148) Os discursos nos poemas demonstram o apego
de Coralina pelas coisas de sua terra e é transfigurado em seus versos de forma constante que
se torna uma um modo de afixar uma identidade: “Sou abelha no seu artesanato./ “Meus
versos tem cheiro de mato,/ dos bois e dos currais./ Eu vivo no terreiro dos sítios e das
fazendas primitivas” (CORALINA, 1987, p108).
Além dos provérbios, os adágios, oriundos da sabedoria popular por diversos
momentos revelam a crítica da autora por esse saber consolidado e por vezes guardião de
preconceitos.
No tempo dos adágios que os velhos
Sentenciavam
Enfáticos e solenes:
- Quem nasce pra derréis não chega a vintém.
Pessimismo recalcando
Aquele que pensava evoluir
“Vintém poupado, vintém ganhado”
Estatuto econômico. Mote gravado
No corpo de algumas emissões.
“Na pataca da miséria o diabo tem sempre um vintém”
Isto se dizia, quando moça pobre se perdia.
“Quem compra o extraordinário
vê-se obrigado a vender o necessário.”
Doía... impressionava.
Era a Sabedoria que falava. (CORALINA, 1985, p.61)
A palavra sabedoria grafada com letra maiúscula demonstra a intolerância, por
parte da autora, por esse saber consolidado que não permite questionamentos, condicionando
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os jovens a eles e os impregnando de ideias estereotipadas. Vigorando desse modo, toda sorte
de preconceitos.
Através das rememorações, Coralina apresenta a vida de muitas pessoas, revisita
lugares, reflete sobre os sentimentos com a desenvoltura de quem conta causos. Como na
reflexão de Benjamim “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria
experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus
ouvintes”.(BENJAMIM, 1994 p.201) Assim, pelas experiências obtidas através de uma vida
pródiga, se dividindo entre a família e arte da escrita, a poeta encaminha suas narrativas.
Tais narrativas revelam certo saudosismo, como fio condutor da obra, o que é
comum numa literatura de memória, porém tal sentimento não a impede de realizar uma
crítica tenaz a respeito dos preconceitos, da superioridade das pessoas, da decadência de sua
terra pela exploração indevida, a injustiça contra certas tradições familiares que cerceam a
liberdade, principalmente aquelas que dizem respeito ao papel da mulher e da criança no
âmbito social.
Os contos de Coralina são como causos, mostram um tom displicente, à maneira
dos contadores de história, tradicionais que sentavam ao redor da fogueira com expectadores
ávidos. Nessas histórias estão impressas a mais completa representatividade dos simples: a
criança que sofre privações e constrangimentos por parte dos pais e amigos, a mulata faceira e
buliçosa no carnaval ou um velho soldado negro. Essas figuras humanas são retiradas do
cotidiano e revestidas de lirismo e impregnado de um olhar compassivo por parte da poeta. A
memória histórica recupera objetos, lugares, figuras humanas e eventos que identificam o
tempo/espaço. Tal tendência é verificada nos contos de Cora Coralina nos quais, na maioria
deles, a poeta lança mão de um tom de confronto e ironia.
Às vezes cede lugar a um discurso afirmativo em tom de alegria – nem por isso
menos sarcástico – em que avança na ousadia e na carnavalização como pode ser observado
no conto “Um Carnaval Antigo”, presente no livro Villa Boa de Goiaz, (2003). Nele é
realizado um recorte do carnaval do passado, como já antecipa o título, mostrando todo o
júbilo presente em tais eventos. A narração traz a história de Joana, mulata bonita e festeira,
que sai no cordão carnavalesco enfeitada com ramos de pimenta, como estava na moda.
Festeja efusivamente, mas ao ingerir bebida alcoólica começa a passar pimenta e a jogar fogo
nos foliões causando confusão geral. Em virtude disso, levam-na para a prisão, lá
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permanecendo pouco tempo, pois seu patrão interfere a seu favor, juntamente com as pessoas
do cordão carnavalesco, pedindo sua soltura, carregando-a nos braços, entoando a canção que
abre e fecha o conto:
Seu delegado, solta a Joana.
Ela é do carnaval! (...).
Solta a Joana, - respondia o corso.
Solta, solta.
Ela é do carnaval!
Com pimenta ou sem pimenta.
Nós queremos é brincar.
Solta, solta a Joana (2003 p. 26).
Por meio desse conto, iniciado espirituosamente com a marchinha, é possível ter
acesso a outro tempo, história que fora nele há elementos de uma memória histórica, através
das lembranças vividas pelo narrador que, de modo preciso, expõe com detalhes a descrição
das pessoas e dos locais onde se passa a história, como pode ser observada na passagem em
que explica de onde veio a idéia de se colocar pimenta no penteado, motivo este que
desencadeia toda a trama:
Anoca Santa Cruz, cunhada de Luiz Nunes, era no tempo; a pessoa mais
considerada respeitada na sociedade goiana naqueles longes passados.
Figurinista original e ousada. Ditava moda e sua área magnética era
avançada e dominadora. Tinha lançado moda de ramo de pimenta malagueta
no penteado alto, do tempo [...] Virou moda e a mocidade goiana passou a se
enfeitar de galhos de pimenta, quebrados de pimenteira (2001 p. 24-25).
A moda excêntrica proposta pela modista contagia todos pela ousadia, a ponto de
ser imitada pela maioria das mulheres; tal fato é tão marcante que parece ter povoado a
memória da autora, pois a figurinista e suas invenções são retomadas na poesia
“Aborrecimentos de Aninha”, em Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha (1984), na
qual se narra, embora em outro gênero e contexto, a inovação dos penteados:
Minha irmã Germana vestido, todo fitas e rendas,
oferecido pela madrinha –Anoca Santa Cruz
Anoca Santa Cruz... elegante, viva, alegre, de comunicação
(diriam hoje)
Naquele tempo, dada, desembaraçada, espirituosa.
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Liderava a sociedade goiana, era ouvida em organização de festas.
O palácio nada fazia, no sentido social, sem ouvi-la.
Entregava-lhe a direção.
Inventava, figurinava. Figurinou a moda:
penteado alto, barrete frígio, símbolo republicano recém-implantado.
Um dia lançou novidade, nunca vista, sonhada sequer:
Ramo de pimenta malagueta no penteado
Sei que as pimenteiras foram desgalhadas.
Não sobrou moça na cidade que não tivesse no cabelo,
seu ramo de pimenta (1984 p. 137).
A pimenta malagueta, na escritura de Coralina, serve como mote para estabelecer
uma relação com a atitude ousada das mulheres. No conto “Um Carnaval Antigo”, Anoca e
Joana, as mulheres retratadas cada qual dentro da sua condição, romperam certas tradições
com um espírito criativo e libertário.
Deste modo, muito mais do que condimento ou enfeite, no conto a pimenta
transforma-se em atributo identificador das duas mulheres, porém apresenta resultados
díspares: para Anoca Santa Cruz, de família renomada da cidade, a moda da pimenta, sob os
olhares conservadores, é aceita com reservas, recebida e interpretada como excessos da
mocidade. Para Joana, a criada, mesmo considerando o excesso da alegria configurado nos
excessos no uso da pimenta e da bebida, a reação por parte das autoridades demarca o seu raio
de ação.
Observa-se então a configuração de duas mulheres, um só atributo – a pimenta – e
duas reações como respostas a suas ações: para Anoca, modista pertencente a uma família de
renome, a resposta é de aceitação; para Joana, a criada, a resposta vem em forma de restrição
por parte da autoridade local, a polícia.
A retratação da situação leva-nos a constatar, mesmo que não seja intenção da
autora, o tratamento diferenciado que cada uma das mulheres recebe. Observa-se então, a
partir dos tratamentos dispensados, o discurso vigente em permanente vigília a assegurar a
demarcação dos espaços sociais. Para Anoca uma aceitação interpretada como excessos da
mocidade; para Joana, a advertência como sinal de que excessos podem levar para cadeia.
De toda forma, as ações da modista e de sua criada são aquelas que dão toque
pessoal a essa sociedade de hábitos tão enraizados em rigores morais e que, ultrapassando os
limites permitidos, suas presenças metaforizam o efeito da “pimenta malagueta” naquele
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espaço conservador, um toque picante que dão aos eventos e aos costumes, como destacado
nos versos:
Sei que as pimenteiras foram desgalhadas.
Não sobrou moça na cidade que não tivesse no cabelo,
seu ramo de pimenta. (1984 p. 137).
No poema, mais uma vez está impressa a simpatia do eu lírico pelas pessoas que
quebram as regras juntamente com a recuperação da memória histórica através dos modos e
dos costumes. A personagem Anoca parece ser mais uma dessas pessoas com espírito de
liberdade latente, que não se preocupa com as opiniões alheias.
Através dela é possível inferir que, apesar de a sociedade usufruir os inventos da
figurinista, o faz com certa restrição. Neste sentido, Anoca destoa desse grupo conservador;
tal questão torna-se evidente por meio dos adjetivos a ela atribuídos pela narradora que, numa
perspectiva polifônica, traz para o poema o discurso vigente, “naquele tempo, dada,
desembaraçada, espirituosa”.
Embora esses vocábulos não façam desmerecer os talentos de Anoca,
caracterizam-na como diferente, e fazer a diferença talvez seja o bastante para que seu
comportamento apresente certa desarmonia com as regras sociais. O eu lírico mostra ainda os
avanços temporais, marcados pelas expressões “naquele tempo” e “hoje”, em que se pode
perceber que os julgamentos a comportamentos considerados ousados naquela época,
possivelmente seriam mais brandos na atualidade.
Representando e engrossando o cordão dos socialmente desvalidos, a atitude
desabusada da mulata também conta com a simpatia da narradora, que parece narrar tal caso
esboçando um sorriso de satisfação e, por meio de certos comentários que tece ao longo do
conto, partilha do atrevimento da personagem.
A criada Joana, entusiasmada com a idéia de sua senhora, tenta à sua maneira,
seguir a moda. Verifica-se, então, seu espírito inventivo retratado na forma como Joana, por
meio do improviso, demonstra sua capacidade de superação diante das dificuldades e
carências: “arranjou com Anoca, vestidos e sapatos usados. Levantou a trunfa e enramou de
pimenta: tentou uma caracterização” quebrou pela base uma pimenteira e amarrou na
cintura...” (CORALINA, 2001, p.25).
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Tentando fazer parte da folia e alinhar-se de acordo com a moda, Joana se arruma
para o carnaval com coisas que ganhara e, diferentemente da maioria das outras mulheres,
provavelmente de melhor situação financeira, improvisa, adapta, arruma os cabelos simulando
o penteado da moda e exibe gestos de seu capricho, além de um comportamento desabusado,
ao colocar os ramos na saia. O modo de agir e ser da mulata é do agrado de todos como consta
no trecho seguinte:
O caso de que guardei na memória e conto, não foi malhação política nem
crítica que as autoridades mereciam, e muito, apenas brincadeiras da
rapaziada bilontra, onde entrava como peça principal a crioula Joana, festeira
fogosa, que trazia a cidade em rebuliço,de que muitos gostavam e riam com
vontade (2003 p. 24).
As opiniões da narradora apresentam mais uma vez um veio de transgressão às
normas ao demonstrar que, se as autoridades mereciam críticas, estas não seriam agora
consideradas, pois entrariam em desarmonia com o espírito carnavalesco e com o enredo, cujo
foco principal incide sobre as peripécias da apimentada criada Joana.
Apresentando uma intenção de celebração e rebeldia, a narradora elege a mulata
Joana como representante desse evento. Seu foco mais uma vez recai sobre os socialmente
obscurecidos. O que apresenta certa coerência, afinal trata-se do carnaval, festa que permite
inversões de papéis. O que se presencia então é Joana duplamente celebrada: pela própria
festa e pela narradora.
Nessa festa popular, Joana experimenta a liberdade que não goza no seu cotidiano:
a celebração da vida, a desenvoltura, a insubordinação às regras sociais vigentes são todas
manifestadas por meio do canto, da dança e das brincadeiras, levando a personagem
extrapolar essa liberdade efêmera.
A forma como é narrada a composição da fantasia elaborada pela mulata
aproxima-se da noção que se tem de carnavalização. A fantasia nesse caso é um arremedo e
ao mesmo tempo um recurso de que lança mão os menos afortunados para se adaptarem e se
inserirem no contexto do momento.
No caso de Joana, as adaptações que faz ao elaborar a fantasia para se alinhar à
voga do carnaval da época resultam numa sátira. Entretanto, não parece ser a sátira pela
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carnavalização a principal intenção da poeta, mas sim demonstrar a capacidade de criatividade
dos menos afortunados.
O carnaval propicia esse regozijo popular, como salienta Bakhtin ao estabelecer
relações entre o carnaval e outras festas:
Nos lugares onde o carnaval, no sentido estrito do termo, floresceu e se
tornou centro que reagrupou todas as formas de folguedos públicos e
populares, ele provocou de certa forma o enfraquecimento de todas as outras
festas, retirando-lhes quase todos os elementos de licença e de utopia
popular. As outras festas empalideceram ao lado do carnaval; sua
significação popular diminui, sobretudo porque estão em relação direta com
o culto e o rito religioso ou do Estado. O carnaval torna-se então símbolo e a
encarnação da verdadeira festa popular e pública, totalmente independente
da Igreja e do Estado (mas tolerada por esse último) (BAKHTIN, 1987, p.
191).
A apimentada Joana experimenta toda a euforia proporcionada pelo clima festivo
do carnaval, momento em que goza de liberdade e, ao menos nessas ocasiões, não estar
subordinada a ninguém.
Como “cria-ventre livre da casa de Luiz Nunes” (2003, p.24), Joana agora emana
jovialidade e liderança e, com seu comportamento irreverente, conduz o cordão carnavalesco,
constituindo-se como elemento deflagrador da liberdade, ao passar de ‘cria’ para rainha.
“Arranjaram uma cadeira; assentaram a mulata e a carregaram nos ombros, e veio o cordão
pelas ruas, novamente cheias; portas e janelas abertas e toda a cidade, alegre, [...] Joana foi
reconduzida, em triunfo! Uma consagração! Alegria geral!” (2003, p. 26).
Deste modo, a mulata Joana, de posse de um poder fugaz, conduzindo todos para
o seu reinado de alegria representa e irradia liberdade “abrindo alas” para que as pessoas, pelo
menos por alguns momentos, esqueçam a rotina dura de suas vidas e dêem vazão aos
sentimentos reprimidos.
Como já foi observado, o conto e o poema apresentados possuem um tom de
rebeldia impressa na escolha das temáticas. São trazidas mulheres pertencentes a estratos
sociais considerados inferiores, com exceção de Anoca, de modo que Cora Coralina enfatiza o
seu lugar no discurso como a querer derrubar as regras instituídas que prezam atitudes
ponderadas - principalmente por parte das mulheres, fazendo um contraste com a imagem da
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figurinista ousada e de sua criada, presente no conto “Um Carnaval Antigo”, com um
diferencial destas trazerem traços de alegria e irreverência, e de posse de tais atributos,
consegue até reverter uma situação adversa. Observa-se então que mesmo em gêneros
distintos, Cora Coralina demonstra certa desenvoltura, que lhe é peculiar para protestar,
criticar ou mesmo celebrar a vida por meio de seus personagens.
Delineando ainda, a trajetória dos contos de Cora Coralina e a oralidade pode ser
observada no conto “Campo Sales”, presente no livro Estórias da Velha Casa da Ponte
(1986), além de seu cunho memorialístico, revela em sua tessitura, críticas ao sistema social e
também o discurso. Esta narrativa trata de uma figura singular, o negro Campos Sales, excombatente da Guerra do Paraguai que, embora tivesse tido uma trajetória de dedicação à
Pátria – sofrendo ainda das mazelas contraídas no campo de batalha – na velhice vê-se
obrigado a fazer faxina para sobreviver e entre um e outro serviço lava o chão das casas
alheias.
Contratado para limpar a casa de uma família recém-chegada à cidade, o serviço é
realizado com capricho e a dona da casa, grata pelo serviço, presenteia Campos Sales com
uma calça usada; este, ao encontrar uma boa quantia em dinheiro nos bolsos da velha calça,
devolve o dinheiro à mulher que fica admirada com tamanha lealdade. Passado algum tempo,
o personagem morre sem receber seus direitos como ex-soldado.
O conto traz um narrador em primeira pessoa que vai pontuando certas
características do personagem, além de enfatizar que fora testemunha dos fatos: “Quem da
gente mais antiga da Jaboticabal inda se lembra de Campos Sales?... Campo Sales, eu o
conheci. [...] nós o conhecemos pelas ruas. Durante o dia, lavando casas de família; de noite,
às dez horas, lavando os bares do comércio.” (CORALINA, 1985, p.15).
Ao colocar-se estrategicamente como testemunha, o narrador procura imprimir, se
não veracidade, ao menos cunho documental, tendo como uma das finalidades fazer
sobressair a vida de um grupo que, em sua simplicidade, realiza ações dignas de destaque,
mas não são lembradas; além disso, solidariza-se com parte da população para legitimar sua
crítica à sociedade. A respeito do narrador em primeira pessoa, Maria Lúcia Dal Farra salienta
que:
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(...) o romance é sempre uma “autobiografia”, pois o “autor” retira, da
natureza e da sua própria experiência, os elementos vivos e significativos
para proceder à “biografia” de um ser imaginário. Para moldar-lhes as
feições e inflar-lhe de vida, ele terá de conferir a este ser foros de vida real:
terá de dotá-lo de uma dimensão psicológica e de uma duração, temporal,
dados relativos à existência humana (DAL FARRA, 1978, p. 35).
Embora o estudo citado seja a respeito do narrador no romance, também é
possível inferir alguns desses conceitos no conto “Campos Sales”, quando a autora traz de sua
memória uma figura humana alijada da história oficial e a reconstitui no plano literário.
Primeiramente, descreve o aspecto físico do personagem, seu cotidiano difícil; com isto, vai
elucidando gradativamente um pouco do homem, suas dificuldades e seu discurso revestido
de uma polidez servil. Também, os foros de vida real são dados pela descrição, quase que
enfática, do local em que o personagem vive, no caso a cidade de Jaboticabal.
Nesta localização da cidade estão contidos traços da memória histórica, como
pode ser constatado: “Nós, gente da linda cidade de Pinto Ferreira, Terra das Jabuticabas,
Cidades das Rosas, velho Patrimônio Foreiro, antiga fábrica de Nossa Senhora do Carmo de
Jaboticabal, cidade dos meus filhos, nós o conhecemos” (CORALINA, 1985, p.15). Essa
enumeração dos nomes da cidade além de atestar a veracidade do lugar vem de certo modo
reforçar o caráter documental do conto.
A restituição da memória pode ainda ser observada pelo nome do personagemtítulo, idêntico ao de um dos presidentes da República, indicando um momento histórico
marcado ainda por resquícios de um sistema escravagista, uma vez que não atribuíam nome
ao homem cativo, sendo comum trazer o sobrenome da família à qual servia: “Campo Sales
tinha sido escravo da família Campo Sales – contava. Ganhou sua liberdade, sua alforria de
negro cativo, vestindo a farda de soldado brasileiro e pelejando, com valentia, nos esteros do
Paraguai. Mostrava suas velhas cicatrizes. Pontaços de lanças inimigas” (1985, p. 15).
Esta passagem demonstra que o personagem tem uma vida marcada pela servidão.
O fato de ter sido soldado da Guerra do Paraguai corrobora a idéia de que Campo Sales
passou da condição de escravo para outra, e no final da vida este estigma ainda prepondera, já
que a falta de reconhecimento pelos serviços prestados à Pátria obriga-o a viver de pequenos
expedientes.
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Vista por muitos estudiosos como uma campanha sangrenta e injusta, a Guerra do
Paraguai, ao terminar, deixou muito dos seus soldados à própria sorte, alijados da sociedade.
O conto registra em suas entrelinhas que fatos relatados pela história oficial ocultavam
grandes outras verdades. Na maioria das vezes são eleitos como heróis indivíduos que não
tendo realizado nenhum feito expressivo ainda assim obtiveram reconhecimentos.
Em contraposição, muitos que tiveram desempenhos autores de atos dignos de
menção honrosa foram relegados ao anonimato, como é o caso da participação dos negros na
Guerra do Paraguai, cuja maioria morreu, animados pela proposta de alforria e de um pedaço
de terra para cultivo. Essa proposta levou tantos escravos para a guerra que José J.
Chiavenatto, em seu estudo, constata:
Entre os aliados – brasileiros, argentinos uruguaios - para cada soldado
branco havia vinte e cinco mulatos ou negros. Essa desproporção racial
aumentava quando era confrontada com o exército brasileiro. No exército do
Império do Brasil, para cada soldado branco havia nada menos que quarenta
e cinco negros (1979, p. 111).
O grande número de escravos negros na campanha deveu-se também ao fato de
diversos senhores enviarem os escravos para representá-los. Ainda que muitos negros tenham
aceitado o soldo e lutado bravamente, a maioria não conseguiu adquirir a almejada carta de
alforria: grande parte voltou mutilada, enquanto outros foram dizimados nos campos.
A história de Campos Sales mostra a trajetória de um homem humilde, por meio
dela é feito um recorte da história do Brasil, trazendo simultaneamente traços de uma
memória histórica através desse soldado que voltara da guerra, fisicamente deformado:
“Perdeu seu aprumo vertical. Passou a andar dobrado e contava que muitos companheiros
ficaram aleijados como ele”. (1985, p.15.) Comprovando que essas marcas não ficaram
apenas no aspecto físico, também permaneceram em suas lembranças todas as tragédias
presenciadas: “[...] Apertava os olhos, refrangia e entortava a boca, careteando no horror das
lembranças”. (1985, p.15.)
Embora a vida desse homem seja marcada por duras injustiças, ainda mantém
valores tais como lealdade, integridade, valores demonstrados no decorrer de toda narrativa,
principalmente quando é feito referência à precisão que realizava seu trabalho: “Muito certo e
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exato para aquele serviço obscuro e ativo que alguém devia de fazer, num tempo em que
ainda ninguém encerava casa” (1985, p.15). Campo Sales cumpriu o seu papel de cidadão: na
juventude servindo o país e na velhice a quem precisasse dos seus serviços cumpria-os à risca.
No conto, há uma contradição entre o caráter do personagem e o tratamento que o
Estado dá aos velhos combatentes. Campos Sales, homem justo e trabalhador, ao passo que o
Estado retém os direitos de quem serviu o país. Essa contradição fica evidente quando numa
fala simples, mas repleta de honestidade, o velho homem entrega o dinheiro por ele
encontrado: “- Óia, Dona, diz ele, vim aqui pro via da carça que vancê me deu. Hoje fui vesti
ela, passei a mão no borso e achei dentro esse manojo de dinheiro que decerto vançê ou seu
marido guardou e se esqueceu...” (1985, p.17)
As marcas da oralidade estão presentes nesse discurso de extrema franqueza,
servindo para mostrar mais uma vez as ações inversas que se estabelecem entre o Estado e o
personagem: este, por ser miserável, poderia não devolver o dinheiro – o que não é correto,
mas é compreensível - ao passo que a Pátria, que deveria cumprir o seu dever, não lhe dá a
paga devida. Essa questão fica patente no final da narrativa:
Quando veio a reparação do esquecimento e a Pátria lembrou dos sobreviventes, o
velho guerreiro tinha dado sua baixa e nada mais precisava. Fazia tempo que seu magro corpo
dobrado descansava numa cova humilde no cemitério da linda cidade (1985, p. 17).
Tal desfecho, em que predomina o lirismo, é a culminância de um dos aspectos
que vinha sendo desenvolvido desde as primeiras linhas do conto, e ao ser pontuado, acentua
a lealdade do homem contra a lentidão do Estado em cumprir seus deveres com os cidadãos.
Na representação da morte do personagem encontra-se uma crítica, ao abandono a que os
soldados foram deixados, também solidariedade que vem por meio de um discurso ardoroso
que o narrador emprega.
Ao lado do mote dado pelo título Campos Sales, dispondo do nome de um
Presidente da República para nomear um personagem representante da camada social mais
miserável – um ex-escravo -, a autora não apenas recorre ao despiste, surpreendendo o leitor e
levando-o a desenvolver uma leitura ao contrário da anunciada no título, ao trocar os papéis
históricos, além disso, realiza metaforicamente também uma rasura no texto oficial à medida
que narra a vida de um ex-combatente da guerra - o nome Campo Sales deslocado para a
extremidade oposta na ordem das representações sociais. O foco da narrativa desvia-se da
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imagem oficialmente reconhecida, o presidente da Republica, e volta sua focalização para o
menos representável: um ex-escravo.
Os contos aqui citados ilustram o caráter documental que assume a escritura de
Cora Coralina, os quais trazem em seu bojo o discurso do povo, em sua sabedoria e
simplicidade. Partindo das próprias lembranças ela compõe um universo ficcional
comprometido, de modo que realiza uma recuperação de histórias ocultas quando fala dos
espaços sociais segregados de sua terra. E quando trata de figuras humanas, traça o percurso
dos oprimidos; daqueles esquecidos pelo sistema social. Ao lançar luz sobre Campos Sales,
um ex-escravo, e a mulata Joana faz sua escolha, firma o lugar de emissão de seu discurso,
revelando na escritura uma atitude comprometida - atitude de quem busca pela literatura,
transformar a realidade.
Deste modo, Coralina constrói sua poesia transpassada pelo lirismo e a própria
poeta define sua criação: “Entre pedras/ cresceu a minha poesia./ Minha vida.../ Quebrando
pedras /e plantando flores./Entre pedras que me esmagavam/ Levantei a pedra rude/ dos meus
versos.” (CORALINA, 1987, p.13). Ao colocar os versos como “pedra” ela enuncia, de forma
catártica, as dificuldades da vida que foram superadas à duras penas, porém os seus poemas
trazem os resquícios dessa vivência marcada por dores, perdas e repressões e os seus versos
postos como “pedra rude” tornam metáfora de resistência e fortaleza perante as adversidades.
Embora o tema demande um desenvolvimento maior, acredita-se que com a
análise desses textos (fragmentos de contos e poemas) já se possa perceber que o emprego
consciente e recorrente de marcas de oralidade na prosa-poética de Coralina seja uma
“estratégia” a fim de envolver o leitor e transportá-lo aos espaços poéticos revisitados por sua
poesia. Em outros termos, através da incorporação intencional de marcas de oralidade nos
seus textos, Cora Coralina cria uma simulação de realidade cotidiana que aproxima o leitor.
A escolha de um léxico propositadamente coloquial aliada a estruturas
morfossintáticas simples (típicas da modalidade oral) surpreende o leitor, com sua enorme
lucidez e seu olhar sábio que esquadrinha as passagens de sua terra e de sua gente, mostrando
o belo e o feio, as justiças e as injustiças, tese que é confirmada pela autora, carinhosamente,
através de seus versos: “Amo e canto com ternura/ todo o errado da minha terra/ Becos da
minha terra, / discriminados e humildes, /lembrando passadas eras...” (CORALINA, 1985,
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p.104). Desse modo, por um texto pretensamente simples, a poeta passa a sua mensagem
sempre surpreendente, instigante e renovadora.
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ENTRE O ORAL E O ESCRITO: A CRIAÇÃO DE UMA ORALITURA
Margarete Nascimento dos Santos (PG-UNEB)
Introdução
Localizada na América Central, no Mar do Caribe, e fazendo parte do
Arquipélago das Pequenas Antilhas, Martinica e Guadalupe foram colônias de exploração
Francesa de 1635, quando aconteceu a ocupação francesa, até 1946, quando passam a Estado
da União Francesa, através da lei de 19 de Março.
Conhecidas como DOM (Départements d’outre mer) ou departamentos de
ultramar, juntamente com outros dois departamentos (Guiana Francesa e Reunião), Martinica
e Guadalupe fazem parte de uma coletividade territorial integrada à República Francesa com o
mesmo status que os departamentos metropolitanos (França continental).
O trabalho que ora se apresenta tem por objetivo realizar breve reflexão sobre a
produção literária dessa região (Antilhas Francesas), na contemporâneidade. Em meio às
questões culturais que em todo tempo questionam a formação identitária dos seus habitantes,
essas ilhas nas últimas décadas ganharam destaque também no meio acadêmico ao
produzirem uma literatura própria que tem como meta colocar em destaque a produção
cultural local.
O conceito de oralitura é adotado pelos escritores antilhanos a partir da década de
80 e a justificativa para o uso de tal nomeclatura, segundo estes autores, está no fato da
literatura tradicional, da forma como é concebiba, não oferecer espaço que abrigue de forma
satisfatória as questões ligadas à produção literária nas Antilhas.
Estes escritores proclamam um movimento intitulado de créolité cujo objetivo
maior é abrir caminhos que conduzam a uma relfexão mais ampla sobre o ser antilhano, de
forma a prezar pela memória coletiva local que está essencialmente forjada na oralidade e que
representa as suas tradições.
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1 O créole, uma língua entre duas culturas
A palavra créole3 vem do latim “creare” e em francês quer dizer “criar ou ser
criado”. O termo inicialmente designava a novidade, um mundo novo e se dizia das pessoas
nascidas no Novo Mundo. Durante o processo de colonização passa a fazer menção às novas
línguas surgidas do convívio entre senhores e escravos, a língua intermediária usada no dia-adia da lavoura e da casa grande.
No caso específico do créole da Martinica, chama a atenção o fato desta língua
não ser apenas o resultado do contato da língua francesa com as línguas africanas, mas
também as várias contribuições que recebeu de outros idiomas, a exemplo do espanhol, do
inglês, do holandês e das várias línguas faladas na Índia. Apesar de ser dizer que o créole da
Martinica tem por base a língua francesa, uma análise mais específica coloca em xeque esta
teoria, tendo como suporte principalmente o fato da estrutura gramatical de uma e outra não
ser a mesma.
O uso do créole nas Antilhas suscitou nas últimas décadas grandes discussões
entre escritores, políticos, teóricos e população, principalmente no que diz respeito à sua
aceitação e normatização. Definir o espaço e a significação deste idioma gera polêmica e
alimenta a chama das questões ditas identitárias.
O escritor e psiquiatra martinicano Frantz Fanon, em seu célebre livro, Pele
Negra, Máscaras Brancas, escrito no início da década de 50, dedica o primeiro capítulo da
obra à discussão sobre o negro e a linguagem, e já no primeiro parágrafo ele declara que falar
é existir absolutamente para o outro.
Ele afirma ainda que o negro possui duas dimensões, duas relações entre as quais
o seu comportamento muda completamente, uma relação com o próprio negro, o seu
semelhante, e uma outra com o branco. Essas dimensões se evidenciam principalmente no
campo da linguagem a partir do momento em que o homem negro faz uso de códigos
diferenciados para estabelecer contato com o outro, variando a linguagem de acordo com a
cor da pele do seu receptor.
3
Em português crioulo. Neste trabalho optou-se por utilizar o termo como no original em francês:
créole.
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Para Fanon, falar é, sobretudo, assumir uma cultura, suportar o peso de uma
civilização. E essa afirmativa é facilmente detectável na observação atenta do processo de
inserção dos ex-escravos antilhanos na sociedade. À medida que pretendiam participar da
comunidade branca, colocavam a cultura negra à parte, assumindo a cultura do outro, em um
processo de ceder para ganhar.
A aceitabilidade do outro chega à medida que se fala como outro, veste-se como o
outro, comporta-se como o outro. Assim adotando a língua francesa, o negro antilhano se
torna cada vez mais branco. “Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o
colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais
branco será.” (FANON, 2008, p. 34)
Nesta relação dos franceses com os negros nas Antilhas são nítidos dois
momentos distintos: o primeiro em que a língua francesa se impõe num processo de
assimilação, onde ela aparece como degrau de status dentro da sociedade; e o segundo
momento quando acontece o processo de rejeição desta língua do colono, a tomada de
consciência e a luta pela afirmação.
O ano de 1848 marca o fim da escravidão nas Antilhas, através de um decreto da
II República e graças à ação de Victor Schoelcher 4. Mas assim como acontece em outras
localidades essa aclamada “liberdade” não é um processo fácil para os ex-escravos. Passados
os momentos de euforia e comemoração, os negros percebem que há muito a ser feito. Junto à
liberdade vinham os problemas ligados à falta de trabalho, à moradia e ao dinheiro, pontos
essenciais para a sobrevivência.
Os ex-escravos das Antilhas, também conhecidos como bois d’ébène5, devido a
sua qualidade e status enquanto mercadorias, se deparam ainda com um outro problema, o da
língua. E o que aparentemente parecia uma questão de adaptação, com o tempo se mostrou
4
Francês, oriundo de uma família burguesa de negociantes, é enviado pelo seu pai às Américas como
representante comercial da fábrica familiar, para reconhecimento do mercado e possíveis acordos de
exportação. Nesta viagem descobre a realidade escravocrata das Américas e na volta à Paris resolver
escrever contra a escravidão. Ele se torna um ativista dos direitos dos negros e ao se tornar
subsecretário do Estado francês continua lutando por esta causa. Schoelcher é um dos responsáveis
pelo decreto de abolição definitiva, de 1848 que interdita a escravidão em todos os territórios
franceses.
5
Madeira do Ébano.
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uma questão de imposição e repetição das práticas ditatoriais vivenciadas durante todo o
período colonial e que insistia em perdurar mesmo após o processo de libertação.
A língua francesa sempre foi a língua estrangeira, a língua do colono branco. No
entanto, a aquisição desta língua no período pós-abolição surge como forma de se sentir livre,
como um cidadão que faz realmente parte da comunidade onde mora.
... o negro tentará falar francês porque o crioulo, apesar de ser sua língua
materna, língua das canções de ninar e dos contos ouvidos à noite, nas festas
e nos velórios, é considerado como um patois, um dialeto que se ama e se
despreza ao mesmo tempo. (FIGUEIREDO, 1998, p. 20)
O créole que até então era a língua falada entre os escravos, começa a perder a
importância que sempre teve, pois as pessoas sentem cada vez mais necessidade de falar
francês para se sentirem como os franceses, é a sucessão de mudanças que conduz à
aceitabilidade.
No processo pós-abolição as escolas também cumprem o seu papel democrático e
abrem suas portas aos filhos dos ex-escravos, mas nesta instituição o créole não é aceito e a
língua francesa mais uma vez se impõe.
Para sobreviver, para conseguir uma colocação digna na sociedade, é preciso falar
francês. O francês se torna dessa maneira uma distinção social, o créole, a língua que falava,
até então, através dos seus cantos das feridas interiores de cada um dos antilhanos, com o
tempo é posto a parte.
A Martinica vive em um típico caso de diglossia, que Ferguson define como a:
coexistência de duas línguas com estatutos diferenciados, cujas funções são
complementares: uma língua ocidental, de prestígio, transmitida pela escola
e usada nas situações públicas e formais, e uma língua adquirida
informalmente, oral, desprovida de prestígio e de uso restrito à família.
(FERGUSON apud FIGUEIREDO, 1998, p. 20).
Um só lugar marcado por duas línguas. A legítima e a adotiva. Um paradoxo onde
a língua que sempre foi entendida como legítima (o créole) passa a ser a discriminada e a
adotiva (o francês) passa a ser a legitimada.
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É principalmente na escola que o antilhano aprende a desprezar o créole. O
francês é a língua ensinada nesta instituição e como tal apresenta-se sob a forma de
imposição. A criança, desde o seu nascimento até o momento de ingresso no ensino primário,
tem único contato com o créole que é a língua falada em casa e usada nas relações entre
vizinhos e outras crianças. Mas em determinado momento as famílias, no desejo de um futuro
melhor para os seus filhos, proíbem o uso do créole em casa reforçando assim o papel que a
escola desempenha.
A guerra conduzida pelos franceses contra o créole imprimiu um forte
sentimento de culpabilidade lingüística na psique dos Antilhanos, sentimento
que conduziu alguns ao caminho do suicídio lingüístico: não mais querer
falar esta língua ancestral e proibir às crianças de a utilizar. (CONFIANT,
[?], p.4, tradução do autor)
2 Oralitura, a literatura da oralidade
Contrários ao que muitos acreditam sobre o créole, os poetas das Antilhas o
chamam de “arrulho divino”. São eles que a partir da década de 30, tendo Aimé Cásaire como
grande representante, que começam um movimento de reivindicação do espaço do uso do
créole na sociedade.
No entanto, é apenas a partir da década de 80 que este movimento ganha força
com os escritores da crioulidade que põem em evidência a língua falada e a escrita como
meios para a busca da identidade martinicana.
Eles valorizam a oralidade e a tradição oral através do créole e fazem da sua
bandeira a oralitura, que seria o termo mais completo para definir uma literatura oral que
evidencia a produção literária e cultural do negro.
O termo oralitura, cunhado pelo haitiano Ernst Mirville e usado pela primeira vez
em 1974, surge como um neologismo que destina um espaço específico para a literatura oral,
sem se confundir com a mesma.
Segundo Mekisono, para os escritores da Martinica a passagem da oralidade para
a oralitura é a passagem da memória a curto termo à memória interindividual a longo termo.
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É esta relação entre o oral e o escrito, a saída da condição de literatura oral para a
escrita, e vice-versa, que se torna tema de discussão entre os defensores da crioulidade. Sendo
inicialmente uma organização oral, sem registro escrito, o créole é uma língua jovem, tem em
média 300 anos. No entanto, é através dele, como em qualquer sociedade que domina a
escrita, que se veicula valores tradicionais, conhecimentos técnicos e religiosos e se assume a
responsabilidade de estabelecer a troca entre o passado e o presente.
A oralitura na Martinica tem um aspecto noturno, pois representa ainda os tempos
coloniais em que os escravos trabalhavam na lavoura durante o dia e à noite reuniam-se para
contar histórias. Assim como a literatura, a oralitura também possui gêneros possíveis de
detectar dentro da sua tradição oral, o que se pode caracterizar como mitos, epopéias, contos,
canções, provérbios, ditados e advinhas.
É válido ainda ressaltar que o uso do termo oralitura não é unanimidade entre os
escritores do Caribe. Pesquisadores como o haitiano Georges Castera faz fortes ressalvas a
essa nomenclatura e a forma como é usada entre os autores que vivem em ambientes de
diglossia, situação semelhante à da Martinica e do Haiti.
Para Castera, cunhar o termo oralitura é apenas uma forma de esconder questões
maiores que existem na relação entre o oral e o escrito e que o termo não dá conta de discutir.
Oraliture est um mot-valise proposé par l’écrivain Ernst Mirville, pour
remplacer le syntagme « littérature oral ». Beaucoup d’auteurs se sont
accaparés du vocable, mais je ne vois pas en quoi il acquiert, par
enchantement, un statut de concept. Pour ma part, la dichotomie littérature
contre oralité que ce terme essaie de gommer, reste entière : la blessure est
sous le sparadrap. Vouloir tout faire remonter aux formes orales est une
folklorisation abusive comme cela a souvent cours dans le domaine littéraire
et artistique haïtien. (CASTERA, 2001, p. 8)6
Apesar de opiniões diversas sobre a nomenclatura, o que se observa é que os
escritores em situação de diglossia se unem no que diz respeito à importância de escrever em
6
Oralitura é uma aglutinação proposta pelo escritor Ernst Mirville para substituir o sintagma
“literatura oral”. Muitos autores adotaram o termo, mas eu não vejo em que ele adquire, por
encantamento, um status de conceito. Da minha parte a dicotomia literatura versus oralidade, que este
vocábulo tentar apagar, continua viva: a ferida está sob o esparadrapo. Querer que tudo se volte para
as formas orais é uma folclorização excessiva bem freqüente no atual domínio literária e artístico
haitiano. (Tradução livre)
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créole, de fazer o registro escrito desta língua como forma de valorização de uma linguagem
própria.
Diferentemente do que afirma Castera, os escritores da créolite não desejam
esconder a ferida que se encontra por baixo do esparadrapo, eles tentam fazer da oralitura um
mecanismo, um jogo onde é possível brincar com as normas e os padrões de forma a trazer
para o registro escrito o que até então nunca havia sido representado.
Não é apenas usar o francês como língua de escrita, nem o créole cuja escrita
ainda passa pelo processo de formação, mas sim instigar o leitor na descoberta e
decodificação de uma nova forma de fazer literatura, de escrever a história e suas variações,
executar o papel de criador de novos termos e grafias.
Negar a língua crioula, como aconteceu durante muitas décadas, é negar a riqueza
cultural possível através do bilingüismo. O créole guarda a possibilidade da construção do
imaginário que na língua francesa é limitado. Para o antilhano não é possível escrever,
registrar em outra língua a produção crioula, nenhuma outra língua oferece as possibilidades e
a abertura que o créole disponibiliza.
Como eles afirmam “a nossa história é uma trança de histórias”. E a possibilidade
dessa trança só se faz através da língua. Esta não é a língua africana, nem a língua do
colonizador, muito mais do que isso, a língua para eles se torna símbolo da construção da
identidade, ela é a representação dos diversos discursos que formam esse ser crioulo.
Os escritores antilhanos na contemporaneidade não buscam respostas, ao contrário
disso eles afirmam terem consciência da complexidade da identidade e do discurso que os
constroem. O que de fato eles buscam são alternativas, possibilidades de reflexão sobre esse
ser crioulo num território pós-colonial, onde nenhuma contribuição do outro é negada, mas
sim transformada e formada num caldeirão cultural que se encontra em constante ebulição.
Chamoiseau admite que escrever é também uma forma de divertimento. Ao criar
os personagens e dar vida através das falas, ele adentra um mundo particular. Cada palavra
escolhida representa uma visão, uma escolha de idéias e de representações.
Como ele mesmo afirma, a oralitura não é o desejo de criolizar palavras e frases,
escrever em créole é a possibilidade de expressar a sua visão de mundo.
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Et je disais ça surtout pour certains écrivains qui viennent et qui à notre suite
essaient de faire un texte créole se préoccupant uniquement de créoliser des
mots et des phrases, alors que la créolisation véritable est d'exprimer une
vision du monde qui est la mienne, qui est celle que nous avons ici pour
décrire un personnage, pour décrire une situation. Je me demande toujours
comment ma mère aurait raconté ça, comment mon père aurait vu ça,
comment nous ici nous aurions vu ça. Pourquoi? Parce que insidieusement
notre esprit est complètement dominé par les valeurs françaises, c'est-à-dire
que spontanément lorsque j'écris, je suis français. Pour être Créole, pour être
plus proche de ma vérité, je dois faire un effort de vigilance sur moi-même. 7
(CHAMOISEAU, entrevista à Rose Réjouis, 1996)
Um esforço de vigilância. Atitude necessária para os desafios que escrever em
créole apresenta. Não apenas por seu uma língua em formação enquanto registro escrito, mas
também pela possibilidade de se perder o que a língua tem de melhor em sua forma oral, o
encantamento.
Encantamento é o que os escritores da créolité vem conseguido fazer nas últimas
décadas. Sem perder a originalidade e mantendo a essência do créole, eles desenvolvem essa
expressividade fronteiriça que avança sempre instigando os seus fieis leitores.
3 Os escritores da créolité e a defesa de uma literatura local
Na Martinica, é forte o sentimento de representação da memória coletiva através
da literatura oral, é através da tradição dos contos narrados à noite que o imaginário coletivo
das pessoas se constrói e fortalece. A cultura créole martinicana é quase exclusivamente
baseada na oralidade. A negação da língua crioula resulta no esquecimento dessa cultura oral
e no apagamento das tradições.
7
E eu dizia isso principalmente para certos escritores que vinham e que em seguida tentavam fazer um
texto em créole se preocupando unicamente em crioulizar as palavras e as frases, enquanto que a
crioulização verdadeira é exprimir uma visão do mundo que é a minha, que é esta que nós temos aqui
para descrever um personagem, para descrever uma situação. Eu me pergunto sempre como minha
mãe teria contado isso, como meu pai teria visto isto, como nós aqui nós teríamos visto isto. Porque?
Por que (?) nosso espírito é completamente dominado pelos valores franceses, isso quer dizer que
espontaneamente quando eu escrevo, eu sou francês. Para ser Créole, paa estar mais perto da minha
verdade, eu devo fazer um esforço de vigilância sobre mim mesmo. (tradução livre)
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Ni Européens, ni Africains, ni Asiatiques, nous nous proclamons Créoles.
Cela sera pour nous une attitude intérieure, meiux : une vigilance, ou mieux
encore, une sorte d’enveloppe mentale au mitan de laquelle se bâtira notre
monde en pleine conscience du monde. (CHAMOISEAU, 1990, p.13)8.
É dessa forma e com essas palavras, que Patrick Chamoiseau, em conjunto com os
seus amigos Jean Bernabé e Raphaël Confiant, inicia o seu manifesto Éloge de La Créolité,
proferido pela primeira vez em Maio de 1988 em um festival no Caribe, e posteriormente
transformado em livro.
Nesta obra que conquistou adeptos em todo o mundo e que se tornou o marco
oficial do movimento da crioulidade, os autores não estão preocupados em formular uma nova
teoria acerca das questões identitárias. Como eles afirmam no manifesto, a principal idéia é de
apresentar um testemunho vivo da experiência cotidiana do povo antilhano.
Para Chamoiseau e seus amigos, a literatura antilhana ainda não existe, ela está no
estado de pré-literatura, situação em que se encontra devido à falta de audiência entre os seus.
A pouca circulação do que escrevem resulta na não interação do leitor e escritor. Para eles é o
grito da crioulidade que mudará esta realidade.
Ao se auto-proclamarem crioulos, esses escritores caribenhos convidam os seus
conterrâneos a lançarem um novo olhar sobre a sua cultura e a aprenderem a vê-la através de
novas perspectivas, deixando de lado o filtro dos valores ocidentais aos quais sempre foram
submetidos.
Não são europeus, nem africanos e nem asiáticos, os antilhanos fazem parte de um
novo grupo, uma nova geração que é o resultado da convivência entre esses povos e de suas
trocas culturais. É a crioulidade o resultado maior de um grande processo de
multiculturalismo.
Segundo Chamoiseau, “Nous avons vu le monde à travers le filtre des valeurs
occidentales, et notre fondement s’est trouvé «exotisé» par la vision française que nous avons
dû adopter”9 (1990, p.14).
8
Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiático, nós nos proclamamos Crioulos. Isto será para nós uma
atitude interior, melhor: uma vigilância, ou melhor ainda, uma espécie de disfarce mental no meio do
qual se construirá nosso mundo com plena consciência do mundo. (Tradução livre)
9
Nós vimos o mundo através do filtro dos valores ocidentais e nosso fundamento se tornou “exótico”
pela visão francesa que nós tivemos que adotar. (tradução livre)
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Foram esses valores culturais ocidentais que durante muito tempo impediram uma
compreensão mais clara da realidade multicultural das Antilhas. O europeu impôs a sua
cultura e a reproduziu. Às outras formas de manifestação cultural não coube espaço.
No entanto, não podemos falar do movimento da crioulidade sem lembrar do
grande percussor dos movimentos a favor da causa negra no Caribe que foi Aimé Césaire.
Com o movimento da Negritude na década de 30, Césaire, juntamente com o seu amigo
senegalês Léopold Sédar Senghor, assumiu o papel de levar a sociedade crioula a uma
consciência dela mesma, partindo da idéia de África e assumindo a dimensão africana
pertencente à cultura local.
Césaire se dizia africano e assumia a África como sua terra mãe. Fazia oposição
ao homem branco e a tudo o que dele vinha. Ele transforma o termo “negro”, até então visto
como pejorativo, dando uma nova dimensão, falando da Negritude com “N” maiúsculo, que é
um substantivo próprio que representa todos os negros excluídos da sociedade branca.
Césaire pleiteava, pois, uma via de autenticidade por oposição ao clima de
inautenticidade reinante entre os negros da América convencidos de que o
único modelo cultural válido era o modelo branco ocidental. A Negritude
césairiana pregava uma rejeição absoluta a essa concepção e suscitava a
emergência de uma personalidade antilhana. (BERND, [?], p. 34)
É por isso que os escritores da crioulidade se consideram filhos de Césaire, pois
foi ele quem abriu passagem para novas formas de pensar o ser negro, foi o pioneiro nas
discussões sobre as questões raciais e revolucionou a forma de se pensar enquanto homem
não branco, não europeu.
Por outro lado, fica claro que os novos escritores antilhanos se recusam a se fechar
na idéia de Negritude e ampliam os conceitos que dizem respeito a sua identidade. Eles não se
concebem africanos como acreditava Césaire, eles se vêem além desse conceito, se
identificam como resultado do caldeirão das misturas de raças e reinvidicam sua identidade
crioula e que ela seja reconhecida à parte dos Africanos.
Dans de societés multiraciales telles que les nôtres, il apparaît urgent que
l’on sorte des habituelles distinctions raciologiques et que l’on reprenne
l’habitude de désigner l’homme de nos pays sous le seul vocable qui lui
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ISBN: 978-85-7846-101-0
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convienne, quelle que soit sa complexion: Créole. (CHAMOISEAU, 1990,
p.29)10.
Portanto surge a necessidade de, segundo eles, deixar tudo, todos os conceitos e
teorias até então difundidos e aprender a explorar e a conhecer a si mesmo, é o que eles
chamam de visão interior e reveladora que conduz a uma nova aprendizagem. “Réapprendre à
visualiser nos profondeurs. Réapprendre à regarder positivement ce qui palpite autour de
nous.”11 (CHAMOISEAU, 1990, p.13).
Reaprender. São essas idéias proclamadas em Éloge de la Créolité que leva o
afro-descendente antilhano a refletir sobre a sua identidade e o papel desta na produção da
cultura local.
Segundo Ernest Pépin, poeta e romancista antilhano, a crioulidade é a tomada de
consciência da diversidade do mundo caribenho. É igualmente a vontade de repensar a noção
de identidade e é uma etapa da consciência de si-mesmo que leva a assumir o seu país.
Neste grupo de escritores das Antilhas, a escrita militante surge da preocupação
com a manutenção e o registro das tradições culturais de seu povo. Chamoiseau, em conjunto
com seus companheiros, queria principalmente colocar em evidência a identidade crioula e as
suas manifestações culturais.
São eles que no fim da década de 80 apresentam o conceito de Crioulidade, e
declaram que este “...é o cimento da nossa cultura e que ela deve reger os fundamentos da
nossa antilhinidade”12 (tradução livre). Em outras palavras, eles afirmam que é apenas através
da aceitação do seu estado crioulo que os latino-americanos encontrarão seu espaço dentro da
sociedade e da tradição literária.
Os autores discutem a necessidade de reavaliar os valores culturais que lhes foram
impostos pelo colonizador e de valorizar os costumes que lhes são naturais e presentes através
10
Nas sociedades multirraciais tais como as nossas, parece urgente que se saia das habituais distinções
raciológicas e que se retome o hábito de designar o homem de nossos países sob a única palavra que
lhe convém, qualquer que seja a sua natureza: Crioulo. (tradução livre).
11
Reaprender a visualizar nossas profundezas. Reaprender a ver positivamente tudo que palpita em
torno de nós. (tradução livre)
12
«... est le ciment de notre culture et qu’elle doit régir les fondations de notre antillanité.»
(BERNABÉ, 1993, p.26).
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da tradição popular. E nessa busca eles defendem firmemente a procura das raízes locais na
oralidade.
No entanto, eles percebem que, além da oralidade, eles precisam da escrita, pois a
mesma pode ser uma via de conservação da tradição oral. Contrários à idéia de que a escritura
pode ameaçar a prática da oralidade, eles acreditam assim como Laroche, que oralidade e
literatura, longe de se excluírem, se complementam.
Assim, nasce um movimento que, além de colocar em evidência as tradições,
pretende estabelecer um espaço para a produção de uma literatura local fundamentada nessa
tradição oral.
Considerações finais
Pensando na escritura como uma via de conservação da oralidade e não como
ameaça, os escritores das Antilhas percebem a importância do registro do oral mediante o
risco do apagamento das suas tradições. Desse modo, a oralitura atende aos anseios dos
jovens intelectuais no que diz respeito à produção de uma literatura própria, pois como afirma
Laroche
...il faut distiguer l’oraliture de la littérature mais observer aussi dans l’un et
l’autre cas une évulution parallèle qui n’exclut nullemment l’uitlisations des
mêmes procedes techniques (...) en fait oralité et littérature, loin de
s’exclure, se combinent13.
E esta combinação do oral e do escrito torna-se um desafio para os escritores. Os
escritores das Antilhas tomam para si esta responsabilidade e, apesar das dificuldades de
escrever, de registrar a língua oral, else insistem na conquista deste mundo. Em suas obras
observa-se com freqüência uma linguagem fronteiriça entre o oral e o escrito, o registro de
expressões em créole seguidas das traduções em francês, a escrita de termos em créole e os
neologismos são presentes no decorrer das narrativas.
13
... é preciso distinguir a oralitura da literatura, mas observar também em um e no outro caso uma
evolução paralela que não exclui absolutamente a utilização dos mesmos procedimentos técnicos (...)
com efeito oralidade e literatura longe de se excluírem, se combinam. (tradução livre)
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Escrever a história é um desafio para os antilhanos, principalmente por ser uma
história que conduz a muitas outras histórias. Defender uma literatura local, que fale das
tradições usando a língua marginalizada, se constitui um desafio a ser vencido
cotidianamente.
Referências
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A VOZ EM SUA PLURALIDADE INTERNA E EXTERNA
Maria Auxiliadora Cunha Grossi14 (Profa. Dra.-UFU)
I) Introdução
Este artigo objetiva suscitar discussões e fundamentações sobre a importância da
voz como corpo vivo, como linguagem em ato, manifestada em sua pluralidade interna e
externa. Pretende também ressaltar sua importância e função no debate interpretativo que
envolve as várias formas de leitura, contribuindo, assim, tanto para a compreensão do fato
literário como para o aperfeiçoamento da recepção.
Para isto, propomos analisar a eficácia de fenômenos interativos com a voz em
situações de mediação e de performances15, ocorridas em espaços formais e informais de
educação e cultura, no Brasil e na França16. Assim, indagamos: o que importa como
fundamental a uma teoria da linguagem em ato? Este, portanto, será o eixo das discussões e
base necessárias à compreensão e fundamentação teórica e prática da voz como instrumento
vivo e essencial à recepção e interpretação do fato literário.
Partindo das realidades Brasil e França, observamos que a literatura muda sua rota
de espontaneidade, de percepção da palavra poética e lúdica, como imagem que dialoga com
o real, como som, música, significação subjetiva e plurissignificativa, para se tornar
meramente objeto de ações metodológicas dos professores, em suas atividades cotidianas de
ensino.
14
[email protected]
O conceito de performance, cunhado por Paul Zumthor, engloba uma ação comunicativa complexa
que requer o envolvimento simultâneo entre emissor e destinatário. Para Zumthor, performance
implica competência e revela o conhecimento do intérprete. Se dá por uma tríade indissolúvel:
intérprete, texto e ouvinte, sendo este último, co-autor da obra. Na performance não se pode
considerar somente os níveis semântico e verbal da obra. Todo o contexto: emissor, receptor, espaço,
tempo, público, enfim, é que faz sentido.
16
Este artigo baseia-se na pesquisa de doutorado que desenvolvi em Paris, em 2007, apoiada com
bolsa sanduíche pela CAPES. Ela se intitula Literatura e Informação Estética: a oralidade pelas vias
da poesia e da canção e seus usos na educação. No Brasil, a referida pesquisa está vinculada ao
Departamento de Linguagem e Educação da FE/USP e, em Paris, ao Departamento de Português da
Université Paris X - Nanterre - CRILUS - Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Monde
Lusophone.
15
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Assim, se, por um lado, em colégios e universidades brasileiros e franceses
desenvolvem-se metodologias de trabalho com a leitura de poesia, se há declamação de
textos poéticos, por outro lado, tais leituras acontecem, em grande parte, como atividades em
que o saber termina por percorrer apenas a periferia do texto, da oralidade e da palavra.
Percebemos, portanto, que as leituras de poesia acontecem, mas não produzem uma efetiva
recepção do texto poético, não remetem concretamente o sujeito a um texto percebido e
recebido como poético, literário.
II) O que teria sido feito daquelas horas imperfeitas?
Iniciamos destacando a experiência de professores e pesquisadores franceses e
brasileiros com a leitura e a escrita, desenvolvidas em metodologias aplicadas em sala de aula.
Em relação a esta prática dizem Marie-Claire Martin e Serge Martin17:
Le professeur des écoles – et de collège – a tendance à déconsiderér,
aujourd’hui, souvent avec raison, l’exercice de la récitation hebdomadaire
(grifo nosso) ainsi que le cahier de chants et poésies où alternent textes et
dessins, mais il ne sait pas très bien par quoi les remplacer et il peut se faire
qu’il ne les remplace par rien du tout. Les injonctions institutionelles, mais
aussi les évolutions professionelles, invitent en effet à concentrer tous les
efforts sur les compétences décisives des apprentissages en lecture-écriture.
Si le plaisir de lire, et parfois d’écrire ( “la poésie semblerait de ce côté-là),
n’est en aucun cas exclu, la tentation est forte d’aller au plus pressé 18.
Analogamente, destacamos as considerações de Samir Meserani:
O sistema oficial de ensino, ou o que chamamos comumente de escola, é
uma instituição de ensino regulamentada por leis estatais, que “fala” uma
linguagem: a linguagem verbal e sua modalidade escrita. Assim, a escola não
admite estrangeiros a essa “fala” nas aulas, inaugurando seu ensino pela
17
Marie-Claire MARTIN e Serge MARTIN. Les poésie, l’école, p. 8
O professor das escolas – e de colégio – tem tendência a desconsiderar, hoje, muitas vezes com
razão, o exercício da recitação semanal, assim como o caderno de canto e de poesias em que alternam
textos e desenhos, mas ele não sabe muito bem por que substituí-los e pode acontecer que não os
substitua por nada. As injunções institucionais, assim como as evoluções profissionais, convidam, com
efeito, a concentrar todos os esforços sobre as competências decisivas das aprendizagens em leituraescrita. Se o prazer de ler, e, às vezes, de escrever (a poesia pareceria estar deste lado) não está em
nenhum caso excluído, a tentação é grande de ir o mais rápido possível.
18
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alfabetização dos recém-inscritos. Inscrever-se na escola é inscrever-se na
escrita. De tal modo inscritos e alfabetizados, os educandos seguem os
cursos de um longo percurso em que é necessário estar apto para o
ler/escrever. Ler para ir diretamente às fontes, aos textos dos livros adotados,
recomendados ou permitidos pela instituição. Escrever para, inicialmente,
reproduzir no caderno as aulas dos professores 19.
Com a experiência de observar aulas, de conhecer e analisar procedimentos
pedagógicos em classe de aulas francesas e brasileiras - com relação à abordagem do texto
poético, musical, às atividades com a leitura, envolvendo a voz, a dicção, o timbre, enfim, as
diferentes performances destas diferentes realidades – alguns conceitos foram se
configurando. Consequentemente, as especificidades destas realidades educativas foram
tornando-se cada vez mais evidentes. Na França, há uma fecunda valorização à leitura pública
de poemas e a uma série de outros conceitos e configurações poético-musicais, presentes nos
mais diferentes espaços culturais e sociais que ilustram as formas de dizer e cantar o texto.
Em momentos posteriores, focaremos estes espaços e estas conceituações. No Brasil, esta
valorização também é detectada em escolas e demais espaços de cultura e educação, embora
de maneira mais tímida e nem sempre os diferentes projetos contam com incentivo econômico
para a realização plena e efetiva de seus objetivos, o que acarreta um acanhamento nas
políticas de formação do leitor e do público.
Com os estudos teóricos realizados, pudemos melhor perceber que há ainda um
grande fosso entre concepções teóricas e práticas cotidianas em colégios brasileiros e
franceses. Constatamos, por exemplo, que determinados postulados teóricos têm ainda a
necessidade de se adequarem a realidades interpretativas que envolvem novas concepções de
interação entre o oral e o escrito, a obra e o leitor. Neste sentido, existem várias pesquisas
educativas francesas recentes20 que investigaram práticas cotidianas com a leitura de poesia, a
utilização da voz que canta e que fala, bem como o trabalho com a palavra cantada em sala de
aula e fora dela. Tais estudos, aliados ao trabalho com a forma literária, demonstram que o
19
Samir MESERANI. A escola e o livro. In: O intertexto escolar: sobre leitura aula e redação. p. 27
São muitos os textos publicados e pesquisas realizadas por professores. Destacamos as que são
considerados mais importantes: Cf. Jean-Yves BRETON. Réception de la littérature de jeunesse par
les jeunes. Documents et travailles de recherche en éducation. Didactiques des disciplines. Paris:
Institut National de Recherche Pédagogique; Arnault BERNADET. La voix et la machine. Revue de
l’Association Française des Enseignants de Français. Cf também Nadine DECOURT. Pour une
nouvelle poétique du style oral. In: Musique du texte et de l’image e ainda Georgie DUROSOIR.
Parler, dire, chanter: trois actes pour un même projet. Actes de colloque tenu en Sorbonne-Paris IV.
20
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gosto pela leitura de textos literários, pela poesia cantada, assim como a formação e a
percepção da experiência estética pelo aluno, podem se concretizar por meio do exercício da
oralidade, da expressão da voz e do corpo.
Desde o início da pesquisa de campo, detectamos que, em collèges franceses, tais
práticas aconteciam, com mais frequência, fora do currículo obrigatório das disciplinas, em
projetos complementares desenvolvidos em horário extraclasse, para alunos com dificuldades
no aprendizado expressão oral e escrita, em classes de 4 ème e 3ème - o que na escola brasileira
corresponde ao 8º. e 9º. anos do ensino fundamental. São várias, portanto, as séries envolvidas
nestes projetos. Nestes colégios, o trabalho com a oralidade, a voz, a dicção, a leitura
individual e coletiva, a leitura de poemas em voz alta, é uma prática ausente. Em depoimento,
uma professora avalia que ocorre uma interpretação intelectual do texto poético, da
semântica, da forma, do estilo poético... mas não há uma interpretação dos sentidos pela
leitura.
Este distanciamento da leitura cria um vazio de sentido pela própria ausência de
palavras e vozes que interpretam o texto, sem os quais a compreensão fica prejudicada.
Percebemos uma espécie de monologismo interpretativo, a existência de um falar consigo
mesmo, expresso por um tipo de hermenêutica conduzida e nascida em uma única fonte
geradora de inferências, no caso, o próprio professor.
A necessidade de que ações com a leitura interpretativa sejam efetivamente
realizadas, de maneira a se propor novas formas de exploração e compreensão do texto, é
comentada por Martin (2005):
Ce qui relève au fond d’une théorie du langage en acte dans nos institutions
d’enseignement (programmes, pratiques d’enseignement et d’apprentissage)
demande de montrer, par des exemples concrets, les enjeux de telles
implications pour le “débat interprétatif”... L’enseignant n’aurait alors peutêtre comme tâche fondamentalement politique et éthique que de veiller à
cette poétique de l’inconnu: l’écoute des voix dans leur pluralité interne et
externe à la fois21.
21
MARTIN Serge (2005. P. 34) Donner la parole aux sans-voix. In: Voix: oralité de l’écriture.
O que importa como fundamental a uma teoria da linguagem em ato em nossas instituições de ensino
(programas, práticas de ensino e de aprendizagem) requer mostrar, por exemplos concretos, os
proveitos de tais implicações para o debate interpretativo... O professor não teria, então, talvez como
tarefa fundamentalmente política e ética senão zelar por esta poética do desconhecido: a escuta das
vozes em sua pluralidade ao mesmo tempo interna e externa.
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Foram diversas as observações em classe de colégios nas quais constatamos que o
texto não era lido, vocalizado. Uma professora de um colégio em Paris faz o seguinte
comentário sobre as práticas de leitura de texto em voz alta em salas de aula:
si nous parlons des rimes, de la musicalité, du rythme d’un texte poétique, il
est rare que les élèves soient poussés à le mettre en voix, à en faire vibrer les
mots, à les faire rouler dans la bouche ou même à en écouter une lecture sur
une bande sonore ( enregistrements d’Apollinaire, deTzara...) 22.
Por outro lado, obtivemos informações da existência de vários formadores de
leitores que ressaltaram o fato de, em écoles - escola primária - a poesia ser lida e declamada
com muita frequência. As crianças declamam mais poesia, cantam canções de poetas célebres
da literatura clássica e contemporânea francesa, praticam bastante a leitura interpretativa de
diversas maneiras. Mas eles salientam também que, muitas vezes, o objetivo pretendido desta
prática torna-se o savoir par coeur (saber de cor). Uma das formadoras do IUFM – Institut
Universitaire de Formation de Maîtres de Paris, que prepara professores para dar aulas em
écoles e collèges, afirmou, em uma entrevista: on fait en général très peu de place à la mise
en voix des textes (prose, poème ou chanson) dans nos textes (Atribuímos em geral muito
pouco lugar à vocalização dos textos (prosa, poema ou canção em nossos textos).
Reafirmamos, portanto, que a leitura, embora sendo uma prática oral, não produz uma efetiva
recepção do texto poético e musical, não remete concretamente o sujeito a um texto percebido
e recebido como poético, literário.
Reflexões e hipóteses sobre as possíveis origens que envolvem dificuldades e
carências de abordagens interpretativas mais diversificadas e criativas do trabalho com textos
poéticos e musicais em práticas escolares, apontam para implicações no âmbito da história da
educação francesa. Há também o fato de que o professor desconhece a efetiva contribuição de
uma metodologia de trabalho que valorize a expressão oral e a interpretação do texto por meio
22
Se nós falamos das rimas, da musicalidade, do ritmo de um texto poético, é raro que os alunos sejam
levados a vocalizá-lo, a fazer vibrar as palavras, a fazê-las rolar na boca ou mesmo a escutar uma
leitura sobre uma faixa sonora (registros de Apollinaire, de Tzara...).
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da voz, da declamação, permitindo, assim, uma nova relação entre o sujeito e o texto, entre a
literatura e a experiência estética.
Existem ainda fortes indícios de que o desenvolvimento da oralidade em sala de
aula – incentivado por diferentes tipos de interlocução, por meio de diálogos com o coletivo,
de leituras de textos poéticos, da palavra falada e cantada, valorizada pela riqueza
interpretativa dos textos – seja, muitas vezes, considerado pelo professor como um trabalho
exaustivo, pois exige uma reorganização das diretrizes pedagógicas por ele utilizadas
cotidianamente, implica uma renovação de suas práticas mais voltadas à escrita e à leitura
textual.
As atividades com a oralidade, por outro lado, exigem também um dinamismo no
qual o aluno deverá ser o sujeito das ações, das relações com o texto, a partir daquele que
mais lhe interessa, enfim, o aluno assume uma atitude de interação com o texto, envolvendo a
voz e o corpo. Tal interação demanda domínio do professor no direcionamento do trabalho,
tanto do ponto de vista da disposição das falas, da escolha dos textos juntamente com os
alunos, da organização do espaço, quanto de sua forma de condução destes trabalhos, no
sentido de tornar esta prática efetivamente valorizada e compreendida como fundamental ao
conhecimento e à percepção da linguagem. O investimento nesta direção do trabalho
pedagógico, que dá a voz aos alunos e permite uma co-participação do grupo, portanto, muitas
vezes é visto como uma atividade trabalhosa que, além de tudo, exige um tempo incompatível
com a obrigação de cumprimento dos conteúdos previstos nas diretrizes curriculares.
Outras análises apontam para o fato de que a linguagem oral, como expressão
autônoma do aluno, ao longo de muitos anos, foi limitada ao objetivo de manter o controle
disciplinar. Hoje, em colégios e universidades francesas e brasileiras, este quadro parece não
apontar para grandes mudanças. Assim, o papel da oralidade na educação francesa tornou-se
secundário ao longo dos últimos 30 anos, tendo sido recuperado nas aulas de língua, em que o
aluno é convidado a expressar-se, a perceber e a compreender a língua em diversas situações
de exercício da expressão oral.
Em análise feita por professores universitários 23 e pesquisadores de programas de
pós-graduação, argumenta-se com freqüência sobre o fato de que o ensino universitário
23
Análises e avaliações desta natureza foram feitas em encontros periódicos de pesquisadores e alunos
da graduação e da pós-graduação da Université Paris X – Nanterre.
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francês prioriza o ensino da gramática, e que o aluno tem chegado à universidade sem saber
escrever. Em relação ao ensino da literatura, as diretrizes curriculares prezam, em vantagem,
pela análise literária, pela produção de texto e pela redação. São listados saberes que limitam
a ação autônoma do professor, na medida em que estes saberes devem ser ensinados como
conteúdos formais e não preveem, efetivamente, práticas e ações educativas e culturais com a
literatura.
III) Florespinho do Lácio: oralidade e escrita
Interessantes reflexões são suscitadas por Elie Bajard24, ao discutir o conceito de
“leitura em voz alta” e sua significação no contexto escolar, político e social:
A “leitura em voz alta” tem também uma outra responsabilidade. Antes do
século XX a França ainda não está lingüisticamente unificada e em muitas
províncias se falam dialetos. Ensinando uma única língua, a escola pode
assumir o papel de cimento da unidade nacional. É preciso então que o
francês suplante em toda parte as línguas locais. Longe de serem vistas como
uma riqueza lingüística, essas últimas são consideradas perigosas para a
unidade da nação. Proíbe-se usar as línguas locais na escola e as crianças que
o fazem são punidas. Para algumas delas, o francês é uma verdadeira língua
estrangeira. Apenas a “leitura em voz alta” pode permitir às crianças adquirir
a língua francesa em sua dimensão fonética, ou seja, naquilo que é
comumente chamado de boa pronúncia. Uma leitura silenciosa que se
contentasse em oferecer o sentido do texto, sem corrigir a pronúncia
defeituosa seria imperfeita. Assim, “a leitura em voz alta” contribui para
desaparecer o “cheiro da terra” (Chartier e Hebrard, 1989, p. 262). “Um
esforço gigantesco é solicitado para neutralizar os sotaques locais e inventar
uma elocução ‘francesa’, ou seja, nacional e não mais regional” 25.
Tal citação, ainda que faça referência a uma França anterior ao século XX, não
exime a realidade atual de situação similar. Isto porque, até hoje, o processo de aceitação e
reconhecimento das culturas permanece sendo um desafio a ser enfrentado, continuando a ser
a língua fator preponderante para a unidade nacional. A complexidade do fenômeno é grande
e divergências em seu interior tornam cada vez mais evidente o fato de que escola e sociedade
devem reconhecer a história colonial do ponto de vista do colonizador, mas também do
24
25
Elie BAJARD. Ler e dizer, p. 36.
Ibidem, p. 190.
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colonizado, aceitando, enfim, este processo de influências mútuas. Este reconhecimento
poderá proporcionar uma nova compreensão do processo histórico, amenizando preconceitos
lingüísticos, criticando a alienação vivida por sujeitos sociais que passam à margem de
valores essenciais à cultura.
Bajard explica também que, até o século IV, a prática de emissão vocal do texto
incluía a pronúncia na maneira de ler e que os textos sagrados eram “vocalizados”,
“memorizados”, lidos, relidos até que se chegasse à situação de serem entendidos pelo leitor.
A emissão vocal dissolvia as dificuldades de compreensão que poderiam ser de ordem
lingüística, filosófica, espiritual. Neste sentido, era preciso oralizar para compreender. Tal
procedimento, em que os signos escritos são transformados em signos orais, em que cada
elemento da escrita torna-se elemento do oral, originou o que era chamado de decifração.
Bajard nos diz que esta é a estrutura do Antigo Regime, para o qual, para ler bem é preciso
decifrar bem. A compreensão não faz parte, portanto, do ato de leitura propriamente dito;
ela ocorre depois deste lento trabalho de transposição dos signos escritos em signos vocais26.
O autor diz ainda sobre a existência do “uso convivial” da “leitura em voz alta”,
em cuja prática o texto é comunicado oralmente para as pessoas que não sabem ou não podem
ler; fala também da escuta dos livros lidos em família, e, curiosamente, por cegos que, na
Espanha, divulgavam os textos escritos, decorando-os, ou pela mediação de um leitor público,
como é o caso da literatura de cordel no Brasil. Tais procedimentos constituem várias formas
de compartilhar a leitura, possibilitando o leitor e o ouvinte a apreciá-la. Estas atividades
passam a ser chamadas de “leitura em voz alta”. Esta, nas Instruções Oficiais francesas de
1923, se torna leitura expressiva ... na qual o escolar prova, por sua maneira de ler, que
compreende o que lê, pois sua dicção exprime a idéia do trecho”.
Do ponto de vista do conceito de “leitura em voz alta”, Elie Bajard argumenta que
ele não é mais operatório. A terminologia “leitura em voz alta” seria somente adequada
quando o leitor faz uso da voz para compreender o texto e não somente para fazer uma
emissão dele. Assim, quando os professores comunicam livros ou textos aos alunos, o que eles
estão fazendo é uma atitude de “emissão” do texto, e não de recepção. Neste caso não há
leitura, não há interpretação, pois não ocorre a recepção. Assim, como também argumenta
Bajard, a competência de leitor é também diferente da competência de transmissor.
26
Elie BAJARD. Op. cit., p.33.
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A leitura silenciosa, por outro lado, inicialmente tornou-se uma leitura bastante
criticada, considerada superficial. Mas neste intenso debate, sua importância foi sendo
relevada por seu valor de interioridade, de subvocalização, como uma atividade produtora de
sentido. Assim, com o nascimento da imprensa no séc. XVI, a leitura começa a se tornar um
encontro individual com o texto, e o caráter coletivo da transmissão vocal deixa de ser
hegemônico.
Assim nos diz Bajard27:
Pudemos observar, ao longo da história, que o modelo da verdadeira leitura
foi durante muito tempo a “leitura em voz alta” e que a noção de “leitura
silenciosa” nasceu progressiva e tardiamente. Esta última, inicialmente
recusada, adquiriu pouco a pouco a qualidade de atividade de leitura, antes
de se tornar o seu modelo. A “leitura em voz alta”, por sua vez, se viu
gradualmente despojada de seu prestígio e mesmo de sua legitimidade.
Através da evolução das representações da “leitura em voz alta”, assiste-se,
contudo, à permanência de certas funções que, mesmo não inerentes ao ato
de ler, são bastante importantes. Uma delas é a função que diz respeito à
convivência, ou seja, a função comunicativa. A leitura, que é um encontro
individual com um texto, exclui essa dimensão. Essa função de convivência
se estabelece a partir de um texto escrito, preexistente, que não é o único
canal de comunicação, uma vez que ele se articula com outras linguagens.
De fato, a leitura silenciosa, não só em escolas francesas, como também nas
brasileiras, tem, há várias décadas, um valor bastante estimado, conquistando seu lugar no
espaço pedagógico. Um valor que é compreendido como a ação primeira, prioritária, prévia
para a compreensão de um texto, que deve ser formada a partir desta interiorização, desta
leitura particular, subjetiva, pura, que possa vir a causar uma impressão ao sujeito, para que,
posteriormente, ele possa vir a se sentir estimulado pelo texto e pelo contexto.
Em geral, na escola brasileira, quando o aluno está diante de um texto, exige-se
dele uma leitura muito atenciosa. Em primeiro plano, espera-se que ele o compreenda, de
maneira a descobri-lo, numa impressão analítica, preliminar, que deve motivá-lo, na
seqüência, a aprofundar sua análise pela pesquisa vocabular, com consultas ao dicionário.
Uma segunda leitura é realizada, agora com a suposição de haver um maior domínio dos
27
Elie BAJARD. Op. cit., p. 52-3
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sentidos do texto. Espera-se que o aluno possa, então, “interpretá-lo”, por meio de perguntas,
elaboradas para facilitar o seu entendimento.
A leitura silenciosa, portanto, utilizada, com muita frequência, nos mais diferentes
procedimentos pedagógicos , tornou-se sinônimo de postura amadurecida, de disciplina e
concentração, comportamentos sempre tidos pelo professor como fundamentais ao aluno.
Esta é uma ação privilegiada para melhor se compreender o texto, e, consequentemente, se
conquistar o status de leitor maduro, sendo ainda uma etapa necessária para se chegar à leitura
em voz alta. Este entendimento da “leitura silenciosa”, como sendo a verdadeira leitura, a que
possibilita compreender o sentido do texto, por sua capacidade de fazer surgir uma “voz
interior”, uma “autonomia”, uma “dicção criada para exprimir a idéia do texto”, tem sido, em
algumas experiências pedagógicas brasileiras e francesas, uma “isca” eficaz.
Esta “voz interior” e/ou “autônoma tem sido formada por motivações, por formas
de condução da leitura, as quais vêm sendo experimentadas em pesquisas científicas e
projetos pedagógicos escolares. Tais projetos mostraram que, ao inverter os objetivos que
pretendem desenvolver formas eficazes de interpretação e compreensão do texto, envolvendo
atitudes de leitura e práticas com o texto, o resultado poderá se revelar mais frutífero. Assim,
a eficácia nas formas de interpretação, valorizada a priori no ato da “leitura silenciosa”,
passou a ser, com mais facilidade e efetivamente conquistada, depois de realizadas
abordagens nas quais o leitor pudesse, a princípio, desenvolver uma leitura “convivial” com o
texto. Posteriormente é que a “leitura silenciosa” surge, aí sim, como uma atitude coerente e
verdadeira, construída por uma antecipação de convivência do aluno com práticas
diferenciadas de dizer e declamar textos. Estas práticas, portanto, mostraram que a “leitura
silenciosa” passou a ser uma ação desenvolvida com sentido, com mais frequência e
qualidade, porém, não sem antes “ruminar”, “dizer”, declamar o texto.
Nossa pesquisa, realizada no ensino fundamental 28, diante de um quadro de baixa
porcentagem de alunos leitores, mostra como os procedimentos didático-pedagógicos, ao
permitirem ao aluno “dizer” o texto, fazem com que este aluno descubra a importância da
leitura e de sua expressão individual. As atividades propostas de leitura de textos diversos
28
Cf. dissertação de mestrado de Maria Auxiliadora Cunha GROSSI, defendida em 1999, denominada
Por uma pedagogia do poético: métodos e técnicas para uma comunicação dos sentidos, na qual
práticas de leitura de poesia são apontadas como eficazes à compreensão do texto assim como à
formação do leitor.
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ocorrem de diferentes formas e em espaços escolares: entre alunos de anos diferentes, no
microfone da secretaria, em salas de aula, em sala de professores, nos corredores,
laboratórios, cozinha, almoxarifado, entre outros. Alunos das 8ªs séries, hoje 9º ano,
declamavam poemas, contavam e cantavam histórias para alunos do pré-escolar. Observamos
que estas práticas, no decorrer de um ano, em uma média de 30% de alunos participantes,
índice não muito comum na escola, estimularam o gosto pela leitura e pela poesia. Nos anos
posteriores, estes mesmos alunos, que concluíram o ensino fundamental, formaram novos
grupos de declamadores de poesia e, em eventos na universidade, congressos, em bares e
casas de cultura da cidade, declamavam textos e contavam histórias.
A hipótese da pesquisa previu que a leitura silenciosa em sala de aula como
atividade cotidiana, ou na biblioteca, com a leitura de obras literárias, não tinha um verdadeiro
poder de estímulo, como atividade “em si”, cultivada como um ato individual, isolado. Em
aulas semanais na biblioteca, o comportamento do leitor, diante do livro, revelou frequente
apatia e falta de perspectiva do aluno na definição do próprio gosto pelos gêneros, pela leitura
predileta.
Com a mudança de metodologia com os textos poéticos, musicais e narrativos,
que passaram a ser “ditos”, falados, para um público de ouvintes, a relação do aluno com a
leitura mudou substancialmente. Como consequência houve uma transformação nos hábitos
de leitura de um considerável número de alunos, o que lhes possibilitou conceber uma nova
construção da leitura, diferentemente da concepção de leitura construída, ao longo de muito
tempo, como ato silencioso, interior, de fruição, como resposta a uma ação efetiva. Assim, a
leitura silenciosa não era mais nosso desejo, como uma postura ideal a priori, mas uma efetiva
prática nascida da experiência de interpretar, de sentir, de compreender os sentidos do texto,
por meio da voz, do corpo, da expressão individual.
IV) Vinde a nós as muitas formas de dizer e de falar
La lecture-spetacle poétique
Variadas são as formas de leitura pública utilizadas pelos franceses: chansons à
textes, musique de paroles, concerts des mots. Diferentemente destas, a lecture-spetacle
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poétique, caracteriza-se pela retomada que o leitor faz direto ao texto, vocalizado, fiel à
palavra do autor, com ênfase na própria voz que interpreta gêneros diversos da poesia.
Embora muitas vezes praticada em palcos das casas de cultura ou de teatros, em que se usam
discretos focos de luzes e de uma performance que se limita ao breve movimento de entrada
dos declamadores no palco, a lecture-spetacle poétique é o momento dedicado de fato à
palavra falada, com alguns efeitos de som ou performance teatral. Mas há, prioritariamente,
uma fidelidade ao texto expressa na palavra declamada, na dicção e na pronúncia, na
expressão da voz utilizada, o que poderá valorizar a leitura, comovendo ou sensibilizando o
espectador. O declamador desenvolve, assim, sua performance por meio de artifícios sonoros
vocais e de recursos tímbricos, realçando o som de uma palavra, assim como o seu
significado. Ele transita do grave ao agudo, do alto ao baixo, experimentando diferentes
inflexões para a melodia da fala. Lidos em várias línguas, os poemas, neste espetáculo, às
vezes se assemelham a melodias ontológicas e tribais.
Nestas leituras públicas, dois aspectos chamam a atenção: o aspecto propriamente
dito do exercício de declamação dos textos, e a caracterização do evento como lecturespectacle poétique. Quanto ao primeiro aspecto, observamos a qualidade sonora dos textos, a
força de sua escritura no conjunto de combinações de sentidos e de estruturas formais e
metafóricas da linguagem. O poema apresenta ao espectador uma excelência dominante. A
voz, no entanto, como manifestação sonora, como instrumento máximo desta expressão,
mostra-se presa ao texto escrito, à palavra escrita, produzindo uma impressão de ruptura entre
texto e voz. De fato, a autoridade ali era o livro.
Percebemos também que a situação de uma leitura pública não é a mesma que a
do canto, da musique de parole, do concerts des mots, o que não a exime de um encanto ou
efeito poético dados pela condição vocal. Este tipo de leitura pública em si é menos teatral. A
presença do livro, elemento fixo, freia a possibilidade de um jogo dramático dado pela força
da palavra, o que, muitas vezes, acarreta um enfraquecimento do efeito vocal. O elemento
“livro” faz com que o declamador se concentre na palavra escrita, na linha percorrida pelos
olhos, buscando não se perder em seu sentido poético, envolvido pela pronúncia e por um
conjunto maior da expressão: o corpo que olha e dialoga com o público de diferentes partes.
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Mas o livro, de fato, como nos diz Paul Zumthor 29, não pode ser neutro, em nenhum tipo de
leitura:
uma vez que ele é “literatura”, e se dirige a ele, no leitor, pela leitura, um
apelo, uma demanda insistente. Pouco importa aqui saber se a demanda é
justificada. Para além da materialidade do livro, dois elementos permanecem
em jogo: a presença do leitor, reduzido à solidão, e uma ausência que, na
intensidade da demanda poética, atinge o limite do tolerável.
Tal intensidade poética poderá ser acentuada pela presença corporal do ouvinte e
do intérprete, como no caso de leituras que objetivam uma performance corporal. Não é bem
o que ocorre com a lecture-spetacle poétique, mas nela podemos perceber também uma forte
presença do ouvinte, que observa e contempla a voz assumida pelo declamador por
intermédio do escrito, do livro. Tal situação exige, neste diálogo – aparentemente e a priori
dado apenas entre o declamador e o texto escrito – um conjunto de fatores que incidirá
também em energias corporais trocadas entre ouvinte e declamador. Não chegam a ser
performances dramáticas, mas exposições cênicas que percorrem a voz e o corpo que fala,
sente e diz.
No momento da transmissão vocal, muitas vezes o texto lido apresenta-se
fragmentado, como se estivesse inacabado. Tal fato parece assim se configurar porque,
quando a voz pronuncia a palavra, ela penetra em um espaço, que é o da escrita, mas cuja
lógica é fechada. Numa situação, em que a presença corporal do ouvinte e do intérprete é
explorada, no caso das leituras dramatizadas, por exemplo, a oralidade não se constitui desta
lógica metódica. Uma das razões desta diferença entre estas leituras, talvez se deva ao fato de
que, entre a expressão de um texto poético lido e a de um texto dramatizado ou declamado, a
diferença marcante resida na intensidade de uma presença corporal mais forte, dada ao
segundo, pois, a noção de dizer o texto, sem “lê-lo”, nos faz pensar o discurso como um
acontecimento.
De fato, ao declarar um texto de forma espontânea, cria-se um campo expressivo
de identidade narrativa mais autônoma, o qual coloca o declamador em uma independência,
ainda que relativa, em relação ao código escrito. Ao mesmo tempo, o declamador é munido de
29
Paul ZUMTHOR. Op. cit., p. 80.
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um modo próprio de dizer que não está necessariamente desatrelado do escrito, mas se
relaciona com ele de maneira mais livre e autônoma.
Esta relação entre leitura de um texto escrito e um texto transmitido oralmente,
nas leituras públicas, aponta para um trabalho bastante diferenciado, presente nas mais
variadas formas de manifestações de declamação de poemas.
Há também as leituras públicas como os concerts des mots, a musique de parole, a
chanson à textes, designativas de um fazer artístico, caracterizado pelo lugar de importância
que é dado ao texto falado, declamado, mas como palavra-canto, isto é, a palavra soando.
Trata-se, portanto, de textos que possuem sonoridade privilegiada, permitindo ao cantor uma
articulação rítmica de sua fala, em consonância com recursos instrumentais, como a
percussão, ou instrumentos harmônicos, como o acordeon, e ainda a guitarra, o baixo, a flauta.
Porém, esta música dos instrumentos possui linha melódica própria, não estando em
composição com a palavra, pois esta é falada, ritmada e não propriamente cantada. Ou seja, ao
dizer o texto, o cantor ou declamador o encena utilizando-se de uma articulação vocal rítmica
e, conforme o caso, corporal. A música dos instrumentos, neste caso, é dada por um ritmo
percussivo que acompanha a leitura do texto, mas não o compõe melodicamente. Às vezes
esta leitura deixa de ser um concert des mots, uma musique de parole ou uma chanson à
textes, passando a se estabelecer como uma canção. Neste caso, as palavras cantam, possuem
uma composição melodiosa na qual palavra e instrumentos propõem um conjunto harmônico,
como acontece com a composição musical, em que a relação palavra/música não se mantém
na independência, mas na unidade. Quando as palavras cantam, são música, por isso vários
textos literários são considerados muito ricos musicalmente.
V) O Slam Poèsie na França e no Brasil
Importante, abrangente e intenso movimento poético-musical denominado Slam
Poésie se desenvolve em Paris, em toda a França, Estados Unidos e em diversos países como
a Bélgica, o Canadá, a Alemanha, a Itália, a Singapura. Diversificadas e ricas experiências
com a palavra poética declamada, cantada, ritmada, com a leitura de textos em voz alta,
acontecem em escolas – como foi destacado anteriormente - em espaços culturais, como
bibliotecas, centros de animação, bares, praças e em variados espaços públicos informais de
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educação. São inúmeros os projetos desenvolvidos pelos chamados slammeurs. Dentre eles
são também numerosos os encontros de Slam Poésie que acontecem em lugares públicos
como bares, cafés, teatros, salas de espetáculos, cinemas, assim como em hospitais, prisões,
livrarias, mediatecas, mercados ao ar livre. Em toda a sorte de lugares reúnem-se poetas,
slammeurs (declamadores, rappers e poetas) e espectadores, sendo o slam, hoje, em sua forma
mais tradicional, um spetacle sob a forma de encontros e de torneios de poesia.
A palavra slam é originária do inglês, significa pancada ou batida ruidosa, com
força, violentamente, podendo ser traduzida também como fazer crítica severa a algo ou
alguém. Assim, a ação de slammer envolve uma intenção de tocar, sensibilizar, de forma
pungente, profunda, o sujeito e o ambiente, por meio de palavras que criem uma ruptura de
valores e sentimentos; os sujeitos são, pois, tocados pela força e pelo sentido destas palavras.
Criado em Chicago, pelo trabalhador e poeta Mark Smith, nos anos de 1980, esta
forma de demonstração da oralidade pela declamação de poesias, o slam, suscitou admiração
e um entusiasmo popular, o que permitiu sua propagação pelo mundo inteiro, trazendo novo
fôlego às cenas abertas de poesia, com a participação ampla do público. Nos clubes de jazz de
Chicago, Smith organizava competições semanais de poesia, havendo também os jurados
escolhidos pelo público. Assim, o slam tornou-se uma forma de arte internacional,
concentrando-se sob a forma de participação do público e da excelência poética, sendo
também um instrumento de democratização e arte da performance poética. Enfim, tornou-se o
lugar, por excelência, que aproximou performance e texto, oralidade e escritura, encorajando
poetas e público a se focalizarem no que eles dizem e no como dizem.
Inúmeras são também as propostas de interação com a poesia que envolvem um
público mais amplo de todas as idades, como a Opération Parlons Slam en France, lançada
pelo coletivo Slam Family, que reúne todas as iniciativas, todas as maneiras de falar slam na
França, promovendo fóruns de discussão de viva voz, publicações em revistas e vídeos e
outros projetos.
No Brasil, o Slam Poésie, também conhecido como Slam Poetry, tem se
desenvolvido, ainda que timidamente, em algumas capitais como Porto Alegre, São Paulo e
Rio de Janeiro. Em dezembro de 2006, Paulo Scott, escritor e professor universitário,
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publicou, na internet30, texto em que faz referência ao Slam Poetry no Brasil. Para iniciar sua
conversa, desafia o leitor com uma incontestável convicção de que ele nunca teria ouvido
falar nesta manifestação da poesia em “disputa”. Tal convicção adveio do fato de que ele teria
ligado para sete dos poetas mais “antenados” do país, perguntando-lhes se tinham ideia do que
a expressão significava, e apenas um disse ter vaga ideia sobre tal manifestação.
Diz Scott sobre a conversa com Chacal, poeta carioca,e Marcelo Montenegro,
poeta paulista:
Aproveitei o tema e pedi a opinião de dois poetas que, na minha opinião, têm
na oralidade uma espécie de exuberância de seus textos: o carioca Chacal e o
Paulista Marcelo Montenegro. Chacal me disse que não condena, vê nessa
experiência um retorno à celebração da oralidade, aproximando ( não é por
outra razão que a idéia nasceu nos primeiros anos do rap) a poesia do que já
era a poesia do rap. Claro que, faz questão de frisar, é preciso perceber o
caráter de brincadeira da slam poetry, porque não é possível julgar se algo é
melhor ou pior, o que conta, na verdade, é o momento: naquele momento e
para aqueles juízes há um vencedor, mas nada disso pode ser levado tão a
sério. Já Marcelo Montenegro ressalta toda a qualidade que ainda se mantém
o espaço da poesia ( o caótico, a transgressão da linguagem) e que a torna
quase o único (porque último) espaço artístico de plena liberdade,
dispensando por completo a possibilidade de ranking, de competição.
Submeter a poesia à competição é condicioná-la, é enfraquecê-la.
Scott acredita ter sido dezembro de 2006, o marco, no Brasil, da realização do
primeiro Slam Poetry promovido por poetas gaúchos – Fábio Godoh e Marcelo Noah. A partir
de então, outros eventos estariam programados para o ano de 2007.
O fato é que, na França, a “disputa” permanece mais caracterizada nos slams
regionais e/ou nacionais, em que caravanas, vindas de várias partes do país, se apresentam,
respeitando as regras do estatuto do slam poésie, sobre o qual nos referimos anteriormente.
Mas, efetivamente, a prática de declamação disseminou de tal maneira, tornando-se tão
espontânea, que a “disputa” não é aplicada nas demonstrações, nas cenas abertas, micro
abertas e nos ateliers.
30
Paulo SCOTT. Poesia em disputa: o slam poetry no Brasil.
www.terramagazine.terra.com.br Acessado em: jan/2008.
DISPONÍVEL EM:
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O jornal Le Monde Diplomatique Brasil, em matéria intitulada “Faça você
mesmo: a senha da cultura jovem”31 publicou recentemente reportagem sobre a influência do
hip hop, arte que vem sendo produzida por grupos de jovens da periferia, neste tipo de
criação. Tal matéria informa sobre experiências bem sucedidas em políticas culturais públicas
no Brasil que, efetivamente, só entraram em pauta no final dos anos de 1990. Dentre tais
políticas, realizadas na periferia de São Paulo, estão debates sobre poesia, (...) publicação de
livros, (...) documentários e saraus, que ressurgiram nos últimos anos, tomando conta da
periferia paulistana. Tudo isso na tentativa de derrubar o mito piedoso da pobreza em
sofrimento permanente.
Ainda segundo o jornal, existem também dezenas de encontros na capital e na
região metropolitana, nos quais os poetas recitam poemas consagrados, mas compartilham
também, em grande número, versos de sua própria autoria. São jovens, crianças, adolescentes,
adultos e famílias inteiras participando e assistindo aos saraus patrocinados pela Cooperifa –
Cooperativa dos Artistas da Periferia, que ocorrem às quartas-feiras no bairro Piraporinha, na
zona sul de São Paulo. Assim diz Eleilson (2008), autor da matéria:
Tem taxistas, estudantes, funileiros, escriturários, motoboys, professores,
enfermeiros. Tem gente graduada também, mas que não perdeu a humildade
nem saiu da quebrada. Allan da Rosa é um desses. Terminou o ensino
médio, sabe lá como. Fez cursinho no Núcleo de Consciência Negra e entrou
na USP. Graduou-se em História e hoje faz mestrado em Educação. Quem
primeiro leu seus versos foi seu pai, a quem o jovem poeta entregava seus
escritos quando o visitava na cadeia32.
Efetivamente, o Slam Poésie, o Slam Poetry ou os saraus representam um fértil
campo de conhecimento sobre práticas culturais com a poesia, a palavra, o ritmo e a voz. Uma
voz que pretende ser dita com a força de um despertar para a vida, para as contradições, para
as afirmações de amor, de guerra, de violência, de contemplação, de brincadeira, de poesia, de
admiração, de surpresa com o sabido e o não sabido, assim como para a beleza que todos estes
31
A referida matéria é de autoria de Eleilson Leite, historiador, programador cultural e coordenador do
Espaço de Cultura e Mobilização Social da ONG Ação Educativa. Le Monde Diplomaquique Brasil,
Janeiro, 2008.
32
Eleilson Leite. Onde mora a poesia. Le Monde Diplomatique Brasil. Publicação eletrônica.
http://diplo.org.br/2007-11,a2020
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elementos podem adquirir, pelo viés da palavra encantada, simbólica, sonhada, viva, nascida
do fazer poético compartilhado.
Conhecendo estas experiências, podemos vislumbrar a existência de um amplo e
verdadeiro conjunto de ações coletivas que movimentam – resguardadas as suas
especificidades sociopolíticas e culturais – um número considerável de pessoas e instituições
culturais e educativas, por grande parte das cidades desenvolvidas, mas também das periferias
do mundo, demonstrando enorme penetração e aceitação pública. São possibilidades de
diálogos que protagonizam a literatura, a arte e acreditam nelas como forma de compreensão e
reinvenção da linguagem e do conhecimento.
VI) Conclusão
O caminho que percorremos, para conhecer as práticas informais culturais e
educativas, no contexto da realidade francesa e brasileira, nos revelou diferentes tipos de
iniciativas e concepções de leitura. Isto nos possibilitou perceber a ênfase no ensino da leitura
como processo interpretativo, porém, não vimos nestas concepções a valorização da leitura
como processo criativo que engloba a experiência humana.
Verificamos, tanto em um contexto como no outro, a preferência por se ordenar o
mundo para o leitor e/ou ouvinte, optando-se prioritariamente pelo comprometimento com a
objetividade da linguagem escrita. É o que se chama de pedagogização do elemento estético.
A leitura literária e musical, que valoriza a polissemia da palavra em sua potencialidade, que
educa os sentidos, transformando a realidade em algo mais inventivo, mais humano e mais
socializado, muitas vezes, é abandonada. Sabe-se, pois, que muitos fracassos nestas leituras
provêm da ausência de uma delimitação precisa entre uma leitura que media o conhecimento,
produzindo sua essência, e a outra que migalha este conhecimento, fragmentando-o e
dissociando-o de uma visão interativa e dinâmica com seu todo formal e subjetivo.
Pretendemos mostrar que as formas de abordagem da linguagem poética e musical
geralmente são motivadas como um caminho que tem como objetivo primeiro a expressão
escrita. Tem-se, portanto, como importante fundamento o fato de que é pela escrita que o
aluno “toma consciência da linguagem”, aprende a tratá-la como um objeto que se
“manipula”, “retoca”, “melhora”. A palavra falada, cantada, declamada, principalmente
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dentro de escolas e universidades não se constitui, nestas práticas, como uma linguagem sobre
a qual os alunos deveriam manifestar domínio quanto a seus códigos próprios, como dicção,
pronúncia, entonação, com seus referenciais melódicos e de tons, de intensidade, com as
mesmas exigências de realização às quais faz jus a linguagem escrita.
Vimos que, na experiência francesa, a diversidade de atividades de leitura por
meio da declamação de poesia, das variadas formas de falar o texto, de vocalizá-lo está muito
presente fora do espaço escolar, o que, no Brasil, constitui-se de forma ainda mais tímida. Por
outro lado, percebe-se uma fragilidade deste trabalho, como parte integrante do ensino de
literatura, em colégios e universidades brasileiras e francesas. O que se observa são
metodologias que não facilitam a recepção do texto literário do ponto de vista performático da
voz e da palavra falada e cantada. E nos indagamos: Por que iniciativas vindas da expressão
oral, da vocalidade dos poemas, espontâneas e legítimas, que expõem o texto de forma
interativa, que envolvem o sujeito em uma ação e não em uma sujeição, estão tão ausentes das
atividades acadêmicas?
Derrida, um dos pensadores mais polêmicos do nosso tempo, desenvolve suas
reflexões sobre o pensamento ocidental, o qual qualifica de logofonocêntrico. Logo, firma sua
crença na soberania da razão, e fono, porque atribui à fala um privilégio em relação à escrita.
Em Gramatologia, ele diz que há na filosofia tradicional uma assimilação do logos à fala. Há
um esforço laborioso para se afirmar uma ligação essencial entre conhecimento, logos e fonia,
porque nessa ligação está fundado o privilégio que se concede à consciência. Para empreender
a sua desconstrução ao logofonocentrismo, Derrida toma como ponto crítico a noção de
representação que vem sendo atribuída à escrita, no campo da Filosofia e das ciências que têm
como objeto a linguagem. Nesta noção, é atribuído à escrita o papel de representação da
linguagem oral. O alvo de sua crítica é a noção saussuriana da escrita como imagem, já que a
ela é atribuída uma exterioridade. Assim, Derrida argumenta que não é próprio do signo ser
imagem. A escrita não é imagem ou figuração da língua, não sendo, portanto, um signo do
signo. Neste sentido, para o filósofo, a tese da arbitrariedade do signo seria um obstáculo à
distinção radical entre o signo oral e o signo gráfico.
Compreender é opor à palavra do enunciador uma contrapalavra, ou ainda, uma
série de palavras para formar uma réplica. Desse modo, vemos que os sujeitos leitores
assumem posições interpretativas diante do livro, da leitura, da música, do poema, do teatro,
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do cinema, construindo, dessa forma, posicionamentos identitários e a própria constituição de
sua subjetividade. Isso acontece porque a leitura é uma atividade constitutiva de identidades,
que se caracteriza como uma forma de interlocução em que o sujeito se constitui,
intersubjetivamente e de forma dialógica, a partir das palavras do outro.
