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Edição eletrônica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca do ILC/UFPA-Belém-PA
Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia
(2.: 2009: Belém, PA)
Anais [do] II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia
[recurso eletrônico] / Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na
Amazônia ; organização, Myriam Crestian Chaves da Cunha, Jorge Domingues Lopes. ––
Belém: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA, 2010.
3v. : il.
Conteúdo: v. 1, 2 e 3 – Línguas e Literaturas – Diversidade e Adversidades na
América Latina.
Modo de acesso: Word Wide Web: <http://www.ufpa.br/ciella/>
Congresso realizado na Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto
da Universidade Federal do Pará, no período de 6 a 8 de abril de 2009.
ISSN (aguardando número)
1. Lingüística – Discursos, ensaios e conferências. 2. Literatura – Discursos, ensaios e
conferências. 3. Estudos Culturais – Discursos, ensaios e conferências. I. Cunha, Myriam
Crestian Chaves da (Org.). II. Lopes, Jorge Domingues, (Org.). III. Título.
I. Título.
CDD-20.ed. 410
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
Carlos Edilson de Almeida Maneschy
Reitor
Horácio Schneider
Vice-Reitor
Marlene Rodrigues Medeiros Freitas
Pró-Reitora de Ensino de Graduação
Emmanuel Zagury Tourinho
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Fernando Arthur de Freitas Neves
Pró-Reitor de Extensão
Edson Ortiz de Matos
Pró-Reitor de Administração
João Cauby de Almeida Júnior
Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal
Erick Nelo Pedreira
Pró-Reitor de Planejamento
Flávio Sidrim Nassar
Pró-Reitor de Relações Internacionais
INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO
Luiz Roberto Vieira de Jesus
Diretor Geral
Rosa Maria de Sousa Brasil
Diretora Adjunta
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Sílvio Augusto de Oliveira Holanda
Coordenador
Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira
Vice-Coordenadora
COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO
Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes
Presidente da comissão organizadora
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Myriam Crestian Cunha
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Carmen Reis Rodrigues
Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Gessiane Lobato Picanço
Bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (FAPESPA/CNPq),
afiliada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Dra. Valéria Augusti
Bolsista de Desenvolvimento Científico Regional (FAPESPA/CNPq),
afiliada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS
Myriam Crestian Cunha
Jorge Domingues Lopes
Secretaria do PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Eduardo Antonio Ribeiro de Brito (Secretário)
Amanda Faustino de Pinho (Bolsista)
UFPA / Instituto de Letras e Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Letras
Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto
Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá
CEP 66.075-900, Belém - PA
Fone-Fax: (91) 3201-7499
E-mail: [email protected]
Site: www.ufpa.br/mletras
Apresentação
O
Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários
na Amazônia (CIELLA) é um evento bianual que resultou do
bom desenvolvimento e projeção de um tradicional encontro
intitulado Jornada de Estudos Linguísticos e Literários (JELL), promovido
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do
Pará (UFPA) durante 10 anos consecutivos.
O II CIELLA tem como tema principal “Línguas e Literaturas: diversidade
e adversidades na América latina”. O objetivo do encontro é integrar
os pesquisadores da área de estudos linguísticos, literários e culturais
implicados na discussão de problemas característicos do contexto latinoamericano e na busca de soluções diferenciadas, oportunizando o diálogo
com os demais atores sociais envolvidos, de modo a favorecer a elaboração
de propostas político-educacionais diversificadas.
Como evento acadêmico, o II CIELLA volta-se para professores universitários,
pesquisadores, estudantes de Graduação e Pós-Graduação de instituições
locais, nacionais e internacionais. Assinalamos que o evento caracterizase também por estabelecer um diálogo com profissionais e gestores
interessados nas repercussões econômicas, políticas e sócio-culturais
dessas pesquisas. Além disso, abre-se, de forma pioneira, na Região Norte,
para estudantes de Ensino Médio, participantes do Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica Júnior da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Pará.
Essa dinâmica, congregando vários atores sociais, pretende estabelecer
intercâmbio efetivo entre a academia e as comunidades envolvidas,
garantindo maior circulação dos resultados de pesquisas.
Comissão Organizadora do II CIELLA
© 2010 Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA
A reprodução parcial ou total desta obra é permitida, desde que a fonte seja citada.
COMISSÃO CIENTÍFICA
Abdelhak Razky, UFPA
Ana Carla dos Santos Bruno, INPA
Andrea Ciacchi, UFPB
Christophe Golder, UFPA
Daniel dos Santos Fernandes, IDEPA / Faculdade Ipiranga
Germana Maria Araújo Sales, UFPA
Heraldo Maués, UFPA
Joel Cardoso da Silva, UFPA
José Carlos Chaves da Cunha, UFPA
José Carlos Paes de Almeida Filho, UnB
Lindinalva Messias do Nascimento Chaves, UFAC
Luís Heleno Montoril del Castilo, UFPA
Maria Aparecida Lopes Rossi, UNITAU
Maria do Socorro Galvão Simões, UFPA
Maria Risolêta da Silva Julião, UFPA
Mário César Leite, UFMT
Marcello Moreira, UESB
Marília de N. de Oliveira Ferreira, UFPA
Marilúcia Barros de Oliveira, UFPA
Marli Tereza Furtado, UFPA
Sidney da Silva Facundes, UFPA
Sílvio Augusto de Oliveira Holanda, UFPA
Simone Cristina Mendonça de Souza, UF de Viçosa
Thomas Massao Fairchild, UFPA
COMISSÃO DE APOIO
Coordenação: Thayana Albuquerque.
Adriana Oliveira, Adrielson Barbosa, Alex Moreira, Alice Oliveira, Aline Silva, Aline Souza, Ana Maria
de Jesus, Ana Paula Silva, Anny Linhares, Brenda Lima, Bruna Pimentel, Carla Guedes, Crystian Alfaia,
Daniele Chaves, Edimara Santos, Eduardo Lopes, Elma Lima, Eveline Nascimento, Fabiana Silva, Gézika
Ferreira, Glaciane Serrão, Jonatas Silva, Josemare da Silva, Joyce Costa, Jucineide Ribeiro, Kelly Souza,
Layse Oliveira, Maria Elisabete Blanco, Maria Iracema Lima, Marla de Abreu, Martha Luz, Maxwell Maciel,
Mayara Rocque, Michela Garcia, Natália Magno, Nathalia Carvalho, Nilsineia Simões, Ordilene Souza,
Patrícia Martins, Patrick Pimenta, Paulo Alberto dos Santos, Phillippe Souza, Priscila Castro, Rafaela
Margalho, Raicya Coutinho,Samara Queiroz, Sara Costa, Shirlene Ribeiro, Shirley Silva, Tayana Barbosa,
Thiago Nascimento, Thiago Souza, Wladimilson Mota.
WEBMASTER
Samuel Marques Campos ([email protected])
PROJETO GRÁFICO, EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA
Jorge Domingues Lopes ([email protected])
Todas as informações contidas e apresentadas nos artigos deste livro são de inteira responsabilidade de
seus respectivos autores, bem como as opiniões neles expressas, que não refletem necessariamente as
do Programa de Pós-Graduação em Letras ou da Comissão Organizadora do II CIELLA.
Sumário
865
Violência e alteridade em A hora e vez de Augusto Matraga
Marcellus da Silva VITAL
871
Paisagem e literatura em Mia Couto: O viés da identidade
Márcia Manir Miguel FEITOSA
879
Análise do aspecto (inter) cultural em um manual de português brasileiro
para estrangeiros
Marcos dos Reis BATISTA
893
Planejamento e execução de atividades interculturais na aula de português
para estrangeiros
Marcos dos Reis BATISTA
903
Às margens do jornal, às margens do Diário: Forma literária e processo social em
Triste Fim de Policarpo Quaresma
Marcos Vinícius SCHEFFEL
917De instrutor a educador: Uma abordagem multicultural
Margarete de Oliveira Santos NOGUEIRA
Isabel Patrícia Mercado de FAUSTINO
923
Selecionar livros didáticos para uso em escolas de idiomas: Uma tarefa nada fácil
Maria Amélia Carvalho FONSECA
933
A construção de sentido na interação entre pessoas de competências
comunicativas distintas: Oralidade x escrita
Maria da Guia Taveiro SILVA
943
A questão dos gêneros híbridos: Considerações a partir de uma análise de casos
em gêneros promocionais
Maria Lourdilene VIEIRA
957
Jornal Gazeta Official e a (in)formação do literário na Belém do século XIX
Maria Lucilena Gonzaga COSTA
969
Julio Cortázar: Um antropófago latino-americano?
Maria Luiza Teixeira BATISTA
977
As construções do sentido de violência nas práticas culturais do
Sertão Central do Ceará
Maria Mônica Ramos de MELO
Claudiana Nogueira de ALENCAR
983
Marcas de ironia no Jornal de Tímon, de João Francisco Lisboa
Maria Rita SANTOS
993
O ensino de língua inglesa: A leitura de gêneros textuais como proposta
de letramento
Marília dos Santos BORBA
1003
A construção de ideologias machistas na prática cultural do forró
Marília Pinheiro RIBEIRO
Claudiana Nogueira de ALENCAR
1013
Oralidade e escrita na poesia de Manoel de Barros
Marinei ALMEIDA
1023
A representação da pobreza social na ficção brasileira do Oiapoque ao Chuí
Marisa de Assis SOUZA
1035Dalcídio Jurandir: A Amazônia na construção de um projeto estético-ideológico
Marlí Tereza Furtado
1043
Polifonia no hipertexto: Uma análise discursiva
Naira Augusta Pedroso de SOUSA
1057
A memória e tradição amazônica na composição das narrativas do
acervo IFNOPAP
Natasha Queiroz de ALMEIDA
1067
As práticas voltadas para a motivação e autonomia dos aprendentes na leitura
e escrita em língua materna
Nelma do Socorro Santana QUEIROZ
1087
Educação global através do ensino de línguas
Nilton HITOTUZI
1103
Direitos humanos na contemporaneidade
Paolo TARGIONI
1111
Monteiro Lobato: Um escritor a ser redescoberto na sala de aula
Patrícia Aparecida Beraldo ROMANO
1121
As folhas literárias do Jornal do Pará (1862-1878)
Patrícia Carvalho MARTINS
Germana Maria Araújo SALES
1131
A hesitação e a construção de imagem no gênero entrevista
Patrícia de Castro JOUBERT
1139
Oralidade e escrita em contextos diversos
Paula de Carvalho FERREIRA
1153
Chico Buarque de Hollanda: A palavra e o poeta
Paula Cristhiane da Silva OLIVEIRA
1165
O processo argumentativo no editorial
Paulo da Silva LIMA
1173
O próprio e o alheio em El Delirio de Turing: Realismo mágico e ficção cyberpunk
no romance de Edmundo Paz Soldán
Rodolfo Rorato LONDERO
1187
Poesia brasileira e música atonal
Rodrigo de Albuquerque MARQUES
1194
A recepção crítica em Darandina e Os cimos de Primeiras Estórias
Rosalina Albuquerque HENRIQUE
Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA
1203
Guimarães Rosa e a crítica italiana: o caso de Ettore Finazzi-Agrò
Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA
1211
Arthur Azevedo e os seus Contos Ligeiros: Cotidiano e (in)fidelidades na
Belle Époque fluminense
Tatiana Oliveira SICILIANO
1222
O ensino de língua portuguesa e o desenvolvimento de competências
e habilidades
Teresa Cristina NASCIMENTO
1233
E foi quando Shakespeare caiu no boi-bumbá: No limiar entre arte
e cultura popular
Thales Branche Paes de MENDONÇA
1245
A forma e o papel das revistas na produção de sentidos da escolarização
dos role-playing games (rpgs)
Thomas Massao FAIRCHILD
1259
As intercessões entre literatura e cinema a partir de uma leitura do romance
Em câmera lenta
Veridiana Valente PINHEIRO
Tânia Sarmento PANTOJA
1265
Da página de papel ao papel higiênico: Textos fecais na obra de Rubem Fonseca
e Patrícia Melo
Vinícius Carvalho PEREIRA
1277
Livros didáticos de português: Instrumentos de naturalização ou
mudança linguística?
Yana Liss Soares GOMES
1289
SOBRE O II CIELLA
Ir para o Sumário
VIOLÊNCIA E ALTERIDADE EM
A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA
Marcellus da Silva VITAL
(Mestrando em Letras — Universidade Federal do Pará)
Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira HOLANDA
(Orientador — Universidade Federal do Pará)
RESUMO: A violência é um elemento que está — intrinsecamente relacionado ao universo rosiano, local em
que o “direito codificado”, quase sempre, cede espaço para os códigos e para as leis instauradas por aqueles que
foram empossados pelo prestígio social, ou pelo uso da “violência legalizada”, ou ainda, pelo cumprimento de
honrados acordos interpessoais: coronéis, jagunços, bandidos etc. Amparado pela influência social — herança
oligárquica deixada por seu pai —, o coronel Nhô Augusto, personagem central de “A hora e vez de Augusto
Matraga”, nono e último conto de Sagarana (1946), faz da violência o seu instrumento de materialização dos
desejos e, também, seu elemento mantenedor do respeito e da aceitação social. Seu comportamento arbitrário
— que não respeita sentimentos e muito menos importa-se com posicionamentos éticos —, torna-se uma
constante, e não um desvio de regra, em uma região onde a conduta violenta é quem dita as regras a serem
seguidas. Portanto, analisar os motivos legitimadores da violência no sertão de “A hora e vez de Augusto
Matraga”, é o objetivo do estudo proposto, tendo como embasamento teórico, principalmente, a análise crítica
desse conto de Guimarães Rosa, realizada pelo antropólogo Roberto DaMatta.
PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa, violência, “A hora e vez de Augusto Matraga”.
ABSTRACT: The violence is an element that intrinsically is related to the rosiano universe, local where the
“codified right”, almost always, yields space for the codes and the restored laws by that they had been installed
by social prestige, or for the use of the “legalized violence”, or still, for the fulfilment of honored interpersonal
agreements: colonels, “jagunços”, outlaws etc. Supported for the social influence — oligarchical inheritance
left by its father —, August Nhô colonel, central personage of “A hora e vez de Augusto Matraga”, nineth and
last story of Sagarana (1946), takes of the violence as instrument of materialization of the desires and, also, its
mantenedor element of the respect and the social acceptance. Its arbitrary behavior — that it does not respect
feelings much less imports with ethical positionings —, a constant becomes, and not a rule shunting line, in a
region where the violent behavior is who said the rules to be followed. Therefore, to analyze the reasons of
the violence in the hinterland of “A hora e vez de Augusto Matraga”, is the objective of the considered study,
having as theoretical basement, mainly, the critical analysis of this story of Guimarães Rosa carried through
for the anthropologist Robert DaMatta.
KEY WORDS: Guimarães Rosa, violence, “A hora e vez de Augusto Matraga”.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Dos nove contos pertencentes ao livro Sagarana, — cuja primeira edição data de 1946 —, o
último conto, intitulado “A hora e vez de Augusto Matraga”, obteve uma recepção crítica maior do
que a dos demais contos contidos na primeira incursão de Guimarães Rosa no campo literário.
Neste conto, o criador de “Recado do Morro” nos apresenta a trajetória de encontro
pessoal e religioso do personagem Augusto Esteves, homem que, diante de uma condição social
privilegiada, apóia-se na força do poder e na conveniência das influências para fazer valer seus
caprichos. Em determinado momento de sua vida, vem a perder tudo o que possuía. Por vingança
de alguns desafetos, vê-se vítima de um brutal atentado, chegando a ser dado como morto após
cair de uma ribanceira.
Consegue sobreviver e é acolhido por um casal que morava em um humilde rancho. Augusto
Esteves recebe os tratamentos necessários, conseguindo recobrar sua consciência. Após experimentar
tamanha provação, decide expurgar-se. Torna-se um penitente e renuncia a tudo o que lhe encaminhava
ao prazer. Por fim, sacrificando-se, vale-se da violência para salvar a vida de uma pessoa inocente.
2. Violência e Alteridade
A violência é um elemento que está inseparavelmente associado ao sertão rosiano. Local em
que o “direito codificado” não tem valia, o território recriado pelo escritor é propício para a circulação
daqueles que tendem a respeitar somente os códigos de honra criados pelos seus pares: jagunços,
coronéis, bandidos, capangas, boiadeiros, criminosos etc. Portanto, certos personagens que povoam
as narrativas de Guimarães Rosa dão aplicabilidade às suas próprias leis e, quase sempre, lançam mão
da coação para materializar suas vontades.
No estudo intitulado “Os vastos espaços”, o professor Paulo Rónai aborda “o cenário e o
substrato social” formadores do universo rosiano, destacando o comportamento violento e arbitrário
que impera neste cenário
Nos intervalos das fazendas ocultam-se arraiais pobres, de reduzida povoação [...] sem quaisquer recursos
de organização social. A lei do mais forte — a única existente — é exercida na fazenda sob formas
paternalísticas pelo dono, assistido, para o que der e vier, dos rifles certeiros de alguns capangas; nas vilas,
pelos valentões do lugar, detestados e temidos; nas escassas cidadezinhas, pela polícia local, que para fazerse respeitar, tem de pedir emprestados os métodos da arbitrariedade. (RÓNAI, 1968, p. XXXIV)
Walnice Galvão, em seu livro, As Formas do Falso (1972), analisa a condição do sertão enquanto
local da violência e afirma que “destituído de formas organizatórias e institucionais que regulamentem
suas relações [...], os conflitos, por mínimos que sejam, só podem ser resolvidos mediante a violência”
(GALVÃO, 1972, p. 39).
Capaz de interferir na vida e na formação de personagens residentes no sertão, a violência
transita pelos contos presentes em Sagarana como um instrumento manuseado pela vontade dos
homens e, por vezes, guiada pelas incertezas do destino.
Filho do Coronel Afonsão Esteves, Augusto Esteves demonstra ser um habitual utilizador da
violência como mecanismo capaz de impor o respeito diante do povo do arraial do Murici. Amparado
pelo poder que transgride as normas legais da lei, o filho de Afonso Esteves é uma cria do chamado
Coronelismo. Tendência política praticada no período histórico que se estendeu entre as décadas
de 30 e 40 do século XX, em que o controle do poder político-social permaneceu sob a tutela de
coronéis rurais, principalmente na região do sertão brasileiro.
Uma vez empossado do título de “Nhô” (“senhor”) — cujo reconhecimento social faz-se
necessário para sua valia —, Augusto Esteves passa a ocupar uma posição de prestígio na formação
do cenário da sociedade o qual está inserido. Como forma de salvaguardar posição social tão visada,
Nhô Augusto, das Pindaíbas, tem consigo um grupo de cacundeiros armados, capangas mantenedores
do reconhecimento e do prestígio de seu chefe.
866
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Os cacundeiros pertencem à classe dos homens livres, porém tornam-se dependentes do
senhor que os acolheu, pois nasceram à margem de tudo, desprovidos de qualquer pertencimento
social. Walnice Galvão afirma que este homem “livre”, enquadrado em uma plebe rural, é
[i]nconsciente de seu destino, e por isso mesmo te[m] seu destino determinado por outrem. Sem nada
a defender, e por isso mesmo usado para defender causas alheias. Avulso de móvel, e por isso mesmo
chefiado autoritariamente e fixado em sua posição de instrumento. (GALVÃO, 1972, p. 42)
Contudo, a relação entre Nhô Augusto e seus capangas é extremamente delicada, já que a
prestação de serviços só existe enquanto aquele que comanda mantiver os acordos monetários selados
com os que o seguem. Logo, nessa relação inexistem valores como honra, respeito e muito menos a
admiração legítima, pois trata-se de uma relação contratual, meramente financeira. Na ocasião em que
Nhô Augusto se vê desprovido de poder e prestígio — “com dívidas enormes, política do lado que perde,
falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga” (ROSA, 2006, p. 346) —, todos
os seus capangas voltam as costas para ele. Nesse instante passam a pertencer ao grupo de seguidores
do fazendeiro Major Consilva, desafeto declarado da família Esteves e principal responsável pela queda
do filho do Coronel Afonsão Esteves. A exceção cabe ao personagem Quim Recadeiro, o único dos
capangas que não se voltou contra Nhô Augusto no momento em que este precisou de ajuda.
Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O Major Consilva tinha ajustado, um e mais um, os quatro,
para seus capangas, pagando bem. Não vinham, mesmo. O mais merecido, o cabeça, até mandara dizer,
faltando ao respeito: — Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro! ... P’ra ele pagar o que está nos
devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu Major
disse que não quer. [...] Onde é que eles estão? — Indo de mudados; p’ra a chácara do Major... (ROSA,
2006, p. 350)
Homem de temperamento explosivo, Nhô Augusto aparenta não se importar com o
sentimento das pessoas, fazendo da relação com o Outro um mero instrumento para seu entretenimento.
Lido sob a ótica do pensamento dialógico1 de Martin Buber (1878-1965) — centrado no sentido do
humano e na sua relação com outro e com o mundo —, o não-reconhecimento do Outro enquanto
Ser será a tônica do primeiro momento do conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, quando se dá
o declínio do, até então, poderoso proprietário de terras Nhô Augusto.
O comportamento arbitrário de Augusto Esteves não é de se causar estranheza. A formação
de sua personalidade deu-se em um ambiente impregnado por valores patriarcais e religiosos e pautado
por princípios morais excludentes, tratados como corretos no meio social em que o personagem se
criou. Valores que podem ter corroborado para que o filho de um coronel decidisse se comportar à
maneira dos coronéis.
No início do conto, ao comprar uma jovem em um insólito leilão paroquial, Nhô Augusto
não apenas prova para todos os presentes no evento que não há como medir forças com ele, como,
também, faz desse momento um divertimento para si e um tormento para outros “convidados”. A
aquisição da moça batizada de Tomázia — e apelidada de Sariema por possuir pescoço e pernas muito
finas — não passa de um capricho do Coronel. Do momento do arremate até o breve instante em que
estiveram juntos, a jovem foi humilhada até ser abandonada aos prantos. Segundo Esteves, ela era “só
osso”, “peixe cozido sem tempero”, “uma sombração”, “um frango-d’água”.
Um “capiau de cara romântica”, apaixonado pela jovem Tomázia, também recebeu sua dose
de humilhação durante o inusitado leilão. Não possuindo dinheiro suficiente para cobrir o lance de
cinquenta mil-reis de Nhô Augusto, restou ao capiau aproveitar-se de um momento de confusão para
tentar levar a moça consigo, todavia
Nhô Augusto separou-os, com uma pranchada de mão: — Não vai, não! E, atrás, deram apoio os quatro
guarda-costas: Tem areia! Tem areia! Não vai, não! [...] O capiauzinho ficou mais amarelo. A Sariema
O dialógico é para Buber a forma explicativa do fenômeno do inter-humano. Inter-humano implica a presença ao evento
de encontro mútuo. Presença significa presentificar e ser presentificado. Reciprocidade é a marca definitiva da atualização
do fenômeno da relação. O “entre” é assim considerado como a categoria ontológica onde é possível a aceitação e a
confirmação ontológica dos dois pólos envolvidos no evento da relação. (ZUBEN, 2006, p. 34)
1
867
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
começou a querer chorar. Mas Nhô Augusto, rompente, alargou no tal três pescoções: — Toma! Toma!
E toma! ... Está querendo? [...] Foi o capiauzinho apanhando, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô
Augusto (ROSA, 2006, p. 343)
Não diferente é o tratamento dispensado à sua esposa Dionóra e à sua filha Mimita. Cansada
do descaso e do comportamento prepotente do marido — que passa mais tempo na companhia de
mulheres à toa e ao lado de seus capangas —, cogita-se em seu coração a possibilidade de fugir com
outro homem para a região do Morro Azul. Resoluto, Ovídio Moura tenta convencê-la a abandonar o
marido para viver vida nova ao seu lado. Certo de que está fazendo o melhor para a pequena Mimita
e sua mãe, Ovídio manda avisar que “Dionóra não quer viver mais com ele [Augusto Esteves], e que
ela de agora por diante vai viver comigo, [...] com a benção de Deus!” (ROSA, 2006, p. 348).
Além dessa notícia, Quim Recadeiro informa que os capangas do chefe agora trabalhavam
para o Major Consilva. Mesmo destituído de todo seu poder, Nhô Augusto não reconhece sua perda
de prestígio social e parte para a chácara do Major Consilva com o intuito de vingar sua honra
maculada. O temor e o respeito alheio não mais existem, pois agora o Coronel Augusto Esteves
é nivelado por baixo pelos inimigos e pela sociedade. Momento propício para que a violência seja
usada contra aquele que sempre fez dela sua lei, “estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha
dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por
obrigação” (ROSA, 2006, p. 350).
Recepcionado à base do porrete, Augusto Esteves logo é dominado pelos homens do Major.
Dentre eles, cheio de ódio, o “capiauzinho mongo” apaixonado pela Sariema. Sob a ordem do Major
Consilva, Esteves é levado para o rancho do Barranco, longe da chácara, e deve ser marcado a ferro
antes de ser executado. Os pertences da família Esteves agora agregam-se às posses do Major. O
poderoso Nhô Augusto, das Pindaíbas, já não existe mais. Por méritos violentos — respeitando uma
hierarquia civil que se utiliza de patentes militares —, gradua-se a Coronel o Major. Na realidade social
do Sertão, local em que os personagens estão inseridos, considerar o uso da violência é considerar a
possibilidade da concretização de ambições que, possivelmente, jamais se realizariam por outras vias
“legais”. Para Ettore Finazzi-Agrò, em estudo dedicado à obra rosiana,
Considerar a violência significa, nesse sentido, pensar naquela coisa impensável que torna a força (vis)
domínio sobre o outro, endereçando a potência rumo ao poder, transformando-a em pré-potência (isto é,
“potência sobre” alguém), mudando ou corrompendo aquilo que é pura energia, vontade de fazer, em
atitude violenta, em prática impura de subjugação e de submissão. (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 184)
Completando o ritual de humilhação, Nhô Augusto é marcado a ferro. Para que se lembre do seu
novo lugar nesse “palco de violência”, carregará em sua carne o “triângulo inscrito numa circunferência”.
Símbolo de conotação possessiva, esse sinal é utilizado pelo Major Consilva para identificar seus animais.
Após rolar ribanceira abaixo, Augusto Esteves é dado como morto pelos capangas do Major. Contudo,
sobrevive e é acolhido por um casal de pretos velhos. Rebaixado à condição de nada, Esteves vira
Matraga. Segundo Roberto DaMatta, “[...] quando está investido no papel de Matraga, o homem nada
mais é na estrutura e na ordem social” (DAMATTA, 1997, p. 317).
Enquanto Matraga, Augusto Esteves vê-se diante de uma nova realidade. Inserido num
um espaço social diferente do qual estava habituado, procura afastar-se de tudo o que lhe remeta às
tentações da vida anterior. Vivendo entre o medo e o anonimato, em meio à pobreza, ocupa-se com
trabalhos solidários, apega-se a orações, vive sob o manto da humildade. Processo gradativo que
culmina na recusa consciente das formas de violência — quer seja para com o Outro, quer seja para
consigo —, forma de obtenção do perdão divino e busca do legítimo reconhecimento social. Inicia-se,
então, a preparação para a hora e vez de Augusto Matraga.
A relação com o Outro perde o tom de instrumentalização, transformando objeto em sujeito,
proporcionando ao penitente Matraga a felicidade de perceber a gratidão verdadeira advinda daqueles
que o orbitam. A aceitação social torna-se genuína, fazendo com que Augusto Matraga não queria
retornar para o lugar onde ocupava uma posição de superioridade. Decide permanecer na “zona
intermediária e alternativa que o ‘sertão’ representa na obra de Rosa, como lugar do nem lá nem cá [...]
868
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
equivale ao limem, à margem, ao cangaço: aos universos invertidos onde as alternativas são possibilidades
reais” (DAMATTA, 1997, p. 320-321).
Humanizando-se, Matraga desiste do seu projeto de vingança, que incluía acabar com o
Major Consilva e seus seguidores, honrando a morte do valoroso Quim Recadeiro e resgatando sua
dignidade e poder; além de tirar a vida sua esposa e do seu amante. Contudo, o processo de renúncia
de Matraga não está imune às tentações, que surgem como situações aflitivas tentando seduzi-lo.
Uma provação significativa surge a partir de um convite feito pelo jagunço Joãozinho Bem-Bem.
Convidado a ingressar no bando do renomado jagunço, Matraga reluta e acaba declinando à tão
tentadora convocação
— Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui nesta
grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se está se
escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com
meu povo? Quer vir junto? — Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem...
(ROSA, 2006, p. 372)
Ao dar entrada no bando de Bem-Bem, Matraga poderia reaver tudo o que haviam lhe
tomado. Mais uma vez, valendo-se do poder proveniente da violência e amparado pelo poder do
bando de Joãozinho Bem-Bem, Augusto Esteves alçaria vôos jamais imaginados. Sua recusa denota
não apenas seu comprometimento com os novos princípios ético-religiosos, mas demonstra que o ser
humano pode optar por mecanismos não violentos como solução para seus conflitos.
Mesmo estando inserido em um meio social que, quase sempre, acaba legitimando a
efetivação da violência, Matraga “rompe com ele, abrindo caminho para fora (e não mais para dentro
da sociedade), tornando-se mais e mais individualizado” (DAMATTA, 1997, p. 325). Ao cortar o laço
com sua antiga realidade social, Matraga torna-se indivíduo perante outros indivíduos. Lidar com as
consequências que brotam no caminho por ele escolhido, após receber seu batismo de fogo, torna-se
uma tarefa árdua para o renovado Augusto Esteves.
Ainda assim, é importante frisar que o caminho trilhado possui veredas que retomam vias
anteriormente não escolhidas e caminhos aparentemente já trilhados. Ironicamente, o personagem
central do conto de Rosa é levado ao encontro daquilo que mais tentou se afastar durante seus dias
de penitente: a violência. Acreditando ter findado seu ciclo ao lado de seus salvadores, Matraga decide
partir em busca de novas experiências existenciais. Eis que se depara com Joãozinho Bem-Bem e seus
homens prestes a executar um pobre velho. O mesmo receberá a punição no lugar do filho, que tirou
a vida do jagunço Juruminho, à traição.
Matraga intervém em favor do velho, pedindo para o “mano velho” poupar a vida daquela
pobre criatura. Como a diplomacia e as palavras de apelo não surtiram efeito contra a lei lavrada pelos
jagunços, restou a Augusto Esteves empunhar as armas em defesa do semelhante. Rompendo sua
abnegação, lança mão da violência para reorganizar a ordem instaurada. Desta vez, não em proveito
próprio do Eu, mas buscando preservar o direito de viver do Outro, salvaguardado sua integridade
física. Prova maior de desprendimento pessoal e reconhecimento de que vida de um inocente deve ser
preservada. Como um demônio, Augusto Matraga extermina um a um os sequazes de Bem-Bem, vindo
a falecer juntamente com seu “mano velho” ao término de um honrado duelo de facas. Uma sensação
de paz interior inunda o peito de Matraga, levando-o a crer que havia chegado sua hora e vez
Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue,
e de seu rosto subia um sagaz contentamento. Dai, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora
sussurrado, sumido: — Põe a benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala
com a Dionóra que está tudo em ordem! Depois, morreu. (ROSA, 2006, p. 389)
3. Conclusão
Diante da realidade do Sertão recriado por Guimarães Rosa em suas obras — realidade que
norteia a conduta dos personagens que habitam “A hora e vez de Augusto Matraga” e guia os muitos
personagens que compõem os contos de Sagarana —, nos interessa compreender que a legitimação da
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
violência decorre das múltiplas formas de percepção da ordem que se quer estabelecer. De instrumento
legitimador de poder à tabua de salvação, a violência está presente nesse território ausente da lei instaurada
pelo “direito codificado”. Assim, abre-se espaço para que leis pessoais sejam forjadas para beneficiar os
que detêm o poder, em detrimento dos interesses de uma coletividade social.
Mesmo em face da constante imolação ao qual se entregou o personagem, a relação com
a violência ainda se torna possível, pois a mesma encontra-se em estado de latência, ansiosamente
aguardando a um chamado. Valer-se da violência como forma de suplantar uma violência maior é o
meio encontrado por Matraga para salvaguardar a vida de outrem. Sua atitude derradeira dignifica-o
perante a sociedade e abre possibilidades, inclusive, para a leitura de um possível acolhimento celestial,
mediante o comportamento mais humanizado iniciado após sua derrocada sócio-moral. Contudo
— ainda que em nome de valores morais e religiosos —, valer-se da violência como instrumento
mantenedor da ordem e da paz parece ir de encontro com a idéia de humanização, uma vez que toda
e qualquer forma de violência tende a ferir os direitos humanos.
Portanto, a possibilidade da criação de novos caminhos dentro da estrutura social é uma
realidade possível. Todavia, rompendo com regras pré-estabelecidas, aquele que renuncia enquadrase na condição de “Matraga”, vivendo no limiar da transgressão ou da submissão às leis instauradas
no Sertão. Ao optar pela tentativa de reestruturação do sistema vigente — inclusive reaplicando uso
da violência para tal propósito —, tende-se a reduzir o espaço de ação dos detentores do poder e,
consequentemente, se limpa o campo para a possível entrada da lei e da ordem legalizada. Ao executar
Bem-Bem, Matraga, mesmo que inconscientemente, deixa sua parcela de contribuição para o fim das
leis instauradas na ordem dos jagunços.
Referências
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2006, 152 p.
DAMATTA, Roberto. “Augusto Matraga e a hora da renúncia”. In: Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997, p. 305-334.
FINAZZI-AGRÒ, Ettore. “A força e o abandono”. In: Um lugar do tamanho do mundo. Belo Horizonte:
UFMG, 2001, p. 183-199.
GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1972. 136 p.
RÓNAI, Paulo. “Os vastos espaços”. In: Primeiras estórias. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p. XXIX
– LVII.
ROSA, Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 416 p.
ZUBEN, Newton Aquiles Von. “Eu e Tu, de uma ontologia da relação a uma antropologia do interhumano”. In: Eu e Tu. Paulo: Centauro, 2006, p. 29-51.
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Volume 3
PAISAGEM E LITERATURA EM MIA COUTO:
O VIÉS DA IDENTIDADE
Márcia Manir Miguel FEITOSA
(Universidade Federal do Maranhão)
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo a abordagem da produção em prosa do escritor moçambicano
Mia Couto, mais especificamente os romances Terra sonâmbula, publicado em 1992, e Um rio chamado tempo, uma
casa chamada terra, lançado em 2002, à luz da teoria da percepção da paisagem, em que pese a interrelação entre
espaço geográfico, representação literária e afirmação da identidade. Será dada ênfase ao estudo da categoria
espaço em sua estreita identificação com a percepção, atitudes e valores do meio ambiente a partir de reflexões
desenvolvidas pelo renomado geógrafo chinês Yi-Fu Tuan nas obras Topofilia: um estudo da percepção, atitudes
e valores do meio ambiente e Espaço e lugar: a perspectiva da experiência.
PALAVRAS-CHAVE: percepção; paisagem; espaço; identidade.
ABSTRACT: This work has the objective to approach the production in prose of the mozambican writer
Mia Couto, more specifically the novels Terra sonâmbula, published in 1992, and Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra, published in 2002, by the light of the theory of the perception of the landscape, that shows
the relation between geographic space, literary representation and statement of identity. It will give emphasys
to the study of the space category in its light identification with the perception, attitudes and values of the
environment by reflexions developed by the renowned chinese geographer Yi- Fu Tuan on the masterpieces
Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente and Espaço e lugar: a perspectiva da
experiência.
KEY WORDS: perception; landscape; space; identity.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Desde o período pré-socrático, os estudos em torno da teoria da percepção têm sido palco
de investigação cuidadosa, tendo atingido na modernidade seu apogeu, seja nos campos da Psicologia,
Antropologia, Teoria da Arte, Arquitetura e Geografia. As investigações, na maioria das vezes, têm
se concentrado na interrelação entre as comunidades humanas e seus ambientes, quer sejam naturais,
quer construídos.
Para o filósofo e geógrafo chinês Yi-Fu Tuan, um dos mais destacados estudiosos da
percepção na modernidade, é preciso pensar a geografia humanística na sua composição afetiva, em
outras palavras: é preciso levar em consideração o elo afetivo que une a pessoa ao lugar. Na obra
intitulada Espaço e lugar: a perspectiva da experiência (1983), Tuan fundamenta suas reflexões em torno
de como as pessoas sentem e conhecem o espaço e o lugar sob a perspectiva da experiência, em que
pese o papel da cultura nas aptidões, capacidades e necessidades do homem. Assim, as discussões
sobre a paisagem têm permeado questões sobre a subjetividade, a experiência e o simbolismo que,
interrelacionados, explicitam a cultura e a individualidade.