As relações entre o oral e o escrito têm se desenvolvido sob a forte presença de
novas técnicas de difusão da escrita. Também são nítidas as dificuldades para entendermos
uma mutação tão rápida, que transforma hábitos e percepções e lança profundos desafios em
relação às formas com que costumamos manejar estas percepções para penetrar e produzir
culturas presentes no oral e no escrito.
Bibliografia
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UM ESTUDO DE PROPOSTAS DE LEITURA DE POESIA
EM LIVROS DIDÁTICOS
Maria de Lourdes Bacicheti Gonçalves33 (PG-UEM)
A formação do leitor é um processo contínuo que se estende por toda vida escolar
e social. Embora não se inicie na escola, é nela, formalmente, que o indivíduo recebe os
alicerces para sua constituição enquanto leitor. Quando o centro da discussão é a formação do
leitor e a leitura do texto literário, especificamente da poesia, discutir acerca da prática de
leitura do texto literário desenvolvida pela instituição escolar é essencial, uma vez que a
escola, como instituição que tem como atribuição a responsabilidade pela educação literária,
utiliza, primordialmente, em seu trabalho de escolarização, para encaminhar sua prática e
atingir seus objetivos pedagógicos, o texto escrito, na maioria das vezes, inserido no livro
didático.
É fato corrente que o ensino da leitura no Brasil apresenta resultados alarmantes.
Pesquisas divulgadas por estudiosos ligados às instituições de ensino superior, bem como
pelos próprios órgãos governamentais responsáveis pela avaliação do sistema educacional
brasileiro comprovam-nos. Quando se trata da leitura literária, a situação se torna mais
problemática. Diante das condições que se apresentam, emergem questionamentos: Existe
leitura literária na escola? Se existe, como é encaminhada? Por que há tanta dificuldade na
leitura de textos literários?
A principal tarefa da escola é a formação do leitor, contudo seu ensino impõe
determinados encaminhamentos, visto que a efetivação dessa incumbência, conforme destaca
Zilberman (1990, p. 18), “[...] depende de se conceber a leitura não como o resultado
satisfatório do processo de alfabetização e de codificação de matéria escrita, mas como
atividade propiciadora de uma experiência única com o texto literário”. A associação da
literatura e da leitura promove a legitimidade desta última.
A conceitualização de leitura é bastante controversa. O trabalho que o professor
realiza em sua prática em sala de aula está diretamente vinculado ao conceito que tem dessa
prática. A compreensão do ato de ler em nossa sociedade está intrinsecamente ligada à
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resolução de questões que permeiam o nosso cotidiano e ao trabalho desenvolvido pela
escola, uma vez que os modelos consolidados nessa instituição passam a influenciar os modos
de ler além desta.
Os livros didáticos reforçam o entendimento da leitura que tem como fim a
resolução de questões práticas. Zappone (2001) mostra que pesquisas realizadas em diferentes
regiões do país revelam que, em relação às práticas de leitura, tanto os textos referenciais
como os textos literários têm o mesmo tratamento, ou seja, são utilizados para encontrar
informações ou para memorizá-las, estabelecer relações interdisciplinares ou como pretexto
para elaboração de outros tipos de atividades.
Em razão do caráter polissêmico do texto literário, a formação do leitor não pode
se ater às formulas convencionais de leitura dos demais textos (de natureza referencial) e nem
ser impositiva. O texto poético requer um tratamento próprio, sistemático e gradual, em razão
de sua natureza e complexidade. Assim, embora a poesia seja um gênero menos privilegiado
no ambiente escolar e, muitas vezes, não receba um tratamento metodológico adequado que
contribua para o conhecimento de seu valor estético, os currículos e as diretrizes educacionais
continuam valorizando a literatura e, consequentemente, a poesia, como textos fundamentais
no trabalho escolar. A razão dessa valorização talvez possa ser elucidada pela compreensão
das características do discurso literário e de sua importância na formação das crianças e
jovens. Candido (1972, p. 806) destaca a literatura como uma necessidade universal do ser
humano. “Ela não corrompe nem edifica; [...] mas, trazendo livremente em si o que
chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz
viver”. Da mesma forma, Zilberman (1990, p. 13) enfatiza sua relevância ao afirmar que uma
questão é fundamental e continua atual: “[...] a de que o texto poético favorece a formação do
indivíduo, cabendo, pois, expô-lo à matéria-prima literária, requisito indispensável a seu
aprimoramento intelectual e ético”.
Diante disso, uma das questões centrais do trabalho escolar é oferecer ao aluno os
conhecimentos para este se torne um leitor de textos literários. A leitura de textos literários
pressupõe a participação ativa do leitor no estabelecimento dos sentidos linguísticos e a
ativação de conhecimentos textuais específicos.
Na presença de um texto literário, o leitor precisa acionar certos mecanismos e
colocá-los em funcionamento no ato de ler. Não basta que faça uma leitura superficial da
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obra, é necessário investigar as especificidades do texto para compreender sua estrutura, sua
organização, a fim de compreender seu valor estético. Não parece, no entanto, que esses
objetivos vêm sendo cumpridos, já que estudos têm mostrado a ineficácia da escola no
cumprimento de sua função de formar leitores e no desenvolvimento do gosto pela leitura.
O processo de formação de um usuário da língua é mediado pelo livro didático.
Oferecido às instituições escolares como um dos instrumentos de trabalho do docente, ele
acabou ganhando legitimidade no processo educacional, ao tornar-se, nas escolas brasileiras,
o guia central do processo ensino-aprendizagem. A escolha textual, suas propostas de leitura,
seus encaminhamentos de produção textual, de análise linguística foram seguidos, muitas
vezes, à risca, sem questionamentos, sem análise criteriosa, provocando efeitos que se fazem
sentir até hoje na sociedade. Visto como um dos responsáveis pelo fracasso escolar neste país,
o livro didático passou a ser objeto de investigação, estudos e encaminhamentos tanto por
parte dos educadores quanto dos próprios órgãos oficiais responsáveis pelos rumos da
educação brasileira.
Diante de todas essas considerações, é fundamental discutir com todos os
envolvidos com as questões educacionais, sobretudo os professores do Ensino Fundamental, a
respeito do material que têm nas mãos para auxiliá-los em seu trabalho, para que não se vejam
como simples repassadores de propostas com as quais não comungam ou que não analisaram,
não questionaram, não reformularam o projeto.
Como contribuição a essa discussão, este estudo traz como especificidade uma
pesquisa sobre os modos de ler a poesia propostos em duas coleções de livros didáticos,
associando-os às proposições da leitura literária subjacentes na escola, tendo como objetivo
investigar se as propostas de leitura da poesia lírica nos livros didáticos contribuem para a
formação de leitores literários. Procura analisar se a forma como as abordagens são
encaminhadas nos livros didáticos do 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental contribui para que
o aluno-leitor perceba, com clareza, a estrutura que organiza o texto poético, e que constitui
sua natureza específica, de forma a auxiliar em sua formação literária.
Para atingir tal fim, foram realizadas pesquisas bibliográficas sobre leitura
literária, sobre o papel da crítica na construção de modelos para leitura do texto literário,
sobre a relação escola/livro didático e sobre a poesia lírica; investigou-se se os livros didáticos
fornecem, de forma sistemática e gradual, as convenções e os protocolos de leitura do texto
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poético; finalmente, procurou-se verificar se as abordagens de leitura do texto poético
propostas nos livros didáticos contribuem para a formação literária. A pesquisa foi realizada
em duas coleções Ler, entender, criar, de Maria das Graças Vieira e Regina Figueiredo
(VIEIRA; FIGUEIREDO, 2007), da Editora Ática, neste estudo denominada Coleção 1, e
Projeto Araribá (KANASHIRO, 2006), obra coletiva produzida pela Editora Moderna,
denominada Coleção 2.
A leitura da poesia nos livros didáticos
Ao estudar o papel do livro didático e a formação do leitor, constata-se que,
durante muito tempo, essa relação foi marcada por aproximações e desencontros, sabores e
dissabores, que até hoje se refletem socialmente. Conforme discute Moriconi (2002), as
experiências de leitura, na instituição escolar, evidenciam o interesse ou a resistência à leitura,
e isto é perceptível quando pessoas afirmam que não gostam de ler, fato proveniente, muitas
vezes, de experiências e práticas de leitura pouco instigadoras implementadas pela escola.
A análise de livros didáticos tem evidenciado que houve avanços em muitos
aspectos após o processo de avaliação a que foram submetidos, como demonstra Rangel
(1998, 2005). No entanto, há ainda muitos pontos que precisam ser revistos para que eles se
tornem um forte aliado do professor na aquisição da competência da leitura literária.
Comprova-se que as atividades escolares que envolvem leitura no livro didático ainda
precisam passar por análises e revisões para que possam dar os embasamentos necessários
para a leitura eficiente de textos, conforme mostram pesquisas e artigos de estudiosos das
questões educacionais (SOARES, 2001; BATISTA, 2003; SOUZA; AZEVEDO, 2004;
PASSOS, 2004). A isso, podem ser acrescidas as deficiências na formação dos próprios
docentes que, em alguns casos, levam a práticas que pouco têm contribuído para a leitura
proficiente, visto que, se os docentes não tiverem preparados para utilizar o livro didático e
superar as dificuldades que possam surgir, as falhas continuarão a dificultar a aprendizagem.
Em relação às coleções analisadas, verifica-se que elas apresentam uma variedade
de gêneros textuais, o que contempla, nesse aspecto, orientações dos PCNs (BRASIL, 1998),
quanto à importância da escola como espaço singular, legitimado para a formação de leitores
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e que precisa colocar, nas mãos de seus alunos, uma ampla variedade de textos, sobretudo de
textos literários.
O estudo dos textos que fundamentam a proposição das atividades nos livros
didáticos examinados, considerando-se, nesta pesquisa, os textos principais (aqueles que
servem como textos-guia de cada unidade e foram focos do presente trabalho) e não os textos
secundários ou complementares (aqueles propostos somente para leitura ou como pretextos
para outros fins), revela o registro de uma ampla variedade de textos oriundos das mais
diversas fontes: textos jornalísticos, de divulgação científica, instrucionais, literários, pinturas,
fotos, histórias em quadrinhos, entre outros.
Ante a proposta de trabalhar com diferentes tipos de textos, percebe-se que há
preocupação dos autores das duas coleções dos livros didáticos em oferecer o acesso a uma
ampla variedade de textos que circulam socialmente, assim contribuindo para que o aluno
diferencie tipo de gênero e observe os usos concretos de cada gênero.
As coleções apresentam a temática por meio de uma coletânea de textos variados,
que parece ter como fim despertar o interesse do aluno para leitura. Os textos têm origem no
uso concreto em nossa sociedade letrada. Destacam-se, sobretudo, textos extraídos de jornais
e revistas de forte circulação no país e, quando literários, escritos por autores consagrados.
Em relação aos textos literários, nas coleções analisadas, seus livros contemplam,
primordialmente, aqueles considerados pela crítica literária como textos de qualidade
indiscutível. Alguns autores, como Luis Fernando Veríssimo, Rubem Braga, Vinicius de
Morais, José Paulo Paes, Cecília Meireles e, em especial, Drummond de Andrade, são
contemplados com diferentes textos ao longo dos volumes analisados.
Embora os autores dos livros didáticos pesquisados procurem colocar à disposição
dos alunos e professores textos poéticos aprovados pela crítica, tais textos representam uma
minoria nos livros didáticos, já que muitos poemas, neles presentes, são utilizados para
diferentes fins e não para o prazer, a fruição e o conhecimento de sua tessitura, ou seja, para
um estudo mais profundo de suas especificidades e de sua composição. Quando são
apresentados como textos principais da unidade, para um estudo mais aprofundado, muitas
vezes, não há um trabalho sistemático de sondagem de seus elementos essenciais. As
abordagens são superficiais e não colaboram para sua apreensão e análise abrangente. O
estudo de tais elementos é realizado, como forma de exemplificação, por meio de diferentes
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textos, no entanto, nos textos-base, as múltiplas possibilidades de leitura que eles oferecem
não são examinadas.
Lajolo (1993) e Colomer (2001) reforçam a compreensão desse aspecto ao
enfatizarem que não basta a presença de bons textos para que a prática da leitura tenha
resultados satisfatórios, visto que “[...] o texto tido como bom pode ser diluído pela
perspectiva de leitura que a escola patrocina através das atividades com que ela circunda a
leitura” (LAJOLO, 1993, p. 45). Colomer (2001) acrescenta que é necessário que o professor
realize um trabalho que leve os estudantes a refletirem sobre os textos e que eles possam
expressar suas opiniões e ideias.
Se, até pouco tempo, as questões de compreensão e interpretação propostas nos
livros didáticos eram fechadas, e o leitor, diante delas, tinha um papel passivo, verificam-se,
nos livros analisados, mudanças que, ainda que necessitem de novos exames,
encaminhamentos e reformulações para um diálogo mais efetivo com o leitor, apresentam
tendências positivas. O exame realizado nesses volumes evidencia que, nas propostas de
leitura, ainda se observam questões que não mobilizam e nem contribuem para o
desenvolvimento de habilidades necessárias ao desempenho eficaz na leitura, já que estas são
apoiadas exclusivamente no escrito, em atividades de decodificação do texto ou de
reprodução de conteúdos, o que coincide com os resultados dos estudos desenvolvidos por
Souza e Azevedo (2004). No entanto, em muitas questões, prevalecem proposições que
exigem que o leitor discuta o texto, faça afirmações inferenciais, extrapole os limites do texto
e cujas respostas vão exigir reflexão, julgamento e habilidades argumentativas. Essas questões
requerem que o aluno-leitor busque em seu repertório uma série de informações, que faça
associações para que possa compreender o texto e, ainda, que ative informações explícitas e
implícitas obtidas por intermédio das marcas e pistas textuais, para que ele possa, mediante
esse processo, elaborar informações novas e, desse modo, reconstruir os possíveis sentidos.
Apesar de o método de abordagem do texto poético ser adequado, ou seja, supor
atividades cognitivas importantes, como a inferência, a comparação, a reflexão, entre outras,
constata-se, entretanto, que as questões que promovem tais atividades não apresentam uma
boa gradação com relação ao conteúdo que exploram. Desse modo, as propostas didáticas,
evidenciadas nas questões, pressupõem que o aluno faça uma série de inferências sem que
tenha subsídios para tal tarefa. Se os elementos que caracterizam o poema estão na linguagem
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e, como enfatiza Lajolo (1993, p. 45, grifos da autora), “[...] na medida em que a linguagem é
uma construção da cultura, para que ocorra a interação entre o leitor e o texto, e para que essa
interação constitua o que se considera uma experiência poética”, é necessário que o leitor
possa distinguir e reconhecer os elementos de linguagem utilizados pelo autor para a
composição de seu texto. Assim, as abordagens de leitura de tais textos devem contribuir para
que os alunos-leitores conheçam e tenham percepção desses elementos. A poesia lírica requer
de seu leitor a ativação de conhecimentos de diferentes campos. A crítica literária tem
apontado os pontos essenciais que têm que ser observados na análise desse gênero textual,
sem esquecer que a literariedade de um texto deve ser inscrita na experiência de leitura,
conforme discutem os teóricos da Estética da Recepção, entre eles, Jauss (1994) e Iser (1996)
e, para isto, a interação leitor/texto é fundamental.
Desse modo, para cumprir seu papel em relação à leitura literária, os livros
didáticos precisariam apresentar um número maior de questões, de modo a abarcar os
diferentes níveis de composição dos textos que pretendem colocar como objeto de leitura,
contemplando aquilo que Soares (2001, p. 44, grifos da autora) recomenda em relação à
leitura de um texto literário: o exame “[...] daquilo que é textual e daquilo que é literário”.
Realizada dessa maneira, a forma de abordagem do texto seria produtiva, porque, nesta
sociedade tecnológica, permeada de informações que exigem posicionamento pessoal, é cada
vez mais importante, nas mais diversas situações, identificar coisas, entender fatos, selecionar
valores, verificar informações, ter o domínio sobre determinadas normas gerais de
classificação, saber buscar e analisar, interpretar informações e selecioná-las entre as
inúmeras possibilidades que a realidade apresenta ao indivíduo. Compreender um texto é um
processo construtivo, participativo que não se restringe a copiar ou extrair informação do
texto, nem mesmo envolve apenas conhecimento linguístico.
Para que a experiência com a leitura de textos literários, particularmente de
poesia, seja significativa, o trabalho pedagógico que circunda o uso desse tipo de texto deve
cativar o aluno para que ele perceba, ao ler, o valor dessas produções. Para atingir esse fim,
deve ser planejado de tal modo que o aluno possa tomar conhecimento do texto, penetrar nele
e compreendê-lo. Contudo, tem-se consciência de que a escola está inserida numa sociedade
na qual as condições sociais não contribuem para a valoração e experiência efetiva com esse
gênero textual. A questão se torna problemática quando se verifica que, ao inserir diferentes
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gêneros textuais no livro didático, os literários estão, gradualmente, perdendo espaço, a ponto
de representarem uma percentagem menor em alguns volumes das coleções analisadas. Os
textos literários precisam continuar alicerçando a vivência da criança e do adolescente de
forma intensa, porque a literatura, ao mesmo tempo que proporciona conhecimento de mundo,
oferece prazer e, desse modo, contribui, como nenhum outro texto, para a experiência
existencial do leitor, razão pela qual não pode faltar em seu universo.
O exame de como se caracteriza a leitura da poesia lírica nas coleções revela que
os poemas continuam a ser um gênero literário pouco valorizado no espaço do livro escolar,
não pelo número de textos nele inserido, já que eles têm presença nos diferentes volumes,
porém, sobretudo, pelo número reduzido de unidades que se dedicam a um trabalho efetivo de
sua leitura. Não há, ao longo de cada coleção examinada, uma proposta contínua e sistemática
de apreensão de seus elementos fundamentais (gráficos, sonoros, sintáticos, lexicais e
semânticos). Os códigos e os protocolos da poesia lírica são apresentados e reforçados, de
forma gradual, em poucas unidades das coleções. Falta, além disso, um trabalho mais
aprofundado que mostre os efeitos de seu uso nos poemas, como este contribuiu para sua
expressividade, como a forma e o conteúdo se unem para conduzir o leitor a instituir o sentido
do texto.
Se, no primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental, a proposta de leitura da
poesia lírica tem como objetivo intensificar o prazer e o encantamento que a poesia oferece: a
leitura-prazer, no terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental, é preciso, gradualmente,
trabalhar a especificidade do texto lírico de tal forma que o prazer da leitura não se perca. É
relevante também aprofundar o estudo das convenções e dos códigos da poesia, da
organização de sua estrutura, não apenas com preocupação de apropriação da metalinguagem
relativa ao gênero, mas de forma que esse estudo contribua para que os alunos possam
perceber como cada elemento auxilia para o significado do todo, especialmente, para seu
aspecto lúdico, mágico e criativo.
Nas duas coleções analisadas, apesar das poucas unidades dedicadas ao estudo dos
poemas, percebe-se que há preocupação com a escolha dos textos e com a adequação do
poema à faixa etária a que se destina. No terceiro ciclo do Ensino Fundamental, os poemas
primam pela ludicidade e sonoridade. No quarto ciclo, são marcados por recursos expressivos
e imagens que exigem um leitor com mais domínio das convenções desse gênero textual. No
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entanto, se essa adequação é visada na seleção do poema, o mesmo não ocorre em relação às
questões propostas, uma vez que, a partir dessa fase, as abordagens de leitura deveriam
apresentar um processo gradativo no grau de complexidade, tanto em relação ao conteúdo
quanto aos aspectos ligados à forma.
A investigação das coleções indicou que, ao abordar os textos, a discussão do
tema tem primazia em relação aos demais aspectos. O tipo, o gênero e seus usos efetivos são
discutidos com pouca frequência. Quando se trata dos elementos formais – verso, estrofe,
rima – não se examinam o porquê de sua utilização e ocorrência e a importância desses
recursos para a produção de significação dos poemas. A discussão gira em torno de seus
conceitos. Amora (1971) adverte que uma obra literária só pode ser compreendida pela
investigação integral de suas partes. Desse modo, as propostas de leitura do texto poético
dessas coleções vêm reforçar que o exame de apenas alguns de seus elementos não contribui
para a compreensão do todo poético.
Uma estratégia bastante produtiva é a entrada cognitiva no texto por meio do
título, um elemento fundamental para a produção ativa e propositiva de sentido do texto. Na
Coleção 1, o título é trabalhado no primeiro poema do primeiro volume, no entanto esquecido
nos demais. Na Coleção 2, é explorado em algumas das propostas de leitura de modo a
conduzir o aluno a levantar uma série de hipóteses que ele poderá substituir ou acrescentar
após a leitura global. Quando o título é estudado, os autores propõem uma série de atividades
envolvendo-o: analisá-lo, justificá-lo e substituí-lo, solicitando ao aluno que observe que
efeito(s) as alterações provocam.
Na Coleção 1, constata-se que não há um planejamento quanto ao ensino gradual
das convenções e dos códigos literários. Não há uma proposta efetiva e contínua de
compreensão das especificidades do modo lírico. Seu estudo tem início, na 5ª série, com a
noção de poema, verso, estrofe e rima. Esse trabalho é interrompido na 6ª série, já que o
estudo da poesia não é privilegiado no volume para estudo. A poesia é utilizada apenas para
outros objetivos e, com isso, priva-se o aluno do contato e trabalho com esse gênero.
As convenções da poesia lírica são retomadas na 7ª série, no entanto, sem
aprofundamento e sem que se estabeleça sua relevância para a expressividade do poema.
Introduzem-se as noções de aliterações, assonâncias, os efeitos das repetições e dos
neologismos. Na 8ª série, discute-se a poesia lírica em duas unidades. Na sexta unidade, são
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trabalhadas as noções de linguagem denotativa/conotativa; objetiva/subjetiva; linguagem
figurada; neologismos. Na décima unidade, discutem-se a sonoridade, a musicalidade, o uso
da pontuação e dos elementos gramaticais nos poemas. Retoma-se a noção de rima e versos,
ampliando-se a compreensão desses conteúdos e trabalham-se as figuras de linguagem. A
deficiência está no fato de que, em vez de promover a compreensão de como as figuras
colaboram para os efeitos nos poemas principais em exame, essas noções são trabalhadas em
texto informativo e em trechos de poemas. Com isso, perde-se o momento oportuno de
mostrar aos alunos como os poemas são construídos e que recursos são empregados nesse
processo. Embora apresente alguns pontos a reavaliar, se cada volume da coleção
apresentasse uma proposta de estudo da poesia como feito no volume da 8ª série, a coleção
poderia contribuir para um estudo mais sistematizado do modo lírico. Reafirma-se, dessa
forma, a importância de complementação das lacunas relativas às especificidades de tal
gênero.
Na Coleção 2, o estudo da poesia está ancorado num planejamento para a
compreensão e aprendizagem de seus códigos e suas convenções em cada unidade que se
propõe ao seu exame. A proposta de leitura retoma e reforça os conteúdos de diferentes
formas, bem como enfatiza sua ocorrência em textos variados, num processo gradativo.
No volume destinado à 5ª série, trabalha-se o conteúdo concomitante à discussão
de aspectos formais. A proposta tem início com a discussão do eu-lírico, ao mostrar como este
se configura no poema quando expressa emoções, sentimentos e impressões, contribuindo,
com isso, para o conhecimento da realidade e do ser humano. As noções de verso e estrofe e
seus tipos são trabalhados por meio de quadros explicativos e de sua ocorrência nos poemas, o
mesmo acontece com a contagem de sílabas poéticas dos versos nos poemas em estudo. Os
tipos de versos, o ritmo, a rima e os efeitos provocados pela disposição dos versos nos poemas
são focos de atenção, no entanto faltou um exame mais consistente de seu emprego nos
diferentes textos analisados na unidade. Os recursos de repetições (assonância, aliteração)
também são apresentados nos quadros explicativos e são discutidas as relações que mantêm
no poema.
Na 6ª série, retoma-se o conceito do eu-lírico, bem como sua manifestação nos
textos poéticos, porém o interesse volta-se para as figuras de linguagem, ao trazer à reflexão
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como seu uso contribui para a compreensão dos textos, para o aprimoramento e a beleza da
linguagem e para o sentido simbólico das palavras e dos poemas.
Os conceitos de eu-lírico, verso, estrofe e rima são revistos no volume destinado à
7ª série, contudo não são examinados nos poemas da unidade. Nesse volume, o uso e a
ocorrência de outros recursos poéticos como a enumeração e a repetição de estrutura sintática
são introduzidos como forma de imprimir expressividade, ritmo e carga emotiva ao texto. Da
mesma forma, as atividades conduzem à análise da força significativa da pontuação e das
figuras de linguagem, as quais dão sustentação aos poemas.
Os poemas visuais têm destaque no volume da 8ª série, em que se privilegiam os
resultados da organização e da forma para seu sentido. Retomam-se os efeitos provocados
pelas repetições e, sobretudo, trabalham-se as figuras de linguagem em diferentes poemas.
A coleção discute, de modo contínuo, os recursos da linguagem poética, dando
ênfase às repetições (ritmo, aliterações e assonâncias), recursos diretamente associados ao
ritmo que dão musicalidade ao poema. Tais recursos são observados tanto na capacidade
sonora da frase como na possibilidade de seu arranjo. As rimas, as estrofes, as sílabas
poéticas, os tipos de versos, aspectos discutidos no volume da 5ª série, são, entretanto,
praticamente ignorados nos demais volumes.
As figuras de linguagem recebem tratamento especial nessa coleção. Esse é um
ponto positivo, uma vez que, conforme discutem Amora (1971) e Culler (1999), é por meio
delas, sobretudo, que se renova a linguagem, transmitem-se sugestões e conteúdos intuitivos.
Por meio delas, o poeta demonstra ou dá realce a aspectos da realidade não percebidos pelas
demais pessoas que, desse modo, passam a observá-los e ver seus significados em toda
profundidade, ampliando a visão comum e fornecendo um entendimento imaginativo às
incessantes indagações humanas. Elas contribuem para o enriquecimento artístico do texto, ao
dar à palavra um novo dimensionamento, ao gerar ideias e emoções. Apesar de trabalhar
insistentemente as figuras de linguagem em diferentes poemas, a coleção apresenta uma
lacuna ao não trabalhar sua força significativa nos estudos de textos de alguns poemas
principais de unidades.
A coleção tem uma boa sequência de trabalho com a poesia, apresenta explicações
teóricas, mesmo que redutoras, e exemplifica e reforça o uso de seus códigos e convenções.
Trabalha o entrelaçamento entre forma e conteúdo, porém precisa promover um exame mais
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consistente dos diferentes níveis que concorrem para o significado do poema, sobretudo
naqueles textos selecionados para um estudo mais aprofundado, ou seja, nos textos principais,
em lugar de utilizar uma série de textos para exemplificar as características do modo lírico.
Por apresentar os códigos e protocolos da poesia lírica em cada volume e reforçá-los, os
autores da coleção pressupõem que o aluno já internalizou tais conteúdos. Desse modo,
deixam, na proposta textual, muitas lacunas para o aluno preencher. O ponto mais
problemático da coleção está no fato de que há uma única unidade destinada ao estudo desses
recursos e convenções durante o ano letivo. A Coleção 2 poderia trazer forte subsídio para
formação do leitor literário se o tratamento metodológico dos textos poéticos fosse ampliado e
se a proposta não estivesse restrita a uma única unidade anual. Trabalhar a poesia em uma
única unidade em cada volume não é o suficiente para formar leitores hábeis desse gênero,
que é complexo, possui especificidades peculiares que precisam ser do domínio do leitor para
que possa atribuir sentido ao texto.
Nas duas coleções, a exploração do vocabulário é realizada por meio de
sinonímia. Muitas vezes, não é discutido seu aspecto de funcionamento, como o figurado ou
metafórico, ou o sentido das palavras que formam as frases e os textos produzidos, visto que
as muitas situações de produção colaboram para o estabelecimento da significação.
Da mesma forma, a disposição gráfica e, sobretudo, os tipografismos (espaços
brancos da página, espaço entre as linhas impressas, o tipo de letra empregado, o uso de letras
maiúsculas e de minúsculas, a utilização de grafismos), no texto lírico, são discutidos de
forma superficial, o que representa uma ruptura, visto que, como ressalta Aguiar e Silva
(1984, p. 593), eles mantêm correlação com os códigos e as convenções da métrica da poesia
lírica, “[...] mas outros parecem ter uma função semiótica autônoma em relação quer às
estruturas lingüísticas, quer às regras e convenções métricas, exercendo-se essa função sobre a
globalidade da estrutura textual”. É o caso da poesia de vanguarda, sobretudo da poesia
concretista. Os livros didáticos não discutem esses aspectos que são fundamentais para a
produção de sentido do texto.
O livro didático para ser um forte aliado do professor e aluno precisa contemplar
atividades de leitura que ofereçam oportunidades para que o aluno adquira as competências
leitoras exigidas para o grau de proficiência que se deseja levá-lo a atingir. Da investigação
das propostas de leitura da poesia lírica nas coleções, verifica-se que a dificuldade de formar
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leitores da poesia advém, com frequência, do fato de que não há, em muitos livros didáticos,
um processo contínuo de trabalho com as convenções e os códigos do gênero em estudo. O
estudo de texto é redutor. Não há um estímulo ao entendimento efetivo das entrelinhas do
texto poético. Como mediador das práticas leitoras, o professor tem um papel decisivo no
êxito dessa tarefa, porque lhe cabe analisar como estão apresentadas essas propostas, se elas
promovem a experiência contínua com as diferentes categorias textuais, de modo que esse
leitor, em processo de formação, institua elos significativos entre a leitura e as situações
comunicativas e, caso verifique que isso não se efetiva, precisa buscar formas de suprir as
lacunas que o livro didático apresenta.
O processo de avaliação dos livros didáticos implementado pelo MEC, por meio
do PNLD, embora ainda não tenha promovido, em tais livros, um nível de leitura capaz de
formar leitores literários, é uma realidade importante, uma vez que se consegue constatar
resultados satisfatórios em muitos campos. Se até alguns anos, como apontam, entre outros
estudiosos, Brandão, Martins (2003), Souza, Azevedo (2004) e Alves (2005), a maior parte
dos textos dos livros didáticos era fragmentada, utilizada como pretexto para diferentes
finalidades, cujas atividades giravam em torno de informações literais (reproduções de ideias)
e, sobretudo, de análises gramaticais, dentro de esquemas previamente determinados, já se
vislumbra algum avanço. Da mesma forma, a diversificação e a heterogeneidade de gênero e
de tipo de texto têm sido alvo de atenção maior e fazem com que as coleções sejam
representativas do mundo da escrita. O leitor também está recebendo um tratamento melhor,
porque sua participação está sendo mais solicitada, embora ainda seja verificada, em algumas
abordagens, apenas sua concordância.
Diante do que foi observado e exposto, ratifica-se a necessidade de continuar as
discussões sobre o papel dos livros didáticos no processo ensino/aprendizagem, só assim
haverá um esforço conjunto de todos os envolvidos para a melhoria e a adequação desses
recursos aos objetivos educacionais. É necessário mobilização de todos os órgãos ligados ao
ensino para pensar e colocar em prática propostas efetivas de preparação de professores em
todos os níveis de ensino, com vistas à realização de estudos e ao oferecimento de suportes
teóricos e práticos para que a ação docente seja consciente e alicerçada em bases consistentes,
para que o docente não use o livro didático como guia do trabalho em sala de aula, mas,
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realmente, como um recurso disponível que favoreça a formação de leitores aptos para a
leitura de textos poéticos, leitura que faça a ponte entre o universo textual e vivencial.
Como se tentou demonstrar, a leitura literária é feita de protocolos e convenções
que precisam ser ensinadas. Como o livro didático é o principal recurso que o docente tem
para a realização de seu trabalho, ao utilizá-lo, ele deve estar atento ao modo como é
encaminhado o trabalho com a leitura dos textos, sobretudo da poesia. Todos os comentários
reforçam o posicionamento de Lajolo (1998) quando enfatiza que os leitores só obterão êxito
em sua tarefa de atribuir sentido aos textos literários se a escola lhes proporcionar um bom
domínio das convenções e dos protocolos do texto literário. Os professores devem procurar
conhecer o que crítica literária tem apresentado às instituições escolares em relação à leitura
de tais textos, uma vez que têm suas especificidades que exigem um direcionamento próprio.
Entre outros teóricos, Aguiar e Silva (1990), Candido (1993), Aguiar (2000) e Hansen (2005)
expõem aspectos que devem ser investigados na leitura de uma obra para que ela revele sua
natureza literária. Mostrar ao leitor iniciante como ler literariamente é tarefa da escola e, se
esta quiser, efetivamente, formar leitores literários, precisa estar atenta aos encaminhamentos
propostos para a leitura desses textos e buscar superar as lacunas e os equívocos que afastam
alunos do texto literário e, sobretudo, do mais poético dos textos, a poesia.
Conclusão
Ao longo deste estudo, procurou-se, pela via da teoria literária, a compreensão dos
aspectos essenciais que embasam a leitura literária e, nesta, a leitura do texto poético para a
fundamentação das análises desenvolvidas no presente trabalho.
O texto literário foi, durante muito tempo, presença obrigatória nos livros
didáticos produzidos para a educação brasileira, em razão da compreensão corrente de que
eram modelos de leitura e escrita a serem seguidos. O estudo efetuado nas coleções vem
confirmar outras pesquisas que mostram que, cada vez mais, a literatura perde espaço,
sobretudo à medida que avança nas séries do Ensino Fundamental. Sua presença já não faz
parte de práticas educativas e cotidianas no ambiente escolar: os textos literários vêm
disputando espaço com outros textos, primordialmente com aqueles que reiteram o universo
sócio-cultural do educando.
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A preocupação com a diversidade de tipos e gêneros textuais, em particular
daqueles com mais presença no universo letrado, é clara nas coleções analisadas. Este é um
aspecto positivo, em função de sua necessidade e importância social e porque a compreensão
da diversidade textual, tanto oral como escrita, pressupõe o desenvolvimento de habilidades
que devem ser objeto de ensino, visto que cada gênero requer uma abordagem específica e o
estudo dos códigos e dos protocolos regula seu sentido institucional. Ao trabalhar a
diversidade textual, no entanto, os textos literários, especialmente os poéticos, têm sido
relegados a um plano secundário nos livros didáticos, sendo privilegiados em poucas unidades
de cada volume como textos de estudo. Este é um fator preocupante, não se pode esquecer
que os textos literários precisam ser valorizados no trabalho escolar por serem suportes que
possibilitam instalar condições para uma abordagem mais completa do humano e para o
exercício do diálogo.
A leitura da poesia lírica exige que todos os elementos estruturais do texto sejam
levados em consideração e que o leitor impulsione seu repertório, ou seja, seus conhecimentos
textuais e de mundo, para desvelar e vivenciar as impressões, os sentimentos manifestos pelo
texto e os prazeres que ele lhe desperta. As investigações realizadas revelam que não há uma
proposta metodológica clara em relação à leitura do texto poético nos livros didáticos
examinados, que tenha como fim levar o aluno do terceiro e quarto ciclos do Ensino
Fundamental ao domínio dos protocolos e das convenções da poesia lírica, de modo a
transformá-lo em um leitor proficiente desse texto poético. Em primeiro lugar, porque não há
um trabalho contínuo que favoreça, de forma gradual e sistemática, a compreensão
progressiva das especificidades desse gênero textual, já que estas são pouco discutidas e
diluem-se ao longo das coleções, sem que se verifique o entrelaçamento dos diferentes
aspectos envolvidos na construção dos sentidos do poema. Em segundo lugar, porque as
atividades relacionadas aos textos ainda precisam ser reavaliadas por não promoverem uma
reflexão sobre os diferentes aspectos que interagem para a constituição de seu sentido.
As abordagens de leitura dos textos poéticos nos livros didáticos das duas
coleções examinadas embora apresentem e abordem as especificidades do gênero, elas não
conduzem o aluno a examinar, de forma concreta, por exemplo, como os códigos
contribuíram para a construção poética, como a organização sintática interferiu no
estabelecimento do sentido do texto, como o arranjo das palavras ou letras no papel
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influenciou o efeito do poema, como a sonoridade concorreu para legitimar as ideias e fazer
aflorar emoções As abordagens priorizam discussões sobre a temática, esquecendo que estas
só se sustentam e ganham significação com o exame do todo. Com isso, diminui-se o valor
literário do texto, uma vez que não se compreende o porquê de tal trabalho e sequer o(s)
significado(s) dos textos.
Conforme constatado nas coleções analisadas, em alguns momentos, o leitor
parece ganhar espaço para expor seus pontos de vista e para trilhar, de modo mais autônomo,
os caminhos do texto. Entretanto, em outros momentos, percebe-se que ainda estão presentes
maneiras de ler que pressupõem que o texto seja facilmente entendido pelo aluno; concepções
acerca de leitura alicerçadas em atividades mecânicas, independentes do conteúdo do texto,
que não abrem espaço para um diálogo efetivo. Dessa forma, perde-se o fio condutor que
instigaria o sujeito-leitor a construir chaves que abririam as portas para a compreensão global
do texto.
A pesquisa efetuada nas coleções evidenciou que os livros didáticos têm avançado
em relação aos textos que os compõem. A qualidade estética dos textos foi levada em
consideração na produção das duas coleções. Os textos literários, presentes nos diferentes
volumes, foram escolhidos tendo em vista seu valor estético, porque priorizam muitas leituras,
embora nem sempre as propostas apresentadas pelos autores das coleções examinadas
explorem as possibilidades mais relevantes para a interpretação do texto. Os autores dos
textos que compõem esses livros didáticos são reconhecidos e valorizados como grandes
representantes da cultura literária e muitos deles repetem-se ao longo da coleção. Isso, por um
lado, evidencia sua importância e garante a qualidade do material colocado à disposição do
aluno; por outro lado, leva o aluno a compreender que só determinados autores são
representantes da produção estética e isso o priva, como leitor, do conhecimento da
diversidade literária existente.
Ao analisar a presença dos textos poéticos nas coleções, verificou-se que, em
termos quantitativos, embora eles constem em várias unidades, são utilizados para diferentes
objetivos. Sua presença está vinculada, ainda, a propostas de produção de textos, ao estudo de
aspectos linguísticos, entre outras finalidades. A poesia continua a ser tratada como um
gênero menor, fato comprovado pela quantidade inexpressiva de proposições de sua leitura
nessas coleções.
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Este estudo reafirma, ainda, que a leitura literária precisa ser ensinada por meio de
um trabalho sistemático e gradual. Para isso, os protocolos e as convenções que regem o
funcionamento da literatura precisam estar presentes no livro didático. É necessário priorizar
estratégias que conduzam o aluno-leitor a examinar como eles se manifestam no texto
literário. Somente com a apropriação de habilidades, códigos, expectativas e conhecimentos
dos elementos que interferem no sentido literário de um texto é que seus leitores podem
assumir a posição de interpretá-lo. Ao analisar as formas como os livros didáticos
encaminham a leitura, observa-se que, embora eles tenham avançado em muitos aspectos,
ainda estão longe de atingir tais metas. Por isso, precisam ser objeto de análise constante,
sobretudo por ser o recurso de leitura de textos escritos mais presente em sala de aula.
De tudo isso, fica a necessidade de as instituições escolares investigarem,
continuamente, o livro didático e seu uso, bem como suas práticas educativas, de modo que se
construam novos encaminhamentos que possibilitem um processo efetivo de aquisição da
leitura, já que, cada vez mais, com as tecnologias e as exigências do mundo contemporâneo, a
leitura assume uma posição importante na vida humana, e a escola, como instituição que tem
um papel fundamental na formação do leitor, precisa estar atenta aos modos como tem
desempenhado tal tarefa.
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ABOIO: POÉTICA DE UM CANTO DE TRABALHO
Maria Laura de Albuquerque Maurício (PG/PROLING-UFPB)
O Nordeste desperta sua gente
No aboio sonoro do vaqueiro
O vaqueiro é o símbolo do Nordeste
Cava a terra, prepara bebedouro
Dá remédio ao garrote, laça touro,
Faz gibão com a pele, curte e veste,
Emburaca no meio do agreste
Desviando-se de espinho de facheiro...
Pega a pá, a enxada, e faz barreiro...
Bota cerco em garrote experiente,
O Nordeste desperta sua gente
No aboio sonoro do vaqueiro
(OLIVEIRA DE PANELAS)
O aboio do vaqueiro nordestino é um canto de trabalho rural, um canto
ritualístico, em que se entroniza a voz poética difundida oralmente em estrutura de versos que
desencadeia a memória e o improviso em linguagem próxima à poética da cantoria.
A poética do aboio apresenta vários eixos, tais como:
• O aboio de campo (gado) – cuja característica é ser o canto de trabalho em que
o vaqueiro tange o gado ao seu destino;
• O aboio de engenho de cana-de-açúcar (bestas) – este aboio de besta era
cantado nos engenhos em que era necessário o revezamento dos animais no período de
trabalho, principalmente durante a moagem. O revezamento se dava de três em três horas,
pois se tratava de um trabalho extremamente pesado e cruel, porque as bestas faziam circular
a almanjarra. Segundo Gilberto Freyre (2004, p. 106), “a besta de almanjarra foi um
verdadeiro mártir da cana-de-açúcar”.
• Aboio versado
• O aboio pé-de-serra – que tem uma função semelhante ao aboio de campo
• O aboio de vaquejada
• Aboio de roça
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Segundo Araújo (2007, p. 134), o aboio de roça é uma forma de canto de trabalho
em forma de dueto. Com linha melódica mais triste do que o aboio de gado.
O aboio versado é aquele que o vaqueiro canta no trabalho para conduzir o gado e
tem uma estrutura poética específica própria para tanger o gado.
O aboio de vaquejada é estilizado - não tem a função de canto de trabalho
tradicional do campo, é um trabalho midiático, suporte das vaquejadas
Dentre os aboios citados, o aboio de campo além de ser um canto de trabalho, tem
mais liberdade de ação, o vaqueiro modula a voz em tons e semitons, aproximando-se de tons
mais graves e com extensão vocal maior. Isto é comprovado por depoimentos tais como da
senhora Rosa Moraes dos Santos, moradora da cidade de Malta, no sertão da Paraíba, que
afirma que “sabia que Pedro Migué tava na redondeza porque eu escutava o aboio”.
O aboio numa perspectiva de poética tradicional, como um canto de trabalho, tem
a função de conduzir o gado, a boiada ao seu destino. Predomina no final de cada estrofe do
aboio, um prolongamento marcado pelas vogais - Ôi, Êi – suporte necessário para o aboiador
respirar para conseguir prolongar-se mais. Tal prolongamento pode ser observado nas estrofes
que seguem:
Eu digo com todo o respeito
Que Zé Preto é meu irmão
Ele deixou de tomar cana
Misturada com limão
Mai o véio é apaxonado
Por mulé dos cabelão
Ôi...
(DEDÉ DE SALGADO, 2009)34
Naquele tempo passado
O gado era crioulo
A carne era mais gostosa
O leite mais saboroso
Cavalo era mais forte
Vaqueiro era mais jeitoso
Êi...
(ZÉ PRETO, 2006)35
34
Aboiador da cidade de Salgado de São Felix - PB
Zé Preto, aboiador tradicional da cidade de São José dos Ramos, da região do Agreste e Brejo
Paraibano e na Microrregião Agro-Pastoril do Baixo Paraíba.O município está incluído na área
geográfica de abrangência do semiárido brasileiro.
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Câmara Cascudo (2002, p.5) conceitua “o aboio [como] um canto entoado sem
palavras, pelos vaqueiros enquanto conduzem o gado”. A definição de que o aboio seria “um
canto entoado sem palavras, marcado exclusivamente em vogais” se refere a um aboiar mais
tradicional. Lembra o folclorista que no Brasil passou a existir também o aboiar em versos,
isto é, poemas de assunto pastoril provenientes das regiões do Minho e da Ilha da Madeira.
Na fazenda Pilões - município de São José do Brejo do Cruz, sertão da Paraíba -,
o vaqueiro João Maria Pereira da Costa, quarenta e seis anos de idade e vinte e sete anos de
trabalho com o gado embora não faça o aboio versado entoa um canto sem palavras, alto,
longo e triste e define a função do aboio: como canto “pra chamar o gado e o gado vem. O
gado atende a pessoa”.
Mário de Andrade na Missão de Pesquisas Folclóricas chegou à fazenda São
José no município de Patos no estado da Paraíba para registrar o trabalho de alguns vaqueiros
no mês de abril de 1928. Encantado com o grito-lamento do vaqueiro nordestino, Mário de
Andrade assim diz: “foi quando se escutou um grito que subia, um grito sobre humano,
agudíssimo, claro, tão nítido que feria, tão forte que dominou a voz dos bois”.
O aboio entoado pelos vaqueiros da Missão de Pesquisas Folclóricas não é tão
praticado atualmente, contudo verifica-se que é um grito longo, bem característico da caatinga
na pega do gado barbatão, gado bravo solto nas caatingas, difícil de pegá-lo.
Encontram-se pouquíssimos vaqueiros entoando esse canto, contudo na cidade
de Malta conseguiu-se encontrar Pedro Miguel Filho (Doga) que entoa esse canto, pois já
ouviu do pai que era um vaqueiro nascido no final do século XIX e que tinha na memória os
aboios tradicionais.
Entretanto, a maioria dos vaqueiros, atualmente, canta o aboio versado. A
preferência por este tipo de aboio se dá porque eles lidam com o gado mais manso e o espaço
da criação é bem menor do que o espaço tradicional. Com o ritmo do gado para uma produção
industrial, como os grandes matadores, houve uma substancial mudança no trabalho dos
vaqueiros, visto que as fazendas industrializadas não usam mais o vaqueiro como condutor.
Além do mais, com as mudanças sociais no campo não há mais grandes fazendas, muitos
alqueires foram reduzidos a pequenos hectares que representam uma pequena demanda de
gado.
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Câmara Cascudo, nos anos quarenta, sinalizou questões cartográficas definidas
pelo uso do arame que deu ao vaqueiro, pela primeira vez, a impressão dominadora da posse
alheia, a imagem do limite. Esse limite decretou à apreensão das boiadas em percursos longos
e como conseqüência a redução do canto do trabalho, por isso, torna-se cada vez mais difícil
encontrar aboiadores no exercício desse canto.
Contudo, como o estado da Paraíba é de pequena pecuária é mais fácil encontrar o
aboio como um documento vivo de práticas de trabalho tradicionais.
Muitos aboiadores definem em aboio, formas da tradição, como se pode constatar
no exemplo que se segue:
É mameleiro pendido
É imbuzeiro virado
O repente nordestino
E a gente chamando o gado.
Êi...
(ZÉ PRETO, 2004)
Vesti gibão 30 ano
Foi o que tinha vontade
Montando em burro manhoso
Matei a minha saudade
E amando mulé nova
Desfrutei a mocidade
Êi...
(ZÉ PRETO, 2006)
Estes vaqueiros apresentam uma variação do aboio quanto à forma poética e
quanto ao sentimento lírico; eles revelam a subjetividade de um sujeito social isolado, em seu
trabalho, no campo e facilmente percebe-se poéticas diferentes, O aboio cantado no
amanhecer é completamente diferente do aboio cantado no crepúsculo, quando os vaqueiros
já cansados do trabalho no campo, trazem o gado de volta ao curral,
Os temas mais recorrentes no aboio são: a mulher, a saudade, o heroísmo, a
coragem, o machismo e a morte.
Observe-se questões identitárias de gênero. Sabe-se que a poética do aboio é, na
grande maioria, masculina, pelo exercício do trabalho, Surge pouco a pouco aboiadoras,
geralmente pequenas fazendeiras, que não tem como profissão ser vaqueira, mas que seguem
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a idéia do aboio, como memória social dos homens da família. Entretanto, pode-se pensar
numa poética de gênero, visto que os aboios cantados por mulheres focam mais em temas
sentimentais, como por exemplo a saudade.
Há uma aboiadora Lila36 (2009) que versa sobre o tema saudade, enquanto o
aboiador Orlando Otávio (2008) versa sobre o heroísmo.
Na terra da São José
Todo filho tem saudade
Vem a festa do aboio
Com muita simplicidade
Vê os vaqueiro aboiar
E viva a festa do gado.
(LILA, 2009)
O vaqueiro aboiador
Na caatinga é um doutor
Além de tombar o gado
Ainda é cantador
No cavalo é um maestro
Na garganta é um tenor.
(ORLANDO OTÁVIO, 2008)
Desta forma, abre-se um diálogo entre formas identitárias de gênero que brota da
criatividade do vaqueiro em suas várias linguagens.
A linguagem visual, a gestual, auditiva, e tátil, integrando-se aos elementos da
performance.
O aboio é trazido pela voz e esta por sua vez preenche uma função que é
identificadora do trabalho.
A oralidade primária, conforme os estudos de Paul Zumthor (1993), consiste em
vozes que não apresentam contato com a escritura, como é o caso do aboio cantado por
vaqueiros desprovidos dos sistemas de simbolização gráfica.
Walter Ong (1998, p. 19) discute o conceito de oralidade primária como as das
pessoas que desconhecem inteiramente a escrita, não diferente como o aboiador Zé Preto
conceitua:
De ler não conheço o ó
36
Lila, (Maria das Neves de Araujo), São José dos Ramos – Zona da Mata da Paraíba.
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Pru que num estudei não
Trabalhar como cativo
Foi a minha tradição
Minha escola foi o mato
E a farda foi o gibão
(ZÉ PRETO, 2004)
Analisar a linguagem desta estrofe como um fenômeno oral parece óbvio. Como
uma das oralidades tradicionais, o aboio envolve reconhecimento, presença do corpo, gesto,
voz e ritual. Neste processo primário de oralidade, da expressividade do gesto, percebe-se que
a expressão oral pode existir ou existiu sem qualquer escrita, como pode ser percebido nos
versos seguintes:
Com oito ano de idade
Eu já andava encourado
Pegando boi véi na rama
No meu cavalo Melado
Levano na brincadeira
Minha escola foi colcheira
E meu professor foi o gado.
(ZÉ VAL, 2004)
Além do conceito de oralidade primária, pode-se analisar o aboio através de um
outro conceito, isto é, através do conceito de performance.
A performance é uma ação oral vinculada à voz poética de forma que o vaqueiro
aboiador está incluído como presença corporal. No momento em que o vaqueiro silencia
juntando o gado para começar a cantar, este silêncio é uma reflexão para suscitar a voz. A voz
para Zumthor pode nascer do silêncio e depois retorna para o mesmo. A partir desse conceito
de performance podem-se analisar alguns aboios cantados pelos vaqueiros de tradição.
Já cantei muitos verso
Mas canto bem preparado
Canto para Conceição
Que ta aqui do meu lado
E também canto pro meu amigo
E companheiro Ronaldo
(DOGA, Malta – PB, 2009)
Eu nasci em Olho d’Água
De rancharia e encostado
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Perto da serra do sino
Terra de mal assombrado
Na porteira do curra
Ta meu imbigo enterrado
(JESSÉ, 2009)
Esses aboios oriundos da oralidade são atos de comunicação em presença. Os
vaqueiros integram-se as pessoas que os escutam e gradativamente vão se reconhecendo nos
gestos, na temática que é muito variada e na voz que neste contexto está na ação
materializadora do discurso poético. Aquele que canta se afirma e diz do lugar em que está no
mundo, por esta razão, a maioria das performances poéticas são mais cantadas. Assim,
percebe-se de que lugar a vaqueira aboiadora Lila canta.
Aqui na Universidade
Se forma médico e doutor
No campo também se forma
Vaqueiro e aboiador
Cada um com sua cultura
Cada um com seu valor
(LILA, 2009)
A partir desse lugar, observa-se que a aboiadora canta num palco cuja voz está
mediatizada, aperfeiçoada tecnologicamente, o que é mais comum nos dias atuais e pode ser
repetida através de suportes tecnológicos. Esses cantos das tradições orais são fundamentais
para a manutenção da movência da voz, pois aboiadores midiáticos mantém as temáticas dos
aboios da tradição, como se pode observar nos versos de Galego Aboiador, tão presentes nas
vaquejadas do Nordeste.
Este teus olhos brilhante
Como pedra de safira
Azul da cor de anil
Onde o poeta se inspira
Repleta de boniteza
Você tem toda a beleza
Que qualquer homem admira
(GALEGO ABOIADOR, 2008)
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Embora envolvidos nesse processo de modificação, os aboiadores de tradição – os
mais conservadores da memória do aboio – mantedores dos costumes dessa cultura reagem às
modificações, impondo-se as mudanças e fazendo o apelo através do campo. O aboiador
Fernando37 versa sobre o medo de acabar a cultura do sertão e o desejo de manter o aboio do
vaqueiro “montado em um barbatão, pegando novia braba, bolar com ela no chão”.
Não quero ver se acaba
A cultura do sertão
O aboio de um vaqueiro
Montado em um barbatão
Pegando novia braba
Bolar com ela no chão.
(FERNANDO ABOIADOR, 2008)
Michel Giacometti (1981) afirma que , esses “cantos do trabalho existem com
sinais tangíveis de um povo, a memória absoluta da sua navegação terrestre, o respirar fundo
de uma esperança infinita.
A “alma” da terra é encarnada nesses homens:
Na hora de papai morrer
Fez a sua despedida
Disse adeus terra querida
Terra que eu me montei
Novilha que eu amansei
Soltei cavalo de molho
Aí foi fechando os olho
Pediu a vela e morreu
Êh...
(ZÉ PRETO, 2005)
Este canto como todos que fazem parte das poéticas das vozes tem na oralidade a
principal circulação. Ela é, sobretudo, o suporte da memória. A memória é a essência do aboio
porque nela se acumulam as experiências de vida.
Aí foi onde eu fui
Na terra de dona Aurora
Eu vaquejei nove ano
Vou lhe contar a história
37
Dizer dados de Fernando
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Hoje não vaquejo mai
Pruquê a idade num dá
Tem me caido a memória
Êh...
(ZÉ PRETO, 2005)
“Reconstruir o percurso da memória individual e coletiva desses vaqueiros seria
cavalgar nas caatingas nordestinas tangendo o gado, cantando para os animais que vai levando
uma espécie de acalanto para acalmá-los” (MAURÍCIO, 2008, p. 159). Por isto, definir o
aboio e abordar as vozes dos vaqueiros aboiadores revela as questões fundamentais nas
discussões sobre as produções dos textos orais, como a performance e suas práticas
ritualísticas. Nessas práticas os vaqueiros traduzem gestos e pensamentos de fé como
performances de uma sociedade primitiva: sempre tiram o chapéu e inclinam o corpo quando
passam na frente de um cruzeiro (cruz). Dessa forma, canta o vaqueiro:
Minha mãe quando eu morrer
Me enterre lá no terreiro
Mande fazer uma cova
E junto dela um cruzeiro
Pra quando eu chegar no céu
Me lembrar que fui vaqueiro
Êh boi...
(JESSÉ, 2007)
A performance, segundo Zumthor (2007), é a voz como prolongamento do corpo.
Essa performance é percebida no canto do vaqueiro e é o corpo o suporte vocal ,ligada ao
gesto projetada no espaço da performance. Coerente com o tempo e espaço que constrói
versões, variantes entrelaçadas pelo movimento constante do nomadismo do trabalho do
vaqueiro em constante mudança, pelo menos até os anos sessenta do século XX, pelos
móticos de trabalho. Tudo é nômade. Pode-se afirmar que a performance do vaqueiro, de
acordo com os estudos de Zumthor (2007, p. 31), é “reconhecimento”, pois “refere-se a
realização de um material tradicional conhecido como tal”. É reconhecimento porque “realiza,
concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade à atualidade”.
A voz está ligada ao gesto no momento em que o vaqueiro oferece a indumentária
cantando e levantando os braços. Dessa forma, “a performance é uma realização poética
plena”, afirma Zumthor (2005, p. 87).
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A performance é por excelência um ato de comunicação, “refere-se a um
momento tomado como presente”; não consiste apenas em passar uma informação; “é tentar
mudar aquele a quem se dirige; receber uma comunicação é necessariamente sofrer uma
transformação” (ZUMTHOR, 2007, p. 52).
A figura do vaqueiro surgiu no cenário histórico brasileiro há mais de três séculos
e até o momento nunca foi valorizada encontrando-se em extinção e consequentemente o
canto que durante séculos e séculos conduziu o gado pelos imensos sertões nacionais. Os
aboios do Nordeste brasileiro são de gado, segundo classificação de Araújo. É um canto livre
que pode ser cantado em sextilha – estrofe de seis versos, septilha ou redondilha maior –
estrofe de sete versos ou ainda em versos decassílabos – estrofes com dez versos. O aboio
também apresenta rimas como os versos das estrofes das cantorias.
Assim, o aboio é um dos maiores legados da cultura popular, expressão poética
que tanto encantou Mário de Andrade quando esteve em visita de estudos ao Nordeste do
Brasil, mas que, entretanto, não tem tido muitos estudos sobre ele.
Bibliografia
ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Coordenação Oneyda Alvarenga,
Flávia Camargo Toni. Belo Horizonte: Itatiaia; Ministério da Cultura: São Paulo: Instituto de
Estudos Brasileiros: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção reconquista do Brasil.
2 série; v. 162).
ARAÚJO, Alceu Maynard. Cultura popular brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2002.
_____. Vaqueiros e cantadores. São Paulo: Global, 2005.
FREYRE, Gilberto. Nordeste. São Paulo: Global, 2004.
GIACOMETTI, Michel. LOPES-GRAÇA, Fernando. Cancioneiro popular português.
Círculo de leitores, 1981.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2003.
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MAURÍCIO, Maria Laura de Albuquerque. Aboio, o canto que encanta: uma experiência
com a poesia popular cantada na escola. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal da
Paraíba – UFPB: João Pessoa, 2006. 94 páginas.
_____. História de vida do vaqueiro aboiador, Leonel. In: Do silêncio à voz: pesquisas em
história oral e memória. Charlinton José dos Santos Machado... [et ali] (Orgs). João Pessoa:
Editora Universitária da UFPB, 2008.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas, SP: Papirus, 1998.
ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira,
Sonia Queiroz. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
____. Performance, recepção e leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São
Paulo: Cosac Naify, 2007.
___________. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Amalio
Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
___________. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz
Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo, Hucitec, 1997.
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O INFLUXO ÁRABE NO PORTUGUÊS BRASILEIRO DERIVADO DO CONTATO
DE LÍNGUAS: A HERANÇA LÉXICA DOS ESCRAVOS AFRICANOS E DOS
IMIGRANTES LIBANESES
Maria Youssef Abreu (PG-UEL/CAPES)
A história de uma língua não é um
esquema rigorosamente preestabelecido,
não é um problema algébrico.
Não se pode partir do latim
e chegar diretamente aos dias de hoje,
saltando por vários séculos
de palpitante vida.
(Serafim da Silva Neto)
Introdução
As línguas geram e expressam os laços que integram os falantes na sociedade e,
de distintas maneiras, auxiliam a contar a história deles e de si mesmas. Os estudos em
Filologia Românica ou Portuguesa contemplam, sobretudo, o contato entre o árabe e o
português na Idade Média ibérica, período no qual ocorreu a interferência de um vasto
número de vocábulos do árabe, distribuído em diversos campos semânticos, nas línguas
ibéricas e ou delas provenientes. De maneira geral, os estudos filológicos ressaltam três vias
de entrada a fim de explicar a interferência dos arabismos na língua portuguesa, a saber: a
presença árabe muçulmana na Península Ibérica, a expansão portuguesa e a entrada mediante
as línguas européias. Entretanto, omitem a via de entrada de arabismos em terras brasileiras,
em decorrência do contato entre o árabe e o português, concretizado a partir da presença de
africanos islamizados na sociedade escravagista nos séculos XVIII e XIX e do intenso fluxo
imigratório de sírios e libaneses nas primeiras décadas do século XX.
Na tentativa de preencher tal lacuna, Vargens (2006) propõe uma revisão do
corpus de arabismos do português de todas as épocas, amparado em uma busca bem
documentada dos arabismos mais antigos em português e contempla a via de entrada
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brasileira, acrescentando a contribuição do vocabulário herdado dos escravos e dos imigrantes
sírios e libaneses. Em seu glossário, o autor reúne mais de três mil termos que, como
empréstimos originais, variantes, derivados, ou expressões, são arabismos em português.
Trata-se de um registro considerável, tanto quantitativa quanto qualitativamente, na
especificidade das línguas românicas da Península Ibérica. Entretanto, no que concerne
particularmente ao enriquecimento lexical proporcionado por imigrantes libaneses, até o
presente momento não se tem conhecimento de investigações científicas sobre o tema
(ARAGÃO, 2008, p. 10).
Nessa perspectiva, o presente artigo expõe dados parciais de análise de pesquisa,
em nível de doutoramento, cujo propósito central consiste no estudo das interferências léxicas
do árabe no português falado por imigrantes libaneses em contato sociolinguístico constante
em solo brasileiro, estabelecidos na cidade de Londrina. O corpus constitui-se de dados orais
do discurso de dezesseis imigrantes libaneses, bilíngues árabe-português, com idade superior
a 18 anos, comerciantes de profissão e com permanência no país entre 20 a 45 anos.
Apresentam-se divididos em dois grupos religiosos, cristãos e muçulmanos, de sexo
masculino e feminino, distribuídos em dois níveis de escolaridade, fundamental e médio, com
dois informantes em cada nível.
Para fins teórico-metodológicos, este estudo ampara-se na Sociolinguística do
contato de línguas, introduzido por Weinreich (1953) e considera como obra-fonte o
Vocabulário de Origem Árabe: subsídios para os estudos de filologia, sistematizado por
Vargens (2006). Especificamente, o estudo contempla os vocábulos árabes derivados de dois
momentos do contato entre o par de línguas em terras brasileiras, antes referidos, e os campos
semânticos em que eles se organizam, como indícios das áreas do saber nas quais se observam
as interações entre as duas comunidades linguísticas em contato.
A fim de desenvolver este estudo de modo a dar conta de nossos propósitos,
subdividimo-lo em três partes: a primeira expõe um breve relato da interferência árabe na
Península Ibérica, sugerindo um levantamento dos principais trabalhos realizados sobre o
tema em pauta; a segunda discute a influência dos africanos escolarizados que habitaram a
sociedade escravocrata na Bahia; e a terceira apresenta aspectos sociohistóricos da imigração
libanesa no Brasil, seguida de um pequeno vocabulário de arabismos resultante dessa
imigração.
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1. A influência árabe na Península Ibérica: o contato linguístico e cultural
Os estudos sobre fenômenos originados do contato de línguas ganharam notável
desenvolvimento a partir da divulgação da obra intitulada Langues in Contact: findings and
problems, de autoria de Weinreich (1953). Com este trabalho, o autor introduziu,
pioneiramente, a consideração de fatores de natureza extralinguística no universo da
Linguística, abrindo espaços para o posterior surgimento da Sociolinguística. Weinreich
(1953) formulou o pressuposto de que as ocorrências do fenômeno da interferência são
estimuladas por fatores estruturais e socioculturais, de modo que os usos de estruturas
linguísticas são influenciados por fatores extralinguísticos, e isso faz com que as
interferências configurem-se sistemáticas e previsíveis. Para o autor, a natureza e a extensão
da interferência de uma língua sobre a outra pode ser explicada a partir de dados da fala de
indivíduos bilíngues. Weinreich (1953) considera o contato de línguas como um aspecto
do
contato entre culturas e a interferência exercida por um sistema linguístico sobre o outro, uma
faceta da difusão cultural e da aculturação decorrentes do contato entre comunidades
linguístico-culturais distintas.
Devido não apenas à longa permanência árabe na Península Ibérica, mas, também,
ao refinamento cultural dos muçulmanos em relação aos hispanos, visigodos e cristãos,
diversos traços culturais permaneceram na região peninsular resultantes desse período de
contato sociocultural, incluído, particularmente, o linguístico. Segundo uma extensa
bibliografia que documenta a história, em que destacamos Coutinho (1976) e Silva Neto
(1988), árabes e berberes do Magreb adentraram o território que compreendia a Península
Ibérica, conquistando grande parte dessa região. Denominados ‘mouros’ pelos habitantes da
Península, esses povos tinham o islã como religião e o árabe como a língua de comunicação
(mesmo aqueles que falavam a língua berbere). O império árabe-muçulmano foi se
consolidando nessa região por longo período, estimado, aproximadamente entre sete e oito
séculos (levando-se em consideração a data de sua chegada, em 715, até sua expulsão, no
século XV. Donos de cultura influente, os árabes desenvolveram uma literatura, uma filosofia
e uma ciência bastante próprias que marcaram o pensamento humano em geral e o europeu
em particular. Como era de se esperar, o idioma árabe tornou-se a língua dominante em toda a
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região e isso resultou na assimilação, por parte dos falantes cristãos, de um vasto léxico de
origem árabe.
Na caracterização do estudo dos arabismos, nota-se a parcialidade, geralmente
verificada na interpretação da conquista da Península Ibérica pelos muçulmanos e das suas
conseqüências. Corriente (1996) sugere uma crítica metódica dos estudos realizados sobre os
arabismos do iberorromance e afirma que alguns pesquisadores subestimam a interferência
sociocultural islâmica e que desta postura ideológica decorre inadequada análise dos dados
linguísticos. Dentre os estudiosos que compartilham essa visão, Francisco Javier Simonet
(1829-1897), chega a procurar no moçárabe interferências ibéricas ou latinas, como se
negasse a reconhecer-lhe traços tomados do árabe, invertendo o papel de prestígio social do
conquistador face ao conquistado e da direção mais provável do influxo (CORRIENTE, 1996,
p. 2). Por outro lado, em sua análise, Corriente (1996) verifica que o avançado
desenvolvimento técnico-científico dos árabes e o refinamento que caracterizam os califados,
por exemplo, chamam a atenção de pesquisadores, como R. Dozy, os quais creditam ao árabe
a fonte de diversos costumes ocidentais, linguísticos ou não. Por esse motivo, na revisão do
Dictionnaire de Engelmann, realizada por Dozy, o número de arabismos é ampliado
significativamente por vocábulos que verdadeiramente não o são.
Atualmente compreende-se a amplitude da influência árabe na cultura ibérica
medieval resultante da condição política do dominador, reforçada pelo efetivo avanço em
diversas áreas. Para Faulstich e Carvalho (2007), a literatura linguística que explica a presença
do árabe nas línguas românicas e, particularmente, na língua portuguesa, reduz a interferência
árabe, nos léxicos românicos, a campos léxicos pontuais, relativos ao vocabulário de natureza
político-social, agrícola, toponímica, científica, de pesos e medidas etc. Não apenas no
vocabulário erudito ou de emprego meramente histórico, mas, também, no vocabulário
cotidiano de seus falantes, é abundante o uso corrente de vocábulos de origem árabe arrolados
ao português brasileiro, conforme ilustra o texto proposto por Chediak (1972):
“Uma história. Suponhamos, primeiramente, um casal com um filho, em
algum lugar do Brasil. Altair, recém-casada, mora nos arrabaldes ou
arrebaldes de uma aldeia do interior, põe o seu vestido de chita e o xale.
Pega o garoto, um azougue de menino, lava-o e passa-lhe talco. Se o garoto
tosse, dá-lhe uma colher de xarope, empapa o algodão em cânfora ou
alcânfora e faz massagem nas suas costas. Vai à cisterna, prende a azêmola
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na argola da manjorra, põe água na modesta jarra. Vai fazer café e adoçao com saboroso açúcar-cândi. O marido, um mameluco, conhecido pela
alcunha Boca-Torta, bem cedinho, já se levanta com alguns achaquesenxaqueca, põe as ceroulas (no interior muita gente ainda as usa), o terno
cáqui, bem lavadinho com anil, toma um trago de conhaque de alcatrão São
João da Barra ou, se não o tem, vai ao alambique, sorve um gole de
jeropiga. Toma a tarrafa e vai pescar no açude. Outras vezes, prefere caçar
javali; limpa o azinhavre da espingarda de grosso calibre, sai com o
fraldigueiro chamado Sultão e volta com algumas arrobas de carne às
costas. À hora do almoço, Altair lhe traz umas azeitonas. Senta-se com ele,
e principiam uma salada de alface bem regada a azeite. Vêm depois o
espinafre, a cabidela, a carne ou peixe escabeche, ou com alcaparra, que
ingere com arroz bem soltinho. Ela lhe oferece um prato com acelga ou
celga, que rejeita. Prefere alcachofra, por causa do fígado. Vai tomando
refresco de tamarindo. À sobremesa, uma boa laranja seleta. Terminado o
almoço, descansa, recostando a cabeça na almofada. A casa é modesta, de
adobe, mas o alicerce é firme. As janelas não têm alizares. Num pequeno
jardim, florescem açucenas ou cecéns e alecrim. Depois da sesta, sai a
trabalhar. Mete algum dinheiro na algibeira, algum alimento no alforje e
segue para o campo. Tem alguns alqueires de terra. De volta, pára no
alfaiate para experimentar um terno. Depois, entra no armazém para
algumas compras. Muita gente. Azáfama. À saída, um pobre, cheio de
salamaleques, pede-lhe esmola. Não é um nababo, mas também não é um
mesquinho. Dá-lhe uns níqueis. Um troço de policiais, com vistosos
dólmans, passa ao som de tambores, caminho do aljube. É o reforço que
chega. A região foi invadida por uma cáfila de assaltantes. O mameluco tira
o chapéu. Passa um ataúde a caminho do cemitério. E retorna à casa.” 38
A presença de numerosos arabismos nas línguas românicas hispânicas e,
particularmente, no português, permitiu que se distingam de suas outras irmãs românicas.
Esse elevado número de arabismos justifica a propriedade da metáfora aluvião lexical árabe,
proferida por Piel (1989 [1976], p. 12 e 13). Para o autor, o superestrato árabe revelou ser
incomparavelmente maior em relação aos demais dominadores da região, uma vez que
compreende todos os setores da vida material. Define que por ‘arabismos’ devem ser
entendidos também vocábulos originalmente não árabes, isto é, ocidentais, berberes etc,
incorporados no léxico dos muçulmanos peninsulares.
Há trabalhos sobre influência árabe no vocabulário português publicado no Brasil
e em Portugal, para os quais, segundo Vargens (2005), alguns não possuem rigor científico,
outros são importantes para a lexicografia do português. Entre as contribuições dos lusitanos
lexicógrafos, o autor cita os nomes de Carolina Mickaelis, Manuel Augusto Rodrigues, José
38
Segundo Vargens (2007), há controvérsias entre alguns autores quanto à etimologia árabe de alguns
vocábulos como cabidela, cáqui, chita, jeropiga e troço.
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Domingues e Dias Farinha. No Brasil, os nomes destacados são João Ribeiro, José Chediak,
Antônio Faris Mickaele, Rubem Franca e Miguel Nimer. Há trabalhos relevantes realizados
no Brasil, como o já citado Nimer (1998), por exemplo, que não se limitou ao estudo dos
termos portugueses de origem árabe, vai além, preocupando-se, também, com os termos
gregos, latinos, persas, turcos, hebraicos, fenícios, arameus e siríacos, os quais entraram na
língua depois de arabizados. Composto por 765 unidades léxicas, o léxico organizado pelo
autor é precedido por capítulos introdutórios que explicam aspectos da morfologia do árabe,
especialmente no que concerne às raízes trilíteres e a tipologia de afixos própria das línguas
semíticas.
Um esforço na construção da filologia portuguesa é sugerido por Silva (1997a e
1997b), documentado no ‘Vocabulário português legado pelos árabes’, envolvendo 959
termos, excluídas as variantes e os termos insuficientemente justificados pelos filólogos e
etimólogos, entre esses, todos os topônimos e antropônimos. O autor revela que os arabismos
entraram para o português em épocas e de maneiras bem diferentes. Muitos passaram por
diversos países e foram acolhidos em dicionários brasileiros com sua forma bastante alterada
com respeito a sua origem. Outros foram adotados primeiramente pelos árabes como
‘vocábulos de civilização’ e divulgados no Oriente com as ciências, artes e técnicas grecoromânicas, chegando ao português mais tarde. Silva (1997a) tece importantes considerações
acerca das características da construção árabe, facilmente observáveis no vocabulário de
origem árabe, dentre as quais, destacamos as seguintes:
Alguns vocábulos possuem x- inicial, como é o caso de: xá, xadrez, xairel,
xaque, xará, xarque, xeique, xerife, xarifa, xaroco, xarofa, xarope, xaveco,
xeique, xiita etc, e influenciaram nos representantes de numerosos termos
latinos com ex-, como: enxame, enxuto, enxada, enxó, enxugar, enxúndia e
enxofre. Outros vocábulos iniciam com enx-, como os seguintes: enxaqueca,
enxadrez, enxarope, enxávena, enxeco, enxoval, enxovia etc. Um grupo
numeroso de vocábulos se caracteriza pela terminação, entre essas estão os
termos que terminam com í- tônico: aleli, alfarqui, alizari, arabi, bafari,
carmesi, garabi, haji, huri, javali, maçari, muçurumi, rafadi etc. Em muitos
casos, o sufixo í- é transformado em il: adail, aguazil, alcil, alvazil, anafil,
anil, arrabil, candil, cordovil, granadil, manchil, maravedil, marroquil etc. E
há casos em que o sufixo í- muda para im: .alabardim, alecrim, alfenim,
alfolim, alfonsim, anexim, benjoim, borzeguim, cansim, carmesim, celamim,
cetim, gergelim, haquim, jasmim, marfim, mirabolim, muslim, muezim,
talim etc. Além desses, há casos de palavras que terminam em sílabas como
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afe, -afre, -efe ou -aque, que não são empregadas em final de vocábulos
latinos.
Os arabismos do português estão distribuídos em diversos campos semânticos,
segundo a perspectiva assumida por diferentes estudiosos. Considerando os campos citados
por Elia, 2004, Faulstiche e Carvalho (2006), Houaiss (1986), Mattos e Silva (2003), Silva
Neto (1988), Vargens (2007) e Vasconcelos (1956), apresentamos o léxico em pauta nos
campos semânticos:
▪ Vocabulário de natureza político-social: alcaide, alferes, almoxarife, alfândega
etc.
▪ Vocabulário comum: alcova, argola, alicate, alfaiate etc.
▪Vocabulário de técnicas e agricultura: açafrão, açude, alecrim, alfazema,
algodão, almuinha, safra, sega tamarindo etc.
▪ Vocabulário de frutos: laranja, lima, limão, tâmara etc.
▪ Vocabulário de pesos e medidas: alqueire, arrátel, arroba, quintal etc.
▪ Vocabulário de alimentos: açorda, açúcar, aletria, almôndega, arroz etc.
▪ Vocabulário de toponímia: Alfama (refúgio), Alcântara (ponte), Almada, (mina)
etc.
▪ Vocabulário de guerra e vida militar: alferes, algema, almirante, arrais, arsenal,
bodoque, calibre, refém etc.
▪ Vocabulário de indústria e comércio: açougue, alambique, armazém, azenha,
azêmola.
▪ Vocabulário de administração e finanças: aduana, alfândega, alvará, aval, leilão, tarifa.
▪ Vocabulário de profissões: alfaiate, almoxarife, magarefe.
▪Vocabulário de ciências, técnicas e artes: algarismo, álgebra, zero, aharque,
elixir, enxaqueca, nuca, xarope, alquimia, alaúde, atabaque, atambor, axabeba, cifra.
▪ Vocabulário de vestuário: babuche, alfarda etc.
▪ Vocabulário de habitação e vida doméstica: alcova, alicerce, almofada,
andaime, azulejo, chafariz, divã, sagão, sofá, taça, taipa.
▪ Vocabulário de fauna: anta, atuam, gazela, girafa.
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▪ Vocabulário de jogos: xadrez.
▪ Vocabulário de compartimentalização espacial e acidentes geográficos: aldeia,
arrabalde, bairro, rincão.
▪ Vocabulário religioso: imame, ulemá, mussurumim, islame, jihad, mesquita,
minarete, moçafo, tecebá.
▪ Vocabulário culinário: almôndega, cuscuz, alçorda, etc.
Com o passar dos séculos, o árabe e o português restabeleceram suas relações, no
caso que queremos ressaltar aqui, no interior de terras brasileiras, onde se verificou a relação
entre o árabe como língua minoritária e o português em seu status de língua dominante. Esse
fato concretizou-se de forma marcante em dois momentos históricos distintos, apresentados
nos tópicos seguintes.
2. A herança léxica dos escravos africanos islamizados
No decorrer dos séculos XVIII e XIX, o tráfico de escravos viabilizou a entrada
de diversas nações africanas no interior do Brasil, permitindo a emergência de um processo
em vários graus de interação étnica e cultural. Muitas línguas e diferentes dialetos africanos
adentraram as terras brasileiras constituindo uma efervescente situação de contato linguístico.
Houais (1922) afirma que o total de línguas proeminentes da África representava um total
nunca inferior a 20% das línguas da África, aproximadamente de 300 a 400 línguas, com
falantes por todo o território brasileiro. Entre as diferentes línguas e dialetos falados por
escravos africanos, é possível citar o haussá, nagô, jêge-mina, iorubá, banto, quimbundo,
mandinga, nupe ou tapa, ewe, fon, uolote, axante, umbundo, entre outras.
A questão do influxo dessas línguas africanas no português do Brasil é vista por
Pessoa de Castro (2006) mais como objeto do silêncio do que motivo da atenção de linguistas
e filólogos. Na discussão sobre o reconhecimento das línguas africanas na constituição
histórica do português brasileiro, a autora declara que a resistência quanto ao tratamento de
temas associados às línguas africanas no país começa pelo prestígio atribuído à escrita em
detrimento da oralidade, a partir de uma visão ocidental que sempre privilegiou o ler e
escrever diante da não menos importante arte de falar e ouvir. Também importa lembrar que
em decorrência do parâmetro que se colocou para povos que possuem uma forma de escrita
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literária e povos que se servem da tradição oral, esses últimos acabam por serem vistos como
portadores de uma cultura inferior ou mesmo sem qualquer tipo de cultura. Dessa perspectiva
derivou uma crença de que as línguas de tradição oral não poderiam influir em uma língua de
reconhecido prestígio literário como a língua portuguesa (PESSOA DE CASTRO, 2006, p.
95).
Em virtude desse pensamento vigente, a presença dos africanos escravos
escolarizados destacou-se em relação aos demais na sociedade baiana escravocrata do século
XVIII. Genericamente conhecidos pelo nome de ‘malês,’ termo que identificava os africanos
muçulmanos escolarizados, esses escravos encontraram-se em um centro urbano que lhes
permitiu uma relativa liberdade, o que facilitava suas relações interpessoais, numa condição
favorável à promoção de levantes. Segundo Reis (1988), entre os anos de 1807 e 1835, esses
escravos lideraram uma rebelião de caráter racial, contra a escravidão e a imposição da
religião católica, traçando todos os planos da rebelião no idioma árabe. Dentre as diversas
nações de escravos muçulmanos, Freire (1933), Rodrigues (1945) e Reis (1988) destacam os
haussás como os escravos mais intelectuais entre os colonos, mentores de revoltas, sendo
também os introdutores do islamismo entre os demais. Em grande número na Bahia, os
haussás puderam exercer vigorosa influência cultural 39 sobre a vida cotidiana, devido à
posições específicas na distribuição ocupacional dos africanos em Salvador, trabalhando nas
ruas da cidade como comerciantes ambulantes de produtos como fumo, especiarias e tapetes.
Apesar da exiguidade de registros sobre as línguas faladas pelos escravos no
Brasil, os trabalhos desses autores se constituem como marcos históricos da presença da
língua árabe, posto que oferecem elementos importantes para que se retracem as relações de
coexistência entre o árabe e o português no país. Tomando, pois, tais obras como referencial
teórico, vê-se que o árabe era a língua conhecida por um pequeno grupo social e sem qualquer
prestígio cultural ou socioeconômico e seu uso na oralidade restringiu-se à dimensão
religiosa. Como se sabe, os escravos eram trazidos, forçadamente, de seu país de origem para
o trabalho escravo, concentrado em certas em certas regiões do país, mais especificamente, a
39
Os escravos haussás influenciaram, à época, vários aspectos da cultura regional brasileira. Na culinária, por
exemplo, Gilberto Freyre (1933) apresenta minuciosamente o preparo do ‘arroz de Haussá:’ ‘O arroz-de-aucá é
outro quitute afro-baiano que se prepara mexendo com colher de pau o arroz cozido em água sem sal. Mistura-se
depois com o molho em que entram pimenta-malagueta, cebola e camarão: tudo ralado na pedra. O môlho vai ao
fogo com azeite-de-cheiro e um pouco de água (FREYRE, 1933, p. 367).’
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Bahia. Devido às limitadas condições de vida a que eram submetidos os escravos na época,
esses falantes eram excluídos de muitos direitos, inclusive, o direito de falar em público, do
que resultou um contato limitado entre a língua e o falante nativo. Da mesma maneira ocorreu
na escrita, uma vez que os registros de produções linguísticas no árabe se devem, em geral, às
reproduções de versos corânicos, orações islâmicas e amuletos. Também não há evidências de
descrições de uso cotidiano de uma variável diatópica do árabe entre os escravos africanos no
Brasil, o que dificulta uma caracterização mais clara da relação entre as duas línguas nessa
ocasião do contato.
Ainda que esses africanos islamizados possuíssem uma ‘competência linguística’
limitada no idioma árabe, posto que seu conhecimento se restringisse a copiar orações
corânicas em caracteres árabes e decorá-las, mediante processos de memorização, há um
consenso sobre a ‘literalidade’ dos escravos malês em relação aos demais africanos.
Entretanto, de uma maneira ou de outra, na esfera da vida privada e cotidiana em que o
religioso se estende, o vocabulário representativo da prática islâmica aflorava no português
falado pelos escravos, como forma de expressar seus ideais de fé.
Os arabismos introduzidos no português do Brasil por escravos afro-muçulmanos
encontram-se registrados no Glossário de Vargens (2006) perfazendo um total de vinte e
cinco unidades léxicas, apresentadas a seguir no interior de dois campos semânticos:
Campo Semântico
1. Religião
a) Orações islâmicas: açubá, adixá, aiassari, ailá.
b) Ministros de culto religioso: alicali, alufá, lemano.
c) Crente: amim, malê, mussurumim.
d) Templo: djema, maçalami.
e) Entidade: aligenun.
f) Objetos litúrgicos: tecebá.
g) Preceitos: assumi, azaca, jihad, sacá.
h) Saudações e locuções interjetivas: barica da suba, bissimilai, Maneco
lassalama, sala, maleco.
2. Culinária
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a) alimento: aluá.
O escopo acima revela que os arabismos introduzidos no português brasileiro
pelos escravos muçulmanos integram apenas dois campos semânticos, isto é, religião e
culinária, verificando absoluta assimetria na distribuição entre eles. O campo religioso
subdivide-se em oito microcampos, ao passo que o campo da culinária registra apenas um
vocábulo designativo de alimento.
O caráter ritualístico do árabe praticado entre os escravos africanos resultou em
sua perda a partir da ‘criminalização’ do islamismo, por conta da revolta liderada pelos malês,
e da sua língua de expressão e veiculação. Dessa feita, o contato árabe-português no período
da escravatura no Brasil, se já não se caracterizava pela diglossia, acabou por desaparecer, até
que o fluxo imigratório de sírios e libaneses ocorrido recentemente possibilitou o reencontro
das duas línguas no país, iniciando um novo capítulo dessa história.
3. A contribuição vocabular dos imigrantes libaneses.
‘Os turcos nasceram para vender bugingangas coloridas
em canastras ambulantes. Têm bigodes pontudos,
caras de couro curtido. Braços tatuados de estrelas.
A pronúncia cômica, a voz sedutora.
A língua cifrada cria um mundo-problema
Entendê-los, quem pode?’
(Carlos Drumond de Andrade, ‘Os Turcos’)
‘Árabe, turco, sírio, é tudo a mesma coisa.
Árabes pobres, mascates das estradas, exibiam
suas malas abertas, perfumes, berliques, berloques,
anéis brilhantes de vidro, perfumes com
nomes estrangeiros, fabricados em São Paulo.
Os turcos jogam cartas com alarido’
(Jorge Amado, ‘Gabriela, Cravo e Canela’)
O segundo fato histórico que revela o contato entre o árabe e o português ocorreu
mais recentemente com o fenômeno de correntes imigratórias de sírios e libaneses, no final do
século XIX, estabelecendo uma nova etapa da história de interações entre as línguas. A
imigração libanesa, particularmente, desenvolveu-se em um movimento característico que
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marcou sua trajetória no panorama mundial, quando muitos cidadãos libaneses viram-se
impulsionados, sobretudo, por pressões demográficas e econômicas em sua terra de origem.
Conforme Knowlton (1995), o processo de imigração no Brasil deu-se em uma conjuntura
econômica e política de estímulo destinado à colonização e ao povoamento das terras
brasileiras.
Ao chegarem ao Brasil, os imigrantes libaneses mostraram sua natureza versátil e
sociável, habituados a conciliar antagonismos em sua terra de origem, esses encontraram
facilidade de integrar-se às novas situações. Dedicaram-se à atividade temporária da
mascateação, comercializando, nos campos e nas praças, diversos tipos de mercadoria. A
profissão configurada pelo ofício de mascate foi fundamental na definição da imagem que os
brasileiros ainda fazem do grupo imigrante libanês e serviu de instrumental para a ascensão
social tanto de cada indivíduo como do próprio grupo. Não obstante, a profissão de mascate
oferecia as vantagens imediatas de dispensar qualquer habilidade ou soma significativa de
recursos, além de não exigir mais do que o saber rudimentar do português e possibilitar a
acumulação de capital. Alguns anos mais tarde, o caminho natural foi a abertura de lojas no
ramo de tecidos e armarinhos. Conforme Gattaz (2005), Knowlton (1995) e Truzzi (1997), no
início da década de vinte, muitos imigrantes libaneses deixaram o ramo de tecidos e
armarinhos, fosse no comércio ambulante, como mascates, fosse como lojistas. Alguns
passaram a comercializar tapetes importados, enquanto outros reorganizaram suas atividades
com o objetivo voltado para quitandas e bazares. Com a finalidade de tornarem-se
proprietários de pequenas empresas, o caminho a percorrer, muitas vezes, envolvia algumas
variantes.
Em busca de melhores condições de trabalho, distribuíram-se por diferentes
regiões do país, mascateando toda sorte de mercadorias e, posteriormente, estabelecendo
comércios em pequenos e grandes centros (Gattaz, 2005). Os primeiros libaneses a chegar
foram os cristãos. Embora viessem os homens sozinhos ou solteiros, nunca abandonaram a
ideia da família patriarcal ou família numerosa. À medida que os negócios prosperavam,
buscavam a esposa, os filhos, os pais e demais membros que lhes interessassem.
Para preservar os laços culturais, em determinados finais de semana, feriados ou
dias santos, os primeiros imigrantes cristãos organizavam reuniões em piqueniques com
amigos e familiares. Na vasta mesa montada sobre a relva, uma das características da cultura
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libanesa era expressamente vista: a presença abundante de variados pratos típicos,
acompanhados do pão árabe, potes de coalhada, frutas e doces. Depois de fundarem os
primeiros clubes sociais, todas as comemorações e festas típicas eram realizadas lá, com
muita comida, bebida e danças. Já os libaneses muçulmanos, mais voltados à manutenção dos
laços culturais mediante a prática religiosa, reuniam esforços na construção de mesquitas
islâmicas em diversas cidades do país, no ensino do árabe e na prática de casamentos
endogâmicos entre os membros do grupo.
Um fator conflitante, insistentemente presente, ainda hoje, causador de
desconforto para muitos imigrantes libaneses, diz respeito à questão histórica de sua
identidade. Segundo Knowlton (1995), na época aproximada de 1860, o império otomano
exercia severo domínio sobre uma vasta região oriental, localizando-se em diversos países,
dentre os quais, o Líbano. Desta maneira, os indivíduos libanêses que emigravam para outros
países eram portadores de passaportes fornecidos por autoridades turcas. Independentemente
de terem sua verdadeira procedência declarada, eles eram considerados turcos, por ser a
Turquia o país que lhes conferia permissão oficial para viagem. Qualquer imigrante oriundo
de qualquer país árabe era chamado de turco, fosse egípcio, argelino, persa, palestino, sírio
etc. Todavia, atualmente parece haver uma tendência, por parte dos brasileiros, em distinguir
os libaneses dos imigrantes de outros países árabes.
Todavia, com o passar do tempo, o intenso entrelaçamento das culturas libanesa e
brasileira, manifestado através do uso da língua, resultou no fenômeno de interferência no
vocabulário das línguas, principalmente na oralidade. Esta situação típica de línguas de
contato, somada às dificuldades de uma aprendizagem linguística informal e, ainda, aos
fatores sociais aí implicados, foi o ponto de partida para a geração de um dialeto peculiar
desta comunidade, que mais tarde a caracterizaria de forma estigmatizada em toda a pátria
acolhedora. Não obstante, a notável integração e o amistoso desenvolvimento entre as culturas
incidiram em um convívio fraterno, gerando muitas trocas e contribuições, as quais estão
nitidamente refletidas em vários segmentos da cultura brasileira, como a literatura, a
arquitetura, a medicina, a gastronomia, etc.
Importa destacar que um dos fatores que possibilitou a influência e a difusão de
termos árabes no vocabulário português foi a ocupação espacial da imigração libanesa no
país, a qual apresenta singular diferença em relação aos demais grupos de imigrantes, como os
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alemães, japoneses, ucranianos etc. Estes estabeleceram-se, isoladamente, em áreas
geográficas denominadas ‘colônias’ abrindo espaços para o desenvolvimento de ‘ilhas
linguísticas.’ Os libaneses, ao contrário, como já foi mencionado, por terem suas atividades
ligadas ao comércio, chegaram ao Brasil e embrenhando-se pelos campos e em diferentes
centros espalhados do país, imprimindo suas marcas léxicas na língua acolhedora e,
inversamente, permitindo-se por ela influenciar.
O intenso contato entre essas línguas, experimentado em um período de
aproximadamente cento e trinta anos de imigração, reintroduz no interior do léxico do
português brasileiro diversos vocábulos do árabe. No léxico português de origem árabe
sistematizado por Vargens (2007), encontram-se apenas doze vocábulos exclusivamente do
campo culinário, não se verificando em outros campos semânticos, conforme se apresentam
abaixo:
baba hanuche, beleua, cafta, esfiha, falafel, homos, laban, labna, mijadra, quibe,
tabule e tahine.
Entretanto, os arabismos chamados ‘vocábulos de civilização’ constituem um
grande número desses termos, não restringindo no limitado conjunto acima a contribuição
árabe dos imigrantes libaneses, ao contrário, esses arabismos estão profundamente enraizados
na linguagem popular de todos os recantos do Brasil. Como já foi mencionado, o influxo do
árabe sobre o português brasileiro, viabilizado pelos imigrantes libaneses, ainda está por
analisar e, oportunamente, chamamos a atenção para o contexto de nossa investigação sobre a
interferência do árabe no português falado pela comunidade bilíngue de imigrantes libaneses.
Na compreensão sobre o comportamento da interferência, Weinreich (1953)
afirma que o fenômeno resulta da ação de duas forças opostas representadas por fatores de
estímulos e fatores de resistência, sendo que ambos podem ser de natureza linguística ou não
linguística. Nessa direção, verifica-se que a influência do árabe sobre o português ocorre em
consequência da ação de duas forças contrárias que duelam entre si. Partindo de fatores
linguísticos, consideramos que as lacunas vocabulares no português brasileiro servem como
estímulos de interferências do árabe, e a existência de palavras para expressar os valores
socioculturais dos falantes bilíngues atue como um fator de resistência. Quanto aos fatores
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extralinguísticos, supomos que a inadequação de vocábulos para expressar, por exemplo,
nomes de receitas culinárias ou termos religiosos, exerçam força estimuladora para
interferências. Ja os fatores de prestígio do idioma árabe e, fundamentalmente, a prática da
religião islâmica, atuam como resistência na incidência do fenômeno.
Do ponto de vista estrutural de ambos os sistemas linguísticos, sabemos que não
apenas a interferência léxica, como, também, a fonético-fonológica e a morfossemântica têm
como ‘estímulo’ as diferenças e as semelhanças entre as duas línguas, e como ‘resistência’ a
estabilidade que esses mesmos sistemas exercem um sobre o outro. Não obstante, ainda que
os resultados sejam limitados, uma vez que a análise se encontra numa fase embrionária, eles
indicam que algumas palavras do árabe circundam o português brasileiro há mais de cento e
trinta anos (data da emigração) e podem chegar às vias de integração na língua.
Isso considerado, com o intuito de ilustrar o que temos declarado, apresentamos
uma mostra dos arabismos registrados no corpus, originados a partir de mecanismos de
interferência linguística entre o par de línguas. Tendo em vista a típica culinária libanesa,
conhecida pelo sabor e aroma de seus pratos, apresentamos os arabismos representativos do
campo ‘condimentos’, seguidos de definição.
Campo condimentos:
• Áala (s.m.) macis
 Especiaria de sabor amadeirado, levemente amargo, em formato de renda
avermelhada, que é liberada pelo fruto que dá a semente de noz- moscada. Usada em pó, no
preparo de doces, salgados e na fabricação de xaropes e licores.
• Áatar (s.f.) essência de malva-rosa
 Essência em forma de água, extraída da flor da malva-rosa e utilizada para
aromatizar caldas de doces, salgados e recheios.
• Baadúnis (s.f.) salsinha
 Erva com flores miúdas, talos finos de cor verde-escuro, aroma e sabor
agradáveis, que é usada para tempero de diversas receitas. Junto com a cebolinha de folhas
comestíveis, formam o “cheiro-verde.”
• Baalat (s.f.) zimbro
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 Fruta pequena de sabor picante, levemente adocicada, de cor roxa, formato
redondo, que é usada, amassada, para temperar legumes em conserva e como ingrediente no
preparo de bebidas e licores.
• Bahar (s.f.) pimenta síria
 Mistura de várias especiarias moídas, como pimenta da Jamaica, canela,
pimenta do reino preta e branca, noz-moscada e cravo em pó, que é usada como tempero para
carnes e receitas variadas.
• Baharat (s.f.) baharat
 Pó extraído das sementes secas de pimentas de várias espécies, de sabor suave
que lembra uma combinação de cravo, canela e noz moscada, e é usada no tempero de
receitas doces e salgadas.
• Chamró (s.f.) erva-doce
 Planta cujas folhas, sementes e bulbo são utilizados na preparação de chás,
licores e destilados; as sementes pequenas, de cor esverdeada, de sabor adocicado são
utilizadas na preparação de massas e doces e o bulbo é usado cru, na preparação de saladas.
• Chilchi Halawi (s.m.) xarope de tamarindo
 Líquido concentrado de sabor ácido e frutado, levemente amargo, extraído da
vagem do tamarindo e usado para temperar sopas e cremes em geral.
• Chimichurri (s.f.) chimichurri
 Mistura de ervas e temperos variados, encontrada seca ou combinada com
azeite de oliva e vinagre, usada como tempero específico para assados e grelhados.
• Chumrat (s.m.) feno grego
 Erva de caule ereto, com flores brancas ou amarelas coladas na parte inferior
das folhas e que produz uma vagem achatada, com sementes ovóides de cor amarelada, que
são usadas, em pó, para tempero de recheios e receitas variadas.
• Fanília (s.f.) essência de baunilha
 Essência aromática em forma de água ou óleo, de sabor doce e delicado, de cor
marrom escuro, extraída de grãos minúsculos da fava de planta da América Central. É usada
no preparo de doces, massas e sorvetes.
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• Fulful Mathun (s.f.) pimenta-do-reino
 Grão de bagos de planta tropical, de formato arredondado, usado como
tempero, inteiro ou em pó, apresenta variação de cores conforme diferentes tempos de
colheita e de processos de secagem.
• Fulful ábiad (s.f.) pimenta-do- reino-branca
 Grão de bagos de pimenta-do-reino colhido bem maduro, de cor branca, sabor
muito picante e usado inteiro ou em pó, mais por estética do que por sabor.
• Fulful ahdar (s.f.) pimenta-do-reino-verde
 Grão de bagos da pimenta-do-reino, colhidos antes da maturação, de cor verde,
sabor menos picante e mais frutado, que é usado inteiro, em pó e em conserva para receitas de
peixes, molhos e cremes.
• Fúlful ássuid (s.f) pimenta-do-reino-preta
 Grãos de bagos de pimenta-do-reino colhidos antes da maturação e seco ao sol,
de cor preta e sabor picante, usados inteiros ou em pó como tempero de várias receitas.
• Hábet el hel (s.m) cardamomo
 Semente com aroma de eucalipto, sabor picante e levemente frutado e usada
para aromatizar café.
• Hárdel árabi (s.f.) mostarda
 Tempero de cor amarelada, sabor picante, extraído de pequenas sementes de
cor amarela da mostardeira e usado em pó ou em pasta, no tempero de diversos pratos
salgados.
• Janjabil (s.m.) gengibre
 Rizoma da planta chamada Gengibre, de cor amarelo-clara, sabor refrescante e
aroma marcante. É usado, fresco, no preparo de bebidas quentes, em saladas, e em pó, como
condimento para diversas receitas doces e salgadas.
• Jauz Táib (s.f.) páprica
 Tempero em pó, de cor avermelhada, de sabor doce ou picante, obtido da
moagem da polpa seca de pimentões vermelhos, doces e picantes e usada para temperar
carnes e saladas.
• Kerf (s.f.) canela em pó
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 Pó aromático, de cor escura e sabor quente, usado como tempero na preparação
de pratos doces e salgados.
• Louro (s.m.) uára el hár
 Planta aromática, cujas folhas esverdeadas e brilhantes, de sabor levemente
amargo, são utilizadas, frescas, secas ou em pó, como tempero para carnes, conservas e
outros.
• Máhlebi (s.m.) máhlebi
 Grão pequeno, de sabor e aroma marcantes, encontrado dentro da semente da
cereja-brava e usado em pó para aromatizar doces.
• Mai záhar (s.f.) água-de-flor-de-larangeiras
 Essência aromática extraída da flor de laranjeira, em maceração e usada
especialmente para aromatizar caldas de doces.
• Mai ward (s.f.) água-de-rosas
 Essência aromática extraída das pétalas da rosa, por destilação a vapor e usada
especialmente para aromatizar a calda de doces e bolos.
• Mástic (s.f.) mastique
 Especiaria em forma de resina, de cor amarelo clara, com superfície farinácea,
que é usada como aromatizante para bebidas e licores.
• Mint (s.f.) essência de menta
 Óleo fino e aromático, de cor esverdeada, sabor refrescante, extraído da menta
e usado para aromatizar bebidas, licores e determinadas receitas.
• Misk (s.m.) misk
 Resina vegetal, em forma de pedra transparente, de aroma agradável, extraída
de árvore típica do Oriente e usada para aromatizar doces e sorvetes.
• Náana (s.f.) hortelã
 Erva aromática rasteira, de sabor intenso e refrescante, com folhas pequenas e
opostas, de cor verde, de tamanho oval e com as extremidades serrilhadas. Usada em chás,
aromatizantes de licores e bebidas, e como tempero, é ingrediente imprescindível no preparo
do quibe e do tabule.
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• Náana Yêbsi (s.f.) hortelã seca
 Pó grosso, de cor verde escuro, obtido da folha de hortelã seca à sombra, que é
amassada com a mão e usada como tempero para saladas, coalhadas e picles.
• Sábaa Bharat (s.f.) sete pimentas
 Mistura preparada com a semente de sete tipos de pimentas usadas
especialmente no preparo de carnes e recheios.
• Sumak (s.m.) sumake
 Pó avermelhado de gosto bastante ácido e usado como substituto do limão em
pratos e saladas.
• Tahine (s.m.) tehine
 Pasta concentrada, de cor clara, consistência firme, preparada à base de
semente torrada de gergelim e usado para temperar molhos, pastas, legumes e carnes.
• Zátar (s.f.) tomilho
 Erva aromática com folhas pequenas e finas de cor verde, usada fresca ou seca,
separadamente como tempero, ou na composição de outras misturas.
• Yansum (s.m.) anis
 Semente aromática de sabor adocicado, obtidas de planta oriental, com folhas
pequenas e flores brancas que dão origem a pequenos frutos ovais de cor marrom. As folhas
são usadas no preparo de sopas, saladas e peixes, e as sementes para aromatizar massas, licores e bebidas.
• Yansun áhdar (s.m.) anis-estrelado
 Especiaria aromática tirada de arbusto oriental, de casca acinzentada, que tem o
formato de estrela de oito pontas, com uma semente oval, brilhante e de cor marrom. É usado,
em pó, no preparo de pratos doces e na produção de licores e bebidas.
• Zafarán (s.m.) açafrão
 Pó de cor amarela, aroma e sabor marcantes, obtido dos pistilos secos de cor
alaranjada do açafrão. É usado como tempero de pratos salgados e corante natural.
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• Záatar (s.f.) zátar
 Mistura de várias especiarias secas e moídas como sumake, zátar, semente de
gergelim torrada, tomilho e orégano, de cor verde escura, usada como tempero para quibes,
queijos e receitas variadas.
• Zauba (s.f.) zauba
 Erva de folhas verdes, de intenso aroma e sabor levemente amargo, usada seca
ou fresca como tempero único ou na composição de outros temperos, como a mistura de zátar.
Além dos arabismos desse campo semântico, temos encontrado vários outros
distribuídos em vários campos e microcampos, em fase de organização em um Glossário de
Arabismos da Imigração Libanesa no Brasil, cujo objetivo central é a comprovação da
hipótese inicial da pesquisa que sustenta a interferência do árabe sobre o português produzido
por imigrantes libaneses, caracterizada por um processo em contínuo desenvolvimento,
estimulada por fatores de natureza linguística e extralinguística.
Conclusão
Os contatos entre o árabe e o português brasileiro em distintos momentos
históricos desencadearam o fenômeno de interferência linguística, viabilizando a entrada de
vocábulos árabes no português. Considerando a obra de Vargens (2007), o legado léxico
possibilitado pela presença dos escravos muçulmanos não é numeroso e restringe-se ao campo
religioso. Os arabismos introduzidos no português pelos imigrantes libaneses pertencem
especificamente ao campo culinário, ressalvando-se, entretanto, que a escassez de pesquisa na
área impossibilita conhecer se há outras contribuições léxicas decorrentes dessa imigração.
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RITMO E POESIA EM PERFORMANCE
UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE TEXTO E MÚSICA NO RAP DOS
RACIONAIS MC’S
Marília Gessa40 (PG-Unicamp)
Introdução
Há cinco anos, venho desenvolvendo uma série de pesquisas sobre o rap
brasileiro, com especial ênfase sobre o seu principal expoente, o grupo Racionais MC’s. O
estudo deste artefato híbrido, como é toda canção popular, tem me desafiado a encontrar
ferramentas adequadas para sua análise. E esta busca foi o que me motivou a escrever este
trabalho.
Uma vez que a canção tem sido frequentemente entendida pelo ambiente
acadêmico como uma combinação de música e poesia - tomadas aí como duas artes distintas,
desempenhando cada uma o seu papel-, as abordagens em relação ao seu estudo tem sido
marcadas pela unilateralidade: as diferentes perspectivas que já surgiram e desapareceram nas
teorias literárias, lingüísticas e sociológicas voltaram-se em ampla medida para os textos,
tratados como entidades verbais; já no campo da música, recorreu-se a ferramentas da
musicologia convencional para analisar canções como obras musicais encapsuladas em
partituras, frequentemente relevando-se o seu conteúdo verbal (cf. FINNEGAN, 2008).
Embora se tratem de duas abordagens legítimas, quando a canção é transposta
para páginas escritas, por meio da transcrição verbal ou musical, ela sofre um processo de
redução, no qual muitos de seus traços performáticos desaparecem. Ainda assim, parece ter
sido somente nesta forma textual (e artificial) que a canção pôde se tornar um objeto legítimo
de análise para os acadêmicos.
No campo dos estudos da linguagem, a principal implicação deste tipo de
abordagem foi o tratamento da letra da canção como poema escrito. Em seu livro mais
recente, In the heart of the beat: The Poetry of Rap, Alex Pate adota este enfoque, buscando
“liberar a poesia do rap – a literatura do hip hop – de expectativas estereotipadas acerca de seu
40
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funcionamento como canção”41 (PATE, 2010, p. 3). A fim de analisar os modos de expressão
poética inerentes ao rap, o autor acredita ser necessário isolar a letra do rap de seus aspectos
performáticos, inclusive da voz do MC, isto porque, em sua visão, é a letra que define o
gênero rap e seu modo de existência.
“I claim that the poetry of rap constitutes a whole, and that the music, or the
beat of rap, is an addition to that whole. (...) More to the point, I argue that
when it comes to rap, the words are more important than the music. And to
further complicate this challenge, I am also suggesting that, in order to deal
with the literary achievements of a given rap/poem, we must dismiss the
actual sound of the poet’s voice.” (Ibid., loc. cit.).
Nas análises empreendidas em sua obra, Pate (2010) procura demonstrar que a
letra de um rap, bem como sua significação e valor literário são independentes da voz e do
acompanhamento musical presentes em sua forma como canção, e que, em última instância, é
somente por meio de sua leitura que se pode efetivamente interpretar e apreciar as qualidades
literárias de um rap.
O ponto de partida implícito no trabalho do professor Pate parece ser o de que a
literatura é feita de textos escritos, pois a letra de rap apresenta-se para ele como objeto
poético apenas quando liberada da canção e da sua performance, transposta ao papel como um
objeto tangível, disponível para análise e releitura. Tal ponto de vista tende a reiterar a
oposição escrito/oral, assimilando-a com a oposição poesia/não-poesia.
Hoje, no entanto, definições sobre gêneros literários e poéticos que os atrelem
diretamente à presença da escrita não satisfazem muitos pesquisadores. Finnegan (2005)
considera que as canções, assim como outras formas poéticas orais, não são comparáveis à
literatura escrita e nem classificadas como literárias no sentido mínimo de poderem ser
reproduzidas como textos escritos, mas sim por possuírem características próprias, dentre as
quais são essenciais o uso da voz e a co-ocorrência de multisemioses, que definem a sua
natureza performática. E, desse modo, acredito que para discutirmos a natureza
literária/poética das canções, uma distinção mais frutífera para este trabalho seria aquela entre
poesia escrita e poesia oral, pois gêneros literários orais têm diferentes potencialidades em
41
Tradução minha. No original: “I want to liberate the poetry of rap – the literature of hip hop – from
the stereotyped expectations of their function as ‘songs’”.
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relação à literatura escrita e esse aspecto é de importância primordial tanto para a apreciação
quanto para a análise da canção como um modo de expressão estética.
Vale ressaltar, no entanto, que ao propor esta distinção, não estou tomando como
verdade que a escrita não possa participar dos processos de criação e até mesmo de
transmissão e performance de um poema oral42. Ao contrário do que se costumava acreditar,
um poema não é considerado oral somente se for composto sem que se recorra à escrita (cf.
FINNEGAN, 1977). À exceção dos freestyles 43, o processo de composição de um rap é
geralmente anterior à sua performance e mediado pela escrita.
Mano Brown, membro dos Racionais MC’s, revelou-me em conversa informal
que todas as letras de sua autoria no disco Nada Como Um Dia Após O Outro Dia foram
compostas por escrito, no entanto sem perder de vista o fato de que elas deveriam ser
performatizadas para o público. Cada verso era cantarolado ao mesmo tempo em que era
escrito, para que se adequasse ao ritmo e à métrica do rap. Além disso, cada palavra no
encadeamento dos versos deveria soar claramente quando pronunciadas, do contrário, elas
poderiam prejudicar a audição do verso todo e, consequentemente, o entendimento do
conteúdo da letra pelo ouvinte. Em entrevista, KL Jay, o DJ do grupo, nos exemplifica este
cuidado do MC:
“Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o Mano Brown não deixa de
fazer o plural porque ele não sabe que se fala os meninos ao invés de os
menino. Ele não é ignorante. Acontece que o s é muito difícil de cantar. Ia
soar embolado. Então, como todo mundo fala os menino, ele escreve
também, pela facilidade de cantar. Ou então substitui os menino por a
rapazeada”.
Como podemos ver, no rap, a escrita deixa de possuir o valor de referência
absoluta e de modelo regulador exclusivo do pensamento e do discurso poético para se tornar
42
Finnegan (2005) observa que a escrita pode interagir com a realização oral literária por meio de
transcrição, cartões de memória, anotações, versões impressas de poemas orais, roteiros e até mesmo
como ferramenta para que a audiência possa compreender melhor a performance durante o seu
desenvolvimento, além de múltiplas combinações e seqüências destas e outras formas de interação
escrita/oralidade. Estudos sobre oralidade que vão desde a performance oral de poemas na Corte
Imperial Japonesa e na Europa Medieval até as recitações de poesia contemporânea, performances de
canções populares e produções de rádio e televisão revelam que as formações textuais nestes contextos
intercalam-se entre os modos orais e letrados e podem participar de ambos.
43
Os freestyles são raps improvisados no momento da performance.
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uma ferramenta entre muitas disponíveis no processo de criação, transmissão e performance
de um poema (cf. BÉTHUNE, 1999). Assim, embora Mano Brown escreva as letras de seus
raps, ele nunca perde de vista o fato de que elas serão interpretadas em shows e transmitidas
por CDs na forma de canções, ou seja, que seu verdadeiro modo de existência é o oral, o que
quer dizer que seus raps não têm sua existência na forma de um texto escrito, mas em sua
performance realizada de forma temporal e sequencial através da ativação simultânea da
música, do texto e do canto.
Relatos do processo composicional do autor nos revelam indícios de que o rap é
sempre pensado, desde o seu planejamento, numa relação de interdependência entre base
instrumental, letra e canto. Quando perguntado sobre o seu processo de composição, no
programa Do Lado de Cá44, Mano Brown responde: “Eu vejo um som, eu já dou um tema, o
caminho que eu vou seguir, imagino a letra pronta e ela finalizada. Eu imagino ele [o rap]
pronto.”
Embora a concepção da base instrumental e a da letra do rap se dêem em
momentos distintos, fica claro no depoimento de Mano Brown que estes são eventos
profundamente interdependentes. É particularmente interessante aqui o fato de que Mano
Brown inicia o processo de composição pela audição de uma base instrumental. É ela que
guiará toda a concepção da letra, desde o tema até a escolha de palavras, de acordo com as
sonoridades, possibilidades de encadeamento, aspectos timbrísticos, métrica e o ritmo
sugeridos pela base instrumental. E é por isso que, mesmo antes do início da escrita da letra, o
compositor “já imagina o rap pronto”, ele opera com a conjugação simultânea dos três eixos
principais do rap (música, letra e canto) e seus desdobramentos, no ato da composição. Desse
modo, tona-se evidente que o fazer musical e a visão do produto final aos olhos de Mano
Brown não é segmentado. Compor um rap exige o esforço do autor em operar com essas três
dimensões e estabelecer fios de ligação e significação entre elas.
Esta posição de Mano Brown vai ao encontro da opinião de muitos estudiosos da
poesia oral que têm entendido este gênero como um objeto multidimensional, ao invés de
puramente oral. Isto porque os gêneros orais, cada qual com sua própria estética, podem se
valer de uma série de recursos auditivos - rítmicos, prosódicos, timbrísticos -, visuais e
gestuais, entre outros traços performáticos, que se aglutinam, transcendendo a separação de
44
Programa de Internet, disponível em www.doladodeca.uol.com.br
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seus componentes individuais. Nesta perspectiva, no rap, bem como na canção popular em
geral, texto e música compõem facetas superpostas de um evento performático que não pode
ser dividido (cf. FINNEGAN, 2008).
O rap evidencia como as palavras tornam-se um entre outros elementos em jogo
no momento da criação e da performance poéticas - todos cruciais para a sua realização e
recepção literárias-, o que implica em considerar que a poeticidade do rap, como um gênero
oral (e multimodal), não reside apenas em sua realidade verbal, mas na atualização em
performance de música, texto e voz. Portanto, ao se dirigir o foco de análise dos raps apenas
ao seu conteúdo verbal, na forma de poemas escritos, corre-se o risco de negligenciar aspectos
definidores do gênero. E é por isso que observar os papéis desempenhados por cada um dos
elementos do poema em performance tem se tornado uma abordagem cada vez mais
reconhecida para a análise das criações poéticas orais e é esta que empregarei nas análises do
rap “To ouvindo alguém me chamar” dos Racionais MC’s que empreenderei a seguir.
Longe de poder expor todos os modos pelos quais o canto falado de Mano Brown
interage com a base instrumental e quais os significados que emergem dessa relação, neste
artigo, procurarei exemplificar como as tecnologias sonoras de sampleagem empregadas na
composição interferem ativamente na manipulação e produção de sentidos dentro da canção,
por meio da teatralização de situações narradas e da inserção de sons não musicais que
dirigem, muitas vezes, a interpretação do texto verbal.
As relações entre texto e música nos raps dos Racionais MC’s: o caso do sample
O rap brasileiro pode ser brevemente resumido como um poema oral (geralmente
de longa duração quando comparado a outras canções populares), em que a arte de rimar é
combinada a bases instrumentais produzidas por uma moderna tecnologia sonora. A
metrificação dos versos não obedece à contagem de sílabas, mas ao pulso que marca o ritmo
da música, na maioria das vezes, numa subdivisão quaternária (4/4). Em relação aos raps dos
Racionais MC’s, tal fato pode elucidar porque Mano Brown utiliza a base instrumental como
guia métrico para a criação de suas letras.
As instrumentais de um rap são construídas por meio da repetição de uma mesma
sequência musical do início ao fim da canção, por isso, raras vezes um rap comporta variações
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e mudanças de compasso. No entanto, é interessante assinalar aqui que, nos momentos em que
não há uma base instrumental acompanhando o canto, podem ocorrer tais variações e
mudanças, pois sem a rigidez rítmica da instrumental, o intérprete ganha maior liberdade para
cantar. A introdução de Jesus Chorou (MANO BROWN, 2002), por exemplo, iniciada na
fórmula de compasso quaternário, para atender a exigências de metrificação do canto, torna-se
ternária em um momento, conforme nos exemplifica a transcrição abaixo:
Os métodos de produção do acompanhamento musical de um rap são baseados
numa série de procedimentos manuais e tecnológicos de manipulação de sons já gravados
e/ou sintetizados por computador, dentre os quais podemos citar:
- o scratch: uma técnica executada pelo DJ que consiste na produção de uma
escansão rítmica ou um efeito sonoro a partir de um ou vários LPs manipulados manualmente
num vai-e-vem sucessivo sobre uma porção determinada do disco de vinil.
- a mixagem: misturar as informações de diferentes fontes sonoras a permitir uma
sensação de continuidade entre estes fragmentos, manualmente – utilizando dois LPs e um
crossfader – ou eletronicamente, por meio de um computador.
- a sampleagem: procedimento realizado por um sampleador que consiste na
extração de sequências rítmicas, melódicas, fundos rítmicos, linhas instrumentais etc. de
músicas já gravadas. Tais sequências podem sofrer modificações por métodos de manipulação
sonora.
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- o corte: fragmentar frases musicais para serem sampleadas
- o loop: repetição regular ou aleatória de um fragmento sonoro
- layering: superposição de samples
- beat box: biblioteca de sons sintetizados que podem ser incorporados às canções,
adequando-se à velocidade, acentuação métrica, timbre etc.
Por meio destes procedimentos, fragmentos de músicas e sons variados, ambos
previamente gravados, podem ser extraídos de seus contextos originais e combinados de
diversas maneiras de forma a comporem a base rítmica e melódica de um rap. Essa
combinação é executada por um produtor45 e esses “pedaços de música” são chamados de
samples que podem provir tanto de outros raps quanto de músicas pertencentes a outros
gêneros musicais. Os samples podem ser ainda derivados de um material não musical, tais
como diálogos, sons de sirene, choros, tiros, conforme veremos.
O recurso do sample, do ponto de vista musicológico, põe em causa o papel da
nota como a menor unidade da linguagem musical. Segundo Tordjman (1998), o sample
definiu uma mudança brutal no alfabeto e no vocabulário musicais, dos quais a nota deixou de
ser componente, e isso não pôde ocorrer sem que houvesse mudanças nas práticas de criação
musical.
Conforme ressalta Béthune (1999), a composição a partir de notas musicais é uma
atividade altamente formalizada. Ou seja, na música ocidental, utilizar os códigos musicais
tradicionais requer um conhecimento prévio sobre as suas regras e normas estabelecidas ao
longo dos séculos. “Composer à partir de notes, c’est accomplir um itinéraire esthétique qui
part de la théorie pour aller à l’objet.” (BÉTHUNE, 1999, p. 52). Já na composição de um
rap, a prática de criação está calcada na manipulação dos equipamentos e instrumentos
tecnológicos e não há a necessidade de um aprendizado formal de teoria musical. Trata-se de
um processo empírico de recombinação de materialidades já existentes.
“La pratique
de
l’ échantillonnage
prive l’ oeuvre de
sa dimension spéculative: la démarche créative y demeure exclusivement
empirique. (...) La manifestation sensible de l’oeuvre est desormais
45
O produtor de música rap é aquele responsável pela montagem em estúdio das canções. É ele quem
une a base de acompanhamento musical (que pode ser de sua autoria ou não) à letra cantada pelo MC
e dá o acabamento final aos raps, inserindo scratches, samples e outros efeitos (cf. SCHLOSS, J.,
2004).
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déterminée par l’habilité d’un tâtonnement expérimental où prévaut le
sensible, et dont la mise en oeuvre s’apparente à une sorte de bricolage”
(Ibid., loc. cit.).
Na tradição musical ocidental, historicamente, sons que não fossem oriundos de
um instrumento musical convencional não eram utilizados nas composições e seriam
considerados ruídos se ocorressem durante a sua execução46. A técnica da sampleagem
contribuiu decididamente para a mudança deste paradigma, uma vez que os samples podem
ser combinados de diversas formas sem, necessariamente, obedecer a regras de harmonia,
condução melódica, contraponto, entre outras e, com isso, o ruído passa a ser um som
musicável. Deste modo, o rap pode extrair sons de diversas fontes, oriundas ou não de
instrumentos musicais, e combiná-los de modo a constituir sua base instrumental e este fato é
fundamental para o entendimento da importância que a porção musical tem na atualização dos
sentidos provocados por um rap.
Em “To ouvindo alguém me chamar” (MANO BROWN, 1997), por exemplo, os
samples utilizados para compor a porção musical da obra se apresentam como poderosos
recursos de teatralização dos cenários e das situações narradas nas letras, interagindo com o
canto mais do que em aspectos rítmicos e melódicos e influenciando diretamente na produção
de sentido do rap.
A canção “To ouvindo alguém me chamar” é o relato autobiográfico do narrador
da canção, um rapaz de aproximadamente 24 anos sobre a sua vida a partir de sua entrada no
mundo do crime até o momento exato de seu assassinato.
A narrativa é construída numa estrutura temporal não-linear, permeada por
lembranças que se entrelaçam com o momento presente, como se o filme da vida do narrador
passasse diante de seus olhos, entre o momento em que ele leva o tiro até o seu falecimento.
Na verdade, a letra começa e termina com a dramatização do assassinato do narrador, de
modo breve e até indecifrável no início da canção, sinalizada apenas pela fala “Aí, mano, o
Guina mandou isso aqui pra você”, proferida por um personagem que não é o narrador, e de
modo mais completo ao final da canção, conforme a transcrição:
46
Se acompanharmos a história da música ocidental, notaremos profundas mudanças no âmbito do
fazer musical, com o advento da gravação. Desde os primeiros experimentos com a música concreta e
as iniciativas que se seguiram, contribuíram decisivamente para o uso de sons não provenientes de
instrumentos musicais convencionais.
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(Exemplo 1)
Letra da Canção
Acompanhamento Musical
Dez minutos atrás
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Foi como uma premonição
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Dois moleque caminharam
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Em minha direção
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Não vou correr
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Eu sei do que se trata
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Se é isso que eles querem então vem
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Me mata
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação
Disse algum barato pra mim
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco na caixa de
som esquerda
Que eu não escutei
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco na caixa de
som esquerda
Eu conhecia aquela arma
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
É do Guina eu sei
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Uma três oito zero prateada
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
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Que eu mesmo dei
489
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Um moleque novato
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Com a cara assustada
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
“Aí mano o Guina mandou isso aqui Base musical acompanhada de batida forte sem
pra você”
reverberação.
Fala proferida por outro homem que não o narrador;
a mesma que abre a canção.
Som de quatro tiros
Mas depois do quarto tiro eu não vi Base musical acompanhada de batida forte sem
mais nada
reverberação e som de quatro tiros; Som de monitor
cardíaco
Sinto a roupa grudada no corpo
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Eu quero viver
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Não posso estar morto
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Mas se eu sair daqui eu vou mudar
Base musical acompanhada de batida forte sem
reverberação e som de monitor cardíaco
Eu tô ouvindo alguém me chamar
Batida forte sem reverberação, fim da base musical.
O som do monitor cardiaco prolonga-se e depois
cessa indicando a parada cardiaca. Nao há mais som
forte sem reverberaçao indicando o ritmo cardiaco.
FIM DA MÚSICA
Conforme salienta Bentes (2007), este recurso de começar um relato por uma das
cenas do acontecimento final da narrativa (in media res) é pouco utilizado em letras de música
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em geral. Porém, o tempo de mais de onze minutos de “To ouvindo alguém me chamar”
permite que Mano Brown explore diversos recursos textuais/narrativos e sonoros/musicais de
modo a situar o ouvinte acerca da situação vivenciada no momento presente pelo narrador e
sobre aqueles fatos que remetem a lembranças do passado.
Desde os primeiros 23 segundos da canção, logo após o primeiro verso, “O Guina
mandou isso aqui pra você”, e até o último verso cantado pelo MC (conforme transcrição
acima), o compositor integra à base musical um som que reproduz o ruído de um aparelho de
eletrocardiograma e batidas graves sem reverberação que sugerem o ritmo cardíaco do
narrador enquanto ele agoniza, e por isso essas batidas são metricamente irregulares, fora do
compasso quaternário da obra.
Ainda que, de início, o ouvinte não saiba que o narrador fora vítima de um
alvejamento, o receptor da obra tem a nítida sensação de que o coração do narradorpersonagem está sendo monitorado, o que sugere que ele esteja sendo atendido por médicos
num pronto-socorro ou por paramédicos em uma ambulância. Para tornar esta imagem ainda
mais acurada, o DJ KL Jay e o MC Mano Brown, produtores da canção, tiveram o cuidado de
fazer com que esse som se movimentasse pelo pan estéreo, ou seja, que o som alternasse de
uma caixa de som para a outra, reproduzindo o movimento de um gráfico de
eletrocardiograma. É somente o efeito de prolongamento deste som, ao final da canção,
sinalizando ausência de batimentos cardíacos, que indica ao ouvinte a morte do personagem.
Tal procedimento composicional exemplifica uma marca importante de “To
ouvindo alguém me chamar”: a situação presente do narrador é trazida à música menos por
meio do texto verbal do que pelos recursos de encenação que os samples permitem incorporar.
Esta estética é seguida durante a música toda.
Antes do desfecho da narrativa, transcrita no exemplo 1, há apenas dois momentos
em que o narrador canta sobre o seu momento presente, conforme os versos em negrito na
transcrição abaixo. Porém, notem que, a primeira vista, numa análise tão somente textual,
seria possível relacionar os versos em negrito com as situações narradas que os antecedem e
julgar que, apesar do tempo verbal presente, o narrador está encenando uma lembrança do
passado, conforme acontece em outras passagens da canção. A desambiguação das passagens
só se opera se considerarmos a dimensão sonora da canção em sua análise. Vejamos os
exemplos:
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(Exemplo 2)
Letra da Canção
Acompanhamento
Musical
Sample
- Aí, é um assalto todo mundo pro chão, Cessa a base musical.
pro chão
Iniciam-se acordes de teclado,
criando clima de suspense.
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Sample
- Aí filho da puta aqui ninguém tá de Batida forte sem reverberação e
brincadeira não
Sample
som de monitor cardíaco
- Mas eu ofereço o cofre mano, o cofre, o Batida forte sem reverberação e
cofre
som de monitor cardíaco
- Vamos lá que o bicho vai pegar
Narrador
Pela primeira vez eu vi o sistema nos meu Ladrões continuam falando ao
pés
fundo
Apavorei... desempenho nota dez
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Narrador
Dinheiro na mão o cofre já tava aberto
Ladrões continuam falando ao
O segurança tentou ser mais esperto
fundo
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Narrador
Então,
Ladrões continuam falando
Foi defender o patrimônio do playboy
Sons de tiros
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Narrador
Cuzão,
Sons de tiros
Não vai dar mais pra ser super-herói
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
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Narrador
Se o seguro vai cobrir
Fim dos acordes de teclado
He he, foda-se e daí?
Sons de gritos
492
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Narrador
Hã, o Guina não tinha dó
Sons de gritos ao fundo
Se reagir, bum, vira pó
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Narrador
Sinto a garganta ressecada
Sons de gritos ao fundo
E a minha vida escorrer pela escada
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Narrador
Mas se eu sair daqui, eu vou mudar
Batida forte sem reverberação e
Eu to ouvindo alguém me chamar
som de monitor cardíaco
Respiração ofegante
Narrador
Eu to ouvindo alguém me chamar
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Respiração ofegante
Batida forte sem reverberação e
som de monitor cardíaco
Sons de respiração ofegante, sirene
policial, risadas e, ao final, o grito
de uma mulher
INÍCIO DE NOVA ESTROFE
(Exemplo 3)
Letra da Canção
Acompanhamento Musical
Agora é tarde, eu já não podia mais
Base musical acompanhada de batida forte
Parar com tudo, nem tentar voltar atrás
sem reverberação e som de monitor cardíaco
Mas no fundo, mano, eu sabia
Base musical acompanhada de batida forte
Que essa porra ia zoar minha vida um dia
sem reverberação e som de monitor cardíaco
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Me olhei no espelho e não reconheci
Estava
enlouquecendo,
493
Base musical acompanhada de batida forte
não sem reverberação e som de monitor cardíaco
podia mais dormir
Preciso ir até o fim
Base musical acompanhada de batida forte
Será que Deus ainda olha pra mim?
sem reverberação e som de monitor cardíaco
Eu sonho toda madrugada
Base musical acompanhada de batida forte
Com criança chorando e alguém dando sem reverberação e som de monitor cardíaco
risada
Não confiava nem na minha própria sombra Base musical acompanhada de batida forte
Mas segurava a minha onda
sem reverberação e som de monitor cardíaco
Sonhei que uma mulher me falou, eu não sei Base musical acompanhada de batida forte
o lugar
sem reverberação e som de monitor cardíaco
Que um conhecido meu, quem?, ia me matar
Precisava acalmar a adrenalina
Base musical acompanhada de batida forte
Precisava parar com a cocaína
sem reverberação e som de monitor cardíaco
Não to sentindo meu braço
Base musical acompanhada de batida forte
Nem me mexer da cintura pra baixo
sem reverberação e som de monitor cardíaco
Ninguém na multidão vem me ajudar
Base musical acompanhada de batida forte
Que sede da porra eu preciso respirar
sem reverberação e som de monitor cardíaco
Cadê meu irmão?
Base musical acompanhada de batida forte
Eu to ouvindo alguém me chamar
sem reverberação e som de monitor cardíaco
Sons simultâneos de bebê chorando, de sirenes
policial e de ambulância, risadas, e uma
respiração ofegante que vai ficando cada vez
mais forte. Cessa o acompanhamento musical
de base, tornando-se mais evidentes a batida
forte sem reverberação, indicando o ritmo
cardíaco, e o som de eletrocardiograma.
INÍCIO DE NOVA ESTROFE
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Tal como acontece no exemplo 1, o verso “Eu to ouvindo alguém me chamar”,
que fecha cada estrofe, é seguido pelo silêncio do narrador-personagem, também nos
exemplos 2 e 3. Este verso claramente sinaliza ao interlocutor um evento externo àquele da
narrativa que vinha em curso até o momento, chamando a atenção para as ações que estão
acontecendo ao mesmo tempo em que o narrador personagem conta a sua história. No
momento de respiro da canção, que segue o verso, o narrador se cala e os diversos efeitos de
sampleagem vêm a primeiro plano, informando o ouvinte sobre o cenário em que o
personagem se encontra e os diversos eventos externos simultâneos que estão ocorrendo ao
redor dele. A partir destas pistas sonora/musicais, combinadas com as informações em negrito
nos versos, o ouvinte consegue construir a imagem de um homem que está agonizando, caído
no meio da rua, sendo socorrido por uma ambulância, com uma multidão em volta, e na
presença da polícia. Apenas ao final da narrativa, no entanto, o ouvinte compreenderá que este
cenário se deve ao fato do personagem ter tomado um tiro. E o desfecho da toda a situação se
dá também sonoramente, com o eletrocardiograma sinalizando a morte do personagem,
conforme demonstrado.
Em geral, ao longo de toda a canção, as mudanças de cenário, de tópico e tempo
narrativo não se operam linguisticamente. Tal fato aponta para uma diferença importante no
que tange às possibilidades de realização literária oral e escrita: o que na escritura se opera
por meio da explicitação discursiva, o rap integra em sua dimensão sonora. Em “To ouvindo
alguém em chamar”, os recursos de sampleagem criam a ilusão de que o mundo não figura a
título de simples representação, mas que ele se apresenta concretamente, ou ainda, de que o
rapper não fala sobre a realidade, mas de dentro dela.
“Per le jeu de ses collages complexes e de ses échantillons (samplings)
variés, de ses montages en boucle et de ses superpositions, de ses
scratchings, de ses prévelèments de tout ordres, la mise en scène sonore,
inséparable de textes, accomplit une osmose du scène poétique et du réel
avec une prégnance qui échappe encore à l’image.” (BÉTHUNE, 1999, p.
47)
Segundo KL Jay, o DJ do grupo Racionais MC’s, o recurso da sampleagem
confere uma expressividade à base musical que vai além da simples imitação ou ilustração
sonora da situação narrada pelo canto, em que, por exemplo, o MC pronunciaria a palavra
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“tiro” e sons de disparos seriam tocados simultaneamente; os efeitos de sampleagem
constroem uma narrativa própria, que ocorre simultaneamente à narrativa falada. Os dois se
complementam e, em sua opinião, não há hierarquia entre elas. A atribuição de maior
importância à letra ou à música dependerá da audição de cada ouvinte.
No processo de construção da base musical das canções dos Racionais MC’s,
primeiro cria-se a base de acompanhamento e, só depois que a voz é colocada, que os recursos
de sampleagem são inseridos. Como o texto verbal cantado não comporta explicações e
contextualizações extensas, o DJ esclarece que cabe ao produtor de determinado rap perceber
e musicar “a parte da história que o MC não conta”. Assim, o texto cantado não é
simplesmente acompanhado por efeitos sonoros, ao contrário, sons verbais e sons não-verbais
fundem-se num evento performático literário que não é dividido.
De um modo geral, os Racionais MC’s utilizam-se muito do efeito de
sampleagem de sons não musicais em seus raps. No entanto, há algumas canções que são
construídas inteiramente com o recurso da sampleagem de trechos de outras obras musicais
que se repetem durante toda a música, com poucas variações. Sobre esses raps, KL Jay diz
que a base musical é tão importante quanto nos outros, na medida em que é ela que conduz o
ouvinte para o texto. Em entrevista, o DJ me diz:
“Pra fazer o rap, a primeira coisa, a música tem que ser boa. E ela tem que
repetir. O cara ouve aquela base e fica ali, só prestando atenção nos sons,
pensando no que vem depois. Ele se envolve na repetição. É foda. Ele fica
ali... Quando a voz entra, ele [o ouvinte] já tá dentro da música, e começa a
prestar atenção no cara [o MC quando canta]. Só porque ele gosta da música
que ele consegue ouvir a idéia. Senão virava só discurso. A idéia tem que ser
boa, pra frente, mas a música tem que ser do caralho, se não a idéia boa não
serve pra nada.”
KL Jay relata ainda que os ritmos de fala e da música se integram de modo que as
sonoridades da voz e da base de acompanhamento tornam-se um só fluxo musical, e que a
atenção do ouvinte não se divide entre letra e música, mas dirige-se à interação entre um e
outro. O que seria este ato de voltar-se à forma do que é dito mais ou tanto quanto ao que é de
fato dito, senão a recepção poética?
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Algumas considerações finais
Finnegan, em seu texto The How of Literature (2005), convida-nos a olharmos os
glossários e enciclopédias de literatura e a observarmos como muito pouco ou mesmo nada é
escrito a respeito dos complexos aspectos performativos dos textos literários cujas formas
principais de realização são a exibição pública no aqui e no agora, pois seus autores baseiamse na posição estereotipada de que literários são aqueles trabalhos cujos pontos de partida e
final de referência são a sua existência como escritura. A autora frisa ainda que, quando
mencionados, os aspectos performáticos aparecem como irrelevantes diante da existência
concreta e duradoura dos textos escritos.
Uma visão de literatura que engloba a oralidade e a imediatez da performance
desafiou o paradigma da alta literatura como a norma pela qual todas as formas de arte verbal
são julgadas e permitiu uma maior valorização da realidade literária de gêneros populares que
se encontram fora do tradicional cânone europeu, como o rap, por exemplo. Assim, os
conceitos de literatura oral e de poesia oral abriram-nos para um maior entendimento das
diversas atividades de realização literária, levando-nos para além da análise de textos escritos
e oferecendo-nos um campo mais amplo de estudos dos gêneros orais e literários.
A poesia oral põe em causa a suposta separação entre os recursos expressivos
linguísticos e paralinguísticos. Segundo Finnegan (2005), uma das principais características
da literatura oral é a sua multimodalidade. Ora, não poderia ser diferente, uma vez que esta é
também uma das qualidades de qualquer texto oral, formal, informal ou poético. Para Urbano
(1997), a expressividade, inerente à língua falada, se manifesta não só por meios estritamente
lingüísticos como também por outros meios de natureza não linguística, conforme o esquema
abaixo:
verbais: gírias, vocativos etc
RECURSOS
EXPRESSIVOS
suprassegmentais:
lingüísticos
prosódicos
entonação, acento etc
Co-segmentais:
ordem etc
pausas,
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não-lingüísticos/paralingüísticos
497
cinésicos: gestos etc
situacionais
(URBANO, 1997, p. 122)
Para Finnegan (2005), deve ficar claro que aqueles que produzem artes literárias
performáticas fazem mais do que apenas enunciar palavras:
“They also play upon the flexible and remarkable instrument of the voce to
exploit a vast range of non-verbalized auditory devices of which the
prosodic that are up to a point notated within our literary texts – rhyme,
alliteration, assonance, rhythm, acoustic parallelisms – are only a small
sample. There are also subtleties of volume, pitch, tempo, intensity,
repetition, emphasis, length, dynamics, silence, timbre, onomatopoeia, and
the multifarious non- verbal ways performers can use sound to convey, for
example, character, dialect, humor, irony, atmosphere, or tension. And then
there are all the near-infinite modes of delivery: spoken, sung, recited,
intoned, musically accompanied or mediated, shouted, whispered; carried
by single or multiple or alternating voices. (...) It goes beyond the vocal too,
huge as that whole range is. Percussion and instrumental music can play a
part too (...)”. (FINNEGAN, 2005, p. 170-171)
A posição da autora levou-me a considerar que a poeticidade de um rap existe na
conjugação de um texto integrado a uma composição musical e, por isso, uma abordagem que
trabalhasse com o rap considerando-o como texto escrito não me pareceu adequada para o
entendimento das suas possibilidades de realização estética/literária: sua análise e sua crítica
devem ser empreendidas levando-se em conta a sua dimensão sonora. Nesta perspectiva, a
análise da interação entre o canto do rap e os samples pareceu-me muito ilustrativa para
demonstrar a qualidade multimodal da obra poética oral e a importância dos aspectos
paralinguísticos para a compreensão do texto verbal.
Na obra dos Racionais MC’s, o sample, como ferramenta composicional da obra
musical, é utilizado de forma a atrair a atenção do ouvinte aos diversos elementos em jogo na
canção e ao modo como eles interagem na criação de uma mensagem poética. Isto se dá pela
intenção consciente do compositor, conforme relato de KL Jay, de construir uma sequência
sonora que seja prazerosa ao ouvinte, para que, assim, ele possa centrar sua escuta nos modos
como o rap se desenrola progressivamente, som a som, incluindo-se aí a dimensão do canto.
A partir, então, do prazer estético suscitado pela canção, pela atenção dada à forma sob a qual
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ela se desenvolve, o ouvinte poderá apreender o seu conteúdo e a sua mensagem, tal qual
descreve Jakobson a respeito da função poética da linguagem.
Ora, se a música constitui-se como esse elemento de mediação importante e, até,
indispensável, conforme salienta o DJ, entre ouvinte, o prazer experimentado na recepção
poética e a construção de sentidos, logo, os aspectos musicais e sonoros do rap não poderão
ser considerados elementos contingenciais adicionados à obra completa e elaborada das letras,
como argumenta Pate (2010).
Longe de se constituírem como aspectos secundários na composição dos raps dos
Racionais MC’s, os samples desempenham papel central nos modos pelos quais o ouvinte
constrói os sentidos do poema. As análises de “To ouvindo alguém me chamar”
demonstraram que as bases instrumentais utilizadas nas composições não conferem apenas
acompanhamento musical ao canto e nem servem de mera ilustração àquilo que é expresso
pela palavra, mas recobrem a música de sentidos que não estão necessariamente dados no
texto verbal. Uma vez que o rapper dispõe da tecnologia de inserção de efeitos sonoros
diversos, ele pode integrar à esfera musical informações que, na literatura escrita, deveria darse por meios de explicitação discursiva. Notem como, em Sou Mais Você, o grupo opera a
passagem da noite para a manhã, sem utilizar nenhuma palavra:
Duração do som
Tipo de som
0’’ a 5’’
som de carro freando
6’’ a 8’’
som de tiros
7’’ a 16’’
som de cachorros latindo
9’’ a 15’’
som de carro saindo em arrancada
16’’ a 24’’
((silêncio))
25’’ a 28’’
som de galo cantando
32’’ a 1’45’’
som de despertador tocando
44’’ a 1’47’’
base musical
46’’ a 1’45
canto do rap por Mano Brown
Não quero com isso dar a entender que o texto fora relegado a um lugar de
segunda importância. Ao contrário, não poderíamos compreender “literatura” sem que este
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conceito nos remetesse à arte verbal. O fato é que, cada vez mais, o estudo comparativo das
práticas literárias ao redor do mundo tem levado estudiosos a compreenderem que outras
semioses podem co-ocorrer com a palavra, sem que isto afete a percepção de seus produtores
e receptores de que se trata de uma obra literária.
Exemplo disso é que, quando perguntado se era poeta, Mano Brown respondeume assertivamente: “Eu faço rap. E rap é poesia.” À mesma pergunta, KL Jay respondeu-me,
em tom de brincadeira, que era o “poeta das pick-ups”, já quando perguntado se rap era
poesia, respondeu-me séria e prontamente que sim, “o rap é a poesia dos pretos”. Ao longo da
pesquisa de campo realizada por mim também entre receptores de rap nas periferias
paulistanas, pude perceber que estes sujeitos envolvidos com a cultura hip hop não
consideram haver diferença alguma entre rap e poesia. A dimensão sonora e musical do rap
não o desqualifica, portanto, como um produto literário. Ao contrário, abre as portas para que,
aqueles interessados nas diversas formas pelas quais a literatura se realiza, possam entender
os modos plurais pelos quais ela é produzida e recebida.
Bibliografia
FINNEGAN, R. Oral poetry. Cambridge: Cambridge University Press. 1977.
______. The how of Literature. In: Oral Tradition. 20/2. 2005. pp.164-187.
______. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance? In: C. N. MATOS, E.
TRAVASSOS, & F. T. MEDEIROS, Palavra Cantada: Ensaios sobre Poesia, Música e Voz
(pp. 15-43). Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
MANO BROWN. Jesus Chorou. CD. Nada Como Um Dia Após O Outro Dia. Racionais
MC’s. Gravadora Cosa Nostra. São Paulo. 2002.
______. Sou Mais Você. CD. Nada Como Um Dia Após O Outro Dia. Racionais MC’s.
Gravadora Cosa Nostra. São Paulo. 2002.
______. To Ouvindo Alguém Me Chamar. CD. Sobrevivendo no Inferno. Racionais MC's.
Gravadora Cosa Nostra. São Paulo. 1997.
PATE, A. In the heart of the beat: the poetry of Hip Hop. Plymouth: The Scarecrow Press,
Inc., 2010
TORDJMAN, G. Sept remarques pour une esthétique du sample. Technikart. Vol 20. 1998.
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500
URBANO, H. A expressividade na língua falada de pessoas cultas. In: D. Preti. O discurso
oral culto. São Paulo: Humanitas, 1997. pp. 115-139.
ZUMTHOR, P. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e
Maria Inês de Almeida. São Paulo, Hucitec, 1997.
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501
“A VOZ É A PESSOA”: PERFORMANCE DE DONA RITA NA LAPINHA
SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
Marinaldo José da Silva47 (PG-UFPB)
Maria Ignez Novais Ayala (Profa. Dra.-UFPB-Orientadora)
Este trabalho propõe discutir alguns aspectos da oralidade, no que se refere à
performance de uma brincante, Dona Rita Viturino, da Lapinha Sagrado Coração de Jesus e à
escritura em um depoimento dado por ela.
O material utilizado para análise foi parte de uma pesquisa de campo, feita por
mim, para montagem da minha dissertação de mestrado, realizada entre 1998 e 2002, na
comunidade de Mandacaru, bairro da capital. Naquele momento, não utilizamos o teórico
Paul Zumthor, agora foi direcionando, principalmente, à poesia oral, nome que recebe a obra
dele que serviu de base como proposta de execução deste trabalho.
A Lapinha é uma dança dramática popular com características religiosas no que
diz respeito às alusões ao Nascimento do Menino Deus.
Fundamenta-se em uma perspectiva de diálogo com as propostas de Paul Zumthor
– um pensador das poéticas do oral e vocal, estudioso do medieval às culturas tradicionais, do
universo da oralidade presentes nas performances contemporâneas.
Pensando na onipresença da voz e a diversidade de registros, resolveu-se utilizar
como corpus deste trabalho, um depoimento oral que foi transcrito na tentativa de produzir
um texto mais próximo da fala. A expressividade vocal da brincante foi vista da forma mais
fiel com que ela falava, pois a intenção seria manter os valores lingüísticos da voz. Pensando
assim, em meio às classificações de uma oralidade primária (código oral – a fala do
inconsciente coletivo) ou pura, sem contato com a “escrita” – a oralidade pura define uma
civilização da voz viva, em que esta constitui um dinamismo fundador simultaneamente
preservador dos valores de palavra e criador das formas de discursos próprios para manter a
coesão social e moral do grupo. Desta forma, a oralidade será a matriz da escritura, pensando
na fala de Dona Rita – voz poética.
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502
O corpo e sua relação com a voz serão analisados por meio de fotografias, formas
de expressão escrita e algumas jornadas (cantos da ‘brincadeira’) expostas no decorrer do
depoimento de Dona Rita.
O objetivo é construir uma experiência compartilhada de bases teóricas e
metodológicas com foco na cultura tradicional e na literatura oral. Assim, propiciar o
conhecimento da diversidade cultural oral brasileira a partir de registros de pesquisa de campo
e estudos etnográficos e mostrar como a escritura pode ser posta a serviço da oralidade.
Algumas consideração sobre o Folclore e a Cultura Popular numa perspectiva oral
O folclore tende a mobilizar, deixar a cultura popular estática pelas derivações de
conceitos limitados se pensarmos em resgate, mas a cultura popular é dinâmica por ter a
diversidade de saberes, vozes, depoimentos, podendo assim evidenciar passagens do
cotidiano, pois a vida sócio-cultural é repassada nas próprias histórias, geralmente numa
sociedade rústica em meio daqueles que fazem as brincadeiras populares, em geral. É com a
oralidade que se rompem os limites estabelecidos pelos estudiosos do folclore.
Pode-se pontuar a seguinte consideração de Oswaldo Elias Xidieh quando diz que
“a cultura popular é uma soma continuada entre pessoas de um determinado lugar, a partir
de um tempo não determinado, sendo informado por meio de traços orais, costumes, fazeres e
saberes” - (XIDIEH, 1976).
Pensando a cultura popular enquanto híbrida, ela não é presa a uma tradição.
É grande o impasse entre oralidade, voz, som entre outros elementos que
envolvem a performance do ser na lingüística, porém se pensarmos na abordagem de Walter
Ong sobre oralidade e cultura escrita, pode-se verificar a importância histórica da escrita e
seus respectivos registros dizendo que “é útil abordar a oralidade e a cultura escrita de modo
sincrônico, pela comparação entre culturas orais e culturas quirográficas (ou seja, escritas
que consistem num dado período). Mas é absolutamente essencial abordá-las também
diacrônica ou historicamente, pela comparação de períodos sucessivos”.
Outro ponto importante que podemos salientar é a questão da oralidade da
linguagem, apontando a questão da oralidade primária, a oralidade de culturas não afetadas
pela cultura escrita, mtivo discursivo, classificatório, de Walter Ong.
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Sob esta perspectiva, pensamos no depoimento de Dona Rita, transcrito de forma
muito cuidadosa para que não perdesse a poesia oral de sua fala, pois Dona Rita desconhece
inteiramente a escrita, motivo que se enquadra na oralidade primária levantada pelo teórico
em questão.
A escrita é uma representação da linguagem falada na forma visível. Isso é
bastante comum no que se refere aos depoimentos daqueles que fazem a cultura popular.
Pensando na Poética da Voz, de Zumthor, esboçamos o seguinte esquema:
A voz é um grande fio cultural
É importante, hoje, falar em cultura oral e cultura escrita.
Em meio às diversas formas de oralidade, a voz é um grande fio cultural, pois é a
partir dela que se constrói a performance do gesto e do corpo.
VOZ............+ ............GESTO........ =............ PERFORMANCE
/
/
/
DANÇA
/
/
/
REPRESENTAÇÃO (o sagrado se dilui na performance do imaginário)
CANTO
/
(som)
PROVOCA IMAGENS, PROVOCA O GESTO
/
/
A VOZ IMPREGNA NO CORPO (movência das imagens)
/
/
/
/
/
/
PROVOCA EMOÇÃO
(êxtase)
/
/
/
MOVÊNCIA DAS IMAGENS
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LIBERDADE DE AÇÃO - - - - - - - - - - DANÇA E CANTO - - - - - - - LAPINHA
/
/
/
/
/
/
/
/
/
VOZ - DONA RITA - LAPINHA SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
Enquanto esse fio condutor que pudemos chamar de VOZ, na leitura de Zumthor,
faz-se necessário apontar os seguintes tópicos sobre o esquema exposto:
Para se chegar aos textos orais, é necessário chegar às pessoas e tentar perceber o
flagra no momento da conversa, pois esquematicamente podemos pensar nos componentes do
ato de fala: emissor, receptor, mensagem, código, canal e referente.
Dependendo da ênfase que se deseja dar a cada um dos componentes da
comunicação, a linguagem pode assumir diferentes funções, entretanto, na lingüística pode-se
pensar na performance da voz.
Observemos o esquema no qual se pensou assim:
PERFORMANCE = SIGNO = REPRESENTAÇÃO
/
VOZ – (ela está no corpo, emprenha o corpo – emissor)
/
/
CORPO (ele é a recepção – receptor)
/
/
TEXTO (todo o texto é teatral, representa a voz - mensagem)
/
/
MEMÓRIA (história individual ou coletiva expressa pelo oral – canal)
/
/
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TEMPO ANTROPOLÓGICO (fala de Dona Rita – assunto da mensagem – referente)
- A oralidade é plural, é de um conjunto de seres que somam, aderem, não
hierarquizam.
- A voz alimenta a escrita.
- O oral sempre é negligenciado, principalmente quando se trata do popular.
- As oralidades se comunicam entre si, mas são específicas.
- Na performance da voz, a voz é a pessoa. A voz tem a identidade da pessoa.
- A performance é puramente corpo e voz.
- A voz é a portadora da linguagem. É por ela que se articulam as palavras.
- Há uma classificação da oralidade: primária, código oral – fala do inconsciente
coletivo ou puro sem contato com a ‘escrita’, diz: “A oralidade pura, define uma civilização
da voz viva, em que esta constitui um dinamismo fundador simultaneamente preservador dos
valores de palavra e criador das formas de discursos próprios para manter a coesão social e
moral do grupo” - (ZUMTHOR, 1997).
Dona Rita: a Voz da Lapinha
Em meio às indicações e descobertas, encontrei Dona Rita, Rita Viturino
Monteiro, 78 anos, migrada do Recife – PE, com muita história de lapinha para contar. Ela era
a organizadora da Lapinha Sagrado Coração de Jesus, desde menina, aos cinco anos, já fazia
parte da brincadeira, desenvolvendo diferentes papéis nas apresentações públicas.
Por participar há muito tempo das lapinhas de João Pessoa, Dona Rita carrega na
memória a lembrança da tradição das várias montagens já vivenciadas ao longo de sua vida. A
cada ano, apoia-se em experiências mais recentes ou do passado, quando brincou como
Cigana, como Linda Mestra ou como outro dos dezoito personagens deste espetáculo, tem
colaborado ativamente para dar beleza e entusiasmo, tanto ao cordão azul, quanto ao cordão
encarnado, os dois partidos que dão vida a esta dança. Hoje em dia, Dona Rita mora no
município de Conde, considerado Grande João Pessoa. Lá Dona Rita conseguiu reunir um
grupo, no ano em que chegou por lá, mas não chegou a queimar a lapinha. Em 2001, ensaiou
algumas meninas e fez apenas a Festa da Queima da lapinha, que se realizou no dia cinco de
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janeiro de 2002, às 19h em sua casa, onde montou um cercado improvisado de palhas de
coqueiro com uma gambiarra, dois tocadores, sendo um de pandeiro e outro de cavaquinho,
sem aparelho de som, véspera do Dia de Reis, dia em que geralmente fazem esta festa.
Dona Rita é quem sempre canta as jornadas na sua lapinha. Às vezes canta com a
Linda Mestra, principal pastorinha do cordão encarnado, ou com a Contramestra, principal
pastorinha do cordão azul.
Mesmo vindo da terra dos famosos pastoris ‘apimentados’, como o Pastoril do
Velho Faceta, Dona Rita conduz a sua lapinha para o lado mais religioso e mais familiar. Para
ela, pastoril é de ”puta”, pejorativamente falando. Lapinha é de crianças, meninas e moças.
Ela tem muito respeito por esta dança, por isso as meninas impulsivas não dançam, e como
ela diz: “Tem que procurar as menina’ com o candeeiro”. Pois a brincadeira é bastante séria:
louvar o Nascimento do Menino Deus, é de fundamental respeito entre aqueles que participam
da lapinha.
Estruturação do Espetáculo
As lapinhas de João Pessoa são compostas, normalmente, por dezoito pastoras
distribuídas em três fileiras. Nestas três filas as pastoras dividem-se em dois cordões:
Cordão encarnado: Lindo Anjo, Linda Mestra, Camponesa, Borboleta, Linda
Rosa, Diana e a Pastorinha.
Cordão azul: Lindo Guia, Contramestra, Libertina, Borboleta, Lindo Cravo,
Açucena e a Pastorinha.
A terceira fileira, que é mista, é composta por Linda Estrela, Linda Céia, Pastor e
Cigana, personagens que pertencem ora a um cordão, ora a outro, quando não representam à
fusão das duas cores. A Estrela tem traje na cor azul e pertence ao cordão de mesma cor. O
Pastor se veste com as duas cores, também pertence ao azul. A Linda Céia se veste de
encarnado, logo pertence ao cordão encarnado. A Cigana carrega as duas cores e faz parte do
cordão encarnado. Assim, são sete pastorinhas em cada lado, mais quatro entre o azul e o
encarnado que pertencem a cada um deles, contendo no final nove pastoras em cada um dos
cordões. O momento em que pudemos comprovar essa divisão do cordão central foi quando
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as pastorinhas entraram no local de apresentação dançando uma marcha, música apenas
orquestrada, divididas em apenas dois cordões.
É composta por crianças e mocinhas de idade entre cinco e dezesseis anos. Cada
uma delas desempenha um papel diferente dentro da lapinha. São pastorinhas que têm seus
versos cantados e recitados, muitas vezes têm suas cenas específicas, quando não fazem parte
apenas da encenação principal do espetáculo, que é a cena da morte e ressurreição da
Contramestra. Além dessa cena maior da apresentação há também outras, como a cena das
Borboletas; as da Cigana: parte da esmola e da leitura das mãos de cada pastorinha que é
cantada e recitada; a do Pastor, entre outros entrechos dramáticos que passam pela oferta de
cravos perfumados e ramalhetes de flores oferecidos aos partidários de cada cordão.
A Voz Poética de Dona Rita: uma Performance do Popular
No que diz respeito às transcrições, tentamos reproduzir, por meio da escrita, da
forma mais fiel possível, tudo o que estava contido no registro feito em fita cassete e,
principalmente, os comentários do que foi visto durante o registro oral, por exemplo: (“...o
povo fica tudo assim...” - [Faz uma expressão de espanto] - Fala de Dona Rita em uma das
entrevistas sobre a beleza da montagem da sua lapinha. Em seguida, colocou-se
uma
convenção para indicar os gestos expressivos enfatizando o momento da fala, respeitando toda
performance daqueles que fazem a brincadeira.
É oportuno dizer, no entanto, que a análise deste material é apenas uma amostra
que fizemos, relacionadas ao texto escrito, inédito que exige bastante atenção. Logo, trata-se
de uma transcrição de um depoimento de uma participante da lapinha Sagrado Coração de
Jesus que fazem da cultura popular um labirinto poético cheio de encanto, cânticos e
sabedoria, possibilitando-nos vários caminhos a percorrer.
Nas experiências que vivenciamos com Dona Rita, sentimos que seria
fundamental sermos fiéis ao máximo possível dentro das entrelinhas dessa transcrição
procurando respeitar o jeito da fala do outro e tentar entender a duração de emoção na pausa,
como fluxo da memória no momento da mesma, para não interrompê-la.
É cômodo para nós, ouvirmos Dona Rita, por exemplo, falar. Mas, é uma tarefa
meio árdua somar ao seu jeito expressivo e exagerado, comum entre tantos que ‘sabem’ fazer
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uma brincadeira e carregam na alma o dom de se mostrar, de pura soberba, muitas vezes
excluída por um outro ‘saber’, com a sua fala ornada de trejeitos: “Nói’, vói’, Viemo’, depoi’
Trei’Rei’, véia’, foo’emmm, quarennnta, ói’, mair’, ar’ menina’” (essa substituição do “s” por
“r” nesses dois últimos exemplos é uma marca muito comum na fala de Dona Rita ao longo
do texto, por isso, optamos por deixá-la.), entre tantos outros que iremos nos deparar ao longo
dessas falas e de outras, resultando nas transcrições em textos.
Vale salientar que para marcar o abrandamento, queda de alguma letra e
substituição de uma letra por outra, principalmente o ‘s’ para grafar o plural em todo o
período, fizemos uso de um apóstrofo, forma que encontramos para chamar a atenção nessas
passagens. Também achamos importante dobrar, triplicar ou repetir quantas vezes fossem
necessários, algumas vogais para dar vida ao texto, fazendo-o enfático e mais original em
meio à fala e cantos da colaboradora. Tentamos com isso, explorar as várias possibilidades da
língua para dizer e poder mostrar essas expressões, assim como foram trabalhadas as formas
de escrevê-las. Iremos perceber também que muitas vezes os colaboradores falam a mesma
palavra de formas diferentes, isto é muito freqüente no discurso de Dona Rita (Corremos
corremo’).
Outra coisa é a marca de reticência no final e no início das falas de Fátima (filha
dela), Dona Rita e a nossa, para indicar a fala simultânea de cada um no momento em que
pensam para dizer alguma coisa (no que podemos chamar de fluxo da memória).
O uso da vírgula ‘desnecessária’, foi ‘proposital’ para marcar o jeito de falar dos
colaboradores. Sei que há possibilidade até de se perder, perturbar-se frente à complexidade
de um texto transcrito, mas podemos dizer que sairemos ganhando se seguirmos à frente.
Segundo Paul Thompson, quando se refere ao pesquisador à coleta de dados na
pesquisa de campo, diz que:
Uma entrevista não é um diálogo, ou uma conversa. Tudo o que interessa é
fazer o informante falar. Você deve manter-se o mais possível em segundo
plano, apenas fazendo algum gesto de apoio, mas não introduzindo seus
próprios comentários ou histórias. Essa não é ocasião para você mostrar seus
conhecimentos ou seu charme. E não se deixe perturbar com as pausas. Ficar
em silêncio pode ser um modo precioso de permitir que um informante
pense um pouco mais e de obter um comentário adicional. (THOMPSON,
1992: 271).
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A entrevista com Dona Rita, a responsável pela organização da Lapinha Sagrado
Coração de Jesus, do bairro de Mandacaru, em João Pessoa, foi realizada dia 22 de outubro de
1998.
Neste texto é preciso pensar na palavra oral enquanto dimensão da prática poética
que determina o plano físico, psíquico e sociocultural, pois são pela voz que se articulam as
palavras. Vejamos:
Dona Rita: (...) Eu peguei a dançar lapinha eu tava com cinco anos de idade.
Daaancei, na rua de doutor São João, aaali onde ficava a matança velha.
Sabe onde fica? Ali detrai’ aquela rua do cemitero’, lááá... que hoje é tudo
mato. Agora que tão botando o asfalto nas casa’. Depoi’, minha mãe vei’ me
buscar ... aaa minha prima vei’ me buscar de novo, eu vim ser Cigana, eeeu
ganhava munto’ dinheiro! Meus cabelo’ era pela cintura menino! A
subranceia’, que agora caiu-se, pelô’! A subranceia’ era beeem graaande, a
boca cheia de dente, meus olho’ era grande, diminuiu! Adepoi’ de véia’
fiqueiii... porque quando a gente fica véia, fica tudooo, muda logo! Aííí
ficou. Depoi’, nói’ viemo’ morar em Zé de Barro, aí a finada Massulina
inventou uma lapinha mai’ a fia’ dela, e Rita vai ser a Mestra; lááá fumo’.
No outo’ ano, qu’eu num sei da data do ano mai’, no outo’ ano, aí Dona
Regina botou outa’, vamo’ ser Mestra, Dulce botou no outo’ ano, vamo’ ser
Mestra, depois Maria de Baxim’ botou outa’ no Roger, vamo’ ser Mestra. E
e tudo eu dancei por Mestra. Eee a lapinha de Dona Julha’ Preta em
Mandacaru eu dancei doze ano’ por Mestra ... nunca perdi, ... nuuunca perdi,
só saia ganhando. Então, e lá vai, depoi’ eu disse: Agora eu vou botar pra
mim mermo’ em casa ... aí fiquei ... botei em quaren’não! Botei emmm...
quarenta e n’quarenta e nove, quarenta e nove, não! Peraí’, foo’emmm...
parece em trinta e oito, foi em trinta e oito. Quarennnta...
Fátima:...Quarenta e oito!
Dona Rita: Êh?! Ói’...
Fátima: ...Quarenta e oito.
Dona Rita: Quarenta e oito. Quarenta e sete. Tudo eu botava lapinha. Pa’
findar da conversa, eu terminei em cinqüenta, queimei a lapinha num
sábado, e casei no outo’. Aí depooi’ passei de maior, fui ficando véia, fui
tendo fie’, fui tendo aperreio, foi tudo assim. Fui pro Recife. Quaaando eu
cheguei lááá, o povo: Vamo’ botar’ lapinha? Eu digo: Não. A lapinha daqui
é muito diferente. – Não, mai’ a senhora vai meno’ ajudar, num sei o quê!
Eu digo: Vou não. E depoi’ qu’eu n’t [Estala a língua], eu não! Aaaíí, ajudei
duar’ lapinha’ no Recife. Depoi’, aquela menininha minha aí [Aponta para a
fotografia na parede] que morreu, inventou uma lapinha ali ói’! [Sinaliza
para a frente da casa] No terreiro de casa, de criança; quememo’! Depoi’, eu
me abusei! Eu digo: Eu quero mair’ lapinha não, ih! Quero mair’ não! Aí
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quand’eu cheguei aqui, aí tinha uma lapinha ali, a mulé’ saiu da lapinha, aí
minha nora disse: Nildo, ali tem uma mulé’, a minha sogra, chegou do
Recife, ela dançou muita lapinha, se tu quiser qu’ela vá ensinar ar’ menina’,
ela vem. Aí Nil disse: Eu queero! Aí mandou me chamar. Eu fui lááá; aaíí, tá
certo! Aí pronto. Fo’em oitenta ... e sete! Oitenta e sete, oitenta e oito...
Dona Rita: Maaas naquele teeempo, as coisa era muito boa, eu aprendi muita
coisa, depoi’ fui aprendendo, foi depoi’ foi aprendendo e hoje eu tô véia’ eee
só sei dessa besteira mermo’ ... Agoraaa...
Podemos dizer que a Lapinha é uma forma de homenagear o nascimento do
Menino Deus, com dança, canto em jornadas, gestos e performance numa perspectiva
artística, brincante e religiosa que dependerá da criação de quem a organiza.
Como feito da memória do fazer, do montar, do criar as diversas situações
culturais vinculados à tradição-experiência em meio à memória, permanência da lembrança e
do saber, pois Ecléa Bosi diz que:
suas memórias contadas oralmente foram transcritas tal como colhidas no
fluxo de sua voz. E eles encontraram também os limites de seu coro,
instrumento de comunicação às vezes deficitário. Quando a memória
amadurece e se extravasa lúcida, é através de um corpo alquebrado: dedos
trêmulos, espinha torta, coração acelerado, dentes falhos, urina solta, a
cegueira, a ânsia, a surdez, as cicatrizes, a íris apagada, as lágrimas
incerciveis.
Se as lembranças afloram ou emergem quase sempre são uma tarefa, uma
paciente reconstituição. Há no sujeito plena consciência de que está
realizando uma tarefa. (BOSI, 1987).
Ao expor um contexto transcrito, tentando reproduzir, pela escrita, a voz de uma
mulher, em plena atividade, como uma polifonia da Lapinha Sagrado Coração de Jesus,
seguindo-se a fala popular de uma organizadora da brincadeira. Com isto, poderemos
compartilhar sua experiência, contrapondo com as palavras de Ecléa Bosi, transitando na
memória a experiência da voz.
Assim, buscamos evidenciar a Lapinha Sagrado Coração de Jesus e a sua
responsável em um estudo de caso por meio da voz, a partir do qual se pode entender parte da
história da lapinha em João Pessoa por meio da oralidade. Enquanto dança dramática, isto é,
espetáculo de teatro popular que envolve diferentes personagens, versos cantados, textos
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declamados, tem-se uma das maneiras de existência da literatura popular. Esta se constrói na
fusão de poesia, textos narrativos declamados, cantos, tendo a memória cultural alicerçada na
experiência de pessoas que carregam em si sua história.
Nas Encruzilhadas das Vozes Poéticas, a Performance de Dona Rita na Lapinha
Sagrado Coração de Jesus, Ecoa na Cultura popular
“... assim como me ensinaro’, a minha prima que já morreu fa’i muitos ano’,
Dona Maria, de finado Augusto, também já morreu fei’ muitos ano’, Maria
do fumero, tudo isso que me ensinava, que elas já dançaro’ e já era povo vei’
que já tinha dançado quando acho quando o mundo começou, éé era!”
(Dona Rita)
JORNADA
Entre as pastoras entrai
Venham ao presépio adorar
Adorar um Deus menino
Que nasceu pra nos salvar
Enquanto o menino dorme
Ressona entre as palhinhas
Vamos à margem do rio
Lavar suas camisinhas
Lavandeira quer lavar
Roupa de Nosso Senhor
Lavar em rios corrente
Para em campos de flôr
A camisa do menino
Não se lava com sabão
Lava com água-de-cheiro
Dentro do meu coração
(Lapinha Coração de Jesus – Dona Rita – Mandacaru – João Pessoa/PB,
recolhida em 22/10/98).
Assim, Dona Rita expõe parte de sua história de brincante sob a luz da voz, de
maneira singular, feliz, sorridente, cheia de vida e saberes poéticos, na fala e na jornada. Ver
anexos.
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XIDIEH, Oswaldo Elias. Cultura Popular, Feira Nacional da Cultura Popular, São Paulo,
SESC, 1976.
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andando pelo mundo. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1993.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral / Tradução de Jeruz\a Pires, Maria Lúcia Diniz
Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: HUCITEC, 1997.
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AGAMBEN E A TUCANDEIRA: O CONTEMPORÂNEO EM UM CANTO
ARCAICO DOS ÍNDIOS SATERÉ-MAWÉ
Mário Geraldo da Fonseca48 (PG-UFMG)
Introdução
O trabalho propõe a leitura de um canto arcaico do grupo indígena Sateré-Mawé
(Amazonas-Pará) a partir das teorias do contemporâneo, do filósofo italiano Giorgio
Agamben. Assim, as noções desenvolvidos no ensaio “O que é o contemporâneo?” ( 2009)
servem de ferramentas para analisar o canto “A Origem da Tucandeira”, colhido pelo
antropólogo Nunes Pereira (2003), quando este fez o seu trabalho de campo, na década de 40,
em várias tribos amazônicas. O canto é executado durante o Ritual da Tucandeira, necessário
para que seja feita a “passagem” para a idade adulta. Para tanto, o menino-índio passa pela
prova, que exige colocar a mão em uma luva recheada de tucandeiras, formigas conhecidas
pelo seu tamanha avantajado e, sobretudo, pelo efeito muito doloroso do seu ferrão afiado. Na
tradição sateré-mawé, “colocar a mão na tucandeira”, como os índios chamam o gesto
principal do ritual, é condição para que o jovem se torne “esperto”. O texto analisa
exatamente esta noção de “esperto” dentro da tradição que origina o canto, procurando
defender equivalências com o conceito de contemporâneo de Agamben.
O com-tempo-raneo
Para responder à pergunta-chave do ensaio “O que é o Contemporâneo?”, Giorgio
Agamben (2009) escolheu o poema O Século, do russo Osip Mandel’stam. A partir desta
obra, prepara o terreno para apresentar o que considero o ponto mais alto da sua teoria sobre o
contemporâneo. Este situa-se no sexto ponto do ensaio, no qual vai tirar a conseqüência de
maior alcance a respeito do que definiu como “contemporaneidade”, no primeiro ponto, a
saber: “A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o tempo, que adere a este
e, ao mesmo tempo, dele toma distância” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Extraio, da definição
48
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entre aspas, a expressão “ao mesmo tempo”. Ou seja, o contemporâneo, como o próprio nome
sugere, é contemporâneo do seu tempo, mas, “ao mesmo tempo”, deve distanciar-se deste
tempo. Para afirmar este “ao mesmo tempo”, Agamben, no sexto ponto do seu ensaio,
autoriza a formulação de uma dedução, que irei formular assim: o contemporâneo vive um
presente-arcaico.
Na explicação do que seria este “presente-arcaico” é o segundo termo (arcaico)
que lança o foco sobre o primeiro (presente). Como o filósofo faz questão de precisar, arcaico
vem de arké, isto é, origem, da etimologia grega (Ibid., p.69). E logo em seguida faz questão
de precisar outro aspecto da noção de arké:
A origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é
contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o
embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida
psíquica do adulto. A distância – e, ao mesmo tempo, a proximidade – que
define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a
origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente
(Ibid., loc. cit.).
Note que, mais uma vez, aparece a expressão “ao mesmo tempo”. Por isso, acho
que a expressão não é tão somente um recurso retórico, mas uma expressão fundamental para
definir o método para abordar o tema central no ensaio em questão. Isso leva,
inevitavelmente, a perguntar como tal método procede para apresentar uma visão do tempo
em que o presente é contemporâneo da origem. Para tanto, Agamben aplica o “ao mesmo
tempo” ao vivido. Sem ter medo da tautologia, repito ter entendido de Agamben que o
contemporâneo é o que vive o vivido no presente e vive, ao mesmo tempo, o que nele não
pode ser vivido. Vive, portanto, o vivido e o não-vivido (ao mesmo tempo). Nas palavras do
filósofo: “O presente não é outra coisa se não a parte de não-vivido em todo vivido” (Ibid., p.
70).
Neste caso, o presente faz uma dobra sobre si mesmo, através da qual o próprio
presente retorna a um outro presente, que é, sim, vivido, mas que nunca, na verdade, foi
presente. Este vivido no presente que não é presente, Agamben aproxima-o da origem.
Origem, portanto, não seria propriamente um presente, entendido como um tempo preciso no
qual, depois de a ele se ter retornado, poder-se-ia nele ficar instalado. A origem, na
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interpretação que faço dos termos propostos pelo filósofo italiano, é o próprio gesto de
retornar, uma vez que se está retornando “a um presente em que jamais estivemos” (Ibid., loc.
cit.).
Retornar a um presente jamais estado é, para Agamben (2009, p. 71), o “ponto de
quebra” do próprio presente. O contemporâneo, para ele, faz desta quebra “o lugar de um
compromisso e de um encontro entre os tempos e gerações (Ibid., loc. cit.). A quebra (prefiro
chamar, com Deleuze, de dobra), portanto, é o ponto de encontro entre os presentes: o
presente que é ele mesmo, aquele que recebe o facho de luz proporcionado pelo que é vivido;
o presente que é a algo que nele é vivido mas não é presente, ao qual o facho de luz só chega
para que a própria escuridão deste presente possa estar devidamente focada; e o presente que é
apenas “dobra”, ou seja, retorno a si mesmo como a possibilidade de viver algo na sua própria
impossibilidade de não-vivido.
A este terceiro presente, que assinala a existência de algo não-vivido, Agamben
considera como a luz que emana do escuro e, como tal, não é propriamente uma luz, mas tão
somente uma procura (ou um retorno, termo que usei anteriormente). Esta luz, para o filósofo,
só “procura nos alcançar e não pode fazê-lo” (p. 65). Sendo assim, é uma luz, como aquela
que emana das galáxias e dos corpos luminosos no firmamento, que, ao se lançar na procura
por uma visibilidade, apenas se distancia do objeto procurado. Este é o paradoxo que
Agamben toma da Física contemporânea, que trabalha com a hipótese do universo em
constante expansão. O que este universo se dá como visível é exatamente o escuro que dele
emana, uma vez que a luz que emite viaja de uma maneira incrivelmente veloz que não pode
nos alcançar (Ibid., loc. cit.). Portanto, para o filósofo, ser contemporâneo é “ser capaz não
apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma
luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós” (Ibid., loc. cit.).
Qual é, portanto, o compromisso que, na visão de Agamben, a contemporaneidade
assinala? Pelo que foi dito anteriormente, tal compromisso não tem lugar simplesmente no
tempo cronológico. “É, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma”
(Ibid., loc. cit.). É algo que está no “no” (uma outra forma de dizer no “ao mesmo tempo”); no
que urge dentro do tempo presente. No “muito cedo” e no “muito tarde” (Ibid., loc. cit.). Ou,
para usar as belas palavras do autor, no “de um ‘já’ que é, também, um ‘ainda não’” (Ibid.,
loc. cit.).
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O lugar do contemporâneo, por isso, não é propriamente um lugar, mas uma
posição assumida diante do tempo presente. Esta posição é aquela do “ao mesmo tempo”, ou
seja, de quem está de olho no cá e no lá e que, portanto, não está aqui nem lá, mas no que
promove o trânsito entre o aqui e o lá. Um presente que é, “trânsito”: passado e futuro, origem
que só pode ser vivida como destino, destino que só pode ser vivido como presente; presente
que é origem. Presente-arcaico.
O esperto
É neste presente-arcaico que gostaria de situar a letra do canto A Origem da
Tucandeira, dos índios sateré-mawé. Como acenei anteriormente, ao fazer o trabalho de
campo em localidades que ficam na região média do Rio Amazonas, precisamente daquela do
estado do Amazonas que se aproximava do Pará, em direção a Belém, o antropólogo Nunes
Pereira viveu, por algum tempo, na área Sateré-Mawé, tribo de origem tupi, entre as mais
conhecidas da Amazônia. A fama se deve ao fato de grupo se situar entre os primeiros a terem
sido contactados (acredita-se que isso tenha ocorrido há cerca de 400 anos) e pelo fato de
possuir uma tradição que deixou marcas indeléveis na cultura da região. Uma destas marcas
se deve exatamente à maneira como esta tribo sistematizou, em mitos e rituais, alguns dos
personagens que iriam se tornar os mais conhecidas da Amazônia. Na lista das famosas
figuras que povoam o imaginário da região, está a tucandeira (Paraponera clavata sp),
formiga de porte avantajado, temida pelo seu ferrão de consequência profundamente dolorosa
(chega até provocar desmaios, febre e vômitos), mas que, “ao mesmo tempo”, é
profundamente desejada pelo que produz de efeito no corpo (e na imaginação) de quem se
deixa ferrar por ela dentro do ritual que leva o seu nome.
Para deixar mais claro o que foi dito anteriormente, é necessário apresentar o
canto e fornecer algumas pistas para entender as suas condições primeiras de produção e
recepção. Vamos ao canto A Origem da Tucandeira, assim como foi apresentado, por Nunes
Pereira (2003), em língua nativa (a tradução, também do mesmo autor, virá logo em seguida):
Mê pémun te andem sari
Me pémun cori te andem
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Mecoó arroó-ui
Aitó unambi optiá capé
Aiuépit mambac ramoap
Oipó-eté, sari quién
En qué-epó été-té én
Oito qué uatzi été
Eçó rememgué rupi-i
Icacho urre sari
Ipain apossaou rocát
Mangou aporrin ipai
Camaró tan êpêetat
Queossou queôssou, êpêpateat
Uenô pê tritan êpeateât
Meuétan an oito
Uatócóssab acoitó
*
1 Tatu Grande fez sair Tucandeira
2 Tatu Pequeno fez sair Tucandeira viva
3 Para cá para os moços se ferrarem
4 Para ficarem espertos
5 Em minha mão Tucandeira ronca
6 Tatu Grande: você se ferra só na mão?
7 E eu, que é em toda parte?
8 Assim fala o Tatuzinho:
9 É bonito o lugar da minha Tucandeira
10 Enfeitado de vermelho
11 E de pena de gavião real
12 E do toco do cumaru
13 E do toco do ingazeiro
14 E do toco do cipó-chato
15 Assim eu era antes
16 Mas nós havemos de passar...
*
Para o visitante bem informado sobre o Ritual da Tucandeira (os índios o chamam
de Waymat) que chega na área dos Sateré-Mawé, e tem a oportunidade de presenciar o evento,
acaba por se decepcionar se, para ele, não dirigir um olhar contemporâneo, ou seja, de alguém
que está vendo e participando de alguma coisa que só pode ser vista e participada dentro de
um “ao mesmo tempo”, ou seja, estando no presente e tendo em vista um passado remoto e
até mesmo um passado que nunca foi vivido.
De fato, na última vez que estive entre os saterés, em janeiro de 2010, pude ver
alguns jovens no momento em que, eles mesmos, organizavam e para eles próprios
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participarem do Ritual da Tucandeira. “Que pobreza!”, exclamei em um primeiro momento
diante da disparidade de força entre o que havia lido sobre os parentes antigos dos meninos e
a situação na qual me encontrava. O evento fora organizado às pressas e os iniciantes foram
colhidos como se cata pessoas para fazer papéis de coadjuvantes de um filme de terceira
categoria. Diante de tamanha penúria, ocorreu-me de pensar no texto de Agamben. Assim,
aquilo que já começava a me entediar recebeu uma espécie de “aura” que o colocou como na
condição de ruína de um edifício que, embora não existisse mais, mantinha, dentro do solo em
que antes fora uma imponente construção, os alicerces que, por muitos anos, lhe suportaram.
Desta forma, a pisada que se ouvia da cadência apressada dos jovens, soou-me como dadas
sobre tais alicerces. Assim, pude ficar em paz para pensar nos restos de um importante ritual,
indispensável para entender a vida atual e a história antiga dos Satére-Mawé, sem exigir tanto
do presente. Ou melhor, perceber o presente como “passagem”.
Este termo – “passagem” – assume, no ritual, uma conotação muito variada e
rica. Em linhas gerais, se pode dizer que é passagem sobretudo de um estado dormente para
um estado desperto. No canto que escolhi para analisar, fica clara a finalidade do ritual no
versos 3 e 4, ao afirmar o fato de a Tucandeira ter sido entregue “para os moços se ferrarem e
ficarem espertos”. Na tradição dos sateré-mawé, “ficar esperto” é, sobretudo, desenvolver a
virtude da coragem. Por isso, o ritual consiste em provar a resistência à dor, uma vez que
prescreve que o índio sateré deve se deixar ferrar pelo menos 20 vezes na vida. Se ele não
fizer isso, a Tucandeira o chama para junto de si, isto é, para o fundo da terra, onde habita.
Deste tronco principal, o “ficar esperto” se desdobra em vários outras
ramificações. Na direção da saúde, por exemplo. Assim, ficar esperto para evitar doenças,
uma vez que, como diz o mito de origem da Tucandeira, o Tatu Grande (Mypynukuri)
entregou a formiga para os índios vencerem a febre, a malária, o reumatismo etc. Ficar
esperto para vencer a guerra, entendida como a capacidade de caçar, de pescar e de ter sorte
no trabalho e na vida de modo geral. E, de modo particular, ficar esperto no amor.
Este último tipo de “ficar esperto” merece um comentário mais prolongado, pois
possibilita explicar, um pouco melhor, a expressão “efetivação de afinidade” empregada por
Gabriel Alvarez (2009), antropólogo que se dedicou a estudar a cultura dos índios SateréMawé. Para colocar o problema no âmbito antropológico mais geral, o pesquisador chama
atenção para as principais características das relações de parentesco na Amazônia. Considera,
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por meio de uma teoria clássica do parentesco, que este é construído em três tipos de
categorias: consangüíneos, afins e inimigos (ALVAREZ, 2009, p.92). Para ele, o papel
simbólico do Waymat atua nas três direções, aproximando aqueles que, se não passassem pelo
ritual, continuariam distantes e estrangeiros. Como acontece, por exemplo, na construção das
possibilidades para que ocorra o casamento entre índios-índios e entre índios-não-índios. Na
maneira mais tradicional, o Waymat sempre foi encarado como uma ocasião em que o jovem
sateré apresenta publicamente a sua coragem e, por isso, é observado pelas moças que estão
na idade de se casar. Em certos casos, algumas delas se compadeciam do sofrimento do
iniciante e, ali mesmo no momento da realização do evento, formulava o convite para o
casamento. Em outros casos, quando alguém não pertencente ao grupo nativo se interessava
por uma moça sateré, para pretendê-la, deveria, no mínimo, passar pelas dores do Ritual da
Tucandeira. Ou quando, já estando vivendo com uma mulher nativa, o cônjuge de fora do
grupo, para legitimar a sua união diante da comunidade, deveria meter a mão na Tucandeira.
O ponto mais importante a que Alvarez chama atenção, porém, não diz respeito
propriamente ao casamento em si, mas ao que considera a “casabilidade” (p. 72). ou seja, a
força que o ritual tem de transformar os jovens afins potenciais em cônjuges potenciais para
as mulheres (Ibid., loc. cit.). Note-se a ênfase no termo “potenciais”. Parafraseando o
antropólogo, posso dizer, então, que o Waymat é a “efetivação de potencias”, que movimenta
as forças necessárias para que a relação possa acontecer. É, em outras palavras, o lugar da
transformação necessário para que ocorra a passagem de um estado para outro, de uma
situação para outra ou de uma ação para outra.
*
Tive a possibilidade de observar o evento no seu sentido mais tradicional, ou seja,
como ritual de passagem para idade adulta. Vendo como o menino-sateré é colocado no
centro da atividade que culmina com a imersão das mãos na luva, é possível ser induzido a
acreditar que a figura do jovem é realmente o centro do ritual. Claro que ele, ao explicitar o
desejo de fazer a “passagem”, dá o ponto de partida para que tudo aconteça. Mas o seu
comunicado deve passar por várias instâncias, de modo particular pelas autoridades da sua
vida particular e coletiva, a começar pelos pais, indo para o tuxaua e tendo o pajé ou xamã
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como aquele que fornece a avaliação final. É o xamã que tem um poder determinante na
realização ou não da vontade expressada pelo jovem. Isso porque é ele que, quase sempre, vai
ocupar o lugar de condutor do ritual. Sim, porque só ele vai estar credenciado para realizar a
primeira e fundamental parte do ritual que acontece no momento em que é preciso pedir
autorização da própria Tucandeira para que o fato aconteça. Para isso, ele deve saber falar a
língua dela para entender o canto que será ditado para constar no momento mais importante
do ritual. É por isso que o entendimento do cantor não se resume simplesmente na sua
capacidade de cantar, mas, sobretudo, de saber ouvir. O xamã, portanto, se coloca como
mediador entre a Tucandeira e o menino que expressou o desejo de servir a ela.
Assim, tudo poderia ser inútil, mesmo diante do desejo expresso do menino-índio,
se a própria Tucandeira não desejasse que ele fizesse parte da relação com ela. Isso fica claro
pelas possibilidades que o xamã coloca para guiar o evento. Ele sabe que, se as formigas não
quisessem, elas se esconderiam e, assim, sem elas, não haveria dança. Por isso, o primeiro
canto é para elas, no momento em que se deixam encontrar no toco apodrecido de alguma
árvore. O segundo canto é oferecido à luva na qual elas serão colocadas, o que demonstra a
importância do artefato na realização do evento. Por isso cada detalhe da luva tem uma
explicação (quanto a isso, mais adiante, irei tratar com mais detalhe). O que precisa ser dito
aqui é que a luva é primorosamente trabalhada, a base de fibras de vegetais (warumá), e, antes
de nela serem colocadas as formigas, repousa em um lugar privilegiado da casa do
responsável por guiar o ritual. O seu molde remete ao desenho de algum animal, podendo
assumir a forma de um pássaro, um peixe e até mesmo o da própria formiga. São pintadas
com tinta extraído do urucu e do jenipapo, de modo que são tratados como se fosse o próprio
corpo da Tucandeira.
Só depois de ter preparado o canto para a Tucandeira e também haver cantado
para a luva é que o cantor poderá se dirigir ao menino cujo desejo motivou toda a ação. Isso
quer dizer que, segundo a tradição sateré-mawé, é a própria formiga, afinal de contas, o
agente principal do desejo que foi expressado. É ela que vai se entregar ao menino como
condição para que o desejo dele seja realizado. Sem esta entrega não haveria realização e, sem
realização, não haveria desejo. Mas o que este desejo, enquanto desejo, realmente realiza?
Para tentar responder a esta pergunta vou entrar na parte principal deste artigo.
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A passagem
No ensaio de Agamben, o contemporâneo também recebe o nome de presente.
Mas, como vimos, um presente o qual contém vários presentes. Estes estão sustentados no
presente-presente por uma quebra ou dobra. Retomar isso me ajuda a formular a hipótese que
irei sustentar: de que a dobra, no Canto da Tucandeira, é a própria Tucandeira. O principal
motivo já expus na parte anterior, ao defender que a figura da formiga ocupa, não diria o
centro (para evitar a capciosidade desta palavra carregada de uma conotação que remete ao
sentido de “essência”), mas o meio. Meio no sentido de Guimarães Rosa: lugar da travessia.
Ora, para falar do estado meio, a própria disposição dos versos do canto A Origem
da Tucandeira fornece o indicativo mais convicente. Se formularmos a questão “qual é o
lugar da Tucandeira?” e formos procurá-lo no canto, ali, no nono dos dezesseis versos, está
exatamente este: “é bonito lugar da minha Tucandeira”. Este verso é como o ponto de onde se
pode observar as duas metades que vêm expressadas no canto. Não seria correto dizer, porém,
que o nono verso divide o canto em dois. O mais certo é dizer que o nono é o verso-limite,
aquele a partir do qual é possível observar o momento em que a dobra acontece.
Para mostrar o que seria esta dobra, irei, primeiramente, assinalar o que chamei,
não tão corretamente assim, de duas metades. Para tanto, é necessário se ater aos personagens
que aparecem no texto. A figura do Tatu (seja o grande ou o pequeno) domina a primeira
parte do canto. A segunda parte, depois do nono verso, pertence ao domínio das aves. O
primeiro verso deixa claro onde o Tatu entrou, ou melhor, isto é, do fundo da terra. Do fundo:
é este o lugar da primeira parte, de onde a Tucandeira sai através da ação da Tatu-Grande. Já a
segunda é, diria, para onde ela almeja ir: para o alto, onde estão a arara e o gavião real, por
isso o lugar dela está “enfeitado de vermelho” (v. 9) e da “pena do gavião real” (v. 10).
No entanto, no momento em que o canto é executado, a Tucandeira encontra-se
em “um já que é um ainda não”, para usar os termos de Agamben. Nem já no fundo e ainda
não no ar. Nem ao Tatu nem às aves. O lugar da Tucandeira, para usar uma palavra do canto,
é no “toco”. É enquanto “toco”, ou seja, o resto apodrecido do que um dia fora um tronco de
uma árvore, a parte que assinalava o fim da região em que se encontravam as raízes (o fundo)
e o início da parte em que os galhos (o ar) começam a brotar. O “toco”, aquilo que restou do
tronco, é, portanto, uma outra maneira de dizer meio, nem no baixo nem no alto. Por isso, a
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imagem do “toco” tem uma importância capital no canto, sendo usada em três versos. Os que
fazem referência aos tocos do cumaru (v. 12), do ingazeiro (v.13) e do cipó-chato (v.14). Por
quê? A resposta se deve procurar no meio, no o que acontece entre o toco e a luva.
Para explicar melhor, convém começar pela luva. A parte da luva onde as
formigas são colocadas de modo que possam estar preparadas para depositar o seu ferrão nas
mãos do iniciante é chamada de saia ou, na língua indígena, saari. Ora, fica claro que a parte
principal da luva está sendo designada com um adereço feminino. Nada disso é fortuito,
como se acenou anteriormente, pois para cada detalhe da luva existe uma explicação e, no
centro (ou no meio) desta explicação está a figura da mulher. Por isso que o canto faz
referência ao cumaru, ao ingazeiro e ao cipó-chato, pois, segundo o mito que explica o Ritual
da Tucandeira, foi do toco destas árvores que Mypynukuri retirou as três mulheres que deram
origem ao canto (daí o nome Origem da Tucandeira), a saber, Unia Wassatea Mambiera,
Moiria Nhãngo Sacuri e Sari Aimberiau.
Fica, portanto, autorizada a se interpretar a relação, já salientada anteriormente,
Tucandeira/Mulher. Esta última, como se disse, é apresentada como operadora da aliança
entre grupos que, se não fosse pelo casamento entre um homem de um determinado lugar e a
mulher, de um outro, estariam condenados a não conversarem. Mas é preciso estar atento para
uma implicação importante da aproximação entre a mulher/tucandeira: como se sabe muito
bem, o casamento é mantido por uma relação sujeita a muitas turbulências; logo, a aliança que
a mulher opera é instável. Assim, a instabilidade da mulher significa travessia: meio.
Isso ajuda a explicar porque, além de serem mulheres, as três figuras que a letra
do canto remete, são irmãs. Elas, portanto, estão ligadas por um parentesco mais profundo, o
que ajuda a entender porque estão associadas à figura da cobra. O nome que este animal
recebe em língua sateré é, por isso, bastante eloqüente: moi. Como se observa, no nome de
uma delas – Moria Nhángo Sacui – o termo vem claramente explícito.
Mas é também este mesmo termo – moi – que os saterés usam quando querem
formular uma frase na qual contenha o equivalente ao verbo “transformar”em português.
Assim, se me fosse pedido a tradução o termo moi, a melhor solução, talvez, recaísse na
palavra “transformação”. E como a imagem da cobra, animal que muda de pele, que transita
com desenvoltura tanto pela terra quanto pela água, serve de suporte para significar uma
aliança dinâmica. Sim, porque a própria natureza da aliança, por mais duradora que pareça,
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está sujeita a se desfazer, ainda mais quando se trata da relação entre humanos. É uma outra
maneira de dizer que a aliança que o termo moi sugere está mais próximo do que se entende
por “força” do que por “união”, como salienta Alvarez.
A Tucandeira: o desejo
O menino-sateré, quando sente estar capacitado a passar pela prova, exatamente
porque nele se manifesta o desejo de mudança, sabe que isso representa um salto no escuro.
Não sabe o que lhe pode acontecer, se será capaz de agüentar ou não a dor desta mudança,
mas sabe, no entanto, que dela não pode fugir. Neste caso, ele está sendo contemporâneo do
seu próprio desejo ao reconhecer que, nele, habita algo que ele próprio não sabe reconhecer
mas que é impoderável. Assim, topa ir para enfiar a mão na luva recheada de tucandeiras,
como se assumisse o papel do Tatu que se mete no fundo do buraco para ir buscar algo que
deve, porém, ser entregue a outro. O algo que ele vai buscar, à medida que deve ser entregue a
outro, é como aquela luz que o contemporâneo de Agamben procura e que não pode alcançar.
Até que entende que tal luz ilumina exatamente só a procura pelo escuro que ela própria
proporciona.
Este é o mesmo dilema que o Tatu vive no canto A Origem da Tucandeira. Ele vai
buscar a Tucandeira, mas ela não pode ser alcançada. Ou melhor, ela só é alcançável quando o
gesto de alcançá-la reconhece que ele próprio deve passar o objeto do seu alcance a um outro.
Não, por acaso, a palavra final do canto se resume no seguinte verso: “Mas nós havemos de
passar...” (v. 16). Quanto de sugestão não está embutida naquelas reticências no final!
É, de fato, como uma reticência a imagem que o canto nos sugere para o seu
andamento. À medida que o evento caminha para o seu final, os passos fortemente
cadenciados no solo, como se quisessem despertar as outras tucandeiras que continuaram no
fundo da terra, ficam cada vez mais fortes. Na verdade, as pisadas agudas do menino-sateré se
voltam para ele mesmo, como que dizendo, “agora você realmente deve despertar”. Ora (não
custa perguntar de novo) não foi para isso que o Tatu entregou a Tucandeira “para cá para os
moços se ferrarem/ para ficarem espertos”?
Com isso, posso dizer que o adjetivo “esperto” assume no canto o sentido que, no
ensaio de Agamben, é associado ao contemporâneo. Cabe, portanto, reconhecer como, no
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canto em questão, estão dadas as orientações para que o menino “fique esperto”, ou seja, para
que ele seja contemporâneo do seu tempo. Ele, o menino, vai enfiar a mão no mais fundo do
que se pode simbolizar como “passagem” na tradição Sateré-Mawé. Por ser assim, tem um
alto preço, que pode ser objetivado na terrível dor pela qual vai passar. Exatamente isso: ser
“esperto” é reconhecer que, por mais terrível que seja, a dor passa. Isso, porém, não elimina o
que a dor tem de dor. Por isso, por mais que o menino até seja capaz de reconhecer que,
metendo a mão na luva, vai sentir uma terrível dor que no entanto vai passar, ele, “ao mesmo
tempo”, sente medo. De quê? Sabe que, ao meter e ao tirar, é ele próprio que está, na verdade,
passando. O medo é, portanto, desta “passagem”, que atesta que ele está entrando em um
mundo que vai lhe exigir ser “esperto”, na guerra e no amor. Treme porque está diante de um
compromisso ético diante de si e diante da comunidade.
Disse que ser “esperto” na guerra e no amor tem um outro nome: coragem. No
caso da guerra, está claramente exposta na relação que a letra produz com o mito do gavião
real. Por isso, o menino pode mirar a própria luva da qual será tirado o efeito da terrível dor
que irá sentir, e ver que, na ponta da luva, existem as penas do referido animal, que ele
aprendeu a admirar pela sua coragem, assim como ela é contada nos mitos. Neste momento,
lembra que ser “esperto” é pronunciar bem o que está dito no verso central do canto: “como é
belo o lugar da minha Tucandeira” (v. 9). É belo porque tal lugar está “efeitado de vermelho e
de pena de gavião real”. A arara e o gavião, que fornecem as penas não só para a luva da
Tucandeira mas também para as flechas que irão combater o inimigo, são viçosas e coloridas.
Portanto, a indicação que o canto dá para que o menino fique “esperto” diante do momento
em que ele poderá sentir maior medo, é que veja este momento como “belo”, ou seja,
absolutamente necessário para que ele possua a coragem, a maior (portanto, a mais bela) das
virtudes nas tradições de origem tupi, que tem na guerra (real ou imaginária) um elemento que
estrutura a vida do grupo.
Pois, afinal, é esta mesma virtude que lhe será exigida no amor. O canto A
Origem da Tucandeira também fala disso. “Na minha mão a Tucandeira ronca”, diz o verso 5.
Isso quer dizer que a introdução da mão na luva significa que o menino deve penetrar o mais
profundo da entranha da Tucandeira. Meter, neste caso, deve ser com determinação. Mas,
quanto mais determinação ele meter a mão, mais tem possibilidade de receber o efeito dos
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ferrões. Mais dor, portanto, vai sentir. No entanto, quanto mais dor for capaz de sentir, mais
pode penetrar profundamente. Esta virilidade é a parte que mais a Tucandeira exige.
Seja esperto!
Agamben, no final do seu ensaio, diz que só quem consegue perceber no mais
contemporâneo os índices do arcaico é que realmente consegue dele ser contemporâneo. Mas,
o que, afinal, o canto que analisei nos disse do que é ser contemporâneo? Que aprendamos
com os Sateré-Mawé a ouvir a Tucandeira, que nos repete: “seja esperto, seja esperto!”.
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução Vinícius
Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
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PEREIRA, Nunes. Os Índios Maués. Manaus: Valer /Governo do Amazonas, 2003.
UGÉ, Henrique. As Bonitas Histórias Sateré-Mawé. S.1, p/d.
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EXPLORANDO A CONTAÇÃO DE MITOS, CAUSOS E HISTÓRIAS
TRADICIONAIS DO NORTE DO PARANÁ NO ENSINO DE HISTÓRIA: O
RECURSO À ORALIDADE COMO ELEMENTO DE ANÁLISE
Mario Junior Alves Polo49 (UEL)
Introdução
Tem-se proposto, para o Ensino de História, a análise e interpretação das fontes
em sala de aula como parte do processo de ensino-aprendizagem. Confrontar diferentes
documentos prepararia o aluno para lidar com os vários discursos que o atingem. Neste
intento uma grande variedade de fontes pode ser explorada na produção do saber histórico
escolar.
É nesse sentido que propomos o trabalho com narrativas orais, aliado às
discussões sobre memória, identidade e patrimônio imaterial. Especificamente, tratamos aqui
da experiência com a oficina de contação de histórias, realizada junto a turmas do ensino
fundamental e médio de escolas públicas da região norte do Paraná.
A idéia é que alunos e professores encarem as narrativas orais como documentos,
explorando o seu potencial independentemente do suporte pelo qual lhes chegam (o qual deve
ser levado em conta: uma gravação, uma transcrição, uma narrativa ouvida diretamente, etc.,
pressupõem dados que compõem o documento). A oficina também prevê estimular, entre os
alunos, a valorização da oralidade. E fazer com que reconheçam a riqueza e as especificidades
da História transmitida pela oralidade ou da História não-escrita.
Ao saber que esta forma de transmissão de conhecimentos é tão valiosa quanto
aquela escrita, poderão se interessar em registrar ou recontar as histórias que ouvem de
narradores talvez até bem próximos de seu cotidiano. Assim, o estudo dessas fontes pode
contribuir para o reavivamento de experiências e memórias, para o sentimento de pertença a
grupos e comunidades, para “dar voz” a setores da sociedade não lembrados em fontes
tradicionais.
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Ao longo do texto pretendemos explorar os conceitos que nos guiaram na
montagem da oficina de contação de histórias e no trato com as narrativas, inserir esta
atividade no contexto do Projeto Contação de Histórias do Norte do Paraná, indicar o
conteúdo trabalhado e apresentar resultados obtidos com as experiências já realizadas.
A oficina de contação de histórias é apenas parte de um trabalho bastante amplo
que articula professores, alunos, comunidade, Museu, graduandos e pesquisadores de Ensino
de História, que é o Projeto Contação de Histórias do Norte do Paraná – fomentado pela SETI
(Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior) através do Programa
Universidade Sem Fronteiras, em parceria com o Núcleo Regional de Educação de LondrinaPR e com a UEL, por meio do departamento de História e Museu Histórico de Londrina.
O Projeto dá apoio, em escolas da rede estadual, ao desenvolvimento de um plano
de atuação realizado por alunos e professores em vista da formação de um registro da
memória local. Esta integração se constrói na coleta de fragmentos de memória e fontes de
diversos tipos, priorizando-se a lembrança de trabalhadores das comunidades e envolvidas. O
Projeto oferece aos professores um curso e oficinas de extensão nos quais recebem
orientações para elaborar o plano de trabalho da escola e desenvolver o tema escolhido.
Com as primeiras reuniões os professores puderam pensar o recorte temático e
temporal para seus projetos pessoais, nos quais os alunos atuariam, sendo que o tamanho do
grupo envolvido ficava a seu critério. Entre os temas propostos este ano estão: A história dos
índios Kaingang nas suas expressões culturais; A toponímia do Parque Ouro Verde em
Londrina – nomes africanos; Memórias do bairro de San Rafael, em Ibiporã; As práticas
relacionadas às religiões de matriz africana em Florestópolis nas décadas de 70 e 80; e Clube
da Fotografia: O cotidiano e as representações socioculturais a partir das fotografias dos
álbuns de famílias de moradores da Região Norte de Londrina, entre outros.
Já a atuação dos estagiários tem por base a experiência que adquirem no Museu,
participando de atividades que envolvem os setores técnicos, mas também o setor de Ação
Educativa, indo desde a manutenção do acervo, como a higienização de fotografias e
catalogação, até a oferta de mini-cursos. E a diversidade da atuação no Museu é intencional:
este serve como um laboratório, para que os estagiários sejam mediadores privilegiados entre
os professores e o Museu, e para que essa mediação inclua a troca de saberes, de materiais...
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Para apoiar professores e envolver os alunos, são realizadas as oficinas nas escolas
nas quais se prioriza o trabalho com fontes diversas (levantamento, tratamento e exploração
em sala de aula), todas realizadas por estagiários que integram o projeto, graduandos da UEL,
dos cursos de História e Comunicação Social. Com as oficinas pretende-se sensibilizar os
alunos para o trabalho com essas fontes para a produção do saber histórico escolar. A idéia é
sensibilizá-los para a coleta de depoimentos orais, a interpretação de textos visuais, mas
também o registro fotográfico, para a produção de mapas e a montagem de um blog no qual a
escola divulgará seu trabalho.
A contribuição das narrativas orais
O trabalho com a oralidade merece atenção especial no Projeto Contação não só
porque caminha junto às oficinas de entrevista e fotografia, mas porque as narrativas orais,
possuem um conteúdo que lhes é muito próprio e podem dar contribuições que outras fontes
tradicionais ignoram, seja quanto ao conteúdo ou à forma. Resta-nos saber, assim, de que se
trata esta especificidade, que contribuições são estas, e como aproveitá-las.