No âmbito da literatura, o enfoque sobre o estudo da categoria espaço sob o prisma da
teoria da percepção da paisagem só mais recentemente tem sido objeto de pesquisa, haja vista os
trabalhos produzidos pelas geógrafas Lívia de Oliveira e Solange Lima Guimarães. Já no tocante aos
estudos sobre o espaço literário, é digno que destaquemos o conjunto de obras de Gaston Bachelard
que, numa perspectiva filosófica e psicanalítica, tem contribuído para o avanço das especulações em
torno desse assunto.
Entretanto, entre os profissionais das Letras, pouca ainda tem sido a produção a respeito.
Assim, o presente trabalho se propõe a analisar, à luz dessa teoria, a literatura produzida em Moçambique
pelo já consagrado escritor Mia Couto, dada a riqueza e a plurisignificação do espaço vivenciado em seus
romances, mais particularmente em Terra sonâmbula e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.
2. Moçambique: O espaço do conflito
Quando os portugueses chegaram a Moçambique nos fins do século XV, encontraram
sociedades organizadas economicamente e configuradas em torno de uma grande diversidade cultural e
linguística. Detentores de superioridade militar sobre as populações nativas, cujos chefes se imiscuíam
em disputas internas, os colonizadores aproveitaram para ocupar as terras férteis e ricas em minerais,
monopolizando o comércio do marfim, do ouro e das pedras preciosas.
A estudiosa Enilce Albergaria Rocha destaca ainda que, ao se fixarem, os portugueses “iniciaram
o processo de ‘missão civilizadora’ junto aos diferentes grupos étnicos com suas culturas específicas,
introduzindo a cultura ocidental e portuguesa como modelo cultural”. (ROCHA, 2006, p. 44). Tal
atividade missionária promoveu não só a introdução do cristianismo, como novos valores nas culturas
locais, transformando-as e, de certa forma, moldando a mentalidade do povo moçambicano.
Apesar da expansão do domínio português sobre o país ao longo dos séculos XVIII e XIX,
vários grupos étnicos resistiram à colonização e à ideologia da assimilação e permaneceram vivos
com suas tradições e modos de vida que remontam à sociedade feudal, com seus aspectos místicos e
misteriosos.
O início do movimento revolucionário anticolonialista nasce no coração das populações
africanas oprimidas, sufocadas pela implantação do Capitalismo. Assim, em 1962, é criada a Frente
de Libertação de Moçambique, a FRELIMO, representando, a princípio, as aspirações nacionais de
independência por meios pacíficos. Sua base de sustentação eram as massas populares que repudiavam
a exploração de que eram vítimas. Em 25 de setembro de 1964, a FRELIMO, em razão da luta armada
pela libertação nacional, desenvolveu um projeto de nação que denominou de “sociedade nova”, com
vistas à construção de um futuro para Moçambique. Ao lado da luta armada, reforça Enilce Albergaria
Rocha, “se coloca desde 1969 para a FRELIMO, no centro de suas preocupações estratégicas, o
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
amplo investimento no desenvolvimento cultural de Moçambique enquanto fator essencial e mola
propulsora da libertação e da identidade nacional”. (ROCHA, 2006, p. 53).
Finalmente, com a independência em 25 de junho de 1975, teve início um intenso processo
de transformação estrutural do país. Entretanto, em diferentes regiões, continuaram os conflitos de
natureza político-ideológica e, de forma paralela, se intensificavam as tensões externas em torno da
guerra fria ao longo das fronteiras de Moçambique. Os dissidentes do regime que estava se implantando
no país, de tendência socialista, passam a receber apoio dos portugueses despojados do poder, dos
sul-africanos e dos rodesianos, dando início à investida armada em 1976, gerando uma guerra civil
que semeou muitas mortes e desolação pelo país afora. Só em 1992, no “Acordo de Roma”, é que
foi possível a assinatura de paz com o processo de negociação entre os grupos dissidentes. Nesse
contexto desolador da guerra civil, agravaram-se a pobreza, o analfabetismo, as doenças, a orfandade
infantil e o desamparo dos idosos.
O grande fracasso da FRELIMO foi não ter sabido conciliar a valorização das culturas
tradicionais feudais e a política de implementação de uma sociedade socialista, fundada na
modernização com o desenvolvimento científico-tecnológico de raiz ocidental e as tradições culturais
de Moçambique. O romance Terra sonâmbula (1992), de Mia Couto circunscreve-se no contexto do
país pós-independência e levanta uma crítica contundente contra as identidades nacionais excludentes
e coloca em xeque as fronteiras culturais territoriais que isolam indivíduos, famílias e populações. Já
o romance Um rio chamada tempo, uma casa chamada terra, de 2002, se vincula a uma Moçambique pósguerra civil, ansiosa por querer reunir, em seu bojo, o mosaico de vozes de que é constituído o país
na sua origem. Ambos serão analisados, nos capítulos que seguem, sob o viés da teoria da percepção
da paisagem.
3. Terra sonâmbula: A paisagem da desolação
A estrutura do romance Terra sonâmbula é curiosa: duas narrativas de viagem se alternam: os
onze capítulos que narram a luta pela sobrevivência do menino Muidinga e do velho Tuahir e os onze
cadernos, narrados em primeira pessoa, por Kindzu, que se encontra em errância numa Moçambique
destruída pela guerra pós-independência. Sua trajetória parte do abandono de sua aldeia intolerante e
violenta para tornar-se um “naparama” – o justiceiro da dor e defensor dos viventes, sem preconceito
de raça, etnia, língua, aldeia ou região. Sua história é permeada por lendas, mitos e rituais, sonhos dos
sobreviventes espelhados nos idosos, mulheres e crianças.
Na tentativa de preservar a memória moçambicana e a tradição oral do contador de estórias,
Kindzu resvala por uma Moçambique em conflito entre a opulência e a miséria, a ambição e o
desprendimento. Na sua errância pelo país, Kindzu, que procura insistentemente por Gaspar, filho
de Farida, depara-se, ao morrer, com seus cadernos nas mãos de Muidinga que nada mais é do que
o filho desaparecido de sua amada Farida. A surpresa reside quando, no final da obra, quem narra
a morte de Kindzu é o próprio Kindzu, o que comprova que a história construída pelos homens
sobrevive para além da sua matéria.
Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares.
Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo:
Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos.
Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada.
Então, as letras, uma por uma, se vão transformando em páginas de terra. (COUTO, 2006, p. 218)
Quanto a Muidinga e Tuahir, os capítulos têm início no espaço do “machimbombo” (uma
espécie de ônibus), onde estão presentes corpos carbonizados e onde Muidinga encontra os cadernos
de Kindzu. Duas estradas os dois personagens percorrem: a real, transcorrida no machimbombo
queimado e a imaginária, espaço da utopia vivenciada nas linhas escritas por Kindzu: “A lua parece
ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando. Pratinhada, a estrada escurta
a estória que desponta nos cadernos...” (COUTO, 2006, p. 14).
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
O sonho passa a ser o lugar ideal que o homem deve habitar. Bachelard, no livro A poética do
espaço, reforça esse afirmação ao salientar que:
Mesmo quando esses espaços estão para sempre riscados do presente, estranhos a todas as promessas de
futuro, (...). Voltamos a esses lugares nos sonhos noturnos. E esses redutos têm valor de concha. E, quando
vamos ao fundo dos labirintos do sono, quando tocamos nas regiões de sono profundo, conhecemos talvez
uma tranquilidade ante-humana. O ante-humano atinge nesse ponto o imemorial. (BACHELARD, 1978,
p. 203).
Uma das epígrafes que abrem o livro já anunciam que é no plano do sonho que será possível
romper com as ruínas, com a guerra devastadora: “O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto
a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem
parentes do futuro. (Fala de Tuahir)”. (COUTO, 2006, p. 07).
Antes da descoberta dos cadernos de Kindzu por Muidinga, o que predominava era uma
paisagem seca, morta, onde sequer havia a estrada. O narrador, posicionando-se de forma onisciente, narra
na perspectiva de uma testemunha e assim descreve o primeiro capítulo, intitulado “Estrada morta”:
Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre
cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram
cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul.
Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da
morte. (COUTO, 2006, p. 09)
Gradativamente, com a leitura cada vez mais atenta dos escritos de Kindzu, Muidinga passa
da não-percepção da paisagem para a percepção utópica, conquistada durante o estado sonambúlico.
Só a ele é dada a condição de acompanhar as transformações da paisagem, sobretudo quando da saída
do refúgio representado pelo machimbombo e da possibilidade de chegada ao mar aberto:
A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha deambula em errâncias? De
uma coida Muidinga está certo: não é o arruinado autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem
sempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à
leitura, seus olhos desembocam em outras visões. (COUTO, 2006, p. 109)
Com a experiência fantástica dos cadernos de Kindzu é que Muidinga e o velho Tuahir
aprenderam a sonhar com a sobrevivência em um país marcado pela oposição cultural entre os que
lutam pelo poder e os que se situam nas comunidades agrárias tradicionais. Como ressalta Enilce
Albergaria Rocha: “Em Terra sonâmbula, a guerra desfaz as referências comunitárias: destrói as aldeias
tradicionais, desestrutura as famílias e desmancha as diversas identidades coletivas, o ‘nós’ enraizado
no seu entorno – a paisagem, a terra, a cultura.” (ROCHA, 2006, p. 70).
4. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra: A paisagem das tradições
Tanto quanto Terra sonâmbula, esse livro de Mia Couto, publicado em 2002, portanto, na
Moçambique pós-colonial, constitui o retrato das mudanças significativas por que tem passado seu
país e o confronto de vozes que tem delimitado o corpus cultural de um povo sensivelmente marcado
pelos longos anos de colonização.
Como via de interligação entre a tradição oral africana e a tradição literária ocidental, oriunda
da dominação portuguesa, Mia Couto vale-se de uma linguagem de recriação, de uma escrita mágica,
“imbuída de culturas várias, força de coesão e de construção de uma matriz cultural moçambicana”,
como argumenta Fernanda Cavacas (2006, p. 57).
Para tanto, o escritor moçambicano se pauta na escrita formal normativa que tem a função de
traduzir as emoções, os desejos e os conflitos de seu povo. O próprio Mia Couto destaca a necessidade
de conciliar o continente europeu ao africano quando escreve:
Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana. Necessito
tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos e linhas européias. O gesto de bordar me ensina
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que estou inventando uma outra ordem e nessa ordem esses valores iniciais de nacionalidade já pouco
importam. (COUTO apud CAVACAS, 2006, p. 65)
Vera Maquêa parece sintetizar essa ambivalência da escrita de Mia Couto ao acentuar que
o que encontramos em sua produção literária é “o caráter transnacional da literatura, que consegue
ao mesmo tempo expressar problemas humanos fundamentais e trabalhar com a massa de sentidos
específicos das circunstâncias históricas de Moçambique” (MAQUÊA, 2005, p. 170).
A obra em questão revela justamente esse estado de coisas. Luar-do-chão, lugar onde se
desenrola toda a ação do romance, é uma Ilha, sempre grafada com “I” maiúsculo, cercada de mistério
e acontecimentos extraordinários, que se destaca por ainda não ter sido contaminada pelas civilizações
estrangeiras e por guardar suas tradições ancestrais. Em situação de abandono e de decadência, dada
a pretensa morte do grande guardião, o Dito Mariano, a Ilha aguarda em Mariano, o neto, não só a
reconstrução da história de sua família de quem se distanciou, mas, e sobretudo, o descortinamento
de uma nova forma de salvar sua terra e levar adiante uma história da condição humana.
Assim, tendo retornado a sua terra natal por ocasião do suposto funeral do avô, Mariano,
narrando em primeira pessoa, vai redescobrindo suas origens e resgatando a história da família, com
curiosas e insólitas personagens e situações, como é o caso de Abstinêncio, seu tio, que usa um lenço
que cresce durante a noite, ou o de seu pai, Fulano Malta, dono de uma gaiola na qual espera que um
pássaro seja encarcerado; no entanto é a própria gaiola que se transforma em pássaro e voa pelo céu
afora. Ou ainda o caso de sua mãe, Mariavilhosa, que se converte em água e se confunde com o rio.
Não fosse a consciência mítica que essas imagens insólitas carregam da africanidade, poderíamos
supor que estamos na presença de um universo surreal, desmaterializado, descorporificado.
No que concerne especificamente à teoria da percepção da paisagem, há algo de especial nesse
livro. A começar pela presença do rio que separa a Ilha da cidade, de onde retorna Mariano. Numa
lancha que conduzirá parte da família ao funeral do avô, Mariano, alheio à sua identidade cultural, não dá
o devido respeito ao rio, “o grande mandador”, responsável por separar a cidade – morada dos brancos
– da Ilha – reduto do clã dos negros Malilanes (ou dos Marianos, na língua dos brancos).
Quando me dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento. Ajoelha-se na areia e, com a mão
esquerda, desenha um círculo no chão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado, a família;
do outro, nós, os chegados. Ficam todos assim, parados, à espera. Até que uma onda desfaz o desenho na
areia. Olhando a berma do rio, o Tio Abstinêncio profere:
– O Homem trança, o rio destrança.
Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o costume. Só então Abstinêncio e meu
pai avançam para os abraços. Voltando-se para mim, meu tio autoriza:
– Agora, sim, receba os cumprimentos! (COUTO, 2003, p. 26)
A separação não é, pois, apenas geográfica, é também cultural. Segundo o Dicionário dos
símbolos, o rio equivale “ao obstáculo que separa dois domínios, dois estados: o mundo fenomenal
e o estado incondicionado, o mundo dos sentidos e o estado de não vinculação”. (CHEVALIER
& GHEERBRANT, 1995, p. 780-781). Assim, o jovem Mariano, ao retornar ao seio da família,
abandona o mundo fenomenal, simbolizado pela cidade, e adentra o mundo dos sentidos, onde é
incumbido de promover o ritual de morte do avô e de desvendar os segredos antigos do clã.
O elemento rio guarda ainda outros aspectos simbólicos. No que diz respeito à personagem
Mariavilhosa, ele assume a configuração de vida e morte, à medida que é no rio que a personagem
inicia e encerra sua vida. Foi justamente no rio que se deu a confirmação da trajetória de Mariavilhosa
e Fulano Malta e é também nele que se estabelece o seu fim. Destaquemos a passagem em que
Mariavilhosa retorna ao seu local de origem quando da morte:
Talvez se tivesse transformado nesses espíritos da água, que anos depois, reaparecem com poderes
sobre os viventes. Até porque houve quem testemunhasse que, naquela derradeira tarde, à medida que ia
submergindo, Mariavilhosa se ia convertendo em água. Quando entrou no rio seu corpo já era água. E nada
mais senão água (...) água era o que ela era, meu neto. Sua mãe é o rio, está correndo por aí, nessas ondas.
(COUTO, 2003, p. 105)
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Na perspectiva do personagem Dito Mariano, o patriarca da família, o rio assume a conotação
da fertilidade, haja vista que é no espaço rio que se dá consagração do ato amoroso entre Dito
Mariano e Admirança. Ambos dormem juntos e, assim, cumprem o ritual da entrega da alma. O fruto
desse amor proibido é uma criança que recebeu, na língua local, o nome de Madzi (água) e que vem
a ser o jovem Mariano. Após a revelação de sua verdadeira origem, Mariano encontra sua identidade.
Assim, o rio, ao participar das relações interpessoais, compartilha códigos e estabelece o elo entre a
memória e a identidade.
Tamanho é o vínculo entre Dito Mariano e o rio que somente será possível concluir os
rituais de sua morte quando, à beira do rio, for realizado o seu enterro. Numa das revelações ao filho,
ele deixa escapar a sua intimidade com o elemento: “Sabe, Mariano? Quando você nasceu eu lhe
chamei de ‘água’. Mesmo antes de ter nome de gente, essa foi a primeira palavra que lhe deitei: madzi.
E agora lhe chamo outra vez de ‘água’. Sim, você é a água que me prossegue, onda sucedida em onda,
na corrente do viver.” (COUTO, 2003, p. 238)
Outro espaço significativamente importante nesse livro é a Ilha Luar-do-Chão que, dizem,
foi inspirado na Ilha de Inhaca, em Moçambique, reserva natural onde Mia Couto tem desenvolvido
suas pesquisas na área da biologia. Para o geógrafo chinês Yi-Fu Tuan, a ilha exerce um papel especial
na imaginação do homem, visto que “no mundo, muitas das cosmogonias começam com o caos
aquático: quando a terra emerge, necessariamente é uma ilha (...) Em inúmeras lendas a ilha aparece
como a residência dos mortos ou dos imortais.” (TUAN, 1980, p. 135). É justamente o que ocorre
na obra: lá é que será enterrado Dito Mariano, o chefe supremo do clã dos Malilanes. Funcionando
como uma espécie de templo ou santuário, a Ilha Luar-do-Chão será o lugar que abrigará as tradições
de um povo sofrido, porém insubmisso aos tempos da colonização. Mas isso só acontecerá por meio
do neto/filho que tomará para si a responsabilidade de evitar que o lugar se transforme em grande
empreendimento turístico, como é o desejo de seu tio Ultímio, salvaguardando, especialmente, a casa,
Nyumba-Kaya: morada absoluta dos vivos e dos antepassados.
Sob o prisma da teoria da percepção da paisagem, essa morada detém papel relevante no
contexto da obra, na medida em que deixa de ser simplesmente um espaço, para se tornar um lugar
porque dotado de valor. No entanto, as relações entre espaço e lugar não podem ser definidas uma
sem a outra. É o que sustenta Yi-Fu Tuan. Segundo o autor, “os arquitetos falam sobre as qualidades
espaciais do lugar; podem igualmente falar das qualidades locacionais do espaço. (...) A partir da
segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço, e
vice-versa.” (TUAN, 1983, p. 06). Considerada a maior de toda a ilha, constitui, na fala do narradorpersonagem, um corpo ou ainda uma mulher, matrona e soberana, que parece desafiar o recém-chegado
da cidade. Compete a ele guardar todas as chaves da casa, como a única atitude possível diante do
assédio pela disputas dos bens e da herança. Assim, preservada sua memória, ela passa a representar
a própria Ilha, terra onde se cultuam as sagradas tradições e os princípios éticos que suscitam a doce
lembrança de uma África originária. Uma das epígrafes que povoam o romance, enunciada pelo avô
Mariano, resume bem a intrínseca relação entre o lugar e o sentimento: “O importante não é a casa
onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora.” (COUTO, 2003, p. 53).
5. Considerações finais
A aproximação entre a Literatura e a Paisagem não constitui empresa fácil, haja vista a
complexidade existente na tentativa de interrelacionar os artifícios da representação literária com os
princípios da Geografia Humanística, voltados para o processo de percepção, em que estão envolvidos
fatores como os sentimentos e a experiência. Estudar a paisagem, na perspectiva que adotamos,
implica observar a interrelação entre o indivíduo e o espaço e como essa relação se processa em cada
pessoa, em cada personagem, inserido num contexto social que também é cultural e psicológico.
Na análise empreendida dos romances de Mia Couto, importou-nos considerar a percepção da
paisagem à luz dos personagens e, sobretudo, do narrador, em que pese seu caráter simbólico, permeado por
atributos reais e imaginários, seja no âmbito dos desejos e medos, seja do verossímil e do sobrenatural.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Constatamos, portanto, em Terra sonâmbula, que a paisagem assume ares diferenciados à
medida que se verifica a conformação da identidade do povo moçambicano, aqui representado pelo
jovem Muidinga, numa nação marcada pela guerra civil pós-independência. Da trajetória de uma
paisagem inóspita e horrenda, vivenciada por Muidinga e Tuahir no machimbombo queimado e
nos arredores, para uma paisagem de libertação, representada pelo mar aberto, somos conduzidos
aos cadernos de Kindzu que procuram, de maneira extensiva, preservar a memória de um povo
combalido pela miséria e pelos horrores da guerra. Extensivamente, então, a experiência de Kindzu
interpenetra a vivência de Muidinga e assim vai sendo tecida a confluência entre a oralidade e a escrita,
entre o presente e o passado. Como reforça Vera Maquêa: “são onze capítulos e onze cadernos, mas
o que podemos perceber é que a simetria corresponde ao diálogo sem dualismo entre uma tradição
oral e uma tradição escrita, pois que ambas se confundem.” (MAQUÊA, 2005, p. 174).
Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, a presença da escrita que proporciona a
perpetuação da memória africana novamente é suscitada, agora por um personagem-narrador que
regressa à casa, qual o filho pródigo, para enterrar o avô que insiste em não morrer até que toda a história
da Ilha Luar-do-Chão seja contada. O elemento responsável pela estruturação da narrativa são os bilhetes
e cartas que o jovem Mariano recebe com o intuito de configurarem a história de seu povo e de si mesmo.
Um dos aspectos mais significativos da obra é o papel singular da água, mais particularmente do rio.
Vimos o quanto a história de vida de determinados personagens se fundamenta nos rituais tradicionais
e nos rituais fúnebres em que o elemento rio está presente, a começar pela passagem da lancha da cidade
para a Ilha até a decisão por enterrar o corpo de Dito Mariano às margens do rio. Poeticamente, assim
expressa esse ato o narrador: “o enterro do sol, como o do vivente mal-morrido, requer terra molhada,
areia fecundada pelo rio que tudo faz nascer.” (COUTO, 2003, p. 257).
A casa, Nyumba-Kaya, constitui o lugar privilegiado do romance e nada mais é do que a própria
terra, reduto do sonho de construção da nacionalidade. Para o jovem Mariano, a casa grande que ele
avista quando do retorno à Ilha Luar-do-Chão está fisicamente inscrita dentro dele e se faz “única”
e “indisputável”. A preservação, portanto, de todo o legado cultural, de todo o mosaico de vozes de
que se nutre a nação moçambicana para a afirmação de sua identidade subjaz, simbolicamente, da
percepção da paisagem desses dois romances em que se tece a mão dupla da tradição e da modernidade,
do passado colonial ao presente de um país fragmentado em sua diversidade.
Referências
BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Tradução de Joaquim José
Moura Ramos et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: palavra oral de sabor quotidiano/ palavra escrita de saber literário. In:
Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa. Rita Chaves e Tânia Macedo (orgs.). São
Paulo: Alameda, 2006.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução de Vera da Costa e Silva et al.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
COUTO, Mia. Terra sonâmbula. Maputo: Ed. Ndjira, 2006.
______. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
MAQUÊA, Vera. Três romances de Mia Couto: horizontes moçambicanos. In: Diálogos críticos: literatura e
sociedade nos países de língua portuguesa. Vilma Lia Martin (org.). São Paulo: Arte & Ciência, 2005.
ROCHA, Enilce Albergaria. A narrativa ficcional e a identidade cultural: a guerra pós-independência em
Moçambique na escrita de Mia Couto. In: Vozes (além) da África: tópicos sobre identidade negra, literatura e
história africanas. Ignacio G. Delgado et al. (orgs.). Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2006.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. de Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1983.
_____. Topofilia: um estudo da percepção, atitude e valores do meio ambiente. Trad. de Lívia de Oliveira. São
Paulo, DIFEL, 1980.
VECCHIA, Rejane. Terra sonâmbula: a sobrevivência da utopia. In: Abrindo caminhos: homenagem a Maria
Aparecida Santilli. Coordenação e edição de Benilde Justo Caniato e Elza Miné. Coleção Via Atlântica, no 2.
São Paulo: EDUSP, 2002.
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ANÁLISE DO ASPECTO (INTER) CULTURAL
EM UM MANUAL DE PORTUGUÊS BRASILEIRO
PARA ESTRANGEIROS
Marcos dos Reis BATISTA
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: O manual didático (MD) tem muitas funções no ensino-aprendizagem de línguas. Uma delas é
ser fonte de informação sobre a cultura dos países em que a língua-alvo é a língua materna. Com isso, o MD
se mostra como um campo importante para as investigações no ensino de línguas em uma perspectiva ou
abordagem cultural e, também, intercultural. Assim, este trabalho tem como objetivo apresentar uma pesquisa
que tem como propósito expor uma análise sobre como a(s) cultura(s) é (são) abordada(s) em um MD para o
ensino do português brasileiro para estrangeiros intitulado “Novo Avenida Brasil 1”. Nesse MD, observamos e
examinamos os assuntos e as atividades presentes, assim como apresentamos os aspectos da cultura brasileira
(estereotipada ou não) veiculados nele. Por meio de uma pesquisa qualitativa (bibliográfica e analítica),
expomos as considerações diante da problemática acerca do aspecto cultural no MD analisado. A partir dessa
análise, entendemos que a cultura brasileira, nesse manual, ainda apresenta características consideravelmente
informativas quanto ao cultural e traz poucas atividades que tratam do intercultural. Além disso, os aspectos
(inter) culturais não são rígidos, isto é, são dinâmicos conforme a sua comunidade de fala, por isso o MD do
aluno não tem como abordar todos os aspectos da cultura brasileira a não ser de modo geral, entretanto, o
MD pode ser um instrumento delineador de um programa de ensino-aprendizagem. Consideramos que mais
pesquisas nessa área são necessárias, pois devemos pensar em outras maneiras de explorar uma abordagem
(inter) cultural satisfatória para o processo de ensino-aprendizagem de uma língua estrangeira ou segunda.
PALAVRAS-CHAVE: interculturalidade; português língua estrangeira; cultura; ensino-aprendizagem de línguas.
RESUMEN: El manual didáctico (MD) tiene muchas funciones en el enseño-aprendizaje de lenguas. Una
de ellas es ser fuente de informacion sobre la cultura del país donde la lengua-blanco es la lengua materna.
Con esto (MD) se muestra como un campo importante para las investigaciones de enseño de lenguas en una
perspectiva de abordaje cultural e intercultural. Este trabajo tiene como objetivo presentar una investigacion
que tiene como proposito exponer un análisis sobre como la(s) cultura(s) son abordada(s) en un MD para el
enseño de portugues brasilero para extranjeros titulado “Novo Avenida Brasil 1”. En este MD, observamos
y examinamos los asuntos y las actividades presentes, asi como tambien presentamos los aspectos de cultura
brasilera (estereotipada o no) introducidos en el. Por medio de una investigacion qualitativa (bibliográfica
y analítica), exponemos las consideraciones delante a la problemática acerca del aspecto cultural en el MD
analizado. A partir de este análisis, entendemos que la cultura brasilera, en ese manual, todavia presenta
características considerablemente informativas en cuanto a la cultural y otras pocas actividades que tratan de
lo intercultural. Ademas de eso, los aspectos (inter) culturales no son rígidos, esto quiere decir, son dinamicos
conforme a la comunidad que habla, por eso el MD de alumno no tiene como abordar todos los aspectos de
la cultura brasilera al menos sea de modo general, entretanto, el MD puede ser un instrumento delineador de
un programa de enseño-aprendizaje. Consideramos que muchas investigaciones en esta área son necesarias,
pues debemos pensar en otras maneras de explorar un abordaje (inter) cultural satisfactorio para el proceso de
enseño-aprendizaje de lengua extranjera o segunda.
PALABRAS-CLAVES: interculturalidad; portugues lengua extranjera; cultura; enseño-aprendizaje de lenguas.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Nos últimos dez anos a área de ensino-aprendizagem de Português Brasileiro Língua
Estrangeira (PBLE)1 desenvolveu-se de modo considerável. A institucionalização do Certificado de
Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (CELPE-Bras)2, a criação dos Postos aplicadores
desse exame em vários países3, de cursos de graduação, de Pós-graduação lato sensu, de encontros
nacionais (PLE-Rio e SIPLE), de WEB Grupos de professores e da Sociedade Internacional Português
Língua Estrangeira (SIPLE) são exemplos evidentes desse desenvolvimento.
Em virtude do crescente interesse de estrangeiros das mais diversas áreas de estudo
em desenvolver atividades na Amazônia brasileira, o domínio do português do Brasil torna-se
fundamental para o sucesso das atividades destes que muitas vezes falam apenas o inglês. Por isso, no
ano de 2005 a Profa. Cláudia Silveira do Núcleo Pedagógico Integrado propôs o Projeto Português
Língua Estrangeira (PPLE)4 ao Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras, assim como ao
Conselho do Centro de Letras e Artes. Sendo o referido projeto aprovado em ambas as instâncias.
Em 2006, criou-se na UFPA o Grupo de Estudos de Português Língua Estrangeira (GEPLE), que
além da busca de capacitação local, objetivava construir competências necessárias à criação de um
curso básico de PLE à distância. Foi criado o Posto Aplicador do Exame CELPE-Bras que começou
a funcionar em agosto do mesmo ano.
Em meio às discussões no GEPLE acerca dos diversos pontos no ensino-aprendizagem, uma
personagem chamou a atenção: o Manual5 para ensino de PLE. Quais são? Que tipo de metodologia
esses se baseiam? Quem os publicam? Onde se pode encontrar? Que língua esses ensinam? Que
abordagens são tratadas nesses? Entre outros tantos questionamentos. Isso gerou a necessidade de
pesquisar junto à editoras e livrarias a oferta desses materiais. Nas reuniões do GEPLE foi discutida
a adoção de um manual a ser empregado nos cursos a serem ofertados, foram elencados diversos
requisitos para a adoção de um livro didático (LD), que por falta de espaço e tempo não serão
descritos aqui.
2. Justificativa
Entre as diversas abordagens, uma dessas chama a atenção de modo a despertar o estudo
acerca do papel do LD de PBLE: a abordagem cultural. De que modo a cultura é abordada nestes
materiais didáticos?
Podemos apresentar algumas considerações acerca do cultural e do intercultura. Cultura
pode ser entendida como o conjunto distintivo de atributos espirituais e materiais, intelectuais e
afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social, engloba não somente as artes e a
literatura, mas também os modos de vida, os sistemas de valores, as tradições e crenças e os direitos
fundamentais do ser humano (CLAXTON, 1994, p. 6-7).
O cultural é indissociável da língua, tanto no processo de aprendizagem, quanto na convivência
do estrangeiro com a nova língua, ou seja, “Sempre que você ensina uma língua, você também ensina
um sistema cultural complexo de costumes, valores, e maneiras de pensar, sentir e agir”. (BROWN
Comumente usa-se o termo PLE para se referir ao ensino do Português Língua Estrangeira. Entretanto, neste pré-projeto,
será tratado o Português falado no Brasil; por isso, utiliza-se a sigla PBLE (Português Brasileiro Língua Estrangeira), pois,
aqui procura-se distinguir a língua falada – e, até escrita - em terras brasileiras da vertente falada em Portugal e em outras
nações africanas.
2
Sua institucionalização entre os anos de 1993 e 1998.
3
Todas as informações acerca do exame CELPE-Bras poderão ser consultadas na página www.mec.gov.br/celpebras.
4
No âmbito do Projeto Português Língua Estrangeira na UFPA nunca se discutiu acerca da nomenclatura PLE ou PBLE.
Esta última está sendo utilizada aqui conforme a nota 1 descrita acima.
5
Conforme Mezzadri (2205) e Balboni (2000), manual é um conjunto de materiais didáticos (livro-texto, livro de exercícios,
guia pedagógico, CD - áudio, entre outros) organizados por uma editora e/ou independente (autor) com a finalidade de servir
de suporte para o ensino de uma língua e/ou oferecer uma progressão de conteúdos para a aprendizagem de um idioma.
1
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
2001, p. 64). Com isso, parte-se da hipótese que o manual de línguas possui potencial6 para a difusão
do idioma de modo a conscientizar os aprendentes culturalmente e interculturalmente. Tal potência
ajuda a construção de conexões educativas e processos de aprendizagem mútua entre os grupos
culturalmente diferentes (FLEURI, 2003, p.10).
Furtado (2005, p. 53) apresenta um dos papéis do componente cultural diante do EAL em
que “o componente cultural media as interações, lançando a idéia de que os conhecimentos culturais partilhados pelos
interlocutores são indispensáveis para o desenvolvimento do processo interacional, por meio da intercompreensão”.
Laraia (2005) apresenta em seu livro Cultura: um conceito antropológico o desenvolvimento do
conceito de cultura durante vários séculos. Entender cultura como fenômeno com muitas facetas
e características nos ajudará a apresentar um quadro da atual situação de como os elaboradores de
manuais tratam em seus trabalhos a cultura, ou melhor, as culturas. É partindo dessa situação – a
cultura em um sentido plural – que o presente estudo se mostra como um espaço para reflexões
diante do nosso objeto de estudo e trabalho.
Ao tratar da intercultura, Desmeserets (apud FURTADO, 2001, p. 34) diz que “intercultura
é a presença e a inter-relação em um mesmo tempo e em um mesmo espaço, de pessoas de diversas
culturas que coexistem”. Para Alsina (1999, p. 74) a interculturalidade é como “as relações que se
dão entre as diversas culturas em um mesmo espaço real, midiático ou virtual, que também teriam
referencia a dinâmica que se dá entre (...) as comunidades culturais”. O intercultural vem a somar
com a interação quando se trata da aprendizagem de uma nova língua. Com isso, podem-se ampliar
horizontes pessoais e profissionais. Com isso, investigar os aspectos culturais – como a cultura ou as culturas
brasileiras são tratadas em um manual para o ensino de PBLE – e os interculturais – a relação das atividades
com a cultura dos alunos estrangeiros – se coloca como o caminho a ser traçado para o desenvolvimento
deste trabalho.
O interesse pelo tema partiu da convivência com o MD utilizado tanto nas aulas de PLE na
UFPA, quanto às necessidades observadas no uso desses. Além disso, o elemento cultural faz parte
intrinsecamente das atividades para o ensino de uma língua. Pode-se dizer que não existe ou não
se fala de cultura sem considerar o instrumento lingüístico. Uma cultura vem a ser descrita através
desse instrumento. Com base em Serragiotto (2007), podemos afirmar que existe um binômio línguacultura, segundo o qual existem algumas fortes relações que regulam esses dois elementos que se
influenciam mutuamente, ligados de modo considerável pela natureza da relação deles.
O LD é um recurso muito utilizado em um ensino de línguas formal. Mas, não tem todos
os atributos e mecanismos para oferecer ao aluno todos os aspectos de uma nova língua. Segundo
Cortazzi e Jin (1999, p. 199 apud MOURA, 2005), “apesar de alguns professores e alunos esperarem
que o LD dê conta de todos os aspectos no processo de ensino-aprendizagem, muitos já enfatizam
que seu papel é de ser um recurso, de onde grande parte pode ser aproveitada”. É justamente nesta
“grande parte” onde se encontra a nossa preocupação. O LD não tem condições de apresentar de
modo formativo e informativo a cultura dos povos que falam a língua que está sendo aprendida de
modo exaustivo; porém, existe uma tentativa dos elaboradores em mostrar a cultura de modo amplo.
Assim, o nosso objetivo é apresentar uma análise sobre a abordagem da cultura (culturas) em livros
didáticos para o ensino do português brasileiro para estrangeiros.
3. O ensino-aprendizagem do português brasileiro como língua estrangeira
No campo do EAL há uma vasta discussão acerca da nomenclatura quanto ao ensino das
línguas como língua materna, língua segunda, língua estrangeira, língua primeira, língua terceira, língua
primitiva, etc. Entender a abordagem de como a língua é ensinada torna-se algo importante tanto para
Entende-se aqui Potencial como motivação para a aprendizagem de um novo idioma. Neste âmbito a motivação deve
ser levada em conta na aprendizagem de uma língua com vista à aproximação do aluno com uma nova cultura. Por meio
de uma reflexão diante dessas atividades pode-se começar a pensar acerca de como desenvolver a consciência cultura e
intercultural do aprendente e, também, do docente utilizando os materiais didáticos de PBLE .
6
881
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
o enfoque em sala de aula, como para a elaboração de materiais didáticos, quanto para a abordagem
lingüística, linguageira, cultural, intercultural, sócio-discursiva, entre outras, pois as características do
aprendente – dependente da sua situação diante da língua, se estrangeiro ou nativo ou envolvido em
uma sociedade que não primeiramente é a sua como é o caso dos indígenas no Brasil – são primordiais
para a elaboração de currículo e de percurso didático.