A oralidade, como a encaramos, refere-se à transmissão oral dos conhecimentos
que pertencem à memória. Os provérbios, as preces, as receitas, tudo é passado e repassado
através do tempo, pela oralidade. Em muitas culturas e comunidades, a identidade do grupo,
ou mesmo sua História, está sob guarda de contadores de histórias, cantores e outros tipos de
arautos, que na prática eram autenticamente os portadores da memória da comunidade. Este é
o caso, por exemplo, do papel desempenhado na África Ocidental pelos griot, reproduzido
ainda hoje em comunidades negras no Brasil.
Na tradição oral, a narrativa inclui o narrador e a audiência. Nesta relação, as
mensagens são divulgadas por aqueles que detêm os fatos na memória e os propagavam
recorrendo à voz e ao corpo, numa performance que exige do público leitor da cena uma
atenta audição e visão. A mensagem é apreendida e gera novos saberes. É dessa forma que a
narração transforma a memória em experiência. Este processo tem se perdido nos dias de hoje
em que somos invadidos por inúmeras memórias que, entretanto, não fazem sentido:
Vivemos seduzidos pela memória do passado e em um mercado de passados.
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Desde as lembranças adquiridas em uma viagem, os cartões de museus, até
as produções cinematográficas e as novelas “de época”, fazem-nos
consumidores de passados. Consumismo gerador de um “culto à memória”
que se torna mais espetáculo e entretenimento do que processo de formação
histórica capaz de restabelecer elos entre passado e presente e compromissos
sociais.50
O narrador cria a experiência enquanto a audiência depreende a mensagem e cria
imagens mentais e pessoais. Nesta experiência, a audiência se torna “co-criadora”. E é por
isso que narradores muitas vezes dialogam com a audiência, ajustando suas palavras em
resposta aos ouvintes e ao momento.
A narração oral sobre o passado faz parte de um contexto maior, que é a
representação coletiva da memória. Pois, para fazer parte da tradição oral é preciso antes fazer
parte das memórias, das lembranças. E a memória de um grupo, a memória coletiva, é
fundamental para compor a identidade e a historicidade de alguém. Falamos, assim, das
narrativas envolvidas por sentimentos de angústia, medo, nostalgia e esperança que conferem
sentido às experiências vividas e por meio dos quais as pessoas elaboram significados sobre
si51.
Outra característica da tradição oral é que um narrador não memoriza um conjunto
de textos, mas aprende uma seqüência de incidentes que formam uma trama, com um início,
meio e fim distintos. O narrador visualiza os personagens e cenários e então improvisa o
fraseado. Por conseguinte, nunca duas narrativas de uma mesma história oral serão
exatamente iguais. É nesse sentido também que Darnton afirma que “[...] na narrativa
tradicional de histórias, as continuidades de forma e de estilo tem mais peso que as variações
de detalhes, seja entre os índios norte-americanos ou entre camponeses iugoslavos” 52.
As narrativas orais, enquanto fontes, ultrapassam seu conteúdo falado ou
posteriormente transcrito, pois compreendem toda uma performance que deve ser levada em
conta, se possível, durante sua análise. Afinal, estas narrativas são contadas combinando-se
50
FRANCO, Aléxia P.; VENERA, Raquel A. Sena. “A memória e o ensino de História hoje: um
desafio nos deslizamentos de sentidos”. In: ZAMBONI, Ernesta (org.). Digressões sobre o Ensino de
História: Memória, História Oral e Razão Histórica. Itajaí: Maria do Cais, 2007. p. 79.
51
Cf. ZUMTHOR, Paul. Tradição e Esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1988.
52
DARNTON, Robert. “Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso”. In:
________. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p.35.
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gestos, expressões, repetições, rimas, entonação, olhares, musicalidade e outros dispositivos
mnemônicos.
Além disso, alguns conteúdos não encontrados em documentos tradicionais e
oficiais são facilmente identificáveis entre a tradição oral, como, por exemplo, temas que
constituam um tabu e memórias de grupos marginalizados. Os discursos orais são capazes de
revelar as imagens hegemônicas e as contradições sociais, as práticas do poder local, os
mecanismos de valorização e esquecimento.
Tomazi cita Benatti para se referir a como é mais interessante o recurso a fontes
não-convencionais quando se trata de estudar certos grupos:
Um dos encantos (e dificuldades) de uma história dos marginais é o seu
caráter mesmo de “anti-história”, a possibilidade que ela oferece de uma
navegação outra nos conteúdos da história, no sentido contrário à tradição
imposta pela memória hegemônica. Mas uma questão imediatamente se
coloca: como escrever uma história dos marginais quando sabemos que são
abundantes os registros indiretos, partidos do “centro”, mas faltam registros
diretos, partidos deles mesmos, sobre sua experiência vivida? Sem dúvida, a
falta de fontes ou a forma como foram registradas já é um indicativo da
problemática vivida por estes personagens. Isso exige uma leitura nas
entrelinhas que ultrapassa a intencionalidade do imediato registro. [...] A
história dos marginais é necessariamente uma história fragmentada. Ela fazse pelos indícios que foram deixados principalmente pelos que detinham o
monopólio dos discursos, pelo que falavam sobre os marginais, mas não os
deixavam falar. Por isso a necessidade de recorrer aos mais variados tipos de
fonte (ou mesmo construí-las, quando isso é possível) para, através da
multiplicação dos pontos de observação e do confronto de diferentes tipos de
testemunho, escrever uma “outra história” ou dar à história do centro uma
nova perspectiva53.
E são muitas as populações entre as quais a tradição oral forneceria elementos
muito mais ricos do que a documentação escrita e mais típica. No caso do Brasil isso abrange,
por exemplo, indígenas, remanescentes de quilombos, caboclos, caipiras, sertanejos,
faxinalenses, pantaneiros, jangadeiros, pescadores artesanais, açorianos e muitos outros.
53
BENATTI, 1996, apud TOMAZI, Nelson D. Norte do Paraná: histórias e fantasmagorias. Curitiba:
Aos Quatro Ventos, 2000. pp. 2-3.
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Definindo algumas direções e limites
Para a montagem da oficina foi preciso explorar a noção de oralidade e
estabelecer, logo de início, que não seriam todos os tipos de narrativas orais que utilizaríamos.
A idéia era trabalhar principalmente com os causos, mas também incluir outros tipos de
narrativas que dissessem respeito à tradição oral das populações do norte do Paraná, ou que se
comunicassem com estas através de algum elemento de permanência, por exemplo. Assim, a
oficina partiu de diferentes histórias, contos populares, causos, mitos, literatura oral e do
folclore, na tentativa de que diversas vozes e diversos personagens da região fossem
representados. Entretanto, para que possamos prosseguir é necessário tomar o cuidado de
fazer as devidas classificações.
O causo, do qual falamos até agora, não é uma simples lenda. Ele é, antes, uma
narrativa oral curta, muito próxima do conto, podendo ser definido como conto realista. Os
causos são “[...] repletos de coincidências, disfarces, golpes teatrais, desfechos improváveis”
54
. E devem ter suas origens plantadas em experiências e crenças ancestrais. Porém, não se
apresentam como uma descrição do cotidiano vivido, não distinguem o sentido literal do
metafórico, mas, geralmente, combinam elementos do concreto para projetar o imaginário. O
causo deve estar conectado à realidade para que tenha efeito sobre a audiência, pois é a
possibilidade de sua concretude que o torna interessante. Ao contrário das lendas, com uma
narrativa mais fixa, o causo é, essencialmente, a atualização da experiência humana no tempo
e no espaço.
Muito distante dos causos e das lendas está o mito. Em uma apresentação na UEL,
o professor Kaingang, Luiz Yagjo Gino, foi indagado sobre a diferença entre mito e lenda.
Para ele a lenda seria uma história corriqueira, provavelmente inventada e com uma boa carga
de humor, e cuja narração geralmente começa com o termo “Diz que...”. Já o mito seria
verdade, uma história séria, que conta o começo do mundo, uma das bases da cultura
Kaingang.
Com a distinção feita por Gino, temos a clara noção de que o mito está calcado no
sagrado, na ancestralidade e na identidade de uma população. O mito é uma verdade
54
SIMONSEN, Michele. O Conto Popular. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p.7.
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metafórica, é o que foi mesmo, e está ligado a grandes eventos. E para alguns grupos o mito é
sua própria História, ou pelo menos parte dela, sem a distinção entre mito e história).
Estas características precisam ser levadas em conta na contação de histórias.
Tomamos todo o cuidado para que as diferenças ficassem claras, lembrando que o mito deve
ser pensado dentro de uma mitologia, num contexto simbólico no qual, e somente então,
poderá fazer sentido e ter eficácia. Além disso, tomamos o cuidado para que nem o mito, os
causos ou as lendas fossem compreendidos como simples histórias ficcionais, o que
invalidaria o trabalho.
A oficina não agrega histórias como os contos de fada, histórias fantásticas e
outras histórias que se pretendem distantes e desconectadas da realidade, histórias que
intencionalmente operam a fuga do mundo. Este tipo de história tem enorme valor, e podem
ser tão bem aproveitadas como as narrativas orais que estamos explorando, porém não fazem
parte do objetivo da oficina de levantar diferentes vozes e componentes sobre a formação e
caracterização do norte do Paraná.
Não pretendemos nos aprofundar aqui nas proposições de análise dessas fontes
orais. Isso demandaria um espaço maior. São muitas as abordagens possíveis e muita
informação pode ser encontrada em um mito, por exemplo. Mas para que pudéssemos analisar
e esmiuçar as histórias com que trabalhamos, algumas direções gerais foram tomadas, bem
como alguns cuidados metodológicos. Robert Darnton, em “O grande massacre de gatos”,
fornece bons caminhos nesse sentido:
[...] parece desaconselhável elaborar uma interpretação com base numa única
versão de um único conto, e mais arriscado ainda basear análises em detalhes
[...]. É possível estudá-lo [o conto] ao nível da estrutura, observando a
maneira como a narrativa é organizada e como os temas se combinam, em
vez de nos concentrarmos em pequenos detalhes. Assim é possível comparar
o conto com outras histórias. E, finalmente, trabalhando com todo o conjunto
dos contos populares [...], poderemos distinguir características gerais, temas
centrais e elementos difusos de estilo e tom. 55
Relacionando este esforço de interpretação ao ofício do antropólogo, Darnton
ainda infere:
55
DARNTON, Robert. Op. Cit. p.33.
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[...] quando saem em campo [os antropólogos], usam, para a compreensão
das tradições orais, técnicas que podem, com discernimento, ser aplicadas ao
folclore ocidental. Com exceção de alguns estruturalistas, eles relacionam os
contos com a arte de narrar histórias e com o contexto no qual isso ocorre.
Examinam a maneira como o narrador adapta o tema herdado a sua
audiência, de modo que a especificidade do tempo e do lugar apareça,
através da universalidade do motivo. Não esperam encontrar comentários
sociais diretos, ou alegorias metafísicas, porém mais um tom de discurso –
ou um estilo cultural – capaz de comunicar um ethos e uma visão de mundo
particulares.56
Talvez a maior contribuição destas fontes transcenda os elementos do conteúdo da
narrativa, e se encontre, pelo contrário, na forma e no contexto. Reforçamos o olhar, assim,
sobre a sua enunciação, a sua existência dentro de uma cultura ou de uma mitologia e os
elementos que a tornariam fundamentalmente humana.
Darnton também enfatiza a rigorosa documentação que deve ser feita, o que
significa levar em conta, entre outras coisas, a ocasião em que foi feita a narrativa, os
antecedentes do narrador e o grau de contaminação pelas fontes escritas. E a oficina propõe
que os alunos façam este tipo de registro, o que é bastante viável e profícuo. E que eles levem
estas possibilidades para o momento de coleta e produção de fontes orais, como na hora de
entrevistar algum personagem da cidade que interesse ao projeto da escola.
Plantando e colhendo histórias
As narrativas utilizadas contam diferentes versões da história da região norte do
Paraná, e incluem os mais diversos personagens. E também a forma de se contar estas
histórias é bem diversa, indo desde a animação de objetos, até o causo tradicional e a
musicalidade, para que se atente à variedade de práticas de contação.
Entre os recursos que ajudam a compor a atividade estão instrumentos musicais
(sino, berimbau, xequerê, violão, chocalho, e outros improvisados), tecidos e pequenos
objetos a serem animados, chapéu, baralho, duas fotografias em porta-retratos e reproduções
de cartazes da Companhia de Terras Norte do Paraná.
Quanto à seleção das narrativas que compuseram a oficina, algumas foram
ouvidas em experiências familiares próprias, outras foram coletadas a partir de experiências
56
Idem. p.28.
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anteriores do próprio Projeto Contação, outras surgiram de conversas com algumas pessoas
em especial e outras ainda puderam ser encontradas através das leituras realizadas.
A oficina começa com algumas indagações que podem ser feitas aos alunos: se
eles ouvem muitas histórias, se seus avós contam causos, se eles dão atenção a essas
narrações, enfim, qual sua relação com as histórias que emergem cotidianamente, qual sua
relação com narradores típicos e com a tradição oral como um todo.
Outra provocação que pode ser feita neste primeiro momento seria perguntar o
que é mais importante: aquilo que é escrito ou aquilo que é falado. Nesse ponto
argumentamos sobre a importância da memória não-escrita, da memória ritualizada, e
apresentamos informações sobre sociedades e grupos cuja História é construída na oralidade.
Também se pergunta sobre que mitos eles conhecem.
As primeiras histórias contadas se referem a mitos da cosmogonia Kaingang. A
idéia é partir dos primeiros ocupantes da região, e entre Guaranis, Kaingangs e Xetás, os
Kaingang tem predominância quanto ao norte do estado. Além disso, tivemos a oportunidade
de conhecer alguns Kaingang e ouvir pessoalmente algumas histórias. Conta o mito de criação
da vida, para alguns aldeamentos, que isto se deu através dos irmãos Kamé e Kainru, que
dividem as coisas que povoam o mundo.
Como esses dois irmãos com a sua gente foram os criadores das plantas e
dos animais, e povoaram a Terra com seus descendentes, tudo neste mundo
pertence ou à metade Kanyerú ou à metade Kamé, conhecendo-se a sua
descendência já pelos traços físicos, já pelo temperamento, já pela pintura:
tudo o que pertence a Kanyerú é manchado, o que pertence a Kamé é
riscado. Essas pinturas, o índio vê tanto na pele dos animais como nas
cascas, nas folhas ou nas flores das plantas, e para objetivos mágicos e
religiosos cada metade emprega material tirado de preferência de animais e
vegetais da mesma pintura.57
Também neste momento se faz referência às guerras Kaingang, ou seja, às
batalhas constantes entre esta etnia e militares, capangas da Companhia de Terras e de
fazendeiros, guardas, policiais e representantes da sociedade civil com os quais travaram
conflito direto desde o início da “(re)ocupação” da região, termo defendido por Tomazi58.
57
58
NIMUENDAJU, 1986 Apud TOMAZI, Nelson D. Op. Cit. p. 85.
TOMAZI. Idem. p. 8.
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Aí também citamos os termos Wãnxy e Ury, utilizados pelos Kaingang para
definir, respectivamente, o tempo de fartura, em que o trabalho trazia a alimentação e a saúde,
e o tempo atual, de luta e resistência, bem como de incerteza. A partir destes elementos,
pensamos a recorrência desta imagem em outras populações, como muitos nordestinos, que se
referem a passado como um tempo de gratificação, e ao tempo atual como um tempo de luta
incessante. Ou também podemos identificar esta imagem na fala de membros mais velhos a da
comunidade, que tendem a romantizar o passado e a estigmatizar o presente.
Desta referência Kaingang passamos a este elemento muito comum às narrativas
orais, que é a comparação entre o tempo presente e o tempo que já se foi, uma comparação
valorativa, e na qual são evidentes os processos de cristalização de memórias, os
esquecimentos, e a seleção romantizada de lembranças específicas.
Um segundo conjunto de histórias envolve a figura do posseiro. Aqui
apresentamos este personagem, que foi intencionalmente eliminado da história oficial do
Paraná. O posseiro é aquele que habita e utiliza um trecho de terra, sem ter a posse, o
documento que o habilite para tal. Isso faz com que, entre os posseiros, haja desde exescravos vindos de Curitiba ou do interior do atual estado de São Paulo, morando em ranchos
de palmito, até fazendeiros que estendem suas terras para além de suas posses.
Tentamos tornar possível ao aluno imaginar as condições de vida do posseiro.
Alguns, chamados de safristas, criavam varas de porcos soltos no mato e alimentados pelo
milho que era plantado em clareiras, os quais depois eram transportados para o abate assim
como os rebanhos bovinos, atravessando riachos, sendo guiados pelos criadores em seus
cavalos.
Depois de tornar mais familiar a figura do posseiro, contamos causos que fazem
parte da tradição oral sertaneja, especialmente alguns contados por pessoas que tiveram pelo
menos a infância em zona rural, assim como grande parte dos pais dos alunos, e até um bom
número deles próprios. São causos que compõem a literatura oral de muitos dos norteparanaenses, e que podem ser facilmente relacionados ao posseiro e ao habitante independente
desta região, aos pioneiros ligados às atividades rurais e aos tropeiros e caboclos.
Contamos especialmente o causo dos galopes ouvidos e sentidos sem que se veja
nenhum cavalo ou peão por perto, lembrando histórias de mortes violentas. E também o causo
da estrada em que, em certa altura, os cavalos empinam e não passam, e onde os cachorros
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latem sem parar ao se aproximarem, o que seria devido a um homem enforcado em uma
árvore daquele lugar ou a um morto enterrado “de travessado” na estrada, fato que os animais
sentiriam.
Estes dois causos parecem ser bem difundidos, e a idéia, depois de contá-los uma
primeira vez, é explorar suas variantes, e ouvir dos alunos a versão que foi contada para eles.
Em uma turma de Miraselva, dois alunos apontaram exatamente em qual estrada e em qual
altura estaria a alma deste morto, pois o pai deles teria passado por lá.
Um terceiro momento da oficina envolve a referência direta à presença negra na
região, relacionando-a inclusive à presença nordestina, especialmente em Londrina e em
cidades como Florestópolis. Esta referência é feita através de um causo muito comum, e que
ganha contornos especiais no Paraná, aquele que conta a história da Mãe do Ouro, ou Mãe
d’Ouro (ou ainda Mãe d’Água e Mãe do Fogo, dependendo da variante).
Diferente das versões mais presentes ao norte e mesmo no nordeste do país, onde
a figura predominante é a Iara, ou Mãe d’água, (que é uma mistura de elementos mitológicos
europeus e indígenas, principalmente, e que, como acreditamos, também africanos), aqui na
região em questão esta personagem se apresentaria como uma bola de fogo ou uma bola de
luz, que indicaria onde existe ouro, seja em um rio ou em terra mesmo. Não há referências
constantes à intenção de atrair os homens para a morte, como no caso da Iara e da sereia de
água doce. Neste caso as pessoas são atraídas pelo brilho, pelo ouro, e não pela beleza
feminina.
Enfim, a partir da análise deste causo, conduzida junto com a turma, propomos,
como uma interpretação possível, que a forte referência ao ouro seja uma imagem facilmente
elaborada nesta região do país que já foi chamada de Eldorado, em referência à facilidade de
se enriquecer por aqui. Em uma região marcada pelo espírito desbravador, pioneiro,
ambicioso, e pela gana de se enriquecer rapidamente, a presença do ouro neste causo seria
mais facilmente explicada.
Ainda, para se aprofundar nas possibilidades que este causo oferece, passamos a
explorar melhor esta figura feminina, ligada à água doce e ao ouro. Apresentamos, neste
momento, um mito (um Itan) de Oxum, divindade originária da atual Nigéria, e que hoje
compõe o panteão do Candomblé e da Umbanda. O mito é contado com o uso de objetos, na
intenção, como já foi dito, de contarmos histórias partindo de diferentes estímulos. Neste
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mito, Oxum é responsável por convencer Olorun (ou Olodumare, Deus superior para os
Yorubás) a devolver a água doce ao Aiyê (à Terra), salvando a existência humana e se
tornando a mãe das águas doces. Assim, Oxum, que é a Orixá da sensualidade, da beleza e do
ouro, se liga também à fertilidade, pois sem água doce não existe vida.
Propomos, desse modo, um caminho possível ao aluno, para que ele se aprofunde
e tente saber mais sobre as histórias que ouve, por mais que seja um causo curto. E muitas
vezes é por desconhecer algumas referências que eram comuns a certos grupos ou por
contemplar superficialmente um causo, por exemplo, que acabamos não compreendendo o seu
humor ou sua tensão.
Quando não conseguimos entender um provérbio, uma piada, um ritual ou
um poema, temos a certeza de que encontramos algo. Analisando o
documento onde ele é mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de
significados estranho. O fio pode até conduzir a uma pitoresca e maravilhosa
visão de mundo.59
Na seqüência, falando sobre a (re)ocupação do norte do Paraná e seus diferentes
personagens, lembramos daqueles que vieram para trabalhar na agricultura, em função da
terra roxa, que tanta lama formava. Produzindo-se a imagem de um paulistano chegando a
Londrina pela estação de trem, é cantada a música “Cochilou o cachimbo cai”, de Tião
Carreiro e Pardinho, que alude ao esforço pessoal e ao “trabalho pesado”.
Ainda sobre o tema das plantações e dos lotes rurais vendidos pela Companhia de
Terras, conta-se um causo que muitos conhecem, ligado aos cafezais em época de florada. É o
causo da “luzinha na plantação”, uma pequena luz clara que ronda a plantação de café, a qual
seria, em algumas versões, uma noiva que se suicidou no dia do casamento, e em outras
versões uma virgem violentada e morta na plantação. Essa imagem da jovem e sua ligação
com a virgindade e o noivado se firma no fato de que o cafezal fica coberto pela cor branca
quando os pés de café estão em flor, e o véu da noiva, branco – símbolo da pureza e
virgindade –, cobriria o cafezal nesta época. As regiões e plantações onde a luz já foi vista
variam de contador para contador. Os alunos são indagados se já ouviram esta história ou
alguma parecida, e se saberiam qual plantação é esta.
59
DARNTON, Robert. Op. Cit. p. XV.
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ISBN: 978-85-7846-101-0
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A atividade é encerrada pedindo-se que contem mais causos, ocupando o lugar do
contador e reforçando a idéia de que crianças também podem contar histórias. E o tom de
oficina é conseqüência do efeito prático que esta atividade toma no contexto do projeto. Ela é
pensada como um meio de instrumentalizar os alunos para o trato com a oralidade. E essa
instrumentalização começa na conversa e parte da resposta que recebemos deles.
Assim, ao longo da oficina, realizamos exercícios de interpretação de narrativas
orais para que os alunos possam verificar de que modo isso pode ser feito quanto ao tema
local, ou seja quanto às narrativas que irão recolher ou às quais já tem acesso, e que dizem
respeito ao tema do projeto de seu professor.
Não pretendemos, com a oficina, recolher narrativas orais ou produzir
conhecimentos a partir de algum tema que possa ser levantado pelo trabalho com estas fontes.
Pretendemos, antes, sensibilizar alunos e professores para que, eles sim, num esforço
conjunto, possam desenvolver estas atividades.
Ao realizarem este trabalho, os alunos não partem da pretensão de elaborar um
conhecimento final ou de nível acadêmico sobre certo tema, mas se aproximam e são
introduzidos ao saber científico e ao ofício do historiador. Os professores, esses sim, podem
desdobrar as atividades e desenvolver trabalhos densos a respeito. Buscamos, dessa maneira,
não apenas ampliar o conceito de fonte documental e estendê-lo às narrativas orais, como
desenvolvê-lo e explorá-lo em sala de aula, na aprendizagem em História.
E quanto ao trato destas fontes orais, o que fazemos é, ao invés de propor um
modelo de análise definitivo, adaptar propostas de análise para a sala de aula para que os
alunos possam explorar as fontes orais de maneira aprofundada – do mesmo modo como isto
vem sendo preconizado quanto à utilização de outras fontes 60, como a fotografia e os mapas.
A finalidade destas análises, por sua vez, é direcionada pelos professores, que podem utilizálas para verificar os conhecimentos e os saberes de seus alunos ou que podem mediar estas
práticas e aproveitá-las em sua produção sobre o tema tratado.
60
Sobre o tema, verificar CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. “As fontes históricas e
o ensino da História” In: ________. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004.
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Considerações finais
Esperava-se que, ao final da oficina, os alunos pudessem reconhecer o valor da
tradição oral, bem como a expressividade e riqueza da mitologia nacional. E assim sendo, que
isto os levasse a estimar a fala dos mais velhos e as referências à ancestralidade e à sua
descendência. Tentou-se, também, como um objetivo subseqüente, que pudessem identificar
as narrativas orais como fontes para a construção do conhecimento histórico, ou seja, como
documentos de análise tão ricos e interessantes quanto fotografias ou histórias em quadrinhos.
Acreditamos que a oficina, durante seu desenvolvimento com as turmas, tenha
permitido que os alunos constatassem as especificidades que envolvem a narrativa oral, a
multiplicidade de formas que a oralidade assume, e os diferentes modos de se enunciar uma
história, em diferentes situações.
Por conhecer os alunos e saber do tema escolhido pelo professor para ser
trabalhado dentro do Projeto Contação, podemos direcionar o conteúdo da oficina para a área
de maior interesse e que mais fosse útil para a turma em suas futuras pesquisas, bem como na
coleta e produção de materiais. Assim, contribuímos naturalmente com a oficina de
entrevistas, sendo que estes alunos comumente abrem mão de muitas noções debatidas em
nossa oficina na hora de realizarem a coleta de depoimentos orais.
A reação dos alunos a nossa atividade é, de início, um tanto apática. A idéia de
contação de histórias soa, principalmente às turmas mais velhas (da 6ª série adiante), como
uma atividade infantil demais, ou relacionada às histórias contadas por seus pais, avós e
outros contadores ocasionais, o que consideram enfadonho e sem importância. E, pelo
contrário, quando se demonstram empolgados quanto à oficina, é porque a imaginam como
um espetáculo ou alguma apresentação teatralizada, uma atividade de entretenimento
alternativa às aulas regulares.
Sendo assim, a oficina não parece nunca corresponder às expectativas dos alunos
e mesmo dos professores. Mas ao longo de sua realização, vai se clarificando quais as
intenções da atividade, e como isto pode ser fértil. E compreender melhor a oficina já
significa concretizar seu objetivo básico, que é justamente promover esse novo olhar sobre as
narrativas orais e sobre as possibilidades que elas oferecem.
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Bibliografia
CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Ensinar História. São Paulo: Scipione,
2004.
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
DARNTON, Robert. “Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso”.
In: ________. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
FERNANDES, Frederico Augusto Garcia (Org.). Oralidade e Literatura: manifestações e
abordagens no Brasil. Londrina: EDUEL, 2003.
FRANCO, Aléxia P.; VENERA, Raquel A. Sena. A memória e o Ensino de História hoje: um
desafio nos deslizamentos de sentidos. In: ZAMBONI, Ernesta (Org.). Digressões sobre o
Ensino de História: Memória, História Oral e Razão Histórica. Itajaí: Maria do Cais, 2007.
MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang
no Paraná (1769-1924). Maringá: EDUEM, 1994.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
_______. Os Príncipes do Destino: histórias da mitologia afro-brasileira. São Paulo: Cosac &
Naify, 2001.
PROPP, Vladimir. Raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SIMONSEN, Michele. O Conto Popular. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
TODOROV, Tzvetan. Os homens-narrativa. In: _______. As estruturas narrativas. São
Paulo: Perspectiva, 1969.
TOMAZI, Nelson D. Norte do Paraná: histórias e fantasmagorias. Curitiba: Aos Quatro
Ventos, 2000.
ZUMTHOR, Paul. Tradição e Esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1988.
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AS NARRATIVAS URBANAS E A INTERNET: POR UMA POÉTICA DA
ORALIDADE RELACIONADA ÀS NOVAS TECNOLOGIAS
Mauren Pavão Przybylski61 (PG-UFRGS)
“O memorável é o que se pode sonhar de um lugar”.
(Michel de Certeau)
I. Para começar...
Desde os primórdios, a ideia que se tem quando se pensa em transmissão cultural
de conhecimento, parte de uma escrita centrada na palavra, na fixidez de um discurso que só
vê validade naquilo que é publicado na academia. Mesmo os autores que defendem algum
tipo de valorização da voz o fazem, na grande maioria das vezes, de uma perspectiva que
parte da passagem do oral para o escrito.
Ao leitor desavisado, que tomar conhecimento desse texto, meu titulo pode
parecer deveras interdisciplinar. Se isso parecer, terei alcançado um de meus objetivos.
Acredito que a internet deva ser também um local de transmissão e fixação das narrativas
urbanas; narrativas essas que são, certamente, poéticas. Aliar as narrativas urbanas às novas
tecnologias é mais um modo de fazê-las presentes no cotidiano das pessoas, já que os meios
virtuais tornaram-se o maior centro de interesse numa velocidade inimaginável.
Portanto, quero aqui cotejar narrativas urbanas, virtuais e poéticas, entendendo o
que nelas é semelhante, além do que uma pode auxiliar na justificativa da outra, e no que elas
têm de diferentes. Para tanto, trarei aqui as ideias de Walter Ong, Henri Meschonnic, , entre
outros.
Quando falo narrativas urbanas penso que isso abre para diferentes histórias,
contadas por narradores impares. Todavia, é preciso marcar que as narrativas que compõem o
meu corpus fazem parte do projeto “A Vida Reinventada: pressupostos teóricos para análise
e criação de acervo de narrativas orais”, projeto este fomentado pelo CNpq e que tem como
um dos objetivos criar um acervo de narrativas orais que compõem-se por documentos em
61
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áudio, vídeo e ambiente virtual. O projeto, coordenado pela Profª Drª Ana Lucia Tettamanzy,
tem seu locus de pesquisa de campo na Restinga, maior bairro de periferia localizado a 30 km
do centro de Porto Alegre.
Da ligação das novas tecnologias com as narrativas urbanas surgem inquietações:
como transformar o oral em vídeo e transportar tudo isso ao ambiente virtual? Quais os
critérios dessa passagem? Existem perdas? Como são feitas as escolhas? Qual nosso papel? E
o papel do nosso narrador? Vamos às respostas... ou, pelo menos, às tentativas de...
II. Considerações “teóricas” iniciais: situando o campo
Começo esta reflexão a partir do pensamento de Michael Pollak vê a memoria não
só como seletiva, mas como um processo de negociação para conciliar memoria coletiva e
memorias individuais. Ele traz Halbwachs para justificar que “Para que nossa memoria se
beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também
que ela tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de
contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser
reconstruída sobre uma base comum”.(1989 p.3-4)
Cláudio Guilarducci (s/d) diz que:
Por cidade, entende-se o espaço geográfico construído por homens com
todas as suas concretudes e materialidades como a arquitetura e os traçados
de ruas e de praças, ou seja, é todo registro físico de uma determinada
localidade que tem uma determinada forma. Pode-se afirmar que a “cidade é
volume, espaço, superfície” (PESAVENTO, 2002, p24) materializada pela
ação do homem.
Justamente por ser uma construção humana deve-se também considerar as
imagens e os discursos que as pessoas elaboram do espaço em que ocupam, pois é lá que
acontecem os conflitos, o convívio social, as trocas de informações, as sensibilidades e as
práticas que conferem sentidos e significados. A cidade deve ser vista e analisada não
somente pelas suas construções arquiteturais e suas possíveis ocupações no espaço, mas antes
pela dimensão da existência, pois ela é construída por homens e suas relações.
Nesse sentido, Eckert e Rocha vão afirmar que
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Nas modernas metrópoles, a vida humana torna-se objeto principal de estudo
pelos “retalhos e pelos resíduos”, pelo “secundário ou excêntrico”, isto é, a
moda, o jogo, o colecionador, os dioramas, a prostituição, o flâneur, as
passagens, o interior, as ruas, a fotografia, o réclame”, tudo atribui sentido
de lugar, de pertença a uma história urbana que também se esvai no tempo.
Em nome da sua perspectiva materialisticamente teológica, Benjamin (1993) nos
ensina que, na cidade, o objeto da duração não é unicamente o presente-futuro, mas também o
passado. Para Benjamin, a narrativa urbana, para durar no tempo, não necessita recorrer a
recursos estilísticos “preciosos” para se configurar como memória e patrimônio.
Ao contrário, ela precisa aderir à fluidez do tempo e à efemeridade dos processos
de transformações dos sistemas de representações simbólicos (imagens e valores) que
caracterizam a vida na cidade.
Essa fluidez do tempo e efemeridade dos processos de sistemas de representações
simbólicos (imagens e valores) que caracterizam a vida na cidade e as quais as autoras
destacam são bastante presentes nas estórias contadas na Restinga e que registramos em
audiovisual e ambiente virtual. O sentido de lugar que cada morador tem é diverso, mas o
objetivo é o mesmo: a constituição de um acervo de memória do bairro.
É fato, a partir disso, que nem sempre o que buscamos no bairro é o que vamos
escutar. Existe uma negociação interna que perpassa não só aquilo que o narrador conta, mas
aquilo que ele pensa que queremos ouvir. Assim, ele seleciona fatos que julga serem
importantes e que, na maioria das vezes, não são os que queremos ouvir, mas o que ele tem
para contar. São seleções que partem do que ele deduz ter de melhor em sua invidualidade e
que pode servir para valorizar o coletivo. Entendo bastante esta afirmativa de Pollack no
contato com um narrador da Restinga62. José Carlos dos Santos, o Beleza, 63 aposentado, ex62
A Restinga, mais conhecida por seus moradores como “Tinga”, é o maior bairro de Porto Alegre,
localizado ao sul da cidade. Foi criado pela Lei 6571 de 8 de janeiro de 1990. No entanto, sua origem
remonta há algumas décadas antes e é marcada por uma série de remoções de moradores indesejados
das áreas centrais da cidade, que tinham que ser “higienizadas” para dar lugar a espaços planejados,
sinais do progresso urbano. A Lei de 30 de dezembro de 1965, que criou o Departamento Municipal
de Habitação (DEMHAB), transferiu tais habitantes para um local 22 km longe do centro de Porto
Alegre, a Restinga. E é nesse bairro, permeado por intensas dificuldades socioeconômicas, políticas e
culturais, que vivem Jandira, Maragato, Beleza, Alex e Ventura, nossos parceiros e narradores.
63
Nesta discussão tomaremos como sujeitos de pesquisa Marco Maragato e José Carlos dos Santos,
Beleza, por serem bastante significativos naquilo que queremos relatar.
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conselheiro tutelar, militante por uma Restinga com memória e valor reconhecido, nos afirma,
a cada história contada, uma reconstrução da lembrança sobre uma base comum. A base
comum, nesse caso, é a Restinga idealizada, uma Restinga que existe na memória de cada
morador. Ao trazer fatos que ele afirma reais, ele representa a realidade do bairro de forma a
misturar verdade e fantasia. No entanto, a fala de Beleza por vezes não tem valor nenhum
dentro de sua comunidade pela falta do que ele mesmo afirma : “os diproma” 64. Qual é, então,
o lugar da escrita e da oralidade na construção dessa narrativa?
III. O lugar da escrita e da oralidade na construção narrativa
Quando pensamos nos estudos que buscam investigar culturas orais e escritas
podemos destacar que estes emergiram, sistematicamente, no inicio dos anos 1960. Eric
Havelock (1995) vai fixar, entre 1962 e 1963, quatro publicações fundamentais que
contribuíram para a constituição desse novo campo de pesquisas. Esses trabalhos, enfatizando
em temas diferentes e originários de países diversos, tinham em comum o fato de darem
destque à oralidade. Em 1962, foram publicados The Gutenberg Galaxy 65, de McLuhan, no
Canadá, e La pensée sauvage66, de Lévi- Strauss, na França; em 1963, Jack Goody e Ian Watt
publicaram o artigo “The consequences of literacy” 67na Inglaterra, e Eric Havelock publicou
Preface to Plato 68nos Estados Unidos. As próprias transformações pelas quais passavam os
meios de comunicação contribuíram para que a oralidade e a escrita fossem reconsideradas
objeto de estudo de destaque, segundo Havelock (1995).
Na mesma direção, Ong (1998) situa nas décadas de 1960 e 1970 esse movimento
acadêmico de análise das relações entre culturas orais e escritas. Os trabalhos realizados nesse
período, em diversas áreas de conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia e a
Psicologia, enfatizaram o caráter oral da linguagem e as profundas implicações, em todos os
níveis, da introdução da escrita em culturas tradicionais. Muitas dessas pesquisas debruçaram64
Ele fala assim não porque essa seja sua linguagem, mas como uma critica social no sentido de que se
é da Restinga fala errado, é iletrado, etc.
65
A galáxia de Gutenberg (McLuhan, 1972).
66
O pensamento selvagem (Lévi-Strauss, 1983).
67
“As conseqüências do alfabetismo” (Goody, Watt, 1963, não traduzido para o português).
68
Prefácio a Platão (Havelock, 1997). Cadernos de Pesquisa, v. 36, n. 128, maio/ago. 2006
Oralidade e escrita...
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se, por meio de trabalhos de campo, sobre sociedades ainda orais, buscando vestígios daquilo
que se convencionou denominar oralidade primária: “melodias, cantos, epopéias, danças,
exibições e músicas, ainda preservados oralmente e transmitidos de geração a geração entre as
sociedades tribais...” (Havelock, 1995). De maneira semelhante, Cook-Gumperz e Gumperz
(1981) situam as origens das pesquisas sobre os efeitos culturais do letramento nos estudos de
folcloristas e pesquisadores da área de literatura que investigaram os processos pelos quais os
grandes épicos eram transmitidos nas sociedades não letradas, como é o caso dos trabalhos de
Lord (1960) e Havelock (1963).
Na avaliação de Ong (1998), pode-se considerar a emergência desses estudos com
preocupações semelhantes em um mesmo período histórico como um movimento de
redescoberta da oralidade, decorrente do estabelecimento, por Saussure, do primado oral da
linguagem. Do mesmo modo, trabalhos de antropólogos estruturalistas realizados
anteriormente haviam analisado a tradição oral em sociedades sem escrita. Para Ong (1998), a
“novidade” dos estudos mais recentes estava na preocupação dos pesquisadores em contrastar,
realizando oposições, a oralidade e a escrita, em diversos níveis. Nesse sentido, diversos
autores (por exemplo, Ong, 1998 e Havelock, 1995) citam o trabalho de Milmam Parry, na
área de estudos literários, ainda nos anos 1920 na Iugoslávia, como um dos marcos iniciais
desse novo campo de estudos.
Na tese L’épithète traditionelle dans Homère 69, publicada em Paris em 1928, Parry
analisou a Ilíada e a Odisséia, trabalho que teve prosseguimento na obra de seu discípulo
Albert Lord que, em 1960, publicou The single of the tales 70. Naquele momento, Lord
divulgou o material que Parry havia recolhido entre bardos, com uma análise dos cantores
tradicionais iugoslavos. Havelock cita ainda diversos outros trabalhos que antecederam a
década de 60 e que, de algum modo, haviam se dedicado ao contraste entre oralidade e escrita
como, Ramus: method and decay of dialogue71, de Walter Ong, publicado em 1958. Estudos
dessa ordem provocaram também um novo interesse pela palavra escrita e seu principal
suporte contemporâneo: o texto impresso e, em particular, o livro. Nessa direção, destacam-se
algumas obras que centraram suas análises nas conseqüências da palavra escrita e impressa
69
O epíteto tradicional em Homero (Parry, 1928, não traduzido para o português).
O cantor de histórias (Lord, 1960, não traduzido para o português).
71
Ramus: método e decadência do diálogo (Ong, 1998, não traduzido para o português).
70
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em sociedades e épocas determinadas, como é o caso de L’apparition du livre72, de Henri-Jean
Martin e Lucien Febvre, publicado em 1958, e The printing press as an agente of change:
communication and cultural transformation in early modern Europe 9, de Elizabeth Eisenstein,
publicado em 1979. Os efeitos da introdução da escrita e da imprensa em sociedades não
letradas têm sido, pois, uma das principais questões que norteiam esse novo campo de
estudos.
Segundo Havelock, o desenvolvimento crescente, a partir dos anos 60, de
pesquisas no campo de estudos que investiga as relações entre o oral e o escrito, coloca, na
atualidade (o texto foi escrito em 1987), os conceitos de oralidade e de oralismo em uma
situação diferente da que ocupavam anteriormente, ganhando maior importância acadêmica.
Esses conceitos contribuem para a caracterização de sociedades que, dispensando o uso da
escrita, têm se valido da linguagem oral em seus processos de comunicação. As expressões
têm sido utilizadas também para identificar um certo tipo de consciência, supostamente criada
pela oralidade (Havelock, 1995). Essas preocupações têm sido centrais nos estudos realizados
nesse campo.
Paul Zumthor (1993), por sua vez, distingue três tipos de oralidade. A primeira,
que denomina “primária e imediata”, não estabelece contato algum com a escrita,
encontrando-se apenas “nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização gráfica,
ou nos grupos sociais isolados e analfabetos”. Em segundo lugar, haveria uma “oralidade
mista” em que o oral e o escrito coexistem, mas a influência do escrito “permanece externa,
parcial e atrasada”. Esse tipo de oralidade procederia de uma “cultura ‘escrita’”. Finalmente, o
autor denomina “oralidade segunda” aquela que é característica de uma “cultura ‘letrada” e se
“recompõe com base na escritura num meio onde este tende a esgotar os valores da voz no
uso e no imaginário” (p.18). Esses tipos de oralidade variam, segundo Zumthor, de acordo
não somente com as épocas, mas com as regiões, as classes sociais e também com os
indivíduos. Todas essas perspectivas tratam de uma análise que, muitos embora por alguns
possa estar enraizada a um código escrito, cotejam com uma tradição que é oral.
Nesse sentido, Virginia Vich e Victor Zavala (2004), ao pensarem da questão da
tradição oral, das literaturas populares e do problema do cânone entendem que a recompilação
e análise de contos populares e tradições orais tem sido guiados pelo afã de chegar a uma
72
O aparecimento do livro (Martin, Febvre, 1992).
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espécie de inconsciente social que permita reconstruir as raízes simbólicas de uma
comunidade. Por tradição oral, o que se tem entendido vai à perspectiva de referência ao
universo mítico ou imaginário de qualquer grupo humano e o interesse nela tem tido relação
com a pergunta pelo conjunto de representações que constituem o “ser coletivo”. Os autores
assumem que a linguagem é a instância que revela melhor a identidade de um povo – o lugar
de onde se cifra e constitui a identidade – e, para tanto, o estudo das tradições orais tem sido
entendido como a melhor via de acesso à suposta “essência” da cultura, na medida em que
abarca manifestações pelas quais a tradição oral pode ter voz e legitimidade (p.73). Os
estudos culturais são, nesse sentido, uma perspectiva de analise que abre para um
entendimento da narrativa como hibrida. Tentemos rapidamente pontuar...
IV. Sob a perspectiva do culturalismo: o hibrido narrativo
O estudo da tradição oral, a partir daquilo que vimos discutindo, presta-se a uma
discussão sob a ótica dos estudos culturais. Homi Bhabha vai entender a linguagem da critica
como eficiente,
na medida em que ultrapassa as bases da oposição dadas e abre um espaço
de tradução: um lugar de hibridismo, para se falar de forma figurada, onde a
construção de um objeto politico que é novo, nem um nem outro, aliena de
modo adequado nossas expectativas políticas, necessariamente mudando as
próprias formas de nosso reconhecimento do momento da politica.
( BHABHA, p.51)
A linguagem tem, pois, poder e esse poder alcança seu objetivo maior no
momento da tradução. Traduzir é também construir um objeto político que versa a intenções
pré-determinadas, ou seja, existe algo que se quer alcançar. Entretanto, existe um hibridismo
que quebra com nossas expectativas alienando-nos. Essa alienação é o que abre para novas
visões e possibilidades acerca do objeto traduzido. Se esse objeto for um “sujeito de pesquisa”
a questão é ainda mais delicada. O traduzir deve ser um lugar de aceitação de diferenças
dentro das subjetividades e nenhuma delas é hegemônica; o traduzir não é reescritura, é troca.
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Voltando a Bhabha(2000), no que tange ao hibrido, ele vai entende-lo como é um
processo agonístico em estado constante de negociação inconclusiva, sem trégua, sem
assimilação nem incorporação:
Trata-se de um processo de inter-relação cultural que, mais do que transcender
fronteiras ou limites, insiste em mostrar - em qualquer diálogo cultural ou comunal - as
dissonâncias que precisam ser atravessadas apesar das relações de proximidade; as disjunções
de poder ou posição que precisam ser contestadas; os valores éticos e estéticos que precisam
ser "traduzidos" mas que não transcenderão pacificamente o processo de hibridização [...] A
hibridização não é algo dado, encontrável num objeto ou numa identidade mítica "híbrida" - é
uma forma de conhecimento, um processo de compreender ou perceber o movimento
ambíguo e ansioso de trânsito ou transição que necessariamente acompanha qualquer forma
de transformação social sem a promessa de clausura celebratória, nem a transcendência das
condições complexas até mesmo conflitantes que acompanham o ato de tradução cultural.
(2000)
Interessante, a partir disso, pensar em transcender fronteiras e limites, na medida
em que trazendo a perspectiva de um trabalho que se pretende enquanto uma análise de
narrativas orais em ambiente virtual, essa transcendência é para nós um objetivo. Ao
transpassar textos híbridos e orais para o ambiente virtual nossa transcendência de fronteiras e
limites estar no fato de perseguirmos o máximo possível a verdade de nossos narradores.
Nosso projeto vê os narradores como sujeitos e como parceiros, visto que contestamos
posições e pensamos numa igualdade de vozes. Ao ter contato com indivíduos periféricos
traduzimos nossos valores éticos e estéticos e não saímos ilesos. É uma troca de
conhecimentos, de intenções que altera a relação de alteridade. Nosso eu e nosso outro pelo
qual somos atravessados é transgredido. E nessa relação há uma transformação social, não no
sentido de nos transformarmos no outro, mas na medida em que trazer por exemplo, para a
academia, indivíduos periféricos, estamos confrontando um ambiente tradicional e canônico e
colocando em xeque tudo aquilo que já é conhecido como permitido. Nossa pesquisa vai
nesse caminho de ser, mais do que uma escrita, uma tradução cultural.
Frederic Jameson (apud BHABA, p.200) invoca algo semelhante em seu conceito
de “consciência situacional” ou alegoria nacional, em que o “contar da história individual e a
experiência individual não podem deixar de, por fim, envolver todo o árduo contar da própria
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coletividade”. Na Restinga essa consciência situacional é fato, já que cada sujeito de nossa
pesquisa, ao narrar sua historia, narra também a coletividade. Explicação simples para isso
está no fato de que o narrar histórias deles tem como objetivo ser o resgate da memória do
bairro e a valorização de uma coletividade plena de indivíduos que merecem ter seus
trabalhos reconhecidos. Nosso site, nesse sentido, é uma forma democrática de
reconhecimento destes talentos até então silenciados por uma sociedade que os vê como um
entulho e, assim, os deixa a margem de tudo aquilo que é cultural, acadêmico e socialmente
reconhecido.
V. O contar tradicional e o contar virtual: aproximações e distanciamentos.
Quando se pensa em narrativa é natural que se pense também na questão do mito.
O que determina que algo contado é de origem mítica?
Segundo Rogerio Carvalho, em seu projeto de pós-doutorado,
Para Durand o mito está sempre presente na capacidade que o ser humano
tem para simbolizar, seja pelas imagens propriamente simbólicas ou pelos
motivos arquetípicos. Significa que o imaginário é o centro da habilidade do
homem para transcender e que, com pouca variância, se realiza na forma de
imagens simbólicas e de narrativas arquetípicas.
Ou seja, com base em Durand todo ser humano é capaz de produzir mitos, a partir
das imagens simbólicas que ele produz e reproduz na forma de narrativas arquetípicas. Na
Restinga, o que temos, são estes tipos de narrador, capazes reproduzir imagens simbólicas
como forma de resgate primeiro de uma memória pessoal, depois da do bairro.
Paul Ricoeur atribui ao ato de presentificar a distinção entre o fato de “contar” e a
coisa “contada”. Para o autor:
O que é contado e que não é narrativa, não é em si mesmo dado em carne e
osso na narrativa, mas simplesmente “devolvido restituído”(Wiedergabe);
por outro o que é contado é fundamentalmente a “temporalidade da vida”;
ora “a vida [ela própria] não se conta, vive-se” (p.254). As duas
interpretações são assumidas pela seguinte declaração: “Qualquer contar é
um contar algo que não é narrativa, mas processo de vida” (p.261). Qualquer
narrativa, desde a Ilíada, conta a própria fluência (Fliessen): “ A epopeia é
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tanto mais pura quanto mais rica de temporalidade for a vida” ( “Je mehr
Zeitlichkeit des Lebens, desto reinere Epik 1995:p.250).
Na Restinga percebemos fortemente essa ideia ricoeuriana, na medida em que o
que cada morador quer é valorizar os tantos processos de vida presentes na comunidade. A
fala de cada um, suas ações enquanto poetas, educadores populares, nômades cibernéticos
objetiva ser essa descrição de uma temporalidade da vida. Suas narrações contam a fluência
de uma comunidade, comunidade essa onde faz-se extremamente importante destacar que foi
removida de seu locus primeiro de morada por uma questão de higienização urbana.
Cabe ressaltar que o objetivo deste trabalho é analisar a passagem do oral para o
escrito e todas as perdas e ganhos do processo, mas, para isso, precisamos contextualizar
nosso estudo. A Restinga é nosso locus de trabalho e os sujeitos acima citados nossos
“sujeitos de pesquisa”.
Se, inspirando-nos em Genette, é possível chamar de “jogo com o tempo” a
relação entre tempo do contar e tempo contado na própria narrativa, o que esse jogo põe em
jogo é o vivido temporal (Zeiterlebnis)visado pela narrativa. (...) Em todos os casos, uma
criação temporal efetiva, um “tempo poético” (p.311) revela-se no horizonte de qualquer
“composição significativa (p.308)”. É essa criação temporal que está em jogo na estruturação
do tempo, que, por sua vez, se dá entre o tempo levado para contar e o tempo contado.
(Ricoeur, 1994: p.137)
A experiência de composição de um site pode ser muito mais do que uma simples
técnica. Para isso, basta que a página a ser criada pretenda dar conta de narrativas, narrativas
que são certamente de cunho ficcional, mas que vem de personagens/narradores reais. A
composição do site “A Vida Reinventada: pressupostos teóricos para análise e criação de
acervo de narrativas orais” foi, e continua sendo, para mim, um desafio.
Nesse sentido, entendo a construção de um site na esteira daquilo que entendem
Eckert e Rocha:
A concepção da arquitetura do site tem se constituído na expectativa da
leitura/interpretação do objetocidade pelo usuário do site no sentido de
confrontá-lo com dois tipos de divisibilidade das imagens dos fenômenos
urbanos, no espaço e no tempo: o corte e a ruptura. Neste ponto, corte e
ruptura têm sido tomados aqui como elementos indutores de narrativas
etnográficas do e no meio urbano de Porto Alegre uma vez que, através de
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ambas as ações, os usuários exploram o conhecimento local do fenômeno do
“desencaixe” do tempo e do espaço tão característico da Modernidade.
Trata-se de evitar ordens discursivas acerca das transformações dos cenários
da vida coletiva em Porto Alegre e a tendência de transformar coleções
etnográficas em depósitos ordenados de uma cultura material, dispostas
numa lógica evolutiva.
Nosso objeto, por sua vez, é o objeto-bairro. É a Restinga vista de dentro e de
fora, por nós, mas principalmente por seus moradores que executam por vezes cortes no
tempo e no espaço como forma de restaurar aquilo que lhes é mais caro na constituição e uma
identidade do bairro. A página internet em si propicia uma desordem discursiva, na medida
em que cada um lerá e interagirá da maneira que melhor lhe convier. O acervo de narrativas,
por sua vez, transformará todo aquele material recolhido na Restinga em objetos de cultura
material que estarão ao acesso de quem sem interessar, ao invés de virarem meras coleções
etnográficas guardadas em uma sala. E as autoras acrescentam:
A criação do site compreende, portanto, uma proposta de exposição de
coleções de documentos etnográficos em telas que se afastam da idéia de
recuperação de uma história linear de estilos de “viver a cidade” segundo a
realização racional de periodização do tempo no tratamento espacial da
memória.
Da mesma forma, considerando-se a intenção da compreensão do
microcosmo social que pulsa no interior da vida urbana porto-alegrense, tem
sido avaliado também o estudo da poética do detalhe que envolve o
tratamento da estética de “alta fidelidade” da vida cotidiana dos seus
habitantes no sentido de essa permitir ao usuário do site “inferir” as
macronarrativas acerca da vida urbana.( ILUMINURAS, Vol. 1, No 1 (2000)
O que se quer é a recuperação tanto de um bairro, a Restinga, no que tange as suas
histórias de vida e a possibilidade de que as pessoas criem um novo olhar, que não aquele de
lugar violento e de moradores marginais, sobre a Restinga, quanto uma revalorização de
tantas histórias de tantos sujeitos que se viram perdidos pela supremacia de um mundo
tecnológico. Nossa intenção é unir tecnologia e narrativa como forma de auxiliar no resgate
de estórias que fazem parte da própria constituição da sociedade moderna. 73
73
Não nego a importância de um relato teórico acerca da poeticidade dessas narrativas, entretanto, este
texto é apenas um primeiro recorte de minha tese de doutorado que está em fase inicial e pretende, em
um segundo momento, contemplar a questão poética.
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Deparei-me com uma quantidade imensa de materiais a serem transferidos para o
ambiente virtual, materiais que davam conta de aproximadamente quatro anos de pesquisa.
Mas a dificuldade não estava somente na quantidade, mas no modo de fazer, pensando na
concepção de De Certeau. Eu estava lidando com trabalhos de indivíduos com os quais tenho
contato, que tem voz, ideias próprias e uma expectativa em cima de mim. Como eu lidaria
com a memória deles? Sim, entre outras coisas nosso projeto se pretende enquanto um
arquivo de memória, onde as pessoas deixam seus registros em áudio, vídeo, daquilo que para
elas é mais importante, do que elas valorizam em si, em suas comunidades e querem que seja
destacado. A maior parte do que temos é advindo da Restinga e isso não é à toa, visto que o
bairro é o nosso locus de pesquisa de campo. 74
Partilhamos ainda das ideias de Eckert e Rocha no sentido de que ao usar
tecnologias da informática com o tratamento eletrônico ou digital da memória,
problematizamos a noção do tempo como realidade composta de um continuum de instantes
logicamente hierarquizados e não como “monumentos de lembranças”. Nesse sentido,
propomos que os jogos de simulação permitem a criação de formas mais integrativas e
interativas de resgate, recuperação, criação e produção de coleções etnográficas.
Ao ter em mãos a tarefa de passar do oral para o escrito as memórias das pessoas e
sendo esse escrito o ambiente virtual me deparei com muitas questões: como fazer? De que
modo colocá-los preservando suas verdades? Deveria eu corrigir os erros, por exemplo, de
ortografia em alguma poesia ou texto dos meus narradores ou seria intervenção demais?
Meus questionamentos foram partilhados com o meu grupo de pesquisa, na
medida em que eu fui um instrumento para que aquele material fosse ao ar, mas não idealizei
cada titulo de menu e sub-menu sozinha. Quando falo em partilha é preciso que eu deixe bem
claro que, mesmo não sendo talvez, para muitos, a forma ideal de trabalhar, nosso projeto
prima por uma construção coletiva de saberes e conhecimentos e, por isso, fui também atrás
de meus narradores para que eles dessem suas opiniões e contribuições. Dessas opiniões
foram, certamente, feitas escolhas. E esse é o momento que julgo mais delicado porque, se eu
74
Utilizo o plural e o singular, o nós e o eu, de forma proposital, na medida em que minha tese está
engajada em um projeto de pesquisa intitulado “A Vida Reinventada: pressupostos teóricos para
análise e criação de acervo de narrativas orais” e que, mesmo tendo sido publicado por mim, foi
pensado por todo o grupo de pesquisa. Minhas reflexões são, portanto, fruto de discussões semanais
proporcionadas por este grupo.
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estou escolhendo materiais e deixando outros de fora, eu estou, de uma certa forma,
intervindo na verdade do narrador. Onde fica, nesse sentido, meu objetivo maior de manter
sua verdade?
Alguns cuidados foram tomados em nosso processo de passagem das narrativas e
demais materiais para o ambiente virtual. O primeiro foi o de colocá-los, se não lado a lado
em termos físicos por uma impossibilidade técnica, logo abaixo de nossas descrições no
ambiente virtual. Depois, os colocamos como Colaboradores, porque é isso que eles são. Na
verdade, se fossemos realmente defini-los em um menu colocaríamos Sujeitos-parceiros de
pesquisa, mas existem questões de técnica e estética que precisam ser obedecidas. E
finalmente colocamos Outros Colaboradores que, se pensássemos sob uma perspectiva em
primeiro lugar acadêmica e canônica deveriam vir antes, na medida em que são professores de
outras instituições, pesquisadores. Nosso objetivo não é uma valorização de nosso trabalho
intelectual, mas o de criar um espaço de memória tanto para os moradores da Restinga quanto
para todas as pessoas que quiserem registrar fatos que julgam importantes acerca de sua
existência e valorizarem-se enquanto indivíduos que possuem um lugar no espaço.
Nosso desenho virtual continuou no momento em que criamos mais um menu: o
Imagens. Dentro dele: Etnografias. Nesse, nosso objetivo é publicar os registros produzidos
principalmente na casa do morador José Carlos dos Santos, o Beleza, documentando os
momentos de produção de narrativas orais. Uma das fotos mais interessantes presente neste
sub-menu é a da defesa de um atualmente membro externo do projeto, mas que produziu a
primeira dissertação do nosso grupo de pesquisa, Felipe Ewald, em que três moradores da
Restinga: Marco Almeida “ O Maragato”, José Carlos dos Santos “O Beleza” e José Ventura
aparecem sentados naquelas cadeiras que outrora foram ocupadas pelos membros da banca de
defesa, contando suas experiências.
Depois de darmos conta das etnografias partimos pelo que optamos denominar
Memorabilia. Nele temos os objetos e registros das criações e produções dos narradores da
Restinga. Aqui é possível encontrar-se, entre outras coisas, as poesias produzidas por dois
moradores: Alex Pacheco e Jandira Brito. Os descobrimos poetas e os fizemos (re)
descobrirem-se poetas a partir da valorização em seu trabalho. Nossa valorização não é algo
que fique no campo da oralidade, mesmo que nosso objeto de pesquisa sejam as narrativas, e
com muitos esforços conseguimos publicar um livro com as poesias de nossos ilustres
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parceiros. A escolha das poesias, bem como das imagens do sub-menu anterior, foi feita de
acordo com o que sentíamos ser mais caro aos narradores. Nossa escolha precisou, ao longo
de todo o site, ser baseada na sensibilidade e na experiência que parte do contato no campo.
Não encontramos outra opção que pudesse ir ao encontro do objetivo traçado. No que tange a
esta Memorabilia ainda é mister destacar o trabalho desenvolvido pela geografa Nola
Gamalho. Ela, juntamente com o morador Beleza, fez a trajetória do bairro, foi o caminhar
pelo bairro (se parafraseamos De Certeau) de Nola e Beleza que permitiram a confecção de
um mapa atualizado da Restinga. Diferentemente daquele fornecido pelo DEMAHB, Nola
mapeou cada unidade que compõe a Restinga.
Ao ser mostrado aos moradores, numa exposição realizada pelo Grupo de
Pesquisa75, foi interessante a percepção de cada morador acerca de seu locus de morada. A
impressão que tivemos é de que muitos deles não sabiam da diversidade cultural e geográfica
de seu bairro. Questões politicas internas também vieram à tona na medida em que eles
apontavam os locais de que não gostavam, onde não circulavam, os que julgavam mais ou
menos perigosos. Foi um exercício de reencontro com sua identidade.
Ainda dentro das Imagens temos as Incursões. Neste sub-menu damos mais ênfase
aos registros de experiência do grupo de pesquisa e do Projeto de Extensão quem conta um
conto – contadores de histórias em diferentes espaços do bairro. Neste momento nossa voz
pode falar com mais liberdade, na medida em que era nossa subjetividade que seria relatada
de forma explicita. Todavia, a partir do momento em que lidamos com imagens produzidas
por nós, mas que não são nossas, certos cuidados se fazem necessários. Nas situações de
contação de histórias, por exemplo, muitas crianças aparecem e foi preciso distanciar seus
rostos e preservar suas identidades por serem menores e não termos nem direito, nem
autorização, de expô-las em ambiente virtual. É fato que mesmo na internet existem normas
que devem ser cumpridas, mesmo que nem sempre isso aconteça.
Em Museu de Imagens temos documentos escaneados, fornecidos por nossos
parceiros/narradores, contendo registros de experiências, entre eles: jornais, cadernos, fotos
pessoais, fotos de outros acervos, etc. Neste o cuidado com as imagens do qual falamos acima
se faz também bastante presente.
75
Daremos ênfase à exposição na sequencia do relato.
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E por fim Via Crucis vai dar conta da exposição de que citei acima. O nome da
exposição foi sugerido por Marco Maragato em função da dor e sofrimento passado por esses
moradores desde que aconteceu a remoção de seu antigo locus para onde estão atualmente.
Cada estação conta um pouco da história da Restinga. Disponibilizamos, no site, as 10
estações para que quem se interessar (pensamos num interesse que partisse, sobretudo, dos
educadores) pudesse ter acesso e trabalhar com isso em seu dia-a-dia. Da exposição, surgiu a
ideia de realizarmos uma Oficina para os professores da rede pública do bairro. A aceitação
primeira era grande, mas toda a vontade de conhecer o projeto terminava ao nos verem
chegando junto com os moradores. O que a comunidade escolar em geral queria era o contato
com a Universidade, com alguém que os era “intelectualmente superior” em função de possuir
um diploma. Mas que autoridade seus pares teriam para ensina-los algo? Muitos dos
professores também não se interessaram pelo projeto pelo fato de ser um resgate da memória
do bairro e eles não serem moradores. A eles não interessaria atravessar a cidade, no sábado,
para ouvir moradores falarem. Em respeito aos poucos interessados, registramos no site.
O menu Textos e seus submenus dá conta do que nós, pesquisadores, vimos
pensando. São relatos de nossas experiências passados para o papel através de artigos,
publicações em livro, monografias, dissertações e teses, sendo que esta última dá conta de
trabalhos que ainda estão em desenvolvimento.
No menu vídeos temos como objetivo disponibilizar alguns dos vídeos produzidos
pelo grupo de pesquisa. Já temos pronto o Narradores da Restinga I e estamos em fase de
produção do II e de um terceiro que dá conta da poética indígena. A experiência do vídeo
76
nos é muito cara e ao mesmo tempo bastante nova. Questões como duração, em uma
perspectiva bachelardiana, não foram por nós ainda contempladas. Nosso campo de estudo
recai muito mais nas questões de memoria e identidade e como editar tudo isso vendo-nos
como tradutores de mensagens politicas, sociais e de libertação de uma realidade que não
agrada mais.
76
Muito embora nosso objetivo não seja aqui discutir nossos vídeos, os traremos como exemplo
ilustrativo de nossa pesquisa.
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VI. Hipertexto e poética digital: tradução?
Dadas essas questões teóricas de tradição oral, tradução cultural e hibridismo que
apóiam minhas reflexões, qual o papel de nossos narradores quando suas produções são
transferidas para o ambiente virtual? Antes de responder a esta e as demais questões propostas
no inicio desta reflexão, é necessária a discussão acerca de alguns conceitos. É preciso que
fique claro, todavia, qual o conceito de site que queremos enfocar: construção hipertextual,
locus privilegiado de tradução de ideias, imagens, vídeos, objetos de arte, documentos
escaneados e etc. É isso que perseguimos com nosso site, acrescentando o objetivo de se
manter a verdade dos “sujeitos de pesquisa”.
Para Henri Meschonnic (2007: 43-44 apud Marcia Pietroluongo),
77
a questão
fundamental da tradução se funda na indissociabilidade entre teoria e prática. Toda prática
encerra em si uma teoria da linguagem, desvela suas representações. Toda teoria que não
refletisse a partir de sua prática se revelaria uma lingüística da língua aplicada sobre o
discurso. Por ser uma poética experimental, a tradução ocupa um lugar único no âmbito das
teorias da linguagem.
A variação operada sobre um mesmo texto a traduzir ao longo das épocas e dos
diversos espaços desvela não apenas as diferentes concepções sobre a linguagem, mas
também a variedade de representações sobre o literário. São essas concepções e, sobretudo
estas variadas representações sobre o literário, que queremos trazer à tona com nossos vídeos
e nosso site.
Rachel Longi78, 2000, citando Jay Bolter diz que:
Muitos autores buscaram uma espécie de subversão da ordem, de acordo
com Bolter (1991), ao estruturar o texto de maneira alternativa, apostando
mais na atividade do leitor do que nos cânones (bem) estabelecidos da
literatura que sempre vigoraram. Estes verdadeiros "transgressores"
procuraram, de alguma forma, libertar-se dos limites a sua arte. Neste
77
Signo, sujeito e tradução. Tradução em Revista 7, 2009, p. 01-08. Disponível em
http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/14718/14718.PDF . Acesso em 05 outubro 2010.
78
Hipertexto e poéticas digitais: uma análise de Patchwork Girl e do Storyspace. Revista Em Questão,
Porto Alegre, v. 11, n. 1, p. 121-135, jan./jun. 2005.
Disponível em http://www6.ufrgs.br/emquestao/pdf_2005_v11_n1/7_hipertexto.pdf . Acesso em 05
outubro 2010.
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sentido, é importante atentarmos para a obra de Marcel Proust, James Joyce,
Júlio Cortázar, Jorge Luiz Borges e Laurence Sterne. Ao tentar romper uma
narrativa considerada linear, eles poderiam estar inaugurando uma forma de
pensamento hipertextual na literatura. "É como se estes autores estivessem
esperando pelo computador para libertá-los do impresso. E de fato, muitas de
suas obras poderiam ser transferidas para o espaço da escrita (hipertextual) e
plenamente reconstruídas naquele" (Bolter, 1991, p. 132).
Ou seja, essa tradição de uma escrita não linear, alternativa, de subversão da
ordem é algo que já existia numa perspectiva canônica tradicional. Existiram autores que se
instigaram por essa vontade de romper com os paradigmas do que é literariamente aceito. O
hipertexto é, nesse sentido, a modernização de uma perspectiva outrora desejada.
Segundo Landow (1992 apud Alexandre Nallim)79 , o hipertexto põe em cheque:
seqüências fixadas, começo e fim definidos, uma história de certa magnitude definida e a
concepção de unidade e todo, associada a todos esses conceitos. Na narrativa hipertextual, o
autor oferece múltiplas possibilidades através das quais os próprios leitores constroem
sucessões temporais e escolhem personagens, realizando saltos com base em informações
referenciais. E se existem personagens, se existe mesmo uma intenção de que essa sucessão
seja subvertida, se existem informações referenciais, existe também poética. A poética esta na
forma que esse hipertextual é constituído.
Segundo Heim ( 1993 80), o hipertexto é um modo de interagir com textos e não só
uma ferramenta como os processadores de textos. Por sua característica, o usuário interliga
informações intuitivamente, associativamente. Através de saltos - que marcam o movimento
do hipertexto – o leitor assume um papel ativo, sendo ao mesmo tempo co-autor. O hipertexto
despe-se de convenções sociais e entende autor e co-autor num mesmo patamar.
Para Ted Nelson81, o hipertexto possibilita novas formas de ler e escrever, um
estilo não linear e associativo, onde a noção de texto primeiro, segundo, original e referência
não existe. Poderíamos adotar com noção de hipertexto assim: o conjunto de informações
textuais, podendo estar combinadas com imagens ( animadas ou fixas ) e sons, organizadas de
forma a permitir uma leitura ( ou navegação ) não linear, baseada em indexações e
79
Hipertexto & Narrativa, disponível em
http://www.brazilcommunity.com/brazilcommunity/colunistaalexandre02.htm acesso em 02 outubro
2010
80
Ibdem Idem.
81
Ibdem Idem.
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associações de idéias e conceitos, sob a forma de links. Os links agem como portas virtuais
que abrem caminhos para outras informações. No caso do site “A Vida Reinventada”
queremos que essas portas se abram para a intervenção de quem desejar se colocar como um
individuo, que está na sociedade, e tem muito para falar. O que nos interessa é a voz, o gesto,
é isso que queremos levar para o ambiente virtual. O virtual, nesse sentido, é mais um local
através da qual todos os que desejarem poderão se enunciar.
Para Lévy ( 1993), o hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os
nós podem ser palavras , páginas, imagens, gráficos, seqüências sonoras, documentos
complexos que podem eles mesmos ser hipertexto. Os itens de formação não ligados
linearmente, como em uma corda como nó, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas
conexões em estrela, de modo reticular.
Para Shneiderman & Kearsley ( 1989 ) 82, o hipertexto pode ser uma rede de nós e
ligações entre documentos, onde documento são nós e as ligações são referências cruzadas.
As redes podem ter a forma de hiperarquia (As empresas virtuais utilizam uma estrutura
organizacional chamada de estrutura em rede. E já que a maioria delas é interligada pela
Internet, intranets e extranets, sua estrutura também pode ser chamada de hiperarquia,
segundo o modelo de estrutura em hiperlinks da Internet), embora geralmente as associações
entre os nós sejam mais complexas. Os nós ligações não se restringem a textos, mas podem
ser gráficos, fotos, sons narração ou seqüência (vídeo ). A idéia de hipertexto eletrônico pode
ser nova, mas o exercício da hipertextualidade tem sua origem antes mesmo da massificação
da Internet.
VII. O lugar do periférico no virtual: o exemplo da Restinga
Marco Almeida, o Maragato é mais pragmático e também se mostra mais receoso
em função de situações de preconceito que ele julga advirem de sua condição financeira e sua
raça, visto que é negro. Contudo, é alguém que mesmo exalando este rancor, numa atitude
completamente contraditória, sabe se impor. Muitas vezes, ao chegarmos para as reuniões de
pesquisa, ele já tinha sua pauta que era sempre de cunho prático, buscando pontuar o que
tinha realmente sido realizado e apontando o que ele pensava poder ser melhorado. Maragato
82
Op. cit 19 p. 14.
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é versátil, de uma versatilidade que advém de suas circunstancias e faz dele alguém capaz de
desempenhar diversos papéis (e ao mesmo tempo) na sociedade. De manhã educador popular,
à tarde catador de lixo e/ou vendedor de algodão doce e no tempo que sobra autor de diversos
blogs, poesias e pequenas historinhas em quadrinhos. Seu conhecimento de internet é
autodidata e seu objetivo é que ela seja uma ferramenta de educação; ele quer mostrar aos
jovens da Restinga o outro lado da rede que não somente o das salas de bate-papo e/ou redes
de relacionamento. Através de um programa que ele descobriu, Maragato cria histórias em
quadrinhos, leva para seus alunos quando desempenha o papel de professor, e os ensina a
criarem suas próprias. Para ele, esta é uma forma de incentivar as crianças e adolescentes a
adquirirem o habito da leitura. Maragato luta por uma verdadeira inclusão digital, capaz de
qualificar as crianças na realização de seus sonhos e que as possibilite um futuro melhor. Sua
fala é politica, seus registros audiovisuais mínimos, ele prefere o virtual ao real, mas entende
a necessidade do real para a realização de seu engajamento politico. Afinal de contas, os
dominantes não podem jamais controlar perfeitamente até onde levarão as reivindicações
múltiplas e dificilmente previsíveis.
A verdade é que Maragato é um artista que vê na educação de crianças e jovens a
aplicação de sua realização poética. Ele faz uso dos suportes digitais que são na forma de se
olhar a realidade social, a atual configuração de uma nova poética.
A forma do texto poético é própria. Ela já é um desenho, mostra-se em verso,
configura um espaço novo no pergaminho, na página ou na tela, tempo e espaço se buscando,
se sobrepondo. Os primeiros teóricos perceberam este conflito de formas e códigos. [...] o que
a vista abarca de um só lance, ele (o poeta) nos enumera lentamente, pouco a pouco, e muitas
vezes sucede que, ao último traço apresentado, já esquecemos o primeiro... Para a vista, as
partes contempladas conservam-se constantemente presentes, ela pode percorrê-las quantas
vezes lhe aprouver, para o ouvido, porém, as partes ouvidas se perdem, caso não se gravem na
memória. (OLIVEIRA apud LESSING, 1999, p.12-14)
Isso porque ele é um agente social que realiza uma produção cultural plural que
deve ser pensada, se tomarmos como base as ideias de Wilson Azevedo e Philadelpho
Meneses, como interpoética. Essa manifestação interpoética é descrita por Wilson Azevedo
como algo que está fora dos métodos tradicionais de produção artística, pois se trata de uma
linguagem de intervenção e intersecção – de código para código – com uma característica
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mais ativista. Maragato é portador de uma linguagem que quer ser, ao mesmo tempo que uma
intervenção no mundo, – na medida em que existem sim intenções sociais e politicas na sua
atuação em comunidade, além de um interesse em mostrar que embora não tenha tido
oportunidade de frequentar os bancos da universidade tem o que passar para os jovens, de
forma a ajudar que eles tenham um futuro mais promissor – e de intersecção visto que lida
com vários códigos , seja a linguagem virtual, seja a língua falada , seja ainda a passagem do
escrito para o ambiente virtual, para alcançar objetivos que são os de valorização de seu local
de enunciação : A Restinga, que não é só um bairro marginal e de marginais e de sua
identidade: de catador de lixo, puxador de ferro e também de educador popular que vê na arte
a possibilidade de um futuro com perspectivas de crescimento intelectual e dentro do bairro,
mostrando que ser alguém a partir da ( e na) Restinga é possível.
VIII. Conclusões possíveis:
Estas são reflexões que advém de um trabalho em construção, portanto, afirmar
taxativamente acerca de uma ou outra perspectiva abordada não é ainda possível. Alguns
passos têm sido dados, também por nós, para que a poética digital e a própria poética de tantas
vidas reinventadas seja reconhecida dentro da academia.
Até aqui, conseguimos, a partir da publicação das poesias de Alex Pacheco e
Jandira Brito, também parte desta parceria, e dos vídeos Narradores da Restinga I e
Narradores da Restinga II (estando este último em fase de produção) mostrar as pluralidades
poéticas que fazem parte da Restinga.
Entendo que a performance acabe no momento em que se realiza, mas entendo
também que o fato de registrarmos a fala desses narradores em vídeo e suas produções
artísticas na internet é uma forma de valorizar suas identidades e possibilitar que eles sejam
reconhecidos a partir da arte que produzem. É uma tentativa de registro dos gestos e discursos
de cada um deles, que muito tem a falar e ensinar.
O meu critério, ao passar tudo para o virtual, é respeitar ao máximo a verdade do
meu narrador. Entretanto, entendo que, no momento em que escolhemos, e aqui falo nós
porque é uma escolha do grupo, uma foto em detrimento a outra, estamos realizando uma
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intervenção. A perda, talvez, esteja ai, no fato de termos um momento de trabalho na
academia o qual não nos permite ter contato diário com nossos narradores.
Nosso papel é fazer do site, dos vídeos e de nossa produção provenientes desse
projeto, local de valorização dos narradores e de suas histórias, sendo as mais constantes
aquelas relacionadas à Restinga por razões que já expusemos ao longo deste texto. O narrador
é, portanto, a personagem principal de tudo , o parceiro, o que produzimos, e nós, nada mais é
do que uma ponte para que ele possa ter sua identidade valorizada.
Entendo que a poética esteja presente, mas o que é esta poética digital? Como
reconhecê-la? São as reflexões as quais me tenho feito e que estas considerações feitas até
aqui ainda não são suficientes para responder.
Bibliografia
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NARRATIVA, TRADIÇÃO E EXPERIÊNCIA: ANÁLISE DE ASPECTOS DA
LITERATURA TRADICIONAL/ORAL/POPULAR EM A VIAGEM DO ELEFANTE,
DE JOSÉ SARAMAGO
Max Alexandre de Paula Gonçalves83 (PG-UEL)
Que José Saramago foi um grande escritor, isso é fato, seus livros Memorial do
convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1984), História do cerco de Lisboa (1989)
e Ensaio sobre a cegueira (1995) são reconhecidos mundialmente como obras-primas,
justificando o prêmio Nobel de Literatura concedido ao escritor português em 1998. Aliás,
Ensaio sobre a cegueira, recentemente, chegou a ser adaptado para uma versão
cinematográfica homônima. Contudo, agora em 2010, a Literatura perdeu definitivamente de
seus domínios José Saramago. No entanto, essa perda já se mostrara possível anteriormente,
pois devido a uma doença respiratória, seu penúltimo livro, A viagem do elefante (2008),
quase não foi concluído. Mesmo assim, com um intervalo de meses, Saramago terminou essa
história, e nos prestaremos a analisá-la nesse trabalho.
Já são marcas da obra de Saramago o humor e a ironia para mostrar a habitual e
difícil relação do homem consigo mesmo. Então, acrescente-se a isso a relação do homem
com os animais, ou melhor, com um animal, mais especificamente um elefante, de nome
Salomão. É este o enredo da trama sobre a viagem do elefante Salomão, que partiu de
Portugal no século XVI em direção a Viena, na Áustria, como presente de Dom João III, rei
português, e de sua esposa Catarina d’Áustria ao arquiduque austríaco Maximiliano II, genro
do imperador Carlos V. É essa a história em que se basearão as nossas posteriores reflexões.
Abordaremos, entre algumas das questões, qual a proximidade dessa narrativa de
Saramago com as histórias orais da cultura popular; observaremos como aparece a
representação da oralidade numa cultura escrita, quer dizer, a ficcionalização de elementos
orais materializados no livro. Como funciona esse procedimento? Aliás, como fica essa
passagem da literatura tradicional e oral para a literatura escrita? A transmissão e a tradição
sofrem desvios, ou ainda, perdas? São alguns dos nossos questionamentos. Nosso arcabouço
teórico contará com as teorias de Walter Benjamin sobre a narrativa. Além disso, utilizaremos
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também apontamentos de Mikhail Bakhtin e de outros pesquisadores que podem contribuir
para o desenvolvimento de nossas problemáticas.
Iniciaremos o nosso trabalho pela teoria benjaminiana sobre a narrativa e a
elucidaremos concomitantemente com o texto de Saramago.
Há um ensaio de Walter Benjamin intitulado O narrador. Considerações sobre a
obra de Nikolai Leskov, de 1936, em que o crítico alemão escreve que a arte de narrar estaria
em vias de extinção, pois o narrador já seria algo de outrora naquele momento. Então,
Benjamin anuncia Leskov como um dos últimos narradores da atualidade. Contemporâneo de
Dostoievski e de Tolstoi, foi a partir de Leskov que Benjamin elaborou suas reflexões, aliás,
ele considerou que localizar um narrador à sua época exigia uma distância apropriada e um
ângulo favorável de observação. Segundo o crítico alemão, a dificuldade em narrar ocorre
porque na atualidade estamos privados de uma faculdade que em outros tempos nos “parecia
segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994, p. 198).
Esse ponto é importante, pois em Experiência e pobreza, um texto anterior ao do ensaio sobre
Leskov, Benjamin já expusera que o ato de narrar uma história estaria ligado à função de
transmitir uma experiência, e esta, por sua vez, possuiria um significado muito peculiar:
[A experiência] sempre fora comunicada aos mais jovens. De forma concisa,
com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua
loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países
longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos (BENJAMIN, 1994, p.
114).
No entanto, recorrer à experiência é uma atitude em baixa para Benjamin –
“Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando a sua experiência?” (BENJAMIN,
1994, p. 114). Não devemos esquecer que Benjamin escreveu os dois ensaios que citamos
após uma das piores experiências da história: a 1ª Guerra Mundial. Esse evento marca uma
nova relação das pessoas com a experiência, pois Benjamin percebeu que os combatentes
voltavam silenciosos do campo de batalha, ou seja, retornavam mais pobres em experiência
comunicável. Conforme o teórico, isso ocorria por conta das experiências que as gerações
entre 1914 e 1918 tiveram, uma vez que elas foram radicalmente desmoralizadas:
“experiência pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência
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do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (BENJAMIN, 1994, p. 114).
Aqui se encontraria o problema nas narrativas contemporâneas: a ausência de experiências
transmissíveis, pois, voltando ao texto sobre o narrador, Benjamin comenta que a experiência
que “passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E entre as
narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas
pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, p. 198). Percebe-se assim o
enaltecimento das narrativas orais por Benjamin, pois ele as compreende como as melhores
formas de transmissão da experiência, ou ainda, da tradição. Podemos adiantar que A viagem
do elefante se encaixa nessa consideração de Benjamin, pois esse conto oriundo da narrativa
oral, ao ser passado para a escrita, consegue preservar a tarefa atribuída à narrativa, ou seja, a
de comunicar uma experiência, por meio de recursos que abordaremos logo mais.
Um segundo aspecto da narrativa, na maneira como Benjamin a compreende, é a
da narrativa ter “sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária” (Ibid., p.
200). Essa utilidade pode aparecer por diversas formas: num ensinamento moral, numa
sugestão prática, num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer modo, o narrador tem
por característica fornecer conselhos sábios. Vamos nos deter agora numa dessas formas, o
provérbio.
O provérbio é uma característica das obras de Saramago, desde Levantado do
Chão (1980) ao Ensaio sobre a lucidez (2004) (Cf. DUARTE, 2009). Em Memória da
literatura oral. A dinâmica discursiva da literatura oral: reflexões sobre a noção de
etnotexto, Jean-Noël Pelen concebe o provérbio como um gênero da literatura oral, pois ele
enuncia e confirma a ordem estabelecida de determinada comunidade, da qual pertence e é o
reflexo. Dessa forma, Pelen define o provérbio da seguinte forma:
O provérbio é caracterizado pela rapidez de sua expressão e a arte do locutor
está em saber empregá-lo com sabedoria e oportunamente. (...) ele está mais
frequentemente inserido dentro de uma palavra compartilhada, dentro de
uma conversação, que ele vem marcar com sua densidade informativa
(PELEN, 2001, p. 54).
Se anteriormente vimos que Walter Benjamin considera que as melhores histórias
escritas são as que se aproximam das narrativas orais, então, o provérbio, enquanto gênero de
literatura oral, ao aparecer ocasionalmente seja na voz do narrador ou na dos personagens da
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história, torna o conto de Saramago muito mais próximo da literatura tradicional/oral/popular,
o que o aproxima mais da idéia benjaminiana sobre a narrativa.
Em um texto muito interessante, Helena Margarida Vaz Duarte observou o jogo
intertextual que os romances de José Saramago fazem com os textos da literatura
tradicional/oral/popular. A crítica propôs que o provérbio é apropriado e recriado ao adquirir
um estatuto literário pelas mãos do literato português. Além disso, o uso intertextual desses
textos representa uma tentativa de transgredir as “verdades” da História e da Literatura, isto é,
a busca por um passado reconstruído a partir de vozes até então silenciosas ou silenciadas. É a
vez das personagens “ex-cêntricas” – as excluídas pela História oficial – com o saber que
emana delas, que ganham voz no olhar de Saramago. É essa atitude que permite o cornaca
Subhro, de A viagem do elefante, participar ativamente de um episódio envolvendo duas das
coroas mais importantes da Europa do século XVI. Assim, os provérbios são utilizados por
Saramago na sua forma fixada, porém ele “inova estes enunciados aparentemente
cristalizados ao alterá-los, parodiá-los, amplificando-os, cruzando-os com textos eruditos,
num processo de constante (re)criação, num processo dinâmico entre tradição e inovação”
(DUARTE, 2009, p. 120).
Duarte tem por mérito, ainda, o trabalho de ter registrado o número de ocorrências
proverbiais nos onze romances de Saramago que analisou, entre eles, Memorial do convento e
A jangada de pedra. Todavia, preferimos seguir o outro caminho tomado pela autora:
verificar que os ditados populares contribuem para o diálogo intertextual, que eles possuem
“uma função de dessacralização de verdades instituídas na caracterização de certas
personagens e colaboram na explicação e na condensação das situações narradas, como
‘narrativas mínimas’ que são” (DUARTE, 2009, p. 121). Apontaremos alguns casos de
ocorrência proverbial encontrados em A viagem do elefante, isto será importante para elucidar
a dimensão utilitária do provérbio nessa narrativa, o qual é definido também por conter juízos
de valor ou morais sempre implícitos.
O primeiro provérbio que identificamos em A viagem do elefante ocorre quando o
secretário Pêro de Alcáçova Carneiro fica na dúvida se elogia ou não o rei por causa da
escolha de um estribeiro-mor, que sua alteza havia feito para levar a carta que ofertaria o
elefante como presente ao arquiduque da Áustria. Eis que a lembrança do pai surge com um
provérbio pertinente à situação: “Cuidado, meu filho, uma adulação repetida acabará
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inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e portanto ferirá como uma ofensa”
(SARAMAGO, 2008, p. 16). É interessante notar que esse primeiro provérbio apareça
justamente como um conselho, quer dizer, uma opinião que transmite a experiência de um
homem mais velho, Antonio Carneiro, pai do secretário, pessoa que exercera o mesmo cargo
antes do filho, e que, possivelmente já havia estado na mesma condição.
Há ainda um provérbio justificando como são relativos os juízos de valores.
Novamente, os personagens do rei e do secretário estão envolvidos. Quando Dom João III vê
o elefante, pergunta ao secretário o que ele acha do animal, eis que prontamente este
responde: “Bonito ou feio, meu senhor, são meras expressões relativas, para a coruja até os
seus corujinhos são bonitos” (Ibid., p 22). Podemos comparar este provérbio que explicita o
relativismo que cerca as compreensões da realidade com um provérbio que aparece em A
jangada de pedra, registrado por Helena Margarida Vaz Duarte: “cada um de nós vê o mundo
com os olhos que tem” (SARAMAGO apud DUARTE, 2009, p. 128).
Utilizando novamente o trabalho de Duarte, prosseguimos com outro provérbio
que a autora havia encontrado somente em História do cerco de Lisboa: “no melhor pano
pode cair a nódoa”. Em muitos casos como esse, o provérbio é empregado a fim de condensar
uma narrativa mínima, que nos romances de Saramago, representa “a estória da história que
está a ser contada” (DUARTE, 2009, p. 125). Por exemplo, o uso de “no melhor pano pode
cair a nódoa” representa a breve história de Subhro, o cornaca, e Salomão, o elefante, da
chegada a Belém até a saída para Valladolid.
Quando foram para ali lançados, a curiosidade popular subiu ao rubro e a
própria corte chegou a organizar selectas excursões a belém de fidalgos e
fidalgas, de damas e cavalheiros para verem o paquiderme, mas em pouco
tempo o interesse começou a decair, e o resultado viu-se, as roupas indianas
do cornaca transformaram-se em farrapos e os pêlos e as pintas do elefante
quase vieram a desaparecer sob a crosta de sujidade acumulada durante dois
anos. Não é, porém, a situação de agora (SARAMAGO, 2008, pp. 33-34).
Vemos então que o provérbio aqui significa as mudanças pelas quais passaram
Subhro e Salomão, os quais, em um primeiro momento, ocuparam um papel importante no
imaginário da corte portuguesa, e, depois, foram esquecidos até que novamente recuperassem
seu prestígio pela razão de o elefante ter se tornado um presente para o arquiduque
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Maximiliano II. Assim, nas poucas palavras que o provérbio emprega, temos uma pequena
história de auge, declínio e ascensão. Como diz o próprio Subhro: “assim é a vida, triunfo e
olvido”.
Todavia, o provérbio “No melhor pano cai a nódoa” ao significar que mesmo o
melhor pode sofrer algo de pior, é evocado novamente pelo narrador quando comenta a
atitude do arquiduque Maximiliano II de fechar a caravana com couraceiros – uma força
militar – para evitar ataques.
É certo que não estamos na calábria ou na sícilia, mas sim nas civilizadas terras da
ligúria, às quais se hão-de seguir a lombardia e o veneto, mas, como no melhor pano cai a
nódoa, como tantas vezes a sabedoria popular tem avisado, bem faz o arquiduque em manter
a sua retaguarda protegida. Resta saber o que lhe virá do alto céu. (SARAMAGO, 2008, p.
179)
Mais um provérbio que surge evocando a experiência e saber que este enunciado
carrega aparece nas palavras do cura, que o utiliza para responder as gentes que lêem os
evangelhos para contestar os ensinamentos do padre: “quem se mete por atalhos, nunca sai de
sobressaltos” (SARAMAGO, 2008, p. 80). É interessante destacar nessa passagem que o
padre nos dá indícios da relevância da cultura oral para a transmissão de um saber, pois o
aldeão, ao tentar contestar o cura pela leitura que realizou do evangelho, é repreendido pelo
religioso, recebendo a indicação de que ele deveria prestar mais atenção na missa. Além disso,
esse trecho também demonstra um predomínio da voz oficial sobre a voz não-oficial, já que
quem lia o evangelho para o aldeão era a filha dele, missão que o padre assume para si como
exclusiva.
Mas a comunicação da sabedoria popular não possui como único veículo o
provérbio. Há outras formas de enunciados, e Saramago também se apossa delas. Uma dessas
categorias é a metáfora. Há uma muito bela que extraímos de A viagem do elefante, citada
pelo narrador da história, quando a rainha de Portugal, Catarina de Áustria, é questionada pelo
narrador se lembrará do elefante Salomão depois de dois ou três anos.
O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se
de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de
pedra em pedra. E as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo
delas. Às vezes saem-lhes lacraus ou escolopendras, grossas roscas brancas
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ou crisálidas a ponto, mas não é impossível que, ao menos uma vez, apareça
um elefante, e que esse elefante traga sobre os ombros um cornaca chamado
subhro, nome que significa branco (...) (SARAMAGO, 2008, p. 33).
Na maioria das vezes, como bem verificou Duarte, as múltiplas ocorrências
proverbiais e metafóricas não são enunciadas pelas personagens ditas populares, cabendo este
papel ao narrador, “mas também a personagens canonicamente consideradas superiores, sejam
aquelas que detêm o poder (...), sejam as personagens históricas D. João V e D. Afonso
Henriques, o heterônimo Ricardo Reis e também Deus” (DUARTE, 2009, p.122), No nosso
caso, isso também é válido, com o rei D. João III ou o arquiduque Maximiliano II produzindo
o enunciado. Dessa forma, a linguagem parêmica atua como um recurso para “humanizar” as
personagens canonicamente destacadas e elevar as anônimas, numa tentativa de
“dessacralização da verdade que a História, a Literatura e os Evangelhos instituíram”
(DUARTE, 2009, p. 122).
O caráter utilitário do provérbio, na forma de um conselho ou de uma sugestão,
quando tecido na substância viva da existência adquire um nome: sabedoria, de acordo com
Benjamin. Então, Saramago, ao mesmo tempo em que salva a narrativa de sua morte,
recupera a sabedoria ao colocá-la na voz de personagens de quem não esperaríamos que ela
emergisse.
Por que insistimos nessa discussão sobre a dimensão utilitária da narrativa por
meio de enunciados, tais como o provérbio ou a metáfora? Pois Benjamin compreende que o
surgimento do romance no período moderno seria o primeiro sinal da evolução que culminaria
na morte da narrativa. E Saramago, apesar de fugir das terminologias, prefere chamar essa
história sobre a viagem de Salomão de “conto” e não romance, pela falta de ingredientes que
caracterizam um. Ao avaliarmos tudo o que dissemos até aqui sobre a cultura
oral/popular/tradicional na narrativa de Saramago, podemos responder pela própria teoria de
Benjamin, que prevê o romance como vinculado essencialmente a uma cultura escrita, visto
que a sua difusão só foi possível com a invenção da imprensa – da qual o folhetim faz parte.
Entretanto, todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – são
oriundas da tradição oral, e continuam a alimentar a mesma. Isso estaria relacionado ao fato
de que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada
pelos ouvintes. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (BENJAMIN,
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1994, p. 201). Já o romance é diferente das outras formas de prosa que apontamos aqui, pois
se origina no indivíduo isolado, que não dá conselhos, mas que também não os recebe. O
romance não possui a dimensão utilitária de comunicar sabedoria, pois se mostra totalmente
refratário ao conselho e ausente de sabedoria 1.
De forma um tanto profética, Benjamin ainda nos deixa pistas para compreender o
conto e o narrador de José Saramago. Uma delas diz que a narrativa deve ser concisa para que
a memória a retenha, já que o ouvinte tenderá a contá-la e recontá-la um dia se conseguir
assimilá-la, quer dizer, o ouvinte pode vir-a-ser um narrador e, mais interessante ainda, ele
pode imprimir a sua marca na narrativa, “como a mão do oleiro na argila do vaso”
(BENJAMIN, 1994, p. 205).
Além disso, diz Benjamin na seqüência, “os narradores gostam de começar sua
história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão
contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica”
(BENJAMIN, 1994, p. 205). Ora, e não vemos essa característica em Saramago quando ele
escreve antes do início da história como descobriu sobre a viagem do elefante? Ou seja,
estamos querendo apontar que, em A viagem do elefante, autor e narrador não estão separados
e tudo indica que o próprio Saramago seria o narrador dessa história.
Se Gilda Lopes Encarnação não fosse leitora de português na Universidade
Salzburgo, se eu não tivesse sido convidado para ir falar aos alunos, se Gilda
não me tivesse convidado para jantar no restaurante O Elefante, este livro
não existiria. Foi preciso que os ignotos fados se conjugassem na cidade de
Mozart para que eu pudesse ter perguntado: ‘Que figuras são aquelas?’As
figuras eram umas pequenas esculturas de madeira postas em fila, a primeira
das quais, olhando da direita para a esquerda, era a nossa Torre de Belém.
Vinham a seguir representações de vários edifícios e monumentos europeus
que manifestamente enunciavam um itinerário. Foi me dito que se tratava da
viagem de um elefante que, no século XVI, exactamente em 1551, sendo rei
D. João III, foi levado de Lisboa a Viena (SARAMAGO, 2008, p. 5).
Pelos comentários que o narrador faz em determinados momentos da trama,
podemos vê-lo como contemporâneo. Vejamos no seguinte trecho a sua atualidade quando ele
1
Essa proposição segue as idéias de Walter Benjamin no ensaio “O narrador. Considerações sobre a
obra de Nikolai Leskov”. Os argumentos da nossa discussão se restringem ao conto A viagem do
elefante.
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se presta a fazer comentários sobre as medidas de tempo utilizadas pelos personagens do
século XVI:
(...) enquanto o cornaca e os que o acompanham, porque não teriam outra
maneira de entender-se, irão continuar a falar de distâncias de acordo com os
usos e costumes do seu tempo, nós, para que possamos perceber o que ali se
vai passando nesta matéria, usaremos as nossas modernas medidas
itinerárias, sem ter de recorrer constantemente a fastidiosas tábuas de
conversão. No fundo, será, como se num filme, desconhecido naquele século
dezasseis, estivéssemos a colar legendas na nossa língua para suprir a
ignorância ou um insuficiente conhecimento da língua falada pelos actores
(SARAMAGO, 2008, p. 38).
Possui ainda A viagem do elefante outro pressuposto da teoria de Benjamin sobre
a narrativa e o narrador, qual seja, a de que a história contada pelo narrador deve estar inserida
na história natural, quer dizer, uma história que lide com a idéia de nascimento e morte, ou
ainda de começo e fim, do homem ou dos eventos históricos. Ora, geralmente as histórias de
Saramago estão inseridas dentro da história natural e com A viagem do elefante não é
diferente. Por exemplo, há a referência à Inquisição e o medo dela por parte das pessoas,
citada tanto pelo narrador como pelas personagens, como podemos ler no seguinte diálogo
entre o rei Dom João III e o seu secretário:
Não sei, meu senhor, se este será o melhor tempo de ir para o céu, Que quer
isso dizer, Vem aí a inquisição, meu senhor, acabaram-se os salvos-condutos
de confissão e absolvição, A inquisição manterá a unidade entre os cristãos,
esse é o seu objectivo, Santo objectivo, sem dúvida, meu senhor, resta saber
por que meios o alcançará, Se o objectivo é santo, santos serão também os
meios de que se servir (...) (SARAMAGO, 2008 p. 17).
Ainda mais, vemos também alusões aos acontecimentos da Reforma protestante e
da posição de simpatia de Maximiliano II pelas novas idéias de Lutero, além de como os
eventos religiosos e políticos da história natural se relacionam com a história narrada.
Observemos como o padre explica para Subhro o porquê da necessidade do “milagre” de o
elefante se ajoelhar em frente da basílica de Santo Antonio:
Porque Lutero, apesar de morto, anda a causar grande prejuízo à nossa santa
religião, tudo quanto possa ajudar-nos a reduzir os efeitos da predicação
protestante será bem-vindo, recorda que ainda só há pouco mais de trinta
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anos foram afixadas as suas nefandas teses às portas da igreja do castelo de
wittenberg e o protestantismo vai alastrando como uma inundação por toda a
europa, Não sei nada dessas teses, ou lá o que seja, Nem precisas de saber,
basta que tenhas fé (...) (SARAMAGO, 2008, pp. 189-190).
Além disso, o narrador para Benjamin encarna uma forma épica em que todas
as histórias se articulam, uma história na outra, como numa espécie de rede. Esse narrador se
assemelha a Scherazade, que imagina uma história dentro da outra nas narrativas de Mil e
uma noites. Não seria esse o caso de Subhro ao contar a origem do deus hindu Ganeixa? Ou
quando dentro dessa história o personagem articula a cosmogonia na percepção da religião
hindu?
Devemos fazer um intervalo aqui e mencionar as idéias de Mikhail Bakhtin,
um autor que abordou em seus estudos uma obra de discurso oral materializado pela escrita.
Os elementos da obra Gargântua e pantagruel, de François Rabelais, são representados pelo
que Bakhtin chamou de “vocabulário da praça pública” (BAKHTIN, 1993, p. 125). Esse
vocabulário foi pouco compreendido e, por isso, distorcido, pela interpretação de autores que
empreendiam uma leitura da obra coerente com as características modernas. No entanto, o
cinismo que Rabelais emprega é essencialmente ligado à praça pública da cidade, ao campo
da feira, à praça do carnaval do fim da Idade Média e do Renascimento, que eram pontos de
convergência de manifestações não-oficiais, lugar em que as vozes marginais circulavam ao
lado dos discursos ligados à ordem, porém a última palavra cabia ao povo.
E o grotesco é um elemento que compõe o vocabulário da praça pública. Por
meio do “baixo” corporal, a zona dos órgãos genitais, o rebaixamento grotesco é aludido.
Assim, o excremento e a urina são elementos capitais das imagens do “baixo” material. Nas
palavras de Bakhtin:
Mas todos os gestos e expressões degradantes dessa natureza são
ambivalentes. A sepultura que eles cavam é uma sepultura corporal. E o
“baixo” corporal, a zona dos órgãos genitais é o “baixo” que fecunda e dá à
luz. Por essa razão, as imagens da urina e dos excrementos conservam uma
relação substancial com o nascimento, a fecundidade, a renovação, o bem
estar. Na época de Rabelais, esse aspecto positivo era ainda perfeitamente
vivo e sentido da maneira mais clara (BAKHTIN, 1993, p. 128).
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Que relação se estabelece com A viagem do elefante a partir disso? Que a obra de
Saramago é marcada por uma multiplicidade de vozes e discursos, numa ficcionalização da
cultura oral. O rebaixamento grotesco acontece quando o elefante Salomão solta seus
excrementos no convés do barco que o levaria a Itália: “(...) na ausência do cornaca, solimão
havia decidido que as tábuas do convés eram o melhor que podia haver para que ali mesmo
fossem depositadas as suas urgências fisiológicas, e, em conseqüência, patinhava literalmente,
num tapete pastoso de excrementos e urina” (SARAMAGO, 2008, p. 169).
Observamos que os excrementos marcam uma sensação de bem estar nesse
momento da narrativa, mas, sobretudo, de renovação também, pois significa que o elefante na
mudança para um novo lugar, longe dos cercados de Belém, não teme nem a renovação de
nome – a pedido de Maximiliano II, Salomão passa-se a chamar Solimão – nem de espaço, a
travessia de barco que alguns desconfiados pensaram que o elefante seria incapaz de realizar.
Ainda mais, essas imagens atuam em conjunto com o riso nesse sistema de concepção do
mundo, como um meio de deslegitimar, de forma grosseira e incisiva, a ordem oficial.
Gostaríamos de finalizar esse artigo aplicando os argumentos de Henriqueta Maria
Gonçalves, expostos no seu texto Encontros e desencontros da literatura tradicional/oral na
literatura escrita.
Para essa pesquisadora, escritor e mundo estão relacionados, de maneira que,
respectivamente, o primeiro não se encontra isolado. Vozes estão a todo o momento
pululando na cabeça do escritor, e a sua escrita demonstra essa suposição. Não se pode
acreditar ingenuamente que o universo de escrita do literato seja constituído sem a presença
dessas vozes. Ao seguir este raciocínio, abrimos portas para compreender que A viagem do
elefante é uma re-escrita em que foi acrescentado algo. Não esqueçamos como ocorre a idéia
de escrever o conto, comentada acima. Assim, de acordo com Gonçalves, podemos entender
que essa obra de José Saramago é um objeto estético “refeito no conflito das vozes interiores
oferecido como objeto original, resultante de uma visão particular do mundo e que se
configura como autêntico e pessoal, a marcar uma presença, uma sensibilidade individual no
seio da Literatura” (GONÇALVES, 2009, p. 155).
Portanto, a retomada de um texto proveniente da tradição oral, como é o caso do
nosso objeto de estudo, demonstra uma preocupação reprodutora das vozes que o veem indo
em direção ao abismo do esquecimento. Por isso, as narrativas de Saramago são preenchidas
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com provérbios, expressões idiomáticas e metáforas, pois é assim que ele expressa essas
vozes antigas. Contudo, a atitude de registro e cautela dessas vozes por parte do autor não
deve ser confundida como uma mera transcrição, pois Saramago consegue criar um objeto
esteticamente original ao ressignificá-las e, assim, expressar uma visão particular de mundo
que o seu estatuto de criador requer. Afinal, é por meio de outros textos que o texto da
tradição é contestado e redimensionado.
Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. O vocabulário da praça pública na obra de Rabelais. In: ______. A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. 3. Ed,
Trad. Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec/Brasília: Editora da UnB, 1993.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. Trad: Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
_______. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad: Sergio Paulo Rouanet. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DUARTE, Helena Margarida Vaz. Alguns aspectos da literatura tradicional/oral/popular nos
romance de José Saramago. In: Narrativas em Metamorfose: abordagens interdisciplinares.
BLAYER, Irene Maria F; FAGUNDES, Francisco Cota (orgs.). Cuiabá: Cathedral
Publicações, 2009.
GONÇALVES, Henriqueta Maria. Encontros e desencontros da literatura
tradicional/oral/popular. In: Narrativas em Metamorfose: abordagens interdisciplinares.
BLAYER, Irene Maria F; FAGUNDES, Francisco Cota (orgs.). Cuiabá: Cathedral
Publicações, 2009.
PELEN, Jean-Noël. Memória da literatura oral. A dinâmica discursiva da literatura oral:
reflexões sobre a noção de etnotexto. Trad. Maria T. Sampaio. In: Projeto História – Revista
do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História (PUCSP), v.22, pp. 49-77, 2001.
SARAMAGO, José. A viagem do elefante: conto. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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EXPERIMENTALISMO E (NÃO) ORALIDADE COMO REPRESENTAÇÃO DA
VIOLÊNCIA EM O PARAÍSO É BEM BACANA
Moacir Dalla Palma84 (Prof. Dr.-FAFIPAR/FUNDAÇÃO ARAUCÁRIA)
André Sant’Anna é da nova geração de escritores brasileiros, sua primeira obra
publicada foi Amor, em 1998. No ano seguinte lançou Sexo, obra que confirmou a busca por
uma estética experimentalista, na qual importa muito mais o estereótipo das personagens do
que a construção da trama. Nesse sentido, interessa muito mais o vazio existencial de
personagens perdidas em mundo de valores degradados do que a ação. As obras de Sant’Anna
ganham valor, exatamente por essa busca constante de representar o homem em meio a
situações que o conduzem a agir como um autômato. Sendo assim, as personagens de André
Sant’Anna são incapazes de se ajustar, ou melhor, de entender o meio social em que estão
inseridas. Ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, são conduzidas pela ideologia do senso
comum das massas. O que se quer evidenciar é o fato de as personagens não possuírem uma
identidade própria, elas são apenas o reflexo (estereótipo?) de uma estrutura social
fragmentada.
Isso talvez explique a opção de André Sant’Anna pelo experimentalismo na
construção de suas narrativas. Tal opção seria uma tentativa de exprimir, por meio da própria
estruturação textual, a angústia do homem contemporâneo, perdido em meio às mais variadas
possibilidades de identificação. Sobre essa situação, vale destacar o ponto de vista de Ronaldo
Lima Lins em Violência e Literatura, quando está discutindo o que ele denomina de “um
novo personagem: o homem violento”:
É verdade que, considerada como um todo, a literatura faz bem mais do que
refletir sobre o problema da consciência ou retratar a tragédia de um homem
incapaz de ajustar-se [...]. A representação da realidade [...] implica numa
totalidade de percepção à qual não escapa a comunicação em si, na forma
como se dá em nossos dias, e a violência do impasse no qual se situa a
inteligência em nossa época. É desta maneira que, num romance
fragmentado em sua composição formal, como é fragmentado o homem das
ruas, seja ele um banqueiro ou um assaltante, existe uma constatação, uma
crítica e a possibilidade de uma saída, ainda que, em certos casos,
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semelhante saída se mostre tão tênue quanto a realidade do trabalho criativo.
(LINS, 1990, p. 48).
Como se vê, são assim os seres que aparecem nas histórias de André Sant’Anna.
Em Sexo, por exemplo, o fato de nomear as personagens com as características que as
destacam revela uma preocupação formal de enquadrá-las em determinada categoria social e,
além disso, destacar o comportamento autômato desses seres. Para evidenciar tal situação,
basta pensar no capítulo em que o narrador descreve as relações sexuais entre “O Jovem
Executivo de Gravata Vinho com Listras Diagonais Alaranjadas” e sua “Noiva Loura,
Bronzeada Pelo Sol”, e entre “O Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes
Vermelhos” e sua “Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol”. Note-se, portanto, que nas
características (ou nomes) das personagens já se tem uma semelhança que direcionará suas
ações. Ambos resolvem ser agressivos na relação sexual com a noiva porque leram o artigo
“É dos Fortes que Elas Gostam Mais”, publicado na revista Ele & Ela. Tal artigo dizia “que
uma relação sexual poderia ganhar um molho extra quando o homem agia de modo rude,
primitivo e másculo, com a parceira sexual.” (SANT’ANNA, 2001, p. 119), e “que boa parte
das mulheres gostava de se sentir dominada por um homem viril durante a relação sexual.”
(SANT’ANNA, 2001, p. 119). Sendo assim, os dois “jovens executivos” colocam em prática
aquilo que leram, sem ao menos refletirem se era aquilo que suas noivas esperavam deles.
Essas duas personagens agem de acordo com um padrão ditado pelo meio de
comunicação de massa, como se isso fosse a verdade a ser seguida. Elas nem percebem que o
artigo da revista se referia a “boa parte das mulheres” e de que suas noivas poderiam não
gostar de um homem rude. Nesse sentido, vale destacar como André Sant’Anna constrói o
capítulo para destacar o comportamento idêntico dos “jovens executivos” e também de suas
noivas. Cada parágrafo descreve uma ação realizada, mas um parágrafo descreve a ação de “O
Jovem Executivo de Gravata Vinho com Listras Diagonais Alaranjadas” e o seguinte uma
ação idêntica de “O Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos”,
acontecendo a mesma coisa com as ações realizadas pelas noivas. Tanto a situação é idêntica
entre os casais que, ao final do capítulo e da história dessas personagens, as noivas se separam
dos respectivos noivos “jovens executivos” e passam a namorar o outro, agora vistos como
homens sensíveis e educados. Mas, todos continuam com o mesmo comportamento autômato.
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Outro exemplo de narrativa de André Sant’Anna, que segue esta inovação na
forma de narrar é o conto “A Lei”, publicado na coletânea Contos Cruéis: as narrativas mais
violentas da literatura brasileira contemporânea. Nesta narrativa curta, a opção é pela primeira
pessoa do discurso, o narrador é um policial que resolve relatar as atrocidades cometidas por
ele e seus colegas de trabalho. Por isso, percebe-se todo o trabalho de construção da
linguagem para revelar a forma de se expressar de um policial de nível intelectual baixo,
embora ele demonstre certa consciência a respeito da violência de seus atos e do uso da
linguagem. Mesmo assim, o texto se desdobra por meio de um discurso que desvela um
padrão de comportamento autômato:
Mas a gente, que é, que somos, animal, burros, sente mais tesão, mesmo, é
quando a gente pode dar porrada em mulher. Aí é tesão mesmo, mesmo
quando a mulher é feia, é mendiga. Porque, nesse caso, tem a buceta
também, onde a gente pode enfiar umas coisas, poder enfiar o cano do
revólver, pode enfiar garrafa quebrada, pode enfiar faca, enfiar e tirar, enfiar
e tirar, enfiar e tirar e ir rasgando tudo e fica saindo sangue e gente, que é a
polícia, fica rindo. [...] De vez em quando, até dá pra fazer essas porra com
mulher que não é mendiga também. [...] Tem umas putas que são muito
gostosas e são sozinhas no mundo, sem ninguém para protegê-las, para
denunciar a gente. Aí, a gente, nós, aproveitamos, aproveita. Junta uns cinco,
burros, maus, polícia, e é a maior sacanagem. Todo mundo, os cinco, nós,
come, comemos, comemos, a puta. Um põe o pau na buceta da puta, o outro
no cu, outro na boca (Pra botar o pau na boca, tem que ser no começo da
sacanagem, quando a mulher ainda está com medo e a gente pode ameaçá-la
– gramática perfeita – porque, no final, a mulher vai estar tão fodida, tão sem
nada a perder, que, para ela, aquela piranha, morder o pau da gente não custa
nada e nem adianta mais ameaçá-la com mais porrada, mais facada na
boceta, mais tortura, mais nada, porque ela, aquela vaca, não vai estar mais
sentindo nada, nem dor, nem medo, nem nada, nada, nada, nada, nada, nada,
nada... nada. Aí ela morde mesmo, na maior), o outro no sovaco, outro no
nariz. Você já enfiou o seu pau na narina de uma mulher? Eu já, porque eu
sou da polícia. (SANT’ANNA, 2006, p. 42-43)
Apesar de extensa, a citação serve para ilustrar o modo peculiar de construção da
narrativa utilizado por André Sant’Anna, o qual opta pelo experimentalismo na elaboração
discursiva, para desvelar seres completamente submetidos a padrões de comportamento
estabelecidos pelo meio que os cercam. Além, ainda, de uma opção pela tentativa de
estabelecer as marcas da oralidade no texto narrativo. Fato que se percebe na elaboração
discursiva da personagem-narrador e, principalmente, quando ele faz menção ao narratário:
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“Você já enfiou o seu pau na narina de uma mulher?”. Tal fato deixa evidente a tentativa de
fazer parecer que a história está sendo narrada oralmente para um interlocutor.
Após essa breve explanação acerca do estilo de André Sant’Anna, necessário se
faz iniciar as discussões a que se propõe este trabalho. O objetivo é analisar O Paraíso É Bem
Bacana, de 2006, sob a perspectiva de que o autor se utiliza do experimentalismo na
elaboração narrativa e da falta de domínio da oralidade da personagem principal para expor a
violência na contemporaneidade. A obra narra a história de um menino, Manoel dos Anjos,
denominado até pelo narrador de Mané, que se destacava como jogador de futebol na seleção
dente-de-leite da cidade de Ubatuba, foi levado para o Santos e depois para o Hertha Berlin na
Alemanha, pela qualidade de seu futebol.
Contudo, a história é calcada no fato de a personagem não saber aproveitar as
oportunidades que a vida lhe ofereceu, pois não tinha a mínima noção do que estava
acontecendo em sua volta. Mané é um ser fechado em si mesmo, não tem qualquer
possibilidade de se relacionar com o mundo, seus pensamentos estão o tempo todo voltados
para a fantasia de realização sexual. Algo que não acontece porque seu medo de se relacionar
é muito maior do que o desejo sempre latente, pois seu maior problema é a dificuldade de se
expressar. Dificilmente Mané consegue elaborar uma única frase completa e com algum
sentido, além de não conseguir compreender aquilo que lhe é falado, seja, inclusive, uma frase
simples. Tanto que, em Berlim, Mané recebe do companheiro de equipe, Hassan, um folheto
sobre o Islamismo e pede para Uéverson, atacante do time principal do Hertha que chegou na
Alemanha junto com Mané, traduzir o que está escrito. O grande problema é que Uéverson,
pela dificuldade de traduzir o texto, conta histórias que ouviu sobre o Islã. Mané, então, se
deixa levar pela ideia islâmica de que se fosse mártir teria lugar garantido no paraíso, ao lado
de setenta e duas esposas virgens. Com isso, acaba explodindo uma bomba de baixo poder de
destruição amarrada ao próprio corpo, sofrendo graves lesões que o deixam em estado de
coma. Por isso, diversas partes da narrativa são as aventuras sexuais narradas pelo próprio
Mané, no que ele pensa ser o paraíso, mas que não passa de puro delírio.
Dessa maneira, quanto ao caráter experimental na construção da narrativa,
percebe-se de imediato que a narrativa se estrutura de forma diferenciada de qualquer outra
até então produzida. Num primeiro momento, poder-se-ia até pensar que o modelo seria
extraído da técnica de construção da narrativa cinematográfica. No entanto, logo isso é
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descartado pela presença constante de um narrador, não que o cinema já não tenha se utilizado
dessa técnica, mas esse narrador dificilmente poderia ser extraído do cinema pelas escolhas de
linguagem que faz para narrar alguns fatos da vida da personagem. Ele faz uso constante de
palavrões, principalmente dos termos “filho-da-puta” e “viado”. Além do fato de utilizar o
tempo todo a expressão “Mas não” que, ao mesmo tempo, nega e reafirma as afirmações
anteriores, criando uma ambiguidade discursiva que pode confundir o leitor. A título de
exemplo, veja-se:
O joelho do Mané ainda não estava completamente bom.
Mas não.
O representante do Santos já estava naquela filha-da-puta de cidade,
tentando acertar com a puta da mãe do viado filho-da-puta do Mané a ida
dele, do viado filho-da-puta do Mané, para a Vila Belmiro. (SANT’ANNA,
2006, p. 96)
Mesmo assim, a estrutura da narrativa tem semelhança maior com a estrutura de
um documentário, tendo em vista as personagens, que de algum modo tiveram contato com a
personagem principal, relatarem, como em um depoimento, fatos acerca de sua vida. No
entanto, aqui também há problemas, pois os relatos das personagens são transcritos sem
nenhuma escolha de palavras. Isso acontece porque nos depoimentos das personagens é
respeitado o modo de se expressar de cada uma delas, dando naturalidade às falas. Tal
condição, evidencia a forte presença da oralidade no discurso narrativo. Mas, ao mesmo
tempo, expõe uma linguagem carregada de termos obscenos e ofensivos. Fato evitado na
estrutura dos documentários. Nota-se, com isso, que a base construtiva do discurso narrativo
em O Paraíso É Bem Bacana é a do documentário, todavia há uma inversão de valores
quando da elaboração ideológica. Veja-se, por exemplo, a inversão dos valores familiares em
um dos depoimentos da mãe de Mané:
Não ia ser nada mesmo. Nada. É um bostinha, filho daquele bostão que me
comeu e fez ele. Comeu, não. Estrupou. O pai era burro, eu sou burra e ele é
burro. Não quero nem saber. Ele também não quer nem saber de mim, nem
da irmã. Foi pro estrangeiro, sumiu, não levou nós e agora, burro, foi fazer
besteira, se meter na confusão dos outros. Se machucou porque quis. E eu
vou beber, eu quero mesmo é beber até morrer, porque eu já bebi tudo e
fiquei meio maluca, acabada. [...]. E tomara que a Brigite, a minha filha, vira
puta pra ganhar uns dinheiro [...]. Novinha assim, ela pode ganhar uns
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dinheiro [...]. Eu queria ser puta, mas eu sempre fui muito feia mesmo,
assim, horrível, sem dente. Só aqueles dois mesmo, bêbado, pra me estrupar
e fazer esses filho que não serve pra nada ni mim. Ronaldinho porra
nenhuma. O Mané virou só Mané mesmo. (SANT’ANNA, 2006, p. 28)
Não obstante, o documentário normalmente se caracteriza por uma história que
remonta a grandes personalidades ou situações históricas relevantes. No caso da narrativa de
André Sant’Anna, a história é de um menino pobre, negro e jogador de futebol. Ele até
poderia ter se transformado em personalidade do esporte, pois o narrador e diversas
personagens, as quais dão seus depoimentos, esclarecem que Mané era um excelente jogador
de futebol. Contudo, como a própria mãe evidencia no trecho acima, não soube aproveitar a
oportunidade por não saber conduzir a própria vida, deixando-se influenciar por uma fantasia
criada a partir da má compreensão do que os outros lhe falavam. Esse é outro fator
interessante na estruturação da narrativa. Mané passa a acreditar nas histórias contadas por
Uéverson sobre o paraíso islâmico, principalmente na parte em que o mártir de uma causa
teria setenta e duas virgens como esposas. Por isso, grande parte do romance são as
transcrições do delírio de Mané que, depois de explodir uma bomba atada ao próprio corpo,
fica gravemente ferido e, em seu delírio, se vê no paraíso, vivenciando os prazeres sexuais
que nunca teve coragem de experimentar quando estava saudável. Sendo assim, rompe-se
novamente com a estrutura padrão do documentário, tendo em vista ser o próprio Mané quem
narra suas aventuras no suposto paraíso, como se o leitor tivesse condições de ler os
pensamentos da personagem:
É aqui. O Paraíso existe e é aqui. O Paraíso existe e é este. Não é aquele do
Deus. O Paraíso é do Ala, que é Deus, mas outro deus. É o Deus que o
Hassan me ensinou e por isso eu pôdi vim pra cá quando eu morri. E o certo
é esse, é ser sem mulher, sem trepar nelas lá na vida e agora, depois que ser
bom e não trepar nas mulher, pode trepar na hora que quiser, com todas as
mulher que a gente gosta, até a Pámela, pode fazer tudo que tem nos filme
do Jeipom, é por isso que é bom. (SANT’ANNA, 2006, p. 57)
Além desses fatores, que caracterizam o experimentalismo de André Sant’Anna
na elaboração da narrativa, pode-se destacar, ainda, os diálogos que ocorrem ao longo do
romance. Pois, há na narrativa o relato dos acontecimentos no quarto de hospital onde está
internado o personagem principal. É a partir desses fatos que o leitor toma conhecimento a
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respeito da verdadeira situação do Mané, o qual está totalmente desfigurado pela explosão da
bomba, tendo perdido diversos membros do corpo, inclusive os órgãos genitais. Veja-se o que
um músico brasileiro, internado no mesmo quarto de hospital por causa de uma overdose de
entorpecentes, afirma sobre a situação do Mané: “O cara não tem mais braço, não tem uma
das pernas, não tem o couro cabeludo, tem um buraco sangrento no lugar do olho direito, a
orelha virou um monte de carne retorcida. Caralho! O cara não tem mais pau, não tem mais
saco! Eu vou vomitar.” (SANT’ANNA, 2006, p. 20)
Os diálogos acontecem, desta maneira, entre esse músico brasileiro, colocado no
mesmo quarto de Mané estrategicamente, a enfermeira, o enfermeiro, e os agentes que
investigam os fatos que levaram à explosão da bomba. O objetivo desses diálogos é descobrir
a que grupo terrorista pertence a personagem principal, especialmente quando se dá entre os
agentes e o músico brasileiro. No entanto, fica evidente na narrativa que o garoto não pertence
a qualquer grupo terrorista, explodindo a bomba única e exclusivamente com a intenção de
atingir o paraíso descrito por Uéverson. Tanto que detona a bomba em si mesmo no estádio do
Hertha Berlin, em dia que praticamente não tem público, não atingindo ninguém além dele
próprio. Mesmo assim, os agentes passam a narrativa inteira tentando descobrir quais foram
as intenções de Mané e a que grupo ele pertence, não chegando a conclusão alguma. Há
também, na narrativa, diálogos entre Uéverson, Mnango – um camaronês companheiro de
equipe de Uéverson – e Mechthild – adolescente alemã apaixonada pelo Mané. A maioria dos
diálogos entre eles é sobre a situação de saúde de Mané e as consequências do ato que ele
praticou.
Para finalizar essa primeira parte, resta afirmar que o romance se estrutura por
partes independentes, mas todas relacionadas ao personagem principal da narrativa. A
construção do texto, portanto, se dá de tal forma que passado, presente e futuro se confundem,
como se todos os eventos narrados fossem do presente da personagem, não há uma ordem a
ser seguida. Sendo assim, a narrativa se inicia com a entrada do narrador relatando fatos do
início da vida escolar de Mané, uma situação que marcará seu destino porque ele foge de uma
briga. Na sequência, sem explicação alguma por parte do narrador, tem-se a fala de Mané
sobre suas experiências no “paraíso”, que mais tarde o leitor descobrirá ser o delírio da
personagem em coma. Desta maneira, depois vem a fala de Uéverson, da enfermeira,
novamente o delírio de Mané, do músico brasileiro, volta o narrador, o diálogo entre a
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enfermeira e o enfermeiro, o diálogo entre o músico brasileiro e os enfermeiros, num processo
interminável de depoimentos das personagens, de diálogos, de delírios de Mané, de entradas
do narrador, como se fossem todas elas partes independentes e incoerentes. Nesse sentido,
para entender o todo da história é necessário que o leitor atente-se para as mais variadas partes
e perceba nelas uma ligação fundamental com a história de vida do garoto de onze anos de
Ubatuba. Com quatorze anos idade, o ele é levado para o Santos Futebol Clube, time de
futebol de expressão nacional, onde é descoberto por um olheiro internacional que o leva para
o Hertha Berlin, em Berlim, na Alemanha, já com mais ou menos dezesseis ou dezessete anos
de idade. Em meio a isso, têm-se as mais variadas situações que demonstram que o menino
tem sérios problemas psicológicos, pois suas dificuldades de relacionamento com as outras
pessoas são evidentes. Ele é um garoto extremamente tímido, medroso e com problemas para
se expressar e compreender o que os outros lhe dizem.
A partir disso, pode-se, então, iniciar a discussão da segunda parte deste trabalho,
a dificuldade de Mané de se comunicar como fonte geradora de violência na narrativa. Essa
personagem sofre diversas formas de violência ao longo da narrativa e, ao final, acaba todo
desfigurado em uma cama de hospital por causa de uma auto-violência, a qual ele pensa ser a
sua redenção. Todas as violências sofridas pelo Mané estão relacionadas com o fato de não
conseguir se expressar adequadamente e de não compreender o que lhe é enunciado pelos
outros. A primeira cena não está necessariamente vinculada à ideia de que o Mané tem
dificuldades de comunicação. Mas, como assinalado antes, é um fato importante para se
entender o destino da personagem e suas dificuldades ao longo da história. O narrador relata
que na saída da escola “o gordinho filho-da-puta”, incentivado por um grupo de meninos
liderados por Levi, tenta bater no Mané. Este, ingenuamente, pensa que alguém do grupo que
os cercava iria separar a briga, no entanto os meninos queriam ver um bater no outro. Quando
Mané percebe que a briga não será separada e que não tinha motivos para bater no
“gordinho”, ele encontra um espaço entre o grupo e foge, “para se tornar um viado filho-daputa” (SANT’ANNA, 2006, p. 8). Com isso, Mané passa a ter uma vida extremamente
conturbada, porque se transforma em motivo de chacota e passa a ser perseguido pelo grupo
do Levi:
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Numa cidade filha-da-puta de pequena como aquela, um moleque bobão
como o Mané [...], que arrega numa briga na saída da escola, passa a ter uma
vida filha-da-puta.
O Mané arregou para o gordinho filho-da-puta e o filho-da-puta do Levi
decidiu que o Mané era viado e filho-da-puta. Viado, porque o Mané tinha
arregado para o gordinho filho-da-puta. Filho-da-puta, porque a mãe do
Mané era largada e bebia pinga.
Os outros filhos-da-puta todos acataram a decisão do filho-da-puta do Levi.
[...].
Numa cidade pequena filha-da-puta como aquela, todo filho-da-puta precisa
ter um filho-da-puta para chamar de viado. (SANT’ANNA, 2006, p. 8-9)
Sendo assim, Mané não terá mais sossego e passa a ser perseguido
sistematicamente pelo grupo de Levi, mesmo quando se transforma no principal jogador de
futebol do time dente-de-leite de Ubatuba. Tal fato era para fazer com que os outros meninos
respeitassem Mané. Contudo, acontece justamente o contrário, diversas vezes eles tentam
currar o garoto, além de agredi-lo na volta da escola para casa e de criar situações vexatórias
que o deixam cada vez mais fechado em si mesmo, pela vergonha e pelo medo que tomam
conta de Mané. Veja-se, por exemplo, o que acontece em uma partida na qual o Mané joga
bem:
O Mané só não entrou com bola e tudo porque teve vergonha.
Mas não.
O Mané só não entrou com bola e tudo porque ficou com medo de tomar um
monte de porrada dos filhos-da-puta do time adversário e até mesmo dos
filhos-da-puta do seu próprio time.
Quando o Mané fazia um golaço, ninguém corria para abraçá-lo. Quando o
Mané fazia um golaço, ele ganhava era uns cascudos na cabeça.
[...].
Depois do jogo, o Mané entrou no vestiário segurando bem firme o calção, já
preparado para a tentativa de estupro que sempre acontecia quando ele, o
Mané, fazia uma grande partida. (SANT’ANNA, 2006, p. 73)
Mas, a pior de todas as situações vexatórias, a mais humilhante de todas as
humilhações sofridas pelo menino, acontece quando, em sua despedida de Ubatuba, ele
resolve convidar a Martinha e seu namorado, Toninho Sujeira, para fazer um lanche no
Império – lanchonete na qual o Mané adorava comer o lanche “americano no prato” – porque
havia conseguido certa quantia de dinheiro e queria agradar a menina pela qual estava
apaixonado. Todavia, ameaçado pelo Levi, aceita pagar o lanche para todos da turma e, como
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sempre faziam, os pretensos amigos comem e bebem além da quantia de dinheiro que o Mané
possuía. Carioca, o proprietário da lanchonete, decide que Mané deve ser castigado por não
conseguir pagar a conta. Ajudado pelo Levi e por dois policiais militares, obriga o menino a
comer pão francês com fezes. Mané até tenta fugir, entretanto os policiais o seguram e o
entregam ao Carioca:
Tinha um carro de polícia encostado bem na porta do Império e o Mané bem
que podia pedir uma ajuda aos dois PMs que ocupavam a viatura, onde
estava escrito “Policial Militar: Amigo de Fé, Irmão Camarada”.
Mas não.
O Mané tentou escapar saindo em disparada.
Mas não.
O filho-da-puta do amigo de fé, irmão camarada segurou o Mané pelo pulso
e entregou ele, o Mané, para o filho-da-puta do Carioca, que logo justificou,
muito justo, o que estava para acontecer com o Mané:
“Ta tentando fugir sem pagar a conta.”
A dupla de PMs, muito justa, achou justo que o Levi saísse do banheiro com
uma fatia de pão toda molhada por um líquido marrom esverdeado e a
enfiasse na boca do Mané, goela abaixo.
[...]
Enquanto o filho-da-puta do Carioca segurava o Mané, sob o olhar justo dos
dois PMs, o filho-da-puta do Levi enfiou na boca dele, do Mané, a segunda
fatia de pão com bosta, mijo, cuspe e tudo quanto é tipo de merda que fica na
privada fedorenta de um banheiro imundo de uma lanchonete suja de uma
cidade pequena filha-da-puta. (SANT’ANNA, 2006, p. 110-111)
Apesar disso, Mané se destaca como jogador de futebol. Tanto que o treinador do
time da cidade de Ubatuba resolve convocá-lo para a seleção dente-de-leite que enfrentaria o
Santos no aniversário da cidade, mesmo ele não sendo o menino que representava o lema do
treinador: “bom de bola, bom na escola”. Desde o princípio da narrativa e neste momento,
especificamente, constata-se que a personagem principal, de certa maneira, é privilegiada pela
sorte. No início, porque o narrador afirma que Mané esperava que algum garoto, que ia até
sua casa jogar futebol de botão no jogo que ganhou no bingo da Igreja, podia defendê-lo dos
insultos e agressões que sofria depois de ter fugido da briga com o “gordinho”. Note-se que o
jogo de futebol de botão foi ganho em um bingo, o que caracterizaria a sorte do menino. Neste
instante da narrativa, novamente isso fica caracterizado, pois os conselheiros decidem
convocá-lo para a seleção da cidade mesmo não sendo um bom aluno. Esse fato dará
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condições a Mané de ir treinar em um grande time de futebol, pelo que ele realizará na partida
contra o time infantil do Santos. Atente-se para a afirmação do narrador:
Bom de bola, qualquer filho-da-puta, por mais filho-da-puta que fosse, sabia
que o Mané era.
Mas não.
O Mané era péssimo na escola.
Mas não.
Numa reunião entre o Mário Telles [o treinador], o Ciro Pai-de-Todos e os
representantes da Associação Comercial de Ubatuba que financiavam a
categoria dente-de-leite ficou decidido que, no caso do Mané, seria
necessário fazer uma certa vista grossa para o boletim sem assinatura dos
pais ou responsável, todo cheio de notas vermelhas. (SANT’ANNA, 2006, p.
8-9)
Sendo assim, tudo parece se encaminhar para um destino feliz para a personagem.
Tendo em vista essa convocação possibilitar a ida de Mané para o Santos Futebol Clube e,
depois, para o Hertha Berlin, na Alemanha. No entanto, como se ressaltou antes, Mané não
tem a mínima noção a respeito das coisas que estão à sua volta. Isso se dá porque ele não
consegue elaborar racionalmente qualquer pensamento, seja o mais simples possível. Essa
dificuldade está visível desde o princípio da narrativa, Mané age instintivamente em todas as
situações de sua vida e qualquer coisa que exija dele uma elaboração mental transforma-se em
problema insolúvel. Note-se que isso pode ser consequência da desestruturação familiar, já
que só tem a mãe, uma alcoólatra inveterada que não se preocupa com o filho, como se vê nos
boletins escolares sem assinatura. Aliado a este fato, Mané não sabe quem é o pai e sofre as
mais diversas atrocidades por causa disso. Além da desestruturação familiar, outro fator
decisivo é a violência sofrida dos colegas de escola e de futebol. Principalmente porque isso
acontece no momento de vida em que o garoto está em processo de formação da
personalidade.
Mané transforma-se, então, em um indivíduo tímido, medroso, que vive no mundo
da fantasia e não tem a mínima noção da realidade que o cerca. São os instintos mais básicos
que conduzem suas ações, mesmo quando está jogando futebol, pois suas grandes jogadas não
são pensadas e elaboradas, é puro impulso. Tanto é assim que, quando já está no Santos, deixa
de jogar bem porque o instinto de sobrevivência é mais forte do que aquele que o faz jogar
bem. Quando chega em Santos, Mané é escalado no time de reservas e é ameaçado pelo
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zagueiro do time titular, após a primeira partida na qual realiza diversos dribles
desconcertantes. Desta forma, passa a não desenvolver as jogadas que fizeram dele uma
promessa do futebol por medo de sofrer agressões do zagueiro. Mané só volta a jogar bem
depois que é escalado no mesmo time do tal zagueiro, novamente num golpe de sorte, pois é
por intermédio de um senhor, o qual acompanhava todos os treinos do time do Santos e
percebe que o menino está com medo do zagueiro, que o treinador resolve escalar Mané no
time titular.
Necessário se faz, destacar a tentativa do clube paulista de ajudar o menino, tendo
em vista ele ser encaminhado para a psicóloga do clube, a qual se esforça por desenvolver um
diálogo com Mané. No entanto, seus esforços são em vão, porque ele não entende
absolutamente nada do que a psicóloga lhe fala e não consegue expressar frases minimamente
entendíveis. Note-se, por exemplo, uma das tentativas da psicóloga de conversar com Mané
para entender como funciona a mente dele, nessa vez o garoto até desandou a falar, mas nada
coerente e, na maioria das vezes, sem entender o que a psicóloga perguntou:
“Olha, Mané: o tempo até já acabou, mas a gente podia aproveitar que hoje
você está falando mais, pra gente entender o que se passa na sua cabeça.”
“...”
“Então você brincou com a Martinha. Mas você fez sexo com ela também?
Fez... como eu vou dizer?... Você colocou o seu, o seu, você sabe... Você foi
até o fim?”
“Foi no quarteirão inteiro, dando voltinha. O Levi falou que eu não fiz nada,
mas eu fiz, sim, nos peito dela, da Martinha.”
“Mas houve penetração?”
“...”
“Meu Deus. Mané, você sabe o que é sexo?”
“...”
“Sexo é quando o homem coloca o pênis dele na vagina da mulher.”
“...”
“Claro que você não sabe o que é pênis, o que é vagina, o que é penetração.
Então, vamos lá. Mané, você comeu a Martinha?”
“Comeu, eu paguei tudo, paguei lanche, paguei sanduíche e a Martinha falou
ai ló viú pra mim e eu dei uma porrada no Toninho Sujeira que queria ficar
namorando a Martinha, mas é eu que é namorado da Martinha.”
(SANT’ANNA, 2006, p. 230-231)
Como se vê, Mané tem uma enorme dificuldade de se expressar, suas elaborações
mentais são desconexas e muitas vezes não estão relacionadas com o que lhe foi perguntado.
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É a psicóloga que vai resumir, numa conversa com o técnico do time, como funciona a mente
do Mané, evidenciando que ele é totalmente impulsivo e age basicamente por instinto:
“Do ponto de vista psicológico, o Mané é um amontoado de problemas.
Nunca tive um paciente tão primitivo. Bom... aí eu nem sei se o problema é
psicológico mesmo, ou se tudo isso é fruto de ignorância, da pobreza, da
falta de educação. Eu já vi muitos desses meninos vindos de ambientes
miseráveis, meninos que passaram fome na infância até. Mas o Mané, de
todos, é o mais atrasado. O mais primitivo mesmo. Ele não consegue
elaborar um pensamento que seja.” (SANT’ANNA, 2006, p. 231)
Se a situação já era complicada para o Mané no Brasil, imagina-se no que se
transforma quando chega na Alemanha. O garoto não sabia se expressar nem na língua
materna, em alemão então as coisas ficam ainda mais complexas. Talvez, por isso, Mané se
agarre à amizade com Uéverson, atacante profissional que foi transferido do Flamengo para o
Hertha Berlin. A amizade se concretiza porque Uéverson trata o menino com certa atenção no
voo, pois percebe que ele está desesperado, acalmando-o. Já em Berlim, Uéverson se
transforma numa espécie de protetor do Mané, tentando de todas as formas ajudá-lo a se
relacionar melhor com as pessoas. Entretanto, isso só serve para incentivar mais ainda as
fantasias do menino. Uéverson é a caricatura de diversos jogadores de futebol que vão para a
Europa e perdem a cabeça, fazendo festas regadas a bebida e orgia sexual. Nesse sentido, para
Uéverson o problema do Mané era falta de sexo e, se ele perdesse o medo de se relacionar
sexualmente com alguma mulher, teria todos os seus problemas resolvidos. No primeiro
depoimento de Uéverson evidencia-se o que ele pensa a respeito dos problemas do Mané:
Tadinho do Mané. Moleque, moleque. Porra, dezessete ano. Ele só precisava
comer uma buceta, caralho. A gente levava ele nas parada da night, ele
ficava olhando pras gata com aquela cara de mamãe-eu-quero, mas morria
de medo. Eu até achei que o Mané era viado, mas não era não. O Mané era é
envergonhado. Era só ver uma gostosa que ele já começava a suar, podia
estar vinte abaixo de zero que ele ficava todo suado. E as gata dava tudo em
cima dele. Aqui não é que nem no Brasil, não. Aqui, preto faz o maior
sucesso, caralho [...]. Já comi umas de quinze, dezesseis aninho. Tudo
querendo conhecer o tamanho da jeba do negão. Mas o Mané é mané
mermo. Em vez de comer as loirinha, foi se meter com aquela galera. Eu
avisei pro cara. O pessoal aqui gosta de negão, mas turco não come
ninguém. Até come aquelas mocréia deles, mas as gostosinha, as lourinha
rastafári... ai, meu Deus, cada bucetinha... Eu não podia imaginar que ele ia
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levar aqueles folhetos tão a sério. O Mané era muito burro, acreditava em
tudo o que a gente falava. Pô, será que eu tive culpa? Não... eu só tava sendo
psicólogo dele, que o moleque tinha problema psicológico. Eu falei pra ele
que eu não acreditava em nada daquelas parada. (SANT’ANNA, 2006, p.
11)
Percebe-se aí, a descrição de quais são os verdadeiros problemas do Mané, sua
dificuldade de se expressar, aliada à falta de compreensão do que os outros lhe dizem,
revelam uma mente sem a mínima estrutura psicológica para conviver em sociedade, pois
viver no meio social exige, pelo menos, certa capacidade de se fazer entender e de entender o
que os outros enunciam. Além disso, na fala de Uéverson revela-se também o maior drama da
vida da personagem principal: o desejo sexual. Já se afirmou aqui que Mané é uma
personagem instintiva, impulsiva, incapaz de racionalizar qualquer situação em que está
envolvido. Por conseguinte, seria lógica sua fixação pela realização sexual, o instinto mais
básico do ser humano. Isso se revela, durante a obra inteira, pelo desejo incontrolável que
toma conta do garoto no contato com qualquer mulher minimamente bonita. Mas, esse desejo
fica no nível da fantasia, porque o medo e a insegurança são mais fortes do que o desejo.
Nesse sentido, Mané, que já não tem condições de verbalizar seus pensamentos
para qualquer pessoa, não consegue falar ou se expressar diante de uma mulher que lhe
desperta desejo. Sendo assim, diversas são as passagens em que o narrador descreve as
fantasias sexuais de Mané ao se masturbar. Tudo começa na infância, com a foto de uma
mulher nua em uma revista erótica que ele furtou de uma banca, tal mulher será uma das suas
setenta e duas esposas virgens do delírio. Depois, são diversas as mulheres, reais ou fictícias,
que serão fonte de inspiração às orgias masturbatórias do garoto. Dentre elas estarão a
psicóloga do Santos, a repórter de televisão do programa esportivo, a professora de alemão
contratada pelo Hertha Berlin, atrizes das novelas de televisão, animadoras de torcida de outra
revista erótica, Martinha, a primeira paixão de Mané, e Mechthild, a adolescente alemã
apaixonada pelo Mané.
Não é sem razão, portanto, que Mané se deixa levar pelas imagens do paraíso
islâmico que cria em sua mente a partir das histórias contadas por Uéverson. Como Mané não
tem coragem e suporte psicológico para vivenciar os desejos que o consomem, resolve
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explodir uma bomba no próprio corpo para conquistar o paraíso elaborado em sua mente
perturbada:
É setenta e duas. E elas vêm vindo, tudo limpinhas, muito bonitas, elas têm
tanto amor ni mim [...] e elas fica agora pegando no meu pinguelo e fica
fazendo carinho assim com as mão e elas são tão limpinhas que é tudo
virgens [...], que nem o Uéverson leu e agora eu nem preciso falar nada, nem
preciso do Uéverson falando, porque elas me ama e sabe tudo que eu preciso
pra ficar bom, pra ficar contente e até feliz, porque aqui não tem vergonha e
eu não tenho vergonha [...]. Setenta e duas e o meu pinguelo, que não para
de ficar duro, durinho, até depois que eu acabo e eu fico continuando,
botando o pinguelo nas bucetinha, tudo nas minha setenta e duas esposa que
são tudo minha. Três que fica é com a cara assim, esfregando a cara no meu
pinguelo, e mais duas que eu fico só enfiando os dedo nas bucetinha, nos
cuzinho, que são tão gostoso que têm até perfume, que é perfume bom [...].
(SANT’ANNA, 2006, p. 9-10)
Tem que escolher e eu escolhi certo, escolhi o que que é melhor que é
esperar pra na hora de trepara nas mulher não ter vergonha e ficar todo assim
calmo, mandando elas beijar o pinguelo, passando maionese nos cuzinho pra
mim poder lamber e mesmo assim sem ficar com vergonha. Agora não
precisa mais ver os filme do Jeipom que eu faço eu mesmo que nem nos
filme, eu mesmo, aqui nesse Paraíso, aqui com as minha esposa.
(SANT’ANNA, 2006, p. 58)
Tal paraíso, no entanto, não passa de fruto da própria mente de Mané, em delírio
numa cama de hospital. São longas e constantes as delícias relatadas por ele ao longo da obra,
parece até que, pelo menos em fantasia, a personagem principal vivenciava os prazeres que
tanto desejou e de que assim continuaria. Contudo, como tudo na vida de Mané, o sonho bom
se transforma em pesadelo. No final da narrativa o que se tem é o paraíso fantasiado por Mané
transformado em Inferno. Todos os traumas, medos, dores, angústias e sofrimentos lhes são
apresentados de uma só vez no final do delírio, quando as mulheres maravilhosas sonhadas
por ele, transformam-se completamente e começam a rir e debochar de Mané, enfiando
objetos em seu ânus:
No cuzinho, não, não pode, não, não, não, não, vamo fazer cabaninha, aí
vocês tudo pode ficar brincando com esse meu pinguelão que vocês ama.
Vocês ama eu, né? Não ama? Ama? [...] Então não faz isso, não, ai, ai, ai, no
cuzinho, não, tira isso daí, não ri, não, por que que vocês ta rindo? Tá
doendo, tá tudo doendo, tá tudo pegando fogo, tá pegando fogo no cuzinho,
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essa risada não é amor [...]. E elas fica tudo rindo deu, a lá, não pode, não.
Elas tá rindo, mas é risada feia, é risada de tirar sarro [...]. Cadê o pinguelo?
Não tem mais pinguelo. Por quê? Por quê, hein? Cadê o meu pinguelo? [...]
Não! A lá os cara, cheio de cara, a lá eles, olha! Olha eles trepando nas
minha esposa virgens. Não! Não pode, não. (SANT’ANNA, 2006, p. 441)
É setenta e duas. E elas vem vindo, tudo perebenta, muito horríveis, e elas
não me ama, dá pra ver nos olho delas que elas não me ama. Elas não ama o
marte. Eu não sou marte. Eu não fiquei marte. Agora eu tô vendo.
(SANT’ANNA, 2006, p. 443)
Conclui-se, portanto, que mesmo moribundo em uma cama de hospital, Mané não
se livra das dificuldades que tem de verbalizar seus sentimentos e pensamentos. Tendo em
vista seu sonho de paraíso se transformar naquilo que ele mais temia: ser humilhado pelas
outras pessoas.
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11. ed. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva; Guacira L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
LINS, Ronaldo Lima. Violência e Literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
SANT’ANNA, André. A Lei. In: FERNANDES, Rinaldo de. [Org.]. Contos Cruéis: as
narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea. São Paulo: Geração Editorial,
2006. p. 39-47.
______. O Paraíso É Bem Bacana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
______. Sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001.
______. Sexo e Amizade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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REPRESENTAÇÕES DE LUTA: A RETRATAÇÃO DO HOMEM SERTANEJO E DE
SUA VIDA NA LITERATURA DE CORDEL E NO FILME VIDAS SECAS
Paulo Estevão Mortati Fuzinelli85 (G-UEL)
Introdução
A Literatura de Cordel é o resultado do reflexo cultural em que esses poetas estão
inseridos. Desta forma, pode-se constatar a peculiaridade identitária que esse tipo de narrativa
oral possui. Essa característica própria é um meio para que se entenda a temática abordada
nos livretos, bem como o entendimento de sua articulação enquanto gênero literário.
Já o cinema, também se constitui enquanto linguagem artística diferenciada da
literatura e tem como objetivo a representação de uma sociedade, um tempo, um povo através
da produção de imagens brutas ou através do poético. Portanto, neste trabalho se notou a
possibilidade de comparação ou constatação das semelhanças entre as imagens do filme Vidas
Secas de Nélson Pereira dos Santos em que está retratada a vida de uma família retirante,
demonstrando assim como se dá sua existência no sertão nordestino, a busca de melhorias
vitais e a retratação desse mesmo homem, povo, através dos olhos dos cordelistas. Estes
folhetos estão presentes no acervo de Literatura de Cordel da Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Londrina.
A Literatura de Cordel
A Literatura de Cordel, como manifestação cultural assume ares nordestinos desde
que desembarcou em Salvador por volta dos séculos XVI e XVII, mas foi no século XX que
essa prática literária já estava fortemente fixada no Brasil. Essa literatura, quando surge de
forma a retratar a vida do sertanejo, explicita as crendices, a realidade, e a cultura desse
homem através de uma linguagem de caráter único.
Essas narrativas são feitas na forma de verso (variando entre sextilhas, septilhas
ou décimas) e são impressas em papel jornal. A quantidade de páginas tem variação e são
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sempre em números pares. A capa é feita através de fotografias, desenhos, off-sets, ou então
em sua forma mais popular, através de uma xilogravura, que é um desenho gravado em uma
madeira, estampado a tinta no papel.
Esse tipo de literatura é exposto e vendido em feiras, onde muitas vezes, também
são cantados. Apesar de o cordel não possuir origem nordestina, sofreu uma grande adaptação
e atualmente é tido como tal. Essa literatura deve ser em grande parte, relacionada ao meio em
que é construída e também por quem é produzida. Seus principais representantes são os poetas
populares (em grande parte analfabetos ou semi-alfabetizados e também com visões bastante
conservadores).
Devido à temática da Literatura de Cordel ser imensa, a maioria, senão tudo, serve
para se constituir um folheto, desde personagens e romances extremamente tradicionais, até
desastres, ideologias e religiosidade do mundo atual, e muito desses temas fazem parte da
vida e do cotidiano do poeta popular.
Segundo Manuel Diégues Junior:
Tem-se atribuído às "folhas volantes" lusitanas a origem de nossa literatura
de cordel. Diga-se de passagem, e antes de mais nada, que o próprio nome
que consagrou entre nós também é usual em Portugal (...) Estas "folhas
volantes" ou "folhas soltas", decerto em impressão muito rudimentar ou
precária, eram vendidas nas feiras, nas romarias, nas praças ou nas ruas;
nelas registravam-se fatos históricos ou transcrevia-se igualmente poesia
erudita. Gil Vicente, por exemplo, nela aparece. Divulgaram-se, por
intermédia das folhas volantes, narrativas tradicionais, como a Imperatriz
Porcina, Princesa Magalona, Carlos Magno. Tudo isso, evidentemente, e
como seria natural, se transladou com o colono português, para o Brasil; nas
naus colonizadoras, com os lavradores, os artífices, a gente do povo, veio
naturalmente esta tradição de romanceiro, que se fixaria no Nordeste como
literatura de cordel. (apud ABREU, 1999, p. 16).
Pode-se obter uma comparação verossímil sobre a representação desse homem
sertanejo, com os poetas que produzem, a literatura no qual o mesmo se encontra retratado.
Existem poetas que saem de suas cidades e migram para os grandes centros, como São Paulo.
Eles costumam ainda produzir temas que remontam o passado, mas mesmo assim, recriam
histórias para se adaptarem as condições de vidas em que se inserem, aparentemente, como
uma estratégia para sobreviver. Os poetas acabam por ser aculturar, já que se trabalhassem
problemas que não são condizentes a forma de pensar dos que lá estão.
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No Nordeste, além do cordel em sua forma escrita é comum encontrar as
cantorias, essas cantorias são feitas através da apresentação de poemas ou então de desafios.
Os desafios são conhecidos também como pelejas, ou seja, dois poetas disputam e ambos
devem prosseguir com o verso criado pelo oponente. Essa disputa pára, apenas quando um
dos poetas diz que não é capaz de dar continuidade a cantoria devido ao fato de não possuir
uma resposta adequada. Segundo Márcia Abreu (1999, p.64) a Literatura de Cordel iniciou
seu processo de definição dentro desse espaço oral, antes de surgir o folheto impresso.
E ainda afirma:
Não restaram registros dessa prática nos primeiros séculos da história do
Brasil, mas alguma notícia sobre cantorias oitocentistas foram conservadas.
São informações e trechos de poemas guardados na memória de antigos
poetas entrevistados por folcloristas ou reconstituições feitas em folhetos
recordando velhas pelejas. Se não são registros inteiramente confiáveis,
sujeitos aos deslizes da memória, carregam consigo uma marca fundamental:
o caráter fortemente oral dessa produção, tanto o que tange à composição
quanto à transmissão. (ABREU, 1999. p. 74)
O homem do sertão, Vidas Secas e o cinema novo
O cinema e a literatura são suportes diferentes, porém, ambos têm o seu papel de
promover o conhecimento e retratar a sociedade.
O filme Vidas Secas, surgiu no cinema juntamente ao filme de Glauber Rocha
Deus e o Diabo na Terra do Sol, e desde o começo, trouxe a mensagem para o público de que
aquilo era realidade bruta, representando o que era vivido desde sempre, por muita gente,
filmes carregados com grandes críticas sociais. Vidas Secas, junto ao filme de Glauber Rocha,
foi um dos filmes que conquistou seu espaço perante a crítica, dentro do contexto do Cinema
Novo.
Com a motivação surgida a partir da cultura nacional e ao final das companhias
cinematográficas paulistas e também, a necessidade de atribuir voz à população, a fim de
abater todo o tipo de alienação que estava presente nos meio de comunicação da época,
cineastas uniram-se para colocar em seus filmes, imagens mais realistas e de custo inferior.
Sendo assim, se basearam na Nouvelle Vague francesa e também no realismo presente na
Itália. A partir daí, surge o Cinema Novo.
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Durante a década de 50, surgiu uma disparidade entre a parte estética e a
ideológica. Dessa forma, surge também uma maior necessidade de reflexão sobre a condição
humana. Em Rio, 40 graus do ano de 1955, Nélson Pereira dos Santos foi indicado como
empreendedor do movimento do Cinema Novo, que foi caracterizado pela exploração,
interpretação e recriação da realidade social brasileira. O cinema era a maior forma de
conhecimento humano em seus aspectos puramente lógicos, demonstrando esse homem em
suas características plenas.
Os cineastas do Cinema Novo procuravam resgatar as idéias modernistas. Glauber
Rocha considerava imprescindível, leituras e literaturas que retratassem a realidade social.
Com isso, a literatura que se encaixa no Modernismo Brasileiro, principalmente as das
décadas de 30 e 40, foram em grande parte, inspiração para muitos dos filmes do movimento.
Walnice Galvão (apud TOLENTINO, 2001, p.66) em relação ao seu estudo sobre
o livro de Guimarães Rosa ressalta que o "homem do sertão sempre impôs dificuldade à
consciência urbana e civilizada que sobre se debruça, a fim de estudá-lo". Ela diz ainda, que o
sertanejo é dividido em duas classes: "como tipo humano" e o sertanejo bruto, real.
E outro fator notável é que:
O rural pode ser a nossa mais profunda brasilidade, ou nosso atraso, ou nossa
reserva de purismo, mas será sempre uma espécie de outro, distante daquele
que fala, mesmo quando no discurso à primeira vista venha considerado
como tal "país real". (TOLENTINO, 2001, p.11)
A primeira visão é como se o mesmo fosse algo representativamente nacional,
sendo uma espécie de referência a um marco nacional. Já o sertanejo em sua representação
real, aparece junto a repulsa.
Segundo Bernadet
Vidas Secas tem uma expressão discreta que situa o personagem central,
Fabiano, e sua família, em relação ao trabalho, à propriedade da terra, às
instituições, à cultura popular e erudita, à repressão policial, à submissão e a
violência, etc. (2001, p. 102).
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Análise do filme Vidas Secas
Vidas Secas é um filme do ano de 1963, baseado no livro de mesmo nome do
autor brasileiro Graciliano Ramos. Premiado no Festival de Cannes em 1965, na França, o
filme do diretor brasileiro Nélson Pereira dos Santos tem a pretensão de expor as vivências de
uma família, que em função da seca, resolve abandonar o Nordeste do país, ou seja,
demonstrar a vida dos retirantes Fabiano, Sinhá Vitória, dos meninos mais velho e mais novo
e também a cachorra Baleia, que possui uma espécie de solidariedade sem interesse, essa
solidariedade não pode ser notada na representação dos homens. Nélson Pereira dos Santos
foi um dos precursores do Cinema Novo, movimento cinematográfico que teve como objetivo
explorar a cultura e o folclore brasileiro.
Com seus 103 minutos de dramaticidade foi o único filme nacional indicado a
participar do Britsh Film Institute como umas da obras fundamentais para se possuir em uma
cinemateca.
O filme trabalha suas imagens em preto e branco e com um contraste muito forte,
em uma explosão da cor branca, faz que a região nordestina seja demonstrada de uma forma
mais árdua, causando a percepção de calor no expectador. Pode-se comparar a falta de água à
falta de vida, de esperança, de possibilidades que não alcança esse homem nordestino.
O filme não se baseia em uma ficção, mas sim em uma realidade que afrontava a
maioria dos nordestinos, que viam fora de suas terras de origem a oportunidade de uma vida
mais digna. Essa busca pela vida digna é uma criação do imaginário popular onde o
distanciamento da dura vida do campo e o objetivo de alcançá-la. Mas essa realidade que
tanto o autor Graciliano Ramos, como o diretor Nélson Pereira demonstraram, é perfeitamente
aplicável nos dias de hoje, quando as pessoas saem do Nordeste (nem sempre em condições
como as do filme) para buscarem nas metrópoles, empregos e moradias dignas. Alguns não
conseguem tais conquistas e acabam sendo marginalizados por não terem condições e nem
dinheiro para voltarem para suas terras. Tais fatos constituem um tipo da cultura desse povo
brasileiro, menos favorecido.
O filme começa com um estranho som, o som de um carro de boi que pode nos
remeter ao trabalho e com o início de uma longa jornada, que logo é caracterizada pela Sinhá
Vitória como algo difícil de acontecer positivamente, ela demonstra sua descrença com aquilo
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que está a praticar (a fuga de suas terras), isso é explicitado no filme através de alguns breves
comentários a respeito da incessante viagem rumo ao desconhecido. Isso demonstra que o
retirante tem uma visão negativa, nesse momento, do futuro e do rumo que sua vida está
seguindo, e tal falta de entusiasmo com o futuro gera um fatalismo de maior escala em sua
vida.
Sinhá ainda se permitia sonhar, acreditava que um dia ainda dormiria em uma
cama de couro, ela tinha a vontade de “ser gente”; aqui, evidencia-se que ela não se
considerava humana, gente, por não ter as condições de vida necessárias. Posteriormente,
Sinhá diz que com o salário, faria a cama de couro para que pudesse ostentar uma vida digna.
Nessa mesma cena a cachorra Baleia boceja. Sinhá que não é Sinhá, mas sonha com o que as
Sinhás possuem.
Ainda no começo do filme, o menino mais velho demonstra seu cansaço, sentado
no chão e durante esta cena nota-se que essa canseira é muito mais do que física, é uma
canseira vital, caracterizada pelo choro e pela inércia ao apanhar do pai com a espingarda.
Fabiano faz apelo por um emprego, para poder cuidar do gado, que é o puro
reflexo do ambiente em que vive, um lugar pobre, onde os urubus apenas esperam o momento
de atacar, a comida para eles é certa. Fabiano é caracterizado como um homem analfabeto e
ignorante. Quando conseguiu seu emprego, na fazenda, durante o pagamento, o fazendeiro
diminui o seu salário e Fabiano insiste que era mais dinheiro que deveria receber pelo fato de
sua mulher saber contar, mas mesmo assim, aceita o que lhe foi pago, ou seja, um valor
menor. Aqui se explicita uma figura presente na cultura nacional, o coronel, que tem amplo
poder sobre pessoas e coisas, e define o que deve ser feito ou não. Muitas vezes esse
coronelismo é caracterizado por uma submissão a esse chefe militar que lhe é capaz de
proteger e manter vivo. Nesta cena fica visível a passividade de Fabiano
Mais adiante sofre humilhações dos guardas do vilarejo em que está instalado,
apanha e é preso, o fazendeiro o resgata, logo após, aparece a figura da benzedeira,
característica cultural brasileira marcante, orando e invocando em cima de seus ferimentos.
Durante esta cena fica evidente que o homem sertanejo possui uma crença no poder divino,
acreditando assim, que a melhoria de seu ferimento ou que seja, de sua vida, pode acontecer
através de um poder extraterreno.
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Após algum tempo de sua injusta prisão, Fabiano se encontra novamente com o
guarda que o prendeu e tem em suas mãos a oportunidade de vingança, apenas uma facada e
tudo estaria resolvido. Mas ele desiste, demonstra seu respeito perante as leis e a sua
honestidade.
Adiante, o menino faz um questionamento aos pais sobre o que é o inferno, após
ver a benzedeira orar em cima de seu pai e o mesmo dizendo: “sai pro inferno”. A partir das
respostas obtidas (espeto quente, calor, coisa ruim) ele cria uma associação, de que o inferno,
é aquilo que está vivendo e também o espaço onde vive. Sendo assim, cria-se um paralelismo
do imaginário infantil do garoto com a dura realidade em que sua família vive, deixando
explícita a insatisfação com o real.
Não era apenas Sinhá Vitória que se permitia sonhar, a cachorra Baleia também
possuía os seus sonhos, pensava que gostaria de viver em um mundo cheio de preás, mundo
este, que ela foi tristemente viver, após sua seca morte. Ela, já doente, foi motivo de alguns
tiros disparados por Fabiano, a solidária cachorra, que até comida já havia caçado e
proporcionado à família estava morta, morta também, ficou a alegria dos meninos, que tinham
em Baleia, motivos de sua felicidade.
Por fim, Fabiano acaba desempregado, junta novamente sua família e pretende
partir, à noite, para evitar confrontos com seu ex-patrão, o fazendeiro. Seguiram sem rumo,
sem saber onde parar, só sabiam que tinham de seguir.
O filme como um todo, demonstra claramente aspectos culturais do nordeste do
país, como a figura marcante do sertanejo para a cultura brasileira, o modo como eles se
vestem, as casas, a forma rústica de cozinhar (a partir da lenha) e também a forma como se
comunicam, apesar de durante todo o filme, o silêncio ser um fato constante. O silêncio é uma
característica do sertanejo nordestino, homens de pouca fala e muito siso. O silêncio
demonstra a solidão deles e também conduz à falta de tudo, inclusive da palavra. Outra
imagem que caracteriza esse sertanejo nordestino é a da cena em close no rosto de Sinhá
Vitória e de Fabiano revelando, naquele momento, a singularidade que o sofrimento lhes
causava. Sofrimento representado por uma intensa apatia, como se estivessem isentos de
sentir e buscar melhorias e ao mesmo tempo não agüentassem mais sofrer.
A fim de evidenciar aspectos relacionados à existência do homem nordestino, de
forma clara durante todo o filme, o Nordeste brasileiro com seus aspectos em sí, diz muito
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sobre a cultura desse povo, além de demonstrar esse específico modo de vida recorrente no
país. Seus personagens são transformados pelo espaço em que existem, ou seja, ocorre uma
interação entre ambos. Segundo Platão e Fiorin (apud SIRINO, 2007, p. 6):
Espaço onde se movem as personagens é, muitas vezes, fundamental para o
entendimento [...] o que o narrador procura construir, em geral, é uma
correlação entre espaço e comportamento das personagens, entre
figurativização do espaço com certos temas.
Eles não têm o que dizer, eles são força. O sofrimento e a vida deixaram de
existir. Suas buscas são apenas pelo ato de sobrevivência. A cachorra baleia acaba por
demonstrar mais emoção do que eles. Transmutação do homem, homem se transformando em
animal e o animal se transformando em homem.
Essa comparação entre homem e animal pode ser melhor visualizada no livro,
quando Fabiano pensa em todas as dificuldades pela qual estão passando e passaram e diz:
“você é um homem” (RAMOS, 1998, p.53). Mas depois de um tempo ele lembra que não
possuía nada, que era submetido a seu chefe e diz: “você é um bicho, Fabiano” (RAMOS,
1998, p.53). Como representado no livro, essas reflexões de Fabiano são entrecortadas pela
chegada de Baleia, para receber carinho e aí, coloca a cachorra Baleia na mesma situação que
a dele quando diz a ela: “você é um bicho Baleia” (RAMOS, 1998, p.53).
Por fim, compreende-se que o fator homem/tempo/espaço é uma realidade
extremamente variável. A história de Vidas Secas se passa em 1941 sendo plausível sua
execução nos dias de hoje, já que o homem continua muitas vezes esquecido em sua realidade
longe de qualquer benefício existente. Compreende-se também ao longo do filme, que o
nordestino é forte por agüentar o que a vida lhe impõe, às vezes de forma passiva, às vezes
lutando por melhorias, é um povo cheio de honra e que apesar de tudo, ainda é capaz de
sonhar. O sertanejo, em Vidas Secas é a representação física e bruta da pobreza da terra, uma
vez que o homem não suporta a força da natureza.
Eles vivem em condições de miséria e acabam sendo explorados por uma classe
superior a deles, com maior prestígio. São "acomodados" a uma situação nada humana,
beirando ao animalesco. As imagens nos demonstram a subnutrição desse povo. Todas essas
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características são realçadas pela valorização estética que é dada ao ambiente, através do
filme.
Análise dos folhetos
Abaixo, algumas análises de folhetos que estão presentes no acervo de Literatura
de Cordel da biblioteca central da Universidade Estadual de Londrina. Foi preservada, nos
exemplos, a grafia que os cordelistas utilizaram para construir o folheto.
No folheto O sertão e o Sertanejo de José Severino Cristóvão estão registrados
diversos aspectos da cultura sertaneja bem como sua tradição reinante. O autor inicia o folheto
dizendo que o sertão era um ambiente bastante sofrido por não haver transporte e atualmente
esse sofrimento se dá pelo desmatamento que destruiu as belezas da região.
O primeiro indício que surge no folheto em relação ao homem sertanejo é o de
que é um ser respeitoso e honesto, onde não se vê nenhum tipo de marginalidade. O homem é
honrado pela justiça que prega e tem espaço para todos os tipos sociais, do mais alto até o
considerado mais baixo. Essa mesma terra que orgulha o poeta é o que atribui valor ao
homem.
Do Sertanejo e do Sertão
A saudade é demais
Lá na terra de vovô
Da Infância de meus pais
Terra de homem honesto
Que não se ver marginais
É a terra dos meus pais
E de homem justiceiro
E a terra do pequeno
E do grande fazendeiro
E terra que da valor
Ao poeta violeiro. (CRISTÓVÃO, 1982, p. 2).
Outro retrato que surge, é em relação à valentia desse homem. A partir da estrofe
abaixo, nota-se que o sertanejo é um homem de fibra, onde o fracasso não faz parte de seu
cotidiano, resiste ao que a terra lhe impõe.
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O homem lá no sertão
Ele não mostra fracaço
O brejo é na foice
O sertanejo é no balaço
Que o brejo ficou prá cana
E o sertão prá cangaço (CRISTÓVÃO, 1982, p. 4).
O folheto é divido em tópicos, e os assuntos são relacionados às características do
sertão, como a vegetação, o clima e características sociais dessa região. Há um tópico em que
o poeta narra suas aventuras de infância deixando claro como era a vida desse homem.
O autor inicia o tópico dizendo que viveu em uma era de seca e de tristeza, e que a
solidão era inerente a sua existência. Ele considera também que sua infância foi perdida. Ele
prova a valentia do povo do sertão dizendo que seu pai “perdia a vida” enfrentando batalhas
com o Lampião e os cangaceiros dentro das matas.
De um modo geral, o folheto relaciona a existência do sertanejo em seu ambiente
original como algo difícil e de extrema força, já que esse mesmo ambiente é carregado de
coisas negativas. Dessa forma, o sertanejo retratado no folheto se difere do retratado em vidas
secas, já que o mesmo permanece na terra que não lhe proporciona condições boas.
Já no folheto Artimanhas de Zé Catureba, O aprendiz de Malazartes de Franklin
Maxado é apresentada a visão de um nordestino que usa de artimanhas, consideradas pelo
autor como "safadeza" para sobreviver. É a apresentação de um nordestino esperto, que se
utiliza sua malandragem para conseguir o que precisa. Fica evidente também, que esse essas
necessidades são alcançadas através da inteligência, de sua capacidade intelectual, fazendo
com que ele não perca o tino. Tais fatos podem ser percebidos na estrofe abaixo:
Foi uma lição do Pedro:
- A gente tem de ser ladino
Para tirar dos que têm
Sem cometer desatino
Usando só a cabeça
E jogando com o destino. (MAXADO, 1979, p. 3).
Nota-se também, que esse homem nordestino representado no folheto é um
homem que se demonstra justo, pois ele acredita que os que possuem mais que o necessário,
roubaram, e por isso merecem perder um pouco do que possuem. Ele considera que essa
atitude não é crime, pois ele tira sem violência.
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Pois estes que têm muito,
Muito mais do precisado,
Na certa, também golpearam
Usando o necessitado.
(...)
Por isso não é bem crime
Tirar deles umas partes. (MAXADO, 1979, p. 3).
E ainda é apresentada características físicas desse homem e como ele se diverte,
além do mesmo, ser considerado um herói:
Catureba ficou moço
Sambudo, empapuçado.
Cabeça chata sem barba.
Cabelo ralo, arrupiado,
Zarolho, zambeta, pé chato
Um mestiço amarelado. (MAXADO, 1979, p. 4).
Aparece também, no folheto, uma referência a religiosidade, mas uma
religiosidade satirizada, onde um homem abusa dessa devoção de outro homem para se dar
bem, retirando-lhe o dinheiro com a premissa de dízimo.
Já no folheto Da roça para o viaduto: basta a seca e um matuto, ou, o calvário do
caboclo de Carlos Gildemar Pontes, se vê na primeira estrofe, que o narrador-personagem já
se coloca como alguém que passa por necessidades, dessa maneira já percebemos que sua ida
para a capital tem a ver com a necessidade de mudança de vida em busca de melhorias. Na
segunda estrofe o narrador tem a visão de que as pessoas são pobres, mas tem de onde tirar o
sustento, como ele que tem roça para plantar, não precisa de ambição maior, característica
adotada como meio de se acostumar com a sua situação, tal fato é muito comum na resignação
religiosa.
O narrador só troca a resignação pela necessidade de se alimentar, sua terra está
seca, mas o fator que proporcionou à família a situação de retirante foi a desapropriação que
seu sítio sofreu, e com a venda a um valor baixo, sua família se vê obrigada a partir.
A partida para a cidade grande se dá no desespero de encontrar algum lugar, com
oportunidades e que tenha espaço para esse homem que precisa trabalhar.
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Nota-se que o sertanejo ao chegar na "cidade grande" tem vergonha de si mesmo e
de suas origens e a situação que encontra não é a que esperava e sonhava quando saiu do
sertão. Nota-se essas características nos versos abaixo:
Pra completar a minha sina
fui tentar ser empregado
com vergonha e ansioso
passei um tempão sentado
quando me mandaram entrar
lá fui eu, o abestado. (PONTES, [19-?], p. 5).
Ele e sua família se encontram degradados vivendo de uma forma péssima e sem
condições físicas regulares:
Sendo grande a caminhada
do sertão para cidade
os meninos amarelo
merecendo caridade
os ossos furando a pele
veja que barbaridade. (PONTES, [19-?], p. 5).
Ele acaba por assinar, "o livro dos bestas" que é o livro de espera, a assinatura
acontece de forma enganosa, já que ele acredita que está assinando o livro dos empregados, e
afirma que é uma pessoa forte, que não teme a nada, "pois sou sertanejo forte / não temo nada
enfrentar". Compreende-se ainda que esse sertanejo, retirante, ainda sofre inúmeros
preconceitos, o que dificulta ainda mais a conquista de um emprego.
Por onde quer que eu andasse
todos fechavam a mão
nas ruas e até nas praças
nas lojas, no lotação
olhavam minha sujeira
com nojo e indignação (PONTES, [19-?], p. 7).
Ao final do folheto é perceptível que o sertanejo acaba aceitando a condição, que
a "cidade grande" lhe impôs. Cheio de nostalgia e de saudade, sente falta daquele local que
por ele, era considerado difícil, mas ainda sim havia alguém que lhe ajudasse ou fizesse
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companhia. Esse mesmo homem, sem condições de retorno acaba virando mendigo, bêbado e
colocando seus filhos em situação também degradante, para fazer trabalhos braçais:
Triste e desconsolado
saí de lá com saudade
pensando agora o que faço
nem tenho mais meu compadre
coitado dos meus curumins
vivendo nessa maldade
só teve um jeito pra nós
foi aceitar a desgraça
três filhos vão mendigar
três limpam carro na praça
mas um filho pra nascer
e eu fico a beber cachaça. (PONTES, [19-?], p. 8).
A mescla dos suportes
Tanto as características presentes no filme quando nos cordéis analisados, são
baseadas na forma de vivência (não predominantemente única) dos nordestinos e no
conhecimento de cognição desse povo, ou seja, é um processo de conhecimento, que envolve
atenção, memória, percepção, imaginação etc. A reprodução desses aspectos não se prende
unicamente a fatos cem por cento reais, podem variar com a adição do imaginário popular.
Portanto, têm-se dois produtos que estão inseridos na indústria cultural.
Ambos, a literatura de cordel e o filme Vidas Secas, trabalham suas
representações de homem sertanejo, enquanto população, de maneira variada, mas com
bastante características em comum.
É perceptível que nos dois suportes o homem do sertão é indissociável da sua
condição social. A discrepância entre ambas as fontes ocorre a partir da variação psicológica e
de caráter desse homem, fato que será abordado adiante.
Essa representação humana da cultura nordestina pode ser vista no filme a partir
da condução de imagens que nos levam a crer na força dessa população. São pessoas que
estão em busca, humildemente, de melhorias para a família de um modo geral. O grupo pode
ser associado facilmente a bichos ainda mais quando na falta de comida, se alimentam de
palma, que é utilizada, em tempos de fartura, para alimentar o gado.
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Os meninos mais novo e mais velho não possuem nome, sendo assim, se referem
à condição anônima, sem voz, que a família viva. Vê-se também, representação desses
sertanejos através da fuga constante, de um caminhar que não alcança o fim. Essa condição na
qual eles fazem parte não se modifica ao longo do filme.
Já no folheto O sertão e o sertanejo, nota-se que o sofrimento desses homens se
dá pelo desmatamento que destruiu a beleza das terras e não pelo fato de não possuírem
oportunidades como no filme. A fim de assimilar o folheto ao filme, vê-se que o sertanejo no
folheto é tratado com um homem honesto, íntegro, e no filme, Fabiano também se comporta
como tal. Ele não mata, e não rouba, mesmo sendo roubado pelo patrão.
Duas discrepâncias entre este folheto e o filme é que na terra de Fabiano, não há
espaço para o pequeno, o sertanejo sem grandes condições financeiras não tem espaço e no
folheto esse espaço está aberto a todos os tipos e classes sociais. Outra diferença é a de que
homem resiste à degradação que o sertão lhe impõe. Já Fabiano e sua família mudam, não
resistem e saem da sua terra o que não significa que eles não possuem força.
No segundo folheto analisado Artimanhas de Zé Catureba, O aprendiz de
Malazartes o nordestino é apresentado representativamente como um homem esperto que
utiliza de sua esperteza ou safadeza para conseguir o que precisa. Ele considera justo que se
tire dos que possuem mais para dar aos que possuem menos. Já no filme, Fabiano, como já
dito, é honesto e não rouba, tanto que é roubado por uma pessoa que tem muito mais que ele.
Tanto Fabiano e sua família, quanto esse homem, personagem do folheto, acreditam no que é
justo, mas é uma justiça diferente.
Enquanto o homem do folheto acredita na religiosidade como um meio de
conseguir o que quer, ou seja, roubando os fiéis, Fabiano acredita na religião de uma forma
mais séria, a fim de curar seus ferimentos.
Em relação ao folheto Da roça para o viaduto: basta a seca e um matuto, ou, o
calvário do caboclo constata-se que o sertanejo representado tem uma vida parecida com a de
Fabiano e sua família. Ambos possuem necessidade e saem de suas terras para encontrar a
mudança, muitas vezes necessária, de vida.
Porém, no folheto, entende-se que mesmo com a seca, aparentemente o homem
não se mudaria, ele apenas sai de sua terra devido a desapropriação do ambiente em que vive.
Já Fabiano e sua família fogem da seca.
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Em ambas as representações, esse povo que migrou, é enganado: no folheto, no
momento em que ele acredita que por dó, o chefe o daria emprego, mas apenas o deixou em
uma lista de espera, e no filme, no momento em que Fabiano é enganado quanto a quantia que
deveria receber por seus serviços prestados.
Outro motivo que se pode comparar é o da saudade. Tanto no filme Vidas Secas,
quanto no folheto, o homem sertanejo sente saudade de sua terra. No folheto, não retornam
porque não tem condições para realizarem tal ação, e em Vidas Secas o retorno não se dá
devido à ainda, possuírem esperança de melhorias. Segue o trecho, do livro de Graciliano
Ramos em que este fato está explícito.
Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde existiam montes
baixos, cascalhos, rios secos, espinhos, urubus bichos morrendo, gente
morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os
sertanejos. (RAMOS, 1998, p. 172).
Esse trecho acontece durante a primeira partida, mas ao final tanto do livro quanto
do filme, acontece uma nova fuga, uma espécie de volta ao passado, mas agora de uma forma
diferente, com novas perspectivas. Eles estão animados para o novo trajeto em busca de um
novo futuro.
Considerações finais
Nota-se que tanto no cordel quando no filme, são demonstradas visões em que a
cultura desse homem se sobressai a qualquer tipo de opinião. Nélson Pereira dos Santos
constrói um homem íntegro e resistente, forte, que sai de suas terras de origem em busca de
melhoria, além de retratá-lo como um homem animalizado. Já os cordéis fazem referência a
esse mesmo homem só que acrescentando a ele, também, características peculiares, como a
malandragem, a esperteza etc. Em ambas as fontes, esse homem é trabalhado de forma a
integrar o ambiente.
Para se compreender melhor essas representações, se faz necessária, acima de
tudo, compreendê-la como um recorte cultural e representação social bruta, plena. É
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impossível de dissociar o mesmo do ambiente em que pertence no momento, seja na cidade
ou no ambiente rural.
Bibliografia
ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Marcado de Letras: Associação de Leitura
do Brasil, Campinas, 1999.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.
CRISTÓVÃO, José Severino. O sertão e o sertanejo. 2.ed. Caruaru : [s.n.],1982. 32p.
DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. Ciclos temáticos na literatura de cordel, in: Literatura Popular
em Verso: Estudos. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultural/Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1973, tomo I.
MAXADO, Franklin de Cerqueira. Artimanhas de Zé Catureba, o aprendiz de Malazartes.
Feira de Santana: [s.n.], 1979. 14p.
PROENÇA, Ivã Cavalcante. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
PONTES, Carlos Gildemar. Da roça pro viaduto. Basta a seca e um matuto. O calvário do
caboclo. [S.I.] : eD. caf, [19-] 8P.
RAMOS , Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro, Record , 1998.
SIRINO, Salete Paulina Machado. Vidas Secas: da literatura ao cinema uma reflexão sobre
suas possibilidades educativas. R. Cien., Curitiba, v.2, n.2, p.01-17, 2007.
TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Editora
UNESP, 2001.
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REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS EM CANTIGAS DE RODA
Rafael Rodrigues da Silva (G-UEL)
Renata Fonseca Monteiro (G-UEL)
Introdução
Nesta pesquisa vamos trabalhar a influência das cantigas de roda na formação da
identidade feminina. O objetivo deste é relacionar a linguagem usada nas cantigas citadas,
observando não somente as letras, mas também as coreografias que são realizadas, bem como
estas são representantes da cultura oral de nosso país.
O mundo adulto desperta grande interesse nas crianças, o namoro e a escolha do
parceiro são ideais comumente apresentados em variadas canções. Pretendemos mostrar que
algumas canções apresentam o casamento, principalmente, como parte de um fator natural da
vida do ser humano; nascer, crescer, casar-se, criar descendentes e por fim, morrer, ou seja, o
casamento acaba agregando um papel natural, fundado como instituição social. Ao não seguir
esse tal “padrão-modelo” de vida, a pessoa que não vir a se casar, acaba por tornar-se vítima
de preconceito por tal ideia imposta. Agregado ao casório, mostramos também como tais
cantigas discorrem sobre a imposição de serviços domésticos, o cuidado com os filhos, o
namoro, a castidade e as escolhas.
Algumas canções consideram explícito o desejo do casamento por parte do sexo
feminino, sendo assim, as cantigas acabam demarcando normalização para a escolha que a
mulher faz entre casar-se ou não. A imposição do namoro, casamento e constituição de
família são, sem dúvida, uma divisão entre algo positivo e algo negativo.
As cantigas de roda possuem indícios remotos de tempo e espaço, ou seja, elas
não possuem uma fonte segura de suas autorias e nem dos anos em que foram compostas, suas
prováveis origens são Portuguesas e Espanholas, incorporadas a romances, poesias, histórias e
outras músicas. Apesar desses fatos, essa cultura é muito familiar para a maioria das pessoas,
pois ainda a ouvimos e a reproduzimos.
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A reprodução destas cantigas não é mais frequente como há alguns anos, porém,
as crianças procuram adaptá-las à atualidade. Segundo Rodrigues (1992, p.13):
Observa-se no entanto que as crianças jamais pararam de cantar, apenas
cantam outras coisas. Nestas outras coisas estão incluídas as músicas de
sucesso do rádio e televisão, improvisações e canções folclóricas. Parece
difícil acreditar, mas se observarmos atentamente o que as crianças realizam
espontaneamente, vamos nos dar conta de que a atividade folclórica ainda é
um fator de identidade entre elas e, a despeito da força dos meios de
comunicação, canções populares são adaptadas, reinventadas para serem
assimiladas como brincadeira, mesclando-se no folclore já existente.
Não podemos deixar de levar em conta também o valor simbólico que estas
canções representam, pois elas são uma ponte para a socialização, emoções e a valorização
dos costumes. É também de fundamental importância salientarmos que as cantigas de roda
são uma rica fonte da cultura oral. Os valores atribuídos a essas cantigas são uma forma que
as pessoas encontraram de viver as práticas culturais, sem a representação oral é como se
essas não tivessem significado.
Foram utilizadas, para a elaboração deste trabalho, cinco canções retiradas do
livro Esquindô-lê-lê de Altimar de Alencar Pimentel e Cleide Rocha de Alencar Pimentel,
auxiliou-nos na elaboração dos processos de análise metafóricos ilustrativos os livros
Cantigas de Roda, de Lourenço Chacon Jurado Filho e Cantigas de Roda de José Pereira
Rodrigues. Além do material já citado, utilizamos, para melhores esclarecimentos simbólicos,
os seguintes dicionários: Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant e
Dicionário de Simbologia de Manfred Lurker.
Procuramos ainda relembrar da nossa infância para resgatarmos parte dessa
cultura.
Formação da identidade feminina
As relações de poder existentes entre homens e mulheres são evidentes em nosso
meio social. As divisões preestabelecidas dos papéis sociais não são novidade para a atual
sociedade, apesar de essas diferenças estarem sendo minimizadas a cada século. Essa tradição
sociológica é reforçada por representações religiosas, culturais entre outras. O papel que a
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mulher deve ocupar na sociedade é muito conhecido em cantigas folclóricas, pois nelas as
atividades como cozinhar, lavar, passar roupas e cuidar dos filhos são “impostas” a essas
representantes femininas.
As grandes difusões dos conceitos bíblicos na maioria das religiões, baseados em
trechos do antigo e novo testamento sobre a submissão e subordinação da mulher, defendem
que o papel feminino destaca-se pelos cuidados com o lar, enquanto ao homem é regrada a
obrigação de fornecer o sustento da casa e defender sua nação, devido às características
típicas, “tais como, a coragem, o desembaraço e a independência”. (MORAES, 1985, p. 21).
Moraes (1985) ressalta ainda uma ideia de inferioridade ao sexo feminino quando aborda que
a mulher se difere do homem durante a socialização, no qual existem características
consideradas como “tipicamente” masculinas e que essas, têm maior prestígio social do que as
características de personalidade relacionadas às mulheres.
Apesar das diferenças que distinguem “eles” de “elas” estarem minimizando-se ao
longo dos séculos, ainda observamos tal tradição sociofundadora pelos meios de
comunicação, em filmes, novelas e em músicas. Se analisarmos os papéis de homens e
mulheres, veremos que estes ainda apresentam-se visíveis na sociedade e a carga de diferença
existente entre diferentes sexos é muito grande aos olhos da coletividade, ou seja, o homem
trabalhando e provendo o sustento da família e a mulher realizando os serviços domésticos e
cuidando dos filhos. Belotti (1979, p.52) enfatiza que:
[...] a superioridade e a força de um sexo dependem exclusivamente da
inferioridade e fragilidade do outro. Se o macho sente-se assim só porque
pode dominar, inevitavelmente necessitará produzir alguém que aceite ser
dominado. Mas se pararmos de ensinar ao macho que deve dominar e à
mulher que aceite e goste de ser dominada, poderão florescer novas e
insuspeitadas expressões individuais muito mais ricas, articuladas e
imaginosas do que os mesquinhos e mortificantes estereótipos.
Esta citação questiona os papéis que a sociedade impõe para cada gênero, com as
quais os estereótipos a serem “florescidos” são papéis de igual peso para homens e mulheres,
no qual as diferenças físicas, genéticas e históricas não causem distinção. Porém, na realidade
atual, a consequência imposta por um grupo de maior valor social, isto é, o poder social que
impõe e fixa a fim de garantir de alguma forma o privilégio sobre os demais, torna as
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diferenças motivo de exclusão, preconceito e rejeição. Silva (2000, p. 85) aponta tal caso
numa relação com os mitos fundadores:
Os mitos fundadores que tendem a fixar as identidades culturais são, assim,
um exemplo importante de essencialismo cultural. Embora aparentemente
baseadas em argumentos biológicos, as tentativas de fixação de identidade
que apelam para a natureza não são menos culturais. Basear a inferiorização
das mulheres ou de certos grupos “raciais” ou étnicos nalguma suposta
característica natural ou biológica não é simplesmente um erro “científico”,
mas a demonstração da imposição de uma eloqüente grade cultural sobre
uma natureza que, em si mesma, é - culturalmente falando – silenciosa.
A formação da identidade feminina baseia-se nos conceitos relacionados ao seu
papel na hierarquia masculina, destacando; a imposição sobre a sua função de companheira do
homem, subordinada e inferior, observando que as comunidades ainda perseveram sobre esse
contexto; mesmo a visão do papel feminino na atualidade sendo menos ditador tem-se a ideia
da representação feminina, muito mais como subalterna do que dominadora, apesar das novas
marcas de igualdade que surgem com o passar dos anos. Em nossa sociedade, inúmeras
mulheres ainda interiorizam uma imagem depreciativa e constrangedora delas mesmas.
Ao observarmos algumas canções de roda, notamos que meninos e meninas, ao
longo do tempo, representam papéis predefinidos. Desde criança, as meninas são identificadas
como sinônimo de meiguice e delicadeza, as representantes femininas também são vistas
como mães e mulheres preparadas para a vida caseira.
O mundo adulto desperta nas crianças uma profunda vontade e interesse no
âmbito de vivenciar relações afetivas e cultivarem-se como “pequenas mulheres”. O namoro,
o casamento e a teatralização do ser mãe são quase em todos os casos, maneiras das meninas,
em especial, verem-se como adultos.
As cantigas, passadas de geração em geração, ajudam a estabelecer os exemplos
da vida cotidiana típicos numa sociedade que insere os papéis femininos como os citados
acima.
As cantigas teatralizam alguns papéis na sociedade, como, por exemplo, o papel
da mulher cuja união com um parceiro torna-se imprescindível para completá-la, pois,
considerada um sexo frágil, inferior e sem a habilidade de se proteger, necessita da proteção
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de um homem, ou seja, seu marido, e para que este, exerça seu papel na relação e demonstre
sua coragem, necessita que a mulher desempenhe um papel inferior ao dele.
A coreografia, o meio pelo qual as cantigas são encenadas, evidencia outro fator
de diferença: a inclusão e a exclusão (SILVA, 2000). Algumas canções agrupam semelhantes
e inferiorizam os “diferentes”. Essa relação, seria encarada como formações de identidades
superiores, pois estabelecem uma oportunidade de a criança escolher semelhantes,
consequentemente afastando aquela que não possui as características desejáveis, ou seja,
escolhendo a qual mais “lhe agrada” ou “menos lhe agrada”, atribui-se carga positiva e
negativa, simultaneamente.
É por meio da representação, assim compreendida, que a identidade e a
diferença adquirem sentido. É por meio da representação que, por assim
dizer, a identidade e a diferença passam a existir. Representar significa, neste
caso, dizer: “essa é a identidade”, “a identidade é isso”. (SILVA, 2000, p.91)
É por meio das representações que a criança constrói gradativamente seu mundo e
sua noção sobre ser adulto; é por meio também das representações, com as quais a criança
teatraliza seu futuro, canta seus sonhos e acredita ser o que imagina que ela forma sua
identidade.
Impõe-se a análise das manifestações artísticas populares como cultura
presente, em diálogo ou em confronto com outras produções culturais
também presentes. Nas criações populares, tanto podem ser encontradas
considerações críticas a respeito da dominação, quanto maneiras de endosso
e submissão à(s) cultura(s) dominante(s). (AYALA, 2003, p. 85)
Além disso as cantigas representam uma carga muito grande de sentidos dentro da
cultura de uma sociedade. Além da responsabilidade de formação da identidade feminina, elas
simbolizam uma cultura que se fixa na memória coletiva para sempre, pois a carga de
símbolos existentes nos narradores/cantores, nos sons, movimentos e sensações é uma marca
coletiva de fundamental importância.
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Cantigas de roda e representações do feminino
Pombinha Branca
A pombinha branca
Que está fazendo?
Tou lavando roupa
Do meu casamento.
A roupa é muita
E eu sou vagarosa:
Minha natureza
É de preguiçosa. (MARQUES, 1996, p.91).
Nessa cantiga notamos a utilização da personificação, pois a intenção é
representar uma mulher quando se cita “Pombinha”, sendo que este animal, símbolo de paz na
cultura popular, além de representar a paz em várias situações conhecidas, como por exemplo
na religião, agregado ao adjetivo “Branca” que simboliza também a clareza e a harmonia.
Podemos citar também o mito do cavaleiro que chega no cavalo branco para salvar sua dama
e se casar, sendo que este mito popular ainda é fortemente usado atualmente, mesmo que com
ironia. Esta manifestação de pureza simboliza a castidade, a virgindade, a mulher que ainda
não se casou neste caso, sendo assim uma mulher virgem.
A representação do lavar roupas demonstra um afazer doméstico, agregado à
mulher. Interpretamo-la com a ideia, novamente, de clareza ou pureza, além de reforçar a
noção de que a identidade natural da mulher é reforçada como aquela que faz os serviços
domésticos.
Teresinha de Jesus
Terezinha de Jesus
De uma queda foi ao chão:
Acudiram três cavalheiros,
Todos de chapéu na mão.
O primeiro foi seu pai;
O segundo seu irmão;
O terceiro foi aquele
Que a Tereza deu a mão.
Da laranja quero um gomo,
Do limão quero um pedaço,
Da morena mais bonita
Quero um beijo e um abraço. (LIMA, 1943, p.103).
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Nesta canção, notamos o cavalheirismo quando se representa os cavalheiros
acudindo Teresinha de Jesus, além da representação da mulher frágil, meiga e dócil, sendo
que a noção de “mulher perfeita” é esta (até mesmo atualmente em alguns casos).
Logo surge uma ideia de hierarquia sobre a mulher, notamos a relação: pai (o que
cria), na falta do pai, o irmão (com o papel de homem da casa) e, por terceiro, o marido, na
noção de casamento, ou seja, à mulher é agregado um papel de objeto possuído, ou até
digamos um objeto de posse e desejo dos homens por ser tão desprotegida (o poder do homem
sobre a mulher, eles escolhem ela ou não).
Agora, temos o conceito da escolha, tanto na letra como na coreografia , quando
cita, “Quero um beijo e um abraço” a criança escolhe tanto linguisticamente como por atos
(abraçando e beijando) outra criança para substituí-la no centro da roda. No caso a
representação indica que a criança ao centro escolherá outra que a agrade para que se “case”
com ela. Provavelmente a criança escolhida terá atributos que agradem não somente àquela
que a escolheu como também a todas as outras, ou seja, uma criança que tenha características
desejáveis pelas outras.
A citação “Da morena mais bonita quero um beijo e um abraço” demonstra que o
que chama a atenção do futuro marido é sua beleza, ou seja, neste caso, o homem escolhe sua
futura mulher e somente pelas qualidades físicas.
Siu, Siu, Siu.
- Siu, siu, siu,
Vem cá, meu bem.
Sou, siu, siu
Ele vai, já vem.
- De tarde estava cosendo
A linha foi deu um nó;
Se quiser falar comigo
Venha amanhã, que estou só.
- Siu, siu, siu, etc.
Cravo branco na janela
É sinal de casamento;
Menina guarda o teu cravo
Que contigo eu caso sempre.
- Siu, siu, siu, etc. (MELO, 1981, p.206).
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O cravo branco é um símbolo de castidade e virgindade, também esta flor já foi
empregada como representação do mês de maio, sendo este conhecido como o mês das
noivas. A imposição da pureza reaparece nesta cantiga, a expressão “guarda o teu cravo”
indica a castidade, a necessidade de a menina matrimoniar-se virgem, de guardar-se para o
futuro marido.
As cantigas de roda podem ser consideradas uma forma de se conhecer ou revelar
pontos da sociedade, segundo José Geraldo Vinci de Moraes a música popular e a canção são
“uma rica fonte para compreender certas realidades da cultura popular e desvendar a história
de setores da sociedade pouco lembrados”. (MORAES, 2000, p. 204-5). A partir daí é
possível verificar a importância de se analisar as cantigas não somente enquanto fonte da
cultura oral, mas também como fonte de compreensão para a realidade de um determinado
grupo social.
Bom Barquinho
Dá licença, bom barquinho,
Dá Licença eu passar
Carregada de filhinhos
Que ajuda a criar.
Passarás, passarás
Que um deles há de ficar:
Se não for o da frente
Há de ser o de detrás. (LIMA, 1943, p.44).
No trecho em que cita “Carregada de filhinhos” temos a impressão de várias
crianças, na coreografia, as crianças realizam uma espécie de túnel (semelhante ao das
quadrilhas de festas juninas) e um destes filhos fica excluído, para que sobre somente uma
criança e a brincadeira recomece. Temos a representação da mulher com vários filhos,
cuidando deles sozinha, ou seja, o papel da mulher como a principal encarregada de educar e
cuidar dos filhos, seja na ausência do pai das crianças por este ter falecido, largado a mãe das
crianças ou até mesmo porque apesar do pai ser marido da mãe, ele é ausente e o papel de
cuidar dos filhos fica somente à matriarca.
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Sambalêlê
Sambalêlê tá doente
Tá com a cabeça quebrada,
Sambalêlê precisava
De umas oito lapadas.
Refrão:
- Samba, samba, samba ô lê-lê!
Pisa na barra da saia, ô lê lê!
Samba, samba, samba, ô mulata!
Pisa na barra da saia, ô mulata!
Minha morena bonita
Diga como se namora:
Bota o lencinho no bolso
Deixa a pontinha de fora.
Refrão
Minha morena bonita
Diga como se cozinha:
Bota a panela no fogo
Vai conversar com a vizinha.
Refrão
Minha morena bonita
Diga como é que se casa:
Bota o véu na cabeça
E dá o fora de casa.
Refrão
Minha morena bonita
Diga onde é que você mora:
Mora na praia Formosa,
Dou adeus e vou embora.
Refrão (RIBEIRO, 1991, p.96).
A relação que a sociedade faz da mulher com os serviços domésticos é expressa
nesta canção. A analogia de poder quando o homem sai para trabalhar e a mulher fica em casa
cozinhando, lavando, limpando e, como é mencionado na música ironicamente, “...vai
conversar com a vizinha”, ou seja, fofocar, nos demonstra a criação social e cultural que está
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agregada aos papéis femininos e masculinos, atribuindo-se à mulher o papel inferior ao do
homem.
Esta canção também nos apresenta o namoro e o fato de a menina sair de casa
quando aceita o matrimônio, sendo que tal fato soa como uma alegria para a noiva.
As cantigas de roda em sua maioria são voltadas para o sexo feminino, sendo que
há indícios de que são as próprias que mais as cantam e as representam. Antigamente, as
meninas tinham maior interesse pelas cantigas, pois era uma maneira de tentar romper uma
barreira existente entre meninos e meninas.
Podemos denominar esta imposição de matrimônio sobre a mulher como um mito,
pois, apesar de não conhecermos o passado exato das cantigas, algumas delas como
“Sambalêlê”, por exemplo, é popular entre os brasileiros, a maioria a canta e a repassa,
mesmo sem ter a consciência de que estão colaborando para a fixação dos termos usados nas
cantigas.
Considerações finais
As cantigas de roda, sem dúvida, são preciosas para nossa cultura, o valor
histórico que elas possuem é indiscutível e o papel que representam para a socialização de
nossas crianças, pois essas necessitam desse contato afetivo com as outras; devemos citar
também a importância da manifestação coreográfica e o exercício de canto que a criança
realiza, colaborando assim para a sua desinibição.
Porém, notamos também a relação de inclusão e exclusão que algumas cantigas
possuem, a incitação aos papéis que homens e mulheres devem realizar ao longo da vida e,
em consequência disso, a existência de um gênero com carga mais positiva que outro.
Apesar das crianças serem ingênuas e muitas vezes nem compreenderem o que
reproduzem nas cantigas, a linguagem com que nos deparamos nestas cantigas não são
ingênuas, pelo contrário, ela faz insinuações a elevação de uma classe, um gênero, uma cor ou
uma situação social. Em nosso caso, mostramos a relação entre os sexos, evidenciando assim
a formação da identidade feminina, pois são elas, as meninas, as principais continuadoras
desta cultura folclórica.
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As relações de poder entre homens e mulheres não é a principal abordada nesta
pesquisa, mas sim a relação de formação de identidade entre mulheres; como por exemplo, foi
citada em uma das cantigas, a diferença entre se casar ou ser freira. Nessas situações, a
menina normalmente não escolhe se quer casar-se ou não, a canção já faz essa escolha para
ela: ela vai se casar. Afirmando assim a relação de poder entre se casar ou não.
A criança necessita do processo de teatralização para compreender o mundo a sua
volta, seja imitando os pais, a atriz da televisão ou, neste caso, representando um papel social
por meio da música; sendo assim compreendemos que os exemplos que a criança possui ao
seu redor são formadores de sua identidade.
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O NARRADOR E O CANTADOR: SEUS ASPECTOS E PAPÉIS REFERENTES À
LITERATURA DE CORDEL
Raphaela Cristina Maximiano Pereira(PG-UFSJ)
Apresentação:
Torna-se importante explicitar a estrutura do presente trabalho, para que haja
melhor compreensão do mesmo. Na primeira parte, serão abarcadas algumas questões gerais
sobre o foco do estudo dessa pesquisa. Falar-se-á acerca da literatura oral, popular e sobre
uma de suas mais ricas e vastas manifestações no Brasil: a Literatura de Cordel.
Em seguida, haverá uma abordagem do texto “O narrador”, de Walter Benjamin,
na qual se buscará relacionar as características dos cantadores das poesias de cordel com a
figura do narrador criada e exemplificada pelo autor alemão. Neste momento, também será
falado sobre a correspondência entre o conceito de “performance”, de Paul Zumthor e a ação
de compreensão mútua realizada entre leitores e cantadores dos poemas populares.
Posteriormente, será identificada a questão da coletividade e da memória nesses
textos que buscam resgatar as marcas tradicionais de um povo e o impacto que essas causam
na sociedade, abrangendo conceitos de autores como Paul Zumthor, Jacques Le Goff e
Maurice Halbwachs. Também serão mencionados outros autores cujas pesquisas ajudam a
propiciar um melhor entendimento do assunto aqui enfatizado.
I. Introdução: Notas sobre Literatura Oral, Popular e de Cordel
"A palavra pertence metade a quem a profere e metade a quem a ouve." (Michel de Montaigne)
Delimitar o que seria a cultura popular é uma tarefa complexa. E a definição de
literatura oral, também não facilmente demarcada, abarca uma série de manifestações dessa
cultura do povo. O intuito do presente trabalho não se prenderá à complexidade de definições
possíveis sobre o tema em questão, embora seja necessário salientar algumas das principais
teorizações acerca do assunto. Os enfoques contemporâneos dados à literatura oral e à cultura
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popular, no meio acadêmico, têm resultado em opiniões diversas e, até mesmo, contrastantes.
Stuart Hall (2009), em Notas sobre a desconstrução do popular, alerta o leitor sobre a
dificuldade em se lidar com o termo “popular” que, ultimamente, tem se tornado tão
complexo de ser definido quanto o termo “cultura”; e ainda completa afirmando que “quando
colocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem se tornar tremendas” (p. 231). O
autor completa seu posicionamento afirmando que a cultura popular é organizada em torno da
contradição e a isso se deve a dificuldade de definição dos termos; segundo ele, tanto o termo
“popular” quanto o “povo” são altamente problemáticos: “[...] assim como não há um
conteúdo fixo para a categoria da ‘cultura popular’, não há um sujeito determinado ao qual se
pode atrelá-la – ‘o povo’.” (2009, p. 246), uma vez que esse “povo” nem sempre esteve em
um mesmo lugar, com sua cultura intocada e seus instintos intactos, alheios às transformações
que, inevitavelmente, ocorrem ao redor dele.
Assim como Hall, Paul Zumthor (1997) confirma a ideia de que os termos folclore
e cultura popular são bastante vagos e possuem mais de um significado, podendo até se
tornarem contraditórios. O mesmo ocorre com o adjetivo “popular” ao qual podem ser
atribuídas conotações ambíguas. Ivan Cavalcante Proença (1979), atentando para os
paradoxos existentes entre os termos “literatura” e “oral” quando são direcionados à poesia
popular em verso, ressalta que “no folclore existe uma parte que é chamada literatura oral.