Consideramos língua materna, primeiramente, como o idioma que uma criança em uma
determinada sociedade aprende em casa, na convivência com os pais e outros familiares; por isso,
o termo materno, de maternidade. Segundo Cuq (apud DÓRIA SILVA, p. 12) a expressão Língua
Materna refere-se “à combinação de pelo menos duas séries de fatores: a ordem da aquisição e a
ordem do contexto. Designar-se-ia desta forma a língua adquirida em primeiro lugar pelo falante em
um contexto em que essa língua também é usada para comunicação”.
A aprendizagem de um idioma como língua segunda se dá diferentemente da língua
estrangeira. Uma língua é estudada como segunda no país onde essa é falada. Por exemplo, um
brasileiro que vai à Itália para aprender italiano, estudará esse idioma como língua segunda, ou
seja, estará imerso na língua, encontrará facilmente falantes nativos para exercitar o que está sendo
adquirindo de modo formal na escola e estar envolvido vinte e quatro horas com aquela línguacultura7. Porém, um brasileiro que aprende italiano em Belém do Pará, aprenderá italiano como língua
estrangeira, ou seja, fora da área onde esse idioma é falado.
Ao considerar tais aspectos que distinguem língua estrangeira de língua segunda, Leffa
(1988, p. 212) nos esclarece de modo bastante lúcido tal diferença: temos o estudo de uma segunda
língua no caso em que a língua estudada é usada fora da sala de aula em que vive o aluno (exemplo:
situação do aluno brasileiro que foi estudar francês na França). Temos língua estrangeira quando a
comunidade não usa a língua estudada na sala de aula (exemplo: situação do aluno que estuda inglês
no Brasil).
Temos ainda diante dessa discussão acerca das concepções de língua estrangeira e
língua segunda, outras variedades de classificações existem no EAL e, não é tão simples uma
generalização por parte dos trabalhos na área da Lingüística Aplicada por parte dos pesquisadores
(ALMEIDA FILHO e CUNHA, 2007). Segundo Cuq (2003, p. 150), “toda língua não materna
é uma língua estrangeira” (apud SILVA, 2008, p. 12)8, a qual é “ensinada a pessoas que não são
nativas de um país em que essa língua é a língua de comunicação” e que “não aprenderam essa
língua antes de qualquer outra, nem simultaneamente a outra, como é o caso de pessoas bilíngües”
(SILVA, 2008, p. 12). Dessa maneira, podemos considerar como língua segunda o idioma que o
aprendente ou novo falante considera como a segunda língua que utiliza na sua individualidade.
Podemos usar nosso caso como exemplo: temos como língua materna o português brasileiro e
como língua segunda o italiano, que é utilizado nas pesquisas desenvolvidas na graduação e na
pós-graduação9, na conversação com amigos nativos ou não desses idiomas, além da literatura e
da música.
Assim, apresentamos acima a dificuldade existente em diferenciar e classificar o que é língua
estrangeira e língua segunda. Mas, acreditamos que com a exposição dos termos, já estamos cientes
do que cada categoria de ensino representa. Com base nesse estudo e em outros autores que tratam
do processo de EAL, consideramos o ensino do português brasileiro para estrangeiros no Brasil
como português brasileiro como língua segunda (PBLS) e fora do país como português brasileiro como língua
estrangeira (PBLE)10. Neste trabalho trataremos do português brasileiro para estrangeiros (PBE) em situação
de ensino-aprendizagem do português dentro do Brasil (PBLS) ou fora do país (PBLE).
Entende-se por língua-cultura, esse binômio, como a intrínseca relação entre ambos elementos na aprendizagem de
um novo idioma. Nesse processo não se aprende apenas elementos lingüísticos (morfossintáticos, lexicais, etc.), mas
elementos sócio-culturais que envolvem o lingüístico, o linguageiro e o cultural.
8
Texto original: Toute langue non maternelle est une langue étrangère.
9
Cf. Referências deste trabalho
10
Trataremos melhor desta questão quando nos detivermos na nomenclatura PLE, PBLE, PBSL, entre outras.
7
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
4. Cultura, identidade e ensino
Apresentamos algumas definições de cultura de autores como Lafuente (2005) e Samovar,
Porter e Stefani (1998). Conforme Cuche (1996 apud MATTELART, NEVEU, 2004, p.11) “a noção
de cultura é daqueles que suscitaram os trabalhos mais abundantes em ciências sociais”. Assim, nesta
parte expomos alguns aspectos acerca do conceito de cultura para, posteriormente, adentrarmos em
nossa análise propriamente dita.
4.1. A tentativa de conceituar “cultura”
O termo cultura, apesar de sua apresentação singular, traz uma gama de pluralidade quando
nos debatemos com a sua conceituação. Segundo Santos (2008, p. 23), existem duas concepções de
cultura, a primeira remete aos aspectos de uma realidade da sociedade e a segunda faz referência
mais especificamente ao conhecimento, às crenças e às idéias de um povo. Com base em Bosi
(1992), o termo cultura vem do vocábulo latino culturus, que dá a idéia de porvir ou de movimento,
de cultivo, de cultivar a terra, a relação entre os homens e a terra. Conforme as palavras do próprio
Bosi (1992, p. 16)
A terminação – urus, em cultura, enforma a idéia de porvir ou de movimento em sua direção. Nas sociedades
densamente urbanizadas cultura foi tomando também o sentido de condição de vida mais humana, digna
de almejar-se, termo final de um processo cujo valor é estimado, mais ou menos conscientemente, por
todas as classes e grupos [...]
Segundo Balboni (1999, p. 25), cultura é a soma de alguns modelos culturais praticados
por um povo para responder às necessidades naturais como nutrir, viver em grupo, se proteger de
eventuais fenômenos da natureza, etc. isso vem ao encontro de Bosi (1992, p. 27) quando trata das
condições diante das múltiplas formas concertas da existência coletivamente e subjetivamente, com
isso temos a memória e o sonho, as marcas do cotidiano e outros aspectos que fazem parte do mundo
intrapessoal e subjetivo.
Trataremos mais a frente quanto à cultura como símbolo. Enfatizamos quanto ao texto de
Bosi que a cultura está acima do tempo. Não podemos considerar a cultura somente desta época, essa
(cultura) é ao mesmo tempo produto e processo social. Produto por ser fruto de uma mentalidade
coletiva e processo por ser modificada ao decorrer das diversas fases da historia de uma sociedade.
4.2. Cultura segundo Lafuente
Tudo o que está relacionado com a educação está relacionado com a cultura, sua aquisição,
sua transmissão e sua dinamicidade. A cultura está na nossa sociedade, ou seja, em nós mesmos. Está
nos níveis pessoal, familiar, profissional, afetivo, entre outros. As considerações apresentadas aqui
estão baseadas no texto de Lafuente (2008)11.
Para Banks (apud LAFUENTE, 2008) a cultura é um termo extremamente difícil de definir.
Não nos damos conta de que estamos imersos nele. Segundo Mezzadri, nossa dificuldade de perceber
a nossa cultura é comparada à água e ao peixe que está nela. Esse deve sair de sua água para poder
entendê-la, assim o homem deve sai do seu meio cultural e procurar desenvolver um olhar de fora
para buscar o entendimento desse objeto de estudo. Poderíamos dizer que é uma sedimentação da
experiência histórica das pessoas e dos múltiplos grupos sociais sejam de caráter familiar, étnico,
racial, genérico ou de status social. Segundo Kramsch (apud LAFUENTE, 2008) cada país tem sua
própria cultura política e histórica, estilos intelectuais próprios, medos sociais, esperanças, orgulhos,
significados e valores unidos a sua língua, sua cultura e sua história.
Nessa perspectiva, a cultura se forma através da aprendizagem e do ensino cotidiano em
todas as circunstâncias em que se desenvolve a vida humana. O processo de aquisição da cultura
começa desde o nascimento e se estende por toda a vida, não é a toa que ouvimos de pessoas mais
11
Cf. Referências.
883
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
velhas a expressão: na minha época não era assim... ou na minha época era assim.... Durante este tempo o
indivíduo estabelece diferenças entre os muitos aspectos de sua cultura, alguns se mantém e outros
são modificados. Hutchinson (apud LAFUENTE, 2008) afirma que se uma pessoa é colocada em
um grupo concreto e observada depois, ela exibirá um comportamento que não pode ser distinguido
ou diferenciado daquele que constitui a cultura do grupo em que se desenvolveu. De fato, se este
indivíduo muda no segundo grupo portador de uma cultura diferente, então seu comportamento seria
distinguível daquele que constitui sua primeira cultura.
Cultura como riqueza acadêmica versus cultura popular. Banks (apud LAFUENTE,
2008) distingue os tipos de cultura, a alta cultura – definida como o produto resultante de um esforço
e de um método - que é aquela que cuida das artes, teatro, museu, bibliotecas. Nessas instituições
encontram-se os produtos culturais que são valorizados pela elite. Também trata da baixa cultura que
é colocada pelo autor como cultura popular. As diversas manifestações consideradas “populares”
estão inseridas nesta baixa cultura, tendo como exemplos o rock and roll e o calipson, assim como o
folclore.
Para Lafunte (2005, p. 6-7) a cultura também pode ser entendida como um vasto conjunto
de peças do conhecimento armazenadas por um grupo social específico e classificadas em um tripé, a
saber: cultura, subcultura e microcultura. Ainda segundo o autor, um indivíduo desse grupo somente
possuiria e usaria parte desse conhecimento nesse conjunto social. A quantidade de informações,
conhecimento, entendimento diante das regras sociais varia de acordo com a formação de cada
indivíduo e também de acordo com cada subgrupo em relação à população local (regional ou
nacional). Essas diferenças podem ser percebidas no vocabulário usado pelo cidadão, pela língua que
ele utiliza.
A língua consta de um sistema de sons, de uma sintaxe (gramática) e do léxico (vocabulário).
Sendo assim, quem usa o mesmo código (a língua), pode se reconhecer como membro de uma
determinada comunidade. Porém, nem sempre isso ocorre, podemos nos deparar com situações em
que pessoas falam a mesma língua, mas por questões de sotaque, não reconhece o outro como membro
desta (comunidade) ou, tem dificuldades em interagir com pessoas que utilizam um sotaque ou outro
por conta dos estereótipos. Assim, quanto aos termos subcultura e microcultura, o classificaríamos como
cultura regional e cultura pessoal, respectivamente, mas com uma ressalva: não se trata de uma hierarquia,
mas de uma análise diante da cultura. No final do texto, o autor apresenta a seguinte analogia, conforme
citação abaixo:
Seguindo a analogia anterior estabelecemos a seguinte comparação: cultura=língua, subcultura=dialeto e
microcultura=idioleto (LAFUENTE, 2007, p. 07) 12
Ele passa a fazer distinções utilizando outra nomenclatura que nos esclarece diante da
problemática considerada neste trecho, porém, não entraremos na problemática língua/dialeto/
idioleto, pois nosso enfoque está na pluralidade da cultura.
Cultura como um sistema de símbolos. Entende-se a cultura como um conjunto de
estruturas conceptuais, o símbolo que para os membros de um grupo social constituem a realidade
(GEERTZ, apud LAFUENTE, 2005) posto que todos compartilhem dessas estruturas. Tal concepção
de cultura enfatiza a coerência de todo o sistema, do seu tratamento diante dos símbolos que se
mostram como colaboradores da identidade dessa comunidade. Por exemplo, um paraense que não
saboreia o açaí13 não é bem visto em uma reunião de amigos. É possível que nesta reunião social,
ele possa ser visto como chato ou como alguém que não preserva (ou não respeita) um símbolo da
cultura local.
Texto original: Siguiendo la anología anterior establecemos la siguiente comparación: cultura=lengua, subcultura=dialecto y
microcultura=idiolecto (LAFUENTE, 2007, p. 07)
13
“Açaí é o fruto da palmeira conhecida como açaizeiro (Euterpe oleracea Mart., Palmae), planta típica de várzea. É
nativo da Amazônia, onde seu consumo data dos tempos pré-colombianos. O açaí é um alimento muito importante da
dieta amazônica. Hoje em dia é cultivado não só na Região Amazônica, mas em diversos outros estados brasileiros, sendo
introduzido para o resto do mercado nacional durante os anos 80 e 90” (texto extraído do portal açaí.com).
12
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Cultura como processo social. As diferenças culturais são os produtos do status, do poder
e dos interesses políticos dos subgrupos e das instituições que se encontram na sociedade. Existe uma
relação com os problemas da estrutura social e dos conflitos sociais. Quanto às mudanças culturais
se aceitam, se aprendem, se recordam, se ignoram ou se esquecem dependendo da posição social dos
integrantes da comunidade. Os fundamentos desta abordagem cultural são os seguintes: a) A variação
sistemática da cultura em relação ao poder social; b) O conflito social como processo que desencadeia
a variação dos tipos culturais e c) O papel humano no uso das ferramentas culturais (GIDDENS, apud
LAFUENTE 2007).
Cultura como motivação e elemento emotivo. Alguns estudos contemporâneos
consideram a influência cognitiva e motivacional/emocional na cultura (LUTZ apud LAFUENTE,
2007). Aprendemos costumes. Mas, algumas questões são necessárias quando nos deparamos
com esta problemática. Conforme Lutz (apud LAFUENTE, 2007) por que estamos ligados aos
costumes emocionalmente? Como chegamos a desejar alcançar determinados objetivos como
uma imposição cultural?
Em nenhum momento somos obrigados a seguir pautas culturais que definem nosso grupo
social, mas podemos ser levados pela evocação ao tradicional. Hoje, com o processo de globalização,
percebemos a imposição da aprendizagem de línguas – como é o caso do inglês e do chinês em
algumas empresas multinacionais – como imposição cultural. Pois, ao aprender determinada língua,
o sujeito terá um sucesso. Nossa experiência nos mostra que muitos alunos, seja nos Cursos Livres
de alemão e de português língua estrangeira ou no curso de Letras da Universidade Federal do Pará,
vêem-se obrigados, porém satisfeitos ao ter que aprender uma língua para sucesso pessoal, para ter
evidência na cultura onde estão inseridos. Essa situação pode ter conseqüências negativas no processo
de aprendizagem do aprendente.
A neurociência contemporânea demonstra que existe uma conexão entre as atividades das
redes de neurônios e a aprendizagem cognitiva anterior. Assim, essas conexões cerebrais estão unidas
ao nosso estado emocional. Por esta razão, a repetição de certas atividades cotidianas reforça nossas
emoções e pensamentos (D’ANDRADE AND STRAUSS apud LAFUENTE, 2007). Portanto, ao
concluirmos esta parte de “nossas reflexões”14 poderíamos dizer que cultura, geralmente, é considera
um produto da atividade humana. Aprende-se e se transmite de geração em geração e, muitas vezes
se inventa cultura.
Cultura está intimamente ligada à formação de um povo, sua constituição quanto
nação. É o caso do Brasil, a formação brasileira é complexa e cheia de altos e baixos. Com a
invasão portuguesa, índios foram exterminados, negros escravizados e, ao mesmo tempo, houve
a miscigenação entre brancos, escravos e índios e os imigrantes que aqui chegaram. Com toda
essa complexidade, podemos considerar então que a cultura é o produto de um longo processo
que culmina no Brasil de hoje. Um paraense reconhece outro pelo sotaque ou por hábitos locais.
Entretanto, mesmo se tratando de paraense, há variação, a cultura de um belenense, seu modo de
falar, expressões, alimentação é consideravelmente diferente de um paraense do sul do Pará, onde a
formação está intimamente ligada aos povos do nordeste brasileiro e aos mineiros que se instalaram
ali em virtude de grandes projetos na Amazônia.
Podemos inferir que, a cultura muda de pessoa para pessoa e, evidentemente, de grupo
para grupo. Pois, não compartilhamos os mesmos mundos subjetivos, muitas vezes possa parecer
assim. Temos diferenças quanto às percepções da realidade e, por isso, não podemos tomar como
referencial cultural somente um grupo social ou uma pessoa como símbolo de uma determinada
cultura. Com base nisso, verificaremos que alguns grupos sociais estão sendo representados em
manuais de português brasileiro para estrangeiros.
Por fim, de maneira tanto individual, quanto coletiva, construímos um universo cultural, seja
em nosso país, em nosso trabalho, em nossa própria casa.
14
O termo “nossa reflexões” está substituído os termos “monografia” e/ou “trabalho”.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
5. Língua-cultura
Ao longo de nossos estudos sobre o ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras (EALE),
tem sido comum nos depararmos, em discussões e leituras, com a seguinte frase: é impossível ensinar uma
língua estrangeira sem levar em consideração a cultura dos seus falantes nativos.
Com base nos estudos de Serragiotto (2007), quando se fala de ensino de línguas, não faz
sentido falar de algo abstrato. Não significa aprender somente regras e construções e, então, não é só
o instrumento lingüístico que deve interessar àqueles que estudam.
Um cidadão que possui um instrumento lingüístico deve-se também contextualizá-lo e
então considerar a cultura onde tal instrumento é usado. Isso porque língua e cultura estão sempre se
influenciando. Quando se pensa numa língua, pensa-se em um instrumento usado por um povo - ou
por povos - para representar si mesmo, então por traz existe uma cultura – ou culturas - que suporta
tal instrumento.
Formar e informar os aprendentes da necessidade de desenvolvimento das habilidades
culturais é importante. Pois, como já foi expresso anteriormente, uma língua não se caracteriza única
e exclusivamente de estruturas morfossintáticas. Quanto mais se conhece da língua-cultura, mais
se aprende em tal processo. Nesse processo de aquisição de um novo idioma, a progressividade do
conhecimento do mundo da comunidade lingüística ajuda na interação de modo produtivo, evitando
situações de engano e desembaraçosas. Byram e Fleming (2001) são categóricos ao afirmar que
um conhecimento progressivo das pessoas que falam o idioma estudado é intrínseco na aprendizagem
desse (...) sem a dimensão cultural, uma comunicação eficaz se vê dificultada pelo menos : a compreensão.
Inclusive de palavras e expressões básicas pode ser parcial ou aproximada, e os falantes e ouvintes
podem não conseguir se expressar adequadamente ou ofender seu interlocutor (BYRAM, FLEMING,
2001, p. 20)15.
Nessa perspectiva, a dimensão cultural é entendida como a ambientalização do aprendente
no processo de ensino-aprendizagem de uma nova língua. Ou, seja, sem essa ambientalização, o
aluno poderá correr o risco de usar de modo inadequado um discurso que não faz parte de uma dada
situação, tendo como produto disso os choques culturais ou os confrontos desnecessários que podem
alimentar ainda a estereotipização do estrangeiro no país onde esse se encontra.
Assim, não se fala de cultura sem considerar o instrumento lingüístico. Uma cultura vem
a ser descrita através dessa. Afirma-se então que existe um binômio língua-cultura, segundo o qual
existem algumas fortes relações que regulam esses dois elementos que se influenciam mutuamente,
ligados de modo considerável pela natureza da relação deles.
A cultura no ensino lingüístico, com base nos pressupostos da interculturalidade e nos textos
de Serragiotto (2007), deve-se levar em conta que as duas culturas (a do falante nativo e a do estudante)
podem estar próximas e ao mesmo tempo podem estar extremamente distantes. Uma simples análise
abre as possibilidades para o professor na abordagem do ensino de uma segunda língua mostra que
o terreno para um diálogo e a construção de novos idéias sobre outros povos darão ao ensino um
dinamismo considerável. É necessário estar atento e não cair no excesso de estereótipos, mas uma
informação geral pode ser muito útil para a abordagem, no EALE e vem em contato com fatores
culturais. Nesse modo a experiência de ensinar e o ensino tornam-se mais prazerosos e eficazes.
É necessário que exista uma clara informação sobre os costumes e sobre os usos de um povo,
analisando tais fenômenos, procurando não criar estereótipos que poderiam falsificar a interpretação,
mas fornecendo mais sociótipos, segundo a definição de Balboni (1999), isto é, algumas caracterizações
que derivam de uma generalização racional de estereótipos empiricamente verificáveis.
Nesse panorama, Miquel (1997) nos alerta para a necessidade de uma prática de sala de aula
que ajude o aluno a ter noções sobre o binômio língua-cultura, a autora destaca que
Texto original: “Un conocimiento progresivo de las personas que hablan el idioma estudiado es intrínseco al aprendizaje de dicho idioma (…)
Sin la dimensión cultural, una comunicación eficaz a menudo se ve dificultada: la comprensión, incluso de palabras y expresiones básicas puede ser
parcial o aproximada, y puede que los hablantes y correspondientes no consigan expresarse adecuadamente, o incluso ofender a su interlocutor”
15
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
como professores de língua, não podemos nos conformar com que nossos estudantes se encontrem
com problemas quando estão no país da língua-meta. Por isso, é conveniente que além de realizar em
classe numerosos trabalhos interculturais que ajudem os estudantes a se orientar na nova cultura sem
julgamento, realizemos boas descrições do que os romanos fazem (do ditado “in Rome, do what romans do”
ou “aonde vais, faças o que vier”), para que realmente seja possível que o processo de ensino-aprendizagem
permita ao estudante o conhecimento necessário para poder atuar de modo socio-culturalmente adequado
na língua-meta e, também, como objeto secundário, porém, menos, lutar contra o etnocentrismo, contra
os pré-juízos das diferentes culturas e fazer assim um meio viável para a comunicação entre os povos
(tradução nossa)16.
Para fazer isso, deve-se levar em conta também os aspectos não-verbais de uma língua,
porque esses também fazem parte da cultura e podem ser diferentes segundo algumas populações: a
linguagem do corpo, a língua-objeto, a língua-ambiente (Balboni, 1999).
Algumas considerações com base em Serragiotto (2007) e Balboni (1999) sobre a língua
e a cultura no ensino são necessárias em nossa exposição. Por linguagem do corpo entende-se o
movimento, a postura, a gestualidade, a expressão facial, o olhar, o tocar e a distância. Por linguagemobjeto entendem-se os sinais, os desenhos, os artefatos, o vestuário e o adornamento pessoal.
Linguagem-ambiente é feita de cores, luzes, arquitetura, espaço, direções e elementos culturais que
falam ao homem da sua natureza.
Cada falante nativo assimila algumas experiências sociais individuais características da própria
cultura. Cada sociedade acumula algumas regras segundo as quais, algumas considerações concretas
são interpretadas abstratamente e são válidas entre os que se comunicam através do uso comum da
mesma língua.
Em um discurso comum entre culturas, um estereótipo significa aplicar às próprias dimensões
culturais (comportamento, valores, convicções, etc.) a outra cultura, fazer ressaltar as diferenças sem
levar em conta algumas motivações e o background cultural que as criou. O estereotipo se mostra ainda
como a cristalização de hábitos de um determinado povo, como por exemplo, acreditar que todos
brasileiros gostam de samba, amam carnaval, comem churrasco e jogam futebol. Como imaginar uma
nação com mais de 190 milhões de personalidades agindo com os mesmos modos, será cair em uma
mesmice eterna.
6. Algumas características da cultura
Ainda sobre as características do que vem a ser Cultura, apresentamos as considerações
de Samovar, Porter e Stefani (1998) para ampliar nossas considerações acerca do nosso objeto
de estudos. Esses autores classificam seis características da cultura, a saber: A cultura é aprendida;
a cultura é baseada em símbolos; a cultura é dinâmica; a cultura é integrada; a cultura é etnocêntrica e a cultura
é adaptável.
A cultura é aprendida, ou seja, ela é o legado que recebemos dos nossos ancestrais e é
o ponto central do conceito de cultura e afirmam que, sem o conhecimento do grupo armazenado
na memória, nos livros e em outros objetos, não teríamos a cultura. (BERWIG, 2004, p. 14). Nessa
parte do texto, notamos que o conceito de cultura se mescla com o conceito de civilização, ou
seja, civilização como “a avaliação histórica e positiva de que um determinado povo produziu e
a cultura pode ser entendida como os aspectos característicos de um determinado grupo étnico”
(VINOZZI, 2006, p. 12).
Texto original: “Como profesores de lengua, no podemos conformarnos con que nuestros estudiantes se encuentren con los problemas cuando
se desplacen al país de la lengua-meta. Por esa razón, es conveniente que, además de realizar en clase numerosos trabajos interculturales que
ayuden a los estudiantes a orientarse en la nueva cultura sin juzgarla, realicemos buenas descripciones gramaticales que den buena cuenta de lo
que “los romanos” hacen [del dicho “in Rome, do what romans do” o “donde fueras, haz lo que vieras”], para que, realmente, sea posible que
el proceso de enseñanza/aprendizaje permita al estudiante el conocimiento de todo lo necesario para poder actuar de modo socio-culturalmente
adecuado en la lengua meta y, también, como objetivo secundario, pero no menor, luchar contra el etnocentrismo, contra los juicios hacia las
culturas distintas y hacer, así, más viable la comunicación entre los pueblos”.
16
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A cultura é baseada em símbolos, conforme já vimos no item cultura como um sistema de
símbolos. Para Samovar, Porter e Stefani (1998), a cultura sem a língua é impensável (Cf. SERRAGIOTTO,
2008), porque é a linguagem que torna possível o intrincado sistema a que chamamos de cultura.
Nosso cérebro e todas as nossas estruturas neurológicas associadas nos permitem usar símbolos num
nível de sofisticação jamais compartilhado por qualquer outra criatura (BERWIG, 2004, p.15)
A cultura é dinâmica, ou seja, ela não existe num vácuo; logo ela é passível de modificação.
Segundo Laraia (2004), existem dois tipos de mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica
do próprio sistema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um sistema cultural com
outro. Assim, podemos citar as trocas culturais, a colonização cultural imposta ou utilizada por meio do
fenômeno da globalização que colabora com a mudança cultural em tempos modernos.
A cultura é integrada, assim, se as regras sociais são alteradas, todo o resto é afetado.
O tamanho das famílias, a ética profissional, os valores espirituais, a relação pais e filhos, a relação
professor-aluno, entre outros que compõe a totalidade do conceito de cultura.
A cultura é etnocêntrica. Sempre nos referimos aos outros de nossa janela pessoal, de
nossa percepção cultural17. O etnocentrismo é a característica que está mais diretamente ligada à
comunicação entre pessoas de diferentes culturas. Poderíamos definir etnocentrismo como um termo
utilizado para a visão das coisas nas qual um grupo é o centro de tudo e todos os outros são avaliados
e julgados com referência a esse grupo. Notamos isso quando recebemos um estrangeiro no Brasil,
por exemplo. Sempre o julgamos partindo de nossa percepção.
A cultura é adaptável. Assim, se a cultura é dinâmica, é natural que ela seja também
adaptável, ou seja, ela se molda conforme outros aspectos. Berwig (2004:17) cita como exemplo a
mudança dos papéis dos sexos no Brasil e em outros lugares do mundo que é um exemplo pontual
desta adaptação.
7. Análise dos dados
Neste capítulo, finalmente apresentamos a análise de nosso elemento que é uma unidade
didática (UD) de um manual para o ensino do português brasileiro para estrangeiros. Para tanto,
serão usados como suporte os trabalhos de Kuper (1999) e Glissant (2005), mas também faremos
referências aos teóricos utilizados em nossa fundamentação teórica.
7.1. Elemento de análise
Neste trabalho, escolhemos o livro do aluno. O elemento de análise desta pesquisa é a unidade
nove do livro-texto do aluno do manual BEM-VINDO – A Língua Portuguesa no mundo da comunicação
(doravante BV). Escolhemos esse manual por ele ser muito utilizado em cursos de português do
Brasil para estrangeiros e a unidade nove por ele ter como título “O país e o idioma”. O livro do aluno
também foi escolhido pela sua atualidade18 e sintetização19.
7.2. Bem-vindo – A Língua Portuguesa no mundo da comunicação
O BV é um manual publicado pela SBS Editora de São Paulo. Sua primeira edição data de 2002 e
é usado em diversos cursos de PLE20 pelo Brasil e em outros países dos quais se têm notícias. O manual é
Conforme Berwig: (...) Percepção é o processo de selecionar, organizar e interpretar os dados sensoriais de uma maneira
que permita dar sentido ao nosso mundo (...) O fato de sentirmos prazer ou repulsa diante da idéia de comer carne de boi,
peixe, cachorro ou cobra depende do que nossa cultura nos ensinou sobre comida. (...) Laraia (2004) conclui dizendo, que
embora nenhum indivíduo conheça totalmente seu sistema cultural, é necessário que tenha um mínimo de conhecimento
partilhado para operar dentro desse sistema (...) A credibilidade pessoal é um outro traço perceptual afetado pela cultura.
Pessoas que têm credibilidade inspiram confiança, sabem o que falam e têm boas intenções. (BERWIG, 2004:18-19)
18
Ano de 2004.
19
O livro aborda um amplo currículo para o ensino do português brasileiros para estrangeiros em apenas 26 unidades.
20
PLE é uma sigla comumente usada no campo do ensino de Português Língua Estrangeira.
17
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
composto de livro do aluno, cadernos de exercícios (para os públicos de origem asiática, anglo-saxônica e
latina), livro do professor, caderno de respostas aos exercícios e de transcrição dos textos em áudio e 4 CDs.
7.3. O país e o idioma
A unidade escolhida no manual BV foi a oitava. Ela tem como título “O país e o idioma”.
Tem como enfoques gramaticais verbos regulares e alguns irregulares da voz passiva e o particípio
passado. Quanto ao enfoque nocional-funcional, a unidade trata de aspectos relacionados aos símbolos
nacionais (Bandeira Brasileira, Hino Nacional, etc.), as diferenças entre o português falado no Brasil
e em Portugal e no campo comunicativo é abordada a ida ao restaurante. Esta unidade mostra o
Brasil estereotipado. Em um texto presente na página 73, os autores procuram, em poucas palavras,
descrever características físicas e culturais do país.
O docente diante de todo e qualquer material deve fazer uso da criticidade que venha ao
encontro dos objetivos do ensino. Na análise da referida unidade didáticaé necessário assumir o papel
de professor crítico e verificar alguns posicionamentos dos produtores do livro como carregados de
mitos, ideologias e pré-conceitos.
As categorias que analisaremos nesta parte do trabalho são as seguintes: Cultura como riqueza
acadêmica versus cultura popular; Cultura como um sistema de símbolos; Cultura como processo social; Cultura como
motivação e elemento emotivo; Cultura está intimamente ligada à formação de um povo, sua constituição quanto nação;
A cultura é aprendida; A cultura é baseada em símbolos; A cultura é dinâmica; A cultura é integrada; A cultura é
etnocêntrica e A cultura é adaptável.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Mitos - O texto apresenta os índios como os únicos habitantes da região norte; O Maranhão
como o único estado em que se fala o português mais correto do Brasil; Outro mito é considerar que
os imigrantes italianos, japoneses e alemães optaram por habitar a região sul em virtude de o clima
parecer aos seus países de origem. Entretanto, os fatos históricos mostram que a colonização se deu
primeiro nesta região e no sudeste em virtude das lavouras cafeeiras e a oferta de trabalho, além de
questões políticas e, posteriormente, espalhou-se para outras partes do país.
Ideologias - Os autores mostram neste texto que o brasileiro está satisfeito com a sua
situação difícil financeira, pois a enfrenta com otimismo e alegria, ou seja, vende-se a idéia de uma
nação feliz; No trecho “Região sudeste está uma das cidades mais conhecidas do mundo, verdadeiro cartão-postal
do Brasil: o Rio de Janeiro com sua belíssima vista, a estátua do Cristo Redentor e... suas mulheres bonitas.” Passa a
idéia de um comércio sexual; pois, a cidade do Rio de Janeiro está entre as capitais brasileiras onde há
um considerável número de prostitutas segundo as autoridades brasileiras.
Pré-conceitos - Acreditar que o Brasil é um país bom em virtude de não ter guerras nem
grandes catástrofes naturais é se mostrar reducionista diante dos vários aspectos que envolvem o que
vem a “ser um país bom”.
Outras informações - O tratamento que o texto dá a região centro-oeste, a resume única e
exclusivamente à capital federal – Brasília – e esquece de cenários importantes daquela região como
o Pantanal Mato-Grossense (MT/MS), Caldas Novas (GO) e a Chapada Diamantina (MT) entre
outras.
“Um grande elo de união do nosso povo é que em todas as regiões do Brasil fala-se português!”. Os autores
ignoraram a existência em território brasileiro de outros povos que usam outros idiomas, como os
indígenas presentes em muitos estados da federação, além das populações que adotam o português
brasileiro como segunda língua21.
Nesta parte da unidade, a tentativa dos autores em apresentar o Brasil de modo sintético
acaba se mostrando reducionista ao extremo. Outros estados importantes do país são ignorados,
como o renomado desenvolvimento do estado de São Paulo; a primeira capital brasileira, que foi
Salvador; as riquezas de Ouro Preto e Mariana no estado de Minas Gerais, a maior metrópole da
Amazônia que é Belém do Pará,...
As demais partes da unidade didática abordam a cultura como fatores lingüístico e econômico.
Lingüístico ao tratar do Timor Leste, considerada a nação mais jovem a adotar o português como
língua oficial e, econômica ao tratar do Mercado Comum do Cone Sul – o MERCOSUL.
Um outro ponto que chama a atenção é a desconcertante disposição de textos que abrangem
uma gama de temas. Conforme a lista abaixo:
Uma pequena carta na página 78;
Uma pesquisa acerca de informações (moeda, comida, população, etc.) sobre outras nações
(Angola, Argentina, etc.) na página 79, além de um texto que exalta o sucesso da cachaça no exterior.
A UD, em uma perspectiva organizativa quanto material didático, apresenta considerável
gama de atividades com muitos temas: Formação do Brasil, Timor Leste, MERCOSUL, entre outros.
Considera-se que, para um passo didático, os autores procuraram fornecer muitos aspectos gramaticais
e nocional-funcionais.
A UD aborda a cultura através de representações culturais, apresentando símbolos, idéias,
mitos e pré-conceitos no que tange a língua e culturas brasileiras. Estas características vão ao encontro
do trabalho de Kuper (1999:291) que trata dos aspectos culturais como maniqueísta, ou seja, aspectos
da cultura brasileira – ou brasileiras – que tratam de características consideradas representativas do
Brasil. O autor também destaca a discussão entre os antropólogos sobre as possíveis culturas, tanto
a chamada “alta cultura” como a “cultura popular”, esta última tratada com simpatia por muito
pesquisadores da área.
Como os japoneses nas cidades de Tomé-Açu e Santa Izabel, ambas as cidades no Pará. Bem como a cidade de Ivoti no
estado do Rio Grande do Sul onde se fala alemão como primeira língua, além dos surdos.
21
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
8. Considerações
O manual para o ensino de línguas, como já exposto acima, possuem considerável papel
no ensino-aprendizagem de uma língua, seja materna, segunda ou estrangeira. Porém, a experiência
mostra que muitas vezes em sala de aula o professor não se dá conta da potencialidade deste material
didático. O manual é um espaço em que estão presentes diversas atividades que podem colaborar com
a relação aluno-professor-língua. A cultura de uma língua está presente neste material e o docente
deve ter ciência do seu papel quanto colaborador entre essa cultura e o ensino da língua.
Neste contexto, entender a cultura como uma coisa livre da dinâmica que envolve a
humanidade é tratar de um universo em si e dar voltas ao redor de um objeto amplo, ou melhor,
incomensurável. Apesar do termo “cultura” aparecer como um vocábulo em número singular, o que
está por trás desta palavra incomoda muitos estudiosos e é usada por pessoas – estudiosas ou leigas –
em muitas situações. Situações estas em que não se pensa sobre o que vem a ser cultura.
Conforme foram expostos acima, conclui-se que a UD analisada apresenta características
referentes às representações culturais como mítica - O Maranhão como o único lugar em que é falado o português
mais correto do Brasil - ideológica – o povo brasileiro é um povo feliz, mesmo sem dinheiro – pré-conceituosa
–acreditar que o Brasil é um país bom pelo simples fato de não ter guerras e grandes catástrofes naturais.
Como se viu a cultura ainda é tratada como uma simbologia que a mostra estática, livre de
idéias novas e da dinamicidade existente no ser humano. Algo acabado e que dificilmente será mudado.
Os estudos mostram que é impossível considerar a cultura de um povo somente pelos modelos que a
mídia ou o próprio livro didático mostram. Os povos que falam a língua que está sendo estudada são
compostos por centenas de milhares – ou até milhões – de personalidades. Acreditar que toda essa
gente se comporta como um manual é esquecer a dinâmica humana. Nestes anos não existiam celular,
internet e tantos recursos que hoje estão presentes na vida moderna.
Por fim, o manual de português para estrangeiros deve ser tratado com criticidade. Com isso,
se terá um ensino de línguas mais livre de estereótipos, preconceitos, mitos e muros que atrapalham
o envolvimento do aluno com uma nova cultura.