Um paradoxo, porque literatura subentende letra, e oral é justamente o que não tem letra”
(p.23). De modo mais sucinto e até mais simplório do que outros autores, Proença (1979)
ainda classifica essas tensas definições da seguinte maneira:
Inicialmente, há duas linhas, maneiras de ser, da literatura oral. A popular,
que, embora apresente características de poesia folclórica, é normalmente
impressa, é moda, e não anônima. E a realmente folclórica, que independe de
moda e já é anônima, caiu no patrimônio coletivo por esquecimento do nome
de seus autores. (1979, p. 37)
Em meio às distintas constatações realizadas acerca dessas definições, os
conceitos referentes às categorias de literatura oral e popular vêm sendo redefinidos e
reorganizados, de modo a constituir um campo de discursos menos conflituoso. De forma
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similar ao que foi defendido por Proença, Jesus Martín-Barbero (2008) define o assunto aqui
em destaque da seguinte maneira:
Há uma literatura que, ausente por inteiro das bibliotecas e livrarias de seu
tempo, foi contudo a que tornou possível para as classes populares o trânsito
do oral ao escrito, e na qual se produz a transformação do folclórico em
popular. [...] Literaturas que inauguram uma outra função para a linguagem:
a daqueles que, sem saber escrever, sabem contudo ler. Escritura portanto
paradoxal, escritura com estrutura oral. (p.148)
Joseph M. Luyten (1992) também afirmou que “[...] o cordel é um estágio quase
intermediário entre a oralidade e os sistemas de comunicação letrada, uma vez que é poesia
que deve ser lida em voz alta ou cantada” (p. 171). Já a literatura oral, para Luís da Câmara
Cascudo (1984), que “reúne todas as manifestações da recreação popular, mantidas pela
tradição” (p. 29), pode ser caracterizada como toda e qualquer manifestação cultural que
existe do povo e para o povo. Segundo o autor, principalmente no contexto do nosso país,
esse tipo de produção é composto por provérbios, contos, frases-feitas, orações, cantigas de
roda, jogos infantis entre outras fontes de expressão sócio-cultural. Portanto, falar de literatura
oral é mencionar, obrigatoriamente, as tradições orais que todos os povos possuem e que, ao
serem disseminadas com o passar dos anos, vão se modificando, de acordo com as diferentes
sociedades e épocas das quais passam fazer a parte.
De acordo com o que é enfatizado por Peter Burke (2003), “em nosso mundo
nenhuma cultura é uma ilha” (p. 101), o que nos comprova a ideia de que todas as tradições,
das mais diversas e distantes culturas existentes no mundo, estão em contado, direta ou
indiretamente, uma com as outras. Assim, passa-se a entender as tradições como frutos de
constante modificação, “sempre sendo construídas e reconstruídas quer os indivíduos e os
grupos que fazem parte dessas tradições se dêem ou não conta disso” (BURKE, 2003, p. 102).
A literatura oral e popular, como parte de uma produção cultural específica e situada em
contextos de constante renovação, também reflete o hibridismo das culturas e tradições, o
qual é facilmente identificado nos versos dos poemas. Pode-se dizer que o discurso oral é
produzido em um grupo social e a presença da coletividade na composição dos textos permite
que haja uma leitura e compreensão da cultura à qual esse grupo se refere.
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Como já foi dito, a definição de literatura oral abarca uma série de manifestações
de cultura popular. No Brasil, a literatura de cordel é uma das mais recorrentes representações
desse gênero. Embora sua difusão seja mais eminente na região Nordeste do país, os versos de
cordel não se limitam a uma cultura específica, possuindo, em suas incontáveis publicações,
as marcas da tradição do local aonde aquelas foram produzidas. Mesmo que os temas tratados
nos versos de cordel sejam mais contemporâneos ou mais ligados à tradição da qual fazem
parte, é perceptível identificar a relação entre esses versos e a memória da época em que
foram escritos, pois, como é evidenciado por Zilá Bernd (1995), o texto literário oral quase
nunca está isolado, se encontrando sempre inserido em um dado discurso. Pode-se dizer que o
discurso oral é produzido em um grupo social e a presença da coletividade na composição dos
textos permite uma leitura cultural. Bernd ressalta que é através do discurso sobre o passado
“que a memória cultural se funda e se estrutura” (1995, p. 39).
Segundo Diégues Jr (1986), tudo conduziu para o Nordeste se tornar o ambiente
propício em que a literatura de cordel se tornaria vasta e forte. Isso se deve a vários motivos,
como o das condições étnicas, já que foi ali que o encontro do colonizador português e do
africano se fez de maneira contínua, e não esporádica, resultando em ma mútua fusão de
influências. Um dos outros motivos se refere ao próprio ambiente social que oferecia
condições para o surgimento dessa forma de comunicação literária, uma vez que a difusão da
poesia popular poderia se dar tanto através de escritos quanto em formas de cantoria. Assim,
as condições sociais e culturais (como as práticas tradicionais familiares de se juntarem, à
noite, para a declamação de histórias) do ambiente foram suficientemente ideais para
transformar o Nordeste em área de difusão dessa manifestação cultural que é a literatura de
cordel. Todavia, também há estudiosos que consideram que esses fatores não correspondem a
causas ou determinações, e sim a consequências desse fenômeno da intensificação da
circulação dos folhetos no Nordeste (MENEZES, 1977, p. 41).
De acordo com Manuel Diégues Jr (1986), os inícios da literatura de cordel são
amplamente ligados à divulgação de histórias tradicionais e narrativas de outras épocas que,
ao serem retomadas pela memória popular continuaram a ser transmitidas. O nome literatura
de cordel provém de Portugal e possue essa denominação pelo fato de os folhetos de cunho
popular serem presos por barbantes (chamados cordas ou cordéis) e, dessa forma, expostos
nas casas em que eram vendidos. Embora a presença desse tipo de poesia no nosso país tenha
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raízes lusitanas, não se pode dizer que o romanceiro brasileiro seja totalmente dotado de
características genuinamente portuguesas, uma vez que os folhetos que chegaram em Portugal
também eram provenientes de diversas e diferentes fontes. Sobre as origens desse tipo de
literatura popular o Brasil e em outros países, o autor salienta que:
Da península foi que nos veio: é uma das heranças que devemos, o Brasil a
Portugal, os outros países americanos à Espanha, fazendo com que o épico e
o lírico, pelo que o povo se manifestava, persistissem entre nós, ora em sua
forma tradicional, das narrativas registradas no romanceiro, ora em suas
formas ocasionais, pelo registro de fatos circunstanciais, de momento, que
mereceram a atenção das populações, conservando-os na memória popular.
(DIÉGUES JR, 1986, p. 35)
Conforme foi dito, a Literatura de Cordel tem suas raízes ligadas à divulgação de
histórias tradicionais, provenientes de velhas épocas. Essas foram conservadas e transmitidas
através da memória popular e são denominadas novelas de cavalaria, de amor, relatos de
guerra e de viagens, entre outros. A origem é da literatura medieval, mas a partir do momento
que passou a integrar o cotidiano brasileiro, a Literatura de Cordel assumiu as características
desse contexto, assim como assumiu também a atualidade dos fatos narrados. Concomitante
ao surgimento dessas histórias tradicionais apareceram, na poesia, relatos de fatos recentes, ou
seja, de acontecimentos sociais que chamavam a atenção dos ouvintes. A Literatura de Cordel
também se tornou, portanto, fonte de informação para seu público, constituindo, através dos
folhetos jornalísticos ou noticiosos, uma espécie de “jornalismo popular” (LUYTEN, 1992).
Essa literatura brasileira de cunho marcadamente popular, embora seja muito
conhecida em várias partes do país, ainda é pouco estudada no meio acadêmico de nosso país.
A arte popular brasileira vigora de forma autêntica e contínua por muitos anos, apesar dos
equívocos que sua existência provoca. Como é colocado por Ariano Suassuna em seu ensaio
de 1969 intitulado “A arte popular no Brasil” e inserido em seu Almanaque Armorial
compilado em 2008, “a literatura popular brasileira também existe, bastando o fato de
possuirmos, nos folhetos, o maior e mais variado Romanceiro vivo do mundo” (p.152). Os
preconceitos que circundam os estudos da literatura popular podem ser explicados de várias
formas, mas é compatível com o presente trabalho resumi-lo a algumas palavras do próprio
Suassuna (2008):
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Nós, aqui no Brasil, temos, à mão, um material muito mais vasto, rico e
variado do que o Romanceiro ibérico [...]. Por causa da injusta discriminação
a que já me referi, o Romanceiro Popular do Nordeste é deixado de banda
nos estudos literários universitários do Brasil. Aqui, são criadas essas
discriminações contra grandes artistas e escritores que, somente por não
terem tido formação universitária ou informações e participação sobre ‘as
conquistas da civilização industrial’, ficaram como que estigmatizados e
relegados a posições secundárias. (p.152)
Essa discriminação sofrida pelos poetas populares também pode ser explicada
através dos fatos relativos às origens da disseminação da literatura de cordel. O início da
disseminação desses folhetos era marcado pela transmissão oral das poesias. Os cantadores ou
cordelistas eram responsáveis por passarem ao povo, quase sempre analfabeto, as informações
e entretenimento de um modo mais informal e acessível. Com o passar dos anos e com a
valorização da escrita até em ambientes em que ela não era privilegiada, esses poemas
passaram a ser escritos, mas nunca se desprendendo completamente das marcas da oralidade.
Com base no exemplo dos folhetos nordestinos, Bernd (1995) confirma a ideia de que “a
marca da oralidade encontra-se na escritura” (p.85), já que, independentemente de se
encontrarem sob a forma de texto escrito, o compromisso original das poesias é ser composta
para ser declamada. Assim, “os folhetos de cordel e os romances nordestinos podem
frequentemente ser considerados como versões escritas de narrativas transmitidas pela
tradição oral” (p.91).
Apesar de a literatura de cordel não ter uma preocupação excessiva com certo
padrão de rigor técnico comum a famosas obras canônicas, ela também possui um conjunto de
marcas, como a métrica e as rimas; ou seja, um “compromisso” com determinados padrões
específicos que a identificam como popular. Diferentemente do que ainda é escrito sobre ela,
essa literatura popular não se limita, somente, a evidenciar o fantástico, o imaginativo, o
mágico; mostra-se atenta aos comentários críticos da vida cotidiana e às observações que são
julgadas relevantes para serem passadas aos leitores86. Caracterizados por serem compostos,
86
Segundo Roberto Benjamin (apud Luyten, 1992), “o público principal da literatura de cordel é ainda
o seu publico tradicional” (p. 67), o que corresponde dizer que os consumidores mais fiéis dos folhetos
ainda é o povo que frequenta feiras de pequenas e médias cidades do interior do Nordeste, migrantes
nordestinos e analfabetos, a quem as histórias são passadas oralmente. No entanto, o público do cordel
vem se modificando desde o momento em os folhetos entraram em salas de aulas de colégios e
universidades, fazendo com que estudantes também tornassem parte da nova clientela do cordel, além
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principalmente, com o intuito primordial de serem passados oralmente, os textos de cordel
não apresentam, na maioria das vezes, algum tipo de obrigatoriedade de se prender às normas
impostas pela gramática da nossa língua. Mesmo nas circunstâncias em que são escritos, eles
não se desvinculam das marcas da oralidade, como uso de palavras na forma coloquial, verbos
em forma reduzida e inadequações ou desvios da norma culta gramatical. Como os narradores
e autores dos folhetos de cordel não exibem preocupação em seguir um roteiro prédeterminado na produção de suas falas que, posteriormente se transformam em escritos, a
espontaneidade e a naturalidade desses indivíduos tornam-se marcadamente notáveis em cada
uma de suas composições. Assim, ainda mais evidente do que em discursos ou textos mais
formais, as marcas tradicionais e peculiares de quem se fala tornam-se mais perceptíveis.
II. Narradores e cantadores
Em seu texto “O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”,
datado de 1936, o filósofo e crítico literário alemão Walter Benjamin afirma que a arte de
narrar está em vias de extinção, uma vez que é cada vez mais escasso encontrar pessoas que
saibam narrar devidamente. Mais do que traçar uma discussão sobre o escritor russo Nikolai
Leskov, Benjamin propõe um estudo sobre a memória na construção da narrativa a partir do
papel desempenado pelo narrador. Ao longo das teses levantadas no texto, ele esmiúça o que
seria esse ato de construir uma narrativa ideal: considera que o grau de experiência de quem
narra deve ser elevado para que se possa contar histórias e formular ensinamentos aos que
forem seus leitores.
Considerando o contexto entre as duas Guerras Mundiais (1914 – 1918 e 1939 –
1945) em que o autor escreveu essas análises, ele não titubeia ao garantir que os homens têm
se tornado mais pobres em histórias surpreendentes por participarem de experiências
incomunicáveis, como as que acontecem nos grandes campos de batalha. Quando essas
pessoas querem esquecer as experiências negativas, elas ficam sem ter o que contar. Como “a
experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”
(p.198), torna-se possível compreender a importância da transmissão oral que é feita entre os
indivíduos, como, logo em seguida, afirma o próprio autor: “entre as narrativas escritas, as
de turistas que demonstram interesse em conhecer a cultura à qual o folheto está vinculado.
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melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos” (p.198). Benjamin (1994) ressalta que o ato de narrar supõe a presença
de ouvintes e estes constituem um grupo; a narração só teria sentido a partir do instante em
que é dirigida a esse coletivo.
Sobre a figura errante e persistente do cantador, Cascudo ressalta:
Curiosa é a figura do cantador. Tem ele todo orgulho do seu estado. Sabe
que é uma marca de superioridade ambiental, um sinal de elevação, de
supremacia, de predomínio. [...] São pequenos plantadores, donos de
fazendolas, por meia com o fazendeiro, mendigos, cegos, aleijados, que
nunca recusam desafio, vindo de longe o feito de perto. Não podem resistir à
sugestão poderosa do canto, da luta, da exibição intelectual ante um público
rústico, entusiasta e arrebatado. (1984, p. 127)
Como coloca Scholes e Kellogg (1977), “o cantador87 depende totalmente de sua
tradição” (p.14); é, principalmente, a transmissão oral que os cantadores nordestinos utilizam
como veículo para narrar suas experiências e essas podem ter sido adquiridas através de
viagens (o que Benjamin define como “narrador migrante”) ou pelas histórias tradicionais que
conhece e as experiências dos outros que são passadas a esses (“narradores sedentários”).
Sobre a relação entre o cantador e a tradição, Scholes e Kellog (1977) ainda completam:
O cantor oral ilustra a mais extrema forma do talento individual a serviço da
tradição e talvez, também, a forma extrema da tradição a serviço do talento
individual. Os dois são simplesmente aspectos da mesma entidade. Sem
cantos, a tradição morreria; sem a tradição, não haveria cantos. (p.16)
Segundo Benjamin (1994), a verdadeira narrativa é aquela que possui uma
dimensão utilitária e essa utilidade pode ser constituída por ensinamentos morais, provérbios
ou normas de vida; isto é, é aquela que possui o dom de dar conselhos: “o narrador figura
entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos [...]” (1994, p. 221). Esse tipo de narrativa
se baseia na sabedoria (considerada o “lado épico da verdade”) com a qual o narrador formula
87
No presente trabalho, a palavra “cantador” se referirá não somente aos poetas populares que usam o
canto no momento da recitação dos versos, mas também àqueles que os interpretam, podendo ser
identificados também como intérpretes, contadores. Portanto, o cantador poderá ser compreendido
aqui como aquele indivíduo que, durante a performance oral, estabelece um intercâmbio intenso entre
o público, os versos e o seu próprio posicionamento.
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seus conselhos, embasado no seu acervo de experiências próprias ou alheias a ele. Já em 1936
o autor concluía que essa sabedoria, o “pano de fundo” da arte de narrar, estava definhando e
impedindo que narradores compusessem boas histórias e até deixassem de resgatar também as
mais tradicionais. Sobre a literatura de cordel, Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (1977)
coloca que, nela, “é facilmente identificável, [...], uma função pedagógica” (p.31), uma vez
que os versos também podem desenvolver a função de passarem ensinamentos. É possível
afirmar que na literatura oral, os autores e intérpretes dos versos se preocupam em transmitir
ao seu receptor histórias que possam acrescentar algo em suas vidas. Visando informação ou
diversão, esses narradores populares se atêm a traduzir o mundo em que vivem, de forma
direta e acessível: “Na literatura popular encontramos traduzido o próprio espírito da
sociedade” (Diégues Jr, 1986, p. 173).
A literatura oral não se limita a provérbios, adivinhações, contos e orações e se
mantém viva por ainda ser perpetuada pela transmissão oral e também pela impressão dessas
histórias tradicionais. Segundo Cascudo (1984), a literatura oral se mantém intacta no
convívio dos falantes, sendo constantemente ativada pela memória popular, paralelamente ao
mundo composto pela literatura clássica e pelas produções contemporâneas. O povo torna-se
fiel à tradição e a conserva sempre atual, paralelamente a outros elementos:
A literatura que chamamos oficial, pela sua obediência aos ritos modernos
ou antigos de escolas ou de predileções individuais, expressa uma ação
refletida e puramente intelectual. A sua irmã mais velha, a outra, bem velha
e popular, age falando, cantando, representando, dançando no meio do povo,
nos terreiros das fazendas, nos pátios das igrejas nas noites de “novena”, nas
festas tradicionais do ciclo do gado, nos bailes do fim das safras de açúcar,
nas salinas, festa dos “padroeiros”, potirum, ajudas, bebidas nos barracões
amazônicos, espera de “Missa do Galo”; ao ar livre, solta, álacre, sacudida,
ao alcance de todas as críticas de uma assistência que entende, letra e
música, todas as gradações e mudanças do folguedo. (CASCUDO, 1984, p.
27)
Walter Benjamin, assim como o estudioso brasileiro, também acredita que as
histórias tradicionais bebem na relação harmoniosa e complementar exercida entre narradores
e leitores que, juntos, exercem a função de perpetuar uma literatura que pode se manter viva a
par de outras manifestações mais formalizadas. A tradição oral, que é a fonte das narrativas
orais, incorpora as coisas narradas às experiências dos ouvintes e, por tal motivo, adquirem a
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capacidade de se fortalecerem e se perpetuarem como uma história tradicional e peculiar a um
certo grupo. Portanto, quanto maior a naturalidade do narrador com a história narrada, maior a
probabilidade de seu ouvinte em assimilá-la, o que torna possível que adquira a capacidade de
contá-la novamente. O autor alemão mostra a importância exercida pela relação entre ouvinte
e narrador, a qual é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Assim, como
“contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não
são mais conservadas” (BENJAMIN, 1994, p. 205), o fato de se memorizar uma narrativa
equivale à ação de disseminá-la, preservá-la, passá-la adiante. Cada narrador é responsável
por aplicar na narrativa uma marca peculiar sua.
De acordo com o que é salientado por Diégues Jr (1986), nas cantorias da
literatura oral no Nordeste, é possível que se encontre dois tipos de poesia; um é tradicional,
que está na memória dos cantadores e que serve para encher o tempo, sendo chamado de
“obra feita”. Esse tipo de poesia, em geral, aproveita versos da literatura já escrita e, nele,
perde-se, na maioria das vezes, a autoria dos textos originais, uma vez que os versos são
exaustivamente repetidos pelos cantadores. Mesmo que em alguns casos se modifiquem as
palavras, as ideias são conservadas. E há, também, outro tipo de poesia que é denominado
“repente” e é caracterizado por ser improvisado e fruto de um fato momentâneo. O problema
da autoria, muito recorrente na literatura de cordel, faz com que os verdadeiros autores dos
versos sejam confundidos com os cantores, ou seja, com aqueles que interpretam as poesias.
Sobre o assunto, Diégues Jr (1986) salienta que:
Passavam os cantadores da região a ser conhecidos como autores das
histórias ou, pelo menos, do folheto, numa identificação tipicamente popular
e, aliás, tão comum em casos semelhantes. Adaptava-se desta maneira, ao
meio nordestino a poesia tradicional, as velhas novelas européias, tão
divulgadas também em Portugal [...]. (p.46)
Nas narrativas orais, a transmissão de histórias através das gerações se perde, pois
a versão contada mais recentemente assume o local daquela que tinha sido recitada
anteriormente e, daí por diante, são inevitáveis as modificações no teor dos versos. A falta do
registro escrito possibilita que não se conheçam esses processos de mudanças que, na
transmissão oral do conto, são apagados, sem que as pessoas envolvidas no processo de
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transmissão das histórias tenham conhecimento das metamorfoses sofridas por esses.. Em
toda a literatura popular a questão da autoria constitui um problema importante, já que é
intimamente ligada ao analfabetismo da maioria dos autores dos versos. Assim, Diégues Jr
(1986) confirma que “O analfabeto, como é a maioria dos poetas populares, inventa ou repete
o que ouve, não registra, guarda na memória; o alfabetizado, às vezes nem mesmo sendo
poeta, registra o que ouvi, e pode divulgar como próprio” (p.48). A figura do cantador,
portanto, torna-se relativamente ambígua, a partir do momento em que se tem a dúvida sobre
a autoria das poesias que recita. Cascudo (1984) também ressalta o fato de que o ouvinte da
poesia oral não se prende ao nome do autor, mesmo que esse tenha sido exposto ao seu
público: “O desnorteante é que ninguém guarda o nome do autor. Só o enredo, interesse,
assunto, ação, enfim, a gesta...” (p.28).
Sobre o momento em que o narrador, ou cantador, se dirige a seu ouvinte, Paul
Zumthor (1993) classifica-o como o ato da performance. A performance, para o autor,
distingue-se do possível anonimato das poesias orais pelo fato de aquela nunca ser anônima;
sempre carregada das marcas de quem a realiza, ela também corresponde a um maciço resgate
da memória. A performance seria então o processo completo da declamação das poesias: ela
evoca a importância da ação, dos atores, dos meios e das circunstâncias, do tempo, dos
objetivos. Zumthor classifica o narrador como intérprete e, da mesma forma que cantador
nordestino ativa sua bagagem de memórias populares para encarnar o seu personagem
narrador, esse transforma, recria e ajusta a coleção de lembranças folclóricas de uma
comunidade. A qualidade da performance está vinculada à completa interação entre intérprete,
texto e ouvinte. Zumthor afirma que “O intérprete é o indivíduo de que se percebe, na
performance, a voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista. Ele pode ser também compositor de
tudo ou parte daquilo que ele diz ou canta” (1997, p. 225). O autor ainda ressalta que a
predisposição do público é essencial para que haja sucesso no papel desempenhado pelo
executante da poesia: “a forma de atividade do intérprete, durante a performance, varia
segundo o número daqueles que o assistem ou partilham de seu papel [...]” (1997, p. 234).
Durante a performance, o intérprete é o indivíduo do qual se tornam nítidos a voz
e os gestos. A tradição entoada nos versos existe tanto na memória do intérprete quanto na do
grupo ao qual ele se refere, o que garante a revisitação mútua da tradição. Com grande
similaridade ao que Zumthor chama de performance, Benjamin (1994) coloca que:
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A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo,
eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da
mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela
ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu
aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na
verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos,
aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o
fluxo do que é dito.) (p. 220)
A narrativa, ainda como é exposto pelo autor alemão, é uma forma artesanal de
comunicação e, mergulhando o que é contado na vida de quem realiza o processo de narrar,
“se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”
(p.205). Benjamin (1994), ao citar o poeta francês Paul Valéry, afirma que o narrador é aquele
que, na prática da narrativa, sabe coordenar a alma, o olhar e a mão, como um típico artesão.
Da mesma forma que o grande narrador de Benjamin “tem sempre suas raízes no
povo” (1994, p. 214), aos poetas de cordel do Nordeste do país também são delegadas as
funções de transmitir o que é entendido como próprio do povo, como as cantorias, as cantigas
de roda, as orações, os poemas. A tradição não se estanca e nem perece por ainda existir
indivíduos que se comprometem a disseminar essas manifestações populares e a ensinar esse
“ofício” às gerações posteriores. Assim, mesmo que as experiências contemporâneas ainda
continuem em baixa, enquanto houver possibilidades de se inventar histórias ou de resgatá-las
de algum passado remoto ou não, existirão pessoas dispostos a fazê-lo. Seja no interior de
algum país, seja em grandes capitais.
III. Memória e sociedade
Le Goff (2003), ao afirmar que a memória social ocupa todos os âmbitos da
evolução humana durante o longo processo do desenvolvimento do homem, também
evidencia que o indivíduo reencontra sua memória coletiva a partir dos documentos escritos
do passado e os orais do presente. Para o autor, as sociedades que possuem a memória social
oral ou as que estão em vias de construir a escrita são as que compreendem melhor a luta pela
dominação da recordação, isto é, a retomada de temas de uma tradição e da manifestação da
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memória. Portanto, a memória coletiva se destaca por ser estritamente ligada a uma classe
social, pois, se essa desaparecer, aquela também passa a ser inexistente.
A mensagem poética que se integra à consciência cultural do grupo recorre,
sempre, a sua oralidade. Esta só tem relevância em um determinado grupo sócio-cultural
definido, pois nenhum discurso é neutro e tenderá, sempre, a assimilar as leis de um
comportamento social. A poesia oral possui um aguçado instinto de conservação social, o qual
permite que acontecimentos do passado sejam contados e direcionados para as gerações
seguintes. Os valores culturais refletidos nos contos populares são produtos de tradições e as
narrativas tornam-se constantemente atualizados, por representarem documentos do passado
sendo relidos no presente.
Paul Zumthor (1993), ao afirmar que “a voz poética assume a função coesiva e
estabilizante sem a qual o grupo social não poderia sobreviver” (p.139), também ressalta o
fato de que as tradições orais permeiam todos os discursos, independentemente da
temporalidade desses. Portanto, pode-se dizer que a “voz poética é memória” pelo fato de
também representar uma série de textos, ações e performances imbuídas no espírito de um
grupo social.
Como já foi dito anteriormente, o texto literário oral encontra-se raramente
isolado, e sim sempre enxertado em discursos ou em situações sociais. Segundo Bernd (1995),
a coletividade elabora a sua própria cultura e reforça ou questiona sua identidade e os apoios
memoriais de um grupo que permitem que os textos literários que se encontrem somente no
passado permaneçam vivos no presente.
No texto “O narrador”, de Walter Benjamin, anteriormente exposto no presente
trabalho, é notável que o autor privilegia a memória visto que essa depende da capacidade de
narrar e é associada, completamente à oralidade. Como acredita Halbwachs (2006), toda
memória sempre é um produto social. As histórias reproduzidas nos folhetos de cordel são
reflexos da atualização e da adaptação que essas narrativas sofrem ao passarem a ser
difundidas no Brasil. A partir do momento em que são contadas em um determinado local, são
naturalmente integradas a esse ambiente e, assim, adquirem características e circunstâncias
peculiares dessa sociedade. Com relação à memória individual e às sociedades à que se
referem, Halbwachs (2006) salienta que
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Ela não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado,
em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a
pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade.
Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível
sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o individuo não
inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. (p.72)
As culturas em que a oralidade ainda predomina sobre a escritura possuem a
memória como único fator de coerência, a qual perde a sua importância social à medida que
se aumenta o uso da escrita. A memória, além de ser o meio natural de conservação da poesia
oral, é o fator essencial para a propagação dela. No ato da performance, ou seja, no momento
em que se narra a poesia, a predisposição do público e o talento do cantador constituem a
atitude coletiva de que a memória necessita para se tornar evidente nos textos recitados e
lidos. Sobre a imprescindibilidade da tradição para a compreensão dos textos orais, Scholes e
Kellogg (1977) ressaltam que “qualquer texto ou representação oral isolada é, ao mesmo
tempo, criado e restrito pela ‘gramática’ de sua tradição e refletirá somente uma seleção das
infinitas possibilidades que são a própria tradição” (p.27).
Na literatura de cordel, a atualização dos romances tradicionais ocorre
naturalmente. Com o passar dos anos e com a mudança de geração de cantadores, os poemas
também são influenciados pelas características do novo ambiente e, claro, dos poetas que o
interpretam. Contudo, as modificações proporcionadas por diversos fatores não altera a carga
memorial que cada poema traduz, representando, ainda, o retrato das circunstâncias nas quais
foi produzido. Diégues Jr (1986) afirma que “se a memória popular vai conservando e
transmitindo velhas narrativas e acontecimentos recentes, esta transmissão está sempre
marcada pelo espírito desta sociedade” (p.173). O autor também conclui seu ponto de vista
afirmando que
Se os fatos tradicionais permitiam que a memória oral os conservasse e os
fosse transmitindo, geração a geração, os fatos acontecidos ofereciam a
oportunidade para a sua fixação nessa mesma memória; uns e outros se
incorporavam à história oral da sociedade, passando a assinalar momentos de
vivência ou épocas por ela vividas. Daí porque muitas vezes a própria
narrativa tradicional se atualizava, incorporando não apenas expressões
novas, criadas em cada época, senão ainda elementos expressivos da própria
sociedade, em sua cultura material ou mesmo em suas formas ou concepções
criadas espiritualmente. (p.173)
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Assim, para a conclusão do seguinte trabalho, pode-se reafirmar que a literatura
oral se mantém forte e viva e filiada às suas tradições, apesar das transformações naturalmente
sofridas pelo tempo e por outros fatores, resgatando os apoios memoriais da sociedade a que
estão relacionados. Os narradores, intérpretes ou cantadores dessas poesias, com a ajuda do
seu público, assumem a função e a responsabilidade de perpetuarem esses textos e
transformá-los em obra peculiar de sua própria tradição, independentemente das influências,
estrangeiras ou não, que permeiam os poemas.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre Nikolai Leskov. In: ____. Magia e
técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e História da Cultura. Tradução de Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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Brasil e França. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1995.
MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. Para uma leitura sociológica da literatura de cordel.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. VIII, nº 1 e 2, p. 7 – 87,1977.
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Ed. Unisinos, 2003.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;
São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1984.
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Rezende. In: Da diáspora: identidades e mediações culturais. 1ª ed. atualizada. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2009, p. 231 – 247.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: ____. História e Memória. Tradução de Irene Ferreira,
Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.
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ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. Tradução de Vicente
Ataide. São Paulo: Mc Graw-Hill do Brasil, 1977.
SUASSUNA, Ariano. A arte popular no Brasil. In: ____. Almanaque Armorial. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2008.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “Literatura” Medieval. Tradução de Amálio Pinheiro,
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia
Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.
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A COITA QUE SE CONTA/CANTA (VOZES DA AUSÊNCIA)
Renata Farias de Felippe88 (Profa. Dra.-UFSM)
Em Fragmentos de um discurso amoroso, Rolando Barthes trata sobre o discurso
da ausência problemática que, segundo o crítico, envolve as diferenças entre os gêneros:
Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher: a Mulher é
sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel (ela espera), o
Homem é inconstante (ele navega, corre atrás de rabos-de-saia). É a mulher
que dá forma à ausência, elabora-lhe a ficção, pois tem tempo para isso; ela
tece e ela canta; as Fiandeiras, as Canções de fiar dizem ao mesmo tempo a
imobilidade (pelo ron ron da Roca) e a ausência (ao longe, ritmos de viagem,
vagas marinhas, cavalgadas) (BARTHES, 2003, p.36).
Se em uma primeira leitura, a abordagem barthesiana relativa aos gêneros pode
soar parcial ou ingênua, o uso da letra maiúscula, que torna Mulher e Homem substantivos
próprios, remete a uma tipificação, a uma espécie de padronização referente aos paradigmas
arcaicos e fundadores da concepção dos gêneros. Tal essencialização volta-se ao arcaico, ao
simbólico e não às práticas e às relações sociais contemporâneas. Ao atribuir o discurso da
ausência à feminilidade simbólica, porém, Roland Barthes não retira do gênero masculino a
voz que brada o vazio amoroso:
Segue-se que, em todo homem que diz a ausência do outro, o feminino se
declara: este homem que espera e sofre com isso é miraculosamente
feminizado. Um homem não é feminizado porque é invertido, mas porque
está enamorado. (Mito e utopia: a origem pertenceu e o futuro pertencerá aos
sujeitos em quem o feminino está presente) (ibidem).
Nesse sentido, o feminino não seria uma condição, mas uma passagem,
independente do gênero do enunciador. Se adotar o discurso da ausência é “feminizar-se”, a
Mulher é a personagem que permite a expressão da perda, da desvantagem, do desejo de
completude.
88
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As ideias barthesianas nos parecem oportunas para tratarmos a relação entre o
discurso da ausência e a tradição literária (especialmente a oral), elo que tem no
Trovadorismo o seu momento de irrupção89. Tal poesia, organizada em torno do sentimento
de vazio amoroso, inaugura uma nova concepção de amor, que é mais sentimental e movida
pela ânsia de reciprocidade. Segundo Lígia Cademartori, ainda que a lírica medieval não
tenha iniciado a temática amorosa, com a poesia cavalheiresca, “inicia-se o culto consciente
do amor, o destaque à sua importância, a crença de que o sentimento amoroso seja fonte de
bondade e beleza” (CADEMARTORI, 2002, p.11). Esse culto consciente, que torna o sujeito
amoroso alvo de devoção - ideal retomado pelos românticos - revela uma postura que
contraria o teocentrismo predominante na Idade Média, ao mesmo tempo em que reproduz o
servilismo social (entre senhor e servo) no âmbito da poesia amorosa. Atormentado diante da
indiferença da Senhora, mulher de classe social superior e, frequentemente, casada. na lírica
cortês medieval o sujeito poético canta/conta a sua dor. Ao contar a sua desvantagem, o eu
lírico masculino é subjugado pela amada, o que representa uma inversão, se considerarmos as
relações entre os gêneros na época.
Tratar sobre as cantigas medievais envolve, necessariamente, a referência ao
trovadorismo provençal, modelo preponderante em toda a Europa, exceto na Península
Ibérica, onde predominou o trovadorismo galego. Aliado à herança árabe e moçárabe, o
trovadorismo português deu origem às cantigas de amigo, manifestações cuja origem popular
remete às carjas, cantos anônimos entoados por mulheres de origem mourisca (SEIXAS,
2000, p.20). As cantigas de amigo, porém, apresentam peculiaridades: nelas, o trovador
89
A aproximação entre Roland Barthes e a tradição poética medieval tem o texto de Nicole Loraux,
“O elogio do anacronismo”, como um norte. Segundo a historiadora, a prática controlada do
anacronismo seria uma maneira de refletir sobre a presença de elementos do passado no presente, bem
como um modo de interrogar o pretérito com questões atuais não exatamente para julgá-lo, mas no
intuito de perceber a não-novidade de determinadas inquietações contemporâneas. De acordo com
Loraux:
Nem tudo é possível absolutamente quando se aplicam ao passado questões
do presente, mas se pode pelo menos experimentar tudo, com a condição de
estar a todo momento consciente do ângulo de ataque e do objeto visado. A
verdade é que, ao trabalhar no regime de anacronismo, há ainda mais a tirar
da caminhada que consiste em voltar para o presente, com o lastro de
problemas antigos [grifos meus] (LORAUX, In: NOVAES [org],1992,
p.64).
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assume um sujeito poético feminino e popular que conta/canta às amigas, à natureza ou a si
mesma a dor resultante da ausência do amado. Segundo Cid Seixas, ao adotar o gênero
feminino o trovador cria uma personagem, o que faz dessas cantigas manifestações,
simultaneamente, poéticas e ficcionais. De acordo com Seixas, ao reconhecer a ficcionalidade
do eu poético, a velha cantiga de amigo já realiza aquilo que é frequentemente atribuído à
modernidade: a despersonalização (SEIXAS, 2000, p.92).
A utilização do artifício poético contraria a “sinceridade” de sentimento
almejada pela lírica galaico-portuguesa de influência provençal. Se as cantigas de amor
colocam a poesia e a ficção em campos separados, as cantigas de amigo aliam ambas as
expressões. Nesse sentido, de acordo com Seixas, as cantigas de amigo introduzem na
literatura portuguesa uma problemática que viria a ser, provocadoramente, retomada por
Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor. Se muitos séculos foram precisos para que
entendêssemos que “fingir é conhecer-se” (cf. ibidem, p.25), as cantigas de amigo são as
manifestações que introduzem na literatura portuguesa o processo de despersonalização
literária.
Discursivamente, o “travestimento” poético tem um efeito significativo sobre
as cantigas de amigo, que soam mais espontâneas, melancólicas e, frequentemente, mais
ousadas quanto à expressão do sentimento amoroso 90, quando comparadas às cantigas de
amor.
90
A cantiga “Baylia das avelaneyras”, de Ayras Nunes de Sant’Iago, é frequentemente retomada como
exemplo de manifestação que alia a espontaneidade das jovens amantes à sensualidade. Segundo Cid
Seixas:
Observa-se a sugestão amorosa contida na frase “mentr’al nõ fazemos”
(enquanto outra coisa não fazemos). A dança, sob as avelaneiras, é então um
pretexto ou uma preparação para o ato amoroso. Nesta estrofe final ficamos
sabendo que as amigas marcaram um encontram amoroso sob os pés das
avelãs e que dançam enquanto esperam seus namorados. Por outro lado, a
tradição medieval ibérica registra festas amorosas com danças por entre
flores, o que acentua a leitura erótica deste poema musical (SEIXAS, 2000,
p.97).
A “Cantiga mal maridada”, atribuída ao rei trovador D. Diniz é uma composição que vai mais além:
nela, o sujeito poético feminino revela o adultério e, assim, “vinga-se” não só do marido como das
convenções. Para maiores detalhes, consultar: SEIXAS, Cid. O trovadorismo galaico-português. Feira
de Santana: UEFS, 2000.
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A mulher que fala nas cantigas de amigo vê o amor como bem supremo e
epifania da vida, enquanto o sujeito das cantigas de amor cultiva a
sublimação dos sentimentos humanos em ânsia incorpórea. Não podemos
deixar de ver o confronto das duas culturas, de duas visões de mundo
conflitantes, que compuseram o sistema cultural da Península Ibérica na
Idade Média. De um lado, a sensualidade como essência da vida dos povos
árabes, o culto do corpo e suas veredas sinuosas; do outro, a abstinência
como caminho à ascese cristã, a identificação do corpo como lugar dos
vícios (ibidem, p.93).
Se o sujeito poético das cantigas de amigo tem no gênero feminino uma suposta
barreira à livre expressão afetiva, por outro lado, o fato de o amado ser também uma figura
popular elimina dessa expressão a submissão social. A adoção do gênero feminino, portanto,
nas cantigas de amigo, permite ao trovador uma libertação expressiva, uma abertura à
espontaneidade afetiva da qual as mulheres da época não dispunham. As carjas, das quais as
referidas cantigas descendem, diferentemente, eram compostas e entoadas pelas próprias
mulheres. No que diz respeito à liberdade de expressão feminina, as cantigas de amigo,
portanto, representam um retrocesso diante das carjas, cerceamento evidentemente motivado
pela concepção cristã. Desse modo, as cantigas se destacam não apenas por fundarem uma
concepção amorosa peculiar, mas por fazê-lo a partir da articulação de tradições populares
ancestrais, o que nos lembra, incessantemente, que “o novo não está no que é dito, mas no
acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2006, p. 26).
Gênero fundador, ainda que influenciado por referenciais ainda mais remotos, as
cantigas de amigo inauguram um novo modo de contar o amor e a perda. Tais manifestações
permitem a abertura do sujeito poético para uma nova sensibilidade, “feminina”, como revela
Roland Barthes. A liberdade discursiva propiciada pela adoção do gênero feminino, porém, só
se realiza ficcionalmente e não a serviço das mulheres. A coincidência entre o gênero do
discurso e o da identidade da autora, como é sabido, só será realizada e popularizada no
século XX. Falar como mulher e pela mulher: artifício que permite maior liberdade estética e
expressiva ao cantador, mas prática não empenhada em romper com o silenciamento real do
gênero feminino.
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As cantigas de amigo como textualidades fundadoras de discursividade 91 –
originam o discurso da ausência que, como vimos, é feminino – baseiam-se em uma
apropriação, que tem uma feminilidade presumida como medida. Nesse sentido, os textos que
formulam uma suposta sensibilidade feminina parecem desconfortáveis quando tomados
como referenciais para textos de autoria feminina. No presente trabalho não pretendemos
“reparar” ou denunciar silenciamentos históricos, mas refletir sobre a irrupção de uma
tradição, por vezes imprevista, no interior de textualidades contemporâneas nas quais o
gênero do discurso e o da enunciadora coincidem. Se as cantigas de amigo são lembradas
como manifestações que estão na origem de uma discursividade feminina - ainda que as
mesmas se utilizem de um processo de ficcionalização e despersonalização -, não podemos
ignorar, no entanto, que tais cantigas foram construídas por trovadores que, por sua vez, se
apropriaram das vozes ancestrais e populares de mulheres anônimas. Nesta confluência de
empréstimos, nos primórdios deste verbo, estavam as carjas, manifestações compostas e
entoadas por mulheres, rejeitadas pelos códices por questões que envolvem não apenas a
problemática do gênero como a de classe, tendo em vista o caráter popular de tais cantos.
A ausência amorosa, como temática, movimenta uma tradição que transcende a
natureza do relato (oral ou escrito) e, no âmbito da expressão, faz daquele que conta/canta o
vazio um sujeito discursivo feminino. Na tradição literária portuguesa, as vozes da ausência
originaram textualidades que, mesmo distanciadas no tempo, se aproximam estilisticamente:
das famigeradas Cartas portuguesas, atribuídas a Mariana Alcoforado, à poesia de Florbela
Espanca; das cantigas de amigo aos fados, o vazio, com sotaque lusitano, se faz ouvir e notar.
A inquietação que move o presente trabalho é a irrupção de uma voz que, mesmo distanciada
culturalmente da tradição portuguesa, desta se aproxima. A canção “Honey, Honey”, da
cantora e compositora canadense Feist, parte do álbum, não casualmente, intitulado The
Reminder (2007), está muito próxima das canções de amigo não só do ponto de vista formal,
mas por aliar a simplicidade e a espontaneidade de sentimento a um requintado processo de
tessitura poética.
Na primeira estrofe da composição, o sujeito poético feminino, à maneira das
cantigas de amigo, pede à natureza, metonimicamente representada pelo mel armazenado no
91
Os textos fundadores de discursividade, segundo M. Foucault, são aqueles que produzem a
“possibilidade e a regra de formação de outros textos” (FOUCAULT, 1992, p.58).
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alto das árvores, que guie o amado e os seus companheiros ao mar pelo leste. A palavra
honey, que em inglês significa tanto “mel” quanto “querido (a)”, na canção, é utilizada ora em
um sentido, ora em outro. Em ambas as utilizações, porém, o termo remete ao afeto que o eu
lírico dedica ao seu objeto amoroso, bem como indica a intimidade entre os amantes. Nos
primeiros versos, o termo é utilizado em seu sentido primeiro:
Honey honey up in the trees/ fields of flowers deep in his dreams/ lead them
out to sea by the east/ honey honey food for bees92.
Na estrofe seguinte, o termo adquire outra conotação:
Honey honey, out on the sea/ in the doldrums thinking of me/ me I'm driving
thinking of he/ honey honey, not next to me93.
O eu lírico feminino imagina o seu amado mar afora, entediado, pensando nela,
enquanto a própria lamenta a sua ausência e a sua distância. Palavra geralmente utilizada
como substantivo ou como adjetivo, a letra da canção abre à possibilidade de entendermos o
termo “querido” como um vocativo, como uma interpelação, o que acentuaria a carência
afetiva e a solidão do sujeito poético, voltado para um interlocutor imaginário ou,
simplesmente, ausente. A inquietação e o sofrimento se acentuam na estrofe seguinte, quando
o sujeito questiona:
Even if he wanted to/ Even if he wanted to/ Do you think he’d come back?/
would he come back?94
Nos versos citados, não fica claro se o eu lírico se dirige a algum elemento da
natureza (como o fez na primeira estrofe, ao se dirigir ao mel armazenado no alto das
árvores), se trava um questionamento consigo mesma ou se se dirige ao ouvinte presumido.
Independentemente do interlocutor, a impossibilidade de o sujeito poético obter uma resposta
às suas aflições nos leva a encarar as perguntas como questionamentos internos. Ao tratar
sobre as cantigas de amigo, Cid Seixas revela que “o diálogo da apaixonada com os elementos
92
“Mel, mel nas árvores/ campos de flores no fundo dos seus sonhos/ leve-os para o mar pelo leste/
mel, mel comida para abelhas”.
93
“Querido, querido no mar afora/ no marasmo pensando em mim/ eu em terra firme pensando nele/
querido, querido não está perto de mim”.
94
“Mesmo se ele quisesse/ mesmo se ele quisesse/ Você acha que ele voltaria? Ele voltaria?
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da natureza [...] pode representar o diálogo interior da pessoa consigo, estratégia discursiva
utilizada pelos trovadores para compor o quadro ingênuo da rapariga simples” (cf. SEIXAS,
op.cit. p.100). Sendo esta análise movida pelo intuito de aproximar as vozes da ausência, o
questionamento interior pode ser visto como mais um elemento que aproxima a canção de
Feist das cantigas. O verso seguinte (“Oh, no”), repetido na música à exaustão, reiteram, uma
vez mais, a inquietude e o sofrimento do eu poético.
Na estrofe final, no entanto, o sujeito contemporâneo sai à procura do amado,
distanciando-se do eu poético ancestral que nas cantigas de amigo dava voz à espera e à
impotência:
Honey, honey out on the sea/ in the doldrums waiting for me/ me in my boat
searching for he/ honey, honey food for bees95.
Ainda impotente - já que a amante não obtém respostas às suas perguntas e
tampouco encontra o amado - , ao contrário dos sujeitos femininos das cantigas, na canção a
portadora da voz transforma a coita na força que move a sua busca. Mesmo que entendamos a
procura como um processo imaginário, nas cantigas originais o exercício ou mesmo a
expressão da iniciativa são representações ausentes ou, no mínimo, infrequentes. O verso que
encerra a canção é impregnado de ternura, de melancolia e de uma inquietante ambiguidade: o
mel é a comida das abelhas ou o querido seria o alimento? No caso de, como
leitores/ouvintes, aceitarmos a última possibilidade de leitura, o amado é o alimento para as
abelhas por ser doce/dócil ou por estar morto? Aqui entramos no jogo de um eu
lírico/personagem hábil a ponto de envolver o seu leitor (ou o seu ouvinte) na teia de suas
próprias angústias.
A canção “Honey, honey”, ao contar/cantar a coita amorosa, anima vozes
ancestrais esquecidas que soam particularmente estranhas à cultura canadense. Se, no
momento, não nos parece possível mapear influências diretas, é fato que a lírica medieval
inaugura uma expressão peculiar do sentimento amoroso que é mais lamentosa e mais
próxima aos afetos do cantador. No caso do trovadorismo ibérico, as cantigas de amigo, de
origem popular, vão mais além: inauguram a expressão íntima de sentimento através de um
95
“Querido, querido mar afora/ no marasmo pensando em mim/ eu no meu barco procurando por ele/
mel, mel comida para abelhas”
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processo de despersonalização que envolve questões de gênero e de classe. A expressão da
ausência, nessas cantigas, é permeada por uma espontaneidade forjada, que estaria mais de
acordo com a expressão de um sujeito feminino. Já a composição em análise – que, como
vimos, apresenta inquietantes semelhanças com a tradição poética medieval ibérica e popular
– também é movida por um processo de despersonalização não propriamente relativo ao
gênero, mas por trazer à tona uma posição discursiva arcaica e impotente. Nesse sentido,
“Honey, honey” pode ser encarada como uma ruína, amparada sobre os escombros de uma
tradição inusitada. Ao tratar a impotência e a inquietação da amante em um período no qual as
mulheres gozam de liberdade expressiva e afetiva, a composição soa anacrônica e é esse
anacronismo um dos elementos responsáveis pelo envolvimento emocional do leitor/ouvinte.
Bibliografia
BATHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
______. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.
LORAUX, Nicole. O elogio do anacronismo. In: NOVAES, Adauto (org). Tempo e História.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992,
SEIXAS, Cid. O trovadorismo galaico-português. Feira de Santana: UEFS, 2000.
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MEMÓRIA E TESTEMUNHO: A MALDIÇÃO DE TER VIVIDO EM “DAMA DA
NOITE”, DE CAIO FERNANDO ABREU
Ricardo Augusto de Lima96 (G-UEL)
O narrador, ao atualizar o arquétipo, desempenha uma tripla função na
cultura oral: narra, é o performer sensível ao auditório, já que incorpora a
voz da comunidade; ouve, troca experiências com outros narradores e
absorve as histórias que lhe contam; e cria, torna-se o responsável por
constituir um sentido para o que ouviu, bem como por atualizar isso com
significantes e significados diferenciados. (FERNANDES, 2003, p. 34).
Narra, ouve e cria. Essas três estâncias que garantem ao narrador oral o estatuto de
narrador podem ser notadas de várias maneiras. A literatura mais recente carrega consigo um
tom memorialista que, mesmo estando sempre presente na literatura, se faz mais presente, ou
mais explícita, a partir do século XX. Não podemos ignorar a presença de certas
autobiografias, como a primeira desse gênero, de Agostinho de Hipona, ou a primeira sob os
moldes que chamarei talvez cedo demais de modernos, ou seja, a de Rousseau. No entanto,
não me prendo a esse tipo de narrativa, e sim àquela que possui tom confessional, ainda que
construída dentro de uma obra nitidamente ficcional. Diferentemente da autobiografia, tais
textos não assumirão o pacto de verdade do qual fala Philippe Lejeune. Esse pacto de verdade
surge quando o autor deixa claro sua intenção: conta sua história. Desta forma, fica explícita
sua intenção de criar ali uma sequência de fatos que podem ser tomados como referenciais,
isto é, verídicos. Tal intenção fica clara na identidade do autor, narrador e personagem.
Quando essas três figuras são declaradamente a mesma pessoa, temos uma autobiografia. 97
Logo, não podem ser chamados de autobiográficos, mesmo que certos traços históricos ou até
mesmo pessoais do autor empírico sejam notados, misturados aos fatos fictícios. A esses
textos, cuja memória muitas vezes se fará presente, chamarei autoficção.
Com isso, pode-se dizer que a ficção contemporânea traz consigo uma marca
autobiográfica de seus autores que, mesmo se inscrevendo em realidades paralelas à dimensão
96
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P. Lejeune aborda outros fatores que não nos interessam com intensidade aqui, como a narrativa ser
em prosa, por exemplo. O que queremos enfatizar aqui é a figura do autor e do narrador e/ou
personagem, uma vez que a autoficção terá neles sua base teórica.
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real, ainda remontam certa proximidade com suas personalidades iniciais, que, se bem
observado, não é de se estranhar em uma literatura que por si só é polifônica. Em se tratando
de Brasil, Silviano Santiago escreve que predomina na prosa dos anos 1970 a chamada “prosa
com nítida configuração autobiográfica” (1989, p. 32).
Nesse contexto, o nome de Caio Fernando Abreu aparece por ter uma obra
transgressora no “pacto ficcional”, visto que incorpora elementos que pedem a leitura
conjugada de um paratexto, ou, ainda, elementos que pedem outra leitura, não só ficcional,
mas também referencial. Tal modo de escritura cabe naqueles laços que Lejeune chamou de
“pactos indiretos”, isto é, há breves, e muitas vezes implícitas, indicações no texto que nos
revela a pessoa do autor, que ressuscita no mesmo. Philippe Lejeune (2008, p.42) ainda ousa
afirmar que tais textos são “homenagens que o romance rende à autobiografia”. Desta forma,
algumas obras de Caio Fernando Abreu se inscrevem entre dois gêneros, ficção e
autobiografia, incapazes de serem um ou outro. Seu tom intimista, o mesmo que encontramos
em Clarice Lispector e Lúcio Cardoso, por exemplo, impede que seja feita uma leitura
excludente de um desses dois fatores.
Assim, para se verificar a oralidade incluída como ferramenta de autenticação do
testemunho dado através da memória, abordaremos o conto “Dama da noite”, do livro Os
dragões não conhecem o paraíso, de 1988. Tal livro foi chamado por Caio Fernando Abreu,
como seu livro mais autobiográfico, mesmo que esse rótulo fosse, sempre, rejeitado pelo
autor. Os treze contos giram em torno de um único tema: o Amor, em todas as suas faces.
Amor-morte, amor-dor, amor-solidão. Talvez por isso o livro seja tão “autobiográfico”: Caio
Fernando sempre foi um amante. Primeira, pela literatura. Depois, uma vez descoberta sua
sexualidade, por várias pessoas. Tais amores, por sua vez, sempre traziam tristeza, fracasso,
não realização, levando o escritor a escrever. Sua literatura é, portanto, altamente
confessional, embora ficcional. Discordando do próprio autor em chamar seu livro de 1988 de
autobiográfico, preferimos chamá-lo de autoficcional, concordando com Philippe Lejeune em
uma leitura ficcional de textos que partem de fatos empíricos, como se verá adiante.
Não se pode ignorar o fato de que toda memória escrita se torna ficção, e que,
possivelmente, todo romance é uma espécie de desejo de ser sincero, por menor que seja esse
desejo. A oralidade faz com que a memória da personagem Dama da noite não seja
simplesmente escrita, mas falada, qual depoimento. Aliás, é a oralidade que dá ao conto seu
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tom memorialista. A enunciadora obtém pela escrita e pela fala as três estâncias citadas a
partir da abordagem de Frederico Fernandes: narra, ouve e cria. A narração provém do fato de
ouvir (somado aos outros sentidos de ver e sentir). Logo, teremos a experiência como forçamotriz dessa narração. O criar fica por conta da escrita: cria-se uma ficção por meio da
palavra, eterniza-se a voz. Vejamos:
Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí
feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada
no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos
outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e
assim por diante nessa roda-gigante. (ABREU, 1988, p. 91)
Esse começo não nos revela nada de novo em tons narrativos. Uma pessoa
identificada como mulher apenas pelo adjetivo no feminino (parada, sentada) em um bar.
Como muitos contos do autor, a narrativa já “começa-começada”, na metade da ação. Não se
sabe como ou quando a Dama da noite chegou àquele bar. Tampouco se sabe como seu
interlocutor, o “boy”, chegou lá. Porém, mais adiante, a oralidade se fará notar no tom de
conversação.
[...] Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá.
Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você
entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de
fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar.
Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto
com eles nessa roda idiota – tá me entendendo, garotão?
Nada, você não entende nada. Dama da noite. Todos me chamam e nem
sabem que durmo o dia inteiro. Não suporto: luz, também nunca tenho nada
pra fazer – o quê? Umas rendas aí. É, macetes. Não dou detalhe, adianta
insistir. Mutreta, trambique, muamba. Já falei: não adianta insistir, boy.
(ABREU, 1988, p. 91).
A partir de traços orais da linguagem (sei lá, tá me entendendo, o quê?) nota-se
que se trata não de uma narrativa apenas escrita, mas de uma narrativa transcrita. A mulher,
que fala “sozinha”, sugerindo ao leitor-interlocutor as perguntas feitas e dando as devidas
respostas, começa a pensar a vida, chamada por ela de roda. A imagem da roda da fortuna,
muitas vezes associada à vida, se faz presente. A roda aqui, entendida como espécie de
engrenagem social e, também, símbolo de sorte, ou seja, de destino, controla e modela a vida
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das pessoas, deixando-as tontas. Todo o conto vai girar em torno da roda, mostrando quão
desesperançosa é aquela geração da qual faz parte a Dama da Noite, que muito já viveu, que
muito já viu, que muito já ouviu e que muito já narrou. Interessante notar que a personagem,
que ao longo do conto vai descrever uma cidade parecida com São Paulo, lança a expressão
bá, característica do Sul do país. Não podemos, aqui, em uma leitura pelo viés autoficcional e
oral, ignorar o fato de Caio Fernando Abreu ter saído do Rio Grande do Sul, quase fronteira
com a Argentina, da cidade de Santiago do Boqueirão, e ter ido morar em São Paulo
(experiência esta, diga-se de passagem, negativa no ponto de vista pessoal – ao contrário se
diz do profissional). Logo, temos uma identificação oral da narradora (ficcional) com o autor
(real). Para essa afirmação, ignoramos a diferenciação feita por Chartier entre autor e escritor
englobando um único termo (autor) para representar tanto o nome que assina quanto o autor
empírico.
Trata-se do monólogo de uma personagem que se autonomeia “Dama da noite”,
alusão à planta de mesmo nome de intenso odor, por vezes irritante. O interlocutor é um
rapaz, o “boy”. Entretanto, em certos trechos, é irresistível não imaginar que a Dama fala com
o próprio leitor, devido à proximidade de situações que ela coloca. Ora, o conto, já dito, parte
do livro Os dragões não conhecem o paraíso, trata do amor, nas suas mais variadas formas. O
amor, e podemos dizer isso tendo em mente toda a obra caiofernandiana, aproxima autor e
leitor, mundo e obra. Daí nosso interesse em abordar a oralidade da Dama da noite como
premissa de uma autoficcionalidade, não apenas afirmando ser um conto autoficcional, visto
que aborda o contexto como pano de fundo para sua formação, mas também porque, a priori,
o “boy” é qualquer um que lê, que ouve, que é sujeito passivo do monólogo da Dama da noite,
inclusive, e primeiramente, o próprio autor.
Não será exagero afirmar que esse “boy” com quem a Dama fala é metonímia de
toda uma geração sem grandes esperanças, cuja juventude/maturidade se dá na década de
1980. Isso fica explícito quando a Dama se irrita e fala:
Sabe porra: você nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não sabe
nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark,
computador, heavy-metal e o caralho. Sabia que eu até vezenquando tenho
mais pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles
meus amigos fodidos? A gente teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia
dar, ia dar, sabe quando vai dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão,
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mas vocês chegaram depois que mataram a ilusão da gente (ABREU, 1988,
p. 94).
Aqui se apresenta claramente essa geração chamada por Haroldo de Campos de
pós-utópica: uma geração cuja poesia (arte) é destituída de esperança, ou ainda, possui uma
“esperança programática que permite entrever no futuro a realização adiada do presente”
(CAMPOS, 1997, p. 265). Todo texto é marcado por essa falta de esperança na “roda”,
evocando a crise, o fracasso, uma vida que já é por si só niilista. Ela, por sua vez, se acredita
como uma espécie de griot, porque “tava tudo morto quando você nasceu, boy, e eu já era
puta velha.” Sua vivência, mais do que sua idade, a faz merecedora do título de narradora. Sua
capacidade de narrar provém de suas experiências, princípio este comungado por Caio
Fernando Abreu, ao afirmar que "a melhor maneira que tinha de melhorar [sua] literatura era
[vivendo] o máximo de experiências possível." (ABREU, 1994).
Além disso, a geração desse “boy” se formou após o período de boom da AIDS,
onde até mesmo a sexualidade, conquista maior do homem pós-moderno, foi privada. A
oralidade na qual a escrita se constrói, cria, a partir da voz da Dama da noite, a identidade
desse sujeito-interlocutor que não nos é dado conhecer. Porém, a mesma oralidade cria a
figura do “boy” e, mais, cria as ações entre os dois personagens:
Você não gosta? Ah, não me diga, garotinho. Mas se eu pago a bebida, eu
digo o que eu quiser, entendeu? Eu digo meu-bem assim desse jeito, do jeito
que eu be m entender. Digo e repito: meu-bem-meu-bem-meu-bem. Pego no
seu queixo a hora que eu quiser também, enquanto digo e repito e redigo
meu-bem-meu-bem. Queixo furadinho, hein? Já observei que homem de
queixo furadinho gosta mesmo é de dar o rabo. Você já deu o seu? Pelo
amor de Deus, não me venha com aquela história tipo sabe, uma noite, na
casa de um pessoal em Boiçucanga, tive que dormir na mesma cama com um
carinha que. Todo machinho da sua idade tem loucura por dar o rabo, meu
bem. Ascendente Câncer, eu sei: cara de lua, bunda gordinha e cu aceso. Não
é vergonha nenhuma: tá nos astros, boy. Ou então é veado mesmo, e tudo
bem. Levanta não, te pago outra vodca, quer? (ABREU, 1988, p. 92).
Essa sexualidade conhecida da Dama da noite está face a face com o perigo
iminente da morte na metáfora da AIDS. Ela própria se faz, a partir da sua contação de
histórias, testemunha dessa crise sexual. E mais: ela se faz participante dessa crise. O
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sentimento que ela experimenta é um sentimento amargo, de amor não realizado, de fuga
inexistente. Ela viu muita coisa, e seus olhos refletem essa vivência.
Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem
cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar
AIDS. Vírus que mata, neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu
cuzinho, pronto: paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara
e salve-se quem puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios
generalizados. Ô boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein?
Você nem beija na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você
leu em algum lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de
cu na mão. Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você
lê, claro. Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê
pela tevê, eu sei. Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor
mata amor mata. (ABREU, 1988, p. 94-5).
“Vírus do amor”. Assim chegamos ao centro de toda a narração oral-escrita dessa
mulher madura: o amor se faz nela a metáfora do total fracasso que a vida moderna se tornou.
A vida contemporânea nos oferece meios para se aliviar as frustrações amorosas (prostituição
fácil, internet, sexo virtual, pornografia, enfim). Entretanto, os laços afetivos estão cada vez
mais frágeis e fúteis, condicionados aos amores líquidos, apontados por Bauman (1998). O
sexo virtual, por exemplo, é alívio e fuga de uma sexualidade reprimida (a) pela AIDS e (b)
pela efemeridade dos laços afetivos. Porém, a “sede” continua. Essa fuga-sede é uma espécie
de “antropofagia sentimental”: come-se o outro a fim de nutrir-se a si mesmo, não mais para
oferecer algo. Esse ato de comer se compara às comidas rápidas da modernidade: sua comida
em menos de cinco minutos. Passadas algumas horas, sente-se fome novamente. Com o
perdão da ambiguidade e da possível comparação chula, o amor se apresenta da mesma
forma: sente-se fome, come-se o fast food e a fome, que inicialmente aparenta estar saciada,
surge minutos depois.
Da mesma forma que o “boy” sabe disso porque “vê pela tevê”, a narrativa indica
que a Dama da noite sabe disso porque viu pela vida, senão vivendo. Assim, ela testemunha
sua provável fatalidade:
Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e
mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar
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para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem
nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue
com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy.
(ABREU, 1988, p. 95).
Ela se torna, também, metáfora da própria AIDS, já metáfora da morte.
A sua contação, então, ao invés de trazer a cultura da vida, como entre griots
africanas ou pajés indígenas, traz a cultura da morte, a fatalidade do mundo, a doença do sexo
e do amor.
Dito isso, podemos crer que a utilização da oralidade explícita no texto deseja,
estilisticamente, causar o impacto que a Dama da noite quer causar no “boy”: sendo
testemunha daquilo que conta, ela se torna merecedora de crença. Não está contando os fatos
pelas vozes do outro, do narrador onisciente ou do narrador onipotente. Renuncia a isso, pois,
se pudesse, acabaria com essa morte completa. Como pessoa, ela não tem esse poder. Seu
único “poder” é “contaminar teu sangue com todos os vírus”. Se fosse onipotente, salvaria, e
não mataria.
A geração da qual “boy” faz parte se formou durante o período mais cruel da
AIDS, modificando todo o processo social normativo. A sociedade de consumo se fortalece, o
individualismo, enfim, se consolida e o hedonismo conduz a experiências cada vez mais
individuais, fazendo com que o privado se torne público, fato que encontramos nos contos
“Terça-feira gorda” e “Aqueles dois”, também de Caio F. Isso faz com que a Dama da noite
afirme que: “Punheta pode, eu sei, mas essa sede de outro corpo é que nos deixa loucos e vai
matando a gente aos pouquinhos.” (p. 95).
Assim, uma geração que “não viu nada”, “nem viu o amor”, não pode ficar a
mercê dessa sociedade. Por isso, a longa fala solitária da Dama da noite (e talvez nem tanto
solitária devido às inúmeras referências às perguntas feitas pelo interlocutor, ou, ainda,
perguntas que provavelmente ele faria) precisa ser fortalecida pelo estatuto de vivência,
experiência, de ser fato empírico, e não mais uma notícia de jornal ouvida ou um filme
assistido. Ou, ainda, para os mais cultos, que ouvem falar de um vírus e vão pesquisar:
“Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia:
você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei.” (p. 94) Dama da noite
é a típica figura assombrada pela paranoia da AIDS que precisa “preparar” uma nova geração,
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a fim de que não sofram como ela sofreu. Ela sabe, como o autor sabia: “amor mata amor
mata amor mata”. (p. 95).
Interessante ressaltar que a cultura transmitida oralmente pela Dama da noite é,
assim como que em sociedades tribais, africanas e indígenas, uma cultura social: a de um
grupo, de uma geração. A homossexualidade sempre existiu, assim como o sexo. Porém, só
no século XX é que começa a existir uma cultura sexual e, consequentemente, uma cultura
homossexual, que irão, por sua vez, gerar um modo de vida. Esse modo de vida, inquietante
para Foucault, é o criador de uma teia social.
A Dama da noite se prende a esse modo de vida (homo/a) sexual, pois
Das muitas tendências, inclinações e propensões naturais dos seres humanos,
o desejo sexual foi e continua sendo a mais óbvia, indubitável e
incontestavelmente social. Ele se estende na direção de outro ser humano,
exige sua presença e se esforça para transformá-lo em união. Ele anseia por
convívio. Torna qualquer ser humano – ainda que realizado e, sob todos os
outros aspectos, auto-suficiente – incompleto e insatisfeito, a menos que
esteja unido a um outro (BAUMAN, 2004, p.55).
Mesmo tendo o sexo se tornado algo episódico, a busca pelo Outro permanece
implacável e, pode-se dizer, cruel. Nessa voz, marcada pela oralidade de um sujeito que não
quer, mas fala sozinho, encontramos, por sua vez, a voz do autor. Ignorando preceitos
barthianos e foucaultianos sobre a morte do autor, podemos aplicar paralelamente à estética
da oralidade, a estética autoficcional, uma vez que a Dama da noite relata vivências de
alguém, isto é, um autor empírico.
Essa identificação de sexo como amor ocorre frequentemente em textos do
escritor gaúcho. Vejamos: a Dama da noite percorre bares a procura de um porto, um
“verdadeiro amor”. Errata: “O Verdadeiro Amor”. Não mais algo passageiro, não mais algo
episódico, mas algo que seja, como o amor romântico, eterno. Esse amor, comumente
relacionado ao sexo, é a grande procura também de Caio. “As personagens procuram no sexo
a promessa do ‘grande amor’” (BESSA, 2002, p. 120). Já adentrando nos campos da
autoficção, o próprio Caio Fernando confirma isso a Marcelo Bessa, na entrevista parte de seu
livro Os perigosos: autobiografia e AIDS, afirmando que seus “personagens querem a fusão
das duas coisas, sexo e amor” (BESSA, 2002, p. 120).
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Segundo Philippe Lejeune (2008), a autoficção será marcada pela presença do eu
que deseja ser autobiográfico, com o texto permanecendo ficcional. Não podemos, por outro
lado, assegurar que a voz da Dama da noite pertence ao autor Caio Fernando Abreu.
Entretanto, podemos assegurar que a geração da qual Dama da noite faz parte é a mesma
geração de Caio Fernando Abreu. Além disso, a Dama aborda duas das temáticas mais
frequentes do escritor gaúcho: amor e morte (sob a metáfora da AIDS). Devido a essa
característica, Caio Fernando é dito por muitos como símbolo literário da geração pósutópica, pois viveu a alegria de uma década de 1970, com todo seu fervor sexual e artístico, e
a tristeza de uma década posterior, tomada mais fortemente pelo regime político e,
principalmente, pelo advento da AIDS. Uma década de “anseios não realizados, nervos em
frangalhos, amores frustrados, sofrimentos, medos, solidão, hipocrisia, egoísmo e compulsão
à repetição” (BAUMAN, 2004, p. 66).
Sobre essa influência do real na ficção, o também francês Dominique
Maingueneau, em seu estudo O contexto da obra literária (2001), argumenta que a vida do
autor quase que “precisa” influenciar sua obra, visto que somente os sentimentos não dão
conta do peso da ficção. Esta, por sua vez, pode ser vista como uma realidade “mais ou menos
disfarçada”. E ainda:
Na realidade, a obra não está fora de seu “contexto” biográfico, não é o belo
reflexo de eventos independentes dela. Da mesma forma que a literatura
participa da sociedade que ela supostamente representa, a obra participa da
vida do escritor. O que se deve levar em consideração não é a obra fora da
vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união. (MAINGUENEAU,
2001, p. 46).
E para esse contexto biográfico que a obra é escrita: a Dama da noite quer não
apenas narrar algo, mas dar testemunho de uma época corrompida pela doença, não só aquela
física, mas também de uma doença social e geral que atinge o homem na sua busca de
sempre: o amor. Isso nos leva a pensar nessa sede do Outro que não será saciada, visto já pela
solidão medonha e profunda do homem “moderno”.
Ao lado desse testemunho temos a voz silenciosa do “boy”, que responde calado
as perguntas da Dama:
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Esse caralhinho gostoso aí, escondido no meio das asas, é só isso que você
tem por enquanto. Um caralhinho gostoso, sem marca nenhuma. Todo
rosadinho. E burro. Porque nem brochar você deve ter brochado ainda.
Acorda de pau duro, uma tábua, tem tesão por tudo, até por fechadura.
Quantas por dia? Muito bem, parabéns, você tá na idade. Mas anota aí pro
teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não
consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza com aquilo que
imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu? Você goza
sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é
mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy (ABREU, 1988, p.96).
Dos vários exemplos que o conto apresenta, o trecho acima ilustra bem o que, nos
dizeres de Maingueneau, serve como “ameaça do co-enunciador”:
[...] a fala do enunciador encontra-se sob ameaça constante do coenunciador, que a todo momento pode intervir na enunciação em curso. Ele
pode também dar força à posição do enunciador, expressando sua aprovação
(com sua atitude ou com comentários: “Ah!”, “Veja só!” etc.).
(MAINGUENEAU, 2008, p. 75).
No caso do conto, tais aprovações são ocultas, porém percebidas pela fala da
enunciadora, que repete o que, provavelmente, o “boy” tenha dito. Ora, o texto é, segundo
Maingueneau, o “rastro deixado por um discurso em que a fala é encanada” (2008, p. 85).
Logo, essa cena da Dama da noite pode ser (a) uma enunciação de um texto; (b) uma
enunciação de um episódio fictício em um bar escrito na forma de um conto, ou (c) a cena de
enunciação de uma conversa entre uma mulher desconhecida com um rapaz, igualmente
desconhecido, em um bar no final da noite. O leitor está envolvido nessas três ocasiões,
porém, ele pode se sentir (a) um leitor, (b) um leitor literário e/ou (c) um interlocutor. Este
último só é alcançado pela oralidade que o texto possui.
Ainda segundo Maingueneau, “todo discurso, por sua manifestação mesma,
pretende convencer instituindo a cena de enunciação que o legitima” (2008, p. 87).
Concordamos em afirmar que, a cena da Dama da noite, é legitimada pelo rastro oral da
escrita, atingindo seu público que aceita a cena como sendo “quase-real”. A cena é a mesma
de um bar qualquer, com uma mulher de meia idade conversando com um rapazote de vinte.
O que legitima a cena é a enunciação, ou seja, a forma com que é narrada a cena, o dispositivo
da fala que comprova um testemunho e a memória da Dama. Quanto mais avançamos na
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leitura do conto, mais se (re)conhece o universo do qual a mulher fala. A Dama da Noite
possui, nas palavras de Marcelo Secron Bessa (2002, p. 122), “a amargura de viver em um
momento em que o toque no corpo alheio se transforma em horror”, um horror não nomeado,
englobando, assim, não só a AIDS (talvez alegoria mais completa), mas também todos os
horrores dessa sociedade pós-utópica.
Essa ferramenta do enunciador é muito usada por Caio Fernando, em contos e
crônicas, talvez pelo grande exercício epistolar do autor. Muitos de seus contos contam com
esse contexto: uma pessoa ao telefone, uma pessoa que já inicia o texto contando ou falando
algo, um monólogo no lugar do diálogo dos casais etc. Em todos os textos que assim se
apresentam, marcas da oralidade são presentes. Os usos e abusos da oralidade apresentam
primeiramente que o narrador é um sujeito “representante” da sociedade. Ele se torna não só
um modelo, mas um responsável por aquela tradição, por transmitir aquele ensinamento, uma
vez que transforma o texto oral em escrito e o texto escrito com traços provindos da oralidade
inicial.
O que se observa é a interrelação entre escrita e fala, por vezes se misturando no
discurso, diminuindo o distanciamento estético a fim de aproximar-se com o leitor. E se
pergunta: por que se escreve? A fala, por um lado, contribui com sua legitimidade, sua
confissão, seu testemunho. A escrita, por outro, mantém o caráter de eternizador: verba
volant, scripta manent.
Além do mais, abordar o amor na literatura pós-moderna é mais do que
necessário: é a principal, senão única, forma de eternizar aquilo que se sabe não ser eterno.
Pelo menos, não mais com tanta frequência.
Últimas palavras, o dia amanhece.
Com o que foi posto, podemos assimilar a oralidade da escrita do conto “Dama da
noite” com o caráter confessional que Caio Fernando Abreu buscava em suas obras a fim de
moldar o retrato de uma época. Tal retrato é criado a partir da busca (antiguíssima) do amor,
embora o casamento e o relacionamento em si estejam perdidos na pós-modernidade dos
fatos. A busca pelo Outro, embora “careta”, existe no indivíduo enquanto necessidade de
união que talvez não necessite de rostos e nomes: basta estar ali.
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Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando girando sem parar. Olha bem:
quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana
pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais
de saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não
segurar nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero
ninguém. Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se
apenas de um cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos.
Mas eu quero mais é aquilo que não posso comprar. Nem é você que eu
espero, já te falei. Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta,
sem avisar. Diferente dessa gente toda vestida de preto, com cabelo
arrepiadinho. Se quiser eu piro, e imagino ele de capa de gabardine, chapéu
molhado, barba de dois dias, cigarro no canto da boca, bem noir. Mas isso é
filme, ele não. Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar
direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na
minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem
comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. Não por você,
por outros como você. Pra ele, me guardo. Ria de mim, mas estou aqui
parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro
o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro. (ABREU, 1988, p.
97-8).
Desta forma, a busca da mulher perdida e “rodada” no fim da noite (ainda) é o
“verdadeiro amor”, que ela sabe, como que com certeza, que um dia vai encontrar. O alerta de
cuidado provém, em nossa leitura, do poder que teriam as “duas metades” juntas, retomando o
mito do Andrógino divido por Zeus, temente do poder que as duas faces teriam juntas. Tal
mito é frequente na obra de Caio Fernando Abreu. A metade perdida, o eu que não está em
mim, a metade procurada, enfim. Porém, a Dama sabe da sua condição de solitária:
Só por ele, por esse que ainda não veio, te deixo essa grana agora, precisa
troco não, pego a minha bolsa e dou o fora já. Está quase amanhecendo, boy.
As damas da noite recolhem seu perfume com a luz do dia. Na sombra,
sozinhas, envenenam a si próprias com loucas fantasias. Divida essa sua
juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora
sozinha. (ABREU, 1988, p. 97)
Sabe que é “babaca, pateta e ridícula o suficiente para estar procurando O
Verdadeiro Amor” (ABREU, 1988, p. 95). E, no fim da noite, sua máscara de femme fatale
cai. Se revela humana (“Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega
essa hora da noite eu me desencanto.”), se revela mulher (“Viro outra vez aquilo que sou todo
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dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo[...]”) e se revela frágil
(“uma criança assustada.”).
Em suma, o que o discurso da Dama da noite pretende é convencer o “boy” que
aquele mundo “idealista” que ele vive e/ou sonha não existe, que a realidade é mais cruel, que
o mundo é, como diria Clarice Lispector, um “mundo cão”. Triste descobrir isso por si
mesmo. Por isso, a Dama quer como que vacinar o rapaz que ela desconhece, a fim de que ele
esteja preparado para tudo o que irá encontrar. Ao escrever esse monólogo, Caio Fernando faz
o mesmo alerta de forma geral, assumindo, assim, sua representação da geração.
Caio Fernando Abreu vai, ao longo do conto, sendo identificado (a) com a Dama
da noite, que quer alertar a sociedade dos riscos dela própria; (b) com o “boy”, enquanto
precisa de informações para viver nesse mundo caótico, pois, também ele (e talvez
principalmente ele) se acredita ser uma criança assustada. Tanto Caio Fernando como a Dama
da noite, e o “boy”, não passam de pessoas como tantas e tantas outras, que buscam o
“Verdadeiro Amor”.
Cuidado, boy. Um dia eles encontram.
Bibliografia
ABREU, Caio F. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
______. Entrevista. O Globo, 14 out. 1994.
BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução: Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
BESSA, Marcelo S. Os perigosos: autobiografia e AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro:
Imago, 1997.
FERNANDES, F. A. G. A voz em performance: uma abordagem sincrônica de narrativas e
versos da cultura oral pantaneira. Tese (Doutorado) 384f. Universidade Estadual Paulista –
UNESP. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2003.
FLÔRES, Onici. Da oralidade à escrita, uma busca da mediação multicultural e
plurilinguística. Canoas: Ed. ULBRA, 2005.
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LEJEUNE, Philippe. Pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. Jovita Maria
Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Trad.: Cecília P. de Souza e Décio
Rocha. São Paulo: Cortez, 2005
______. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes: 2001.
SANTIAGO, Silviano. Prosa literária no Brasil. In: Nas malhas da Letra. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p. 24-37.
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VALOR ESTÉTICO E RUPTURA NA LINGUAGEM DE AUGUSTO DOS ANJOS
Rogério Caetano de Almeida (PG-USP)
A obra de Augusto dos Anjos é normalmente estudada como uma exceção na
literatura brasileira. Os estudiosos do autor insistem em não colocá-lo em uma determinada
escola literária, igualmente não conseguem enquadrá-lo completamente em qualquer área do
conhecimento humano. Tampouco se consegue emoldurar sua obra em uma tradição literária
anterior de língua portuguesa com uma única ressalva: quando comparado com Antônio
Nobre98.
O poeta, descendente de uma oligarquia nordestina falida e depois de completar
seus estudos em direito, tenta a sorte na capital, Rio de Janeiro, mas acaba publicando seu
único livro de poesias (“Eu”) com custeio do irmão Odilon dos Anjos em 1912, o que ajuda a
concluir que as finanças sempre foram reduzidas para o autor. Essa necessidade premente faz
com que ele se transfira para a cidade de Leopoldina, Minas Gerais, ao ser aprovado em um
concurso para diretor de um colégio na cidade e em julho de 1914 assume o cargo, mas
faleceu três meses depois. Sua obra, na época, foi completamente desdenhada pela crítica,
como demonstra muito bem o estudo de Otto Maria Carpeaux:
Augusto dos Anjos não teve sorte na vida: parecia a personificação de uma fase
especialmente infeliz da evolução intelectual do Brasil, mistura incoerente de uma cultura ou
semicultura bacharelesca, ávida de novíssimas novidades científicas, mal assimiladas, e dos
ambientes das massas populares miseravelmente abandonadas nas ruas estreitas do Nordeste
tropical. Ninguém o compreendeu, ninguém lhe leu os versos nos cafés superficialmente
afrancesados do Rio de Janeiro, e é conhecida a cena de um dos seus raros admiradores que
leu um soneto de Augusto dos Anjos a Olavo Bilac e recebeu a resposta desdenhosa: ‘É este o
seu grande poeta? Fez bem ter morrido!’99
98
Ver um estudo nosso publicado recentemente em:
http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/01/Artigos/12.PDF consultado em: 26/04/2008.
99
CARPEAUX, Otto Maria. Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Obra completa.
Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
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Uma constatação que parece óbvia é a de que se o grande nome do Parnasianismo
brasileiro, Olavo Bilac, desdenhou da poesia de Augusto dos Anjos, os modernistas então
respeitariam sua obra. Não. A impressão que ficou foi a de que o Parnasianismo não poderia
aceitar os temas grotescos da poesia de Augusto dos Anjos e, por outro lado, os modernistas
não aceitavam aquela forma conservadora do soneto decassílabo clássico, entre outros
conservadorismos. O poeta do hediondo também possui elementos Simbolistas e seus textos
são um prenúncio da poesia moderna, como apontam vários estudiosos, entre eles o de
Ferreira Gullar. Dentre os aspectos que indicam a modernidade de sua obra está o que Hugo
Friedrich chama de tensão dissonante:
Com estes poetas (os modernos), o leitor passa por uma experiência que o
conduz [...] muito próximo à característica essencial de tal lírica. Sua
obscuridade o fascina, na mesma medida em que o desconcerta. A magia de
sua palavra e seu sentido de mistério agem profundamente, embora a
compreensão
permaneça
desorientada.
[...]
Essa
junção
de
incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de dissonância, pois
gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade. A tensão
dissonante é um objetivo das artes modernas em geral. 100
Afora a constatação óbvia feita anteriormente de que Augusto dos Anjos não pode
se enquadrar em uma escola literária, portanto pode ser colocado como um genuíno poeta
moderno, como ele chega aos nossos dias se é desprezado por todos de sua época? Carpeaux
diz que é o povo nordestino que faz sua existência perdurar e sua popularidade chegar aos
dias de hoje. No entanto, sua obra não é apenas popular hodiernamente e exige um olhar que
discuta e investigue melhor suas peripécias verbais. Sua poesia também deve ser estudada
pela sua complexidade lexical, semântica, filosófica (mesmo que mal digerida, como afirma
Carpeaux), estética, ou seja, tudo aquilo que forma uma obra literária. Com isso, chegamos ao
desejo de Zenir Campos Reis: “Fico aqui desejando que as duas tradições, a popular e a
universitária, se encontrem.”
Entre os elementos que erigem a poesia, um dos fundamentais é a construção da
linguagem. Poesia é linguagem. Neste sentido, Augusto dos Anjos comunica ao mundo a
estranheza que essa orbe possui, mas como comunicá-la? Vitor Manuel de Aguiar e Silva
100
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX a meados do século
XX). Trad. Marise M. Curione e Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 15.
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responde esse questionamento de maneira instigante: “A língua literária representa um desvio
quando comparada com a língua normal e, por conseguinte, a gramática que permite
descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da
língua normal.”101
O autor aponta que essa noção de “desvio” é discutida desde Aristóteles e que
contemporaneamente ela segue duas vertentes. A utilizada aqui é a linguagem que “‘viola’,
‘infringe’, ‘subverte’ as regras da língua normal e, por isso mesmo, apresenta múltiplas
‘anomalias’ em relação a esta última”102. A definição de desvio, portanto, se coaduna em certo
sentido com a tensão dissonante definida por H. Friedrich.
A partir daí, chegamos à ideia de linguagem-novidade e linguagem-originalidade.
De maneira geral, Vitor M. de A. e Silva cita o estudo de Stefan Morawski no que se refere à
novidade e à originalidade no que ele chama de “análise do funcionamento global do sistema
semiótico-literário”:
[...] a novidade marca a separação, a ruptura em relação a padrões formais e
sémicos dominantes num dado contexto histórico, ao passo que a
originalidade se funda num modo diferenciado de ver o mundo, o qual
conduz a uma realização e a uma articulação peculiares dos signos estéticos,
das suas regras semânticas e sintácticas, das suas funções e dos seus
valores.103
Neste sentido, a linguagem-novidade é uma subversão do que foi produzido até
então, ou seja, estabelece uma dialética com o contexto histórico no qual está inserida. Já a
linguagem-originalidade se apropria do fato de estar inserida no contexto estético-artístico e
se transforma em uma realização com valor próprio dentro da obra, ou seja, ela é um valor em
si e, portanto, se aproxima do conceito de estranhamento fornecido por Chklovski.
No que diz respeito à linguagem-novidade, percebemos em Augusto dos Anjos,
no verso que talvez seja o mais conhecido do poeta um decassílabo constituído de duas
palavras – “Profundissimamente hipocondríaco”. O verso é retirado do segundo quarteto do
soneto intitulado “Psicologia de um Vencido”:
101
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 8ª edição. Porto: Livraria Almedina, 1997. p.
147.
102
Idem, Ibidem. p. 148.
103
Idem, Ibidem. p. 133-134.
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Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
A sonoridade remete a um decassílabo alexandrino – cesura na sexta e na décima
sílabas métricas –, mas um verso tão longo constituído de dois signos constrói um sub-verso,
ou seja, uma substituição do verso tradicional. Há, ainda, o significado das palavras que
também se relaciona com a extensão que essas possuem, é exemplar o caso do
“profundissimamente” que não apenas é um signo incomum em um poema pela extensão, mas
também amplia o sentido da palavra para o leitor, como também o prolonga para a sensação
da voz poemática, o que indica uma hipocondria enorme, agigantada sintanticamente pela sua
função de advérbio de modo.
A construção dessa linguagem não é um fenômeno raro em Augusto dos Anjos,
pelo contrário aparece constantemente, portanto faz-se necessário demonstrar tal elemento
constitutivo de poemas diversos: “Pan/ te/ is/ ti/ ca/ men/ te/ di/ ssol/ vi/ do” (no Soneto de
1911 dedicado ao filho que nasceu morto) aparece de maneira similar ao que foi citado
anteriormente no que diz respeito ao sentido, à extensão do signo, ao sentido, etc;
Em Debaixo do Tamarindo percebemos a utilização do superlativo absoluto
sintético no verso final do primeiro quarteto:
No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!
O uso desse recurso é considerado um exagero e é aí que está a novidade de sua
obra – a adjetivação dada pelo poeta aproxima o trecho da hipérbole que aparece no verso
anterior e com a comparação sinistra que coloca no segundo verso. O desmesurado de sua
elocução, portanto, acaba criando uma atmosfera dissonante, incomum que se constitui como
elemento de estranheza não mais da linguagem apenas, mas de todos os aspectos que são
analisados no texto: semântico, sintático, semiótico, estilístico, retórico, etc. Outrossim, a
linguagem é um elemento criador de toda a estranheza de sua obra, o que atinge uma
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invenção moderna preocupada com a forma e conteúdo juntos construindo uma totalidade
coesa e repleta – é a obra de arte realizada.
Augusto dos Anjos exagera na linguagem construída em todos os seus textos e é
nesse momento que surge sua linguagem-novidade, repetida inevitavelmente enquanto
estratégia estilística do autor. Por exemplo, o uso do superlativo absoluto é uma constante em
sua obra. Outra repetição em sua construção é o exagero e a utilização do prefixo “ultra” no
verso também decassílabo que aparece no segundo quarteto de Vozes da Morte. Ele se dispõe
a criar uma espécie de eco às avessas com a rima /tura/:
Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!
Uma curiosidade que se revela é que o decassílabo é o verso mais utilizado por
toda a poesia produzida em língua portuguesa até a ascensão do verso livre, mas jamais havia
sido construído dessa maneira, com alguma possível exceção não notada por nós na poesia de
Antero de Quental ou na produção do brasileiro Cruz e Sousa. No entanto, esses elementos
não são constitutivos da totalidade da obra dos artistas supracitados, enquanto que em
Augusto dos Anjos é uma constante e até elemento basilar de sua poética.
Faz-se necessário observar então que essa forma de utilização dos vocábulos é não
mais uma linguagem-novidade; apesar de sê-la também, a linguagem do poeta do “Eu” é uma
linguagem-originalidade e o próprio título, como aponta Ferreira Gullar, é uma estranheza. A
acepção dada acima mostra que o signo linguístico ganha um sentido próprio no contexto em
que está inserido quando prima pela originalidade formal e adquire um sentido conteudístico.
Novamente, destacamos que esta é uma ferramenta típica de poetas modernos.
Além da linguagem científica, Augusto dos Anjos trabalha vocabulários que até
então eram antipoéticos, afinal pertenciam a um cotidiano vulgar e doentio, como em
Budismo Moderno:
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
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Todo o meu coração, depois da morte?
Esse tipo de prosaísmo jamais havia sido pensado na literatura brasileira, mesmo
no Romantismo que tentou se aproximar do popular. A estranheza não está apenas no sentido
semântico de pedir para ser cortado, o que revela uma postura do eu lírico um tanto
masoquista, mas também no fato de a palavra “doutor” aparecer abreviada no poema. A
questão não é apenas sonora, pois para o verso seguir a métrica decassílaba há uma elisão
entre “tesoura” e “e”, ou seja, o artista coloca esse signo no poema porque deseja assim, faz
parte de seu trabalho poético. No verso seguinte aparece o superlativo absoluto novamente,
que já foi analisado enquanto ferramenta de sua linguagem-originalidade.
Se o estranhamento da obra de Augusto dos Anjos em um primeiro momento
parece demonstrar que é completamente fechada em si, depois mostra sua popularidade não
apenas pela forma como sobreviveu - segundo Ferreira Gullar e Carpeaux - através do povo:
Eu é o livro de poesia que mais vende no Brasil. A edição utilizada por nós é a 43ª e foi
publicada em 2001. Além disso, Um texto de Soares Feitosa no sítio do Jornal de poesia
afirma que Augusto dos Anjos é mais lido do que Fernando Pessoa, Camões e Castro Alves.104
Assim sendo, sua obra cria uma linguagem-novidade e depois se transforma em
linguagem-originalidade. Antes disso, é uma espécie de desvio que culmina no conceito
formalista de estranhamento, ou no que H. Friedrich, como já referido aqui, chama de
dissonância, o que coloca sua obra como precursora do que veio a ser chamado “poesia
moderna”.
O interessante de sua obra é que apesar de ser hermética tanto no que diz respeito
à linguagem quanto em fazer o leitor sofrer e não compreender o que é dito em muitos trechos
se não for um pesquisador dedicado em desvendar a complexidade de seu universo, ainda
assim é atraente a ponto de ser conhecida, reconhecida e aclamada como uma poesia de
estranha qualidade.
A estranheza de sua obra transcende o aspecto textual em si. Não fica apenas nas
atmosferas de demência, necrologia, putrefação, maledicência, coprologia, biologia, ou
mesmo tal qual faz na seleção linguística do poema Agonia de um Filósofo:
104
Ver: http://www.revista.agulha.nom.br/augusto.html Consultado no dia: 27/04/08.
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Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nêle tolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!
No hierático areopago heterogêneo
Das idéas, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
Pelo fato de seu texto abarcar um tema relacionado à filosofia, o autor
subversivamente faz uso de estrangeirismos completamente desconhecidos – essas palavras
estão em destaque no poema acima. O Phtah-Hotep é um papiro do antigo Egito em que a
ideia geral é a transmissão da sabedoria de pai para filho.
Já o Rig-Veda é o livro mais antigo do hinduísmo e teve sua posteridade garantida
através da oralidade. Segundo uma perspectiva mais recente o livro descreve os hinos, as
oferendas e os rituais oferecidos às divindades; numa outra vertente é um livro de alto valor
histórico.
Na segunda estrofe o poeta cita um nome da filosofia mais próximo ao
conhecimento da língua portuguesa: Anaximandro de Mileto. Ele é um dos precursores da
astronomia grega e pregava como princípio de tudo algo infinito - o ápeiron.
Haeckel, o nome que aparece na terceira estrofe, foi um dos naturalistas que
ajudou a disseminar a teoria de Darwin sobre a evolução da espécies. Ele faz a teoria da
recapitulação, que depois é refutada pelo fato de ser cientificamente forjada. Augusto dos
Anjos lê muito esse tipo de investigação e essa temática aparece de maneira obsessiva em sua
obra.
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O último nome é Goethe. O criador do Fausto não é conhecido apenas por sua
produção literária. Ele também se ligou a pesquisas científicas e filosóficas. Diz-se que a
antroposofia é ligada ao que foi teorizado anteriormente por Goethe.
Analisando, portanto, os quatro nomes que aparecem no poema, identificamos que
a seleção de substantivos ligados à tradição filosófica no poema combina com o título dado ao
texto. O caráter de estranheza que esse texto assume na linguagem utilizada é que a
sonoridade desses nomes é estranha à língua portuguesa. Além da estranheza sonora, todos os
nomes supracitados são reconhecidamente nomes ligados às pesquisas com a origem das
coisas é o que o poeta coloca em destaque no poema: a substância universal. Esta se faz
presente na palavra ou, melhor, na estranheza das palavras escolhidas pelo poeta. Como
podemos observar, não são apenas os termos escolhidos para esta leitura que são subversivos
ou antipoéticos e, por fim, estranhos. Toda sua obra é pura bizarrice.
Contudo, o fato mais intrigante de todos é que sua particularidade linguística,
entre tantas outras peculiaridades possíveis em sua obra, consegue, através de sua
complexidade, ser atraente a qualquer tipo de leitor. Desde o homem mais simples, o
nordestino que fez com que sua obra perdurasse, como disse Otto M. Carpeaux, ou mesmo o
intelectual, estudioso de Letras,
iniciado nas técnicas para a construção de uma complexa
literatura moderna ou não, são leitores, apreciadores e admiradores profundos da poesia de
Augusto dos Anjos.
Um dos aspectos que contribui para tal estranheza é a construção de sua estranha
linguagem, mas não é o único fator. Além disso, quiçá todos os elementos se unam numa
leitura crítica não teremos uma resposta, nem muitas, porque o estranho é estranho. Ele se faz
através de uma linguagem que é não apenas estranhamento, dissonância ou desvio. A obra de
Augusto dos Anjos não se constrói apenas no que foi chamado aqui de linguagem-novidade e
linguagem-novidade. Os aspectos feios de sua linguagem possuem uma expressão bela e é
justamente aí que entra a inexplicabilidade de seu sucesso. A estranheza de sua obra é sua
maior beleza.
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Medeiros e. O livro mais estupendo: o Eu. In: Jornal do Comércio, Rio de
Janeiro, 30 de setembro, 1928.
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ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 43ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Organização, fixação do texto e notas de Alexei
Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 2ª edição.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BARROS, Eudes. A poesia de Augusto dos Anjos: uma análise de psicologia e estilo. Rio de
Janeiro: Gráfica Ouvidor, 1974.
_____. Aproximações e antinomias entre Baudelaire e Augusto dos Anjos. In: Diário de
Notícias, Rio de Janeiro, 6 de dezembro, 1964.
CARPEAUX, Otto Maria. Augusto dos Anjos. In: ANJOS, Augusto dos. Obra completa.
Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
EIKHENBAUM, Boris et alii. Teoria da literatura – formalistas russos. Trad. Ana Maria
Ribeiro Filipouski et alii. 2ª edição. Porto Alegre: Globo, 1973.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX a meados do
século XX). Trad. Marise M. Curione e Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou vida e morte Severina. In: Toda poesia de Augusto
dos Anjos. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
HOUAISS, Antônio. Cinqüentenário da morte de Augusto dos Anjos. In: Correio da Manhã.
Rio de Janeiro, 7 de novembro, 1964.
LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Trad. De Maria do Carmos V. Raposo e
Alberto Raposo. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.
MURICY, Andrade. Augusto dos Anjos e o simbolismo. In: Panorama do simbolismo
brasileiro. Volume 3. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1952.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 8ª edição. Porto: Livraria Almedina,
1997.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. 11ª edição. Belo Horizonte: Villa Rica, 1996.
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OGUM: UMA PERFORMANCE HÍBRIDA NOS TERREIROS DE UMBANDA
Roncalli Dantas Pinheiro105 (PG-UFPB)
Conforme Laraia (2008), toda cultura possui uma lógica própria que não é
transponível sem perdas de um sistema para outro. “A coerência de um hábito cultural
somente pode ser analisada a partir do sistema a que pertence”. Laraia defende essa posição
levando em consideração o contexto etnocêntrico, em que defendia a superioridade de
culturas científicas em relação às primitivas, de pensamento mágico. Mas retirando a
afirmativa do seu contexto original, observando-a isoladamente, pode-se problematizar as
questões de hibridismos culturais no Brasil como forma de questionamento do
posicionamento de Laraia. Será que é impossível analisar aspectos da cultura européia
tomando como ponto de partida o olhar do afro-brasileiro?
Estudar a performance de São Jorge em síntese com Ogum nos terreiros de
umbanda é, de certa forma, uma maneira de quebrar com o paradigma exposto por Laraia. A
performance de Ogum nos terreiros de umbanda é uma expressão cultural que resulta também
da leitura que esses povos fizeram de uma outra cultura, assimilaram para si e produziram
algo híbrido entre duas regiões de culturas distintas e distantes geograficamente. Do ponto de
vista histórico, sabemos dos elementos sociais, políticos e econômicos pelo qual os africanos
passaram no Brasil. A escravidão, a proibição na realização dos seus cultos, a dificuldade de
comunicação nas senzalas devido a presença das diferentes etnias que propositadamente
estavam juntas. Mas, observando as performances de Ogum, envolvem, intrinsecamente, uma
leitura dos elementos da cultura européia. Uma sistematização e uma relação orgânica do
resultado dessa leitura com os elementos culturais africanos trazidos pelos negros.
Outro elemento a levar em consideração na leitura da performance de Ogum é a
dinâmica cultural envolvida. Pois ela existe independente do sistema a qual esteja estudando.
São mudanças que ocorrem com maior ou menor velocidade, dependendo da área cultural que
esteja em foco. O sistema religioso, a filosofia e as noções sociais de família em uma cultura
costumam ter uma dinâmica mais lenta do que as mudanças tecnológicas, científicas. Então,
considerando que o objeto de estudo se caracteriza por pertencer à esfera religiosa, a
105
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tendência deveria possuir uma dinâmica restrita com poucas mudanças no transcorrer do
tempo, o que de fato não ocorreu na Umbanda. Essa assimilação, tomando como base os
conceitos de interstícios culturais de Homi Bhabha (2007), é resultante mais de um trabalho
fronteiriço da cultura do que parte de um continuum de passado-presente gerado no seio de
um sistema cultural, de uma dinâmica interna.
Portanto, entender a Performance de Ogum é considerar uma dinâmica cultural de
entre lugares, que performatiza-se nômade e impura entre culturas distintas, conforme
Santiago (2000). É também apreender uma lógica ética, em que a alteridade é celebrada.
Relato de São Jorge a partir da oralidade e a imagem
A partir de uma rede de textos provindos de várias fontes, principalmente internet,
pode-se editar relatos sobre a biografia de São Jorge. Elas remetem ao final do século III,
quando a mãe de Jorge retorna à sua cidade natal, Lida, após se tornar viúva na Capadócia.
Ela propicia uma boa educação ao pequeno, que, posteriormente, se alista no exército e segue
a carreira do pai, oficial do exército Romano. Jorge cresce e logo ascende na corporação
militar, chegando a ser membro da guarda pessoal do imperador Diocleciano.
Após um tempo trabalhando com afinco, no ano 303, explode a notícia de que o
imperador havia decretado a perseguição aos cristãos em todo o Império Romano, impelindo
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ISBN: 978-85-7846-101-0
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o jovem a participar da perseguição, mas ele prefere professar sua religião e, indo de encontro
à política estabelecida, se atreve a criticar a decisão do imperador. Diocleciano então reage
duramente às críticas e, como forma de punição, ordena a tortura e execução do traidor. Ele é
torturado e, finalmente, no dia 23 de abril de 303, é levado às muralhas de Nicomédia para
execução, por decapitação.
Relato de Ogum a partir da oralidade e a imagem.
Conforme Verger (1997), Ogum era o guerreiro sanguinário e temível. O mais
velho e mais combativo dos filhos de Odudua, o conquistador e rei de Ifé.
Do texto abaixo, colhido por Verger da tradição oral africana ainda sem a
interferência que ocorreu no Novo Mundo, Caribé elabora a ilustração.
“Ogum o valente guerreiro,
O homem louco dos músculos de aço!
Ogum, que tendo água em casa,
Lava-se com sangue!” (Verger, 1997).
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O hibridismo Cultural, Ogum e São Jorge no terreiro de Umbanda.
O arquétipo de Ogum é, conforme Verger (1997), o das pessoas violentas,
impulsivas, que não perdoam as ofensas de que foram vítimas. Daquelas que perseguem
energeticamente seus objetivos e não desencorajam facilmente. Tem relação com o ferro e o
aço. O que acaba produzindo uma analogia com as imagens e lendas de São Jorge da tradição
cristã, que montado no cavalo adornado com peças metálicas, vence o mau, o dragão.
Observando fotografias de performances de Ogum em terreiros de Umbanda, o
cavalo, o acolhedor do Orixá, adorna-se de elementos simbólicos assimilados de São Jorge.
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A leitura de uma Performance é algo quase inatingível, por que ela não se
encontra no campo semiótico. Ela não é signo, não está representando algo. É o próprio Ogum
que se entroniza e cumprimenta os demais no ambiente. A semântica do significante movente
que se apreende em tais evoluções corporais não se relaciona apenas com audição, paladar,
olfato, tato etc. É, antes de tudo, um somatório dos sentidos, sendo algo que se presencia
somente no instante do evento, graças às trocas e comunicações com as demais pessoas. Então
surge a dificuldade da transcrição de uma linguagem que não possui representatividade em
sua atuação mais global (a performance) para um outro código (a escrita), que reivindica para
si sua semioticidade.
Para solucionar essa problemática, Zumthor (2007) sugere fazer uma leitura dos
elementos marginais. É um método analítico e, para o próprio autor, falho, pois não representa
a totalidade, mas esfacela, analisa e não reconstrói para o leitor o evento integral. Todavia,
não existe outra maneira de envolver o evento que presenciamos no limitado código verbal da
escrita, ausente de voz, de gestual, de entonação e de tudo o que se refere à arquitetura na
enunciação, o ambiente que recebe os corpos envolvidos.
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Para este trabalho, não se pretendeu fazer uma leitura verbal das performances,
nem descrevê-la por análise. O objetivo é utilizar as imagens como ferramenta textual não
verbal e sugerir uma espécie de montagem, que possibilite a reconstrução da performance de
maneira que ela não esteja em análise, fragmentada em diversos significantes. O objetivo é
deixar que o leitor faça a fruição e realize as associações performáticas a partir do encontro e
choque entre três grupos de imagens. Entre a figura performática de São Jorge no momento
em que mata o dragão. A ilustração de Caribé no momento de fúria do Orixá Ogum e
observar a presença desses elementos na performance atual, que ocorreu em 2008 na cidade
de João Pessoa, incorporado em uma das filhas de Ogum mais antigas e respeitadas.
Para um segundo momento, seguindo a Linha de Zumthor (2007), descrevendo
analíticamente a performance, observa-se a presença de São Jorge nas vestimentas de Ogum;
A cor vermelha; O capacete, a espada, o brilho e a presença de folhas de espada de São Jorge
presas nas paredes do recinto, além da postura e atitude de cavalgar como se estivesse sobre o
cavalo. Já os elementos simbólicos que remetem a ogum estão marcadamente nas cores verde
das vestimentas, nos colares, e sobre tudo, na expressão facial em que a fúria toma conta da
pessoa que recebe a entidade.
Conclusão
A performance de Ogum, por envolver elementos sintetizantes, é também uma
leitura afro-brasileira de um mito vindo por vias de Portugal, assimilado, impuro no seio do
ritual da Umbanda. A leitura posterior desses elementos se somam produzindo novas
informações que não envolvem completamente a cadeia de significados da performance. As
fotografias e os textos são apenas ferramentas expressando a leitura de um evento, a qual se
constitui em sua base o fundamento de uma leitura maior, assimilando outros sistemas
culturais em hibridismos.
Bibliografia
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 23. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009.
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007
VERGER, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 1997
VERGER, Pierre. Lendas Africanas dos orixás. Salvador: Corrupio, 1997
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007
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POESIA GREGA ARCAICA: ORALIDADE E PERFORMANCE
Roosevelt Rocha106 (Prof. Dr.-UFPR)
Hoje em dia nós lemos esse conjunto de textos que chamamos de poesia grega
arcaica. Porém, esse tipo de produção poética, originalmente, não foi composto para ser
apreciado dessa maneira. Aquilo que hoje conhecemos através dos livros e da cultura escrita,
letrada, de modo geral, foi, na verdade, concebido para ser recitado com acompanhamento
musical, como é o caso da poesia épica de Homero e da poesia elegíaca; ou para ser recitado
sem acompanhamento musical, como pode ter acontecido com a chamada poesia jâmbica de
Semônides de Amorgos e de Hipônax de Éfeso; ou para ser cantada e dançada ao som de um
instrumento de corda como a lira ou cítara somado ou não ao acompanhamento de um
instrumento de sopro, principalmente o aulo, como é o caso da poesia lírica coral.
Sendo assim, meu objetivo é mostrar que, para interpretarmos corretamente a
poesia grega arcaica, é preciso sempre lembrar que esse tipo de produção poética foi
composto num contexto cultural em que a oralidade tem um papel muito mais importante do
que na nossa cultura pós-helenística, pós-romana, pós-renascentista e pós-gutenberguiana.
Nesse tipo de cultura, onde a memória e a tradição, sem o suporte da escrita, encontraram
modos diversos de fixar e transmitir mensagens, através do uso de estratégias discursivas
específicas tal como o emprego de fórmulas, epítetos e símiles e também através do uso da
métrica e das melodias, nesse contexto a performance e tudo que está relacionado a ela
precisa ser levado em conta por quem pretende interpretar um enunciado poético produzido na
Grécia Antiga entre os séculos VIII e V antes de Cristo.
É claro, estamos tratando de composições que remontam a um período muito
recuado no tempo. E sobre esse período, muitas vezes, não temos como ter um conjunto
considerável de informações seguras. Afinal, aquilo que conhecemos como textos, como já
disse, foram originalmente cantados ou recitados e somente mais tarde ganharam a forma
escrita mais ou menos parecida com aquilo que podemos ler hoje. Contudo, possuímos e
fazemos parte de uma tradição poético-literária que remonta aos poemas homéricos e desse
enorme manancial de textos podemos obter muitos testemunhos sobre a oralidade e a
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performance dos textos poéticos da Grécia Antiga. E é sempre importante lembrar que os
estudos nesse campo avançaram muito, principalmente depois das contribuições de Milman
Parry e Albert Lord e também depois dos estudos de Eric Havelock, para citar apenas alguns
nomes.
Comecemos falando da performance da poesia homérica. Já de início, cabe
lembrar que os antigos gregos não chamavam Homero de poeta, pelo menos não antes de
Platão e Aristóteles, que produziram suas obras no século IV a. C. Ele era chamado de aedo,
ou seja, cantor. Fazendo uma comparação entre os tipos de estruturas métricas tradicionais da
Grécia Antiga, chegamos à conclusão de que existiam tipos de canto diferentes, ou seja,
maneiras diferentes de cantar, alguns tipos sendo mais simples e mais repetitivos, como o
hexâmetro e o dístico elegíaco, e outros tipos sendo mais complexos, como nos indicam os
elaborados metros usados na poesia lírica coral de Álcman, Estesícoro, Simônides, Píndaro e
Baquílides. Por isso, podemos propor a hipótese de que a poesia homérica era musicalmente
mais monótona e previsível do que a poesia de Píndaro, por exemplo. Mas, mesmo assim, os
antigos helenos chamavam Homero de aedo, nome que deriva do verbo aeido, que significa
cantar.
Bem, além disso, sabemos também que os aedos cantavam ou recitavam seus
versos com o acompanhamento de um instrumento de corda. Nos poemas homéricos,
encontramos, em várias passagens, a palavra phórminx, que transcrevo com o vocábulo
fórminge. Esse instrumento era da família da lira e da cítara, provavelmente mais simples,
mais rústico talvez, com poucas cordas, três ou quatro por volta dos séculos IX e VIII a.C., se
dermos crédito à tradição que nos chegou da Antiguidade. Esse pequeno número de cordas
nos indica que as melodias entoadas pelos aedos daquela época, provavelmente, eram bastante
limitadas, com poucas notas musicais, pois era um hábito da época cantar a mesma nota que
estava sendo tocada no instrumento musical.
Essa relativa simplicidade também é perceptível na estrutura métrica dos poemas
homéricos, o hexâmetro de base datílica. O dátilo é formado por uma sílaba longa seguida de
duas breves. O hexâmetro era formado de seis pés datílicos, sendo que era possível substituir
um dátilo por um espondeu, formado por duas sílabas longas. Dito assim parece realmente
simples e fácil de prever o resultado. Porém, dentro das sequências de pés datílicos,
eventualmente substituídos por pés espondaicos, havia momentos em que o poeta fazia
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pequenas pausas que são chamadas de cesuras. Essas cesuras podem aparecer em partes
diferentes dos versos e, de certa forma, eram elas, junto com o maior ou menor uso de dátilos
ou espondeus, que davam um certo colorido aos versos que, comparados com as sequências
da poesia lírica coral, deviam mesmo parecer mais monótonos, repetitivos. Usando, esse tipo
de recurso, contudo, os aedos homéricos conseguiam dar um certo caráter a uma passagem,
compor um determinada cena com um clima, um sentimento específico. Por exemplo, se o
poeta queria cantar com mais velocidade, ela usava mais o ritmo datílico, o que parece
adequado para as descrições de batalha da Ilíada. Mas, se ele queria carregar nas tintas da
religiosidade ou acentuar o sentimento de tristeza causado pela morte de um guerreiro, por
exemplo, então seria mais apropriado usar mais o ritmo espondaico, para que seu canto se
tornasse mais lento e lamentoso, por um lado, ou mais nobre e respeitoso, por outro.
Outro aspecto que precisa ser levado em conta ao interpretarmos um poema grego
arcaico é a participação do público e o contexto em que o poeta improvisou, compôs e/ou
apresentou a sua canção. De modo geral, existiam dois contextos em que o poeta podia
realizar sua performance: um mais particular e com um número menor de participantes, ou
seja, o simpósio; e outro de caráter público, ligado à vida cívica e religiosa da cidade, que
eram os festivais aos quais as pessoas acorriam em grande número. São situações bastante
diferentes. No simpósio, era mais comum que fosse executada uma poesia mais ‘leve’, que
tratava do amor, do vinho ou de questões de interesse de certos grupos políticos e sociais,
como é o caso de boa parte dos fragmentos elegíacos de Arquíloco e Mimnermo, dos jambos
de Semônides e de Hipônax e da lírica monódica de Safo, Alceu, Íbico e Anacreonte. Nos
festivais, nas celebrações públicas ou em momentos chave da vida da cidade, como nas
preparações para batalhas ou em assembleias, eram executados poemas com temática que
interessava à comunidade naquele momento. Exemplo desse tipo de composição são as
elegias de Tirteu, Calino e Sólon e a lírica coral em geral.
No período arcaico da história da Grécia Antiga, que se estende do século VIII ao
começo do século V a. C., aconteceram muitas transformações em todos os campos da vida
dos humanos da época: na economia, houve a expansão dos limites geográficos com o
processo de colonização e o consequente enriquecimento de uma classe mercantil que se
beneficiou com esse movimento; em parte, em decorrência dessas mudanças, as oligarquias
dominantes, paulatinamente, vão perdendo seu poder político e seu prestígio, baseados na
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posse da propriedade fundiária e justificados pelas narrativas tradicionais transmitidas geração
após geração, e a classe dos aristoi se vê substituída por tiranos que sobem ao poder depois de
intensas lutas intestinas e, mais tarde, já no final do período arcaico (fim do século VI) ela
assiste ao surgimento da democracia, principalmente em Atenas; nesse contexto, acontecem
também importantes transformações culturais e religiosas, que levarão ao surgimento da
filosofia, da história, da sofística (retórica), da medicina, do teatro e das formas políticas que
mais tarde inspirarão nosso modo de pensar e interpretar a realidade.
A elegia, o jambo e a lírica do período arcaico, em grande medida, são um
resultado de todo esse processo de transformações e também nos fornecem muitos
testemunhos ‘literários’ sobre essa época. Entre os fragmentos de Arquíloco, Semônides e
Mimnermo, por exemplo, encontramos passagens em que os autores tratam de situações
ligadas aos movimentos de colonização e fundação de novas cidades. Em Calino, Tirteu,
Alceu, Sólon e Teógnis lemos uma poesia intimamente ligada aos problemas da cidade, seja
em forma de referência às lutas que uma comunidade estaria movendo contra uma outra
(Calino e Tirteu), seja na forma de comentários às disputas internas entre grupos de uma
mesma unidade política (Alceu, Sólon e Teógnis). Desse modo, esse tipo de poesia não servia
apenas como diversão e fonte de deleite. Nessa época, o canto tinha muitas funções dentro da
cultura grega, dentre elas a de meio pelo qual eram discutidas questões morais e debatidas
questões políticas candentes.
Nesse sentido, é preciso lembrar que esse tipo de produção, hoje chamamos de
‘literária’, não era composta para ser transmitida através de um texto e para ser lida em
silêncio por indivíduos isolados. Toda poesia grega arcaica era feita para ser apresentada para
um público, que muitas vezes determinava o caráter que a obra deveria ter. Sendo assim, é
impróprio e anacrônico tratar a produção poética daquela época da mesma maneira como
tratamos a poesia escrita desde o período romântico (século XIX) até os nossos dias. A poesia
grega arcaica não hexamétrica, para usar um termo mais abrangente, era completamente
diferente da nossa poesia de hoje em dia. Em primeiro lugar, boa parte dela, a elegia e a lírica,
era cantada com o acompanhamento de um instrumento musical. Por isso, os gramáticos
alexandrinos chamaram, uma parte dela, de ‘lírica’, em referência à lira ou a instrumentos de
corda semelhantes a ela, como a cítara e o bárbito, que eram usados pelos poetas. Além disso,
desde os estudos de Milman Parry e Albert Lord, sabemos da importância da oralidade dentro
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da cultura grega, seja na poesia homérica seja em outros tipos de poesia como a elegia, o
jambo e a lírica. Sendo produzida num contexto de dominante oralidade, a poesia arcaica deve
ter sido composta de maneira improvisada, de um modo comparável ao utilizado pelos aedos
que recitavam poesia épica.
Isso é interessante, porque nos faz pensar sobre o papel da tradição nesse tipo de
poesia. Como já disse, os poetas improvisavam. Mas improvisar não quer dizer criar a partir
do nada ou a partir simplesmente das motivações do indivíduo. Nesse tipo de cultura, para
improvisar era necessário conhecer a tradição poética, todo o repositório de mitos, os metros e
as fórmulas utilizados nesse tipo de atividade. Desse modo, havia uma intensa conversa com o
passado, muitas vezes remoto, e, em específico, com a poesia de Homero e Hesíodo.
Porém, é preciso dizer, havia espaço para inovações também. E esse é um aspecto
marcante da cultura grega antiga. Por isso, mesmo quando autores como Safo, Íbico e
Anacreonte, conhecidos pelo tom altamente ‘pessoal’ de suas composições, usam fórmulas
tomadas da tradição, atualizando uma linguagem já usada por outros poetas, até mesmo de
gêneros diferentes dos praticados por eles, mesmo assim havia espaço para a invenção de
novos epítetos e de novos adjetivos compostos ou para uma maneira nova de usar um
qualificativo de uma maneira como Homero, por exemplo, não tinha usado. Ou seja, mesmo
num tipo de criação literária que, provavelmente, era altamente codificada, como os poemas
de Álcman, Estesícoro e Simônides, era possível renovar a tradição e contribuir para a
sobrevivência da cultura.
Por todos esses motivos, aqui brevemente expostos, a poesia arcaica grega tem um
alto valor intrínseco e, por isso, ela influenciou todos os grandes poetas que vieram depois
como os alexandrinos Calímaco e Teócrito, que influenciaram os romanos Catulo, Virgílio,
Horácio, Ovídio, Propércio e Tibulo, que, por sua vez, influenciaram os poetas do
Renascimento. Desde o século XV da nossa era a elegia, o jambo e a lírica arcaicos foram
lidos, imitados, citados e estudados pelos grandes autores da literatura Ocidental e as marcas
dessa influência estão presentes por toda parte. Principalmente, na retomada de temas e de
lugares comuns encontrados pela primeira vez na poesia grega arcaica: as dores do amor, o
sofrimento causado pela passagem do tempo e pelo envelhecimento, a imprevisibilidade da
vida etc.
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Como consequência disso, é sempre importante lembrar que a poesia grega
arcaica está muito distante das concepções românticas acerca da criação poética. No século
XIX, como já disse antes, pensadores e literatos germânicos criaram uma série de teorias
acerca da atividade poética e sobre a finalidade da poesia bastante diferente das concepções
helênicas. O problema é que esse paradigma romântico, segundo o qual o poeta expressa seus
sentimentos através dos seus versos e cria algo novo como um indivíduo que se volta contra a
tradição literária que vem do passado, durante muito tempo foi usado nas interpretações que
eram feitas da poesia grega arcaica. Hoje em dia, esse tipo de abordagem caiu em descrédito,
mas ainda persiste uma certa ideia de que Safo, por exemplo, na verdade, estava se
confessando, abrindo seu coração, escancarando sua alma para o seu público. Eu diria que
pensar dessa maneira talvez seja quase inevitável quando lemos um poema como o chamado
‘Hino a Afrodite’, fragmento 1Voigt, cuja tradução apresento aqui:
De polícromo trono107 imortal Afrodite,
filha de Zeus, tramadolos108, suplico-te,
não domes com dores nem com aflições,
senhora, meu coração,
mas vem aqui, se jamais noutra vez
a minha voz ouvindo de longe
escutaste, e deixaste a dourada morada
do pai e vieste
depois de atrelar o carro. Belos conduziam-te
velozes pardais109 em torno à terra negra
turbilhonando compactas asas desde o céu
pelo meio do éter:
e logo chegaram. Mas tu, ó venturosa,
sorrindo em tua face imortal,
perguntaste por que de novo eu sofro e por que
de novo eu te chamo
e o que eu sobretudo quero ter
107
O adjetivo composto πο]ικιλόθρο[ν(ε) pode ser traduzido também como ‘de variegada coroa de
flores’ (comparar com Il. 22, 441), mas essa não é a interpretação mais aceita. Ver Gentili, 2007: 126.
108
Esse adjetivo aparece também em Teógnis, 1386 e em Simônides, 541PMG, verso 9.
109
Os pardais são pássaros tradicionalmente associados a Afrodite por causa da sua constante
disposição para a cópula. Seus ovos inclusive eram considerados alimentos afrodisíacos. E a palavra
‘pardal’ era um tipo de gíria para designar o pênis. É possível que o pardal nos poemas 2 e 3, de
Catulo, seja uma referência ao órgão sexual masculino. Mas outros pássaros também são associados a
Afrodite, como o pombo e o cisne. Cf. Gentili, 2007: 127.
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em meu louco coração. “Quem de novo devo convencer
e conduzir para o teu amor? Quem, ó
Safo, te ofende?
Pois se foge, rápido seguirá;
se não aceita presentes, logo os dará;
se não ama, rápido amará,
mesmo ela não querendo”.
Vem a mim agora também, e liberta-me
dos duros cuidados, o que meu coração
deseja para mim realizar, realiza, e tu própria
sê minha aliada.
Durante muito tempo esse poema foi interpretado como um testemunho de que
Safo seria uma mulher de intensos sentimentos e inclinada a se apaixonar facilmente. Porém,
estudos recentes, como o de Gregory Nagy (2009: 24-41), demonstram que, nesse poema, por
exemplo, há uma série de convenções que vêm da tradição e que indicam que Safo não estava
cantando para si própria, para desafogar seu coração, mas estava, por outro lado, na verdade,
cantando para a comunidade na qual ela vivia em Lesbos. À primeira vista, o poema parece
ter um caráter pessoal, porém, de acordo com a interessante interpretação de Nagy, é possível
que esse poema tenha sido cantado por um coro de jovens, tendo a própria Safo como líder
desse coro, num festival em honra de Afrodite. Lendo o poema dessa maneira, nossa
abordagem muda completamente e somos levados a repensar o papel da poesia na sociedade
grega do período arcaico. Por isso, acredito ser tão importante valorizar o estudo da
performance da poesia na Grécia Antiga.
Nesse sentido, ultimamente, tenho sido levado a concordar com Herington (1985:
3-4) quando ele trata da cultura grega como uma ‘cultura da canção’. Segundo o autor, nesse
tipo de cultura, a canção era o meio principal para a expressão e a comunicação dos
sentimentos e das ideias mais importantes. Quando os gregos antigos precisavam divulgar
ideias políticas, morais e sociais, ideias que, mais tarde, seriam apresentadas através de
gêneros específicos como a história, a filosofia ou a ciência, eles faziam isso através da
poesia, recitada ou cantada.
Assim, gostaria de falar um pouco sobre a importância da arte das melodias para
cultura grega antiga. A música estava presente em todos os momentos da vida do homem
grego antigo. Todas as atividades do cotidiano eram executadas com o acompanhamento de
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música. Aristides Quintiliano (De Musica, II, 4.23-30) nos ensina que os hinos sagrados e as
oferendas eram adornados com música; banquetes particulares e as assembleias festivas das
cidades se alegravam com ela; guerras e marchas eram levadas a cabo e ordenadas através
dela; e até mesmo a navegação e outros trabalhos manuais tornavam-se menos penosos ao
som da música.
Os antigos gregos eram um povo eminentemente musical e testemunho disso
também nos dá Ateneu (XIV, 632c) quando diz que
A antiga sabedoria dos gregos em seu conjunto parece estar dedicada
principalmente à música. E, por isso, julgavam que o mais musical e mais
sábio dentre os deuses era Apolo, e dentre os semideuses, Orfeu.
Desse modo esses dois autores do período imperial romano demonstram que a
música tinha uma presença marcante na cultura grega.
Como afirma Henderson (1957:385), para os antigos gregos, a música funcionava
como uma segunda língua, capaz de expressar todo tipo de pensamentos e de sentimentos. Por
isso, não surpreende o fato de alguns filósofos dedicarem boa parte de suas obras a reflexões
acerca do papel da música na sociedade e na formação da alma humana. Embora a quantidade
de documentos estritamente musicais que chegaram até nós seja numericamente pequena e
seu estado atual seja bastante fragmentário, podemos acessar importantes informações acerca
da música grega antiga através da leitura de textos de autores que não eram ‘especialistas’ em
música, mas que, ao pensarem sobre a cultura grega, acabaram debruçando-se também sobre a
arte dos sons e todos os aspectos que estavam ligados a ela.
Entre os gregos antigos a palavra mousiké, ‘a arte das Musas’, (com a palavra
tékhne, ‘arte’, estando subentendida), não designava somente a arte dos sons, como a
entendemos hoje em dia, mas significava a união de poesia, música e dança. O texto poético,
de modo geral, vinha acompanhado de melodia e de uma coreografia executada por
dançarinos. O ritmo e a música se desenvolviam em estreita relação com o texto e
acompanhavam os movimentos da dança (Gentili, 2006: 48-56. Ver também Barker, 1989:
54). Por isso o estudo da música grega, além é claro do valor intrínseco que apresenta,
funciona como um complemento indispensável às pesquisas sobre a literatura, o teatro, a
religião e as relações sociais na Grécia Antiga.
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A importância da música entre os helenos torna-se flagrante na República (4,
424c), onde Platão diz que não se poderia mudar os modos musicais (harmoníai) sem mudar
as leis fundamentais do Estado. Lembremos também a importante função social que
desempenhavam ilustres poetas-compositores da idade arcaica nas comunidades em que
exerciam sua arte. Plutarco (Vida de Licurgo, 4) cita o caso de Tales de Gortina, cujas
composições poéticas eram verdadeiras exortações à concórdia e instrumentos determinantes
para a manutenção da ordem social. Em Esparta, Tebas e Mantinéia, música e política
estavam tão ligadas que uma legislação específica foi criada para regulamentar a educação e a
prática musical (Bélis, 1996:352).
Píndaro, na sua primeira Pítica, demonstra que o poeta-compositor tinha
consciência do poder da música e, como podemos depreender de muitas passagens de suas
odes, também dos aspectos éticos inerentes aos modos e aos instrumentos musicais, quando
define a melodia dórica como a mais solene e majestosa das melodias (fr. 67 Sn.-Maehl.) e o
instrumento de corda, o bárbito, como próprio para aplacar o ânimo nas reuniões simposiais
(fr. 124d Sn.-Maehl.) (Cf. Gentili e Pretagostini, 1988:vi-vii). Platão e os Pitagóricos também
recomendavam o emprego do modo dórico por causa de sua virilidade e austeridade e a
execução, preferencialmente, de um instrumento de cordas, no caso a lýra (Bélis, 1996:364).
Assim, a mousiké estava presente em todas as ocasiões da vida: nos banquetes e
nos festivais, nos rituais religiosos e mesmo nas terapias médicas (Cf. West, 1992:14ss). Seja
como arte, seja como ciência, a música sempre desempenhou um papel destacado na vida dos
antigos gregos e a quantidade de documentos que atestam essa importância é grande: desde
reflexões filosóficas sobre o papel pedagógico da música na formação do caráter do cidadão
(Platão e Aristóteles) a tratados específicos sobre a música em si (Aristóxeno, Plutarco,
Aristides Quintiliano, Cláudio Ptolomeu, por exemplo), além de cerca de 60 restos de
documentos musicais (‘partituras’) que chegaram até nós em papiros, manuscritos medievais
e inscrições.
Desse modo, acredito que minha exposição demonstra que não se pode estudar a
chamada ‘literatura’ grega arcaica sem a consciência de que, na origem, esses textos eram
compostos, provavelmente, no momento da sua apresentação e, se havia alguma interferência
da escrita nesse processo, ela era limitada e não era importante no momento da performance.
Isso que chamamos ‘poesia’, na verdade, era somente uma parte daquilo que poderíamos
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chamar de melos, em alguns casos, ou mousiké, em outros casos, de maneira mais abrangente,
abarcando palavra, melodia e movimento corporal, ou seja, o que para nós seria poesia,
música e dança. Tendo isso em mente, o estudo da literatura grega do período arcaico se torna
mais desafiador e mais interessante, mais aberto aos exercícios da imaginação, é verdade, mas
também mais musical. É preciso aceitar esse desafio.
Bibliografia
BARKER, A. (1984) Greek Musical Writings, vol. I (The Musician and his Art), Cambridge:
Cambridge University Press.
BARKER, A. (1989) Greek Musical Writings, vol. II (Harmonic and Acoustic Theory),
Cambridge: Cambridge University Press.
BÉLIS, A. (1996) ‘Harmonique’, em Le Savoir Grec. Dictionaire Critique, Paris:
Flammarion, pp. 352-367.
GENTILI, B. e Pretagostini, R. (eds.)(1988) La Musica in Grecia, Roma-Bari: Laterza.
GENTILI, B. (2006) Poesia e pubblico nella Grécia ântica. Da Omero al V secolo, Milão:
Feltrinelli.
GENTILI, B. e Catenacci, C. (2007) Polinnia. Poesia Greca Arcaica. Roma: D’Anna.
HENDERSON, I. (1957) ‘Ancient Greek Music’, em Wellesz, E. (ed.) The New Oxford
History of Music, Vol I, Londres-Oxford.
HENDERSON, J. (1985) Poetry into Drama. Berkeley: University of California Press.
NAGY, G. (2009) ‘Lyric and Greek Myth’, em Woodard, R. D. (ed.) The Cambridge
Encyclopedia of Classical Mythology, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 19-51.
WEST, M. L. (1992) Ancient Greek Music, Oxford: Clarendon Press.
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ACENTUAÇÃO CORPORAL DA PALAVRA
Sandra Parra Furlanete110 (Profa. Ma.-UEL)
Esta comunicação apresenta resultados de pesquisa empírica realizados dentro da
ação “Palavra como Objeto/Imagem”, orientada pela Prof. Sandra Parra, dentro do grupo de
pesquisa “Identidade, Jogo Cênico e o Objeto/Imagem”, coordenado Prof. Dr. Fernando
Stratico, ligado ao curso de Artes Cênicas da UEL.
A ação, composta por oito alunos-pesquisadores mais professor orientador,
iniciou suas atividades em agosto de 2009. Seu objetivo é pesquisar o trabalho com a palavra
como objeto/imagem na construção da tessitura cênica, partindo do princípio de que, para ter
domínio e desenvolver maturidade sobre a criação cênica, é fundamental que o ator, antes de
tudo, se exercite na produção de imagens endógenas. Esta produção de imagens deverá ser
desenvolvida no sentido da máxima complexidade, envolvendo camadas diversas de
significados e diferentes tipos de coerências, inclusive as não-lógicas.
Sendo a palavra um dos elementos básicos e fundamentais do trabalho do ator,
exploramos seu potencial imagético tanto endógeno quanto exógeno (na medida em que a
palavra falada gera imagens para quem a ouve), e a construção de imagens significantes
surgidas a partir de encadeamentos de palavras, coerentes sintaticamente ou não.
Para chegarmos ao trabalho com a palavra, foi feito primeiramente um trabalho de
expansão da autopercepção, através de exercícios que coordenassem voz, movimento
corporal e todos os sentidos do corpo: audição, tato, visão, gustação, paladar, equilíbrio e
propriocepção. A intenção deste caminho de trabalho é que a capacidade de gerar imagens
endógenas – ou imaginação – seja ampliada a ponto de afetar a potência criadora do ator e,
conseqüentemente, a recepção do espectador.
Imaginação é, basicamente, a capacidade que temos de criar imagens. No senso
comum (aquele traduzido, em geral, pelas gramáticas e dicionários, e que permeia nosso
entendimento das coisas), entende-se que ela é “a faculdade que possui o espírito de
representar imagens” (HOUAISS, 2001:vb. Imaginação – grifo nosso). Para espírito
encontramos, dentre suas muitas acepções: “a parte imaterial do ser humano; alma”;
110
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“substância imaterial, incorpórea, inteligente, consciente de si, onde se situam os processos
psíquicos, a vontade, os princípios morais”; “mente, pensamento, cabeça”. Para mente,
encontramos como acepções principais “sistema organizado no ser humano referente ao
conjunto de seus processos cognitivos e atividades psicológicas”; “parte incorpórea,
inteligente ou sensível do ser humano; espírito, pensamento, entendimento” (HOUAISS,
2001:vb. Espírito; Mente). A imbricação desses significados nos indica que a imaginação é
considerada, comumente, como algo impalpável (embora não imperceptível), da ordem do
não-material, do não-físico – ou seja, incorpóreo.
No entanto, os estudos contemporâneos de neurociência atestam que a imaginação
é sim um processo físico, totalmente co-dependente e interligado ao corpo. Para entender essa
questão, é preciso primeiro procurarmos entender alguns aspectos dos processos mentais de
onde se origina a imaginação.
Nossos pensamentos são formados por imagens – um tecido de imagens
perceptivas: visuais, sonoras, olfativas, gustativas, somatossensoriais etc., sendo o
pensamento a capacidade que um organismo vivo tem de representar essas imagens. Até as
palavras ou símbolos abstratos que passam pela nossa mente são, antes de tudo, imagens
visuais ou auditivas; mesmo os símbolos matemáticos, representantes do máximo de
abstração de que o pensamento humano é capaz, se não fossem imagináveis – ou seja,
passíveis de serem representados mentalmente em forma de imagem – não poderiam ser
conhecidos e manipulados por nós conscientemente. Assim, podemos afirmar que só
conhecemos aquilo que podemos imaginar (DAMÁSIO, 1996:116; 135).
Damásio descreve as imagens mentais como sendo de dois tipos: perceptivas ou
evocadas (DAMÁSIO, 1996:123-124). As imagens perceptivas são imagens oriundas de
diferentes “modalidades sensoriais”, ou seja, são aquelas formadas por nossas experiências no
mundo: ouvir música, tocar uma superfície, ler um livro etc. Qualquer um dos pensamentos
formados a partir dessas informações sensoriais é constituído por imagens, sejam elas cores,
formas, movimentos, sons, palavras etc. Quando essas imagens surgem a partir da evocação
de cenas do passado, ou então da construção de projeções do futuro, são chamadas de imagens
evocadas.
Assim, vemos que as construções imagéticas que formam o pensamento, no tipo
perceptivo, são reguladas pelo corpo e pelo ambiente que o cerca; nas evocações e
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imaginações, são dirigidas pelo interior do cérebro – sendo que, em algum momento, elas se
constituíram como imagens perceptivas, já que toda evocação é a reconstrução de uma
experiência anterior. O que nos leva a um ponto de extrema importância: imaginação e
percepção são dois aspectos totalmente interligados.
Seguindo essa linha de raciocínio, o primeiro trabalho realizado com os
pesquisadores do grupo foi o de ampliar a autopercepção do próprio aparelho fonador, em
ordem de buscar a construção – mas também a sensação da construção – da palavra falada.
Nossa intenção, antes de tudo, era descobrir o que é “palavra” – o que é a palavra,
sem nos atermos a uma definição que derivasse somente de sua função ou de seu uso. Uma
palavra, o que é? O que faz com que uma palavra exista, e o que faz com nós a
compreendamos como tal? Algumas instâncias, ou níveis dessa “construção sensível/corpórea
da palavra” foram nomeadas pelos próprios pesquisadores, como segue:
- silêncio;
- ruídos;
- fonemas;
- sílabas;
- palavra.
E partimos para o trabalho com cada uma delas, uma conduzindo à outra. Com
exceção do silêncio, com o qual não poderíamos trabalhar de antemão, antes da construção
das palavras, pois o silêncio está ou se faz, e só conseguimos apreendê-lo em referência a algo
que nele esteja; não é possível construí-lo mecanicamente, aprioristicamente.
O segundo item, o ruído, foi o que demandou o trabalho mais longo e mais duro
dos pesquisadores, embora nunca desprazeroso – muito pelo contrário. A intenção primeira
dessa fase foi resgatar – antes ainda da oralidade – o caráter lúdico da sonorização. A
referência dada para a experimentação foi a de bebês na fase da primeira fonação; os atores
teriam de resgatar, reconstituir ou vivenciar o prazer sensorial (para não dizer sensual) da
descoberta dos sons, envolvendo aí não só os sons em si mas também todo o mecanismo
cinético envolvido em sua produção.
Quando digo que esse foi o trabalho mais duro, foi porque, antes de chegarem a
sentir prazer com a experiência da sonorização, os atores tiveram de vencer duas coisas: a
vergonha, ou o medo do ridículo e do grotesco; e o sedentarismo de toda a complexa e
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delicada musculatura exigida pela fonação, principalmente aquela envolvida na produção de
sons que não são explorados pela fala cotidiana.
Os
exercícios
utilizados
nessa
fase
foram
baseados
principalmente
em:experimentação individual dos ruídos; ampliação da cinética da produção dos ruídos, até o
ponto de se tornarem amplas caretas; “jogo de espelho” com os ruídos – e suas respectivas
“caretas” – para que cada um deles fosse obrigado a explorar e trabalhar também sons e
movimentos que fossem naturais e orgânicos para outro, mas não para ele mesmo.
Depois disso, o caminho percorrido foi se desenhando de maneira bastante
orgânica: os ruídos passaram a ser tratados como fonemas – pediu-se aos pesquisadores que
se reunissem em dois grupos e cada grupo selecionasse dezoito deles, criando uma grafia para
cada ruído/fonema. Desses dezoito fonemas, três foram selecionados, aleatoriamente, para
cumprirem a função de “vogais”; daí, eles passaram a compor sílabas, pela combinação de
fonemas “consoantes” e fonemas “vogais”. Essas sílabas foram então combinadas para
formarem palavras.
Para evitar que as palavras criadas derivassem para um caráter ilustrativo ou
onomatopéico do seu significado, foi imposta uma regra arbitrária: que elas fossem
construídas com o mesmo número de sílabas da palavra equivalente em português, e com a
mesma tonicidade.
Aqui surgiu um problema de execução. Dada a complexidade e falta de habilidade
dos pesquisadores com as próprias palavras criadas, eles tendiam a sempre pausar a emissão
sonora logo antes ou logo após a sílaba tônica da dita palavra. E, sem a continuidade sonora,
estes sons deixavam de se caracterizar como palavra – com a integridade sonora que a palavra
exige – e se decompunham em fonemas novamente (não diferente da experiência de pessoas
em fase de letramento que começam a ler seus primeiros textos em voz alta).
Para que os pesquisadores pudessem compreender melhor a questão do fluxo do
som exigido por uma palavra, solicitei a eles um exercício que faria com que o fluxo do
movimento corporal – já bastante compreendido e explorado por eles, pelos seus estudos em
Artes Cênicas – se transferisse para a fala. Assim, eles teriam de, para cada palavra, criar uma
partitura de movimentos, com fluxo, ênfase e conclusão coincidentes com essa palavra.
Nesse exercício ficou clara a existência de uma curva melódica, inerente e
necessária à existência de cada palavra. Em teatro, costuma-se lidar muito com a curva
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melódica de uma frase, ou mesmo de uma fala inteira (composta em si por várias frases
reunidas). Aqui, pudemos perceber a importância de considerar não só o acento tônico, mas a
curva melódica da palavra, para que ela possa se caracterizar como tal, ser reconhecida como
tal pelo ouvinte, e então, a partir daí, poder carregar em si, carrear de si, seu potencial
imagético, seu sentido não só semântico, construtor do entendimento poético. Caminhos de
futuro da nossa ação de pesquisa.
Bibliografia
DAMÁSIO, António R. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.
FURLANETE, Sandra Parra. Estudos para integração voz.movimento corporal no trabalho
do ator contemporâneo. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais,
Escola de Belas Artes, 2007.
HERCULANO-HOUZEL, Suzana. O Cérebro Nosso de Cada Dia: descobertas da
neurociência sobre a vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2002.
HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Instituto
Antônio Houaiss/ Editora Objetiva, dezembro de 2001.
KRISTEVA, Julia. “A Linguagem, a Língua, a Fala, o Discurso”. in: A Lógica da Lógica. vol.
1. Centro de Extensão e Pesquisa da FCH-FUMEC, 1983.
LE HUCHE, François; ALLALI, André. A Voz – Anatomia e fisiologia dos órgãos da fala.
Porto Alegre: Artmed, 2005. vol 1.
SACKS, Oliver. Um Antropólogo em Marte – sete histórias paradoxais. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
ZEMLIN, Willard R. Princípios de Anatomia e Fisiologia em Fonoaudiologia. Porto Alegre:
Artmed, 2000.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec/Educ, 1997.
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ORALIDADE E VOCALIDADE: DIFERENTES POSSIBILIDADES DO CONCEITO
DE VOZ NA POESIA CONTEMPORÂNEA DE LÍNGUA INGLESA
Sílvia Regina Gomes Miho (Profa. Dra.-UFGD)
Introdução
A poem understood as a performative event and not merely as a textual
entity refuses the originality of the written document in favor of the plural
event of the work, to use a phrase from Andrew Benjamin´s [...] to speak of
the poem as a performance is, then, to overthrow the idea of the poem as a
fixed, stable, finite linguistic object, it is to deny the poem its self-presence
and its unity. Thus, while performance emphasizes the material presence of
the poem, and of the performer, it at the same time denies the unitary
presence of the poem, which is to say its metaphysical unit. 1 (BERNSTEIN,
1998, p.09).
Sabemos que nossa missão deve ser realizada, sempre e de qualquer
maneira, na linguagem transmitida pela voz, que tem a dupla acepção, oral e
vocal. Nesse binômio é que se concentra toda a pesquisa da poesia sonora.
(Minarelli, 2005, p.200).
Entre a oralidade e a vocalidade, a poesia sonora constrói suas experimentações,
que podem conter maior ou menor grau de oralidade e ou de vocalidade, dependendo de cada
composição e das pesquisas que informam seus autores. Minarelli adota o nome “vocoral”
para sua poesia, pois a oralidade e a vocalidade ocupam espaços e tempos nitidamente
distintos em sua obra (Minarelli, 2010, p. 34). Há, também, como já apontavam os futuristas,
a possibilidade de se adotar elementos eletroacústicos, máquinas e equipamentos de som e de
imagem para colaborar na performance, mas a voz humana em contato físico com outros
corpos e vozes humanas é primordial para diversos tipos de poesia.
Ao tratarmos da poesia enquanto performance, estamos tratando de uma questão
que envolve os dois aspectos de um acontecimento estético: o texto escrito e o texto que
existe no momento de sua leitura ou performance. Em ambos os casos, a questão da voz se
impõe, porém de modos diferenciados. Esta duplicidade ou pluralidade da voz em poesia
confere a este gênero textual, e por que não dizer, a esta manifestação fenomenológica da
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existência, sua riqueza, seu mistério e sua própria materialidade, ela mesma um jogo de
tensões entre o escrito e o cantado ou vocalizado.
Neste artigo, abordar-se-á duas das possibilidades do conceito de voz na poesia
contemporânea: a oralidade e a auralidade ou vocalidade. Não tomaremos a voz poética no
sentido de eu lírico, algo abstrato, mas partiremos de uma idéia mais material da voz,
elemento físico e sensorial, seguindo as propostas de poetas Objetivistas como Zukofsky e
Williams, e dos conceitos desenvolvidos por Olson em seu manifesto denominadoVerso
Projetivo. Sabinson (2005, p.135) afirma que: “O objetivismo identifica a poesia com ambas a
experiência do corpo humano e o material musical, cujas produções sonoras não são
traduzíveis”. Para Olson, o ritmo do poema está em conexão direta com o corpo, relacionado
ao fôlego do poeta . Deste modo, a prosódia por ele criada é uma extensão da sua própria
respiração: a linha se quebra onde a respiração daquele que escreve faz uma pausa. Escreve
Olson no seu “Projective Verse”:
a CABEÇA, por meio do OUVIDO, para a sílaba
o CORAÇÃO, por meio do FÔLEGO, para a linha 111
(2003, p.1059)
Valendo-se dos recursos que o corpo oferece, a voz pode ser trabalhada através da
fala, do discurso organizado cujos referenciais são conhecidos do público, gerando poéticas
da oralidade ou, por outro lado, valer-se dos elementos linguísticos pré-discursivos como os
fonemas, os lexemas, a entonação. A primeira proposta procura comunicar e partilhar idéias e
identidades. Tomamos como exemplo deste tipo de poéticas obras dos poetas Beats, ao passo
que a segunda investe no elemento não semântico ou não referencial da linguagem, como
exemplificam os poemas sonoros de Steve McCaffery. Ambas as propostas são, de certa
forma, um retorno às próprias origens da linguagem e da poesia.
Em O grau zero da escritura Barthes faz a seguinte pergunta: “Há alguma
linguagem poética?” Para responder a questão, o autor afirma que a diferença entre prosa e
poesia é uma questão de quantidade, e não de essência e, para exemplificar seu ponto passa a
comparar características da poesia clássica e da poesia moderna. Uma delas é a de que a
111
the HEAD, by way of the EAR, to the SYLLABLE /
line.”(OLSON, 2003, p.1059)
the HEART, by way of the BREATH,to the
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poesia clássica é relacional, ou seja, seu objetivo é estabelecer e ressaltar as relações e não as
palavras. Seu objetivo não é inventar, mas expressar, utilizando padrões e imagens
reconhecíveis dentro de dado repertório, uma vez que visa à comunicação, o fluxo de
conceitos e idéias. Originariamente oral, a poesia clássica é um ato social regulada pelo grupo
na qual é criada e consumida. Para Barthes (2009, p.48), a poesia moderna, deve ser
diferenciada da poesia clássica e de qualquer tipo de prosa porque destrói espontaneamente a
natureza funcional da linguagem, deixando em pé apenas suas bases lexicais, uma vez que
procura eliminar a intenção de estabelecer relações e em vez disso, pretende produzir uma
explosão de palavras. Deste modo, a poesia moderna é composta de objetos inesperados,
insólitos, ou, como escreve Barthes “uma caixa de Pandora da qual emergem todas as
potencialidades da linguagem [...] a poesia moderna é uma poesia de objetos.” (p.50)
Partindo desta concepção de poesia moderna sugerida por Barthes, passamos a
discutir as possibilidades da voz em na poesia contemporânea.
Oralidade e vocalidade: revolução contemporânea ou volta às raízes?
“Contemporariness inscribes itself in the present by marking it above
all as archaic.”
(Agamben, 2009, p.50)
A oralidade, a parte musical ou sonora dos textos poéticos é um dos pontos
fundamentais não apenas deste gênero literário, mas também da literatura e da cultura como
um todo. Se considerarmos as várias culturas ágrafas que conservam seu imaginário, suas
tradições e valores através da palavra ritmada e cantada, publicamente, mantendo vivas as
tradições, culturas e comunidades, logo perceberemos que este é um dos pontos cruciais da
performance em poesia: seu caráter público, partilhado, construtivo e constitutivo de
subjetividades que somente acontece através voz e e da performance.
A oralidade, no sentido acima indicado, é marcada pela presença do corpo da voz
do sujeito que canta ou enuncia oralmente o poema, canto ou narrativa com uma clara
intenção comunicativa: a de estabelecer e manter ativo um canal de comunicação através do
ritmo, das palavras e das imagens. Pode-se dizer que um dos pontos altos da oralidade reside
na expressão significados, conceitos e comportamentos que são compartilhados. Imaginemos
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um ritual religioso, por exemplo, em que a palavra cantada ou falada estabelece certo estado
de atenção diferenciado daquele do cotidiano: o tempo do cotidiano cede a outro ritmo,
algumas vezes encantatório, outras vezes hipnótico, ou simplesmente mais lento ou mais
contemplativo, que torna o público mais receptivo a determinados estímulos proporcionados
pela voz.
Não seria descabido afirmar que este tipo de oralidade tem raízes ancestrais, sendo
um traço comum a todas ou quase todas as culturas humanas, traço este que foi explorado e
utilizado de diversas maneiras e com diferentes funções e intenções no decorrer dos tempos e
em diferentes sociedades, tais como religião, educação, prazer estético. Em todos esses usos, a
oralidade na poesia caracteriza-se por ser um bem cultural comum: referências, nomes, datas,
deuses, são de conhecimento de todos. O antigo aedo, ao declamar os feitos heróicos dos
grandes épicos, não acrescenta informações ou dados desconhecidos ou estranhos à tradição
da comunidade que partilha aquela narrativa de formação.
A partir do período romântico, entretanto, a expressão de um “eu”, de uma voz
interior e única passa a concentrar os esforços e atenções dos poetas e, essa individualidade,
que pode ser considerada uma das linhas de força da poesia até os dias atuais, busca expressar
um estado de espírito ou state of mind peculiar e único daquele que fala e que se procura em
sua própria voz. Há uma identificação com algumas tradições e valores, ao mesmo tempo em
que outras tradições e valores precisam ser questionados. O meio escrito, mais acessível que
em épocas anteriores, torna-se, então, uma das vias mais fortes da expressão poética, inclusive
pelo fato de permitir uma relação mais introspectiva e íntima daquele que fala/escreve com
sua voz interior e seu texto , assim como privilegia a intimidade da leitura, feita, muitas vezes,
de maneira solitária e silenciosa.
A presença marcante da voz na poesia contemporânea torna evidente a
necessidade de se retormar o contato entre poeta e seu público, trazendo-a de volta a suas
raízes coletivas. De acordo com Kristeva: A poesia é constituída dialogicamente através do
reconhecomento e da troca com um público de parceiros, na qual o poeta não está encenando
para leitores ou ouvinte invisíveis, mas para participantes ativos” (Kristeva,1984, apud
Bernstein,1998, p. 23).
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A oralidade e os poetas Beats
As poéticas dos norte-americanos Anne Waldman e Allen Gisnberg avançam
na trilha aberta pelas tradições dos xamãs, aedos, bardos e visionários que povoam a poesia
universal. Seus poemas e performances fazem da oralidade uma de suas principais forças de
reação e de oposição a seus contextos imediatos.
Michael Mclure, um dos poetas Beat descreve da seguinte forma o contexto do
qual emergiram as poéticas do grupo:
Os anos cinqüenta não foram como algumas pessoas imaginam hoje em dia,
adorável, retro, sentimental, encantador, que as pessoas dançavam de uma
certa maneira e a televisão estava surgindo em preto e branco como um
presente. A verdade é que aquele tempo era sério. Era a Guerra fria, o tempo
do comitê das atividades anti-americanas no senado, o tempo de Joe
McCarthy, o tempo da guerra da Coréia.[...] Os cidadãos eram
tremendamente oprimidos por usa necessidade de conformidade depois de
terem passado pela Segunda Guerra, celebrada e homicida, e depois de terem
sido criados pela “máquina educacional” do sistema propaganda militarindustrial que foi criado pela Segunda Guerra Mundial”. ( McClure,1999, in
Waldman & Wright, 2009, p.15)
No cenário literário ou poético descrito por McClure, havia, ainda, um tipo de
molde ou padrão para a poesia, um padrão advindo da poesia do alto modernismo, um tanto
quanto hermética em sua conquistada autonomia Acadêmica, difícil e cheia de referências
que, para a maioria dos cidadãos daquela época tensa, não faziam parte nem de seus
vocabulários nem de suas realidades, sendo portanto, distante e sem sentido ou sem função
para os não iniciados.Uma das propostas subjacentes à poética Beat, assim como várias outras
tendências da poesia contemporânea de língua inglesa a partir da década de 50, ( a poesia do
pós-guerra ou New American Poetry) é a de se tirar a poesia da página impressa e trazê-la
para uma relação mais física, corporal e espacial, em suma, trazer a poesia para a experiência
social mais ampla da qual ela emerge e que lhe suscita respostas no tempo presente e
vivenciado, concreto e material.
A poesia da geração Beat, rebelde, viva, forte, como toda poesia vinda de uma
legítima experiência que encontra sua voz, encontra também as suas raízes. Longe de ser algo
desprovido de pesquisas, conhecimentos e reflexões, seus poemas são frutos de escolhas que
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ao se concretizarem de maneira individual, na voz de cada poeta, injetam oxigênio e
nutrientes em uma tradição poética. Esta tradição tem ramificações mais próximas e outras
mais distantes. Tratando de dois poetas especificamente, Ginsberg e Waldman, podemos
traçar estas tradições mais próximas no modernismo norte-americano: William Carlos
Williams e Charles Olson. Porém, outras fontes também nutrem este ramo da poesia
contemporânea: Whitman, Blake, poemas religiosos, cânticos e rituais de culturas orientais e
indígenas. Mas o que todas essas fontes teriam em comum? Ritmo e poesia: voz, fôlego,
respiração, corpo. Mais do que algo abstrato, sentimental ou espiritual, a poesia corre nas
veias, nos pulmões, na boca, nos ouvidos. Michael Davidson (in BEACH, 2005, p.75) afirma
que, assim como a pintura das décadas de 50 e 60, a poesia também era formada por gestos,
por atividade muscular e não meramente discursiva. Como exemplos ele menciona as pinturas
de Pollock e as performances e leituras de poemas de Olson e de Ginsberg. A poesia, assim
como a pintura não descreve, mas cria e encena o sentido. Toda essa genealogia poética
baseia-se na oralidade, na comunicação de subjetividades e identidades.
Ginsberg, (2003,p.1075) comenta sua leitura de Howl e afirma que aquela
composição não tinha a finalidade de chegar aos ouvidos de todos, mas somente para poucos
amigos, pois na verdade, ele falava consigo mesmo. Era a sua voz para si. Por sorte, a
composição se tornou não somente pública, mas um hino ou um símbolo de toda uma
geração. No áudio disponível em:
http://media.sas.upenn.edu/pennsound/authors/Ginsberg/SFSU-1956/Ginsberg-Allen_PoetryReading_SFSU_10-25-56.mp3, pode-se notar a forte presença do fôlego e da respiração, do
corpo do poeta, guiando a leitura e o ritmo da percepção pelos ouvintes. Ritmo de desabafo,
de necessidade de falar e conseqüentemente deixar fluir tensões, medos, ansiedades e temores
que se estendem por longos períodos. Suas leituras ou performances, todavia, diferem das de
Waldman em vários pontos. Ginsberg se move no limite entre poesia e fala, enquanto
Waldman transita no limiar entre poesia e o ritual.
Anne Waldman, em um ensaio denominado “I is another”: Dissipative Structure,
afirma a respeito de sua própria poesia:
Poetry is not a closed structure [...] I am interested in the power language
has, and particularly in how to use it out of this female body and awareness
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to change my own consciousness and that of other people around me. I
enact language ritual as open-ended survival […] This enactment results in
a public poetry, in a communal poetry” (1996, p.129-130)
A posição de Waldman a respeito do uso ritual da linguagem é explícita em seus
poemas, ensaios, palestras e aulas sobre o tema. Nos arquivos de áudio, vídeo e textos
mantidos pelo Naropa Institute, onde Waldman atua como pesquisadora e professora, suas
palestras sobre poéticas xamânicas, poéticas de vanguarda, entre outros temas, pode-se
perceber sensívelmente o que ela quer dizer com ritual. Pesquisadora da poesia oral de índios
nativos das Américas do Norte e do Sul, Waldman realmente acredita no poder da voz
ritualística como elemento de comunicação especial, mais profundo. Sugiro a audição, mesmo
que breve, de sua performance/leitura do poema "Fast Speaking Woman”, disponível no
endereço: http://mediamogul.seas.upenn.edu/pennsound/authors/Waldman/Battery/WaldmanAnne_01_Fast-Speaking-Woman_Battery_1974.mp3.
O ritmo encantatório no qual ela desenvolve a leitura revela o seu próprio
engajamento físico e psíquico (as entonações, vibrações, modulação de voz, respiração,
movimentos de corpo) abrem e mantém um canal perceptivo envolvente trazendo a tona
pulsões através dos elementos rítmicos e não necessariamente semânticos do texto. A
estrutura repetitiva dos versos (I _+verbo de ligação + predicativo do sujeito + a palavra
woman) faz referências a inúmeros tipos de mulheres que a poeta afirma ser, ressaltando todas
as diferenças e todas as igualdades entre suas condições. Essas referências são percebidas
como diferenças por suas relações semânticas e discursivas. Ao mesmo tempo, a força rítmica
da voz em performance parece hipnotizar, ou, pelo menos, aproximar-se de um estado de
transe em que as diferenças discursivas tendem a apagar-se. Essa tensão torna a performance
deste e de outros poemas um elemento simultaneamente organizador e desorganizador da
linearidade discursiva, ao propor ritmo e tempos distintos do aqui-agora das sociedades de
massa..
Enquanto a poesia que privilegia a oralidade é marcada pela presença e pelo
engajamento, tanto do poeta/performer quanto do público, atuando de modo discursivo, a
poesia sonora emprega a voz em um nível cognitivo diferente, enfatizando os sons não
discursivos da linguagem, os sons da fala, mas de maneira aparentemente desarticulada. Suas
composições buscam recursos diferenciados que, ao invés de absorver, imediatamente, o
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público/leitor em seu discurso, oferece-lhe textos que repelem essa absorção por usar os sons
dispersos “entre o corpo e a linguagem” (McCaffery, ....., p. 163), em que o significante
impõe-se sobre o significado.
Auralidade opaca: a não transparência da poesia sonora.
Julia Kristeva (1984) desenvolve conceitos fundamentais ao estudo de poesia
contemporânea. Dois dos pontos essenciais discutidos por ela são os campos simbólicos e
semânticos da linguagem em suas várias possibilidades, mais especificamente na linguagem
poética. Resumidamente, pode-se dizer que tais campos ou níveis são indissociáveis, mas
cada um tem suas próprias características e funções na constituição da fala, da subjetividade e
das manifestações discursivas em geral. O campo simbólico da linguagem é organizado, e
procura a transparência na comunicação de idéias. O exemplo utilizado por ela é o do discurso
científico. Já o nível semiótico é um nível pré-discursivo, não organizado linearmente, mas
repleto de pulsões, de desejos e de energias que nutrem o nível simbólico e o tornam ativo. Na
comunicação diária, através do uso da linguagem de maneira utilitária, o nível simbólico
prevalece em nossas interações comunicativas. Por outro lado, na linguagem poética o nível
semiótico ganha maior espaço e força. O nível semiótico constitui-se no chora, espaço em
que o sentido é produzido. Caracterizado por movimentos espontâneos de pulsões ou desejos
numa totalidade não expressiva, próxima, portanto, do inconsciente, o chora é descrito por
Kristeva como o estágio de desenvolvimento de uma criança em que ela ainda não sabe usar a
linguagem para se referir às coisas ou, então, como o estado psicótico, no qual a linguagem
não é usada de maneira inteligível. Ali se formam as vocalizações, as glossolalias, os ritmos e
entonações da fala. A revolução da linguagem poética, sugerida por Kristeva, reforça a
importância do nível semiótico na criação verbal, mais especificamente pelas poéticas de
vanguarda.
A linguagem poética estilhaça e desestabiliza a totalidade do discurso. Escreve ela
que:
Because of its specific isolation within discursive totality o four time, this
shattering of discourse reveals that linguistic changes constitute changes in
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the status of the subject – his relation to the body, to others, and to objects,
and also reveals that normalized language is Just one of the ways of
articulating the signifying process that encompasses the body, the material
referent and the language itself. (1984, p. 15-16).
A poesia sonora apresenta, através da voz e da performance, esse estilhaçamento
do discurso, libertando a fala do sentido, da obrigatoriedade de um referente claro e direto,
pois situa-se no espaço em que a possibilidade de falar e de fazer referências encontra-se,
ainda , em formação e movimento, instável e opaca, em suma, glossolalias. Segundo Michel
de Certau: “O que a utopia é para o espaço social, a glossolalia é para a comunicação oral; ela
incorpora aos simulacros lingüísticos tudo que não é linguagem, mas que vem da voz falante”.
(1996, p.30,31). Há um rumor polifônico que se vale dos fonemas como unidades lúdicas de
composição, que divide e desmancha a palavra falada e, por conseguinte, destrói as bases da
língua em que existe, tornando-se ininteligível, irreconhecível, semelhante a rumores ou
ruídos.
Mas qual seria a finalidade de uma poesia assim, que insiste na vocalização e no
significante com maior intensidade, colocando em segundo plano ou até mesmo excluindo o
significado? A resposta está na experimentação sonora e nas pesquisas a respeito dos usos da
linguagem, da construção de sentidos e na proposta de se romper com um uso exclusivamente
utilitário e transparente da linguagem. Wittgenstein afirma que “A poesia é feita com a mesma
linguagem da informação. Mas seu objetivo não é a transmissão de informação”. Ou seja, a
sua finalidade não é informar, mas sim chamar atenção para o material que a compõe e como
seus elementos podem ser organizados. Enfim, propõe um jogo de linguagem como o objetivo
de frear o ritmo da informação, propor um ritmo diferenciado daquele da linearidade e da
imediaticidade. Esses são os efeitos estéticos primordiais para a poesia sonora, propor uma
percepção diferente através do estranhamento que a materialidade da composição causa.
Por que não prestar atenção nos sons da língua e usá-los como elementos
composicionais, ou, como escreve Bernstein, como artifícios que deixam explícita sua
artificialidade? Esta questão, além de apontar para aspectos estritamente ligados à composição
e seus métodos, também põe em evidência uma posição ideológica e política
de
questionamento de padrões e comportamentos que estão presentes nos usos cotidianos e nos
usos poéticos da linguagem.
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A constância desses padrões acaba por usar de artifícios que tornam determinados
tipos de discursos transparentemente realistas. O público, as pessoas, os leitores, enfim, são
absorvidos pelas composições, mesmo sem perceber. È o caso dos gêneros discursivos usados
diariamente: a mídia televisiva e jornalística, as novelas e séries de TV, a linguagem das
mensagens instantâneas e das redes sociais online passam a fazer parte da linguagem e,
portanto, dos seres que nela vivem, que a usam e são usados por ela. Os gêneros literários e
musicais tradicionais também podem, de certa forma, contribuir para que se preste menos
atenção ao material das composições e se espere por um conteúdo parafraseável ao final da
leitura, pois a expectativa criada pelos Gêneros textuais geram estratégias e passos
interpretativos distintos uns dos outros. Misturar gêneros textuais, fundi-los, extrapolando
suas bordas faz parte do experimentalismo literário de dos poetas do grupo
L=A=N=G=U=A=G=E. Muitas de suas composições apagam os limites entre ensaio e poema,
como “Artífice of Absorption” e “Dysgraphism”, de Charles Bernstein. Este grupo exerce a
reflexão critica e criadora, autocrítica, aplicando e discutindo conceitos advindos do
pensamento crítico francês, da filosofia nas suas escrituras e em suas performances,
dramatizando o processo de articulação do pensamento no texto e do texto.
O poeta sonoro Steve McCaffery, participante do grupo afirma que poesia
essencialmente pesquisa. Ao longo dos anos, os interesses deste poeta-pesquisador
percorreram vários caminhos dos estudos da linguagem: estudos filológicos, fonéticos, Old
English, dialetos de sua terra natal e outros, teoria critica, desconstrução, psicanálise. O foco
de suas pesquisas é a investigação formal, material das línguas. Clint Burnham (1996, p. 17)
divide a obra de McCaffery em quatro fases não cronológicas e que se sobrepõem. A primeira
fase, na década de 1970 é considerada o seu período concreto ortodoxo, culminando com a
série Carnival (1973 e 1979). O Segundo período é um período de transição através de livros
construtivistas, como Panopticon (1984). O terceiro período envolve trabalhos líricos e póslíricos (Intimate Distortions, de 1973 e Evoba , de 1987 . O quarto período, no qual
McCaffery ainda trabalha, é denominado teoria-ficção e inclui North of Intention (1986),
Rational Geomancy (1992) e Theory of Sediment (1991). Sua obra é extensa e bastante
heterogênea. Tomemos apenas dois exemplos de como seus poemas e pesquisas se
concretizam.
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O primeiro exemplo é a sua tradução para o dialeto de Yorkshire, do Manifesto
comunista de Karl Marx e F. Engles. McCaffery, em entrevista a C. Bernstein, afirma que as
traduções inglesas daquele texto traem a intenção comunicativa do autor, uma vez que o texto
é dirigido aos proletários, mas, nas versões inglesas emprega-se uma linguagem
excessivamente vitoriana para os ouvidos dos trabalhadores. Por isso, ele compôs uma versão
do texto grafada como se pronuncia, no dialeto de Yorkshire, pelos trabalhadores locais.
Abaixo, um pequeno trecho do texto. Para ouvi-lo e obter o texto completo, acessar
http://writing.upenn.edu/pennsound/x/McCaffery.php e buscar o link:
http://mediamogul.seas.upenn.edu/pennsound/authors/McCaffery/MccafferySteve_Kummunist-Manifesto_c1990.mp3
Steve McCaffery
The Kommunist Manifesto
or
Wot We Wukkerz Want
Bi Charley Marx un Fred Engels
Redacted un traduced intuht’ dialect uht’ west riding er Yorkshuh bi
Steve McCaffery, eh son of that shire. Transcribed in Calgary 25 November
to 3 December 1977 un dedicated entirely to Messoors Robert Filliou and
George Brecht uv wooz original idea this is a reullizayshun.
Nan sithi, thuzzer booergy-mister mouchin un botherin awl oer place--unnits
booergy-mister uh kommunism. Allt gaffers errawl Ewerup‚ Äôs
gorrawl churchified t’booititaht: thuzimmint mekkers, unt jerry plain
cloouz boobiz.
Nah then--can thar tell me any oppuhzishun thurrent been calder kommy
bithem thuts runnint show? Urrunoppuhzishun thurrent chuckt middinful on
themuzintfrunt un themuzintback unawl?
Nahthuzzuh coupler points ahm goointer chuckaht frum awl thisseer
stuffidge:
Wun: Thadeelin wear reight proper biggun inthiseer kommunizum.
Too: It’s abaht bluddy time thut kommunizum spoouk its orn mind,
unwarritsehbaht, un edder reight set-too we awl this youngunz stuff ehbaht
booergy-misters, wee uh bitter straight tawkin onnitsoowun.
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Uma das características da poesia sonora de McCaffery, na análise de Bernstein
(1992) é ser “antiabsortiva”. Afastado da transparência realista, o poema/performance reforça
sua “artificialidade”, sua existência como um artefato lingüístico. O lugar, ou melhor, o entrelugar do texto escrito e de sua vocalização, da linguagem e do referencial do ser que
fala/vocaliza e do ser que escuta é o espaço e que se inserem sua pesquisas e suas criação. O
que está em jogo, neste jogo de linguagem, é um deslocamento da linguagem e do texto
enquanto veículos inquestionáveis de uma experiência ( exemplo: realismo/naturalismo) para
uma crítica desses veículos empregados não apenas para a comunicação da experiência X ou
Y, mas também como construtores de identidades, ideologias e poemas. Kommunist
Manifesto joga com as possibilidades de vocalização de uma oralidade não reconhecível por
comunidades não falantes daquele dialeto. Sons, então, passam a fazer parte do sentido,
integralmente, tornando-o inusitado e estranho, dotado de musicalidade e ritmo próprios,
recurso que dramatiza e concretiza o texto e a performance dele, pois o “sentido’ ou o
reconhecimento do tema ou assunto tratado reside mais no som que na grafia.
Charles Bernstein afirma que:
As the poem seems/ overtly self-conscious, as opposed internally/incantatory
or psycgcally/ actual,/ it may produce/ self-consciousness in the reader/
destroying his or her absorption by theatricalizing/ or coneptualizing the
text, removing/ it from the/ realm of an experience engendered/ to that of a
technique/ exhibited./ This is the subject of much of my work. (Bernstein,
1992, p.53)
Composições de poesia sonora jogam com a possibilidade da não absorção, com o
estranho e absurdo fato de se usar os sons da língua, associados às potencialidades da voz do
poeta ou performer para não comunicar algo parafraseável, para gerar no público a sensação
de falta ou de ausência, ou melhor,
os fonemas, letras ou sílabas dissociadas de uma
correlação com o “sentido” usual. Em Kommunist Manifesto, as experimentações e técnicas
exibidas pelo poema refletem suas pesquisas com a sonoridade e as propriedades fonéticas da
língua inglesa, não conhecidas ou não reconhecidas pela maioria dos falantes da língua.
Como adentrar nesse contexto lingüístico? Qual expectativa tem o leitor/ouvinte em relação
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ao texto? A quebra de expectativas interpretativas convencionais não impede o texto de ser
algo lúdico e interessante em duas frentes: a primeira, e principal delas, a performance, cuja
potencialidade semiótica realmente faz do texto vocalizado algo totalmente diferenciado do
aspecto gráfico. Seu aspecto de entretenimento ( Bernstein, 1992, p.65) atinge o público que
busca algum tipo de ruptura com o entretenimento convencional; a segunda frente é a da
leitura do texto, tentando vocalizá-lo.
Apostando propositadamente na impressão de non-sense, trabalhos deste tipo são,
na verdade, resultado de constante pesquisa e de metodológica experimentação. Não se trata
de um amontoado de sons, mas da seleção meticulosa de elementos sonoros e vocais quase
que irreproduzíveis por outra pessoa que não seja seu compositor. Não ha transcrições
comuns a vários performers para as vocalizações de fonemas e/ou outros sons produzidos pelo
aparelho fonador humano. Steve McCaffery menciona um experimento feito por ele no qual
outra pessoa tenta vocalizar um de seus poemas sonoros. A idéia não funciona, pois a
reprodução vocalizada obtida não se iguala à sua, gerando assim, outra peça.
A aparente falta de sentido fica ainda mais pujante quando McCaffery lê um de
seus poemas sonoros, intitulado “Midnight Piece” (ou seria Midgnight Peace?), num primeiro
momento vocalizando o texto escrito e, em seguida, lendo o texto sem vocalizá-lo. Como se
trata de poemas sonoros, a audição se faz necessária para que possamos tecer outros
comentários. Os poemas acima mencionados estão disponíveis em:
http://media.sas.upenn.edu/pennsound/groups/LINEbreak/McCaffery/McCafferySteve_LINEbreak1_Buffalo_1995.mp3.
Trata-se de uma entrevista concedida a um programa de rádio. A leitura
vocalizada encontra-se aos 24 minutos e 12 segundos. A leitura não vocalizada, aos
27mininutos e 30 segundos d entrevista com duração total de 29 minutos. Sem escutar o áudio
da performance, mesmo que gravada, torna-se impossível saber exatamente do que se trata.
Ao ouvir, porém, as diferenças aparecem de maneira inconfundível. A poesia sonora e a
leitura vocalizada de poemas fazem da voz em cena, em ação, um importante elemento
semiótico que gera sentidos conectando corpo, linguagem, afeto e comunidade num momento
de interação.
Tais poemas podem ter um caráter que repila uma interpretação linear ou
tradicional, mas a performance
proporcionada por eles traz outra possibilidade de
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interpretação e de entretenimento, na qual o participante ativo se engaja e constrói os
significados do evento do qual está participando. Não há poesia sonora sem performance.
Pois, de acordo com McCaffery: “Sound poetry materializes an ideology by grounding social
identity in non-discursive vocalization”. (1998, p.) e a vocalização necessita do diálogo e da
polifonia efêmera de cada performance.
A questão teórico-crítica subjacente aos poemas e ensaios de McCaffery tem
sólidas conexões com o pensamento de Derrida e de Kristeva, principalmente no que se refere
às potencialidades de articulação e explosão de sentidos que existem além do nível simbólico
e monofônico da correlação som-sentido. A exploração dos elementos fonéticos sugerida por
Kristeva (1974, p. 34) fica bastante clara nas composições de McCaffery. Cito:
[..] phonetic particularities which have no distinctive value but which,
depending on their articulation base, imply different impulsional (pulsional)
investiments[…] and though they have no immediate semantic value, do
acquire such value through displacement and condensation. (Kristeva, p. 34)
e:
[…] when the phonematic distinction is thus overburdened with new
economies (drives, alliterations, repetitions, displacements, condensations,
etc.) the univocal character of every lexical character is lost. (idem, p.36).
A revolução da linguagem poética de que fala Kristeva ecoa nas propostas de
McCaffery, de Bernstein e outros. Baseados na idéia de que a prática literária é inseparável da
prática política - uma vez que ambas acontecem no mesmo elemento fundador, a linguagem –
eles uma noção de texto para o qual o sujeito traz para aquilo que o outro apresentou para a
sociedade. A identidade e a formação de subjetividades e sentidos, individuais ou coletivos,
que parte de elementos rejeitados pela sociedade moderna, como as formas consideradas não
produtivas (vocalizações, glossolálias) ou não semânticas reflete a importância do Outro na
linguagem. Fonemas deixam de ser unidades mínimas significativas em função de um sentido
e tornam-se gestos verbais conectados com o Outro da linguagem, o outro que se esconde nos
níveis inconscientes ou semióticos e que servem como estruturas fortes, porém invisíveis, de
nossa psiqué e de nossa ação enquanto seres participantes de comunidades . As pulsões, os
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desejos, as sensações físicas concretizadas em vocalizações de poemas, longe de serem meros
grunhidos ou sons desarticulados, procuram, na verdade, articular forças sempre presentes,
mas quase nunca desejáveis ou produtivas, no sentido capitalista do termo.
De acordo com Kristeva (1984, p.17), a linguagem poética tem a ver com o nosso
ser no mundo, individual e coletivamente, pois ela traz consigo infinitas possibilidades de
linguagem sejam elas conscientes ou inconscientes. Ao estilhaçar o discurso, a linguagem
poética põe à mostra a base produtiva das formações de significados sociais e ideológicos,
deixando ver que o que hoje julgamos esquizofrênico já foi considerado, por sociedades
primitivas, como algo sagrado.
McCaffery menciona Barthes e Kristeva em seu ensaio The Unreadable Text
(1983) e sugere que uma das alternativas à abordagem de produção semântica está na
exploração do ritmos e sons que “constitute the radical other of the linguistic interiorized
and repressed with all manifestations of signifying process.” (McCaffery, 1983, p.67)
Finalizando este artigo, coloco novamente a pergunta: Oralidade e vocalidade:
revolução poética ou volta às raízes? Acreditamos que o princípio mesmo da linguagem
poética é revolucionário por natureza, por trazer, sempre, a possibilidade do Outro na
linguagem. Por isso mantém uma conexão forte e pulsante com elementos essenciais e
ancestrais, primitivos e arcaicos nos quais - seja pelas vias discursivas da poesia oral ou pelas
vias vocalizantes da poesia sonora- as vanguardas e a contemporaneidade buscam refúgio, ar
fresco e energias revigorantes para exercer seu ser no mundo, sua contemporaneidade. Isso
não significa que se trata de um simples retorno ao ancestral, mas sim de um modo de ser e de
estar no presente de maneira questionadora e crítica.
Para Gertrude Stein, e também para Agamben, o contemporâneo parece estar
sempre um tanto quanto deslocado, não se encaixa perfeitamente aos moldes do seu tempo,
por ter com ele uma relação de disjunção de anacronismo inclusive porque, deste modo, pode
ter uma visão e uma compreensão de seu tempo diferenciada, mais crítica.
Os exemplos comentados por este artigo – Anne Waldman, Allen Ginsberg e
Steve McCaffery – ilustram de maneira breve, como essa relação entre contemporâneo,
vanguardista e arcaico podem se construir a partir de diferentes objetivos e métodos, mas com
pontos em comum: a valorização e o questionamento de processos existenciais, estéticos e
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políticos concretizados pela palavra falada, vocalizada que aponta para as possibilidades do
ser a partir dos usos e concepções de voz postas em ação.
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POÉTICA DA VOZ: PALAVRA E PERFORMANCE NA CANTORIA DE VIOLA
Simone Oliveira de Castro112 (Profa. Dra.-IFCE)
Em geral eloquentes, os cantadores e cantadoras são de fato homens e mulheres da
palavra, seja ela cantada, improvisada, falada. A força de sua arte inscreve-se exatamente no
espaço primordial em que a voz/palavra ocupa um lugar de destaque caracterizando, assim,
um poder simbólico, o poder da palavra determinado pela “crença na legitimidade das
palavras e daquele que as pronuncia”.113
A cantoria configura-se, em seu fazer, notadamente a partir do poder da palavra e
da voz. Sendo arte performática, na troca em presença de vários outros é que se revela como
um ritual nas pulsões de corpos, que se animam e se comunicam através de um repertório de
sentimentos, imagens e memórias revividas, experimentadas toda vez que um cantador toca
no pinho e, soltando sua voz roufenha, transforma palavras em poesia.
Para o cantador Louro Branco “a cantoria é um trabalho muito difícil. Cantar
repente de improviso... é aquela coisa, o mistério está mais na letra do que na música”.
114
Como sugere o poeta, o mistério está na letra, que neste caso, é antes de tudo palavra cantada,
improvisada e que consegue alcançar o interior do ouvinte.
Ao falar da poesia oral, Paul Zumthor esclarece:
A enunciação da palavra ganha em si mesma valor de ato simbólico: graças à
voz ela é exibição e dom, agressão, conquista e esperança de consumação do
outro; interioridade manifesta, livre da necessidade de invadir fisicamente o
objeto de seu desejo: o som vocalizado vai de interior a interior e liga, sem
outra mediação, duas existências. 115
A cantoria se insinua para cantadores e ouvintes como esse ato simbólico. Ato de
conquista. Conquista do outro, o público, através da palavra criadora, rebelde e doce,
112
113
[email protected]
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6ª. ed. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003, p. 15.
114
Entrevista realizada pela autora em 17/09/2004 em Fortaleza/CE.
115
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad.: Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: HUCITEC,
1997, p.15.
Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades
20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina.
ISBN: 978-85-7846-101-0
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agressiva e esperançosa. Arte que se constrói como palavra-discurso porque consegue
enredar, no mesmo tecido social, vidas que se assemelham e se reconhecem.
É, sobretudo, a força da palavra improvisada o motor que dá continuidade a essa
arte. Os ouvintes buscam palavras que criem, através das vozes dos cantadores e cantadoras,
um mundo que diga respeito à sua própria existência. É uma poesia que traduz e recria, em
seus diferentes gêneros, o cotidiano das vidas que se unem em torno de um vínculo coletivo e
que dá significado aos fragmentos de memórias e histórias vividas por seus ouvintes em
espaços e temporalidades diversas.
Através dessas palavras eles podem reviver um sertão que ficou para trás ou
imaginar uma cidade que trouxesse todas as benesses que a “vida moderna” pudesse oferecer.
Como no exemplo trazido por Moacir Laurentino e Sebastião da Silva: 116
SS:
SS:
A cidade é ambiente
Precisamos na cidade
Do povo que pensa bem
De algo que o campo cria
E todos os graus de ensino
Se o campo não produzisse
É na cidade que tem
A cidade não comia
Sertão não tem faculdade
Se a cidade não comprasse
Que dê diploma a ninguém
O campo nada vendia
ML:
(...)
ML:
Porém na cidade tem
Entre a tecnologia
Barulho que me faz medo
E o trabalhador do eito
No sertão os passarinhos
Cada qual faz sua parte
Cantando nos arvoredo
Cada um é do seu jeito
Alegrando as alvoradas
Ambos são filhos de Deus
Pra gente acordar mais cedo
Merecem o mesmo direito
(...)
116
Moacir Laurentino & Sebastião da Silva. Os Grandes Repentistas do Nordeste. Vol. 11. 5ª. Faixa.
Sextilhas: O sertão e a cidade.
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Os cantadores, neste sentido, representam um universo de vozes e palavras que
consegue, de forma primorosa, cantar o contínuo intercâmbio entre o sertão e a cidade, entre o
urbano e o rural, entre o oral e o escrito, compondo, assim, uma instância de identificação
entre os ouvintes. Esses poetas, em diferentes espaços e temporalidades, aglutinam essas
coletividades dispersas que estão em busca de comunicação com o mundo no qual se vêem
inseridos, que procuram compreender os percursos aos quais foram impelidos nos inúmeros
processos migratórios. Migração não apenas no âmbito sertão-cidade, mas também subjetiva,
entre os modos de viver, de sentir e apreender os novos significados advindos desse processo.
A cantoria atrai exatamente por essa capacidade que homens e mulheres, muitas
vezes apenas alfabetizados, têm de transformar a realidade vivida em metáforas, em imagens
que revelam uma sabedoria incomum que encanta e faz despertar no outro emoções,
sensações, sentimentos que dormiam no corpo/memória e que o cantador traz à tona no
momento da performance. Para o ouvinte José Francisco Maia:
O que motiva é a sabedoria dos cantadores, né? Além da sabedoria,
conseguir encaixar nos versos o que sabem e rimado e rimar de repente esse
saber. É exatamente o que atrai esse público é a forma como ele improvisa e
o saber dele (...). Ele expressar esse saber nesses versos porque tem (...) tem
gente que é muito sabida, mas não faz nenhum verso muito menos de
repente. 117
Essa sabedoria dá autoridade aos cantadores. Esse poder de transformar, de
repente, palavras, idéias, sonhos, angústias, medos tudo em poesia, e obedecendo a regras
bem definidas, faz com que essa arte permaneça existindo. Não é apenas o que eles dizem e
sabem, mas também o modo como conseguem transmitir esse saber o que os torna tão
admirados e respeitados pelo seu público.
Essas vozes e palavras simbolizam, para além da técnica, a emergência de um
modo de ser e de viver que consegue sua expressão plena nessa poesia. Os ouvintes
encontram no cantador um interlocutor capaz de traduzir o que muitos sentem necessidade de
dizer, mas não conseguem e, indo além, também o não vivido, o algo novo, nunca ouvido nem
experimentado. São sentimentos que, antes dispersos, passam a fazer parte de um repertório
117
Entrevista realizada pela autora em 03/03/2007 em Limoeiro do Norte/CE.
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comum em cuja memória as diversas gerações mantêm-no vivo e atual. É um
(re)conhecimento. Zumthor explica:
O conhecimento ao qual eu dou forma ao falar e de que, pela via do ouvido,
você se apodera, se inscreve num modelo ao qual ele faz referência: ele é
reconhecimento. Ele se predispõe a dar justificativas habituais e se
desenvolve em uma trama de crenças, de hábitos mentais interiorizados,
constituindo a mitologia do grupo, qualquer que seja ele. 118
Os ouvintes sentem-se representados nessa poesia porque ela expressa uma
memória emotiva de algo vivido pela maioria nos sertões, e, devido a inúmeros
deslocamentos rumo às cidades, sentem necessidades de rememorar um passado que se torna
presente toda vez que um cantador consegue evocar esse sentimento de saudade, esse cheiro
de infância ou, até mesmo, as marcas desses deslocamentos e as novas formas de viver em
outro espaço social. Entretanto, essa poesia pode expressar a dimensão de algo maior, algo
que se insinua na criação de uma experiência não vivida anteriormente.
A voz nomeia e transforma a emoção vivida através da palavra e, ao mesmo
tempo, sugere novas emoções e a possibilidade de transcendência do cotidiano. E essa vozpalavra encontra eco na coletividade cujo horizonte de expectativas é satisfeito quando o
cantador atende ao pedido da platéia. Quando canta um tema, um assunto, um mote que,
mesmo sorteados, toca-lhe profundamente por dizer algo de sua existência.
O apologista José Moreira de Alencar, mas conhecido como Zé de Aurélio - em
referência ao nome do seu pai - já foi um grande promovedor de cantoria no Vale do
Jaguaribe, hoje, com vários problemas de saúde, apenas vai a algumas cantorias e festivais
organizados por outros apologistas e, mesmo assim, só quando se sente mais disposto. Para
ele a cantoria improvisada é uma das artes mais difíceis de fazer. Sua admiração é tão grande
que ao relembrar o cantador Pedro Bandeira emociona-se e declara:
(...) Pra mim foi uma coisa medonha, cantando sertão, natureza, mexendo no
coração da gente, que o cantador ele mexe no coração da pessoa que sente
que é poeta. Eu não sou poeta, mas sinto que eu... quando eu vejo o verso, eu
fico emocionado, eu sinto meus cabelos arrupiar com o verso. 119
118
119
ZUMTHOR, P. Op. Cit., 35.
Entrevista realizada pela autora em 04/03/2007 em Limoeiro do Norte/CE.
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Como Zé de Aurélio, muitos amantes da cantoria se sentem “mexidos”, ficam
“arrepiados” quando estão em presença de um cantador. Quando sua poesia se faz “medonha”
e consegue retratar imagens que despertam emoções guardadas no íntimo, quando, naquele
momento, o ouvinte sente-se à vontade para compartilhar sentimentos com vários outros que
se encontram também representados nessa emoção.
Tais sentimentos, que são vividos e sentidos também pelos poetas, fazem-nos
ficar cada vez mais inspirados na hora de sua criação, exatamente pela beleza desse
compartilhar. Um alimenta o outro. Nessa troca surge a força da palavra que comunica, que
emociona e encanta. Como sugerem as sextilhas improvisadas pelos cantadores Raulino Silva
e Rogério Meneses: 120
RS:
RS:
De onde a beleza vem
Neste instante uma mensagem
Eu vou descobrir agora
Abstrata é recebida
Transformar sonho em imagem
Em uma imagem sem pixels
Palavra em onda sonora
A mensagem é transmitida
E atirar-me sem destino
Não dá pra ser avistada
Pelo universo afora
Mas dá para ser sentida
(...)
RM:
(...)
RM:
Vou saciar com poesia
Eu falo a vós com franqueza
Cada coração faminto
Aqui estou por prazer
Nas galerias da noite
São esses momentos bons
Exponho quadros que pinto
Que fazem à vida valer
Fazendo o povo sentir
Os esforços permanentes
A mesma emoção qu’eu sinto
Que a gente faz pra viver
(...)
(...)
Os poetas Raulino Silva e Rogério Meneses estavam diante de uma platéia de
amantes da cantoria. Seus corações e mentes estavam afinados com os sentimentos daqueles
120
Sextilha gravada pela autora em 29/05/2008 em apresentação no Teatro Emiliano Queiroz/ SESC.
Fortaleza/CE.
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que se encontravam ali no Teatro Emiliano Queiroz para ouvir suas vozes transformar
palavras em poesia no calor do momento. Para sentirem a mensagem e vê-la transformar
sonho em imagem, compartilharem o prazer daquele encontro e continuarem juntos na mesma
caminhada os esforços permanentes para viver e dar vida à cantoria.
Assim essa poesia que é voz e palavra vai sendo construída e vivida por
cantadores e ouvintes. Cantadores e ouvintes que são as duas faces de uma arte que é coletiva
na medida em que agrega diferentes vozes para traduzir em um mesmo discurso os anseios, os
sonhos e desejos dessa coletividade.
O cantador utiliza uma linguagem que se faz compreendida e apreendida por seu
público e isto é um elemento importante de motivação, como afirma o ouvinte e promovedor
de cantoria Tarcísio Barros: “Você sabe que eles falam com conhecimento e falam uma língua
pra toda... classe. (...) Então a qualidade do que é feito na cantoria, o que eles cantam eu acho
que é o que mantém o público”. 121
A qualidade da poesia e a linguagem utilizada dão primazia a esta arte. O ouvinte
percebe que o cantador se empenha em oferecer o que de melhor ele pode criar e, em troca,
tornar-se um amante fiel, atento e empolgado. Sua empolgação alimenta a criatividade do
poeta e, assim, essa poesia vai sendo sempre recriada, primando pela qualidade que é reflexo
do próprio público. Para muitos cantadores, quem faz a qualidade da cantoria é o ouvinte.
Para o cantador Antônio Fernandes “a qualidade da cantoria depende muito do
público. Quem faz a qualidade da cantoria é o público. (...) Se faz a qualidade na cantoria
conforme o público”.122 Portanto, podemos considerar que com o público está a chave da
criatividade que anima o cantador a criar poesia que encante e emocione. Que diga algo
significativo a quem a ouve, pois essa poesia é um reflexo da interação do cantador com seu
público.
Complementando esse pensamento, o cantador Pedro Bandeira considera que:
O público é quem faz o cantador cantar mal ou bem. (...) Então, quem faz o
cantador cantar bem é o público especial, o público poético e poetisado e
poeta. O público que já aplaude, que escuta, que sente, que se emociona, que
121
122
Entrevista realizada pela autora em 01/03/2007 em Fortaleza/CE.
Entrevista realizada pela autora em 07/10/2006 em Limoeiro do Norte/CE.
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chora, que grita, que ri, que aplaude o cantador. Então, o público é tudo por
isso.123
Como um turbilhão de emoções, assim o público funciona para acionar a
capacidade criativa e poética do cantador. É uma troca que se realiza plenamente quando há o
encontro da palavra cantada, ritmada, direcionada ao ouvinte com sua recepção calorosa. O
que é dito, e como é dito, influi sobremaneira tanto na criação como na recepção da poesia. É
durante a performance, portanto, que ela assume seu caráter existencial e concretiza-se de
maneira única na memória dos seus protagonistas.
Dessa forma, o cantador se realiza diante do seu público. Suas palavras vão sendo
proferidas, cantadas e elas saem “prenhes” de significados que fazem com que o ouvinte se
emocione, que chore, que grite, que ria, que aplauda. E essas palavras têm força porque
nomeiam o que dizem, codificam sentimentos no breve fazer do repente e assumem uma
autoridade, pois regem-se segundo regras e normas estabelecidas por uma tradição seguida
por diferentes gerações de ouvintes e cantadores.
Para o repentista Sebastião da Silva a mensagem transmitida pelo cantador é
fundamental para a manutenção dessa arte, ela é a principal responsável por cativar o público:
Ouvir dois cantadores bons (Pausa curta) é muito gostoso. Gente que saiba
cantar, né? (...) o cantador de dom acentuado, que é aplicado, que é criativo,
que é inovador, que é... é um mensageiro é muito bom se ouvir. E é uma
coisa sempre nova. (...) o bom cantador ele tem mensagem boa toda noite se
for ouvir. Toda noite você... toda hora que você for ouvir ele tem sempre
uma coisa nova, uma coisa diferente. Sempre tem! Então, essa novidade,
essa criatividade, essa coisa diferente é que faz sustentar o público fiel à
cantoria. Não é nem pra entender porque poesia não é pra se entender. Poesia
é pra se sentir. Poesia é como o amor, a gente não entende o amor, a gente
sente o amor, né?124
A mensagem na cantoria é sempre imbuída de uma novidade que diz respeito a
cada nova performance, e não importa se ela é vivida pelo mesmo cantador ou por outro. Não
importa se ele cantará o mesmo tema, assunto ou mote, a mensagem que será traduzida em
poesia é sempre outra, carregada do espírito que anima aquele momento. E essa mensagem,
como sugere Sebastião, é para ser sentida, muito mais do que entendida.
123
124
Entrevista realizada pela autora em 11/11/2006 em Juazeiro do Norte/CE.
Entrevista realizada pela autora em 30/06/2007 em Fortaleza/CE.
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Na poesia oral
as palavras escorrem, carregadas de intenções, de odores, elas cheiram ao
homem e à terra (ou aquilo com que o homem os representa). A poesia não
mais se liga às categorias do fazer, mas às do processo: o objeto a ser
fabricado não basta mais, trata-se de suscitar um sujeito outro, externo,
observando e julgando aquele que age aqui e agora. 125
O cantador Valdir Teles, por exemplo, sugere em um improviso que o público é a
fonte de inspiração que o acompanha até o próximo encontro. E a lembrança da satisfação
vivida em sua presença simboliza um presente de amigo.
Vou levar vocês no meu coração
Vou descer do palco, falar com o povo
Sem saber o dia que volto de novo
Pra tocar viola e pra cantar baião
Mas no céu da mente, da inspiração
Eu levo esse povo que é exemplar
Vou voltar sorrindo para o meu lugar
Mas vou levar Patos sorrindo comigo
Vocês deram a mim um presente de amigo
Nos dez de galope na beira do mar126
Valdir acentua, ainda, que o povo que leva em seu coração, é exemplar, portanto,
faz referência a um público que sente a mensagem, que apreende seus significados,
envolvendo-se inteiramente na performance vivida. Os desdobramentos dessa poesia
ressoarão nesses ouvintes durante longo período, fixando no corpo/memória um repertório
que acionará a satisfação desse encontro toda vez que o ouvinte reproduzir quer seja uma
estrofe, quer seja um verso ou uma palavra desse improviso feito em sua presença.
Em conversas com diferentes ouvintes testemunhei exemplos do que acabo de
afirmar. Muitos amantes dessa arte desenvolvem uma capacidade invejável de decorar os
versos, o verbo aqui utilizado em sua acepção etimológica: aprender de cor, ou seja, de
coração. Fazem questão de declamá-los, mesmo depois de ter passado muito tempo. E, em
declamando-os, deixam transparecer grande emoção, como revivessem o instante da
125
ZUMTHOR, P. Op. Cit., p. 157.
Improviso feito no gênero Galope à beira-mar e retirado do DVD do XXXV FESTIVAL
TRADICIONAL DE REPENTISTAS DE CAJAZEIRAS – 12/08/2006.
126
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declamação com toda a energia e satisfação experimentadas na presença do cantador. Eles
reinventam, numa performance própria, os momentos mais significativos, perpetuando, assim,
um saber contínuo que alcança as demais gerações. Benjamin acrescenta que “para o ouvinte
imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução.” 127
E, certamente, essa possibilidade da reprodução, não só por meios mecânicos e
eletrônicos, hoje tão abundantes, mas, sobretudo, pela memória desses ouvintes, faz com que
essa arte se perpetue no seu próprio fazer, pois recriar o vivido é emprestar-lhe algo de seu. E
toda vez que um ouvinte reproduz uma estrofe, um verso de uma cantoria, apropria-se dessa
poesia e ambos passam a fazer parte um do outro, garantindo a continuidade de uma história,
renovada exatamente em e por essa criação que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva.
Viola: a outra face do cantador
Nesta obra coletiva nada é mais instigante, na performance do cantador, do que
sua companheira inseparável: a viola. Relação que na maioria das vezes passa despercebida
pelos próprios poetas. Esse instrumento está tão presente em suas vidas que dificilmente é
lembrado como essencial, embora quando indagados de sua importância sejam inúmeras as
declarações de amor. Como esta feita por Sebastião Dias: “A viola é minha cara metade.
(Risos) É. A viola é muito importante. A viola é a outra, né... é a outra minha face porque sem
ela eu não cantaria, né? Então, eu tenho a viola como um... uma riqueza e minha companheira
de estrada porque tudo roda em torno dela”.128
A viola simboliza uma extensão do próprio cantador, internalizada como parte de
seu corpo. Ela é a cara metade, uma espécie de outra face que, mesmo estando sempre à
mostra, parece oculta no conjunto da obra poética que supõe a majestade da palavra, da voz
sobre a melodia, que acompanha as toadas em cada gênero improvisado.
Há uma espécie de ritual, um pacto com a viola que acompanha o
desenvolvimento dos violeiros repentistas. Em geral, eles consideram pobre a musicalidade
que acompanha a cantoria, quase insignificante, como declarou Zé Cardoso:
127
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7ª. ed. Trad.: Sergio Paulo Rounaet. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 210.
128
Entrevista realizada pela autora em 26/04/2007 em Fortaleza/CE.
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(...) precária porque ela não... porque vem desde da criação da cantoria que
vem aquela mesma música. Os cantadores mudam de toada, aquele negócio,
mas a música é uma mesma, o baião da viola é o mesmo . Não tem essa
melodia, não tem essa coisa... o que tem o que prende o público da cantoria é
a criatividade do cantador. Se ele não tiver cantando... se tiver cantando e
não tiver criatividade ele não prende o público. 129
Mas ao falar do instrumento que produz essa musicalidade expressa a força que
essa arma possui para seu desempenho:
A viola é uma arma. É como você ir pra guerra desarmado, você não tem
como enfrentar porque na hora que o cantador toca na viola ele já sente o
sangue correr nas veias, né? (Riso) É interessante que bom... às vezes você
está até cochilando num canto, na hora que chama para cantar você pega na
viola, toca na viola você já sente o corpo parece que passa para o sangue
aquilo ali. Você se sente armado pra... pra ir pra luta. A viola é tudo, é tanto
que se o cantador for cantar sem viola ele não consegue cantar como ele
canta com a viola.130
A viola funciona como um motor, um meio utilizado pelo cantador que,
consciente ou inconscientemente, ativa seu corpo, avisa ao seu cérebro que a peleja vai
começar, que é hora de empunhar seu instrumento e deixar vir à tona centenas de palavras
nascidas no curto espaço da melodia que precisam ser rimadas, metrificadas, ser poéticas.
Precisam ainda acertar em cheio o coração da platéia, cativá-la, torná-la prisioneira do seu
encantamento. Por isso a viola é tudo!
É interessante observar que para a maioria dos cantadores é aceitável que a viola
seja imprescindível na hora da performance. Entretanto sua musicalidade é considerada como
algo em segundo plano para a cantoria. O cantador Moacir Laurentino, neste sentido, faz uma
declaração importante ao considerar que a “cantoria é pobre de música”:
A cantoria é pobre porque é... é... seria uma fortuna muito grande Deus
entregar um dom de tanta facilidade, tanta grandeza no improviso. Tem lá
quem saiba quantos versos grandes sai numa cantoria. Não há quem saiba! E
129
130
Entrevista realizada pela autora em 07/10/2006 em Limoeiro do Norte/CE.
Idem.
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Deus entregar o dom de músico a ele, um grande músico. Assim Ele ia
entregar tudo a ele.131
Percebe-se a partir da narração de Moacir que seria algo muito grandioso se o
cantador, além de possuir o dom de ser poeta e dominar toda a técnica que envolve a criação
do repente, ainda tivesse a habilidade e virtuosismo como músico. Por outro lado, podemos
ainda pensar que para uma arte na qual a voz e a palavra precisam ser ouvidas naquele
momento único para que a poesia alcance devidamente o espírito do outro, a complexidade da
música poderia dificultar, de alguma maneira, sua perfeita recepção pelo ouvinte, o que ocorre
em muitas outras linguagens que utilizam a palavra. No caso da cantoria, para que a palavra
esteja em primeiro plano, é necessário que a melodia ceda lugar.
Na história da cantoria tivemos cantadores que utilizaram outros instrumentos,
especialmente a rabeca, o caso de Cego Aderaldo, mas a viola reina dominante entre os
cantadores. A maioria deles gosta de enfeitá-la com detalhes em metal e com partes brancas,
como vemos na foto:
Figura 1 –
Cantadores
Zé
Cardoso e
Geraldo
Amâncio
131
Entrevista realizada pela autora em 11/06/2008 em Fortaleza/CE.
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Geraldo Amâncio fala que ela era de doze cordas, hoje é sete, oito cordas, mudou
um pouco.132 Em décadas passadas, segundo relatam alguns cantadores, era comum amarrar
fitas coloridas que simbolizavam as vitórias obtidas ao longo da carreira.
O amor ao instrumento, no entanto, é unânime:
A viola é o tudo do cantador. O cantador quando... pode tá sem inspiração,
quando pega na viola chega tudo pra ele. É a arma principal. É a coisa mais
sublime pra o cantador se chama a viola. (Antônio Fernandes, 07/10/2006)
É o símbolo maior do cantador é a viola. Muitas vezes o cantador nem afina
a viola bem, nem toca viola, nem toca baião gostoso e sonoroso e... e
repenicado. Eu, por exemplo, sou um cantador que toco pouco a viola, não
caminhei não me esmerei por isso, devia ter me esmerado porque é bonito
cantar a viola, é bonito tocar a viola, é bonito cantar canção, é bonito cantar
poema bem acompanhado, mas eu não... Eu toco apenas o baião de cantador
e faço minhas cantorias. (Pedro Bandeira, 11/11/2006)
A viola é a ferramenta do cantador, Simone. A viola é a verdadeira
inspiração pra o cantador. É realmente a cruz que o cantador abraça e
carrega sem se maldizer e sem cansar. É o caminho, é a bússola do repente,
da inspiração, do mundo da cantoria é a viola. (Zé Viola, 03/03/2007)
Uma coisa interessante, Simone, a viola parece que não é só aquele baião
que ela toca, não é só aquele som em cima da voz. Parece que não é só a...
a... a... aquele cartão postal do povo. Eu acredito até que aquele apoio. Se a
gente for cantar sem a viola... olhe, a coisa fica sem jeito, como um pote sem
água, uma carne sem caldo. Interessante, né? (...) A viola significa muito,
ela... além de dar aquele pouco de som, é mais uma presença ao povo e até
aquele apoio e parece que a gente, parece não, pelo costume você quando
pega na viola parece como pegou uma arma, não sabe? Sem ela é mesmo
que ser um guerreiro desarmado. É uma coisa muito bonita. (Louro Branco,
20/04/2007)
Tudo. O cantador sem viola é como a vaca sem chocalho, você vê que tá
faltando uma coisa. Cantador não tem inspiração nenhuma cantando sem a
viola. É a arma de tudo é a viola. É a companheira eterna. (João Paraibano,
26/04/2007)
A viola significa a ferramenta de tra... trabalho e... e psico... logicamente a
gente põe nela um corpo físico de carne, imaginário. A gente chama ela de
irmã, de amiga, de compa... panheira e de minha esposa e tal, de minha
arma. Chama ela de tudo. Então, ela é como o tudo na profissão. Você ama
a... a viola. Você... cria versos pra ela. (Zilmar do Horizonte, 11/06/2008)
132
Entrevista realizada pela autora em 08/02/2006 em Fortaleza/CE.
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Ah! A viola é a companheira dileta, né? É a sofredora, a amiga. A musa que
inspira, que ajuda, que vai. É... a viola é... é assim como que seja o pulmão
pra poder o ar entrar e sair e a gente respirar, né? Então, a viola... ela tem a
sua... a sua grande colaboração, a sua grande parcela de colaboração com a
arte da cantoria. (Sebastião da Silva, 30/06/2007)
A viola tem algo de sublime, fonte de inspiração. Detém algo misterioso que não
é só aquele som em cima da voz, é um apoio, é a arma do guerreiro, é a bússola que orienta o
cantador na sua criação poética. Anima o corpo e a mente em um entusiasmo fecundo que
convida o público a fazer parte da performance. É a ferramenta com a qual o poeta constrói
cada verso, cada rima, cada métrica como um artesão da palavra.