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Volume 3
PLANEJAMENTO E EXECUÇÃO DE
ATIVIDADES INTERCULTURAIS NA
AULA DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS
Marcos dos Reis BATISTA
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: A sala de aula é um espaço de encontro, de pensar o mundo, de problematizá-lo, dentre muitas
outras coisas. Quando se trata de ensino de língua estrangeira, o espaço físico é um detalhe se comparado
à viagem que se pode fazer quando se começa a conhecer e a aprender uma nova língua. Nesse ambiente
não se ensina somente o lingüístico. Mas, também o cultural. Este relato de experiência tem o propósito de
apresentar o planejamento e a execução de aulas de português brasileiro para estrangeiros com ênfase no
cultural, principalmente quanto às regras sociais e quanto aos aspectos folclóricos do Brasil e dos países de
origem dos aprendentes. Assim, por meio das exposições dos alunos e do professor, percebeu-se encontros e
conflitos entre as culturas presentes e que por meio de atividades interculturalmente planejadas, pode-se chegar
ao diálogo, sem abandonar convicções a hábitos.
PALAVRAS-CHAVE: interculturalidade; português língua estrangeira; ensino-aprendizagem de línguas.
RÉSUMÉ: La salle de classe est un espace de rencontre, de penser sur le monde, de le problématiser, et
de réfléchir sur beaucoup d’autres choses. Quand se traite l’enseignement d’une langue étrangère, l’espace
physique est un détail comparé à un voyage qui peut se faire quand on commence à connaître et à apprendre
une nouvelle langue. Dans cette ambiance, on n’offre pas seulement l’enseignement linguistique ,mais aussi
culturel. Ce rapport d’expérience a le but de présenter le planning et l’exécution de cours de Portugais Brésilien
pour une correspondance culturelle, principalement en ce qui est des règles sociales et des aspects folkloriques
du Brésil et des pays d’origines des apprenants. Ainsi, au moyen des expositions des étudiants et du professeur,
on s’est aperçu de points de rencontres et de points conflits de cultures en présence, et au moyen d’activités
interculturelles planifiées ,on peut aboutir au dialogue; sans abandonner ses convictions habituelles.
MOTS-CLÉS: Interculturalité, portugais langue étrangère, enseignement-apprentissage de langues.
1. Introdução
O objetivo de planejar atividades interculturais é o de relacionar hábitos/atitudes sociais
dos falantes do português do Brasil como meio para o ensino dessa língua-cultura a aprendentes
estrangeiros. Ao planejar atividades que tem como base a cultura, temos como objetivos específicos:
expor os alunos a modelos de situação interacionais, como o encontro entre colegas de uma mesma
faculdade; expor/criar versões desses modelos situacionais para cada língua-cultura (congolesa,
haitiana, alemã e brasileira); apresentar, refletir, discutir e analisar todos os modelos expostos; e,
dialogar a importância de se construir uma reflexão entre as diferentes culturas, buscando ressaltar a
necessidade do diálogo entre falantes nativos e novos falantes (aprendentes).
Este curto trabalho está dividido oito partes, conforme a seguir: Cultura e intercultura, Da
intercultura ao ensino de línguas em uma perspectiva intercultural – a sensibilização diante do outro, Competência
comunicativa intercultural, Desenho de atividades interculturais, Sugestões de atividades, conclusão, Referências
e Anexos. Incluímos em nosso trabalho os itens Da intercultura ao ensino de línguas em uma perspectiva
intercultural – a sensibilização diante do outro e Competência comunicativa intercultural buscando orientar o
leitor a outros limites dos estudos da interculturalidade e ensino-aprendizagem de línguas. Mas, nosso
intuito é de apresentar um pouco da nossa curta experiência no ensino-aprendizagem de português
do Brasil para estrangeiros.
2. Cultura e intercultura
O termo “cultura” faz parte dos estudos de diversos campos e é objeto de investigação
de longa data. Tê-lo como objeto de estudo é incomensurável e desperta calorosas discussões. De
uma perspectiva racista a uma perspectiva intercultural, muitas são as argumentações, as contraargumentações e as pesquisas que colaboram com o entendimento diante da problemática da cultura
em nosso mundo.
As palavras possuem uma história e de alguma maneira constroem a historia. O termo
“cultura” tem origem no latim, significa o cuidado dispensado ao campo e ao gado e aparece nos fins
do século XII para designar um trecho cultivável de terra (CUCHE, 2002, p. 19).
Ao decorrer dos diversos momentos que a humanidade passou, a cultura passou – e,
acreditamos que ainda passa – por consideráveis conceitualizações. Para os pensadores do Iluminismo
a cultura é o acumulo e transmissão dos saberes pela humanidade ao longo da história (CUCHE, 2002,
p. 21). No vocabulário Frances do século XVII cultura está muito próxima do termo “civilização”,
que naquela época tem grande prestígio. Nesse âmbito, o primeiro termo evoca os progressos
individuais e o segundo os processos coletivos. Porém, em nosso trabalho não nos ocuparemos na
palavra “civilização”.
No século XVII kultur aparece no alemão como uma transposição exata do vocábulo francês.
Entretanto, trata-se de dois sentidos diferentes. A idéia germânica de cultura muda pouco no século
XIX e tem forte influência do nacionalismo da nação alemã (CUCHE, 2002, p. 28). A idéia germânica
considera a cultura como um conjunto de conquistas artísticas, intelectuais e morais que constituem o
patrimônio de um povo, de uma nação. Na França, o termo se enriqueceu com uma dimensão coletiva
e passou a ser considerada como um conjunto de caracteres de uma determinada comunidade, porém,
em um sentido geral e impreciso (CUCHE, 2002, p. 29).
Santos (2008) ajudam-nos a esclarecer a concepção de cultura na modernidade. Ele destaca
duas concepções básicas, a primeira concepção remete aos caracteres de uma realidade social e, a
segunda, refere-se mais especificamente ao saber, às idéias e às crenças de um povo (SANTOS, 2008,
p. 23).
O cultural é indissociável da língua, tanto no processo de aprendizagem, quanto na convivência
do estrangeiro com a nova língua, ou seja, “Sempre que você ensina uma língua, você também ensina
um sistema cultural complexo de costumes, valores, e maneiras de pensar, sentir e agir”. (BROWN
2001, p. 64). Com isso, parte-se da hipótese que o manual de línguas possui potencial1 para a difusão
do idioma de modo a conscientizar os aprendentes culturalmente e interculturalmente. Tal potência
ajuda a construção de conexões educativas e processos de aprendizagem mútua entre os grupos
culturalmente diferentes (FLEURI, 2003, p.10).
Furtado (2005, p. 53) apresenta um dos papéis do componente cultural diante do EAL em
que “o componente cultural media as interações, lançando a idéia de que os conhecimentos culturais
partilhados pelos interlocutores são indispensáveis para o desenvolvimento do processo interacional,
por meio da intercompreensão”.
Laraia (2005) apresenta em seu livro Cultura: um conceito antropológico o desenvolvimento do
conceito de cultura durante vários séculos. Entender cultura como fenômeno com muitas facetas
e características nos ajudará a apresentar um quadro da atual situação de como os elaboradores de
manuais tratam em seus trabalhos a cultura, ou melhor, as culturas. É partindo dessa situação – a
cultura em um sentido plural – que o presente estudo se mostra como um espaço para reflexões
diante do nosso objeto de estudo e trabalho.
Ao tratar da intercultura, Desmeserets (apud FURTADO, 2001, p. 34) diz que “intercultura
é a presença e a inter-relação em um mesmo tempo e em um mesmo espaço, de pessoas de diversas
culturas que coexistem”. Para Alsina (1999, p. 74) a interculturalidade é como “as relações que se
dão entre as diversas culturas em um mesmo espaço real, midiático ou virtual, que também teriam
referencia a dinâmica que se dá entre (...) as comunidades culturais”. O intercultural vem a somar
com a interação quando se trata da aprendizagem de uma nova língua. Com isso, podem-se ampliar
horizontes pessoais e profissionais. Com isso, investigar os aspectos culturais – como a cultura ou as culturas
brasileiras são tratadas em um manual para o ensino de PBLE – e os interculturais – a relação das atividades
com a cultura dos alunos estrangeiros – se coloca como o caminho a ser traçado para o desenvolvimento
deste trabalho.
Podemos, grosso modo, considerar as regras sociais - como sentar-se a mesa, apresentar-se
a alguém ou como se dá o casamento em uma determinada sociedade – fazendo parte da primeira
concepção. E, o folclore. As expressões artísticas fazendo parte da segunda.
No ensino-aprendizagem de línguas, a sala de aula PE o laboratório para o professorpesquisador. É nesse ambiente que podemos verificar diversos mitos – que ouvimos ainda na formação,
nos cursos de licenciatura – se tornarem realidade e, ainda mais, problemas que nos incentivam a
produzir textos, nos fazem refletir sobre o quê ensinar, o porquê ensinar, o para quê ensinar.
Em uma sala de aula de língua estrangeira, o encontro entre culturas é certo. Nesse ambiente,
temos o professor de língua com sua cultura pessoal/coletiva e com seu modo de ensinar, os alunos
com suas culturas pessoais/coletivas e seus modos de estudar/aprender e, os materiais didáticos,
geralmente os manuais de língua, com seus conteúdos culturais.
Ao pensar em um ensino de uma língua-cultura, é importante reconhecer que a sala de aula é
um ambiente em que deve-se pensar sobre o que tratar como cultural. Para Carvalho (2009) “ensinar
uma língua é ensinar cultura, não como uma quinta habilidade, que requer uma didática especial, mas
como um elemento inerente à língua, que deve fazer parte da sala de aula desde o início do processo
de aprendizagem”. Algumas questões nos são necessárias, como: O que ensinar quando o assunto
é tratar de elementos culturais? E ainda, como partir de um ensino cultural para atividades que tem
como finalidade o diálogo intercultural? Mais a frente trataremos da problemática do intercultural no
ensino de línguas.
Para pensar na língua-cultura-alvo requer uma reflexão diante dos estereótipos. Segundo
Balboni (1999) esse são modelos culturais empiricamente verificáveis que são generalizados como
representantes fieis de um determinado povo ou nação. Em nosso caso, o ensino do português
Entende-se aqui Potencial como motivação para a aprendizagem de um novo idioma. Neste âmbito a motivação deve
ser levada em conta na aprendizagem de uma língua com vista à aproximação do aluno com uma nova cultura. Por meio
de uma reflexão diante dessas atividades pode-se começar a pensar acerca de como desenvolver a consciência cultura e
intercultural do aprendente e, também, do docente utilizando os materiais didáticos de PBLE.
1
brasileiro para estrangeiros, como tratar da cultura brasileira sem cairmos em estereótipos? Essa
questão nos daria, quem sabe, uma ampla produção de textos e pesquisas.
Cada cultura é o resultado de uma história particular (SANTOS, 2008, p. 12), ou seja, é a
construção de um longo caminho. Ao tratarmos de cultura, estamos tratando de idéias, de cidadãos
que constroem suas vidas em um ambiente e as transformam conforme essas idéias e discussões
diante do que se construiu até determinado período na sociedade onde essas pessoas vivem. Então,
cultura brasileira é o resultado de diversas histórias. Mas, para Santos essa história particular também
incluiu relações com outras culturas – aqui entendemos também como povos – com os quais podem
ter características bem diferentes (SANTOS, 2008, p. 12).
A relação com outras culturas é evidente no Brasil quando nos atentamos diante de nossa
história. Principalmente com relação aos povos africanos que aqui chegaram. A presença negra é
muito forte, temos como exemplo o samba, que é uma das mais destacadas expressões culturais do
país que é atribuída à estereotipada vivacidade do escravo negro.
Conforme citado acima, quando tratamos de cultura, tratamos de sujeitos que possuem
inúmeras características, essas pessoais e outras coletivas. Esses sujeitos possuem hábitos às vezes
próximos e, muitas vezes, distantes. Nesse distanciamento temos o estranhamento, esse pode ser
chamado de choque cultural ou de choque entre-culturas. Choque cultural é entendido como o
conjunto de reações que um indivíduo pode experimentar ao entrar em contato pela primeira vez com
uma cultura diferente da sua, cujo o grau de conhecimento pode ser quase nulo (OLIVERAS, 2000;
ALSINA, 1999). Segundo alguns trabalhos recentes, sustenta-se que quanto maior for a distância
entre a cultura do sujeito/aprendente daquela estrangeira mais evidente será o choque cultural.
Em muitos países europeus, os estudos diante da cultura e ensino-aprendizagem de línguas
tiveram forte impulso em virtude do fenômeno imigratório naquele continente. Em outras nações,
como o Brasil, o tratamento ao ensino de línguas em uma perspectiva cultural e, também, intercultural,
se dá pelo grande fluxo de pessoas que desejam pelos mais diversos motivos se integrar com a línguacultura brasileira. Trataremos então do que vem a ser o intercultural em nosso trabalho.
Para o início da aprendizagem de uma língua nova, obter informações sobre o modo de vida
dos falantes dessa colabora consideravelmente com o trabalho do aprendente. Conhecer as diversas
características da comunidade onde se fala o idioma que está sendo aprendido diminui as chances
de ocorrer conflitos entre o aprendente e os falantes nativos. Também é valido destacar que nem o
manual de língua, nem toda a gama de informações levados pelo professor para a sala de aula será
suficiente para esgotar as inúmeras situações de contato com a nova língua-cultura-alvo.
Nesse ambiente de aprendizagem, de contato com pessoas de outras culturas, temos diferentes
processos: a multiculturalidade e a interculturalidade. O multicultural é o processo pelo qual duas ou
mais culturas convivem em um mesmo ambiente – como é o caso de muitas comunidades turcas na
Alemanha -, mas, não há interação, ou essa é extremamente restritiva entre ambas (BALBONI, 1999;
FLEURI, 2003). A interculturalidade é um processo pelo qual duas ou mais culturas conseguem
interagir, mesmo com a presença de conflitos (BALBONI, 1999; CUCHE, 2002; ALMARZA e
CALVO, 2002). A cultura como interculturalidade pode compreender uma língua, uma cultura nova
desde este enfoque requer colocar nesta cultura em relação com a própria. Não é uma transmissão de
informação. Leva consigo uma reflexão sobre as duas culturas (ZARATE, 1982; PORCHER, 1986;
KRAMSCH, 1993).
Para Balboni (1999, p. 17) para cada diferença cultural, funde-se uma nova realidade, ele
considera o multicultural uma fase transitória, a espera de uma pseudo “homogeneização”. Porém, a
interculturalidade é uma atitude constante, que considera a riqueza na variedade, que não se propõe
à homogeneização e objetiva permitir a interação mais plena e fluída possível entre as diferentes
culturas, ou seja, entre os diferentes sujeitos.
Tratar o ensino de uma língua-cultura em um processo ou em um a perspectiva intercultural
não significa abandonar os próprios valores e se tornar um membro de uma determinada cultura e,
segundo Balboni (1999, p. 17) entrar em uma perspectiva intercultural significa: a) conhecer os outros;
b) tolerar as diferenças, menos em uma esfera de imoralidade que em nosso padrão não tendemos
a aceitar; c) respeitar as diferenças que nos colocam como problemas morais, mas que reenviam
somente às diferentes histórias das várias culturas, e d) colocar em discussão os modelos culturais
onde crescemos. Para Geertz (2003, p. 89) define cultura como um entrelaçado semiótico transmitido
historicamente de forma que nos permite comunicarmos e perpetuar o conhecimento, as crenças e
as atitudes sobre o mundo.
3. Da intercultura ao ensino de línguas em uma perspectiva intercultural – A sensibilização
diante do outro
A mentalidade diante da interculturalidade age com o desejo de integrar as pessoas com a
diversidade que distingue os aprendentes de uma nova-língua que vêem de outras culturas. Assim, se
configura um processo de positiva hibridação por meio do qual cada pessoas supera o próprio centralismo
cultural e adere a uma nova forma de agir diante do outro (MENEGALDO, 2007, p. 06).
Menegaldo (2007) apresenta algumas coordenadas quando tratamos da didática intercultural,
são esses: a) O senso das convenções: duas ou mais pessoas conseguem conviver de maneira pacifica
porque aceitam em dividir normas e regras em comum; b) O senso de partilha: nasce do EU pelo
desenvolvimento da autonomia, da auto-estima, da independência de pensamento e de escolha; c) Da
tensão para a unidade: é fruto da conscientização de colaborar com outro ser humano e de repartir em
comum direitos humanos. Ter atenção e estar aberta ao mundo e d) Capacidade de descentralização:
quando uma pessoa supera o próprio ponto de vista como único possível e começa a entender que o
relativismo cultural não a ajuda a interagir com o mundo.
Antes de darmos continuidade, é interessante esclarecer o que vem a ser Relativismo
cultural. Esse, segundo o Diccionario de términos clave de ELE (2009) é a atitude estudada por uma
corrente de pensamento que postula a idéia de que cada cultura deve se entender dentro de seus
próprios termos e destaca a impossibilidade de estabelecer um ponto de vista único e universal
na interpretação das culturas. Na posição contrária, se situa o universalismo cultural que afirma a
existência de valores, juízos morais e comportamentos com valor absoluto e, com isso, aplicáveis a
toda a humanidade.
A sensibilização quanto à interculturalidade não é inata, mas é o resultado de um
processo formativo que o ensino de uma nova língua pode – e até certo ponto, deve – colaborar
consideravelmente. Principalmente quando tratamos da troca em pessoas de diferentes mundos.
Por isso, consideramos importante transcrever as considerações de Menegaldo (2007) acerca da
sensibilização do intercultural.
4. Competência comunicativa intercultural
Para colaborar com a nossa reflexão, tratamos para efeito de informação acerca da
competência comunicativa intercultural.
Cada língua nasce de uma cultura e é a expressão da sociedade que a produz. Por isso, essa
expressa concepções de mundo, valores, modalidades de interação peculiares e, é uma entidade em
contínua modificação (Menegaldo, 2007, P. 09).
A diversidade lingüística constitui de um lado uma riqueza considerável e do outro, se
coloca como um problema no momento em que a comunicação deve ser instaurada entre falantes
de diferentes línguas (BALBONI, 1999; SERRAGIOTTO, 2006, MENEGELDO, 2007). Nessa
situação, é necessário uma preparação quanto ao encontro entre diferentes culturas, uma preparação
intercultural e, assim, desenvolver a competência comunicativa intercultural (OLIVEIRA SANTOS,
2004). Essa tem como fundamento a reciprocidade dos sujeitos envolvidos e sua adequação bilateral
(EU e TU ou NÓS e VOCÊS) da comunicação.
Conforme Oliveira Santos a abordagem comunicativa intercultural
Pode ser resumida como a força que pretende orientar as ações dos professores, alunos e de outros
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem de uma nova língua-cultura, o planejamento de curso, a
produção de materiais e a avaliação da aprendizagem com o objetivo de promover a construção conjunto
de significados para um diálogo entre culturas (2004, p. 154)
E pode ser desenvolvida por meio de atividades em sala de aula, materiais didaticos que tratem
da relação entre a língua-cultura-alvo e o aprendente. Por isso, nos próximos tópicos deste trabalho,
apresentaremos outras considerações acerca do cultural e do intercultural no ensino-aprendizagem
de português brasileiro como língua estrangeira e reflexões quanto ao planejamento de atividades
interculturais.
Passaremos no próximo item a tratar do desenho de uma atividade intercultural. Com isso,
pretendemos dar inicio as nossas projeções diante de um ensino intercultural.
5. Desenho de atividades interculturais
Apresentamos nesta parte do trabalho o planejamento de uma atividade intercultural com
alunos de português língua estrangeira no âmbito da Universidade Federal do Pará. Para a construção
de atitudes interculturais, necessitamos a partir da sala de aula, desenvolver atividades que ajudem
os alunos a conhecer de modo satisfatório a nova língua. para isso, faremos uso do modelo de
interculturalidade de Byram (apud CALVO; ALMARZA, 2005) como base para a composição de
planificação, ensino e posterior avaliação.
Apresentamos o esquema desenvolvido por Calvo e Almarza ( 2005, p. 926-927):
Conhecimento (que?): o que os membros de outra cultura ou grupo cultural ou social
consideram ou percebem como significativo (identidade nacional e manutenção da comunidade
nacional). Conhecimento de grupos sociais, seus produtos e praticas culturais no país nativo e no
estrangeiro. Exemplos: conhecer as percepções sobre as regiões e as identidades regionais, as distintas
línguas, etc.
Dois níveis de conhecimento:
– Conhecimentos de fatos/dados e
– Apreciação de significado que são levados em consideração
Atitudes: representam os aspectos afetivos e cognitivos da empatia: curiosidade e abertura,
disposição para se deixar convencer por outra cultura. Exemplo: disposição para questionar os valores
e as pressuposições das praticas e dos produtos culturais no próprio contexto.
Comportamento: a cultura definida como comportamento compartilhado de um determinado
grupo social se apresenta em parte por meio de normas e de convenções de comportamento.
Essa classificação é de Calvo e Almarza (2005, p. 926-927) e, nos ajudam a entender alguns
aspectos de uma análise e projeção de atividades com base no cultural e no intercultural.
6. Sugestões de atividades
Com base em Calvo e Almarza (2005), apresentamos uma lista de temas que podem ser
tratados em atividades interculturais:
Tema 1: primeiras impressões:
Conhecer os aspectos geográficos e históricos do país e da língua que está se aprendendo;
Familiarizar os alunos com os nomes dos estados e cidades.
Tema 2: espaços públicos:
Ajudar os alunos a sintonizar com o novo contexto cultural;
Desenvolver um interesse para descobrir outras perspectivas e interpretações de fatos
familiares.
Tema 3: o mundo do trabalho:
Conhecer e reconhecer aspectos da economia do país onde a língua que está sendo estudada
é falada.
Tema 4: os tabus da sociedade:
Apresentar os temas polêmicos da sociedade.
7. Conclusão
Consideramos que a sala de aula é um espaço de encontro, de pensar o mundo, de
problematizá-lo, dentre muitas outras coisas. Quando o assunto é o ensino de língua estrangeira, o
espaço físico é um detalhe se comparado à viagem que se podem fazer quando se começa a conhecer
e a aprender uma nova língua. Nesse ambiente não se ensina somente o lingüístico. Percebemos no
texto acima que os termos cultura e intercultura fazem parte de um complexo campo de estudos
que temos para explorar e refletir diante da problemática do ensino do português brasileiro para
estrangeiros. Consideramos que é preciso uma reflexão maior e o planejamento de atividades que
possam desenvolver a conscientização diante de diferentes culturas, tanto a do aluno estrangeiro,
quanto a cultura que ele está aprendendo. Com isso, facilitaremos a inserção do aprendente na nova
língua e colaboraremos em diminuir conflitos entre as culturas presentes e que por meio de atividades
interculturalmente planejadas, pode-se chegar ao diálogo, sem abandonar convicções e hábitos.
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Anexo I
Questionário (adaptado de ALMARZA & CALVO, 2002)
Interculturalidade e ensino de línguas
Nome:
Experiência profissional:
Centro de ensino:
Materiais utilizados / manual de línguas
O que significa “aprendizagem intercultural”?
Quando nos encontramos entre duas culturas, tendemos a compará-la. Com isso, se produz
uma aprendizagem desse modo? Que tipo de conclusão podemos ter quando fazemos
comparações? E por que?
O que significa dizer “ensinar língua é ensinar cultura”?
Como podem os estudantes em um meio superficial, a sala de aula, ter acesso a códigos
culturais de outra realidade?
Se quisermos ensinar a língua de forma que os estudantes apreciem seus significados sociais
e culturais. Que significados podem ser explícitos? Que significados podem ser entendidos
de forma explicita?
Como se pode ensinar uma perspectiva do outro (cultura estrangeira) em um contexto
educativo que é por sua vez produto de suas próprias concepções e valores (cultura
nativa)?
O que quer dizer ser culturalmente competente? Adquirir a cultura de forma que
nos permita comportamentos que seguem a convenções sociais de uma determinada
comunidade lingüística? Temos como objetivo final que nossos alunos desenvolvam outra
personalidade?
A competência intercultural se definiu como a habilidade de nos comportarmos de forma
adequada e flexível de enfrentar com ações, atitudes e expectativas no encontro com
representantes de uma cultura estrangeira. Como se pode conseguir isso?
Ate que ponto é possível chegar a ser cognitivamente membros de outra cultura? Podem os
adultos aprender a construir e ver o mundo por meio de olhos culturalmente diferentes?
Anexo II
Diálogo para uma reflexão em sala de aula:
“Johannes é belga, Steve é africano. Encontram-se em uma tarde de inverno:
Johannes: Você quer um café?
Steve: Não, obrigado, estou sem fome.
Johannes: quer um CAFÉ?
Steve: Não, obrigado. (breve intervalo) estou sem fome. (longo intervalo)
Johannes: você quer beber alguma coisa?
Steve: ah! Com certeza, faz frio.
Johannes: que tal um café?
Steve: tudo bem!
Este exemplo é extraído do trabalho de Serragiotto (2008). Steve reage a pergunta inicial como se
fosse oferecido a ele uma comida, quanto que na sua cultura (Haya, norte da Tanzânia) para as
visitas são oferecidas folhas de café para mastigar, como símbolo de amizade, hospitalidade e riqueza.
Conseqüentemente é natural que seja coerente que o café seja uma comida, e não uma bebida. a
categorização de Johannes é diferente, café é uma bebida quente. Ou seja, é claro nesse exemplo a
falta de conhecimento de ambas as culturas dos interlocutores.
às margens do jornal, às margens do Diário:
forma literária e processo social em
Triste Fim de Policarpo Quaresma
Marcos Vinícius SCHEFFEL
(Universidade Federal do Amazonas)
RESUMO: Triste Fim de Policarpo Quaresma é o romance mais conhecido da produção ficcional de Lima Barreto.
Sua primeira publicação foi em 1911 em folhetins do Jornal do Comércio. Em 1915 veio a primeira edição em
livro. O que nem todos sabem é que o romance apresenta um esboço nas páginas do Diário Íntimo e que muitos
temas tratados nas crônicas reaparecem na (re)construção ficcional daqueles primeiros anos da República.
Esse artigo pretende discutir o processo ficcional de Lima Barreto, ou seja, comparar os dados da realidade anotados no Diário Íntimo e nas crônicas publicadas em jornais - com a realização de um romance de acordo
com os pressupostos realistas onde os elementos subjetivos deveriam ser expurgados.
PALAVRAS-CHAVE: Lima Barreto – literatura brasileira – gêneros literários (diário, crônica, romance)
ABSTRACT: The sad end of Policarpo Quaresma is Lima Barreto’s best-known novel. It was published for the first
time as a serialized novel in a newspaper called Jornal do Comércio. In 1915 it was published in book form. But
not many people know that there is a draft of the novel in Lima Barreto’s Intimate Diary and that various themes
explored in his chronicles reappear in the fictional (re)construction of the first years of the Brazilian Republic
portrayed in Policarpo Quaresma. This paper aims at discussing Lima Barreto’s fictional process by comparing
data from the reality, written down on the diary and on the chronicles published in newspapers, to writing a
novel according to Realism aesthetics which presupposed that subjective elements should be eliminated.
KEY WORDS: Lima Barreto – Brazilian literature – literary genres (diary, chronicle, novel).
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A germinação do romance
Um Diário Extravagante. É com essa frase que Lima Barreto abre o seu Diário Íntimo em
1903. O que teria de tão extravagante nesse Diário? O conteúdo faz lembrar qualquer outro diário:
quem dá as cartas é Chronus, obrigando o autor do diário a manter os registros do dia a dia por mais
insignificantes que possam parecer. Por isso, pode-se encontrar nessas páginas anotações que passam
pelos desgostos na Secretaria de Guerra a confissões que custam muito caro a Lima Barreto – como
as que se referem à desarmonia em seu lar. Até aí, não temos nada de extravagante.
Será que os registros literários feitos pelo autor poderiam ser considerados extravagantes?
Esses registros podem ser divididos em dois grupos: 1o os registros mais crus, ou seja, que não têm
um trabalho ficcional, mas que demonstram determinada preocupação temática de Lima Barreto
(funcionalismo público, imprensa, política, etc.); 2o os registros ficcionais – descrições de personagens,
palavras-chave que definem momentos importantes do livro. Extravagante ou não, o Diário Íntimo de
Lima Barreto é uma fonte inesgotável de pesquisa para aqueles que querem entender melhor o projeto
ficcional do autor. Nele, estão os esboços dos principais romances do autor e também os projetos
de romances inacabados ou romances abandonados pelo mesmo. Triste Fim de Policarpo Quaresma não
foge a essa regra, tendo anotações importantes do romance que passam pelo Diário. Para analisar
o aproveitamento dessas anotações ficcionalmente, deve-se levar em consideração os dois tipos de
anotações que podem ter contribuído na escrita do romance.
Do primeiro grupo, uma constatação: o autor praticamente não anota até 1910 nada de
mais específico a respeito dos temas principais tratados no livro: a Revolta da Armada e o governo
de Floriano Peixoto. No ano de 1904, as anotações mais importantes desse grupo referem-se ao
ambiente da Secretaria de Guerra e ao bacharelismo fortemente criticado pelo autor em toda a sua
obra. Do ambiente da Secretaria de Guerra, Lima Barreto observa a mania das demandas:
Durante o meu primeiro ano de amanuense de Secretaria de Guerra, foi reclamada a baixa de quatro
soldados que eram peruano, italiano, oriental e português.
Eram freqüentes os decretos declarando sem efeito as promoções de alferes a tenente, por não existirem
no exército oficiais com aqueles nomes. (BARRETO, 1961, p.45)
O hábito das demandas é ironizado no romance pelas figuras do general Albernaz e do
contra-almirante Caldas. Militares remanescentes da Guerra do Paraguai (sem terem participado de
uma única batalha) ambos ficam procurando brechas na lei para poderem tirar vantagens pessoais.
Para realçar a nulidade de tais demandas, o autor procura mostrar a falta de afinidade de ambos com
a carreira militar. Albernaz conta façanhas da Guerra do Paraguai, quando indagado se esteve lá usa
sempre uma frase padrão para responder: “Não estive, mas o Camisão...” Já o contra-almirante Caldas
fora deixado de lado pela Marinha, pois ficou meses procurando – pelos quatro cantos do país – o
navio para o qual ele fora designado comandante. Detalhe: o navio já tinha sido afundado. Esses
pseudomilitares freqüentavam com certa assiduidade a Secretaria de Guerra, como se pode ver nessa
outra anotação do Diário:
Quando eu fui amanuense na Secretaria de Guerra havia um tal B... coronel ou cousa que valha, que era
um tipo curioso de idiota. Ignorante até à ortografia; jactancioso. A coragem dele e sua vibração pessoal só
surgem quando veste a farda. É conveniente mesmo escrever alguma cousa a esse respeito. [grifo meu]
O Exército, ou antes, os oficiais generais de mar e terra escaparam, pelas masorcas (sic) de novembro, de
serem tomados de terror pânico.
Gente habituada à guerra, e familiarizada com seus instrumentos, tomo como sendo canhão, em Porto
Artur (Saúde), um tubo de poste telefônico quebrado e assestado. Bombas eram inofensivas peças de
madeira, envolvidas pacificamente em fio de ferro. Almas doutro mundo! (BARRETO, 1961, p.48)
O culto às aparências encontra nesse militar corajoso quando veste a farda um tipo
representativo da Primeira República. Ciente disso, Lima Barreto resolve trabalhá-lo ficcionalmente,
deixando anotado no Diário que é conveniente escrever algo a respeito. Seria essa uma primeira anotação
para o Triste Fim de Policarpo Quaresma? Parece muito pouco, mas não resta dúvida que a ignorância
dos militares em relação aos armamentos é devidamente aproveitada no romance, bastando lembrar
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
a cena em que o Major Quaresma faz cálculos matemáticos, em pleno conflito, para usar com mais
precisão o canhão, sendo ironizado pelo Tenente Fontes: “– Ora, major, você pensa que está em um
polígono, fazendo estudos práticos... Fogo para diante!” ( BARRETO, 1981, p.167)
Além desse dado risível dos militares, também mexeram profundamente com Lima Barreto
os incidentes da Revolta da Vacina. O autor não fez um registro dia a dia, pois temia que seu Diário
fosse descoberto e resolveu escondê-lo durante a Revolta, segundo Lima Barreto o mesmo espírito
de delação da Revolta da Armada colocava a liberdade de todos em perigo. Assim, o autor só retoma
seus apontamentos quando a Revolta teve seu fim:
Durante as masorcas (sic) de novembro de 1904, eu vi a seguinte e curiosa cousa: um grupo de agentes
fazia parar os cidadãos e os revistava.
O governo diz que os oposicionistas à vacina, com armas na mão, são vagabundos, assassinos, entretanto
ele se esquece que o fundo dos seus batalhões, dos seus secretas e inspetores, que mantêm a opinião deles,
é da mesma gente.
Essa masorca (sic) teve grandes vantagens: 1a demonstrar que o Rio de Janeiro pode ter opinião e defendêla com armas na mão; 2a diminuir um pouco o fetichismo da farda; 3a desmoralizar a Escola Militar.
(BARRETO, 1961, p.47-48)
As delações também foram comuns durante a Revolta da Armada. No romance, as delações
servem para que os arrivistas, como Genelício e Armando Borges, possam alcançar os cargos
desejados. Por outro lado, o clima de caça às bruxas é fator determinante para que Policarpo Quaresma
seja executado. Nenhuns dos personagens arrivistas se arriscam a pedir pela vida de Quaresma por
saberem que isso pode significar cair em desgraça aos olhos do regime.
A observação sobre a Escola Militar também é relevante, pois se tratava de um dos principais
redutos positivistas, um esteio da República. Na transposição ficcional, a importância dada à Escola
Militar é confirmada na cena do romance em que Floriano Peixoto recebe conselhos dos cadetes da
escola com a maior familiaridade e sem que haja um respeito pela hierarquia.
Essas anotações menos trabalhadas ficcionalmente devem ter levado Lima Barreto a
concluir que pouca coisa mudara entre 1893 e 1904. Na realidade, as duas revoltas tinham uma
origem semelhante: a desilusão com a República – sentimento que é o ponto culminante no trajeto
do major Quaresma. Porém, como mostrarei numa análise mais específica do romance, a desilusão do
personagem principal necessitava que antes houvesse uma ilusão e também era necessário contrapor
Quaresma com um quadro adverso. Assim, o romance pedia que se criassem personagens que tirassem
proveito desse quadro antidemocrático. Além do fetichismo da farda era preciso destruir o fetichismo
do doutor como demonstram várias anotações do Diário:
O Barbosa Lima descompôs o Medeiros; não há negar que o Medeiros é vil como uma serpente, mas o
Barbosa Lima tem sido de uma felicidade pasmosa, tendo sempre como adversário fofos literatos (no mau
sentido!), que não podem arrancar-lhe aquela máscara de matemático e de filósofo.
É um péssimo espírito esse Barbosa Lima, utópico, granítico, recheado de positivismo, cheio de idéias
sentimentais, mas no fundo cruel e covarde moral. É uma das mais belas flores do bacharelismo do Exército,
bacharelismo cheio de espírito de casta e fofa ciência. Convém debicá-lo. (BARRETO, 1961, p.43-44)
Novamente, Lima Barreto mostra que tem a clara intenção de combater determinado
tipo: o bacharel. Numa ordem que se dizia democrática, o anel de doutor substituía os títulos de
nobreza. Aliás, essa é a imagem que o personagem Coleoni, o italiano compadre de Policarpo
Quaresma, fazia dos doutores no Brasil, considerando-os equivalentes aos barões da Itália. No
Triste Fim de Policarpo Quaresma vários personagens sintetizam essa valorização do doutor, dois
deles exercendo um papel fundamental no romance: Genelício e Armando Borges. Ao primeiro,
estudante de direito e “escritor” de maçudos tratados de contabilidade é reservada a função de
dar a notícia da loucura de Quaresma, quando ele manda uma petição solicitando a mudança da
nossa língua para o tupi-guarani. Já no segundo Lima Barreto consegue concentrar uma série de
elementos do bacharelismo e do arrivismo da época. Armando Borges é doutor, escreve em língua
clássica artigos médicos, substituindo termos comuns por palavras em desuso. Não consegue ler
905
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
os livros de sua área e nem os romances da mulher, tendo que se contentar com os açucarados
romances de Paulo Kock – disfarçados em capas de outros livros.