Ela mereceu muitas homenagens, sempre há versos improvisados que enaltecem
sua importância, como esse “mote em sete” feito por Zilmar do Horizonte, durante nossa
entrevista: 133
Meu pai não quis aceitar
Foi feita numa oficina
Quando eu saí da escola
De fabricar instrumento
E comprei uma viola
Não esqueço um momento
Pra começar a cantar
Da viola nordestina
Mas papai vai escutar
Esse baião me domina
Cantoria a noite inteira
Tira o sono e a canseira
Diz no meio da brincadeira
E de levar sol e poeira
Meu filho é cantor sabido
O corpo vive encardido
Essa viola tem sido
Essa viola tem sido
Minha fiel companheira
Minha fiel companheira
Cantador, viola e público fazem parte de um mesmo e único instante. Estão
intrinsecamente unidos, compondo uma melodiosa poesia cantada que encontra em vozes e
sons, provavelmente ancestrais, a força de sua permanência. Elba Braga Ramalho lembra que
“a imbricação entre música e poesia representa a memória viva do canto recitado, encontrado
em todas as culturas, numa fase em que o idioma falado ainda não tirara do homem a
possibilidade de sentir e viver cotidianamente essa arte elementar”.134
133
Entrevista realizada pela autora em 11/06/2008 em Fortaleza/CE.
RAMALHO, Elba Braga. Cantoria Nordestina: música e palavra. São Paulo: Terceira Margem,
2000, p. 76.
134
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A viola do cantador produz um som que o identifica com o público. Há uma
melodia específica que lhe toca e faz dele um amante do todo, e não apenas de uma parte que
seria as palavras improvisadas. Embora o improviso seja a força de atração tanto de
cantadores quanto de ouvintes, como percebi em vários depoimentos, de maneira nenhuma ele
prescinde da toada. O ouvinte gosta das toadas sonorizadas pela viola e incomoda-se quando a
cantoria vem acompanhada por outros instrumentos, como no caso de algumas gravações
feitas pelos cantadores. Como exemplificou Louro Branco:
(...) Já aconteceu de uma pessoa me comprar uma fita, Simone, e ser
acompanhada com órgão, sanfona. Aí ele chega, ô Louro, não tem uma
tocando viola, não? Quer dizer, a viola tocada mais simples com poucos
sons, faltando acompanhamentos, mas ele acha o som da viola mais
bonitinho. (...) Porque é aquilo que eu falei, o povo da viola quer a viola, o
povo do cantador quer o cantador. Interessante, né! É aquilo que eu falei: é
um povo pouco, um público pequeno, mas fiel. 135
Não importa se a viola é tocada de forma mais simples, para o público, assim
como para o repentista, ela e o som que dela ecoa são indissociáveis da cantoria. De fato,
como esclarece Zumthor ao falar da performance cantada, “o instrumento de cordas, o mais
abstrato de todos, encontra-se assim privilegiado: lugar de concentração de uma carga
simbólica; meio de reinserção da vocalidade humana entre os ritmos universais que a
dominam”. 136
No envolvimento de corpos e instrumentos, com a voz ao ritmo da música, a
performance do cantador se realiza. O público capta seus gestos, atribui-lhes sentidos,
envolve-se na magia que emana da palavra cantada, ritmada; prende-se ao ritual, ao mesmo
tempo que se emociona com a beleza ali traduzida. A palavra e a música, assim carregadas de
memória, unem-se à melodia, dando ao público uma sensação de estar participando de um
encontro onde todos se reconhecem.
Em sua performance, o cantador cola a viola ao peito como que para ouvir as
batidas do coração. A mente põe em ação um turbilhão de informações que precisam
acompanhar o ritmo da música inscrita no corpo, que precisa criar, no menor tempo possível,
o improviso oportuno capaz de traduzir em poética as questões e as vidas ali compartilhadas.
135
136
Entrevista realizada pela autora em 20/04/2007 em Fortaleza.
ZUMTHOR, P. Op. Cit., p. 235.
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Percebo que a viola é um suporte do corpo, da memória. O som por ela criado
anima a mente e a voz do cantador, que, pela força do grito, faz nascer o improviso prenhe
dessa musicalidade. A viola estará sempre presente, companheira inseparável, porque também
ela é razão de ser dessa criação. A música inscrita no corpo ativa uma série de informações
que juntamente com o ritmo dão vida ao repente, que sairá metrificado, rimado, pois tem
como suporte o movimento do corpo articulado ao do instrumento.
Os movimentos das mãos e dos braços que sustentam o ritmo da viola são partes
do corpo e se imbricam a palavra improvisada, cantada. A agilidade dos dedos já está
culturalmente presente no corpo e na mente do cantador, não sendo mais percebida. Juntos
dão forma, cor e vida ao improviso. Viola e cantador tornam-se um só corpo.
Podemos pensar na viola como uma extensão das mãos, um suporte do corpo e da
memória dos cantadores. Memória que se transmite e se renova através de suas vozes que ao
buscarem o som da viola, reproduzem as mesmas melodias dos antepassados aglutinando,
assim, passado e presente no momento da performance, a qual pude perceber como ritual. Um
ritual que se dá em dupla quando cada cantador pega sua viola e cola ao peito, impondo antes
uma postura que a melodia. Essa virá, depois, carregada de mistérios, sons ancestrais que
dizem respeito a uma arte que pulsa nos corações da viola, do cantador e do público. Quando
começa o improviso, as mãos apenas tocam no instrumento, a melodia ouvida vem da viola do
companheiro que está ao lado, compondo a melodia que ajudará a voz, de maneiras diversas,
a romper o silêncio, trazendo à tona o repente perfeitamente metrificado, rimado, poético.
Fica a impressão de que o cantador nesse momento não tem consciência da
música que a viola do companheiro produz, envolvido que está na sua criação, momento em
que seu corpo é todo mente, trabalhando de forma frenética e urgente para, na rapidez do
pensamento, unir beleza e técnica, voz e palavra numa só poesia.
Suponho, então, diante das declarações de cantadores e ouvintes que possuir o
dom, a habilidade de improvisar já é uma tarefa para eles demasiado grandiosa e que seria
muito complicado ter habilidade mental para o improviso, métrica e rima da poesia e ainda
preocupar-se com a melodia e com o ritmo da música. Isso, de forma nenhuma impede que o
ritmo, a melodia, as toadas estejam presentes em cada gênero - embora ignorados por muitos.
É o ritmo da música embutida no corpo/memória que faz o improviso vir à tona.
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Talvez por isso o cantador traga em sua fala o paradoxo da musicalidade na
cantoria. A música é vista como algo inferior, aparece pobre de melodia, mas o instrumento
que lhe dá musicalidade é enaltecido com paixão, com alegria. Sem dúvida a viola é a arma
para esses guerreiros e encontra-se sempre colada ao peito. Eles sentem que sem ela não há
como ganhar a peleja, mas não sabem explicar de onde vem essa força.
Bibliografia
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São Paulo: Brasiliense, 1994.
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Cátedra; Brasília: INL, 1976.
______. Violeiros do Norte: poesia e linguagem do sertão nordestino. 4ª ed. Rio de Janeiro:
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ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A “literatura medieval”. Trad.: Amálio Pinheiro e Jerusa
Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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______. Tradição e Esquecimento. Trad.: Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo:
HUCITEC, 1997.
______. Performance, Recepção, Leitura. Trad.: Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São
Paulo: EDUC, 2000.
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POLIPOESIA E RECUPERAÇÃO DA PERFORMANCE DA VOZ
Vinícius Silva de Lima137 (PG-UEL)
No Manifesto da Polipoesia, publicado em 1987, em Valência, Enzo Minarelli
defende a idéia de uma poesia gerada pela fusão de diversos meios técnicos diferentes. Esta
nova poesia tem por objetivo proporcionar aos ouvintes uma experiência única em níveis
sensoriais. Seja através dos sons vocais, música, ruídos, mímica, performance, artes visuais
(pintura, vídeo) entre outros elementos. Dentre todos este itens, um recebe atenção especial
por Minarelli: a performance. No último tópico que constitui o Manifesto, é colocado que:
A polipoesia é concebida e realizada para o espetáculo ao vivo, entrega-se à
poesia sonora como prima dona ou ponto de partida para relacionar-se com a musicalidade
(acompanhamento, linha rítmica), a mímica, o gesto, a dança (interpretação, ampliação,
integração do poema sonoro), a imagem (de TV, diapositiva, enquanto associação, explicação,
redundância, alternativa), a luz, o espaço, os costumes, os objetos (MINARELLI, 2005,
p.210).
A Polipoesia nasce, portanto, para ser executada diante do público, “precisa dele,
exige-o – e nisso é dialógica e pretende um público ativo, aberto, interativo” (MINARELLI,
2005, p. 211).
Verificando estas características de valorização da presença do poeta diante de seu
ouvinte, podemos dizer que a Polipoesia tem por mérito a recuperação da performance da voz,
e como conseqüência, a redescoberta de uma oralidade que há muito havia se perdido das
práticas poéticas, em decorrência da sedimentação da cultura escrita nos países ocidentais.
O Manifesto da polipoesia aparece pela primeira vez no catálogo Tramesa d`Art,
em Valência, no ano de 1987, porém, as idéias básicas já se faziam evidentes no ensaio
Polipoesia, da leitura a performance da Poesia Sonora, redigido por Minarelli e publicado na
revista italiana Visoni, Violazioni, Vivisezioni em 1983. Tendo como influências as
vanguardas históricas européias, o projeto da Polipoesia amplifica o que já havia sido
trabalhado pela Poesia Concreta, Futurismo (italiano e russo) e Dadaísmo, sem deixar de ser
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fiel as propostas destas poéticas experimentais. Desta forma, ela abre novas possibilidades
para a arte puramente literária e escrita.
Muitos são os poetas, ao redor do mundo, que praticam a Polipoesia e cujo
dispositivo teórico vem sendo discutido, ao longo dos anos, por críticos como Paul Zumthor,
Renato Barilli, Clemente Padin e pelo próprio Enzo Minarelli. Cada polipoeta desenvolve seu
estilo, ou marca pessoal, ao interpretar a poesia através dos filtros vocais, teatrais,
audiovisuais, musicais ou tecnológicos. Deste modo, as possibilidades de difusão e encontro
com o espectador de poesia são múltiplas. Dentre estes poetas, alguns se destacam pelo
trabalho que desempenham no campo da polipoesia, no contexto mundial, são eles: Américo
Rodrigues, Serge Pey, Jaap Blonk, Xavier Sabater, Xavier Canals, Tracy Splinter, Bartomeu
Ferrando, Lydia Lunch, Rafael Metlikovec, Clemente Padin, e Enzo Minarelli.
Como constatou Philadelpho Menezes, na introdução do livro Poesia Sonora:
Poéticas Experimentais da Voz no Século XX, a busca pela “poesia total” surge como uma
opção para o esgotamento da Poesia Sonora e do caráter revolucionário das vanguardas.
A fusão tecnológica das formas expressivas, o produto estético dirigido
exclusivamente a sensorialidade redentora e apaziguadora, o poema como efeito óptico ou
acústico nas atuais poéticas visuais e sonoras, que extravasa seus limites para uma arte do
corpo e do espaço, são respostas para essa nova situação em que experimentar, nesse âmbito é
a norma e a expectativa e não mais o desvio e o estranhamento (MENEZES, 1992, p.15).
Ainda no sexto e último tópico do Manifesto da Polipoesia, Minarelli elege como
ponto de partida, ou “prima dona” desta interação entre as diversas manifestações artísticas, a
Poesia Sonora.
1- A voz experimental
As experimentações com a linguagem e com o aparelho fonador, e
conseqüentemente com a voz, sempre foram preocupações dos homens ao longo dos tempos.
O ritmo e musicalidade são elementos que acompanham a poesia desde sua raiz.
O uso de onomatopéias, repetições, jogos de palavras e experimentos com fonemas não são
tão recentes assim na arte literária.
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A mais antiga manifestação deste tipo encontra-se nos Annales (ca. 201 – 168
A.C), fragmento 109, Quintus Ennius (239 – 168 A.C), publicado em Remains of Old Latin
(1967), de Warmington: “O Tite, tute, tati, tibi tanta tyranne tulisti!”
O mais importante neste verso não é o significado, mas sim a sonoridade
empregada pelo autor. Em uma espécie de “brincadeira”, trocam-se as vogais e são mantidas
fixas as consoantes. Este uso semelhante do som na construção do poema, de forma a causar
estranhamento no leitor, pode ser encontrado também em As Rãs, de Aristófanes (século IV
A.C): “Brekk Kekk Koax Koax”.
Mais recente temos as experiências com a “palavra-valise”, desenvolvidas por
Lewis Carrol, os experimentos lingüísticos de Joyce, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa,
César Vallejo e o retorno ao coloquialismo, dos poetas norte-americanos da chamada beat
generation.
Dentre estas manifestações experimentais modernas, a poesia sonora é a primeira
que se aproxima de um projeto de busca de uma poética apoiada no suporte da voz. Esta
modalidade de poesia é fruto de uma evolução das vanguardas poéticas do início do século
XX. As experiências desenvolvidas pelos futuristas italianos, cubo futuristas russos e
dadaístas foram de vital importância para o surgimento da poesia sonora.
No caso dos futuristas italianos, temos como principal articulador e agitador do
movimento, o poeta Marinetti, que em 1916 lança A Declamação Dinâmica e Sinótica,
Manifesto Futurista, que tinha como principal proposta, “desbloquear o corpo do poeta até
então paralisado, torná-lo vivo, móvel, contrariando a imobilidade das pernas do declamador
passadista” (MINARELLI, 2005, p. 178). Segundo Enzo Minarelli, encontramos também
neste manifesto uma preocupação com o caráter multimídia da obra poética futurista, o que a
aproximaria da polipoesia.
Igualmente evidente é o tratamento multimidial dado, ao introduzir uma série de
objetos a serviço do som (martelos, tabuinhas de madeira, buzinas de carros, bombos,
tamboretes, serras, campainhas elétricas) e, sobretudo, ao deslocar pela sala duas ou três
lousas, onde o declamador “devia desenhar rapidamente teoremas, equações e tábua sinóticas
de valores líricos”. Portanto, a própria imagem sob a forma de escritura, de desenho, de
fórmula matemática como suporte da mensagem, e mais não podia haver naquele longínquo
começo de século (MINARELLI, 2005, p. 179).
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No Dadaísmo temos a presença das recitações nonsense e encantatórias de Hugo
Ball no Cabaret Voltaire, de Zurique em 1916, e a experiência óptico-fonética de Raoul
Hausmann. É visível neste período o desejo de destruição da significação através do humor e
ironia. Os futuristas russos contribuem com a Poesia Zaum, denominação do setor mais
radical do futurismo russo, que “recupera a linguagem dos loucos e dos folclores dialetais,
procurando fixar a partir daí sua transracionalidade” (MENEZES, 1992, p. 13). Já o projeto
dadaísta se baseia na linguagem das crianças e busca uma comunicação em nível prégramatical .
Em 1950, com a modernização dos estúdios sonoros, ocorre uma revolução nas
poéticas de vanguarda. Os poetas, denominados então sonoros, ligam-se aos músicos
eletroacústicos, criando um movimento iconoclasta: A Poesia Sonora, que tem como principal
mentor o francês Henri Chopin. De acordo com Paul Zumthor:
A Poesia Sonora está hereditariamente marcada por dois desejos aparentemente
contraditórios, mas de fato complementares, que lhe deram origem: o desejo do retorno ao
oral, no âmbito dos poetas; o desejo de retorno ao falado, no âmbito dos músicos
(ZUMTHOR, 1992, p. 139).
No entanto, a euforia criada ao redor da tecnologia dos estúdios não foi suficiente
para evitar o esgotamento e fim da Poesia Sonora dos anos 50. Para Philadelpho Menezes:
Restou a impressão de que todo avanço técnico que se conquistava
aceleradamente apenas facilitava a produção dos mesmos efeitos sonoros de
sempre e já rotinizados. Restou a idéia de uma poética vocal definitivamente
colocada em contato com invenções tecnológicas, mas também a constatação
de que a confecção de efeitos técnico-sensoriais fora de uma organização
compositiva que lhes dê função se esgota no próprio nascedouro
(MENEZES, 1992, p. 14).
Hoje em dia, assisti-se, portanto, a uma revisão do uso destes aparatos
tecnológicos na elaboração desta poética, pois apesar de potencializar os efeitos sonoros e
ampliar os horizontes da voz, a poesia sonora “deve se subordinar a um projeto poemático que
escape dos meros efeitos eletroacústicos, reponha em jogo o corpo da voz em suas
possibilidades expressivas e tenha em vista a complexidade semântica da comunicação
poética” (PENA, 2005, p. 04).
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Nos dias atuais, o termo poesia sonora é usado para designar toda manifestação
poética experimental baseada nas possibilidades expressivas da voz humana. Desta forma, é
dada primazia à voz e às características rítmicas, fônicas e plásticas dos sons emitidos pela
boca do poeta ou performer.
2- Polipoesia: a voz em performance
Partindo do conceito de que performance é “antes de tudo uma expressão cênica”
(COHEN, 1989, p.28), podemos entender a performance como um teatro, uma encenação que
incorpora diversas manifestações artísticas em um único projeto de arte integrada, uma arte
total. É o que propõe Enzo Minarelli com seu Manifesto da Polipoesia, que defende uma arte
multimídia, com a incorporação da tecnologia, amparada por um projeto maior que consiste
na valorização e recuperação da voz e suas potencialidades.
No artigo Poesia e Corpo em Tutu Performático, do livro Mediações
Performáticas Latino-Americanas, Alain Garcia Diniz propõe que o corpo seja visto como um
suporte simbólico e que a combinação deste corpo com uma oralidade são suportes
alternativos para a prática da poesia e da literatura. Desta forma, a poesia sonora “constitui
uma busca de revalorização da cultura oral, no momento em que a literatura ‘aprisionou’ as
manifestações poéticas nas formas escritas” (TOSIN, 2004, p.03). A performance seria,
portanto, responsável por uma dilatação do espaço literário através do corpo e da voz. Voz
esta que se localiza entre o corpo e o discurso.
A relação do homem com a voz é iniciada ainda na infância pré-fala, quando o
bebê tem os primeiros contatos com os sons emitidos pela mãe. Por uma perspectiva
psicanalítica, é nesta fase que ocorre a formação psicológica da criança a partir de um
“espelho sonoro” que reflete a voz materna e possibilita que a criança tenha suas primeiras
experiências emocionais.
Segundo Didier Anzieu, no livro O eu-pele:
Antes que o olhar e o sorriso da mãe que amamenta transmitam à criança
uma imagem de si que lhe seja visualmente perceptível e que ela interioriza
para reforçar seu self (soi) e esboçar seu eu, o banho melódico (a voz da
mãe, suas canções, a música que ela faz escutar) coloca à sua disposição um
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primeiro espelho sonoro que ela usa inicialmente através de seus gritos (que
a voz maternal apazigua em resposta) e finalmente através de seus jogos de
articulação fonemática (apud EL HAOULI 2002, p.66).
É este desejo de retorno ao primitivo, muito característico na arte moderna, e a
idéia de que a “fala emerge de um contínuo vasto de vibrações sonoras que inclui todas as
formas do choro, do sufoco, do riso e do grito” (PORTELA, 2003, p. 246), que motivam os
poetas sonoros a produzirem suas peças poéticas experimentais apoiadas numa revalorização
do aparelho fonador humano. Nesta recuperação do instrumental da boca, realizada por estes
poetas, Enzo Minarelli afirma que:
O instrumento príncipe é a boca, com todos seus atributos anatômicos,
sendo, portanto evidente o fato que seu fluxo seja vocoral. Desse ponto de
vista, a velha intuição letrista – e antes dela dadaísta e futurista – confirmase como vencedora. A novidade consiste em não se colocarem limites para a
expansão do som (MINARELLI, 2005, p. 201).
Para Paul Zumthor, a performance “é uma realização poética plena: as palavras
nela são tomadas num conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão corrente (em princípio)
que, mesmo se distinguem mal palavras e frases, esse conjunto como tal faz sentido”.
(ZUMTHOR, 2005, p. 87).
A busca por uma “arte total” e multimídia sempre foi uma preocupação dos
músicos modernos, entre eles Luciano Bério, Giorgy Ligeti e Maurício Kagel. Mas antes
destes, Richard Wagner já havia trabalhado com o mesmo conceito na ópera Tristão e Isolda,
o que o coloca como um dos primeiros a desenvolverem uma arte performativa. Para Giusepe
Di Stefano:
Entre todas as óperas de Wagner, o Tristão é a que exerce a sugestão mais
intensa, logo advertida como uma ópera-limite, difícil de ser superada por
ter-se arrojado, como nenhuma antes dela, até o extremo confim do
exprimível, dando voz ao mundo noturno e ao inconsciente. No grande dueto
de amor do segundo ato, é representado em cena o dissolver-se da palavra
em puro som: as palavras perdem seus contornos semânticos afinando-se
cada vez mais até reduzirem-se a puros fonemas, a balbucio indistinto, a
gritos ininteligíveis (apud MINARELLI 2005, p. 187-188).
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3- Meios eletrônicos e performance
Com relação ao impacto dos meios eletrônicos sobre a performance da voz,
Zumthor compara estas mídias à escrita, pois excluem a presença de quem detêm a voz,
eliminam o “puro presente cronológico” (ZUMTHOR, 2000, p.17) da voz e tendem a apagar,
pelas diversas manipulações a que submetem o som, as características de uma voz em estado
vivo, tornando-a artificial e midiatizada. É fato que as mídias fixam a voz e imagem, mas por
outro lado, temos uma manifestação diferente da escrita, que exige uma participação auditiva
do receptor, através de uma escuta criativa e problematizada.
Um outro tratamento é dado pelos músicos contemporâneos com relação à
presença da voz acoplada aos meios eletrônicos. A partir da década de 60, vêm sendo
introduzidos no universo da música alguns elementos que contribuem na evolução da arte.
Entre estes procedimentos temos a inclusão de expressões vocais não lingüísticas como os
gritos, os sussurros, choro, riso, entre outros. É visível a contribuição que as vanguardas
poéticas, e em especial a Poesia Sonora de Henri Chopin, deram à arte musical.
No caso do projeto da Polipoesia desenvolvido por Enzo Minarelli, e outras
formas poéticas em estado de ação que se utilizam da intermídia para se comunicarem, a
presença do poeta é fundamental. Sobre este caráter multimídia, Fernando Aguiar, em seu
ensaio Poesia: ou a Intervenção Viva, afirma:
Numa perspectiva de complementaridade e de totalidade da percepção, e
visto que cada meio “traduz” a mensagem segundo características técnicas e
tecnológicas (M. McLuhan), o poema veiculado por um conjunto de meios
possibilitará uma visão diferenciada e diversificada de si mesmo, e poderá
ser mais facilmente apreendido em sua globalidade (AGUIAR, 1992, p. 145146).
Desta forma, a presença do poeta em cena funciona como um centro norteador de
toda performance. A presença do ouvinte também é essencial. Sem ele, a performance não
existiria. No entanto, segundo Zumthor, raramente o ouvinte não está presente. “Pense na
tirolesa, esse canto de pastor de que existem variantes em todos os países de montanhas altas.
Um pastor canta sozinho. Não tem um ouvinte ao seu lado. No entanto, na verdade, ele tem
um ouvinte: a própria montanha, cuja beleza o canto exalta” (ZUMTHOR, 2005, p. 92).
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Outro meio eletrônico que traz a oralidade de volta em um nível muito semelhante
ao da performance poética é o rádio. Sendo este um veículo que transmite a performance da
notícia em tempo real, ou seja, no momento em que o fato está acontecendo, incorpora tanto
características da oralidade, quanto da escrita. Como a maioria dos programas de rádio são
apresentados ao vivo, é bem provável que este tente reproduzir o formato da conversa
cotidiana, característica esta que o aproxima da performance. Para que um texto radiofônico
seja inteligível e eficiente, é necessário, portanto, que seja feito um bom uso da voz, do ritmo,
da expressão, modulação e inflexão, além da utilização dos efeitos sonoros, da música e do
silêncio.
Com base no grande poder de comunicação do rádio, esta acaba sendo uma mídia
extremamente importante, e se realmente fosse usada de forma criativa, talvez sua
potencialidade pudesse ser muito melhor aproveitada. É o que pensam os defensores da “rádio
arte”, praticada por pesquisadores e artistas que se dedicam à experimentação sonora e
radiofônica, no qual os conteúdos artísticos e as tecnologias empregadas na veiculação
radiofônica acabam sendo usados como matéria prima. Sendo assim, “a arte não é transmitida
num programa de rádio, pois o programa é a própria arte” (FIGUEIREDO, 2003, p. 01).
4- Poesia sonora e performance no brasil
A poesia brasileira é bastante conhecida internacionalmente, principalmente
através do movimento da Poesia Concreta dos anos 50. Sendo o concretismo ligado
preferencialmente à poesia visual, o projeto da poesia sonora ficou em segundo plano e se deu
tardiamente em nosso País.
Um dos primeiros estudos sobre poesia sonora no Brasil foi o de Philadelpho
Menezes, que em 1992 lança o livro Poesia Sonora: poéticas Experimentais da Voz. Esta
coletânea de textos e manifestos escritos por autores do mundo inteiro representa um
verdadeiro marco histórico nos estudos da poesia vocal experimental no Brasil.
Antes desta obra algumas tentativas de poesia sonora já haviam sido realizadas
por Caetano Veloso em seu disco Araçá Azul, de 1973, e por Walter Franco com a polêmica
música Cabeça, do álbum Ou Não, que bravamente foi indicada por Júlio Medaglia, Décio
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Pignatari e Rogério Duprat, integrantes do júri que foi destituído pela direção porque ousou
indicar o nome de Walter Franco como vencedor do Festival da Globo, em 1972.
No ano de 1993, Menezes funda o Laboratório de Linguagens Sonoras, na PUC
de São Paulo, e conta com a participação de poetas e alunos de pós-graduação, que se
preocupam em criar uma poesia sonora brasileira. Desta movimentação surgem dois CDs de
poesia sonora lançados por este laboratório. O primeiro, Poesia Sonora - do fonetismo às
poéticas contemporâneas da voz, de 1996, contém poemas produzidos pelo próprio grupo de
alunos e professores. O segundo CD, Poesia Sonora Hoje – Uma Antologia Internacional, de
1998, traz as gravações dos mais importantes poetas sonoros do mundo, com o objetivo de
apresentar e fixar a importância que tem esta prática de poética experimental na cena
internacional.
Em 1993, o poeta Arnaldo Antunes produz e lança um livro acompanhado de
vídeo e CD intitulado Nome. Esta obra é importante para o cenário poético brasileiro, pois é
um dos primeiros registros de poesia multimídia neste País. A Rádio Cultura de São Paulo,
em 1994, realiza uma série de quatro programas da série “Poesia Sonora”. Também em 94 é
lançada a fita K7 Sonemas, de Alex Hamburger, com poemas sonoros. O poeta é também, nos
anos 80, um dos grandes difundidores das performances experimentais no Brasil. Em 1997,
Élson Fróes lança o poema Sus, acompanhado por um sintetizador. Cláudio Daniel realiza no
mesmo ano os poemas Zunai e Kundra. Arnaldo Antunes publica, também em 97, o livro 02
ou + corpos no mesmo espaço, acompanhado por um CD, no qual faz leituras de seus
poemas, dando ênfase ao aspecto sonoro, aproximando-se da estética da poesia sonora.
O poeta Arnaldo Antunes, em particular, tem uma trajetória ímpar dentro da
história da poesia brasileira. Desenvolve trabalhos na área das artes visuais, instalações,
poesia concreta, visual e, principalmente da performance, o que permite que as apresentações
do poeta se desenvolvam em um nível polipoético.
Esta qualidade de simultaneidade de mídias e, portanto, de significados, é a
principal característica da poesia contemporânea e tem na figura do performer seu mais fiel
porta-voz.
Levando em conta o avanço tecnológico e a introdução da informática e da
internet nos dias atuais, Enzo Minarelli afirma que esta poética que tem na interação de meios
sua principal representação, ou seja, a Polipoesia, “apresenta-se no alvorecer do novo milênio
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como uma das possibilidades experimentais ainda passível de ser percorrida, sem correr o
risco de parecer superada se o diálogo com as mídias for levado na devida consideração”
(MINARELLI, 2005, p. 195).
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Disponível
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Sonora – Poéticas Experimentais da Voz no Século XX. São Paulo: EDUC, 1992. p. 09-18.
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Revista de Poesia e Cultura, Cotia, SP, n. 08-09, p. 178-215, set. 2005.
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Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=35529 . Acesso em 22
jun. 2006.
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(CD2003), de Américo Rodrigues. In: Inimigo rumor, Rio de Janeiro, n. 15, p. 246-251,
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O UMBIGO DE ADÃO: O OLHAR CRÍTICO DE MEDEIROS E ALBUQUERQUE
(1867-1934) EM CONFERÊNCIAS
Vitor Celso Salvador138 (PG-UNESP/Assis/CAPES)
José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque foi jornalista,
funcionário público, professor, político, contista, poeta, romancista, orador, ensaísta,
teatrólogo, memorialista, conferencista e crítico. Nasceu em Recife em 4 de setembro de 1867
e faleceu no Rio de Janeiro em 9 de junho de 1934.
Era filho do doutor José Joaquim de Campos Medeiros e Albuquerque.
Posteriormente ao fato de sua mãe ter lhe ensinado as primeiras letras, Medeiros estudou no
famoso Colégio Pedro II.
Participou da Academia Brasileira de Letras, fundando a cadeira de número 22,
cujo patrono é José Bonifácio, o Moço. Ocupou a Secretaria geral da Academia de 1899 a
1917 e a presidência em 1924. Em 1896 e 1897, compareceu frequentemente às sessões de
instalação dela.
Foi autor da primeira reforma ortográfica promovida, em 1907, na Academia e
também acabou respondendo ao escritor Graça Aranha, quando Aranha cortou relações com
ela. Desse modo, Medeiros e Albuquerque sempre mostrou interesse grande nos assuntos que
envolvem a Academia Brasileira de Letras, afinal de contas, foi o seu membro fundador.
Medeiros e Albuquerque, que no princípio da sua carreira literária estimava
Portugal, onde fez parte de sua educação, depois nem sempre tratou os portugueses do mesmo
jeito. A reforma ortográfica que em Portugal se fez no ano de 1911, sugeriu-lhe, em especial,
fortes críticas, contudo ele fosse adepto da simplificação ortográfica.
O seu radicalismo e a sua obstinação entraram em choque com o espírito
conciliador dos reformistas de 1911, só acalmando com o acordo ortográfico de 1931, que a
Constituinte anulou em 1934, restabelecendo a ortografia que vigorava em 1891.
Empenhou-se assiduamente nos usuais debates travados a respeito da
simplificação ortográfica. Medeiros era um grande defensor da idéia da simplificação, e sua
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última reportagem publicada exatamente no dia de seu falecimento na Gazeta de São Paulo,
tratou sobre esse tema específico.
Medeiros e Albuquerque foi autor do Hino da Proclamação da República e
também fez parte do grupo republicano. Quando a República estava prestes a ser proclamada,
viajou a São Paulo a trabalho juntamente a Campos Sales. Pelo fato da República ter vencido,
ele recebeu nomeação secretário do Ministro Aristides Lobo pelo até então ministro da época
Aristides Lobo. Ademais, foi nomeado vice-diretor do ginásio nacional por Benjamin
Constant, no ano de 1892.
De início, trabalhou como professor primário auxiliar, conhecendo diversos
poetas e escritores famosos da época, tais como: Pardal Mallet e Paula Ney. Desde 1890,
Medeiros e Albuquerque foi também educador da Escola de Belas Artes; além de ter
lecionado em escolas de segundo grau entre 1890 a 1897 e ter sido também presidente e vogal
do Conservatório Dramático entre 1890 a 1892.
Em 1894, foi eleito deputado federal por Pernambuco, visto que “como político,
que também foi, desenvolveu importante missão na Propaganda da República e foi deputado
federal e senador pelo seu estado natal” (CARPEAUX, 1964, p. 16). Ele também conseguiu a
votação para a lei referente aos direitos autorais.
Além disso, Medeiros e Albuquerque recebeu nomeação à direção geral da
Instrução Pública do Distrito Federal, em 1897. Como estava em oposição ao presidente
Prudente de Moraes, foi obrigado a pedir ajuda à embaixada chilena.
De forma que foi demitido de sua função, ousadamente, resolveu subir aos
tribunais para defender verbalmente seus direitos e, como consequência, foi reintegrado com
êxito.
Ademais, retornou à Câmara dos deputados, constituindo o grupo rival a Hermes
da Fonseca. Residiu em Paris de 1912 a 1916. Quando retornou ao território nacional,
defendeu a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), contribuindo para a
ruptura de ligações brasileiras com a polêmica Alemanha.
Medeiros e Albuquerque permaneceu aliado a Washington Luís, no episódio da
campanha da Aliança Geral. Devido ao fato da Revolução de 30 ter vencido, Medeiros e
Albuquerque teve de pedir auxílio à Embaixada peruana.
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Juntamente às atividades do funcionarismo público, Medeiros trabalhava também
como jornalista. Na época florianista, ele teve a direção d’O Fígaro. Foi nesse periódico que
teve oportunidade de denunciar a deposição que se planejava do governo Barbosa em seu
estado natal, Pernambuco.
Em 1888, Medeiros e Albuquerque trabalhou no Jornal Novidades, em companhia
de Alcindo Guanabara. Embora tivesse um entusiasmo inicial pela tendência decadentista, não
tomou parte na propaganda simbolista.
Dedicou-se às atividades de colaboração diária da Gazeta de São Paulo e de
diversos outros periódicos cariocas e aos seus variados atos na Academia, onde participava da
Comissão do Dicionário e exercia a redação da Revista, no período de 1930 até 1934.
No decorrer de sua vida, Medeiros escreveu livros de diversos gêneros de obras
que marcaram a história da literatura brasileira como, por exemplo, O regime presidencial do
Brasil (1914), A arte de conquistar as mulheres (1925), Hipnotismo (1921), Minha vida
(1934), Quando eu falava de amor (1933), Parlamentarismo e presidencialismo no Brasil
(1932), Se eu fosse Sherlock Holmes (1932), Contos escolhidos (1907), Mãe tapuia (1900),
Um homem prático (1898), O Remorso (1889), Segredo conjugal (1934), Pontos de vistas
(1913), O mistério (1921), Teatro meu e dos outros (1923), O escândalo (1910), Fim (1922),
Páginas de crítica (1920), Laura (1933), Graves e fúteis (1922), Por alheias terras (1931), O
umbigo de Adão (1932), O silêncio é de ouro (1912), Poemas sem versos (1924), Em voz alta
(1909), Marta (1920), Quando era vivo (1942), Poesias (1904), O assassinato do general
(1926) e Homens e coisas da Academia Brasileira (1934).
Medeiros e Albuquerque estreou na literatura em 1889 com dois livros de poesia
intitulados Pecados e Canções da decadência. Nesse mesmo ano, publicou O remorso (carta
em versos à princesa D.Isabel), revelando certo conhecimento da estética simbolista.
No volume Pecados, ele fez a “Proclamação Decadente”, que foi o texto precursor
do poema-manifesto “A Arte”, de Cruz e Souza. Apesar disso, percebe-se, em seu trabalho,
apenas uma certa influência simbolista da qual, posteriormente, acabou em parte se
desvinculando.
Contudo, Medeiros e Albuquerque ao escrever seus livros, de forma bastante
natural, deixava também transparecer suas sensações nos argumentos, diferentemente do
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método científico do seu professor particular, que apreciava muito mais o mundo das certezas
e não o mundo de hipóteses, como preferiam os impressionistas.
Desse modo, Medeiros, ao dar espaço à sensibilidade, não parecia ter como
objetivo principal apontar provas nas suas obras. Tudo isso porque ele parecia ter grande
afinidade com o método impressionista crítico, que passou a ser hegemônico no mundo
literário, pois as impressões começaram a ser elucidadas e argumentadas, não mais segundo
um método crítico tradicional (tendo Romero como exemplo típico), que apenas tinha o
intuito de criticar, parecendo não exigir sensibilidade dos críticos, além de revelar uma certa
distância entre estes e as obras.
Esse método teve uma permanente aspiração na vida nacional além de que, de
fato, foi uma configuração decisiva na linguagem crítica, em que também os elementos do
passado, da tradição, foram utilizados sob um enfoque mais sensível e contemporâneo, ao
passo que “a interpretação e o julgamento se completam na crítica literária” (MARTINS,
1983, p.37). Com isso, o impressionismo crítico desligava-se dos traços tradicionais de
análise literária, com influência da crítica impressionista francesa.
Os críticos impressionistas como, por exemplo, Medeiros e Albuquerque, José
Veríssimo e Nestor Vitor, utilizavam a linguagem como resultante de uma solicitação de
época, em que os escritores brasileiros, marginalizados pela evolução histórica e social,
registravam suas críticas nos trabalhos, mostrando suas opiniões, mas não deixando de se
sensibilizar com as matérias enfocadas, assumindo, consequentemente, “a posição ‘superior’
da ironia e do ceticismo” (BARBOSA, 1974, p.202).
Ademais, Medeiros e Albuquerque, sempre quando escrevia, revelava suas
convicções íntimas aos leitores, de forma a estabelecer e fortalecer os laços de intimidade com
eles. De fato, fazendo isso, ele mostrava saber que “a impressão pessoal é o alicerce do
trabalho crítico” (MARTINS, 1983, p.99).
Por ora, com sua peculiar sensibilidade, Medeiros revelou-se um conferencista de
renome, visto que sabia como ninguém manipular as emoções da platéia por meio de seus
textos bastante elegantes, que possuíam um estilo exuberante e com frequentes conceitos
exatos. Desse modo, suas conferências tornaram-se famosas no Rio de Janeiro da época.
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No decorrer da vida, Medeiros e Albuquerque escreveu 3 livros de conferência: O
umbigo de Adão, Em voz alta e O silêncio é de ouro, sendo que destes, o mais famoso e o
mais envolvente, sem sombra de dúvida, é O umbigo de Adão.
Ao escrever O umbigo de Adão (1932), uma obra composta por 5 conferências
literárias, Medeiros e Albuquerque utilizou uma tendência usual em seus textos, que é
preferência por temas simples para, dessa forma, desenvolvê-los de forma bastante elaborada,
contudo. Essa estratégia o diferenciava de muitos conferencistas importantes da época como,
por exemplo, Coelho Neto, que preferia abordar temas mais eruditos.
Em relação à conferência “Faceirices” do livro, o conferencista a começa
discorrendo sobre a Constituição Federal, afirmando: “ Todos os cidadãos têm o direito de só
fazer o que por lei lhes fôr determinado” (ALBUQUERQUE, 1932, p.51). Em seguida, ele
revela ironia, sua marca registrada, opinando: “Agora, porém, tenho a certeza de que ele não
vale nada” (ALBUQUERQUE, 1932, p.51).
Um recurso retórico bastante usado não somente em suas conferências, como
também no restante de sua produção, é o fato de Medeiros negar o valor dos seus feitos
literários, subestimando-os de forma a transpor certo fingimento no discurso. Esse fato é
comprovado quando relata: “Conferência não é bem o nome” (ALBUQUERQUE, 1932,
p.52).
Dessa maneira, apresentando-se com humildade ao público, Medeiros e
Albuquerque, como um bom conferencista que foi, sabe que a intimidade com os receptores
tenderá a ser muito mais fácil de ser alcançada, além é claro, do fato de se desculpar, mesmo
de forma implícita, de possíveis deslizes que naturalmente mesmo um experiente
conferencista pode provocar em textos orais, afinal de contas, conferência é um gênero de
obra altamente eloqüente e, como tal, está mais próximo da oralidade, que é utilizada pelos
falantes sempre com bastante naturalidade.
De fato, no final de “Faceirices”, o conferencista chega a agradecer o público e de
forma subtendida procura manter a intimidade com os ouvintes, declamando o seguinte
fragmento retórico: “E si, por exemplo, agora, vós quizerdes me dar a ilusão de que eu não
vos enfadei muito, mesmo sabendo que buscais enganar-me, eu vos agradecerei essa
generosa, essa misericordiosa intenção” (ALBUQUERQUE, 1932, p.68).
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Em uma outra conferência declamada no Instituto Nacional de Música, ele
desculpou-se afirmando: “E aqui eu termino. Termino, pedindo-vos perdão pela desiluzão que
vos inflinjí. Terão todos verificado que havia uma excelente conferência a fazer: exatamente a
que esperavam; exatamente a que eu não fiz...” (ALBUQUERQUE, 1913, p.118).
Ao informar que o tema da conferência “Faceirices” será o “embelezamento das
mulheres”, Medeiros e Albuquerque diz que parece ser fútil, mas, em seguida, esclarece que
são “futilidades –não pelo assunto, mas pelo modo por que eu o tratarei” (ALBUQUERQUE,
1932, p.52), com o intuito principal de não perder a intimidade com os ouvintes, além, é claro,
de prender a atenção deles. O embelezamento aqui é visto como o desejo de enfeitar-se, isto é,
de envaidecer.
Segundo o texto dessa conferência, a durabilidade da humanidade é devido à
mulher, que a conserva pelo amor. Portanto, “o amor é a base de todas as ciencias, a ciencia
fundamental; a base de todas as artes, a arte fundamental” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 53).
Portanto, a faceirice é um encaminhamento para a conservação do amor e, consequentemente,
tem de ser tratada com seriedade.
Ademais, outra técnica bastante freqüente nas conferências de Medeiros e
Albuquerque é o levantamento de informações históricas, que passam a dialogar
tranquilamente com o respectivo tempo da conferência. Entre as várias informações históricas
que o conferencista dá, em “Faceirices”, é a que, falando ainda sobre o embelezamento, diz:
“um fato digno de nota é que nos povos primitivos em geral os homens que mais se enfeitam”
(ALBUQUERQUE, 1932, p. 55), em contraposição com os anos 30, em que a mulher é a que
“corre maior risco de passar uma existencia solitaria” (ALBUQUERQUE, 1932, p.56) e, por
isso, ela é a que mais se enfeita.
Feito isso, o conferencista transcende o tema “faceirice”, visto que agora passa a
ser visto não apenas como manifestação de uma arte específica, como também de todas as
artes de conhecimento, pois “a faceirice feminina é pintura, é escultura, é literatura... é tudo
enfim” (ALBUQUERQUE, 1932, p.56). Desse modo, ele abre faz a seguinte pergunta
retórica: “por que considerá-la uma cousa futil e risível?” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 67).
Em relação à conferência “Salomé”, que foi feita em um curso de declamação,
Medeiros e Albuquerque já afirma que a fez por pedido da diretora. Como ela afirmou ser um
grande desejo, o conferencista resolveu satisfazê-lo.
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Prosseguindo o texto, ironicamente, ele aborda o assunto religioso, ao mencionar
especificamente Deus. Vale registrar que Medeiros e Albuquerque sempre foi um ateu
convicto, chegando até mesmo a criticar os católicos por sua convicção que ele julgava
essencialmente dogmatizada. Em muitos de seus livros, isso fica bastante evidente, tal como,
por exemplo, quando ele afirma o seguinte: “Ninguém deve respeitar crenças, que lhe
pareçam falsas. Está, não no seu direito, mas no seu dever, combatê-las. O que se deve sempre
respeitar é o direito de cada um crer no que quiser” (ALBUQUERQUE, 1942, p.331).
Ademais, Medeiros sempre achou que os católicos são bastante autorizados, como
ele mesmo falou “Não protestam só com argumentos: reclamam que se faça calar quem as
ataca” (ALBUQUERQUE, 1942, p.331). Para ele, “o ridículo não é de tal ou qual episódio: é
em conjunto, o do catolicismo todo inteiro” (ALBUQUERQUE, 1942, p.333).
Medeiros e Albuquerque aborda a construção do mundo de forma altamente
contraditória e ironicamente, ao argumentar: “Deveras, porém, creio que só daria a Deus um
conselho: que ele não fizesse o mundo. Para que?! Pois si ele tinha vivido tão quietinho até
ali, para que comprar complicações? “ (ALBUQUERQUE, 1932, p.69).
Segundo a sua concepção na conferência “Salomé”, Deus foi muito ingênuo e
precipitado em fazer o mundo, chegando até mesmo, ousadamente a aconselhá-lo a não fazer
suas criações, em “Não faça nada, Padre Eterno! Você não imagina como é facil, em vez de
fabricar um universo ruim e mal acabado, não fazer nada, nada, absolutamente nada!”
(ALBUQUERQUE, 1932, p.70).
Desse modo, o conferencista chegou até mesmo a chamá-lo de teimoso, em “Não
sei si ele me atenderia... Não creio, porque ele é teimoso e, já podendo ter acabado com tudo
isto” (ALBUQUERQUE, 1932, p.70). Aliás, essa ousadia é característica de Medeiros e
Albuquerque, visto que ele sempre soube argumentar com muita coragem, parecendo não
possuir medo de nada e muito menos de ninguém.
De fato, em suas obras, ele chegou a criticar nomes importantes da literatura
brasileira, tais como: Cruz e Sousa e Silvio Romero. Quando criticou Cruz e Sousa, ele
sempre mencionou achar o poeta simbolista muito infantil para fazer poesias, além de relatar
que ele seus versos apenas transmitem musicalidade. Já em relação a Sílvio Romero, seu
professor, ele afirma: “Os livros de Silvio Romero não são bem escritos. Mas são
luminosamente claros” (ALBUQUERQUE, 1942, p.51). Todavia, ele não deixou de registrar
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que Sílvio, professor, era um expositor excelente, pois suas lições “dialogadas foram e serão
sempre o método ideal para o ensino de filosofia” (ALBUQUERQUE, 1942, p. 51).
Outro dado interessante é que Medeiros e Albuquerque chegou a criticar de forma
ousada até mesmo nomes importantes da História nacional, como, por exemplo, o imperador
Dom Pedro II, ao afirmar: “o imperador sempre fez versos errados, banais, de uma indigência
de ideias e de uma imperfeição de forma tais que se recusariam a assiná-los até os mais
incorretos principiantes” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 10). Posteriormente, ele relata que
“Pedro II não exibiu jamais trabalho nenhum, de natureza nenhuma” (ALBUQUERQUE,
1932, p.15).
Quando criticou o presidente Campos Sales, teceu comentários bastante negativos
a ele, como: “ Campos Sales foi o presidente mais nefasto de quantos houve em nossa terra”
(ALBUQUERQUE, 1934, p.26). Além disso, ousadamente, informa que Sales saiu do regime
político da época “relativamente honesto, e começou a subvencionar os jornais que o
defendiam. Gastou mais de sete mil com isso” (ALBUQUERQUE, 1934, p.27).
Prosseguindo basicamente a conferência “Salomé”, Medeiros e Albuquerque,
ironicamente, ainda ao falar de Deus, diz que se o pai celestial perguntasse a ele se gostaria de
ser mulher, enfatizando que mesmo se antes do seu nascimento, se ainda sim Deus
perguntasse, ele responderia que não, argumentando: “Mas, como mulher (e sobretudo si
fosse uma mulher bonita), eu me desmoralizaria, em muito pouco tempo” (ALBUQUERQUE,
1932, p. 70).
Depois, ainda explica: “Com a deploravel tendencia a aceder a tudo o que me
pedem, os homens me pediriam muitas cousas –sei lá o que eles pediriam!- e eu lhes iria
fazendo as mais inconvenientes concessões” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 70).
Medeiros e Albuquerque, utilizando de um estilo peculiar bastante leve, em
“Salomé”, fala dos médicos e seu trabalho, em “Todos sabem que os medicos, embora
adstritos ao segredo profissional, reconhecem que diante de certas doenças muito graves,
muito perigosas, o segredo cessa e é dever chegar á notificação compulsoria”
(ALBUQUERQUE, 1932, p.71).
De fato, a preocupação do autor pelos problemas envolvendo a saúde pública da
época era bastante comum em seus trabalhos, ao passo que ele se preocupava muito com as
transformações desenfreadas em que o século XIX passava, sobretudo conhecido como Belle
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Époque tropical. Nesse tempo, o Rio de Janeiro estava se transformando socialmente e
culturalmente, seguindo a influência da capital francesa, entretanto, essas mudanças só eram
usufruídas por uma minoria elitizada, descartando as classes médias e baixas nacionais, que
sofriam com a questão das habitações coletivas e, sobretudo, os cortiços, que eram vistos
como “rede de proteção a escravos fugidos” (CHALHOUB, 1996, p.7). Ademais, os cortiços
eram vistos como lugares perigosos de transmissão de epidemias e, como estas poderiam
abalar o progresso da Capital Federal do Brasil, eles, portanto, deviam ser eliminados do
cenário nacional.
Outro dado bastante relevante que aparece em “Salomé” é o fingimento literário
que Medeiros mostrou possuir ao escrever esse texto, ao dizer: “A conferencia, em si mesma,
nem merecia esse nome, seria apenas um fio, no qual se ensartariam missangas grosseiras e
perolas finas” (ALBUQUERQUE, 1932, p.72). Evidentemente, trata-se claramente de um
recurso retórico para proporcionar maior intimidade com o público ouvinte, pois se Medeiros
achasse que suas conferências não fossem boas, ele, sem dúvida, procuraria alterá-las, visto
que ele sempre foi um escritor bastante cauteloso e exigente.
Em seguida, em “Salomé”, ele começa a revelar aspectos da vida de Salomé, no
fragmento “Salomé é uma pobre rapariga em ultima analise, obscura, porque, apesar de
princeza, só se sabe dela um pequeno episodio: que, certa noite, dansou diante do padrasto,
este ficou entusiasmo e disse-lhe que pedisse o que quisesse” (ALBUQUERQUE, 1932, p.
73). Medeiros não deixa de registrar a importância dessa famosa figura que, chegando até nós,
consequentemente, está sendo recordada por ele naquele momento.
Para o conferencista, Salomé devia ser um pouco ingênua, pois em uma oferta
oferecida para ela por João Batista, ficou tão assustada com ela que nem soube o que pedir,
“saiu da sala e foi consultar a mãe” (ALBUQUERQUE, 1932, p.74). Como a mãe tinha
muitos rancores por João Batista, pois este sempre falou mal da senhora, “insinuou por isso, á
filha que pedisse a cabeça do maldizente. E Salomé, obediente, assim o fez”
(ALBUQUERQUE, 1932, p.74). Desse modo, Salomé fez o que a mãe queria e pediu que
entregassem a cabeça de João a ela.
Por ora, Medeiros e Albuquerque registra a sua opinião sobre a estória, dizendo
que a vingança da mãe de Salomé era legítima, afinal de contas, “S. João Batista não
precisava andar falando mal daquela senhora” (ALBUQUERQUE, 1932, p.75). E ainda revela
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mais uma vez sua ironia usual, em “para que ocupar-se com a vida alheia? “
(ALBUQUERQUE, 1932, p. 75).
Ademais, o conferencista traz para a atualidade essa estória, de forma a mostrar
grande leveza em seus comentários, em “por fim, houve mais quem lucrasse com essa
transação domestica e familiar: fomos nós” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 75), pois os
escritores atuais ainda conhecem a estória de Salomé. Para exemplificar, Medeiros e
Albuquerque cita nomes como Flaubert, Fagundes Varela, Araújo Filho, D’Annunzio, Henri
Robert, Louis Payen, Albert Samain, Oscar Wilde, Eugênio de Castro, Gomes Leite, Emile
Hinzelin, Catulle Mendes e Shakespeare.
Ironicamente, Medeiros ainda escreve que não compreende o fato de Salomé,
depois, passar a amar João Batista, ao passo que este “devia feder a suor e a poeira”
(ALBUQUERQUE, 1932, p.92). Além de opinar sobre o caso: “Ora, eu admito sem
dificuldade amor e feialdade; mas amor e fedor, embora rimem, parecem-me cousas
inconciliaveis” (ALBUQUERQUE, 1932, p.92).
Em relação à conferência “Água e sabão” do livro O umbigo de Adão, Medeiros e
Albuquerque começa o seu discurso pedindo desculpas por relatar assuntos destituídos de
poesia, fazendo alusão a temas “cuja vista ou cujo contacto nos desagradaria”
(ALBUQUERQUE, 1932, p.97). Portanto, ele introduz o assunto “água e sabão”.
Naturalmente, o gasto excessivo com o sabão é o índice do respeito que as pessoas
têm a si mesmas, ao passo que despesas nunca são bem vistas socialmente, originando grande
falta de respeito e solidariedade.
Prosseguindo a conferência, Medeiros e Albuquerque argumenta ser falsa aquela
estória de achar que os povos selvagens “despidos, afrontam facilmente a agua e tanto
apanham a de chuva que os lava, sem que eles pensem nisso, como procuram gostosamente
lagos, rios, e quédas de agua para se banharem alegremente” (ALBUQUERQUE, 1932, p.98).
Na concepção do conferencista, isso não é verídico, afinal de contas, muitos dos povos
selvagens não iguais aos índios brasileiros, em geral, que tinham o hábito de se banhar
frequentemente, sendo que “os povos primitivos eram quasi sempre asseiados”
(ALBUQUERQUE, 1932, p.98). De fato, “muitos povos primitivos são mais limpos de
roupas que de péle” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 98), em muitas situações, justificando-se
pelo clima, como acontece exatamente com os Mongóes e também com os Esquimós.
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Todavia, existem alguns exemplos bastante antitéticos em relação aos povos
primitivos, parecendo para os seres humanos civilizados algo bastante deplorável; um ato
imundo. Naturalmente, os Dinkas da África mostram-se relativamente bastante preocupados
com a higiene, mas surpreendentemente, utilizam a urina da vaca com o intuito de limpeza.
Aliás, Medeiros não se esquece de informar que a lavagem com a urina é justificada de certa
forma, “quando nós queremos lavar bem as mãos ou mesmo o corpo, não deixamos de usar o
amoniaco” (ALBUQUERQUE, 1932, p.99), apesar desta substância usada ser altamente
tratada, mas, todavia, o princípio pode ser visto da mesma forma.
Na concepção de Medeiros, é muito mais fácil encontrar animais mais higiênicos
do que seres humanos. Um bom exemplo é o felino, mais especificamente o gato. Apesar de
ele não usar nem água, muito menos sabão, visto que “tudo se faz com a lingua –uma língua
que é quasi uma lixa, excessivamente rugosa- e a saliva natural” (ALBUQUERQUE, 1932,
p.100). O felino, de forma a se limpar com a sua saliva habitual, sempre se limpa
minuciosamente, pois, assim, ele passa a se sentir muito mais confortável consigo mesmo.
Segundo Medeiros, o porco, que é um animal tão criticado pelas pessoas, “é um
animal limpo, a que os homens dão, ás vezes, habitos de porcaria” (ALBUQUERQUE, 1932,
p.100).
Prosseguindo a leitura da conferência “Água e sabão”, Medeiros aborda mais
outro animal: a raposa. Evidentemente, as raposas parecem tomar banho para afugentar as
pulgas e outros parasitas que as incomodam, mas, contudo, utilizam para isso de uma
estratégia bastante interessante. Ele explica que elas “começam por procurar um tufo de
musgo seco, que metem na boca. Depois, aproximando-se da agua, voltam-se de costas para
enfiar nela a ponta da cauda” (ALBUQUERQUE, 1932, p.100).
Por ora, naturalmente, as pulgas, tentando rapidamente a fuga, sobem pela cauda
da raposa, que mergulha cada vez mais rapidamente. Com isso, as pulgas vão também
subindo. Posteriormente, “a raposa entra na agua com a parte posterior do corpo, vai
imergindo este pouco a pouco até que fica de fóra apenas o focinho, segurando o tufo de
musgo seco” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 100). Com isso, ela se livra de suas inconvenientes
pulgas.
No entanto, Medeiros e Albuquerque não deixa de registrar que há duas religiões
essencialmente limpas: a dos bramanes e a dos maometanos, sendo que “uma que é mais
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antiga de quantas o mundo conhece e outra que é a mais moderna” (ALBUQUERQUE, 1932,
p. 102). Desse modo, ele fala também de Alah, que é o mais recente de todos os deuses
existentes.
Outro dado interessante em “Água e sabão” é quando o conferencista afirma que
na Bíblia, “são as abluções dos pés as que primeiro aparecem: Abraão, lavando os pés dos
visitantes que os procuravam e que eram, aliás, anjos” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 103).
Todavia, quando os calçados se fazem de maneira a controlar cada vez mais a poeira, aquele
hábito possivelmente passará a diminuir, mesmo entre grandes viajantes constituindo um
povo específico.
Medeiros e Albuquerque também não deixou de informar uma lenda, que envolve
a cultura dos Mongóes. Ela diz que um raio matará uma pessoa que, ousadamente, tomar
banho em algum dia da sua vida. De fato, “os santos catolicos que ofereceram a Deus a
agradavel penitencia de suprimir os banhos são tão numerosos” (ALBUQUERQUE, 1932, p.
104).
Ironicamente, o conferencista diz que “de um modo geral, notai, portanto, que o
uso da agua e sabão –o uso salutar do banho- encontrou no seu caminho imensos obstaculos,
até de ordem teologica” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 108). Os religiosos, em muitos casos
evitam tomar banho; em outras situações, tomam banhos frequentemente.
Para tanto, Medeiros informa alguns indivíduos religiosos importantes que deram
consistência ao seu discurso retórico. Dentre eles, abordou Santo Agostinho, ao afirmar: “dos
banhos parciais, apenas o dos pés, com que Santo Agostinho embirrava, é não só o que
primeiro aparece na Bíblia, como o que mais frequentemente se pratica” (ALBUQUERQUE,
1932, p.108).
Ademais, mencionou Job, opinando: “Job, querendo falar na epoca em que era
rico, diz que nesse tempo ele lavava os pés com manteiga. Idéa bem extravagante!”
(ALBUQUERQUE, 1932, p.108).
Vale registrar que o conferencista também abordou Adão e Eva, ao informar ao
público o seguinte: “Quando se admite a verdade da narração biblica não há tradição mais
antiga que a de Adão e Eva. Altos fóros de nobreza teria, portanto, o banho si fosse possivel
demonstrar que os nossos mais remotos avós já o praticavam” (ALBUQUERQUE, 1932,
p.109). Realmente, o estilo de Medeiros e Albuquerque é altamente leve, descontraído e bem-
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humorado, visto que assim, sem dúvida, ele procurava cativar mais facilmente os seus
ouvintes.
De fato, usando uma linguagem bastante acessível (tanto que ela pode ser
entendida até os dias atuais), o conferencista procura atingir uma intimidade maior com o
público, de forma até mesmo a produzir um clima bastante familiar. No fragmento “não está
provado ... Não é mesmo provavel... Mas sejamos generosos. Não estragamos a poesia de
nossa remota progenitora, supondo-lhe esquecimentos que hoje pelo menos seriam
imperdoaveis” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 109). As reticências possibilitam deduzir que o
locutor estava refletindo cautelosamente em relação ao uso do léxico que ele julga adequado
ao contexto. Além disso, esse recurso também possibilita maior naturalidade na narrativa, pois
se percebe que Medeiros, pensando normalmente o que ia dizer, acabava escrevendo,
consequentemente.
Outra informação relevante é quando Medeiros e Albuquerque menciona, na
conferência “Água e sabão”, as profissões de barbeiro e médico e possíveis práticas
profissionais, em: “Ainda ha, de fato, barbearias –muito raras, é certo- com cartazes
anunciando: ‘aplicam-se bichas e ventosas’. E’ uma sobrevivencia” (ALBUQUERQUE,
1932, p. 115). Esse fato revela bem, embora de forma um pouco concisa, o cenário urbano da
época em que ele discursou tal conferência.
Em relação à conferência “Mães” de O umbigo de Adão, Medeiros e
Albuquerque, de início, opina tratar-se de um tema já bastante explorado, “daí provém que ha
a respeito dele todo um stock de frases feitas” (ALBUQUERQUE, 1932, p.131).
Para
exemplificar, cita o poeta francês Legouvé e Luis Guimarães Junior, que falaram de mães
amorosamente em produções literárias.
Todavia, distorcendo essa tradicional figura materna, o conferencista relata alguns
episódios em que mães foram maltratadas, como nos clássicos da História, que revelam casos
de filhos que atacaram suas genitoras, desrespeitando-as e até mesmo matando-as.
Ademais, não há necessidade de se ir muito longe, pois a simples leitura de
periódicos revela usualmente “fatos de mães maltratadas pelos filhos ou de filhos maltratados
barbaramente pelas mães e que, nessa hipótese, provavelmente, e com toda a razão, as
detestam” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 132).
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Por ora, não faltaram pessoas que fizeram votos para matar os pais e outras
pessoas que até mesmo conseguiram isso em parte. Todavia, como mesmo lembra Medeiros e
Albuquerque, “mas o que ninguem propoz ate hoje foi a supressão das mães”
(ALBUQUERQUE, 1932, p. 135).
Prosseguindo a conferência, o enfoque vai mais especificamente ao mundo da
mitologia, sobretudo, Minerva, a Deusa da Sabedoria, que teve origem do cérebro de Júpiter.
De fato, por Minerva ser uma filha sem a figura materna, dá certa idéia de que a ciência é algo
essencialmente objetivo, frio e rígido.
Como se sabe, o domínio acima citado, o mitológico, é muito diferente da história
real dos povos, que não compreendem fenômenos naturais sem mães. Desse modo, “e’assim
que os nossos selvagens falam da Mãe do Ouro. Em lugares em que ha este metal em
abundancia, a Mãe do Ouro vela para que não o descubram e pune os que querem fazer essa
descoberta” (ALBUQUERQUE, 1932, p.136). Aliás, Medeiros sempre se mostrou muito
interessado por assuntos da mitologia, sendo que algumas poesias dele mostravam esse tema,
principalmente as que se encontram na obra Poemas sem versos.
Naturalmente, o conferencista menciona também que uma das tradições mais
comuns dos índios brasileiros é a da Mãe da Água, sendo que, na maioria dos casos, “não é
pelo canto que a Mãe da Agua atrai: atrai apenas pela beleza física” (ALBUQUERQUE,
1932, p.137). Ela aparece do fundo dos lagos, chamando os indivíduos que se detêm á beira
deles, contudo.
Em relação ao cristianismo, Medeiros e Albuquerque discorre que para diversos
grupos cristãos do passado, a Santíssima Trindade era composta de 3 elementos, que são:
Deus Pai, do Filho e do Espírito-Santo, que, antigamente, era “a Mãe celeste do Filho”
(ALBUQUERQUE, 1932, p. 138).
Desse modo, como o conferencista explica, “A Virgem Maria era para essas seitas
apenas a mãi, por assim dizer, aparente, a mãi terrestre” (ALBUQUERQUE, 1932, p.138).
Evidentemente, mesmo a Santíssima Trindade cristã reclamava a presença de uma figura
materna.
Nessa conferência, Medeiros e Albuquerque aborda também a História, sobretudo,
enfocando o matriarcado, ou seja, do reconhecimento primitivo da maternidade, “precedendo
de muitos seculos o da paternidade, derivou uma das primeiras fases da civilização, que eles
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chamam o matriarcado” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 138). Nesse tipo de civilização, os
filhos, em muitas situações, até mesmo ignoravam que tinham pais, pois o importante mesmo
era o lado materno para eles.
Ademais, há ainda, em alguns povos asiáticos, resquícios desse regime. Desse
modo, ali, “são as moças que fazem a côrte aos homens e que os pedem em casamento. São
tambem elas que têm o direito de impôr o divorcio ao marido, despachando-o para a casa da
respectiva mãe” (ALBUQUERQUE, 1932, p.139). Como se vê, bem diferente da sociedade
do século XXI, as mulheres pareciam ter mais voz na sociedade e, para isso, usufruíam
frequentemente de seus direitos.
No entanto, mesmo assim, são as mulheres que, na atualidade, conquistam mais
facilmente seus objetivos. Ironicamente, para manter certa intimidade com os seus ouvintes,
Medeiros e Albuquerque até diz, em uma linguagem bastante leve, que “quando um homem
garante que seduziu uma mulher, foi quasi sempre o oposto que sucedeu” (ALBUQUERQUE,
1932, p. 139). Aliás, essa leveza de estilo é uma grande característica desse autor, tanto é que
seus textos (não somente as conferências) podem ser compreendidos até hoje facilmente pelos
leitores, de forma que se mantêm sempre atuais.
Prosseguindo a conferência “Mães”, o autor ainda diz, por meio de ironia, que
diferentemente daqueles povos, cujas mulheres “remetem sumariamente os maridos para a
casa das mãis deles” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 139), já na sociedade atual, “quando a
mulher briga com o marido ameaça-o de voltar ‘para a casa de mamãe’”(ALBUQUERQUE,
1932, p.139). Com isso, Medeiros revela o machismo reinante da sociedade dos anos 30, que
não permitia nem sequer que os casais se separassem, ao passo que o divórcio não era
legalizado ainda. Sendo assim, as esposas pareciam ser obrigadas à união eterna aos maridos,
embora o casamento estivesse já desfeito matrimonialmente.
Em relação à conferência “O nariz de Cleópatra” do livro O umbigo de Adão,
Medeiros e Albuquerque inicialmente informa que o texto foi discursado no Teatro Trianon,
em 20 de julho de 1917. Em seguida, discute o emprego do título, no fragmento: “a ideia de
que entre o titulo de um livro ou de uma conferencia e o conteudo de um ou da outra deve
haver uma estrita correlação, ideia que a muitos parece absolutamente logica, é no emtanto,
inteiramente absurda” (ALBUQUERQUE, 1932, p.5).
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Ademais, o conferencista opina que os títulos muitas vezes não indicam
especificamente os conteúdos dos textos, ao passo que, eles podem indicar coisas abstratas,
sem nenhuma referência com os assuntos. Portanto, Medeiros mesmo questiona o seguinte:
“por que, si é tudo assim, uma conferencia intitulada o Nariz de Cleopatra precisaria tratar de
qualquer Cleopatra ou de qualquer nariz? Não ha razão alguma” (ALBUQUERQUE, 1932,
p.5).
Evidentemente, ele revela a possível escolha de O Umbigo de Adão, mas no lugar
do próprio nome dessa conferência “O nariz de Cleópatra”, discorrendo o seguinte
comentário: “sobre o Umbigo de Adão havia a vantagem de não se poder dizer nada,
atendendo a que, segundo narram graves teologos, Adão foi o unico homem que não teve
umbigo” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 5). Portanto, tentar entender o conteúdo dessa
conferência apenas pelo título não possibilita grandes facilidades, pois parece bastante vago.
Ironicamente, Medeiros e Albuquerque até julga ser o umbigo uma parte bastante
fútil do corpo humano, além de sua posição ser bastante discreta, afirmando que “E aliás logo
se deveria ver como seria dificil encher uma hora, falando de qualquer umbigo quando essa é
a parte mais inutil e esteril do corpo. Só os cirurgiões a apreciam, porque lhes fornece
frequentemente hérnias umbilicais para operar” (ALBUQUERQUE, 1932, p.6).
Todavia, muitos outros autores utilizaram dessa parte do corpo em suas produções
como, por exemplo, Edmond Haraucourt, Paul de Saint Victor e Miguel Ângelo, o que
demonstra que esse tema não é tão raro de se encontrar na arte.
Consequentemente, o tema do respectivo livro então não dá nenhuma idéia do que
realmente o Medeiros e Albuquerque vai abordar no seu discurso, como ele mesmo diz: “ora,
como Adão não teve jamais umbigo e como, se tivesse, não havia no seu tempo nem poetas
para lhe fazer versos, nem velas, a que pudesse servir de castiçal, uma conferência intitulada
O Umbigo de Adão” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 6).
Contudo, o título “O nariz de Cleópatra” dá uma idéia mais concreta, afinal de
contas, Cleópatra é uma figura famosa e, naturalmente, ela tem nariz. Portanto, como mesmo
opina Medeiros, “ao nariz de Cleopatra –de que aliás eu não me vou ocupar- sempre se podem
fazer algumas alusões” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 6). Ela teve, sem dúvida, um nariz, como
todo ser humano normal teve.
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Ademais, o nariz dessa personagem chegou mesmo a ser célebre, graças a uma
famosa frase inventada por Pascal, que dizia o seguinte, segundo a concepção de Medeiros e
Albuquerque, “Pascal disse, de fato, que, si o nariz de Cleopatra tivesse sido um pouco maior
ou um pouco menor, a situação atual do mundo seria diversa” (ALBUQUERQUE, 1932, p.
7). Naturalmente, se ela tivesse nascido sem beleza, não conseguiria seduzir Antonio e,
portanto, a civilização romana progrediria de uma forma altamente diversa.
Como se vê, mais uma vez Medeiros e Albuquerque mostrou apreço pela História,
que dá consistência a sua narrativa, sobretudo, quando, nessa conferência, ele fala do
desenvolvimento de Roma. De fato, ele mencionou César, opinando: “ Cesar foi mandado
pelos Romanos, na qualidade –diríamos nós hoje- de interventor. Ele parecia mais propenso
ao irmão que á irmã” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 7). Personagens importantes de Roma são
relembrados por esse conferencista e fortalecem “O nariz de Cleópatra”.
Prosseguindo a conferência, Medeiros e Albuquerque, de forma bastante
irreverente, brinca com o fato de uma mulher, tal como Cleópatra, ser bonita, quando diz o
seguinte: “No fim de contas, a verdade é que nós não pedimos ás mulheres que sejam bonitas:
pedimos que nos agradem. Ha feias irresistiveis e bonitas insuportaveis. Com maior ou menor
nariz, Cleopatra talvez fizesse exatamente o que fez” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 9).
Enfocando as partes do corpo feminino, Medeiros diz que com os narizes
sucedem algo interessante, pois quando se tem o interesse de prestar elogios a alguma mulher,
o enfoque não é o nariz. Em geral, os olhos, as mãos, os pés, o cabelo e até as mãos recebem
comentários positivos, mas o nariz nunca é valorizado, ao passo que “correi os romances, as
poesias, e notareis este fato interessante: os autores fogem á dificuldade de descrever os
narizes de suas heroinas” (ALBUQUERQUE, 1932, p. 10). Mesmo o nariz de Cleópatra, uma
linda mulher, não recebe elogios dos autores, em geral.
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Medeiros e. Quando era vivo. Rio de Janeiro: Leite & Maurillo, 1942.
______. O umbigo de Adão. Rio de Janeiro: Flores & Mano, 1932.
______. Em voz alta. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia, 1913.
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______. Minha vida. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1934.
BARBOSA, João Alexandre. A tradição do impasse. São Paulo: Ática, 1974.
CARPEAUX, Otto Maria. Pequena Bibliografia crítica de literatura brasileira. Rio de
Janeiro: Letras e Artes, 1964.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. Rio de Janeiro:
Companhia das letras, 1996.
MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. São Paulo: Cultrix, 1983.
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ARTE E LOUCURA: FERNANDO PESSOA(S)?
Vivian Karina da Silva139 (G-UEL)
As divergentes concepções de Loucura
“TENHO UM SEGREDO que nem eu próprio conheço...
Data de almas minhas anteriores à actual...
Outras paisagens sugerem-se através das janelas
E a hora visível recua até o fundo
Do meu ser e intercala-se
Uma idéia de mim entre mim e a realidade.”
Fernando Pessoa, 13/04/1916, p. 366.
Pensar sobre a temática loucura requer análises de vários fatores sociais, culturais
e teóricos. Do que se trata a loucura? E, antes, qual é o significado social da palavra loucura?
Discutir loucura é primeiro, discutir categorização. Se existe o louco é em contraste com o
sujeito normal. E quem é o sujeito normal? Há padrões? Quais? Em meio a tais questões,
surge o pensador Foucault que critica toda a normalidade social no qual estamos imersos:
Exclusão: o lugar mais fundo da sujeição. É para lá que Foucault nos
conduz; é de lá que Foucault fala. É deste fundo que se podem reconstituir os
processos insidiosos de estigmatização, discriminação, marginalização,
patologização e confinamento, operando ao nível da percepção social, do
espaço social, das instituições sociais, do senso comum, do aparelho
judiciário, da família, do Estado, do saber médico. De qualquer maneira, o
resultado é o mesmo: o silêncio dos sujeitados, silêncio que é o primeiro e
mais forte componente da situação de exclusão, a marca mais forte da
impossibilidade de se considerar sujeito àquele a quem a fala é de antemão
desfigurada ou negada. História da Loucura e Vigiar e Punir constituem
assim incursões por entre esses espaços extremos da exclusão, manicômio e
prisão, com o objetivo de desentranhar a lógica da produção do silêncio de
seus habitantes sem rosto. (BRUNI, 1989, v.1, p.2).
Por meio das várias perspectivas, tem-se a visão biologicista/médica, no qual o
sujeito é então definido como doente mental, sendo aquele que demanda cuidados médicos,
remédios e controle sobre o delírio, ou seja, há um controle do biopoder, este do saber
médico, no qual os sujeitos ao transitarem de identidade de normal para louco perdem por sua
vez, sua autonomia de ser, de escolha, de sujeitos de seus próprios corpos. Perdem a
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autonomia para outro saber, o médico, e ganham uma nova identidade: o doente mental,
alienado, que nada sabe de si, que não tem controle sobre seus instintos, sobre seu EU. Outra
forma de controle social da loucura se deu por meio das visões religiosas ocidentais, em que
algumas das definições da loucura eram como possessões demoníacas ou de espíritos.
Segundo Bruni (1989), quando cita Foucault:
Em meio ao mundo sereno da doença mental, o homem moderno não
comunica mais com o louco; há de um lado o homem de razão que delega o
médico para a loucura, autorizando assim a relação apenas por meio da
universalidade abstrata da doença; há por outro lado, o homem da loucura
que comunica com o outro somente pelo intermediário de uma razão
completamente abstrata, que é ordem, coerção física e moral, pressão
anônima do grupo, exigência de conformidade. Linguagem comum não há;
ou melhor, não há mais; a constituição da loucura como doença mental, no
fim do século XVIII, comprova o diálogo rompido, dá a separação como já
adquirida, e afunda no esquecimento todas essas palavras imperfeitas, sem
sintaxe fixa, um pouco balbuciantes, nas quais se fazia a troca da loucura e
da razão. A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a
loucura, só pôde se estabelecer sobre tal silêncio. Não quis fazer a história
dessa linguagem, mas sim a arqueologia desse silêncio (BRUNI, 1989, v.1,
p.2, apud FOUCAULT, 1961, p. 9).
Há também entre as correntes teóricas diversas da psicologia, da filosofia e da
psicanálise, divergências entre si, no entanto, aproximam-se ao apontarem que o delírio é uma
forma de comunicação importante e que por meio desse delírio é que o sujeito pode elaborar
suas questões, ou então, o delírio é uma forma de mostrar-se, ou seja, mostrar as
multiplicidades do que é ser “ser humano”. A loucura vista pela perspectiva foucaultiana,
segundo os autores Maria Thereza e Naomar de Almeida (2003) foi criada como modo de
aprisionamento dos corpos, entendendo corpo como uma dimensão além do biológico, como
já discutido acima, no qual o autor debate o tema por meio da discussão normativa:
Quanto à dimensão normativa da saúde, de acordo com Foucault
(1980/1987), trata-se de uma invenção da modernidade (...) a medicina do
século XIX se apoiava na análise de um funcionamento regular, normal, para
detectar onde o indivíduo se desviou. Ela era normativa. De acordo com a
hipótese foucaultiana, a modernidade se caracteriza pela invenção política da
saúde como a maior riqueza das nações; já que concebida como fonte das
demais riquezas. A promoção da saúde das populações pela via da
normalização dos corpos seria a estratégia política primordial da medicina,
por meio de um discurso essencialmente valorativo. (p. 104).
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Tendo em vista, portanto, a longa história da loucura, segundo Silveira (2009),
desde como era vista na civilização grega, com teóricos que iniciaram questionamentos, como
Platão que propõe a harmonia verdadeira através da razão governando as paixões, no caso, a
não-razão, como também, na civilização romana que entendia a loucura sobre uma
perspectiva médica, revalorizando a relação médico-paciente.
Um importante pensador dessa época foi Cícero, que relatou a primeira descrição
detalhada da paixão e usou a primeira vez a palavra libido, num sentido psicológico. Nota-se
um retrocesso da visão de loucura no tempo, no período da Idade Média, no qual a loucura era
vista como uma possessão demoníaca, sendo que só Deus poderia livrar tais pessoas dessa
enfermidade. Esse quadro muda, na renascença e com os ideais da revolução francesa,
“liberdade, igualdade, fraternidade”. O iluminismo assegurou a fé dos gregos na razão. Robert
Burlon elucidou as causas psicológicas e sociais da loucura como, ciúme, solidão, medo,
pobreza, amor não retribuído, religiosidade excessiva. Espinoza preparou a base para a
integração de fenômenos físicos, psicológicos e morais.
No final do séc.XIX e início do séc.XX, a medicina se seculariza , mantendo-se a
concepção do homem como um ser que sofre e demanda angústias, medos. Surgem
abordagens como a psicanálise, a medicina antropológica, a psiquiatria, a medicina
psicossomática e a psicologia como um entendimento desse novo ser social. Numa análise
histórica, houve uma ruptura na descontinuidade, uma reconstrução e alteração do devir.
Por meio de questionamentos do que é a loucura e onde está o sujeito dentro dessa
loucura, Silveira (2009) nos aponta Hegel quando afirma que a “loucura é uma dimensão
humana necessária e que em última análise só é homem aquele que tem a virtualidade da
loucura, aquele que pode transcender a si mesmo, conflitar-se consigo mesmo e até descolarse de si mesmo através da linguagem”.
A loucura, desde então, assume o caráter de doença/sofrimento, nesse trecho de
Hegel, notamos uma tentativa de reconstruir, ou melhor, desconstruir essa imagem do “doente
mental” com um ser passivo, que sofre, precisa de cuidados médicos, é, portanto,
institucionalizado. Como no poema de Pessoa, acima mencionado, “uma idéia de mim entre
mim e a realidade”, então, qual seria essa realidade? Será que não existem diferentes
realidades? Qual era a realidade de Fernando Pessoa? Todas as pessoas possuem a mesma
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realidade? Esses questionamentos dão aberturas para se refletir o que é a loucura atravessada
pelo tempo, pelas diversas culturas em diversos momentos históricos.
Em suma, o presente trabalho, tem como um dos objetivos, indicar como a arte,
nesse caso, como a literatura está intimamente ligada sobre os aspectos psíquicos, sociais e
culturais em relação à concepção libertária sobre loucura. O artista escolhido, Fernando
Pessoa, chocou e ainda hoje, choca seus leitores. Quem é Fernando Pessoa? Quem são seus
heterônimos? Qual o sentido em viver novas personalidades, do anseio e da busca de se sentir
completo buscando novas formas de existir? Seria ele um louco? Esquizofrênico? Um gênio?
Ou simplesmente estaria ele fazendo uma estratégia de marketing?
Há ainda, uma questão maior do que todas essas. Com o cuidado de não parecer
pretensão desse trabalho, Fernando Pessoa nos mostra que experenciou, fantasmagoricamente
a vida de outras pessoas na sua própria, criando novas identidades desse ser que se expande
além do Eu afim de encontrar Outros, ou até mesmo Eus. Essas multiplicidades de identidades
apontam para o conceito de devir de Deleuze. São os devires-heterônimos de Fernando Pessoa
que nos mostram como transcender a idéia de existência de uma única persona, de uma única
existência em um só corpo, um ego simplesmente. Sem dúvida, ele nos ensina a ver que não
há somente um em todos os seus escritos:
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro afora.
(In: Poemas Completos de Alberto Caeiro, p. 13, 2006.)
Devir criança: o artista arteiro?
“Eis-me aqui em Portugal,
Nas terras onde eu nasci,
Por muito que goste delas,
Ainda gosto mais de ti.”
Fernando “menino”Pessoa, p.2
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Nesse título, brinca-se com as palavras artista e arteiro, ambas vindas da palavra
arte. Segundo o dicionário online Michaelis, várias são as definições das duas palavras;
arteiro: “que tem arte; astuto, fino, manhoso, que faz travessuras; peralta, traquinas”; artista:
“aplicador da arte, engenhoso, astucioso, manhoso, indivíduo que se dedica às belas-artes,
aquele que faz da arte meio de vida, o que revela sentimento artístico”. Nesse poema feito por
Fernando Pessoa, ele ainda criança, não se sabe exatamente sua idade, mas sabe-se que foi
quando tinha menos de oito anos de idade, segundo António Manuel Ferreira em seu artigo
“Fernando, o menino Pessoa”, conta a história de vida do poeta que nasce no dia 13 de junho
de 1888, em Lisboa. A vida de Pessoa foi um tanto quanto conturbada, aos cinco anos ele
perde o pai, e aos seis o irmão. Após o falecimento do pai e do irmão Pessoa cria seu primeiro
heterônimo, Chevalier de Pas. Sua mãe se casa novamente e parte pra África, em Durban.
Pessoa reside então com uma tia. E escreve com a mais singela delicadeza de uma criança o
poema acima mencionado à sua mãe.
Após dois anos, parte para África em encontro com a mãe. Lá ingressa na escola e
se torna o primeiro aluno da turma. Cria então, o seu segundo heterônimo, Alexander Search,
e a partir de 1901 começa a escrever seus primeiros poemas em inglês. Muda-se de novo a
Portugal e logo após retorna novamente à África, continua seus estudos e a escrever seus
poemas em inglês. Retorna definitivamente a Portugal e ingressa na faculdade de letras, mas
logo desiste. Começa a trabalhar como correspondente estrangeiro em escritórios comerciais.
E em 1910 escreve poesias e prosas em português, inglês e francês. Impressiona-se, sobretudo
com os sermões de Padre Antônio Vieira e, particularmente com a obra de Cesário Verde.
Segundo Simões (1973), especialista em Fernando Pessoa, cita que em 1931 em uma página
do “Livro do Desassossego”, onde o poeta escreveu sobre o nascimento do seu amor pela
língua, pela escrita, desde a infância:
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que
me tem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que,
ainda criança, li pela primeira vez, numa selecta, o passo célebre de Vieira
sobre o Rei de Salomão. “Fabricou Salomão um palácio...” E fui lendo até o
fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma
felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar.
Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele
exprimir das idéias nas palavras inevitáveis, correr de água por há declive,
aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me
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toldou de instinto como uma grande emoção política. E disse: chorei; hoje,
relembrando, ainda choro...Não tenho sentimento nenhum político ou social.
Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a
língua portuguesa. (p.85).
Boêmio, encontra-se com amigos em cafés, para discutir literatura. Em 1912,
conhece o poeta Mário de Sá- Carneiro e se tornam grandes amigos. É nesse período também
que Pessoa estréia como crítico literário, provocando polêmicas junto à intelectualidade
portuguesa. E em 1916, o poeta Mário de Sá-Carneiro se suicida após escrever cartas
angustiadas a Fernando Pessoa. O marco do modernismo em Portugal foi representado pela
revista Orpheu, fundada por Pessoa e Mário de Sá-Carneiro antes de sua morte em 1915. Mas
é em 1914, um pouco antes da criação da revista e da morte de seu grande amigo que Pessoa
cria seus mais famosos heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, e as
suas mais conhecidas obras, os poemas O Guardador de Rebanhos e também o Livro do
Desassossego. Em 1920 conhece Ophélia, seu amor, e logo após passa por uma grande
depressão, que o leva a pensar em se internar numa casa de saúde, por crises neurastênicas.
Em 1934 publica, tomando dinheiro emprestado, o livro Mensagem. E em 1925, no dia 30 de
novembro morre com cirrose hepática. Segundo o poeta:
Do ponto de vista humano, sou um histeroneurasténico com a predominância
do elemento histérico na emoção e do elemento neurastênico na inteligência
e na vontade (minuciosidade de uma, tibieza de outra). (SIMÕES, 1973,
p.141 apud PESSOA, 1931).
E, ainda, complementando, o poeta segue afirmando sua auto-imagem, de uma
forma, como diz Simões (1973), “poucos homens em Portugal terão sido, tão
simultaneamente lúcidos e cegos acerca de si próprios”, quando o autor menciona outra
citação do poeta sobre as características da teoria freudiana sobre a construção do psiquismo,
em relação à categorização das neuroses (histérica e obsessiva):
O Freudismo é um sistema imperfeito, estreito e utilíssimo. É imperfeito se
julgarmos que nos vai dar a chave, que nenhum sistema nos pode dar, da
complexidade indefinida da alma humana. É estreito se julgarmos, por ele,
que tudo se reduz à sexualidade, pois nada se reduz a uma coisa só, nem
sequer na vida intra-atômica. (SIMÕES, p.141, apud PESSOA).
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Nessa escrito, o poeta também além de criticar Freud, critica a si mesmo, quando
se determinou “histeroneurasténico”, porém segundo Simões (1973), Fernando Pessoa
“pensava-se a si mesmo, como um Descartes pensava o homem. Um espírito crítico-analítico
não se pensa – auto-analisa-se.”
Fernando: vários Pessoas
“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na natureza não é porque sabia o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar...”
Alberto Caeiro (1889/1915, p.14).
“Acima da verdade estão os deuses.
Nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.”
Ricardo Reis (1887/1935?, p.17).
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Álvaro de Campos (1890/1935?, p.18).
“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”
Fernando Pessoa, ele mesmo.(p.19).
A obra e a vida de Fernando Pessoa estão intimamente interligadas, descrição essa
de um dos críticos da obra de Pessoa, Octavio Paz (2006, p. 11), no qual ele afirma: “Poetas
não têm biografia. Sua obra é sua biografia”. Atentemo-nos em um primeiro momento ao
primeiro heterônimo criado por Pessoa, um francês, Chevalier de Pas, seu novo amigo
fantasmagórico com quem trocava correspondências. Pode-se supor certa ligação inconsciente
com sua mãe, que era uma grande conhecedora da língua francesa e que apreciava a arte. A
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partir disso, Pessoa não abandonará nunca essa língua, mostrando um apreço muito grande até
pela cultura francesa.
A morte de seu pai e de seu irmão ainda bebê, tornam as relações afetivas do
poeta mais frágeis. Sua tia, Maria Xavier que ajudara na sua criação após a morte de seu pai,
exerce ai uma influência muito reveladora na vida poética de Pessoa, pois ela era uma poetiza.
Quando se muda para África, estuda na escola dirigida por freiras irlandesas, tendo, portanto,
uma educação muito rígida. Fernando Pessoa, por ser primeiramente educado pela língua
inglesa, apesar de ter aprendido latim, adquire o gosto refinado pela poesia de Milton, Byron,
Shelley, Edgar Allan Poe e outros poetas ingleses. Assim, seguiu seus escritos, com as geniais
criações de seus heterônimos. Como escreveu Simões (1973):
Mas quem era Fernando Pessoa? Não devemos admirar-nos de que se
pergunte tal coisa. Fernando Pessoa é ainda um poeta mal conhecido em
Portugal. Primeiro, porque sua obra ainda não foi toda recolhida das revistas
por onde está dispersa; segundo, porque Fernando Pessoa foi um inimigo da
popularidade. (p.166).
Sem dúvida, no ano de 2006, surge o livro “Poesia” com mais de 200 poemas
inéditos do poeta. Nesse livro, não se sabe se era de autoria de Fernando Pessoa somente, ou
de seus heterônimos. E sobre seus heterônimos e seus surgimentos, resta-nos a seguinte
questão: Qual o papel que seus heterônimos representavam no “drama”, assim chamado pelo
próprio poeta e pelo autor Simões (1973), de Fernando Pessoa? Sobre tal reflexão, têm-se as
várias interpretações de Pessoa sobre si mesmo e sobre seus devires.
É o próprio Fernando Pessoa quem nos diz que “desde criança (teve) a
tendência para criar em torno (de si) um mundo fictício, de (se) cercar de
amigos e conhecidos que nunca existiram. Quem conhece a obra de
Fernando Pessoa sabe que ele se rodeou de um grupo de amigos que nunca
existiram e que se chamaram Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de
Campos. Estes seus amigos eram mais do que seus amigos: eram
desdobramentos dele próprio. (SIMÕES, 1973, p.166-167, apud PESSOA).
Abordando essa definição mostrada pelo autor por meio dos escritos do poeta,
percebe-se uma analogia com as várias formas de se posicionar no mundo, na vida,
atravessando sua subjetividade e nos mostrando o quão complexo foi a existência de seus
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heterônimos e de como a criação deles surgiu. Várias são as opiniões sobre a pessoa de
Fernando Pessoa, e a pretensão desse estudo é transmitir que essa criação de seus heterônimos
foi de extrema intimidade com a teoria deleuziana sobre o devir, pois “desdobrar-se” de si
mesmo é criar e viver as várias facetas das multiplicidades.
Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele
de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual
se chega ou se deve chegar. [...]. Os devires não são fenômenos de imitação,
nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias
entre dois reinos. As núpcias são sempre contra a natureza. As núpcias são o
contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta,
masculino-feminino, homem-animal etc. (DELEUZE, 1998, p.10).
Esse processo da criação artística dos heterônimos de Fernando Pessoa está
ligado, de certa forma, a questão do pensar colocada por Deleuze, no qual “pensar é criar
conceitos que possam produzir uma violenta onda de forças que nos faça refletir” (Oliveira;
Souza; Silva, 2009, p.33 apud Vasconcellos, 2007). Ou seja, criar uma obra de arte é antes de
tudo fazer o novo por meio dos processos subjetivos, no qual também está relacionado
diretamente com o social, é transcender as regras, como na citação acima “questão-resposta,
masculino-feminino”. Fernando Pessoa, portanto, com as profundas reflexões sobre a
existência, Deus, natureza, amor, morte, suas temáticas principais, passa por o processo do
devir, da criação artística extremamente inovadora de seus personagens fictícios, e ao mesmo
tempo é uma invenção real do seu inconsciente, ou seja, da sua fantasia.
Esta “tendência para criar em torno de (de si) um outro mundo, igual a este,
mas com outra gente”, diz Fernando Pessoa “que nunca (lhe) saiu da
imaginação”. Concedamos-lhe a palavra: “Ocorria-me um dito de espírito,
absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem
suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontâneamente, como sendo de
certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja
figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E
assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram,
mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo.
Repito: oiço, sinto, vejo...E tenho saudades deles.” (SIMÕES, 1973, p. 167,
apud PESSOA).
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Nessa explicação do poeta, percebe-se que esses amigos que nunca e sempre
existiram, dos quais Pessoa se cercou, sentindo, ouvindo e vendo, representavam um papel de
suma relevância em sua vida de artista/poeta. Foi por meio de seus heterônimos que Fernando
Pessoa revelou muito de si próprio, de sua subjetividade, ou melhor, de suas subjetividades,
pois certamente sua obra além de singular (única), foi também plural. Seus deviresheterônimos foram seus intérpretes, o que nos permitiu nos aproximarmos mais de seus Eus,
de seus pensamentos, de seus devires de existência. E segundo Simões (1973), no qual relata
os discursos do próprio Fernando Pessoa: “Seja como for, a origem mental dos meus
heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a
simulação”.
Como foi dito antes, o autor Simões (1973) fazer referência a Pessoa e sua história
como um drama. Mas o que seria esse drama? E por que o autor se refere dessa forma ao
abordar a vida do poeta? Para o autor, “toda a existência humana pode ser encarada como um
acontecimento dramático” (p. 168). No entanto, Simões revela que não é nesse sentido que ele
se refere a Fernando Pessoa, mas no sentido de que o poeta era um conjunto de indivíduos, ou
seja, não como uma existência individual, e sim, que correspondia um papel e assim sendo,
para o autor o jogo de todos esses indivíduos ou personagens constituiria um drama: ora
Ricardo Reis, ora Álvaro de Campos, ora Alberto Caeiro e o próprio Fernando Pessoa, pois
ele também realizava um papel nesse drama que ele era igualmente como nas definições de
Deleuze sobre os devires e as multiplicidades do ser, da existência. Afinal, somos as nossas
relações e é por meio delas que nos tornamos o que somos e diante disso também estamos em
constantes mudanças e transformações. Deleuze (1998), quando escreve sobre devir afirma:
“A questão o que você está se tornando? É particularmente estúpida. Pois à medida que
alguém se torna muda tanto quanto ele próprio”. (p.10).
Quer dizer: Fernando Pessoa assemelhava-se a uma pessoa colectiva, como
se diz em direito comercial, de personalidade distinta das personalidades dos
seus associados, embora todos eles fossem sua própria personalidade.
Fernando Pessoa era simultâneamente o palco – o lugar cênico – em que se
desenrolava o drama entre as personalidades-desdobramentos-dele-próprio e
o criador, actor e encenador do drama que em si mesmo se desenrolava.
(SIMÕES, 1973, p.168-169).
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Mas como alguém pode ser ele e outros ao mesmo tempo???? Foi essa a façanha
que o poeta teve e realizou muito bem, durante sua vida/obra de arte. Como afirma Simões
(1973) se um dramaturgo pode escrever seus personagens e dar-lhes vida, com sentimentos,
afetos, sensações, por que não um poeta não posso fazer o mesmo, ou melhor, por que não um
poeta que fala sobre as vozes de vários outros poetas com sentimentos, idéias, afetos,
sensações no mesmo poeta de formas particulares e distintas entre si? Sim, foi essa idéia
genial que Fernando Pessoa teve e realizou! “Cada um dos nomes de que Fernando Pessoa se
serviu delimita um conteúdo psicológico particular”. (SIMÕES, 1973, p. 169).
Por isso Fernando Pessoa pode dizer, referindo-se aos seus vários
heterônimos: “... pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização
dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da
música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não
dou nem a mim nem à vida”. Isto é: tal como faria um dramaturgo, Fernando
Pessoa, quando se exprime em nome de Alberto Caeiro, fá-lo como se
estivesse a fazer falar uma personagem caracterizada por uma completa
ausência de sentido dramático da vida; quando se exprime em nome de
Ricardo Reis, fá-lo como se estivesse a fazer falar uma personagem
caracterizada por um grande amor das formas lapidares e perfeitas; e quando
se exprime em nome de Álvaro de Campos fá-lo como se estivesse a fazer
falar caracterizada por uma força de emoção avassaladora. (SIMÕES, 1973.
p. 169).
No entanto, diferentemente de um dramaturgo, que pensa nas características dos
personagens e dá sentido à peça por meio da interação de todos eles, para que seja elaborada
enfim, o drama, a obra de arte, para o poeta Fernando Pessoa não basta disseminar
individualmente para seus vários personagens/devires, aquilo que ele pensa, sente ou imagina
simplesmente, ele “precisa de saber ser diferente daquilo que ele próprio é exactamente
quando é preciso ser-se aquilo que de facto se é.” (Simões, 1973, p.170).
No que tange às suas criações heterônimas, Fernando Pessoa destina uma carta a
seu amigo Mário de Sá-Carneiro, no qual o poeta tentou inventar um poeta bucólico, de
espécie complicada, entretanto, nada conseguiu. E foi então, segundo relatos seus, quando
tivera desistido de tentar criá-lo, que repentinamente, começou a escrever e não parou, dando
um total de:
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[...] trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não
conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter
outro assim. Abri com o título O Guardador de Rebanhos. E o que se viu foi
o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de
Alberto Caeiro. (SIMÕES, 1973, p.172, apud PESSOA).
Esta confidencia do poeta nos mostra a gênese do seu processo de criação, sendo,
portanto, algo de muito valor para entender a arte literária de Pessoa. São dele as palavras que
nos diz que sua tentativa de imaginar uma nova personalidade foi em vão e somente
aconteceu quando surgiu de forma natural, ou seja, partiu do próprio desdobramento da sua
subjetividade. “A poesia não se imagina, não se inventa, não se compõe – impôe-se-nos.
Alberto Caeiro impôs-se a Fernando Pessoa.” (Simões, 1973, p. 172).
Assim como surgiu ao poeta seu devir-heterônimo Alberto Caeiro, surgiram
também tantos outros, uns mais conhecidos, já citados acima (Ricardo Reis, Álvaro de
Campos) e seus mais, desde a idade da terna infância. O que Fernando Pessoa fez foi notar a
sensibilidade que tinha e as catalogar, dando vida, história e personalidade. Como Simões
(1973) traduziu, o que o poeta aflorou em si foi a “utilização da sensibilidade pela
inteligência”, ou seja, segundo Fernando Pessoa isso se dá de três maneiras: processo clássico
(suprimir dos sentimentos tudo o que é individual, mostrando o que é universal); processo
romântico (passar sensação nítida e que seja aceita como uma coisa sensível pelo leitor);
processo metafísico (dar a cada emoção um prolongamento metafísico ou racional).
Um exemplo disso dito pelo próprio poeta, que nos ensina a fazer arte literária,
que criou seu modo de escrever e passar seus tantos poemas, a nós, leitores:
Suponhamos que tenho uma aversão íntima pela cor verde, e que quero
transformar essa aversão, que é uma sensação, em expressão artística. Pelo
processo clássico, procederei da seguinte maneira: (1) Lembrar-me-ei que a
aversão pela cor verde é puramente individual, que, portanto, a não posso
transmitir a outrem, tal qual é; (2) deduzirei que, assim como tenho aversão
pela cor verde, outros terão aversão por outras cores; (3) traduzirei a minha
aversão pelo verde em aversão por “certa cor”, e cada um que leia verá na
aversão assim traduzida a cor particular com que ele tem aversão. Pelo
processo romântico, buscarei pôr tal horror nas frases com que exprimo o
meu horror pelo verde que o leitor fique presa da expressão do horror,
esquecendo precisamente em que se fundamenta [...] Pelo terceiro processo,
porei nitidamente a minha aversão pelo verde, e acrescentarei, por exemplo,
“é a cor das coisas nitidamente vivas que hão-de tão depressa morrer”. O
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leitor, embora não colabore comigo na minha aversão pelo verde,
compreenderá que se odeie o verde por aquela razão. (SIMÕES, 1973,
p.173-174, apud PESSOA).
A seguir, têm-se o poema criado pelo poeta por meio de sua teorização sobre a
criação da escrita literária, Simões (1973, p.174-175, apud Pessoa).
Há uma cor que me persegue e que eu odeio,
Há uma cor que se insinua no meu medo.
Porque é que as cores têm força
De persistir na nossa alma,
Como Fantasmas?
Há uma cor que me persegue e hora a hora
A sua cor se torna a cor que é a minha alma.
O verde! O horror do verde!
A opressão angustiosa até ao estômago,
A náusea de todo o universo na garganta
Só por causa do verde,
Só porque o verde me tolda a vista,
E a própria luz é verde, um relâmpago parado de verde...
Odeio o verde.
O verde é a cor das coisas jovens
- Campos, esperanças, E as coisas jovens hão-de todas morrer.
O verde é o prenúncio da velhice.
Porque toda a mocidade é o prenúncio da velhice.
Uma cor me persegue na lembrança,
E, qual se fora um ente, me submete
A sua permanência.
Quanto pode um pedaço sobreposto
Pela luz à matéria escura encher-me
De tédio ao amplo mundo!
Esse exemplo nos mostra com clareza a constituição de seus principais
heterônimos, com o clássico Ricardo Reis, o romântico Álvaro de Campos e o metafísico
Alberto Caeiro. “O desdobramento de Pessoa pelos seus vários fantasmas fez-se sobre uma
base que assenta até certo ponto numa concepção tripartida da arte: clássica, romântica e
metafísica.” (Simões, 1973, p.175).
Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades
20 a 22 de outubro de 2010 – Universidade Estadual de Londrina.
ISBN: 978-85-7846-101-0
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Em síntese, o poeta cria uma espécie de teorização da arte literária, que é
extremamente particular e nova, e coloca em prática em seus devires existenciais, na criação
de seus personagens Pessoas, no qual, segundo o poeta são seus amigos, sendo que cada um
tem sua história de vida e mesmo o próprio Fernando Pessoa confessa não saber quem são
seus heterônimos, somente sabe que eles existem.
“Olhe Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números?
Tomemos qualquer número – 34, por exemplo. Para além dele temos
35,36,37,38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja
um número maior...”
“Mas isso são só números”, protestou o meu mestre Caeiro.
E depois acresccentou, olhando-me com uma formidável infância:
“O que é o 34 na Realidade?”.
Em: Poemas Completos de Alberto Caeiro, de Álvaro de Campos: Notas
para a recordação do meu mestre Caeiro, p. 180.
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