Como tentei demonstrar até aqui, esse primeiro grupo de observações deve ter dado
subsídios necessários para construção ficcional de Lima Barreto. Claro que as relações não são diretas
e os exemplos dos romances servem apenas para demonstrar que de alguma forma os temas são
trabalhados ficcionalmente. A primeira idéia mais definida referente ao livro data de 16 de janeiro de
1905 e se confunde, de certa maneira, com outro projeto ficcional do autor: Clara dos Anjos:
Um livro que pensei. Tibau, filho de uma rapariga que fugira da casa de seu pai em companhia de um
valdevinos, que pouco depois a abandona, educa com grandes dificuldades esse filho, que chega a estudar
medicina; mas, no terceiro ano, sem o adubo que era sua mãe, a planta fenece sem arrimo e, por fim, por
recomendação de um colega, vai ser professor de história do Brasil, num colégio em Botafogo; o diretor,
notando que era um desar para seu estabelecimento ter um professor sem título algum, arranja-lhe o de
major da Guarda Nacional. Eis senão quando o Major Tibau, que do seu avô pouca notícia tivera, vêm
a saber que ele tinha morrido no Porto deixando-lhe (e reconhecendo-o como neto) toda a sua fortuna:
dois mil contos. No curso das suas lições de história, Tibau tinha adquirido um grande amor do Brasil e
acariciara o sonho de uma Sociedade de Folclore, que se destinava a recolher os cantos, as tradições e a
poesia popular da nossa terra. Cultivar e festejar as datas familiares com o sainete nacional e os respectivos
manjares. Possuidor dessa fortuna, funda a sociedade, com a qual é explorado por jornalistas, poetas,
estudantes, debicado pelos ministros e funcionários, a quem se dirigiu para pedir uma subvenção. Morre
numa estalagem, às sete horas da noite, estalagem a que se acolhera com um preto velho, o Nicolau, que
fazendo “ganchos”, ia-o fazendo viver; morre, mandando que lhe abram a porta e a janela, para ouvir
melhor a cantilena da criançada ao luar. (BARRETO, 1961, p.86)
As diferenças entre esse apontamento e o romance são essenciais para se compreender os
ganhos que o romance teve: 1) o romance não fornece a origem familiar de Quaresma, nem mesmo seu
local de nascimento, levando o narrador a afirmar que o personagem não era tomado por sentimentos
regionalistas e que amava o país por igual; 2) O amor de Tibau pelo folclore brasileiro é substituído
por um sentimento exagerado em Quaresma que constata com tristeza que muitas tradições ditas
nacionais, como o tangolomango, deitavam suas raízes na Europa, levando-o a acreditar que era
preciso resgatar as tradições indígenas; 3) a morte do personagem não aparece no romance, mas sabese que ele foi executado “naquele tempo de carnificina” promovido pelo regime; 4) a mudança mais
significativa: o nome do personagem que remete à idéia das várias sementes/idéias (poli + carpo) que
não frutificaram, conforme assinalou Silviano Santiago (1982, p.163-181)
Esse “livro pensado” fica sem mais nenhuma anotação significativa até 1910 – ano em que o
autor faz um esboço geral do livro. A primeira anotação do romance mais trabalhada ficcionalmente
faz uso de um recurso já empregado no Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá: o uso de palavras-chave que
mostram a clareza do autor em relação a um determinado ponto que deve ser tratado no romance:
“Fuzilamento. Ilha das Enxadas. O enviado do marechal. Este, aquele. A leva. O batelão. Quaresma.
[...] A presença do poente [?]. Soluço. Será o mar?” (BARRETO, 1961, p.141)
Como se vê nesse apontamento, quase todo último capítulo já estava definido por Lima
Barreto. As anotações não aparecem na ordem do romance que é a seguinte: Ilha das Enxadas. A
leva. O batelão. O enviado do marechal. Fuzilamento. No romance, finda a Revolta da Esquadra,
Quaresma é designado carcereiro na Ilha das Enxadas. Lá é testemunha da violência do regime, vendo
que os prisioneiros eram levados num batelão para Ilha das Cobras onde eram executados. Indignado,
Quaresma se manifesta contra essas atrocidades. O enviado do marechal (Floriano Peixoto) leva
Quaresma para o mesmo destino dos prisioneiros, ou seja, o fuzilamento.
A percepção do conteúdo crítico do romance era bastante evidente, como se pode observar
numa anotação que praticamente sintetiza o problema de Policarpo Quaresma: “Ele não percebia
que via com os olhos do sonho, não descontava a refração dessa atmosfera especial, para avaliar a
realidade.” (BARRETO, 1961, p.142)
A anotação define algo perceptível pelo leitor, mas que não é dito dessa maneira tão direta
pelo narrador no romance. O leitor é levado a acompanhar a ação de Quaresma que leva a essa
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
constatação quando já é tarde demais. A consciência da nulidade da causa por que lutara toda a vida
começa a tomar corpo somente na Terceira Parte do romance, tendo o seu ponto máximo na carta
remetida à irmã, quando constata que o melhor é não agir.
Noutra anotação, Lima Barreto define características que irá atribuir a Floriano Peixoto:
preguiça, fraqueza e o sentimento paternalista para com os alunos da Escola Militar. Novamente,
reitera a idéia dos fuzilamentos. Mais adiante no Diário, Lima Barreto reorganiza os capítulos do livro,
deixando claro que não havia ainda a importante divisão do livro em três partes. Assim, o fuzilamento
de Quaresma está no Capitulo XV e não no quinto capítulo da Terceira Parte como ficou na versão
definitiva do romance.
A partir do material não utilizado ou alterado também se pode tirar conclusões importantes.
Acredito que uma dessas idéias descartadas possa remeter a uma associação de Policarpo Quaresma
a José do Patrocínio. Trata-se de Policarpo Quaresma ver a cidade do alto de um balão (BARRETO,
1961, p.142). Lima Barreto antipatizava profundamente com José do Patrocínio, pois acreditava que
se exagerava na importância histórica dada a ele. No entanto, Patrocínio era conhecido pelas suas
excentricidades: uma delas o projeto de um balão que jamais conseguira decolar. Em outro romance,
Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, Augusto Machado acha entre os papéis de Gonzaga um conto
do amigo sobre um homem que se dedicara a vida inteira a projetar um avião que ao final não
decolara. Não estaria Lima Barreto apagando uma associação mais evidente e deixando para que o
leitor constatasse que Quaresma fazia parte da geração de 1870 que alimentou sonhos Republicanos
e que de repente se via lograda com a Primeira República?
Outra idéia apagada é a de Quaresma ser nomeado procurador do Amazonas (BARRETO,
1961, p.142). A única referência no romance ao Amazonas é a paixão exacerbada de Quaresma pelo rio
Amazonas, levando-o a “cortar” quilômetros do rio Nilo, principal rival do rio brasileiro em extensão.
Além das palavras-chaves que rendem passagens do capítulo e das idéias descartadas, as
anotações de 1910 terminam com uma série de histórias do folclore brasileiro recolhidas por Lima
Barreto. Uma dessas histórias, “O macaco perante o juiz de direito”, é contatada pelo folclorista
visitado por Quaresma e Albernaz (BARRETO, 1981, p.41-42). A escolha dessa história, dentre tantas
outras recolhidas por Lima Barreto, está ligada ao próprio trajeto de Quaresma, com a diferença que
nessa relação com os poderosos o personagem do romance não tem a mesma sorte do macaco.
Acredito que uma análise mais minuciosa do Diário possa revelar outros elementos
reaproveitados ficcionalmente no Triste Fim de Policarpo Quaresma. Essa percepção se renova a cada
leitura do romance e do Diário. Algumas leituras indicadas por Lima Barreto no Diário podem constituir
uma importante pista de outras idéias que nortearam o autor para escrita do seu romance, tratam-se
de artigos de revistas brasileiras e francesas.O que discutiam tais textos? Como eles influenciaram o
autor? Enquanto isso não é possível, vou analisar a visão histórica de Lima Barreto manifesta em duas
crônicas suas.
No prefácio da edição de 1956 do Triste Fim de Policarpo Quaresma, F. A. Barbosa comenta
sobre a fixação do texto atual do romance. Em síntese, o livro tivera uma primeira edição publicada
no Jornal do Comércio em 1911. Em 1915, Lima Barreto banca uma edição em livro pela Revista dos
Tribunais. Segundo o crítico, é essa edição que serve como base para as edições atuais.
Considerando as duas datas, poderia ser afirmado que as crônicas pouco contribuíram na
elaboração do romance. Ao contrário do que aconteceu com o Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, onde
crônicas inteiras são incorporadas à estrutura do romance, Triste Fim de Policarpo Quaresma não teria se
aproveitado dessas observações do cotidiano. Esse não aproveitamento seria justificado exatamente
pelas datas, pois as contribuições de Lima Barreto para imprensa se intensificam a partir de 1915, fase
considerada como a da militância explosiva do autor que livre do funcionalismo público (aposentado)
sente-se à vontade para dizer o que bem entende nas páginas do jornal.
Apesar dessa questão cronológica, ainda assim seria possível analisar as crônicas comparandoas com a produção ficcional do autor, procurando nelas os temas que lhe interessaram em diferentes
momentos, valendo-se dos diferentes suportes: romance e crônica. Essa tarefa com certeza traria um
907
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
ótimo resultado, no caso do Triste Fim de Policarpo Quaresma, o leitor atento encontraria: a preocupação
com a situação da agricultura brasileira, as reflexões sobre a língua portuguesa (em especial as críticas
ao purismo), as críticas ao culto do bacharelismo, as visões do subúrbio e a velha implicância com as
coisas antidemocráticas que aconteciam na República.
Como se pode perceber a tarefa seria enorme, por isso me limito a analisar duas crônicas de
Lima Barreto que acredito dialogarem diretamente com Triste Fim de Policarpo Quaresma. Ambas foram
publicadas após a edição do romance, no entanto pelo seu caráter intimista – as duas crônicas são
permeadas de recordações da infância do autor – elas supõem imagens gravadas na mente do autor
referentes à Revolta da Armada.
A primeira crônica – intitulada “O Estrela” – foi publicada em 23/05/1916, no Almanaque
d’A Noite. Nela, Lima Barreto recorda que durante os episódios da Revolta de 93 – o autor não a
chama de Revolta da Armada – seu pai, administrador da Colônia de Alienados da Ilha do Governador,
trouxera-o para Ilha, com grandes dificuldades. A crônica é permeada de recordações – como as da
escola em que estudava na época, da casa da família, das caçadas etc. A dificuldade com que seu pai
cultivava uma horta devido ao ataque das formigas deve ter servido como base para a cena do Triste
Fim de Policarpo Quaresma em que o major trava uma verdadeira batalha com as formigas. A crônica
mostra o olhar puro do menino Lima Barreto que durante a invasão do local pelos revoltosos não
conseguia perceber os perigos que ele e seu pai corriam.
O cronista Lima Barreto lembrava que entre os revoltosos, além de militares, havia
um dentista e um antigo paciente da Colônia de Alienados. Aqui o autor fixava uma impressão
que tivera da Revolta: muitos dos participantes se viram de repente envolvidos nela. O que
teria os levado a isso? Quanto ao dentista: “os azares da luta civil tinham-lhe dado um posto
militar” (BARRETO, 2004, p.259-262). Apesar de ocorrer do outro lado da trincheira, esse
não parece ser o azar do próprio Policarpo Quaresma no romance? Quantos não se viram
de repente envolvidos numa batalha sem ter a noção exata dos reais motivos dela? A falta de
consciência do sacrifício é associada no final da crônica com o sacrifício do boi Estrela. As
próprias características do animal – paciência, resignação – associam-no às pessoas simples que
tomaram parte nos episódios da Revolta. Outro detalhe do boi é o fato dele ser assinalado: “um
velho boi negro, com uma mancha branca na testa.” Com facilidade, essas características do
boi poderiam ser associadas à figura de Policarpo Quaresma: o serviço pela nação, a paciência
(maturou suas idéias patrióticas por mais de vinte anos), a resignação (concluindo ao final
do livro que o melhor é não agir). Para mostrar que a associação não é fortuita é interessante
analisar a segunda crônica.
Publicada na revista A.B.C, em 1920, a crônica “Homem ou boi de canga?”, retoma a
Revolta de 1893. O clima de evocação das memórias do menino Lima Barreto é o mesmo, assim
como o cenário e os personagens recordados: “todo esse quadro imarcescível me ficou gravado na
memória até hoje, indelevelmente, como se fosse impresso à máquina” (BARRETO, 2004, p.247).
Mas a impressão que realmente ficou marcada foi a do diálogo entre seu pai e o soldado ou cabo que
não sabia o motivo pelo qual aqueles dois homens (Floriano e Saldanha) brigavam. Novamente, Lima
Barreto evoca a imagem do boi, recorrendo a uma expressão popular “boi de canga”, ou seja, aquele
que de tão acostumado a puxar o carro de bois se coloca na posição para executar o serviço mesmo
quando não está com a canga.
A percepção de alguém que se envolve num conflito sem ter a dimensão exata do seu alcance
é matéria incorporada ao Triste Fim de Policarpo Quaresma. A própria ação do major ao final do romance
quando toma parte do pelotão Cruzeiro do Sul é uma prova disso. Quaresma não é movido pelo
mesmo interesse dos outros militares, quer dizer não pensava em promoções, mas era movido por
aquele mesmo sentimento que já resultara em outros dois projetos fracassados. Porém, no caso da
Revolta o golpe fora forte de mais e a consciência do personagem é despertada como mostrarei na
análise do romance. Como se pode perceber essas duas crônicas preenchem exatamente uma lacuna
deixada pelo Diário Íntimo: a abordagem da Revolta da Armada.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Triste Fim de Policarpo Quaresma: forma literária e processo social
Não resta dúvida que Triste Fim de Policarpo Quaresma é o romance de Lima Barreto mais
reconhecido pela crítica literária. Em 1915, M. de Oliveira Lima rompia com o silêncio da crítica
nos jornais e percebia no Major Quaresma o mesmo grão de loucura que movia D. Quixote. Com a
retomada crítica de Lima Barreto promovida com a publicação da sua obra completa na década de
50, Lúcia Miguel-Pereira afirmava que o Triste Fim de Policarpo Quaresma e os contos publicados com
o livro na edição de 1915 eram o melhor da produção ficcional de Lima Barreto. Para a crítica, a
forma curta do conto, que de certa forma repercutia na divisão dos capítulos do romance, adequavase melhor a escassez de tempo de Lima Barreto, dando a noção do potencial ficcional do autor. Nos
anos 70, o crescimento da procura pelos cursos de especialização em Literatura acabou influenciando
a retomada crítica de Lima Barreto. Osman Lins lembrava que o romance era o setor mais sugestivo
da obra de Lima Barreto (LINS, 1976, p. 32).
Esse material entremeado à narrativa chamou a atenção de outras áreas do conhecimento no
final dos anos 70 e começo dos anos 80, fazendo surgir críticas de orientação sociológica, histórica
e de gênero. Assim, a obra de Lima Barreto permitia tanto a visão dos subúrbios no começo do
século XX, como a visão das mudanças urbanísticas no Rio. Nessas leituras, as crônicas e o material
confessional do autor foram altamente valorizados. Algumas dessas leituras conseguiram se apropriar
de maneira adequada desse vasto material, com destaque para N. Sevcenko e Beatriz Resende.
Há dois importantes ensaios sobre esse romance de Lima Barreto: “O significado de
Lima Barreto na literatura brasileira”, de C. N. Coutinho e “Uma ferroada no peito do pé – dupla
leitura de Triste Fim de Policarpo Quaresma”, de S. Santiago. O primeiro de orientação marxista vê
como o principal problema de Quaresma a bizarrice das suas ações patrióticas, chocando-se com a
mediocridade dos demais personagens, que vêem no patriotismo uma oportunidade para consecução
de objetivos egoístas (COUTINHO, 1974, p. 42).
Já S. Santiago identifica no romance uma dupla leitura, ou seja, Lima Barreto procurava
oferecer ao leitor comum uma leitura facilitada (microleitura) e reservava ao leitor mais arguto uma
segunda leitura. Nessa primeira leitura, a epígrafe de Renan – que abre Triste Fim de Policarpo Quaresma
– é confirmada ao longo do texto. A epígrafe diz que o homem superior tenta transformar o ideal em
realidade, sendo fadado ao fracasso. Por sua vez, a segunda leitura procurava desmentir alguns mitos
importantes da história do Brasil – como o mito do gigante adormecido. Esse processo chamado
pelo crítico de desmetaforização da palavra semente estava diretamente associado ao nome do personagem
Poli (vários) + carpo (frutos). Frutos (sonhos) que apesar de toda luta do personagem não vingavam
(SANTIAGO, 1982, p.175).
Ambas as leituras apontam caminhos pertinentes, mas acredito que Triste Fim de Policarpo
Quaresma mereça uma análise pormenorizada dos processos ficcionais adotados pelo autor. Pretendo
aqui preencher algumas lacunas referentes à análise desse romance, delimitando possíveis caminhos
para essa leitura mais pormenorizada.
II
Diferentemente dos dois primeiros romances escritos por Lima Barreto (Vida e Morte de M.J.
Gonzaga de Sá é o terceiro somente na ordem de publicação), Triste Fim de Policarpo Quaresma é narrado
em 3a pessoa. O livro traz uma epígrafe de Renan falando o como é inconveniente a vida comum para
o homem superior. Seria Policarpo Quaresma esse homem superior? De um modo geral, as ações de
Quaresma levam ao riso, bastando lembrar a inabilidade do personagem com o manejo da enxada ou
o fato de Quaresma tropeçar na sua própria espada. Além do riso provocado no leitor, há também o
riso que as atitudes de Quaresma provocam nos outros personagens, como acontece na Câmara do
Deputados durante a leitura da petição para que o tupi-guarani passasse a ser nossa língua. Esse riso
parece permitir que o trajeto do personagem possa ser completado, pois os mesmos são vistos como
uma mera excentricidade pelos demais e não como um ato de revolta. Nesse sentido, o discurso de
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Quaresma também é desacreditado a partir do momento em que ele é internado no Hospício. Dessa
forma, o discurso e as ações de Quaresma são duplamente desacreditados, pois são encarados como
pertencentes a um tolo ou a um louco.
Mas o que levou o personagem a querer realizar tais transformações no país? Quem é
Quaresma? Quando nasceu? Onde nasceu? In media res o personagem é apresentado ao leitor e parece
uma das figuras mais simples que poderia existir: funcionário público do Arsenal de Guerra que segue
uma rotina diária há mais de vinte anos. Esses primeiros dados de tempo são essenciais para definir
a origem das idéias de Quaresma. A data mais precisa do livro é a revolta da Armada de 1893 que
resulta na morte do personagem. Subtraindo: 1) Quaresma se envolve na Revolta após seis meses de
internamento no hospício e após estar há um ano se dedicando ao seu sítio. 2) a irmã de Quaresma é
quatro anos mais velha que ele; 3) Armando Borges afirma que Quaresma era novo, pois ainda não
tinha atingido os 50 anos; 4) os idéias patrióticas começaram em Quaresma antes dos vinte anos;
Assim, pode-se afirmar que Quaresma nasceu entre 1845 e 1848 e que suas idéias patrióticas se
desenvolveram por volta de 1870. Essas datas estão espalhadas ao longo do romance, exigindo certo
esforço do leitor para montar o quebra-cabeça.
A filiação de Quaresma a esse período cumpre um papel essencial no romance. Para N.
Sevcenko, a Libertação dos Escravos e a Proclamação da República foram as grandes aspirações dos
intelectuais da geração de 1870. Somente a concretização desses dois ideais já seria o suficiente para
uma mudança de atitude, ou seja, esperava-se uma postura de construção de uma nova realidade.
Segundo José Veríssimo, todos se diziam republicanos, crendo que a República fosse uma palavra
mágica capaz de transformar tudo, de resolver todos os problemas sociais. Lopes Trovão, um dos
mais combativos Republicanos, na época do Governo Provisório, já dizia: “Essa não é a República
dos meus sonhos”. (SEVCENKO, 1999, p.86-93)
Quaresma ainda alimenta os antigos sonhos de 1870 e não chegou ainda a se desiludir com
a nova ordem. A biblioteca do personagem exemplifica o desejo de conhecer mais o país para que se
pudessem fazer as transformações necessárias que acordariam o gigante adormecido. Assim, Quaresma
procura estudar tudo que se refere ao Brasil, atitude que também foi típica da época, bastando lembrar
o projeto de José de Alencar de escrever romances que cobrissem a história do país: horizontal (todo
o território) e verticalmente (toda a história). Aliás, José de Alencar e os outros românticos também
faziam parte da biblioteca do major. Não estaria no Romantismo o motivo das atitudes exageradas
de Quaresma? Retomando uma anotação do Diário Íntimo não aproveitada no romance essa leitura
parece tomar corpo: “Ele não percebia que via com os olhos do sonho, não descontava a refração
dessa atmosfera especial, para avaliar a realidade.” (BARRETO, 1961, p.142)
Não só o ver com os olhos do sonho, mas o partir para a ação e tentar transformar esse
sonho em realidade são atitudes tipicamente românticas. Nessa forma de agir o limite entre o heróico
e o patético são tênues, levando muitos escritores a ironizarem os sentimentos românticos nos
personagens. Outra tendência tipicamente romântica de Quaresma é a supervalorização da natureza
brasileira, levando-o a cortar quilômetros do Rio Nilo para que o Amazonas fosse o maior rio do
mundo. Nessa busca pelo nacional, o próprio Quaresma não tem espaço para regionalismos, afastandose um pouco do projeto romântico, tanto é que a região em nascera é ocultada no romance. Quaresma
é o Brasil? Pode-se dizer que Quaresma simboliza o projeto de um Brasil encarnado pela geração de
1870 e que passado mais de 20 anos ele alimenta os antigos sonhos de transformação, mesmo quando
eles parecem ridículos aos demais.
Como representante de um período de transição, Quaresma também compartilha dos
novos ideais orientados pelo positivismo, daí uma crença do personagem nos aparatos científicos.
Filiação científica ironizada durante a batalha na qual o personagem toma parte fazendo cálculos
matemáticos para poder utilizar o canhão ou no levantamento de espécies vegetais e animais
promovido no seu sítio.
Assim, a trajetória de Quaresma serve para que um a um esses projetos, tanto os ufanistas
quanto os científicos, sejam “postos abaixo” na estrutura do romance. Muitos desses projetos resistem
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
até hoje ou foram retomadas em períodos de repressão, como o mito do gigante adormecido, ninguém
segura esse país, o Brasil é o país do futuro, tudo se plantando dá etc. O leitor sabe desde o princípio
que esses projetos conduzem ao fracasso, até porque o nome do livro já anuncia isso. Como afirma
G. Lukács, a preocupação central do leitor de romances é a espera da evolução das personagens
(LUKÁCS, 1968, p.70).
Quanto a essa evolução de destinos humanos, é interessante notar que o trajeto de Quaresma
começa a ser mostrado a partir do momento em que o personagem resolve colocar em prática
tudo aquilo que estudara, sistematicamente, ao longo de 20 anos. Não que no período anterior o
personagem não tivesse os seus arroubos patrióticos e que não fosse conhecido na repartição por
suas idéias, mas é que nesse momento Quaresma resolve mudar o país. O que teria levado o major a
acreditar que estivesse pronto para agir? Por que não agiu na transição da Monarquia para República?
Duas explicações são possíveis: 1) a ação de Quaresma está ligada ao nome do personagem: Poli
(vários) + carpo (frutos) e Quaresma que remete aos 40 dias que vão da quarta-feira de cinzas até a
Páscoa (passagem, transformação). É antes de completar os cinqüenta anos que Policarpo Quaresma
resolve por seus projetos em prática. Seus projetos frutificam; 2) Floriano Peixoto, ao contrário de
Deodoro da Fonseca, conseguira manter a bancada do PRP mais compacta e tivera menos problemas
para lidar com o Congresso. Ou seja: Quaresma achava que Floriano Peixoto pudesse promover as
reformas necessárias.
A segunda explicação parece mais pertinente e encontra desdobramentos importantes no
próprio romance. Quaresma após os fracassos com seu projeto cultural e com a tentativa de se
dedicar à agricultura acredita ter reunido elementos que possam ajudar para o engrandecimento do
país. É o momento que Quaresma redige em Curuzu, cidade em que estava localizado o seu sítio, um
memorial para ser entregue ao Marechal Floriano Peixoto. A crença de que Floriano possa realizar as
transformações necessárias ao país e dar-lhe unidade não é privilégio de Quaresma. Em Curuzu, por
exemplo, os dois partidos adversários se unem em torno da República, deixando as diferenças de lado
(claro, que essa aliança visava manter o poder).
Aqui há que se considerar uma transformação em Quaresma. Os dois projetos que resultam
na elaboração desse memorial partiram das leituras idealizadoras da nação, a primeira ligada à nossa
cultura e a segunda ligada à agricultura. Quanto à cultura o major constata que nada havia de original na
maior parte das nossas manifestações culturais, daí a idéia de sugerir que o tupi-guarani fosse declarado
nossa língua oficial. Quanto à agricultura, Quaresma visando comprovar suas teses havia escolhido
o pior sítio e, além de enfrentar as saúvas, tem que enfrentar uma série de posturas municipais que
dificultavam a vida do homem do campo. Ou seja: o memorial que é entregue ao Marechal Floriano
Peixoto já não está mais relacionado àquela primeira visão pautada nas leituras ufanistas, mas tem
por fundamento as constatações feitas em campo por Policarpo Quaresma. Tanto é que antes de
partir para Revolta da Armada, Quaresma já havia se decidido a adubar o solo e importara máquinas
estrangeiras para tentar dinamizar a produção no Sossego, ou seja, não acreditava mais no antigo
mito da uberdade de nossas terras. Essa transição do discurso ufanista para um discurso pautado
na experiência pode ser notada nesse diálogo travado com Floriano Peixoto que tem por tema o
memorial escrito por Policarpo Quaresma:
 Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este país. Desde que se cortem todos aqueles empecilhos que
eu apontei, no memorial que Vossa Excelência teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma
legislação defeituosa e inadaptável às condições do país, Vossa Excelência verá que tudo isto muda, que, em
vez de tributário, ficaremos com a nossa independência feita... Se Vossa Excelência quisesse...
À proporção que falava, mais Quaresma se entusiasmava. Ele não podia ver bem a fisionomia do ditador,
encoberto agora como lhe estava o rosto pelas abas do chapéu de feltro; mas, se a visse, teria de esfriar,
pois havia na sua fisionomia sinais de aborrecimento mais mortal. Aquele falatório de Quaresma, aquele
apelo à legislação, a medidas governamentais, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não quisesse. O
presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse:
 Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia
exército que chegasse... (BARRETO, 1981, p.175)
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Nesse momento, as idéias de Quaresma passam a incomodar como se percebe pela atitude de
Floriano Peixoto. Os projetos anteriores tinham como fonte uma literatura que distorcia a realidade e
que tivera grande prestígio no país. O caboclo, por exemplo, só era bom enquanto literatura: idealizado
e distante. Já o caboclo com uma enxada na mão passava a ser um perigo aos olhos do governo. Aliás,
Lima Barreto punha a nu a situação do caboclo brasileiro com o personagem Felizardo, como se pode
perceber no diálogo travado entre o caboclo e Olga:
 Bons dias, “sá dona”.
 Então trabalha-se muito, Felizardo?
 O que se pode.
 Estive ontem no Carico, bonito lugar... Onde é que você mora, Felizardo?
 É doutra banda, na estrada da vila.
 É grande o sítio de você?
 Tem alguma terra sim, “sá dona”.
 Você, por que não planta para você?
 “Quá sá dona!” O que é que a gente come?
 O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.
 “Sá dona ta” pensando uma cousa e a cousa é outra. Enquanto planta cresce, e então? “Quá, sá dona”,
não é assim.
Deu uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no picador e, antes de desferir o machado,
ainda disse:
 Terra não é nossa... E “frumiga”?... Nós não “tem” ferramenta... isso é bom para italiano ou “alemão”,
que o governo dá tudo... Governo não gosta de nós... (BARRETO, 1981, p.120)
As descrições do caboclo Felizardo são similares a percepção crítica do narrador em relação
ao Marechal Floriano Peixoto, principalmente no item inércia e falta de vontade. Inclusive o nome dos
personagens são muito próximos e trazem em si antíteses: Felizardo – não tem nada de feliz; Floriano
– não lembra em nada as flores. Essa identificação é importante, pois um dos apelidos do Marechal
era caboclo: “ Eles vão ver o “caboclo”...” (BARRETO, 1981, p.154)
O tempo em que Quaresma se dedica à agricultura é fundamental na sua transição do ufanista
para o realista. Agora as idéias de Quaresma se pautavam numa experiência concreta e identificavam
problemas que estavam diretamente ligados à ação ou a falta de ação do governo. A atitude de
Floriano Peixoto, optando pela inércia, também se justifica pela necessidade de manter a ordem social
da maneira que se encontra para atender ao principal pilar do seu governo: os cafeicultores. Numa
prática recorrente nesse romance, a percepção crítica da realidade é deslocada para uma personagem
feminina, como se pode ver nessa fala de Adelaide, logo após constatar que todo sacrifício do
irmão à agricultura resultara em nada: “ É isto... Queres sempre ser a abelha-mestra... Já viste os
grandes fazerem esses sacrifícios?... Vê lá se o fazem! Histórias... Metem-se no café que tem todas as
proteções...” (BARRETO, 1981, p.130)
Assim, antes do desapontamento final com o regime, com a noção de pátria, Policarpo
Quaresma percebe que suas leituras ufanistas eram falhas. Ao longo do romance, o personagem é
cercado por discursos que tentam desmentir aquilo que ele acreditava, porém não são esses discursos
que o convencem, mas o contato com a realidade. Dessa forma, o memorial apresentado ao Marechal
devia trazer soluções concretas e não projetos mirabolantes, no entanto esse texto é tachado como
obra de um visionário.
Outro ponto fundamental no trajeto de Quaresma é o posicionamento do narrador. A
epígrafe de Renan que abre o livro é a visão que o narrador tem do personagem. Nos momentos de
maior calor das idéias de Quaresma e de incompreensão dos demais para com seus projetos, o narrador
tenta minimizar essas visões que encaram os gestos do personagem como ridículos, mostrando que
elas eram frutos de um projeto apaixonado, de um homem fora da média:
Desinteressado de dinheiro, de glória, de posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e
a pureza d’alma que vão habitar esses homens de uma idéia fixa, os grandes estudiosos, os sábios, e os
inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais inocente que as donzelas das poesias de outras
épocas. (BARRETO, 1981, p.63)
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
O narrador tentar preservar Quaresma do riso do leitor, ou pelo menos transformar num
riso de simpatia pelos atos desinteressados do major. Para conseguir isso, o narrador trabalha com
um jogo de oposições, contrastando as ações do personagem com o meio que o cerca. Assim, o
personagem não é compreendido pela irmã, pelos companheiros do arsenal de Guerra, pelos demais
militares, pelos políticos da pequena Curuzu etc. Exemplificando: 1) Adelaide não compreende como
alguém pode se dedicar a vida toda aos livros e não virar doutor; 2) os companheiros do arsenal
acham maçada a mania de Quaresma querer dar aulas de história e de geografia do Brasil; 3) os demais
militares não entendem o porque Quaresma tem tantos livros em casa, reiterando o discurso da irmã
do major: os livros seriam exclusividade dos doutores; 4) Os chefes políticos de Curuzu querem que
Quaresma o seu apoio. Como ele se nega a tomar partido, sua atitude é vista pelos demais como
oportunista. Pensam que Quaresma quer se projetar politicamente na cidade, vendo populismo nos
atos de solidariedade do major para com os vizinhos mais pobres da região.
Remetendo ao quadro histórico do período, toda essa hostilidade do meio demonstra uma
tendência a competição social para se atingir posições privilegiadas. De certo modo, a República
abrira a perspectiva da mudança de classe social e até mesmo incentivara essa prática. Conforme N.
Sevcenko (1999), a República estimulou a permutação em larga amplitude dos grupos econômicos:
fortunas seculares desapareceram e outras surgiram da noite para o dia, graças ao Encilhamento. Todos
queriam enriquecer a qualquer custo. É o período que se acentua a política dos favores: nomeações,
indenizações, subvenções, privilégios e proteções. Usufruem desse momento os grupos recémchegados à distinção social e os gentis-homens remanescentes do Império. A defesa do governo
durante a Revolta da Armada abriu a possibilidade de ascender no funcionalismo público ou nas
Forças Armadas, criando um clima de delações e suspeitas:
Essas secretas esperanças [de ascensão] eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos do governo
e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e nas posições que o Estado espalha.
Os suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e habilitações para ocupá-las; além disso,
o governo, precisando de simpatias e homens tinham que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e
distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações. (BARRETO, 1981, p.143)
É também o período de perseguição aos jacobinos e aos excessivamente republicanos. Estaria
Quaresma nesse segundo grupo? Parece-me que sim, Quaresma leva ao pé-da-letra o propósito da
Constituição de 1891 de estabelecer um regime livre e democrático, visando o desenvolvimento do país.
Dessa forma, Quaresma acreditava na importância do seu papel enquanto cidadão para contribuir com
as mudanças necessárias ao país. A desilusão do personagem só se dá por completo quando todas as
possibilidades de mudança da nação estão esgotadas: a possibilidade ufanista e a possibilidade realista.
Já para os demais personagens, os que queriam tirar proveito da nova ordem, a desilusão acontece
ao perceberem que não conseguiriam atingir os objetivos pessoais almejados, exemplo disso são
o general Albernaz e o contra-almirante Caldas, durante a missa de 7o dia do senador Clarimundo (um
republicano histórico), quando a Revolta da Armada chegava a seu fim:
Coçou um dos favoritos e esteve um instante a olhar o ladrilho no chão. Albernaz avançou, meio
sarcástico:
 Agora não; agora a autoridade está prestigiada, consolidada e uma era de progresso vai abrir-se para o
Brasil...
 Qual o que! Onde é que você viu um governo...
 Mais baixo, Caldas!
 ... onde é que se viu um governo que não aproveita as aptidões, abandona-as, deixa-as por aí vegetar?
Dá-se o mesmo com as nossas riquezas naturais: jazem por aí à toa!
A sineta soou e olharam um pouco a nave cheia. Pela porta, via-se uma porção de homens, todos de
negro, ajoelhados, contritos, batendo nos peitos, a confessar de si para si: mea culpa, mea maxima culpa.
(BARRETO, 1981, p.199-200)
Como já afirmei, a desilusão desses militares para com a República deve-se ao fato de não
conseguirem as promoções desejadas. Nota-se na fala de Caldas o desejo de realizar transformações
parecidas com aquelas propostas por Quaresma, no entanto o mea culpa do rito religioso estabelece
913
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
a responsabilidade desses personagens na consolidação do regime que agora era criticado. Albernaz
e Caldas representam os militares que tiveram participação na Guerra do Paraguai e que perdiam
espaço para os novos militares ligados ao positivismo. O primeiro ainda consegue garantir que seu
filho entre na Escola Militar e que uma de suas filhas se case com um militar pertencente a esse grupo.
Já o segundo é fadado a amargar o eterno escárnio, desde que se transformara num comandante
procurando seu navio pelos quatro cantos cardeais do país.
Outro dado marcante nessa passagem do livro é esse diálogo ocorrer justamente durante o
velório de um republicano histórico, ou seja, aqueles que participaram ativamente da geração de 1870
e que tomaram parte na Proclamação da República. Não estariam sendo sepultadas com Clarimundo
as perspectivas de mudança, de iluminação, de conhecimento? Não estariam todos os ideais ligados às
transformações fadados ao fracasso?
A participação de Quaresma na Revolta da Armada é o ápice da desilusão com o sistema, mas
ao mesmo tempo abre a perspectiva de uma frutificação dos seus ideais no futuro. Quanto à primeira
afirmação, sabe-se que Quaresma vem desde o começo do romance tomando uma consciência
crítica da realidade. O projeto cultural levou-o ao hospício. O projeto agrícola levou-o a perceber as
dificuldades de se viver da agricultura. A participação na Revolta da Armada leva-o a considerar que
a noção de pátria era falsa e que toda a sua vida foi em vão. Mas como Quaresma chega a essa triste
conclusão?
Na terceira e última parte do romance, chegando ao Rio de Janeiro, o major procura Floriano
Peixoto para colocar-se à disposição da pátria. A descrição de Floriano Peixoto desmente o apelido
Marechal de Ferro. O que se vê é um homem mole, displicente, com um palito de dente no canto
da boca e que permite aos subalternos uma intimidade impensável. No entanto, Quaresma não vê
nada disso. O narrador frisa que ainda estava longe de perceber isto tudo. Mesmo quando o Marechal
rasga um pedaço do Memorial, o fruto de anos de estudo e de um contato marcante com a realidade,
Quaresma não se desilude. O segundo contato com o Marechal acontece durante à noite. Floriano
aparece como se fosse um espectro, passeando pelos quartéis e vendo se estava tudo em ordem.
Instado pelo Memorial, o Marechal, profundamente aborrecido, chama Quaresma de visionário. No
terceiro capítulo da terceira parte, o fato mais marcante é o enterro da filha de Albernaz, Ismênia,
a identificação de Quaresma com a moça é marcante. Quaresma acreditava no mito da pátria,
Ismênia acreditava no mito do casamento. Ambos são tomados pelos demais como loucos. Ismênia é
abandonada pelo oportunista Cavalcanti, Quaresma é abandonado pela pátria a quem dedicara todas
as suas energias. No Diário Íntimo, a cena do enterro de Ismênia traz uma notação importante o vôo
dos pombos que faz lembrar o poema de Raimundo Correia, “As Pombas”.
A morte de Ismênia prenuncia o fim de Policarpo Quaresma, assim como a morte de
Clarimundo prenunciava os fins dos sonhos republicanos. A alusão ao poema “As pombas”, poema
escrito em 1883, reitera o tom de desilusão que logo tomará conta de Policarpo Quaresma. Os sonhos
alimentados pelo major no azul da adolescência fogem céleres (o desapontamento do major acontece
num período de menos de um ano) e não voltam mais. É justamente nesse capítulo que Policarpo
Quaresma se desilude com Floriano Peixoto e que questiona o como empregara os dias de sua vida
em nome de uma causa vã:
Na verdade o major tinha um espinho n’alma. Aquela recepção de Floriano às suas lembranças de reformas
não esperavam nem o seu entusiasmo e sinceridade nem tampouco a idéia que ele fazia do ditador. Saíra
ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente que o chamava de visionário,
que não avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava sequer, desinteressado daquelas altas
cousas de governo como se não o fosse!.. .Era pois para sustentar tal homem que deixara o sossego de sua
casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha
ele de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz
e abundante, pelo enriquecimento do país, o progresso de sua la- voura e o bem-estar de sua população
rural? (BARRETO, 1981, p. 183)
A consciência de Quaresma parecia conduzi-lo a não agir mais. Somente o não-agir poderia
garantir sua sobrevivência, o próprio personagem conclui isso em carta remetida à irmã. No entanto,
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
o cenário de violência à sua volta atinge de cheio a sua consciência, levando-o a escrever uma carta
onde manifestava o seu repúdio aos fuzilamentos praticados pelo governo de Floriano Peixoto. O
último projeto de Quaresma fracassa, será? Não se pode esquecer que o livro é escrito em 3a pessoa,
ou seja, alguém resolvera escrever sobre a vida do marechal Policarpo Quaresma achando nela um
conteúdo exemplar. De que momento esse narrador escreve? A única indicação que existe é ao final
do livro o ano de 1911 (BARRETO, 1981, p.215). Como encarar essa data? Lima Barreto tinha por
hábito terminar seus livros com a indicação da data de término da escrita – como acontece com Clara
dos Anjos e Os Bruzundangas – ou essa data é significativa como acontece com o prefácio do Recordações
do Escrivão Isaías Caminha que permite o cálculo do período em que o personagem chegou ao Rio
de Janeiro. Acredito que a segunda hipótese seja mais coerente, pois nesse período Lima Barreto
esteve envolvido com a Campanha Civilista, tendo manifestado seu apoio a Rui Barbosa, e sempre
foi notória a insatisfação do autor com os caminhos que a República tomara nas mãos dos militares.
Triste Fim de Policarpo Quaresma servia como uma epígrafe a um sistema que tivera como frutos: o
atraso do país, a violência e a morte dos sonhos.
Referências
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia
das Letras, 1987.
COUTINHO, Carlos Nelson. O significado de Lima Barreto na literatura brasileira. In: Carlos Nelson
Coutinho e outros. Realismo e anti-realismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1974. (pág. 1-56)
BARRETO, Lima. Todas as crônicas de Lima Barreto; organização Beatriz Resende e Rachel Valença. Volume 1 e
2. Agir: Rio de Janeiro, 2004.
______. Triste Fim de Policarpo Quaresma; prefácio de M. Oliveira Lima. 25a ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
______. Diário Íntimo; prefácio de Gilberto Freire. São Paulo: Brasiliense, 1961.
LUKÁCS, George. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
SANTIAGO, Silviano. Vale Quanto Pesa – ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão – tensões sociais e criação cultural na 1a República. São Paulo:
Brasiliense, 1999.
SCHEFFEL, Marcos Vinícius. Do registro diário à criação – o processo ficcional em Recordações do Escrivão Isaías
Caminha e Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. Joinville/SC: Editora Letradágua, 2007.
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DE INSTRUTOR A EDUCADOR:
UMA ABORDAGEM MULTICULTURAL
Margarete de Oliveira Santos NOGUEIRA
Isabel Patrícia Mercado de FAUSTINO
(Casa Thomas Jefferson, Brasília)
RESUMO: Nesse artigo propomos mostrar aos professores que é possível trabalhar a língua estrangeira
com uma abordagem intercultural. Para isso elencamos algumas sugestões que podem ajudar o professor
a internacionalizar o seu ensino, e ao mesmo tempo, ajudar seus alunos a criar uma consciência global. A
abordagem intercultural pressupõe a reformulação do papel do professor como educador até a modificação da
sala de aula para torná-la um ambiente que reflita um encontro de culturas. A criação de projetos de classe, bem
como a de projetos que envolvam toda a instituição voltados para o multiculturalismo e a consciência global
também fazem parte de ações que podem ser desenvolvidas pelo educador.
PALAVRAS CHAVE: abordagem intercultural, internacionalizar o ensino, consciência global, solidário, crítico.
ABSTRACT: This paper proposes to show teachers that it is possible to work with the acquisition of a
foreign language along with an intercultural approach. A set of suggestions is proposed to help the teacher
to internationalize his/her teaching, as well as help raise a global awareness in students. Suggestions start by
rethinking the teacher’s role and continue on to modifying the language classroom in order to turn it into
an environment that reflects an encounter of cultures. Both class and institutional projects, which respect
multiculturalism and raise global awareness are proposed.
KEY WORDS: intercultural approach, internationalize teaching, global awareness, critical.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Este artigo tem como objetivo contribuir para a construção de uma visão mais crítica no diaa-dia pedagógico do professor de Língua Inglesa. Visa também promover uma maior conscientização
dos professores de inglês para que estes possam engajar-se criticamente na prática efetiva da educação
voltada a uma cidadania global. Propomos aqui algumas de sugestões simples que podem ajudar o
professor a despertar no seu aluno um sentimento de cidadão do mundo, mas crítico e consciente
das diferenças e contradições entre os países e que podem somar-se também a outros agentes
transformadores da sociedade.
2. Justificativa
Apesar de, nos últimos tempos, um número crescente de professores de línguas ter-se
voltado para a instrução por conteúdos e para a pedagogia de projetos, com o objetivo de promover
um envolvimento significativo do aluno com o aprendizado de língua (Stroller, 2002), muitos ainda
fazem uso de didática tradicional em suas escolas. O papel da escola é difundir a instrução, transmitir
os conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente (Saviani, 1983). Essa
metodologia valoriza o saber já produzido e não leva em consideração qualquer experiência que o
sujeito possui. Portanto, não contribui para uma mudança social.
Durante sua formação, o professor recebe um conjunto de regras e normas para ensinar a
dar aula, e assim o faz passando adiante as regras e normas da língua inglesa, concentrando-se nos
conteúdos das estruturas gramaticais da língua alvo, completamente desvinculados da realidade. O
professor, então assume o papel de instrutor, aquele que adestra, o que põe em ordem, o que detém
o conhecimento.
Pela tendência crítico-social dos conteúdos, a forma e a quantidade deixam de ter um papel
central na didática do professor. Pelo contrário, o que passa a ter importância são os conteúdos
culturais universais, incorporados pela humanidade, e sempre reavaliados frente às realidades sociais.
Os conteúdos não são só ensinados, mas se ligam ao seu significado humano e social através de
projetos vivenciados pelos alunos (Mercado, 1995). Mas como adaptar esta tendência à didática do
professor de inglês?
Ao procurarmos uma didática apropriada, que se aproximasse mais à critica social dos
conteúdos, nos deparamos com a Educação Global. O que é, afinal, Educação Global? Ela é definida
como uma educação para uma participação responsável numa comunidade mundial interdependente.
(The Philippine Council for Global Education – PPGE, 1990). A Educação Global prioriza o ensino
baseado nos problemas e assuntos que atingem todas as nações, sem reconhecer fronteiras, e na
interconexão de sistemas culturais, ecológicos, econômicos, políticos e tecnológicos. A Educação
Global também se interessa em entender e apreciar os nossos vizinhos, cujas culturas são diferentes
das nossas; enxergar o mundo através dos olhos e mentes dos outros; e compreender que outros
povos do mundo muitas vezes têm necessidades e desejos similares aos nossos. Assim, o educando,
ao se ver nos outros, se coloca, se informa e se forma no mundo.
A seguir, listamos uma série de passos que o professor pode seguir a fim de internacionalizar
o seu ensino, e, ao mesmo tempo, ajudar a criar uma consciência global em seus alunos.
3. Procedimentos
Repensar o papel da língua inglesa
A parcela de brasileiros que utilizam a língua inglesa para se comunicar dentro e fora do
País é pequena. Entretanto, é inegável a importância de se aprender o inglês. Muitos têm discutido o
papel da língua inglesa na sociedade, como língua internacional e até mesmo como língua franca. Para
Crystal (1997), por exemplo, a língua inglesa está na hora e no lugar certo para tornar-se uma língua
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
internacional. Por isso, o professor deve estar a par dessa discussão por meio de leitura de artigos em
revistas especializadas, palestras e seminários e também promovê-la entre seus colegas.
É bom lembrar que, em um passado não muito distante, a língua inglesa era considerada
somente uma disciplina escolar, um sistema lingüístico ou a língua usada em países anglófonos.
Reconsiderar o seu papel como professor
A definição que o professor de inglês dá ao seu papel é tão importante quanto a definição
que ele dá a sua área de atuação. Para tal, o professor precisa se perguntar: “Por que ensinar inglês?”.
A resposta a essa pergunta determina o fazer pedagógico do professor. Se o professor se vê como
centro do processo de ensino-aprendizagem e detentor do conhecimento e da experiência, e vê o
aluno como um receptáculo ou reprodutor desse conhecimento, ele organizará sua aula baseada nas
suas próprias crenças. Mas se o professor se vê como um educador, ele valorizará a capacidade do
aluno de pensar e construir o seu próprio conhecimento, não o verá como um mero depositário das
informações (Chalita, 2006). Além disso, o educador pode ainda se ver como um “educador global”
que ensina inglês como língua estrangeira. Ou seja, um educador que está também dedicado a ajudar
os educandos a tornarem-se cidadãos do mundo, bem como agentes transformadores da sociedade.
Assim o professor torna o seu fazer positivo e motivador para todos os que estão, dentro e fora, do
processo educativo.
A Conferência Geral da UNESCO de 1974 delineou alguns objetivos na sua Recomendação
sobre a Educação para a Compreensão e a Paz Internacionais, e A Educação Relativa aos Direitos do
Homem e às Liberdades Fundamentais. No documento, ressalta-se a promoção de:
- uma perspectiva global e uma dimensão internacional na educação em todos os níveis;
- compreensão e respeito a todas as pessoas, suas culturas, valores e modos de vida;
- conscientização da interdependência de todas as nações e seus povos;
- uma educação para a paz, os direitos humanos, a democracia e a tolerância;
- proteção e preservação do ambiente natural e do Patrimônio Mundial;
- participação na resolução não violenta dos conflitos;
- solidariedade para com as vítimas da violência e das catástrofes sociais e ecológicas.
Assim, a forma como o professor organiza a sua aula e interage com seu aluno vai promover
ou impedir que estas recomendações importantes se concretizem.
Repensar o ambiente da sala de aula
Um outro ponto importante que demanda a atenção do professor é o ambiente da sala de
aula e o quanto este influencia no aprendizado dos alunos. A sala de aula deve refletir um encontro
de culturas e por isso deve ser decorada com mapas-múndi, bandeiras, pôsteres, e fotos que mostrem
pessoas, lugares e culturas diversas a cada novo assunto a ser abordado. O aluno, com certeza, se
sentirá mais estimulado e curioso para aprender e refletir sobre diferentes culturas e compará-las com
a sua própria.
A sala de aula também deve ser um lugar onde a preservação do meio ambiente seja
valorizada e exercitada. Um lugar onde o papel seja reciclado e usado com economia e onde também
se economize energia.
Integrar assuntos globais às lições
Para permitir que a educação se volte para os temas globais mencionados acima, o professor
deve tê-los em mente ao planejar a sua aula, além de, conscientemente, ensiná-los. Cabe a cada professor
interessado em tornar-se um educador global escrever duas listas de conteúdos programáticos: uma
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
com os conteúdos das estruturas gramaticais e outros aspectos lingüísticos da língua inglesa; uma
segunda na qual se encontrem os objetivos globais dentre os quais poderá selecionar os tópicos que
mais se ajustam aos tópicos lingüísticos que pretende trabalhar na sala de aula. Tendo definido os
conteúdos programáticos, o trabalho do professor será o de organizá-los na forma que considere
mais pertinente e efetiva, de modo que atinja ambos objetivos, tanto o de estruturas da língua quanto
o global, de uma maneira integrada, agradável e criativa.
Promover atividades voltadas para a Educação Global
Um educador global envolve os seus alunos por intermédio de jogos que promovam a
consciência planetária, e também usa as várias tecnologias para que o aluno entre em contato com o
mundo defrontando-se com múltiplas culturas. A dramatização de assuntos internacionais é também
uma ferramenta que pode ser utilizada pelo professor a fim de abordar temas como a educação para
a paz, os direitos humanos, a democracia e a tolerância.
Organizar atividades extracurriculares
Atividades fora da sala de aula que promovam uma consciência global e ao mesmo tempo
façam uso da língua estrangeira são uma excelente forma de se trabalhar os temas transversais e a
interdisciplinaridade. São muitas as atividades que podem ser desenvolvidas. O avanço tecnológico
e o acesso mais fácil a essas tecnologias aproximam os nossos alunos de outros. O projeto “amigos
virtuais” é uma forma interessante de os alunos se comunicarem com pessoas de outras partes do
mundo e trocar experiências culturais e lingüísticas. Muitas escolas organizam festivais internacionais
em que os alunos e professores trazem suas pesquisas sobre vários países e suas culturas, propiciando
assim intercâmbio de informação. Uma outra forma de entrar em contato com culturas diferentes é
por meio de palestras e conversas com pessoas convidadas pela escola, assim como shows de música
típica, mostra de cinema de diferentes países ou exibição de arte e trabalhos manuais.
No Brasil, os alunos e professores muitas vezes se mostram alheios às causas internacionais ou
ambientais. As atividades extracurriculares podem ser uma oportunidade de os alunos se informarem
sobre e engajarem na criação de grupos de ação que contribuam e apóiem causas internacionais ou
causas locais ambientais.
Há também a possibilidade de viagens para participar de fóruns internacionais de jovens,
que promovem a quebra de estereótipos, a discussão de temas globais, a aprendizagem sobre outros
povos e a construção da amizade.
Informar-se sobre Educação Global e áreas afins
O professor que quer se tornar um educador que promova a consciência global e a
compreensão internacional deve voltar-se para as diferentes áreas da educação global e se aprofundar
mais nas diferentes áreas de: Educação para a Paz, Educação para os Direitos Humanos, e Educação
Ambiental.
4. Conclusão
Como educador global, o professor de língua inglesa terá sempre como objetivo incorporar
ao seu trabalho assuntos que despertem em seus alunos a consciência global, o interesse por outras
culturas e ao mesmo tempo ajude-os a refletir sobre sua própria realidade e identidade. Ao reunir
o estudo das estruturas do sistema lingüístico do inglês e a questão do multiculturalismo, e outros
temas da educação global, estamos facilitando o caminho para os educandos tornarem-se seres mais
conscientes, solidários e críticos. Os passos aqui elencados são sugestões que podem conduzir o
educador a repensar o seu ensino e torná-lo mais abrangente e internacional.
920
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Referências
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promote language and content. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
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921
Ir para o Sumário
SELECIONAR LIVROS DIDÁTICOS PARA USO EM
ESCOLAS DE IDIOMAS: UMA TAREFA NADA FÁCIL
Maria Amélia Carvalho FONSECA
(Centro Cultural Brasil - Estados Unidos- Belém-PA)
RESUMO: Selecionar livros didáticos para uso em escolas de idiomas envolve muito mais que o domínio
do idioma a ser ensinado, a experiência do professor que assume esta tarefa e a identificação do público-alvo.
Segundo Cunningsworth (1995), um bom modo de alcançar uma avaliação eficaz é levar em consideração
que devemos fazer perguntas apropriadas e saber interpretar as respostas. Entendemos que estabelecer
critérios objetivando avaliar livros didáticos traz múltiplos benefícios para alunos, professores e também para
a instituição de ensino na qual o livro é utilizado. Uma avaliação criteriosa evitará o risco de selecionar um
livro inapropriado o que poderá comprometer o processo de ensino e aprendizagem e a motivação de alunos
e professores. Assim, neste artigo iremos refletir sobre a utilidade do livro didático e sobre a necessidade de
avaliá-lo. Abordaremos, então, alguns requisitos e critérios que poderão ser utilizados ao avaliar e selecionar
um livro didático antes de adotá-lo.
PALAVRAS-CHAVE: livro didático; público-alvo; critérios.
ABSTRACT: Selecting textbooks for English language schools involves much more than knowing the target
language, the experience of the teacher who undertakes the task and identifying the target-audience. According
to Cunningsworth (1995), a good way of making effective assessments is taking into consideration that we
must make the appropriate questions and know how to interpret the answers. We understand that establishing
criteria aimed at assessing textbooks has many advantages to the students, teachers and to the institution where
the book will be used. Applying the correct criteria avoids selecting the inappropriate textbook, which can
harm the teaching and learning process, and student and teacher motivation. Therefore, in this paper we will
reflect on the textbook use and the need of its assessment. After that we will address a few requirements and
criteria that can be used in assessing and selecting a textbook before applying it.
KEY WORDS: textbook; target public; criteria.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
O professor, no exercício de seu trabalho, muitas vezes é solicitado a avaliar materiais didáticos
para o ensino de línguas em níveis diversos, para faixas etárias distintas e com objetivos diferentes. É com
frequência que, para realizar esta tarefa, vale-se do seu domínio da língua, de sua experiência profissional,
da experiência de seus colegas (trabalho conjunto), da identificação do público e, possivelmente, de
algum formulário de avaliação fornecido pela instituição de ensino na qual leciona.
No entanto, avaliar e selecionar livros didáticos para possível adoção em escolas de idiomas
envolve muito mais do que isso. Cunningsworth (1995) menciona que devemos observar alguns
aspectos que irão depender de nossos principais objetivos, das características dos alunos e do contexto
em que estamos trabalhando.
Observamos que o perfil e as necessidades tanto do aluno adolescente quanto do aluno
adulto de língua estrangeira têm mudado no decorrer dos anos. Hoje, o aluno possui uma gama maior
de informações das quais pode lançar mão para efetivar o seu aprendizado. Uma ferramenta muito
útil no aprendizado de língua estrangeira nos dias de hoje é a WWW(World Wide Web) o que torna a
exigência do aluno quanto ao material utilizado em sala de aula muito maior devido à facilidade de
acesso que possui a outras ferramentas.
Além disso, nós professores esperamos que os pesquisadores, autores e editores se esforcem
ainda mais para lançarem no mercado materiais didáticos que atendam às expectativas do aluno e que
contribuam para a sua motivação em aprender uma língua estrangeira. Deste modo, os professores e
instituições para as quais trabalham devem manter-se informados sobre as tendências no ensino da
língua para que possam analisar, selecionar e adotar um livro didático (LD) apropriado e atualizado.
Esse material didático pode ser considerado uma grande vantagem da instituição que o adota e servir
como fator motivador e influenciador na escolha do aluno por uma determinada instituição de ensino
ao buscar um curso de idiomas.
Observamos que nos últimos anos o LD realmente evoluiu, pois passou a oferecer mais
recursos tanto para os professores como para os alunos. Em muitos daqueles que são acompanhados
do livro do professor existe o cuidado do(s) autor(es) em informar sobre a metodologia utilizada
auxiliando o tutor a fazer bom uso do livro.
Curioso é que, mesmo diante de outras ferramentas de ensino, o LD é, ainda hoje, considerado
como o maior componente dentre os materiais didáticos, pois é ele o elo entre o aluno, o professor e
a instituição de ensino.
2. Por que utilizar o livro didático?
A utilidade e o papel do LD são aspectos amplamente discutidos pelos teóricos.
De acordo com Cloud et al (2000) “Os bons materiais de ensino não somente tornam o
aprendizado mais fácil para os alunos, mas também facilitam a vida do professor. Como qualquer
professor confirma é muito frustrante ensinar sem materiais apropriados: livros, gravuras, objetos,
vídeos, música e internet. (Cloud et al, 2000, p.42)1
Brown (2007, p.193) afirma que “os livros didáticos são um tipo de texto, um livro para
uso em um currículo educacional”2. Acrescenta que os livros didáticos são a forma mais comum de
material de apoio para professores de línguas.
Referimo-nos a Harmer (2001), Graves (2000), Richards (2002) e Cunningsworth (1995) ao
mencionarmos algumas vantagens e limitações observadas na utilização do LD as quais resumimos
nos quadros a seguir:
“Good instructional materials not only make learning much easier for students but they also make teachers’ lives much
easier. As any teacher … will confirm, it is extremely frustrating to teach without the appropriate materials: books,
pictures, objects, videos, music and the internet.” (2000, p.42)
2
“Textbooks are one type of text, a book for use in an educational curriculum.” Brown (2007, p.193)
1
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Quadro 1: Vantagens na utilização do LD
Quadro 2: Limitações na utilização do LD
Harmer (2001) afirma que “usar livros didáticos apropriadamente é uma arte que se torna
mais evidente com a experiência. Se o professor aborda o plano de aula com boa disposição, isso
acontece naturalmente”(2001, p.306)3.
Harmer (2007) reconhece que os livros didáticos algumas vezes não são interessantes e falta
variedade, acrescentando que é preocupante quando o professor fica preso ao livro e o utilize como
o único material em sala de aula, abordando as atividades somente no modo recomendado pelo livro.
Nesta situação o livro se torna um problema e um fator desmotivador tanto para professores quanto
para alunos.
“Using coursebooks appropriately is an art which becomes clearer with experience. If teacher approaches lesson planning
in the right frame of mind, it happens almost as a matter of course.” Harmer (2001, p.306)
3
925
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A atitude dos alunos em relação ao LD é frequentemente mais positiva do que a atitude do
professor. Além disso, alunos se sentem mais seguros quando utilizam um livro, pois o LD permite
que eles se preparem para o que será estudado e revisem o que foi estudado em sala de aula. A maioria
dos alunos gosta de apreciar o visual geralmente atraente do material que eles adquiriram.
De acordo com Cunningsworth (1995) “os livros didáticos são considerados um recurso
para alcançar as metas e objetivos propostos levando em conta as necessidades do aprendente. Não
devem determinar os objetivos nem tornarem-se os próprios objetivos. Estamos preocupados em
ensinar a língua e não o livro”(1995, p. 7)4.
Graves (2000) faz uma analogia entre um instrumento musical e um LD. Não importa se um
instrumento é de altíssima qualidade, ele não pode tocar sozinho. Quanto mais preparado e talentoso
for o músico, melhor será o som extraído daquele instrumento. Tal um instrumento musical, o LD não
ensina sozinho, sendo tão-somente um utensílio que irá contribuir com o ensino e a aprendizagem.
No entanto, enquanto o instrumento musical envolve apenas o artista, ensinar usando o LD depende
também dos alunos. A autora enfatiza que alguns professores assumem a atitude de que quem ensina
é o LD, em vez de serem eles, os professores, e acrescenta “nenhum LD foi escrito para o grupo de
alunos que você ensina no momento, assim precisa ser adaptado de alguma forma.” (2000, p.176)5.
Deste modo, o professor deve estar atento ao fato de que o LD deve ser conduzido por ele
e não o contrário.
3. Por que avaliar o livro didático?
Dentre as inúmeras razões de se avaliar cuidadosamente um LD podemos mencionar:
- selecionar material a ser adotado;
- identificar pontos fortes e fracos no livro;
- selecionar o livro que seja mais apropriado para o público-alvo em questão;
- não correr o risco de adotar um material que não atenda às necessidades dos alunos;
- manter-nos atualizados sobre as metodologias utilizadas.
Segundo Cunningsworth (1995), um bom modo de alcançar uma avaliação eficaz é levar em
consideração que devemos fazer perguntas apropriadas e saber interpretar as respostas obtidas.
Wallace (2000) aponta a importância que a finalidade exerce no processo de avaliação. Para
este autor, antes de iniciarmos a avaliação devemos ter uma idéia das qualidades que fazem um bom
livro ou um livro ruim. Partindo dessa idéia, as qualidades podem tornar-se critérios.
Skierso (1991) in Celce-Murcia (1991) considera que a primeira pergunta a ser feita antes
de iniciarmos a avaliação de um livro didático é “Quem são os alunos?” (idade, sexo, experiências,
nível econômico e social, escolaridade, nível de proficiência na língua, razões para estudar a língua,
interesses etc.). A segunda pergunta seria “Quem é o professor?” (experiência linguística, se é falante
nativo ou não, experiência profissional etc.)
De acordo com Cunningsworth (1995), sem dúvida, haverá elementos de comparação
durante o processo de avaliação, principalmente quando os livros didáticos estão em concorrência
para serem adotados ou o material em uso está sendo desafiado por um material novo no mercado.
Assim, para ter um processo mais objetivo que conduza a resultados mais confiáveis deve-se aplicar
um procedimento padrão e um conjunto de critérios comuns aos livros avaliados.
Diante disso, existem alguns aspectos importantes a serem observados ao se avaliar livros
didáticos: componentes do livro, organização, conteúdo linguístico, syllabus, gradação (sequência e
estágios), habilidades, tópicos e assuntos e metodologia.
“Coursebooks are best seen as a resource in achieving aims and objectives that have already been set in terms of learner
needs. They should not determine the aims themselves or become the aims. We are concerned with teaching the language
and not the textbook. Cunningsworth (1995, p. 7)
5
“No textbook was written for your actual group of students, and so it will need to be adapted in some way.” Graves
(2000, p.176).
4
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
a) Componentes do livro:
Até alguns anos atrás, os componentes do livro se resumiam ao livro didático, ao manual
do professor, ao livro de exercício e a fitas cassete. Hoje o LD vem acompanhado de CDs de áudio,
DVDs, sites na internet, softwares para testes, livros de atividades extras, etc. Alguns materiais
apresentam tantos recursos que cabe ao professor decidir qual deles será utilizado ou não para
atender as necessidades dos alunos. Segundo Cunningsworth (1995), é importante observar como
esses componentes se relacionam. Além de haver harmonia entre eles, devem ser direcionados ao
mesmo objetivo. Embora atualmente exista uma grande variedade de recursos, o LD permanece
como o item mais importante do pacote, pois é o material que serve de ponto de contato entre todos
esses elementos agregados e o aluno. Já o papel do manual do professor, o chamado Teacher’s Guide,
é fornecer idéias e sugestões para que o tutor faça o melhor uso possível do LD, dos componentes
oferecidos e consequentemente de todo o curso.
b) Organização:
A maneira em que o livro é organizado é outro aspecto a ser considerado. A continuidade
do material deve ser observada. O vocabulário e os tópicos gramaticais devem ser mostrados mais
de uma vez, pois precisam ser reciclados para serem armazenados na memória de longo prazo.
Devem também ser apresentados de forma contextualizada e ter a oportunidade de ser efetivamente
colocados em prática. Espera-se que os bons cursos usem a reciclagem com reforço progressivo dos
novos assuntos ensinados. Sabemos que um princípio básico da aprendizagem é apresentar primeiro
o que é familiar e depois o que é novidade, relacionando o novo com o já conhecido. Wallace (2000)
menciona outros aspectos a serem observados na organização do LD como: as diferentes seções
do livro, a ordem apropriada dos tópicos linguísticos e do sistema de organização dos elementos do
curso, isto é, se o livro é dividido em unidades e as unidades em seções.
c) Conteúdo linguístico:
Para Cunningsworth (1995)
“Os livros didáticos tratam do ensino e da aprendizagem da língua em si, em alguns aspectos. Temas,
tópicos, estratégias comunicativas, questões culturais são também importantes, mas os verdadeiros itens
de língua ensinados – gramática, vocabulário e fonologia – formam a base de tudo que contribui para o
complexo processo do ensino da língua”(1995, p.31)6.
Para tornar o ensino e a aprendizagem eficazes é necessário analisar a língua e dividi-la em
unidades pequenas. Porém, não é fácil separar diferentes aspectos da língua de seu todo e dividi-los
sem perder a autenticidade, pois, como sabemos, a língua é um fenômeno complexo que acontece
simultaneamente em diferentes níveis. Assim, “é essencial reduzir a carga de aprendizagem em uma
língua estrangeira a unidades assimiláveis e isso invariavelmente requer focalizar em diferentes aspectos
da língua separadamente” Cunningsworth (1995, p.31).7
Por isso uma sequência didática pode ter o seu foco dividido parte no ensino de uma nova
estrutura gramatical e parte em vocabulário. Os livros didáticos focalizam, então, em diferentes
aspectos da forma e do uso da língua e os divide em unidades menores para facilitar o ensino.
Gramática é considerada o principal componente de um curso de língua geral. Desta forma,
é importante determinar quais os itens gramaticais devam ser incluídos e a que ponto expressam as
necessidades do aprendente.
“Coursebooks are concerned with the teaching and learning of the language itself, in some of its aspects. Themes,
topics, communicative strategies, cultural issues and other factors are also important, but the actual items of language
taught - grammar, vocabulary and phonology - form the foundation of everything else that contributes to the complex
process of language teaching.” Cunningsworth (1995, p.31)
7
“It is essential to reduce the learning load in the foreign language to assimilable units, and this invariably entails focusing
on different aspects of the language separately.” Cunningsworth (1995, p.31)
6
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Pesquisadores chegaram à conclusão que seria impossível haver comunicação sem algum
conhecimento de vocabulário. Assim, vocabulário passou a ocupar um espaço maior no LD. Selecionar
vocabulário não é tão simples quanto parece. É aconselhável observar se o LD apresenta o vocabulário
de forma significativa e contextualizada e se os itens são reciclados sistematicamente.
O ensino de fonologia é outro aspecto incluído na maioria dos livros atuais: articulação
de sons separadamente, tonicidade de palavras e frases e alguns aspectos de entonação e ritmo.
Naturalmente, estes pontos devem estar relacionados aos objetivos e ao contexto do curso.
d) Syllabus:
O foco do syllabus é em “o que ensinar” e em “que ordem ensinar”.
Para Harmer (2001, p.295) “syllabus trata da seleção dos itens a serem aprendidos e a gradação
desses itens em uma sequência apropriada”8.
A seleção e a sequência do conteúdo deve ter como objetivo facilitar a aprendizagem.
Existem diferentes tipos de syllabi apresentados pelos teóricos como:
– Syllabus baseado no processo ou em tarefas (Process Syllabus or Task-based Syllabus): o
conteúdo não é especificado com antecipação. É desenvolvido naturalmente de acordo
com a situação de aprendizagem. Enfatiza mais o processo do que o produto e o fato de
que a aprendizagem acontece naturalmente;
– Syllabus baseado no conteúdo (Content-based syllabus): geralmente são baseados em quatro tipos de conteúdo: foco na forma ou estrutura, foco nas funções, foco em situações
ou contexto e foco no tópico ou informação. O conteúdo do LD deve ser uma combinação desses fatores;
– Syllabus Estrutural (Grammar syllabus): é o mais tradicional e enfatiza a estrutura gramatical da língua;
– Syllabus Funcional (Functional syllabus): baseado em funções comunicativas como fazer
pedidos, concordar, discordar etc.
– Syllabus Situacional (Situational syllabus): baseado em situações autênticas (real-world situations);
– Syllabus baseado em tópicos (Topic-based syllabus): baseado em informações.
De acordo com Harmer (2001), existe ainda o Multi-syllabus syllabus: uma combinação dos
itens de gramática, léxico, funções da língua, situações, tópicos, tarefas, habilidades e pronúncia sem
haver predominância de algum desses elementos, pois eles se acomodam harmonicamente.
O tipo de syllabus a ser utilizado irá depender principalmente do contexto e das necessidades
do aprendente.
e) Gradação: sequência e estágios.
É muito importante observar a sequência, isto é, como o conteúdo é colocado em ordem no
syllabus e como se processa a evolução do aprendente durante o curso. Os estágios também merecem
atenção, pois trata de como o curso é dividido em unidades, o que será ensinado em uma unidade,
além da relação entre o conteúdo ensinado e o tempo necessário para a aprendizagem desse conteúdo,
a carga horária.
f) Habilidades (Skills)
Deve ser observado o modo que o LD lida com quatro habilidades (produção oral,
“Syllabus design concerns the selection of items to be learnt and the grading of those items into an appropriate
sequence.” Harmer (2001, p. 295)
8
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
compreensão oral, produção escrita e leitura) e se há um equilíbrio entre elas. Este equilíbrio não é
necessário em todas as situações de ensino, irá depender do foco do curso.
Segundo Cunningsworth (1995)
“O trabalho com as habilidades é um componente importante de qualquer LD que alega preparar os
aprendentes para usar a língua em situações reais. Como em outros aspectos da análise e avaliação de
material, o que você procura irá depender das suas necessidades e das necessidades dos aprendentes. O
mais importante é procurar um equilíbrio entre as habilidades que irá refletir os objetivos do ensino e
verificar se o LD fornece material para trabalho apropriado de integração das habilidades”(1995, p.85)9.
g) Tópicos e assuntos:
Outro ponto importante a ser levado em consideração ao analisar o LD é se ele inclui tópicos
interessantes e informativos de acordo como a idade e o nível do aprendente. Os alunos podem
aprender melhor quando não estão concentrados em apenas aprender a língua-alvo, mas também
em usar a língua para fazer outras coisas ou aprender outros assuntos. Tópicos reais irão despertar o
interesse dos alunos mais facilmente que um tópico não real. Deve haver um grau de autenticidade no
material. Deve-se observar se a linguagem usada é autêntica e se o material é culturalmente correto,
isto é, não apresenta formas de preconceito em relação à raça, cor, etnia, sexo etc. Skierso (1991) in
Celce-Murcia (1991) enfatiza que temas culturais são sempre apresentados nos livros didáticos e seria
interessante se fossem autênticos. A autora acrescenta que “deve-se ser cuidadoso e utilizar material
que não ofende, insulta ou provoca os alunos “(1991, p.434)10.
h) Metodologia
Embora alguns cursos não se referem às necessidades do aprendente abertamente, a
abordagem utilizada sempre implica a metodologia usada.
Richards (1990) afirma que
“A metodologia pode ser caracterizada como as atividades, tarefas e experiências de aprendizagem
selecionadas pelo professor para realizar a aprendizagem e como isso é usado dentro do processo de ensino
e aprendizagem. Essas atividades são justificadas de acordo com os objetivos que o professor se propôs a
alcançar e o conteúdo que ele se propôs a ensinar (1990, p.11)11.
De acordo com Cunningsworth (1995)
“Qualquer que seja a abordagem, praticamente todos os materiais modernos de ensino de línguas assumem
uma visão cognitiva do processo de aprendizagem (indutivo ou dedutivo), em que os aprendentes são
considerados pessoas conscientes, pensantes, com individualidade e inteligência (1995, p. 101)12.
O exposto acima forma a base para adotarmos critérios de avaliação. Esta tarefa não é fácil e
envolve casar o material didático com o contexto no qual será usado. Para tanto, estabelecer critérios
irá facilitar essa tarefa, pois uma seleção bem sucedida está diretamente relacionada aos resultados
obtidos através de análises e avaliações cuidadosas.
“Skills work is an important component of any coursebook that claims to equip learners to use language in real situations.
As in other aspects of materials analysis and evaluation, what you look for will depend on your needs and your learners’
needs. The most important points are to look for a balance of skills which reflects the aims of your teaching and to check
that the coursebook provides material for appropriate integrated skills work.”Cunningsworth (1995, p.85)
10
“One must be cautious to use material which does not offend, insult or tease the student population.” Skierso(1991) in
Celce-Murcia(1991, p.434)
11
“Methodology can be characterized as the activities, tasks, and learning experiences selected by the teacher in
order to achieve learning, and how these are used within the teaching/learning process. These activities are justified
according to the objectives the teacher has set out to accomplish and the content he or she has set out to teach.”
Richards (1990, p.11)
12
“Whatever the approach, virtually all modern language-teaching materials take a cognitive view of the learning process
(whether inductive or deductive learning is favored), in that the learners are seem as conscious, thinking people with
individuality and intelligence.” Cunningsworth (1995, p. 101)
9
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
4. Critérios para avaliação do LD
Deve-se considerar critérios cuidadosos ao selecionar um LD.
Cunningsworth (1995) menciona quatro estágios que devem ser seguidos durante o processo
de avaliação e seleção de LD:
a) Análise: procurar informações em categorias diferentes;
b) Interpretação dos dados encontrados: a opinião e a experiência profissional são muito
importantes nesse estágio;
c) Avaliação: este estágio é mais subjetivo e será baseado nas expectativas do professor e
do aprendente, preferências metodológicas, necessidades dos alunos, syllabus e preferências pessoais;
d) Seleção: é a combinação entre as características identificadas nos estágios anteriores e
as exigências de uma situação específica de ensino e aprendizagem.
Assim, é preciso adotar um checklist, o que não é simples, pois diferentes critérios deverão
ser usados em circunstâncias específicas, deste modo, deve-se escolher aqueles que atendam melhor
às necessidades de alunos e professores. Pode-se também preparar um checklist apropriado para
determinadas circunstâncias. Diante da variedade de critérios estabelecidos por diversos autores,
apresentaremos os critérios apresentados por Skierso (1991) in Celce-Murcia (1991), Wallace (2000) e
Harmer (2007) pela diversidade de itens, praticidade e flexibilidade que propõem.
Skierso (1991) in Celce-Murcia (1991) apresenta os seguintes critérios:
a) Dados bibliográficos
b) Objetivos e metas
c) Conteúdo/assunto
d) Vocabulário e estruturas
e) Exercícios e atividades
f) Layout e características físicas.
Os critérios propostos por Skierso (1991) são bastante resumidos. No entanto, cada item
pode ser subdividido conforme a necessidade do avaliador.
Os critérios apresentados por Wallace (2000) são baseados nos seguintes itens:
a) Custo: o material pode ser bom, mas vale o que custa?
b) Base/fundamento: O propósito do livro, os princípios metodológicos, e justificativa
dos princípios, organização etc.
c) Contexto: contexto e público-alvo.
d) Nível: Nível do aluno naquele contexto.
e) Relevância para as necessidades
f) Facilidade e praticidade no uso: fácil e prático para usar, as unidades são adequadas para
a carga horária.
g) Layout e organização: ilustração, sinalização, seções.
h) Conteúdo: incluído e omitido.
i) Abrangência das atividades ou tarefas.
j) Material de apoio para os alunos.
k) Interesse/motivação.
l) Material de apoio para o professor.
930
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Harmer (2007) menciona que podemos preparar as nossas próprias checklists ou usar checklists
preparados por outros. Quando usamos checklists preparados por outros, estamos aceitando a visão do
outro para o que é apropriado em nossa situação específica. No entanto, precisamos nos basear em
alguns aspectos. O autor cita três estágios de procedimentos para avaliar um LD: listar as características
que desejamos no LD, selecionando áreas de interesse, escrever descrições breves ou fazer perguntas
de como o LD ideal iria tratar essas áreas, e usar essas descrições como itens de avaliação verificando
se os livros que estamos analisando correspondem às nossas expectativas.
A flexibilidade dos critérios propostos por Harmer (2007) é observada logo na forma como
ele estabelece a checklist, dando ao avaliador a oportunidade de incluir itens e fazer perguntas de
seu interesse. Assim, apresentaremos as possíveis áreas para consideração e algumas das possíveis
perguntas para análise do LD recomendadas por Harmer (2007):
a) Preço e disponibilidade: Quanto custa? Todos os componentes estão disponíveis?
b) Materiais adicionais: Além do livro de exercício que outros materiais são oferecidos?
c) Layout e design: O livro é atraente? O design facilita o uso do livro?
d) Instruções: As instruções são claras? Os alunos podem utilizar o livro sem a ajuda do
professor?
e) Metodologia: Qual o tipo de ensino e de aprendizagem que o livro fomenta?
f) Syllabus: É apropriado para os alunos? Cobre as áreas esperadas (gramática, vocabulário, funções etc.)?
g) Habilidades linguísticas: As habilidades são bem equilibradas? As atividades são capazes de envolver os alunos?
h) Tópicos: Contem variedade de tópicos? São apropriados para os alunos? São capazes
de envolver os alunos?
i) Culturalmente apropriado: É apropriado para o contexto cultural dos alunos? Não demonstra preconceito ao tratar de diferentes costumes, raças, etnias e sexos?
l) Livro do professor: Possui livro do professor? É fácil de usar? Oferecem alternativas
para as atividades do LD?
Após analisarmos diferentes critérios propostos pelos autores, decidirmos por aqueles que
mais se adéquam às nossas necessidades e adaptá-los à nossa realidade, se necessário, faremos, então,
uma avaliação cautelosa que resultará na seleção do LD.
5. Considerações finais
Entendemos que uma seleção bem sucedida está diretamente relacionada aos resultados
obtidos através de análises e avaliações cuidadosas
Devemos estar cientes de que um LD idealizado para atender a um mercado geral e amplo,
não será perfeito para um grupo de alunos em particular. Porém, além de tentar encontrar o que melhor
atende ao nosso contexto e público-alvo, devemos selecionar aquele que oferece possibilidades para
adaptar ou suplementar material. Selecionar um LD envolve decisões estratégicas importantes, pois
irá afetar o processo de ensino e aprendizagem e a proficiência na língua alvo de um grande número
de alunos por um bom espaço de tempo. Além disso, por alguns anos será feito um investimento
financeiro muitas vezes bastante elevado.
É importante estar seguro de que o material selecionado é o melhor e o mais apropriado ao
nosso contexto disponível no mercado no momento da seleção. Para se certificar de que o material irá
funcionar adequadamente, uma boa idéia é pilotá-lo antes de adotá-lo definitivamente. É aconselhável
analisar vários livros semelhantes e comparar os resultados.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Assim, não corremos o risco de adotarmos um material inapropriado para o nosso públicoalvo, além disso, alunos e professores se sentirão motivados ao utilizarem o livro, o que trará benefícios
também para a instituição de ensino.
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932
Volume 3
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NA INTERAÇÃO
ENTRE PESSOAS DE COMPETÊNCIAS
COMUNICATIVAS DISTINTAS: ORALIDADE X ESCRITA
Maria da Guia Taveiro SILVA1
(Universidade Estadual do Maranhão)
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo discutir a construção de sentido no discurso de pessoas
com competências comunicativas visivelmente distintas no uso da linguagem em diferentes situações. A análise
centra-se em dois fragmentos de discursos envolvendo interlocutores com formação lingüística diferente.
Para tanto nos valemos da semântica discursiva como aporte metodológico. Os dois fragmentos mostram a
interação discursiva de uma senhora com um médico e de um senhor com o médico em uma consulta. Os
dois falantes pacientes são de origem rural e os episódios ocorreram em duas consultas médicas distintas. A
análise está relacionada à construção de sentido estabelecida entre os interlocutores, mostrando a importância
do contexto partilhado para a construção e significação da linguagem. Nesse contexto, tanto a cultura, o acesso
a bens culturais, como a escrita, quanto as relações de poder são variáveis determinantes para a construção de
sentido.
PALAVRAS-CHAVE: sentido; língua materna; variação; discurso.
1
A autora é doutoranda em Lingüística pela Universidade de Brasília – UnB
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
“O sentido varia mesmo quando
o referente é o mesmo”
(Frege)
Todo falante é competente no uso da sua língua natural, mas são as condições em que ele
a utiliza que garantem a efetiva comunicação. A construção de um discurso de um falante, embora
competente no uso da sua língua materna, vai depender da situação em que se dá essa construção
discursiva. Essa situação é dada tanto pelo contexto cultural, situacional e interativo que são, todas,
perpassadas pelas relações de poder. Assim, quando alguém fala, fala sempre de um lugar na sociedade,
e sempre constrói um discurso que veicula uma ideologia e dependendo da cultura, do acesso a bens
culturais e das relações de poder a construção de sentido pode ser determinada e o discurso ser mais
ou menos valorizado socialmente.
A construção de sentido, ou melhor, as construções de sentidos possíveis, aqui analisadas a
partir de dois episódios, são vistas sob três dimensões – o contexto, a cultura e as relações de poder
– como elementos essenciais para a compreensão de como se dá a produção de sentido entre falantes
com competências discursivamente distintas. No jogo discursivo, os falantes usam o seu repertório
sociolinguístico, que é construído a partir das interações que mantêm com outras pessoas nos diversos
domínios sociais, podendo, os mesmos, estar situados em pólos opostos ou intermediários como: o
rural, o urbano ou o rurbano (BORTONI-RICARDO, 2004) ou de um lado os detentores de poder
e de outro os menos favorecidos.
De acordo com alguns autores como Cagliari (2005) e Gnerre (1998), a língua é um
instrumento de poder e discriminação, pois alguns modos de falar são mais valorizados socialmente
do que outros e isso se intensifica, se tomamos para o nosso olhar o jogo discursivo travado entre
uma pessoa com domínio da linguagem essencialmente estruturada pela cultura de oralidade e outra
com domínio da linguagem da cultura letrada.
O trabalho tem como objetivo destacar o significado como construção de sentido no discurso
de pessoas com competências comunicativas distintas no uso da linguagem em diferentes situações.
Para tanto nos valemos da semântica discursiva como aporte metodológico, que busca o entendimento
entre o sentido e a intenção dos interlocutores nas interações comunicativas (DUCROT, 1972).
O texto está organizado a partir de uma discussão teórica com autores como Koch (2003),
com considerações sobre a fala e a escrita; Bagno (2007) e Bortoni-Ricardo (2004), que tratam da
variação lingüística; Cagliari (2005) e Gnerre (1998), que fazem referência à língua e às relações de
poder; Duarte e Oliveira (2004) e Frege (1978), que tratam dos nomes e seus significados; Ducrot
(1972) e Guimarães (2007). sobre os operadores argumentativos e a significação; Bréal (1992), que
numa perspectiva histórica da linguagem nos incita a pensar na exatidão das palavras e Labov (2008)
que discorre sobre os padrões sociolingüísticos.
2. Referencial teórico
2.1 O discurso oral x discurso escrito e a produção de sentido
Koch (2003) pontua que a fala e a escrita, apesar de constituírem duas modalidades de uso
da língua e possuírem características próprias, utilizam o mesmo sistema lingüístico e não devem ser
consideradas de forma dicotômica ou excludente.
Contudo, o uso que se faz da linguagem nos diferentes contextos e situações pode acentuar
essas características, valorizando uma em detrimento da outra. Uma análise da construção de sentido
na interação discursiva não pode deixar de considerar esse fator, se o que se deseja é compreender
como os interlocutores lançam mão do acervo lexical, baseados nas condições de uso da linguagem,
934
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
marcados imperiosamente pelas relações de poder, pois quem fala – seja no discurso oral ou escrito
– fala sempre de um lugar.
Desta forma, veremos que, nos casos aqui analisados, enquanto uns falam como representantes
do dialeto rural, marcadamente orientado pela cultura de oralidade, outros se expressam como
representantes de uma cultura letrada, portanto, representantes de discursos valorizados socialmente,
caracterizando assim, discursos distintos, que utilizam a mesma língua, o mesmo código, mas recorrem
a estratégias significativas diferentes de acordo com a cultura de cada um, pois, o que caracteriza uma
língua são os fenômenos sociais e históricos.
Guimarães (2007) considera linguagem como “um fenômeno histórico que funciona
segundo um conjunto de regularidades, socialmente construídas”, e essa construção de regularidades
independe do pólo em que os usuários da língua se encontram, ela depende unicamente da construção
de sentidos nos discursos por eles construídos.
No Brasil, as variedades lingüísticas1 estigmatizadas constituem o repertório da maioria
da população, que há séculos é negligenciada pelas ações políticas dos sucessivos regimes políticos,
especialmente no que diz respeito à educação formal. Veiga (2001) ressalta que a falta de políticas
adequadas que focalizem as classes dos desfavorecidos resulta em conseqüências desastrosas e a
principal delas é a pobreza.
Dentre os três itens básicos para a redução da pobreza no campo, citados por Sen (2000), é
mencionado a redução do grau de desigualdade, com o acesso à terra e à educação, que representam
os maiores indicadores de desigualdade. Assim sendo, a falta de oferta de escolas para os colonos
ocasiona a elevação do índice de defasagem escolar (IBGE, 2007) e produz sérias implicações para
os moradores da zona rural, uma delas é a construção ou manutenção de maior grau de desigualdade
linguística, ou seja, a falta de acesso ao conhecimento da variação lingüística mais valorizada. Bagno
(2007) afirma que os processos de mudança e variação das línguas vivas são incessantes e ininterruptos
e isso tem conseqüências diretas para a construção de discursos e para a sua significação.
Segundo Bortoni-Ricardo (2004), no Brasil, os dialetos das cidades litorâneas, criadas
ao longo dos séculos XVI e XVII, como Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Olinda, Fortaleza,
São Luis, João Pessoa e Porto alegre, foram se legitimando e se tornaram dialetos valorizados em
detrimento dos dialetos das comunidades de fala do interior do país, constituindo-se no discurso
valorizado socialmente como “padrão”. A autora também esclarece que essas cidades estão voltadas
geograficamente para a Europa e receberam, nos três primeiros séculos, um contingente imenso
de portugueses, desenvolvendo, assim, falares mais próximos dos falares lusitanos do que os de
comunidades mais interioranas.
Isso demonstra a importância de se considerar o que se fala, como se fala, quando se fala,
para quê e com quem se fala como aspectos imperativos para a compreensão da significação do
discurso. Assim, a escolha lexical ou sintática depende mais das condições de produção do discurso
do que de aspectos lingüísticos intrínsecos da língua, tradicionalmente postulados por quem vê a
língua com significado em si mesma, porém os significados da língua são construídos socialmente.
Duarte e Oliveira (2004 p.210) postulam que “os nomes são categorias lingüísticas
caracterizáveis semanticamente por terem um potencial de referência”, ou seja, por geralmente serem
“utilizados numa situação concreta de comunicação, com uma função designatória ou de nomeação”,
construídas socialmente pelos interagentes. O sentido da linguagem é assim um sentido compartilhado
e dependente do contexto de produção e das qualidades de interação, nos quais as palavras ganham
sentido e passam a nomear o mundo e transmitir idéias com significados concretos.
Para Frege (1978, p. 63), “o sentido de um nome [...] é entendido por todos que estejam
suficientemente familiarizados com a linguagem ou com a totalidade de designações a que ele
pertence”, mas é freqüente a falta de interação entre falantes causada pela diferença de variação,
podendo, por isso, haver desencontros de significados e significantes em uma interação entre pessoas
1
Variação lingüista é entendida como um fenômeno constitutivo das línguas humanas e ocorre em todos os níveis.
935
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
de situação sociocultural diferente. Para Cagliari (2005, p. 30), a linguagem existe porque se uniu um
pensamento (significado) a uma forma de expressão (significante), e que “essa unidade de dupla face
é o signo lingüístico”.
Partindo do pressuposto de que “a língua que o indivíduo desenvolve é a que fica exposto”
(ROSA, 2000, p. 24), pode-se afirmar que, numa interlocução, uma pessoa que não tem acesso à
cultura letrada se vale de todo e qualquer referente que possa traduzir significados construídos e
socializados no meio em que vive, e passa a fazer uso constante de comparações e/ou ilustrações
na tentativa de expressar significados ao seu interlocutor, enquanto que o indivíduo que participa da
sociedade estruturada pela escrita, lança mão de uma linguagem padronizada, baseada em referentes
outros mais abstratos. Esse paradoxo pode representar um entrave para os interlocutores que não
tiveram acesso à cultura letrada.
Vejamos como o uso de ilustrações e até de metáforas concorre para a construção de sentido
em dois exemplos de interação assimétrica, de um lado dois médicos com uma linguagem estruturada
mais próxima da variação padrão, ou seja, os representantes do poder e de outro, duas pessoas com
linguagem socialmente desvalorizada por ser estruturada na cultura de oralidade – geralmente a dos
menos favorecidos:
2.2. Episódio 01
Um diálogo de um médico e uma paciente durante uma consulta. Após ser anunciado o
nome da paciente ela entra no consultório:
P – Boa tarde dotô.
M – Senta aí e diz o que você tem.
P – Dotô, eu num sei o que tê’u não. Sinto muita dor, parece que tem um côco no pé da mi’a barriga.
M – Um côco no pé da barriga? Senhora, em primeiro lugar barriga não tem pé e muito menos pode ter
um côco dentro dela... a senhora deve ter uma inflamação no ovário que causa as dores.
P – O Sin’ô mi discurpe, viu? É qu’eu num te’u leitura e num sei falá cuma o Sin’ô não.
(Ao relatar-me esse episódio a senhora esclareceu que o médico simplesmente entregou a
receita, ela a recebeu e saiu. Porém quando essa senhora se refere ao fato ocorrido, ela faz questão de
dizer que ficou envergonhada e constrangida).
No episódio 1, a interação discursiva revela, em marcas lingüísticas, uma assimetria entre
os interlocutores – de mais poder e de menos poder, de mais letramento e de menos letramento .
O contexto social e cultural do médico é mais letrado, porque é estruturado por práticas da cultura
escrita e a linguagem utilizada por ele é mais próxima da variedade padrão, valorizada socialmente e
tida como científica e técnica; por isso mesmo, perpassada por uma ideologia, socialmente legitimada.
Embora esse fato não justifique o tratamento grosseiro que ele dispensou à paciente, pode-se
até caracterizá-lo como mal educado, ele nos permite perceber que, nas interações discursivas, a
questão do poder, dependendo do contexto situacional define as regras do jogo, mostrando que
quem fala, fala sempre de um lugar ideologicamente situado. No caso analisado o médico mostrase como detentor do conhecimento e do poder para ditar as regras do discurso, mesmo não se
fazendo entender.
A falante paciente do episódio 1 é uma senhora de 58 anos, desprovida de bens
financeiros, residente em uma região do interior do Maranhão, ou seja, reside no campo – um
espaço social com vida e identidade cultural própria; com práticas compartilhadas e socializadas
por seus moradores (INEP (2007b), mas que teve a coragem de procurar um médico para cuidar
de sua saúde. No contexto rural maranhense muitas mulheres, principalmente as senhoras mais
idosas, têm dificuldades para realizar consultas médicas devido a vários fatores. Um desses fatores
é a ignorância da necessidade de cuidados específicos da saúde, apesar de realizarem tarefas que
podem comprometer a mesma.
936
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Dentre as ocupações das mulheres maranhenses, que residem no campo, destaca-se a quebra
de coco babaçu que é feita na maioria das vezes sentadas, no solo úmido, numa clareira que elas
mesmas abrem nas proximidades do tronco das palmeiras /dos coqueiros que naturalmente lhes
fornecem o produto alvo de suas buscas – o coco. Pois uma das riquezas naturais do estado do
Maranhão é o coco babaçu.
Os altaneiros coqueiros foram motivo de inspiração para o poeta maranhanse, Gonçalves
Dias, que ao escrever a Canção do Exílio fez questão de mencionar: “Minha terra tem palmeiras...”
No Maranhão, cerca de trezentas mil pessoas vivem da extração do coco babaçu e 90% delas são
mulheres (PORTAL DO BABAÇU, 2008). Quebrar coco é um ofício aprendido e desenvolvido por
muitos maranhenses desde a tenra idade.
Ao participar do diálogo com o médico, a paciente moradora da zona rural (uma quebradeira
de coco), faz uso da linguagem por ela utilizada e que faz muito sentido no meio em que vivem essas
pessoas. Trata-se de um lugar onde há coqueiro (palmeira) com cocos caídos junto ao tronco (pé)
onde ela provavelmente o recolhe (cata) para extrair (quebrar) a vagem (o bago). Termos esses, usados
com seus pares e perfeitamente entendidos e, agora, transpostos para o jogo discursivo com o médico
ao dizer: “[...] parece que tem um côco no pé da mi’a barriga”. Entre os seus pares, a falante se faz
entender, estabelecendo, desse modo, uma interação com sentido compartilhado devido ao contexto
e o conhecimento culturalmente construído.
Porém, apesar do seu interlocutor, o médico, tê-la repreendido, ele demonstrou que entendeu
perfeitamente o que a mesma quis dizer, por utilizarem um mesmo código lingüístico, embora tenham
feito uso de variedades diferentes. Ademais, cabia a ele, ao médico, como um conhecedor e usuário de
uma variação privilegiada, esforçar-se para compreendê-la e tratá-la com respeito e educação, pois foi
o que ela fez. Pois mesmo sendo uma pessoa menos letrada, ela demonstrou ser mais educada.
Para concluir a participação no diálogo (ou tentativa de interação), a interlocutora ratificou
sua condição de “desfavorecida” e detentora de menos poder, deixando evidente que no contexto
discursivo ela sentia-se ainda mais desfavorecida e bastante limitada para estabelecer a construção
de sentidos do jogo discursivo empreendido pelo médico. É válido destacar também que, por algum
motivo, que pode ser até por nervosismo, a interlocutora demonstrou disposição para dialogar com o
médico ao cumprimentá-lo na chegada e por se desculpar ao sair, porém ela foi visivelmente ignorada
nos dois momentos.
Dessa forma, pode-se dizer que no episódio ora considerado houve “discriminação de forma
explícita, com base nas capacidades lingüísticas medidas no metro da gramática normativa e na língua
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
padrão” (GNERRE, 1998). Ademais, Labov (2008, p. 343) salienta que “quando o falante rural chega
à cidade, descobre em geral que sua fala caipira é ridicularizada” e, nesse caso, o interlocutor foi além
da ridicularizarão, o discurso dele denota ocorrência e evidência de abuso de poder.
O paciente interlocutor do episódio número 2 é um senhor de 45 anos, de origem rural,
participante das tarefas do campo, mas também já familiarizado com outras atividades próprias
da classe trabalhadora – construção, obras. Nesse episódio o paciente é retentor de conhecimento
lingüístico mais estruturado, ou seja, é mais letrado do que a paciente interlocutora do episódio número
1, vejamos se esse fato influenciou a construção de sentido estabelecida entre ele e o médico.
2.3. Episódio 02
Este excerto contém o relato de um senhor que em uma consulta viveu momentos de
“desencontros de sentido” e teve dificuldades de responder alguns questionamentos feitos pelo
médico:
[...]
D – O Senhor já evacuou hoje?
(Por não entender o significado da palavra ‘evacuar’ e sem saber o que responder, o paciente
apenas fitou os olhos no médico por alguns segundos. O médico compreendendo o que estava
ocorrendo, refez a pergunta)
D – O senhor já obrou hoje?
(O paciente continuou sem entender nada novamente e pensou:)
P – (O qu’é isso? Eu num trabáio in obra, num tô intendeno.)
(O interlocutor, mais uma vez, calado estava, calado ficou, então o médico, com aparente
tranqüilidade, perguntou pela terceira vez)
D – Você já “cagou” hoje?
P – Ah, sim. Agora intindi dôtô o que o sin’ô qué sabê.
[...]
No episódio 2, há a mesma relação contextual encontrada no anterior, o diálogo estabelecido
entre os interlocutores revela a mesma relação de poder; por um lado, um médico integrante das
classes favorecidas e por outro lado, um paciente representante das minorias – tanto econômica
quanto culturalmente considerados desfavorecidos. De acordo com Cagliari (2005), todo falante usa
sua língua conforme as regras próprias de seu dialeto, sendo este, o reflexo da comunidade lingüística
a que pertence. Portanto, é natural que cada um dos usuários faça uso da variação que lhe é própria.
Desta forma, o médico, inicialmente, permanece totalmente “imerso” na cultura letrada
e seu discurso a princípio não produz os significados desejados, ou seja, não completa a interação
lingüística. Já o paciente, mesmo sem falar, constrói um discurso, construindo sentidos por meio
do seu silêncio, qual seja: ‘não entendo o que você está querendo dizer, por isso não respondo’. (O
discurso não dito, muita vezes, comunica mais que o discurso verbal.)
Apesar de o caso se revelar um pouco cômico, ele ilustra muito bem a distância social,
cultural, econômica e discursiva que há entre interlocutores integrantes de contextos interacionais
distintos. Esse fato revela a importância da cultura e do contexto lingüístico para a construção
de sentido.
Semelhantemente ao que aconteceu no episódio 1, no episódio 2 o paciente tentou relacionar
as palavras, ou melhor, o discurso do médico - que não se fez entender - com conhecimentos
lingüísticos próprios da sua cultura, especialmente, com conceitos relacionados ao seu mundo de
trabalho (obra = construção), universo do qual participa. Mas mesmo assim ele se mostra inseguro,
pois além de perceber distinção no modo de falar, ele se depara, também, com a barreira de significado
e se resguarda no silêncio.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Labov (2008, p. 343) ao fazer referência ao usuário do dialeto caipira diz que:
Mesmo sendo um marcador de identidade local, e uma fonte de prestígio em casa, ele já pode ter
consciência do caráter provinciano de sua fala antes de chegar na cidade. Em conseqüência disso, vemos
frerquentemente uma rápida transformação dos traços mais salientes dos dialetos rurais à medida que os
falantes se incorporam à vida urbana.
Comparado ao episódio1, o médico do episódio 2 pareceu bem mais amigável com o
paciente. Ele aproximou-se de seu interlocutor ao refazer a pergunta e ao oferecer-lhe opções de
vocábulo, com esse gesto o objetivo de ser entendido pelo paciente foi alcançado.
3. Conclusão
Dos episódios aqui analisados, de uma forma geral, pode-se dizer que, aparentemente, há
mais semelhanças do que diferenças entre eles por se tratar de duas consultas médicas, ou seja, o
contexto geográfico situacional é o mesmo, porém do ponto de vista discursivo eles são muitos
distintos.
No primeiro, a interlocutora, paciente que inicia a interlocução não possui um repertório
lingüístico compatível com o seu interlocutor – o médico, portanto ela não oferece outras opções de
vocábulos para se fazer entender e o seu interlocutor não faz nenhum esforço para estabelecer uma
interação ou demonstrar que entendeu o significado do discurso por ela proferido.
No episódio dois, o paciente também não é detentor da cultura letrada, mas o seu interlocutor
– o médico, ao entender a situação, adota uma postura social louvável – faz uso do seu repertório
lingüístico alternativo, ou seja, usa termos que imagina serem eles compreendidos por seu paciente,
pois o mesmo, em seu silêncio, revela a que cultura pertence – a de oralidade.
Dessa forma, a maior diferença, na construção de significados, se deu pela postura dos
detentores do poder, os letrados. No primeiro caso, apesar do que ocorreu, o significado foi construído
imediatamente, embora esse fato não tenha sido evidenciado verbalmente, a postura discursiva
adotada pelo médico foi intencional, o alvo dele era discriminatório e o mesmo foi alcançado. Já no
segundo episódio, pode-se dizer que o discurso e o significado foram construídos de forma interativa,
pois a intenção do médico era ser compreendido, expressar significado e, finalmente, ele alcançou
êxito em seu objetivo, com isso ele ratifica que cabe a quem tem mais a oferecer, fazê-lo desde que
se faça necessário e nesses dois casos é extremamente necessário que haja a construção de sentido
nas interações dos interlocutores, pois por motivos distintos o interesse é óbvio para ambos: (a) aos
pacientes lhes interessa a saúde e (b) aos médicos, o público alvo da profissão que exercem – os
pacientes.
Neste contexto, partindo da perspectiva da semântica discursiva de Ducrot (1972) e Guimarães
(2007), que trata de questões no campo da semântica discursiva possibilitando entendimento entre o
sentido e a intenção dos interlocutores nas interações comunicativas, e por entender que a linguagem
é um fenômeno histórico, socialmente construído, consideramos que é perceptível na análise
dos dois episódios, que a construção de significação da linguagem entre os interagentes depende
fundamentalmente de como o contexto da interação é considerado, pois é dele que dependem todos
os elementos significativos necessários para o texto ser compreendido; da cultura; do acesso a bens
culturais, como a escrita; e das relações de poder (GNERRE, 1998).
Ressalta-se que essas 3 dimensões concorrem igualmente para o estabelecimento de um
discurso significativo , ou seja, uma dimensão quase não se sobrepõe à outra.
Pode-se observar, também, que quando a relação discursiva que se estabelece no diálogo é
assimétrica, chega a ser até opressora (no primeiro episódio), ratificando, dessa forma, que a língua
é realmente um instrumento de poder e discriminação (CAGLIARI, 2005), esse mesmo episódio
ratifica ainda que “[...] a forma do comportamento lingüístico muda rapidamente à medida que muda
a posição social do falante (LABOV, 2008, p. 140). É claramente perceptível, por meio do discurso,
940
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
que cada interlocutor se confirma em seu extrato social e de alguma forma, sem dizer, cada um deixa
dito que tem consciência disso.
Para Labov (2008, p 147) “a estratificação social e suas conseqüências são apenas um tipo de
processo social que se reflete nas estruturas lingüísticas.
Diante do exposto, para finalizar, consideremos a perspectiva histórica da linguagem como
fenômeno humano e pensemos na pergunta de Bréal: “as palavras criadas pelos letrados e eruditos
têm maior exatidão?”(1992, p.125).
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941
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A QUESTÃO DOS GÊNEROS HÍBRIDOS:
CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE UMA ANÁLISE
DE CASOS EM GÊNEROS PROMOCIONAIS
Maria Lourdilene VIEIRA
(Universidade Federal do Piauí / CAPES)
RESUMO: Neste trabalho, partimos de considerações teóricas da literatura de gêneros de discurso, utilizando,
dentre outros, Bakhtin (2003 [1979]) e Bazerman (2005). Na abordagem da questão dos gêneros híbridos,
tomamos por base Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008) e, ainda (e, principalmente) Bhatia (1997). O
objetivo é de analisar como se dá a construção do sentido do texto pautada em mais de uma estrutura genérica,
considerando que texto geralmente é definido como um todo significativo construído em satisfação de um
propósito comunicativo e que é esse propósito comunicativo que direciona o uso de um padrão genérico em
detrimento de todos os outros. Consideramos que o uso de gêneros na formação de textos com mais de um
propósito comunicativo proporciona estruturas cada vez mais elaboradas e complexas, de forma que, em
certos casos, não seja possível uma classificação posterior em um gênero de discurso específico.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero híbrido; Gênero promocional; Sentido.
ABSTRACT: In this work, starting from theoretical considerations of the literature of genres of discourse,
using, among others, Bakhtin (2003 [1979]) and Bazerman (2005). In addressing the issue of hybrid genres,
taken as a basis Koch (2007 [2006]) and Marcuschi (2008) and also and mainly, Bhatia (1997). The objective
is to examine how to give the construction of the meaning of the text based on a more generic structure,
whereas the text is generally defined as a whole made significant satisfaction in a way that is communicative and
communicative purpose that directs the use a generic standard to the detriment of all others. We believe that
the use of gender in the formation of texts with more than one purpose provides communicative structures
ever more elaborate and complex, so that in some cases can not be a classification later in a specific genre of
discourse.
KEY WORDS: Genre hybrids; Genre promotional; Sense.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Os gêneros normalmente são definidos como formas tipificadas socialmente que normalizam
as produções textuais nas mais diferentes situações de atividades humanas. Logo, as estruturas
genéricas modalizam os diferentes propósitos comunicativos visados a partir de produções textuais,
algo que faz com que a comunicação se torne possível quando enquadrada num padrão genérico préestabelecido socialmente.
Neste artigo, trabalhamos com textos que não obedecem sistematicamente o que expomos
anteriormente, ou seja, são textos que apresentam um sentido, mas um sentido constituído com mais
de uma estrutura genérica: casos em que um texto pertencente a um gênero se apropria do modelo
de outro gênero e casos em que são misturados ou imbricados padrões genéricos na constituição do
texto, sem que seja possível uma classificação do texto em um único gênero, mesmo considerando a
função e o propósito comunicativo (ou ainda as funções e os propósitos comunicativos).
Desta forma, analisamos a construção de sentido em textos com mais de um padrão genérico.
Para isso, utilizamos considerações teóricas acerca de gêneros, como Bakhtin (2003 [1979]), Bazerman
(2005), Schneuwly & Dolz (2004) e, ainda, sobre a questão dos gêneros híbridos propriamente ditos,
nos baseamos em Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008) e principalmente Bhatia (1997). Casos
que contêm gêneros híbridos normalmente são entendidos como aqueles em que aparece mais de
um padrão de gênero ao longo da estrutura textual. O gênero híbrido, por sua vez, será aquele cuja
forma é incorporada a uma outra estrutura (na estrutura textual propriamente dita) para construção
do sentido textual pretendido numa dada situação comunicativa.
2. Fundamentação teórica
2.1. Gêneros de discurso
A literatura de gêneros é complexa, diversificada e numerosa. Por isso, quando se pretende
tratar de gêneros, é preciso enfrentar essa complexidade da literatura e fazer recortes e escolhas
necessários àquilo que se busca mostrar ou demonstrar. Seguindo esse posicionamento, partimos,
portanto, de Bakhtin (2003 [1979]) que muito nos tem ensinado e é, até certo ponto, o grande
responsável pelos caminhos que norteiam até hoje os estudos de gêneros.
Com Bakhtin, aprendemos a ver os gêneros como estruturas sócio-historicamente construídas
e representativas das necessidades comunicativas das sociedades. Segundo seu posicionamento, cada
esfera de atividade humana elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo que cada tipo
será próprio e representativo de uma necessidade comunicativa e específica de determinada esfera.
Ademais, cada tipo de enunciado é dotado de três partes que o constituem e o determinam enquanto
gênero de discurso: conteúdo (temático), estilo (da linguagem) e construção composicional. São
fatores que não possuem sentido se entendidos separadamente, pois na constituição do gênero estão
indissoluvelmente ligados.
O enunciado, como unidade real da comunicação discursiva, constitui a materialização
das estruturas genéricas, algo que faz com que o estudo de gêneros seja pautado em enunciados
que, embora concretos e únicos, como afirma Bakhtin, só se materializam a partir de uma estrutura
genérica, o que os faz interdependentes. A existência de um se faz mediante a do outro.
Bazerman (2005, pp. 22 e 23) - para quem linguagem é ação, ou seja, por meio dela podemos
agir e interagir no meio social, sendo que essa ação de linguagem se dá por meio de estruturas inteligíveis
interligadas umas às outras, os gêneros – entende textos como estruturas capazes de criar realidades,
ou fatos sociais que, assim, constituiriam “ações sociais significativas realizadas pela linguagem”.
Manifestam-se por meio dos gêneros que situados, tanto em relação a outros gêneros como a outros
textos, “ocorrem em circunstâncias relacionadas”. Bazerman considera que “Juntos, os vários tipos
de textos, se acomodam em conjuntos de gêneros dentro de sistemas de gêneros, os quais fazem
parte dos sistemas de atividades humanas” (p. 22) (grifos do autor). Desta forma, é por meio
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
dos textos que produzimos no dia a dia que agimos socialmente, e essas ações são organizadas e
tipificadas pelas estruturas genéricas que direcionam nossas produções textuais. Logo, dentro dos
sistemas de atividades humanas são os sistemas de gêneros que, divididos em conjuntos de gêneros
(cada conjunto específico do contexto ou da situação), organizam a vida em sociedade.
Considerando isso, o teórico afirma que
Compreender esses gêneros e seu funcionamento dentro dos sistemas e nas circunstâncias para as quais são
desenhados pode ajudar você, como escritor, a satisfazer as necessidades da situação, de forma que esses
gêneros sejam compreensíveis e correspondam às expectativas dos outros. Compreender os atos e os fatos
criados pelos textos pode ajudá-lo também a compreender quando textos, aparentemente bem produzidos,
não funcionam, quando não fazem aquilo que precisam fazer. Tal compreensão pode ajudar a diagnosticar
e redefinir sistemas de atividades comunicativas (...). Pode também ajudar a decidir quando é necessário
escrever de forma inovadora para realizar alguma coisa nova ou diferente (...). Se, por um lado, isso pode
levar a usos indevidos do texto, pode também oferecer os instrumentos para a reflexão sobre o papel da
criatividade social em fazer coisas novas acontecerem de novas maneiras (pp. 22 e 23).
Quanto a isso, é importante considerarmos que os gêneros são estruturas inteligíveis, como
já afirmou Bazerman, mas que estão a serviço dos indivíduos pertencentes a determinado grupo
social. Logo, são esses mesmos indivíduos que precisam das estruturas genéricas para interagirem
por meio da linguagem que agem sobre estas estruturas de forma ativa e criativa, ajustando-as às
diferentes situações de comunicação. Eles não têm liberdade de criar estruturas totalmente novas,
mas, em maior ou menor grau (de acordo com o gênero), podem agir sobre estas estruturas que não
são definitivamente fixas e imutáveis.
Bazerman direciona seu posicionamento para a pessoa do escritor, um indivíduo que, por
trabalhar especialmente com textos, tem mais experiência e, por isso, uma maior flexibilidade tanto
no que diz respeito ao entendimento dos textos, como na construção deles. Algo que possibilita a ele
uma maior liberdade, já que, por conhecer mais e melhor determinado gênero, tem mais condições
de inovar criativamente.
Mesmo existindo as estruturas genéricas que guiam a construção dos textos, a criatividade pode
agir no sentido de inovação, o que possibilita a introdução de “diferentes tópicos” e, principalmente,
“diferentes atividades, padrões interativos, atitudes e relações” (BAZERMAN, 2005, p. 23).
Com o pressuposto “de que é através dos textos que as práticas de linguagem materializamse nas atividades dos aprendizes”, Schnewly & Dolz (2004, p. 74) partem para explicar como se
articulam as práticas e a atividade do aprendiz (Neste trabalho, tratam especificamente dos gêneros
escolares). Sendo os gêneros fundamentais para as práticas de linguagem, os teóricos, seguindo a
tradição bakhtiniana, caracterizam gêneros como
instrumentos que fundam a possibilidade de comunicação. Tratam-se de formas relativamente estáveis
tomadas pelos enunciados em situações habituais, entidades culturais intermediárias que permitem
estabilizar os elementos formais e rituais das práticas de linguagem. Os locutores sempre reconhecem
um evento comunicativo, uma prática de linguagem, como instância de um gênero. Este funciona, então,
como um modelo comum, como uma representação integrativa que determina um horizonte de expectativas (...)
(p. 74).
Com base em Bakhtin (2003 [1979]), também definem gêneros a partir da observação de três
dimensões essenciais:
1) os conteúdos e os conhecimentos que se tornam dizíveis por meio dele, 2) os elementos das estruturas
comunicativas e semióticas partilhadas pelos textos e reconhecidas como pertencentes ao gênero, 3) as
configurações específicas de unidades de linguagem, traços, principalmente, da posição enunciativa do
enunciador e dos conjuntos particulares de sequências textuais e de tipos discursivos que formam sua
estrutura (p. 75).
Assim, essas dimensões, a nosso ver, correspondem, em outras palavras, ao que Bakhtin
considera como partes constituintes dos gêneros de discurso: tema, estrutura composicional e
estilo. Schnewly & Dolz acreditam que, por estas três dimensões serem determinantes dos gêneros,
945
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
estes atravessam a “heterogeneidade das práticas de linguagem e [fazem] emergir toda uma série de
regularidades no uso” (p.75). Os teóricos asseguram, desta forma, a estabilidade do gênero, embora
não excluam possibilidades importantes de evoluções.
Bakhtin (2003 [1979]), ao tratar de gêneros de discurso, faz uma distinção que, para nosso
trabalho, é muito importante: a diferenciação entre gêneros primários e secundários. Gêneros primários
correspondem a composições simples produzidas no cotidiano, sem a preocupação de uma elaboração
formal; são exemplos deste tipo de composição principalmente gêneros orais como a conversa familiar
ou ainda escritos como anotações, cartas e bilhetes. Quanto aos secundários, são representativos de
uma elaboração formal mais aprimorada. Na sua constituição englobam e reelaboram outros gêneros
(primários) que, quando passam a ser constituintes de um outro enunciado (mais complexo), perdem
o vínculo com a realidade imediata e, naquela situação, não funcionam como um gênero do discurso,
mas como partes constituintes de um outro enunciado.
Essa diferenciação serve como ponto de chegada ao nosso intento: a questão dos gêneros
híbridos. Considerando o que afirma o teórico sobre gêneros primários e secundários, poderíamos
nos indagar se o fenômeno de hibridização só poderia acontecer, realmente, num gênero secundário.
Para prosseguirmos, cabe a nós definirmos o que vem a ser, de fato, um gênero híbrido.
2.2. Intergenericidade ou gêneros híbridos
Koch (2007 [2006], p. 114) trata do fenômeno de hibridização ou intertextualidade intergêneros
e o define como “um gênero (...) [que assume] a forma de um outro gênero tendo em vista o
propósito de comunicação”. Assim, há uma imbricação entre a forma estrutural de um gênero A,
porém, com a funcionalidade, o propósito comunicativo de um gênero B; sendo que, dentro dessa
mesma equação que propomos, é o gênero B quem passa a assumir o gênero A, ou seja, embora
noutra estrutura, estrutura de A, permanece como gênero B, o propósito comunicativo é mantido,
bem como a função.
Marcuschi (2008) usa a expressão intertextualidade tipológica de Fix (1997, p. 97) que, segundo
ele, designa “esse aspecto da hibridização ou mescla de gêneros em que um gênero assume a função
de outro” (p. 165). O teórico propõe chamar essa denominação pessoalmente de intergenericidade, a
qual, sob o seu ponto de vista, é a que mais traduz o fenômeno, já que há, sem dúvida, uma relação
entre um gênero e outro, e essa é a condição para a ocorrência do fenômeno.
Bhatia (1997) também trata desta questão e, como explicitam Koch (2007 [2006]) e Marcuschi
(2008), acredita que nas atividades promocionais e publicitárias há um maior índice de acontecimentos
deste tipo. Logo, considera que é pelo fato de as demandas por práticas discursivas se tornarem cada
vez mais complexas que profissionais experientes utilizam tanto estratégias já estabelecidas, como
e principalmente outras de caráter inovador, de forma a atingir cada vez mais uma variedade de
objetivos complexos. É importante observar que essas formas e estratégias inovadoras tomam como
base ou ponto de partida o já estabelecido dentro da comunidade profissional.
Observando deste ponto, a criatividade e inteligência humanas aparecem como um fator de
considerável relevância na constituição de enunciados com imbricação ou mistura de gêneros, o que
faz com que Bhatia considere a existência de gêneros com mais de um valor genérico, sendo que, em
vez de servir a um único propósito comunicativo, servem a vários, constituindo muito freqüentemente
“um misto de propósitos complementares” (p. 10).
O teórico apresenta, então, a questão dos gêneros promocionais, em que são feitas
sempre promoções de caráter positivo acerca de produtos, marcas etc. Algo que faz com que o
produtor seja inusitado no intuito de apresentar tal produto ou marca ao consumidor possível de
uma forma cada vez mais criativa, como uma maneira de chegar ao que deseja: atrair o cliente. É
por isso que afirma que “Os gêneros, nesse sentido, possuem uma tendência natural à imbricação
e à mistura, pelo fato de que a maioria dos gêneros apresenta mais de um valor genérico” (BHATIA, 1997,
p. 10) (grifos nossos).
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
É isso que reconhece por gêneros híbridos, algo que, na verdade, é entendido de
uma forma mais complexa e, ainda, de forma diferenciada daquilo que explicitam Koch (2007
[2006]) e Marcuschi (2008) acerca de tal fenômeno. Estes acreditam que há a apropriação, por
parte de um gênero, de uma outra estrutura, para fins específicos na construção do sentido de
um texto que, no entanto, permanecerá com o mesmo propósito e a mesma função, ou seja
continua sendo o mesmo gênero de discurso de antes. Já Bhatia (1997) defende que a mistura ou
imbricação de estruturas genéricas constituem um todo textual, cuja classificação em um gênero
de discurso específico se torna complicada pelo fato de que possui propósitos comunicativos que
se complementam.
Bhatia ainda entende distintamente casos de mistura e de imbricação de gêneros; sendo que a
mistura consiste na utilização de formas de gêneros diferentes na constituição de um outro – seria um
caso de gênero misto. Já haveria imbricação de gêneros quando “encontramos dois ou mais padrões
genéricos imbricados um dentro do outro” (p. 11). A diferença estaria no fato de que, no primeiro,
há mistura de formas genéricas típicas e características, não necessariamente de gêneros inteiros,
completos, mas de partes representativas e constitutivas de gêneros específicos; já no segundo caso,
há a imbricação de estruturas genéricas inteiras na constituição de um todo.
3. Uma análise de gêneros híbridos
Considerando o que vimos expondo até então, em que nos apoiamos em considerações
de outros teóricos para constituição das nossas, antes de partirmos para a análise dos dados que
dispomos, cabe-nos ressaltar que nossas considerações se constituem a partir daquilo que observamos
no material que compõe o nosso corpus; já que procuramos observar como o sentido do texto é
construído, embora possua estrutura e funcionalidade pautadas em mais de um padrão genérico.
Procuramos, com isso, refletir acerca do que consideram teóricos como Bakhtin (2003
[1979]) e outros, acerca do fato de que todo texto só se constitui quando emoldurado na estrutura
de um gênero, pois cada gênero de discurso manifesta uma intenção comunicativa diferente,
daí a diferença entre um gênero e todos os outros. Já nos gêneros promocionais, utilizando a
denominação de Bhatia (1997), em muitos casos não é possível a identificação do gênero a partir
do texto pelo fato de existirem diferentes funções que ele desempenha, apresentando dois ou mais
padrões genéricos.
Diante desse quadro, não podemos identificar o texto enquadrando-o apenas no que
Bakhtin considera como gêneros secundários, já que, ainda assim, continuaria o dilema: que
estrutura genérica sobrepõe-se às demais para, assim, identificarmos o gênero? E quando todas
parecem ter uma relevância equivalente, considerando os sentidos identificados no texto? É um
caso complexo que carece de uma maior reflexão para melhores entendimentos e esclarecimentos
posteriores.
Procuremos, a partir de agora, através de textos que divulgam produtos, marcas etc.,
fazer uma análise de casos em que mais de um padrão genérico aparece estruturando os textos.
Buscamos, com isso, dentre outros aspectos, observar como o uso de padrões genéricos interfere
na constituição de sentido do texto e o que permanece da função exercida pelo gênero (que naquele
contexto tem uma função híbrida) de acordo com o propósito comunicativo que desempenha na
comunidade discursiva em que circula. É com base nisso que passamos a dialogar com a definição
de gênero que o identifica como uma forma ou estrutura textual que corresponde a um propósito
comunicativo específico.
Vejamos já com base em (01), abaixo, que o uso de padrões genéricos, sobretudo em gêneros
promocionais, não se dá de forma aleatória: faz parte da construção de um sentido pretendido
previamente, que passa a ser construído já no momento em que se opta pelo uso de padrões genéricos
determinados, tudo em função da divulgação específica de algo.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Texto (01) – Revista Veja 06 de dezembro 2006.
Já numa primeira e superficial análise de (01), percebemos que ele exemplifica bem a definição
de gêneros promocionais de Bhatia (1997), em que o texto é construído em função da divulgação
de determinado produto, marca etc. Temos, nesse caso, a promoção do navegador portátil Easyroad da
Magneti Marelli, onde, em todo o texto, somos apresentados aos padrões de qualidade e sofisticação
do produto; há uma descrição minuciosa destes aspectos.
Mesmo pelo que é apresentado ao longo do texto, pela estrutura composicional, estilo e
temática, com base em Bakhtin (2003 [1979]), é difícil de avaliar o seu pertencimento a um gênero
de discurso específico: trata-se de um esclarecimento através de um comunicado ou de apenas uma
estratégia de marketing na construção de uma propaganda? Inicialmente, temos uma apresentação
clara e objetiva que identificamos pertencente ao gênero comunicado, não somente pela estrutura
textual, mas principalmente pelo estilo da linguagem e pela temática apresentada no texto: a marca
Magneti Marelli esclarece ao leitor que a reportagem publicada pela revista na edição anterior estava até
certo ponto errada e esclarece o porquê.
Porém, considerando o conhecimento de mundo e enciclopédico disponível, entendemos
que há aí a divulgação de um produto, embora num primeiro momento, haja a apropriação da estrutura
de um outro gênero de discurso, um comunicado, e a venda de um produto, uma propaganda,
apresentada na segunda parte do texto.
O caso de (01) constituiria, evidentemente, o que Marcuschi (2008) chama de intergenericidade
e Koch (2007 [2006]) de hibridização ou intertextualidade intergêneros se considerássemos que
houve deveras uma apropriação da estrutura de um gênero em função de outro, cuja função do
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
primeiro se sobressai, no caso da propaganda. Mas Bhatia (1997), quando trata desta questão, faz
uma distinção mais complexa, em relação ao que chama de gêneros promocionais. Considerando
o que afirma este teórico, estamos diante de um caso de mistura de gêneros ou de imbricação de
gêneros? Ainda assim, a que gênero textual pertence tal texto? É suficiente o classificarmos apenas
como mais um gênero promocional?
Se considerarmos o que afirma Bhatia acerca de imbricação de gêneros, que consiste na
junção de dois ou mais padrões genéricos num mesmo gênero, apontaremos, no texto, o critério de
que há a estrutura de um comunicado, esclarecendo uma avaliação incompleta divulgada numa edição
anterior da revista-suporte da propaganda. Em seguida há uma espécie de amostra das qualidades e
benefícios que o produto em questão é capaz de oferecer, se enquadra mais num anúncio que tem em
vista promover o produto em questão.
Porém, devemos considerar que há uma estratégia profissional de promoção do produto, de
direcionar o leitor inicialmente à crença de um propósito comunicativo do texto, através do uso de um
comunicado que visaria esclarecer algo como ponto de partida. E, já no comunicado, temos a venda
promocional do produto em questão, o que nos permite afirmar a existência, como já dissemos, de
um gênero promocional, que possui, não uma, mas várias funções. Seu enquadramento no gênero
propaganda não é suficiente, pelo fato de que é iniciado como comunicado, e, até certo ponto, isso
é fato. A propaganda vem como um acessório do texto, já neste primeiro momento, somente no
segundo é, de fato, apresentada.
Vejamos o caso de (02):
Texto (02) – Revista Veja 28 de maio 2008.
Em (02), somos levados a reconhecê-lo como um gênero promocional, já que, também,
é difícil e complicado o seu enquadramento num gênero de discurso específico, pois demonstra
características de informativo ou comunicado (textos que normalmente são entendidos como aqueles
que visam apresentar uma informação ou fazer um esclarecimento sobre algo) e, ao mesmo tempo,
sabemos ainda se tratar de uma propaganda da marca Ypê. Há o uso de estruturas próprias de outros
gêneros, não somente da estrutura, mas, como vimos defendendo, do propósito comunicativo
específico, mesmo com a função principal de propagar, de promover uma marca de produtos de
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
limpeza. Mais uma vez, o leitor, ao se deparar com um texto deste tipo, pode entendê-lo como
propaganda e assimilá-lo ainda pelo propósito comunicativo de informativo que, ao fazer isso,
também, está a serviço da promoção da marca.
Há mais de uma função no texto, principalmente, informar algo e promover a divulgação
de uma marca. A identificação em um único gênero se torna, nessas condições, difícil. Quanto a isso
Bhatia (1997) esclarece que
Seja qual for a explicação, os gêneros muito dificilmente servem a propósitos únicos; eles apresentam
um conjunto de propósitos, mas esse conjunto muito freqüentemente torna-se um misto de propósitos
complementares. Não será errado alegar que esses mesmos propósitos apresentam “valores genéricos”, caso
se possa identificá-lo separadamente (p. 10).
Diferentemente, em (03), embora o texto, seja apresentado sob a forma de um outro gênero
discursivo, isso é feito já em função da propaganda:
Texto (03) – Revista Veja 28 de maio 2008.
Somos apresentados à estrutura típica de um projeto imobiliário, geralmente feito quando
é pretendida a construção de um imóvel. Pelo nosso conhecimento de mundo e conhecimento
partilhado, sabemos que quando há a pretensão de compra de um imóvel que ainda vai ser construído,
somos apresentados inicialmente a um projeto que mostra detalhadamente o que se almeja com a
construção do imóvel.
O profissional, nesse caso, aquele que elabora o texto da propaganda, tem em vista essa regra,
bem como os pensamentos de seu cliente ao ser apresentado ao projeto e imaginar-se, a partir disso,
em momentos agradáveis em família. Aproveita um destes momentos possíveis de serem imaginados
por determinado cliente e o elabora na estrutura de um projeto imobiliário. Assim, divulga a imagem
de uma construtora imobiliária.
Deste modo, temos toda a estrutura de projeto imobiliário, porém, com uma outra função:
a de divulgação promocional da imagem de uma construtora imobiliária. Logo, ao nos depararmos
com um texto como esse, não o entendemos como um projeto, mas como uma propaganda, porque
somos capazes de assimilar sua funcionalidade pelo contexto comunicativo em que estamos inseridos.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Entendemos a sua lógica com o uso da estrutura de um projeto imobiliário, já que sabemos a
funcionalidade deste gênero e por isso sabemos o seu propósito comunicativo. Este caso exemplifica
bem o que postulam Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008) sobre o fenômeno de intertextualidade
intergêneros ou hibridização e intergenericidade, conforme denominam, respectivamente.
Tendo em vista esse critério, entendemos o sentido da propaganda, mas a partir do que nos
comunica o gênero cuja estrutura ela se apropria e está apresentada. É importante considerarmos que
o propósito comunicativo do gênero projeto imobiliário é tomado a serviço do gênero propaganda.
Na propaganda, claro, vai ter uma outra função, mas enquanto projeto imobiliário constrói a lógica da
propaganda, a partir de seu propósito comunicativo que, neste caso, está a serviço da propaganda.
Texto (04) – Revista Veja 16 de fevereiro 2005.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Em (04) temos um texto divulgando o 15º Festival Mundial de Publicidade de Gramado: há
informações acerca do evento e os critérios delimitadores da participação de possíveis candidatos.
Assim, a estrutura do texto está dividida em partes, onde destacamos principalmente o título, o subtítulo,
a apresentação do evento e de suas informações básicas e uma outra, em que são apresentados os
critérios burocráticos direcionados a candidatos que queiram participar. Estes últimos, por sua vez,
estão apresentadas na estrutura de um edital, em que são dispostos, em cada item específico, os
critérios delimitadores do festival.
Um caso de mistura de gêneros: mais de um padrão genérico em prol da construção de um
sentido textual, mas com mais de uma função, mais de um propósito comunicativo. Neste caso, não
faz parte da lógica constitutiva do texto trazer um edital com as normas do festival, mas um texto
que promova o evento e já o apresente e mostre as normas para quem se interessa em participar. A
estratégia toma como lógica a divulgação do evento e a convocação de participantes possíveis, já os
informando acerca das normas, para que isso aconteça.
A estrutura textual apresentada em (04) caracteriza, com base em Bakhtin (2003 [1979]), um
gênero secundário, já que se trata de uma elaboração mais aprimorada que reelabora outros gêneros
na constituição de sua estrutura. Mas a que gênero mesmo faz parte essa estrutura? As estruturas
genéricas que conseguimos identificar no mesmo texto fazem parte, de acordo com o que postula
Bazerman (2005), do mesmo conjunto de gêneros, que mantêm relações e fazem parte do mesmo
ambiente ou esfera de atividade humana. O caráter de inovação reflete a criatividade humana de lidar
com o pré-construído na constituição de coisas novas; novos padrões que são assimilados e aceitos
justamente por se constituírem com base no já construído. Bazerman justifica isso como resultante do
papel da criatividade social, que seria “fazer coisas acontecerem de novas maneiras” (p. 23). Já que não
devemos forçar uma nomenclatura, muito menos inventar uma, utilizamos aquela usada por Bhatia
(1997), de gêneros promocionais.
Texto (05) – Fonte: Revista Veja 16 de fevereiro de 2005.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Anúncios de venda afixados em visores traseiros de carros são muito comuns no cotidiano
das sociedades modernas e capitalistas. Mas é incomum quando o anúncio diz justamente o
contrário. O sentimento de posse e a vontade de permanecer com o veículo, demonstrados a partir
do anúncio, acionam várias leituras da propaganda demonstradas pelo que conhecemos já sobre
isso. Quando se afixa um anúncio de venda é por que há a vontade de se desfazer do veículo, e
isso se dá por algum motivo, seja por que a máquina esteja velha, ou com defeito, ou por que se
pretende comprar uma nova etc.
Anunciar o contrário é dizer exatamente que não há a menor possibilidade de querer se
desfazer do automóvel. Logo, isso deve ter um motivo, pois o proprietário demonstra estar bastante
satisfeito. Já que a função da propaganda é promover determinado produto, quando usa a informação
inversa de um anúncio de venda típico e comum numa comunidade discursiva, tem-se logicamente o
efeito inverso. O propósito comunicativo do gênero anúncio de venda é assimilado inversamente, a
partir do que se conhece normalmente que ele divulga. Ainda assim, tal propósito é assimilado para
construção da lógica pretendida na construção da propaganda.
A mistura acontece com gêneros que têm a mesma funcionalidade numa comunidade
discursiva: tratam-se de dois gêneros que têm por função promover a venda de um certo produto,
embora um seja bem mais simples que o outro. Porém, a estrutura do anúncio de venda simples
é acionada para dizer o contrário daquilo que costuma comunicar: o que é comunicado é a
não venda, enfatizada por uma frase de efeito posterior (NÃO VENDO – NEM ADIANTA
INSISTIR). A função do anúncio de venda simples no contexto desta propaganda só é entendido
em vista de sabermos o seu propósito comunicativo em outros contextos, em que costuma
aparecer, num uso convencional.
(05) ilustra um caso de hibridização ou intergenericidade (conforme Koch (2007 [2006]) e
Marcuschi (2008), respectivamente): identificamos o gênero propaganda e, dentro deste, encontramos
a estrutura de outro gênero que é usada na construção do sentido do texto. O propósito comunicativo,
bem como a função do gênero propaganda, permanecem, embora, ao nos depararmos com o texto,
assimilemos o outro gênero usado na sua construção. A única função do texto é divulgar, promover
o modelo de carro apresentado pela propaganda.
Contudo, é importante que consideremos o fato de que Bhatia (1997) entende a questão
de mistura ou imbricação de gêneros híbridos, diferentemente de Koch (2007 [2006]) e Marcuschi
(2008). Estes entendem o fenômeno como o fato de um gênero apropriar-se da estrutura de
outro para o cumprimento de determinada função comunicativa. Bhatia vê essa questão de uma
forma mais complexa. Quando faz suas considerações acerca disso, trata da questão dos gêneros
promocionais e ressalta, sobretudo, a dificuldade de classificação de um gênero promocional (que
são muitos e, ao mesmo tempo, estão interligados em cadeias de subgêneros que surgem a partir
de uma base comum).
A seu ver, há muitos exemplos de textos que se enquadram nestes gêneros que
apresentam várias funções comunicativas, com propósitos comunicativos que se completam.
Assim, geralmente são misturados ou imbricados diferentes padrões genéricos, algo que, numa
análise, dificulta a classificação do texto, quanto ao seu pertencimento a este ou àquele gênero
cujo padrão genérico aparece. Segundo Bhatia, são casos em que as funções comunicativas não
se sobrepõem, mas se completam.
Entendemos esse posicionamento e, em nossas análises, identificamos textos que
exemplificam o que o autor defende: gêneros que apresentam mais de um padrão genérico, com
mais de uma função comunicativa, algo que é resultante da mistura de padrões genéricos. Com
isso, diante do texto, o interlocutor é levado a apreender mais de uma função a que se destina
determinado texto.
Em outros casos encontramos textos em que a função é, evidentemente, propagandística,
porém, há o uso de um padrão genérico que aparece como estruturador do texto, mas permanece a
953
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
função do texto inicial. O outro padrão aparece como suporte do sentido que é estruturado a partir
desta apropriação, que sempre tem um propósito específico. O propósito comunicativo do gênero
apropriado serve de base ao entendimento do sentido a ser veiculado pelo texto ‘apropriador’.
Ou seja, na diversidade de textos que organizam o dia a dia da vida moderna, encontramos
casos que ilustram o que defendem Koch (2007 [2006]) e Marcuschi (2008), caso que ilustram o
que defende Bhatia (1997) e, certamente, deve haver casos que ainda não podem ser explicados por
nenhum posicionamento. Quanto a isso, lembremos o que Bakhtin (2003 [1979]) afirma quanto à
relativa estabilidade do gênero (a nosso ver, mais relativa que estável). Bazerman (2005), Schnewly &
Dolz (2004), Bhatia (1997), bem como outros teóricos da literatura de gêneros, sempre ressaltam a
questão da criatividade humana, que sempre atua no sentido de inovação, de modificação com base
sempre no já construído.
4. Considerações finais
Na definição de gêneros, não podemos afirmá-los como formas que mediam a constituição
de um texto que se destina a comunicar algo, sem ressaltar o fato de que, como vimos, existem
textos que são construídos justamente com o intuito de comunicar muitas coisas, textos com várias
funções, vários propósitos. Ainda assim, conseguimos identificar ali estruturas genéricas mediando
essa construção que, mesmo inovando, parte daquilo que já conhecemos.
Sabemos que, na propaganda ou nos textos que visam à promoção ou divulgação de algo, a
criatividade é um fator fundamental para a própria repercussão que o texto deverá ter na sociedade.
Com isso, sentidos cada vez mais diferentes são construídos, baseados em lógicas cada vez mais
interessantes e originais.
Desta forma, consideremos finalmente que na constituição do sentido textual pretendido
um único gênero pode não ser suficiente, por se ter mais de um propósito comunicativo e querer
dá ao texto mais de uma função. Daí o uso de gêneros, o que dá origem a textos cada vez mais bem
elaborados e mais complexos, sem que seja possível sua classificação posterior em um gênero de
discurso específico.
Consideremos, mais uma vez, o que Bhatia (1997) observa acerca dos gêneros promocionais,
que estes visam um número cada vez maior e diversificado de interlocutores, num contexto em que
os textos são produzidos de forma cada vez mais criativa. Algo que faz com que sejam desenvolvidas
muitas e diferentes estratégias de composição, que partem com base no já construído e aceito pela
sociedade, mas de forma diversificada e atrativa, em prol de objetivos que se misturam em vista dos
diferentes propósitos e, consequentemente, dos diferentes gêneros.
Referências
BAKHTIN, M. Os Gêneros de Discurso IN: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003
[1979], pp. 261-306.
BHATIA, V. K. Genre analisis today (Trad. Benedito Gomes Bezerra). Revue Belge de Philologie et d’Histoire.
Bruxelles, nº 75, pp. 629-652.
BAZERMAN, C. Ato de Fala, Gêneros Textuais e Sistemas de Atividades: como os textos organizam
atividades e pessoas IN: Gêneros Textuais, Tipificação e Interação (Orgs.: DIONISIO, A. P.; HOFFNAGEL, J. C.)
São Paulo: Cortez, 2005, pp. 19-61.
SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J. Os Gêneros Escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino IN:
Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004, pp. 71-91.
KOCH, I. V. K. Gêneros Textuais IN: Ler e Compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2007
[2006], pp. 101-122.
954
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
MARCUSCHI, L. A. Produção Textual, Análise de Gêneros e Compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
VEJA, Revista. Editora Abril. Fev. de 2005; Dez. de 2006 e Mai. de 2008 (www.veja.com.br)
955
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JORNAL GAZETA OFFICIAL E A (IN)FORMAÇÃO
DO LITERÁRIO NA BELÉM DO SÉCULO XIX
Maria Lucilena Gonzaga COSTA
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: A chegada ao Brasil da Família Real portuguesa ocasionou melhorias significativas à colônia,
dentre as quais merece destaque a instauração da Imprensa, cuja colaboração foi importante para a liberdade
de expressão e a independência dos brasileiros. Com a literatura na fase romântica surgiu, no Brasil, o romancefolhetim. A princípio, os folhetins eram traduzidos diretamente do francês, posteriormente, os escritores locais
sentiram-se motivados a escreverem e publicarem suas obras em capítulos de jornais. Na província do Pará
não foi diferente. Vários jornais paraenses auxiliaram na expansão da leitura e divulgação do conteúdo literário,
entre eles há que se destacar a atuação da folha Gazeta Official, publicada entre 1858 a 1866. Nesse sentido, o
objetivo maior deste trabalho é fazer uma compilação de textos relacionados à literatura e ao romance-folhetim
encontrados no jornal Gazeta Official.
PALAVRAS-CHAVE: Gazeta Official; literário; romance-folhetim; noticioso.
RESUMÈE : L’arrivée de la famille royale au Brésil, a conduit à des améliorations significatives pour la
colonie, parmi lesquelles, il est intéressant de noter la création de la presse, dont la coopération est important
pour la liberté d’expression et l’indépendance des Brésiliens. Avec la littérature romantique est venu au Brésil
le roman-feuilleton. En principe, les feuilletons ont été traduits directement du français. Plus tard, les écrivains
se sont sentis motivés pour écrire et publier leurs œuvres en chapitres, dans les sections des journaux. Dans
la province du Para celà n’était pas différent. Plusieurs journaux paraenses ont contribué à l’expansion de la
lecture et la diffusion de contenu littéraire, y compris la Gazeta Official, publiée entre 1858 à 1866. En ce sens,
l’objectif de ce travail est d’établir une compilation des textes relatifs à la littérature et le roman-feuilleton dans
le journal Gazeta Official.
MOTS-CLÉS: Gazeta Official ; litteraire ; roman-feuilleton ; nouvelles.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. O Literário da época
No século XIX, a visão que se tinha acerca da palavra Literatura era bem distinta da que
se estabelece em nossos dias. Segundo Márcia Abreu (2003) a “autonomização” do termo Literatura
se daria somente a partir de 1878, ano em que Antonio de Moraes Silva atribui em seu dicionário
a concepção de literatura mais próxima da atual, já que anteriormente a essa data a Literatura era
concebida como sinônimo de erudição e conhecimento.
Assim, quando a Literatura foi concebida como “o conjunto das produções literárias d’uma
nação, d’um país, d’uma época” 1 foi possível restringir sua significação para a área das Belas Letras.
Nesse sentido, é possível perceber que a Gazeta Official destinava uma seção intitulada
Litteratura2 para textos relacionados a comentários de livros, estudo sobre a poesia brasileira, poesia
popular e seu caráter no Brasil, bem como textos políticos ou históricos. Ora, o literário ainda não
estava relacionado à concepção moderna, conforme afirma Márcia Abreu:
A definição moderna de literatura se fez no momento em que entraram em cena novos leitores, novos
gêneros, novos escritores e novas formas de ler. Escritores e leitores eruditos interessavam-se fortemente
em diferenciar-se de escritores e leitores comuns, a fim de reassegurar seu prestígio intelectual, abalado pela
disseminação da leitura. Isso os levou a eleger alguns autores, alguns gêneros e algumas maneiras de ler
como os melhores. Convencionaram chamar isso de literatura.3
Logo, conclui-se que até meados do século XIX não se podia considerar o termo literário ou
literatura segundo a concepção atual, ou seja, na maioria dos casos a seção Litteratura de alguns jornais
não tinha relação com o que poderíamos encontrar nos jornais de hoje.
Nesse sentido, é necessário o estudo de algumas seções do jornal Gazeta Official, cujo
proprietário era, também, dono da tipografia e da livraria Commercial, responsável por boa parte dos
livros editados e vendidos em Belém.
As informações coletadas demonstram que a seção Litteratura nem sempre correspondia às
expectativas de encontrar contos, poemas, crônicas, narrativas folhetinescas etc. Essas, na maioria das
vezes, eram localizadas nas colunas variedade, miscelânea, a pedido, crônica da semana e folhetim. Isso porque
a terminologia da palavra literatura não era a mesma da que temos hoje.
Segundo Sodré, além de o folhetim ser produto da Escola Romântica, era ele quem
representava a parte mais atrativa dos jornais:
O grande público iria sendo conquistado para a literatura principalmente pelo folhetim, que se conjugou
com a imprensa e foi produto específico do Romantismo europeu, aqui imitado com sucesso amplo, nas
condições do tempo. O folhetim era, via de regra, o melhor atrativo do jornal, o prato mais suculento que
podia oferecer, e por isso o mais procurado. Ler o folhetim chegou a ser um hábito familiar, nos serões das
províncias e mesmo da Corte, reunidos todos os da casa, permitida a presença das mulheres. A leitura em
voz alta atingia os analfabetos, que eram a maioria.4
Na investigação da seção intitulada Literatura do Jornal Gazeta Official constata-se, como já
foi mencionado acima, que há textos que, embora tenham sido publicados na referida seção, estavam
ligados à história, política, moral, religião. Contudo, há que se considerar o valor da crítica não pelo
critério de hoje, mas como prática de cultura escrita historicamente constituída no seu tempo. É
possível localizar críticas literárias que, mesmo sendo de encômios, já se relacionavam com a definição
de literatura que se tem hoje. Como se observa no fragmento:
Há escritores literários que nenhum facto político distancia.
Um pensador, um philosopho, um poeta, M. Michelet acaba de escrever um desses livros, que de mão em
Cf. ABREU, Márcia. Letras, Belas-letras, Boas letras. In: BOLOGNINI, Carmen Zink. História da Literatura: o discurso
fundador. Campinas-SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil(ALB): São Paulo: Fapesp, 2003.p. 28.
2
Além da coluna intulada “Litteratura”, o Jornal Gazeta Official apresentava em seu corpo outras como: “Variedade”,
“Miscelânea” e “Folhetim”, para publicações literárias.
3
ABREU, 2003, loc. cit.
4
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. p. 242-243.
1
958
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
mão, circulam o mundo, uma dessas obras de elevação e de delicadeza de sentimentos, que ninguém lê sem
emoção de recordação ou da esperança. Esta nova obra tem por título: “O amor”; este título queria ser a
emancipação moral pelo amor. Como diz o grande historiador nas primeiras linhas, a questão do Amor jaz
immersa e obscura, sob as profundezas da vida humana. Ela sustenta-lhe as próprias bases e os primeiros
fundamentos. A família se apóia sobre o amor, a sociedade sobre a família; o enunciado desta grande
verdade se torna uma grande lição (...).5
Como se percebe, o fragmento apresentado na seção Literatura parece ser mais uma crítica
elogiosa ao autor e à obra. Entretanto, o texto acima ainda não indicava uma acepção mais restrita
ao termo Literatura, eis o motivo pelo qual, muitas vezes, nessas sessões, encontravam-se apenas tais
escritos.
Embora o termo Literatura não tivesse, ainda, ganhado um sentido restrito, era constantemente
empregado na seção do Jornal Gazeta Official, o que nos leva a crer que se começava especular acerca
do conceito inerente à palavra literatura/literário.
Coincidentemente, é também a partir desse período que a terminologia “crônica” passa
a ser empregada na Gazeta Official para ilustrar fatos curiosos ou corriqueiros que aconteceram
ao decorrer da semana, pequenas anedotas contadas ao gosto do público ou do editor, as quais
ganharam nuances pitorescas. Como se depreende no fragmento extraído da Crônica da Semana
do Jornal Gazeta Official em que se percebe uma narrativa aparentemente banal em que o redator
entretinha seus amados leitores.
Amado leitor, venho hoje annunciar-vos um accontecimento deplorável, ai de mim! máo fado
persegue-me; meo coração vive ainda succumbido depois desta desgraça fatalissima; as forças mo
faltão; mesmo não scei: como referir-vos sem que as lagrimas pulem dos olhos. Quebrou-se minha
luneta! O malvado gato que Fifina deo-me, foi quem fez- me esta peça; já com esta he a segunda, olhe,
eu vou referi-las ambas.
Um dia que este seo creado tinha sahido as três horas da madrugada, o que succede raríssimas vezes,
porque a estas horas he que mais gosto do quente; o gato estava ainda desmamando-se em casa de Fifina,
quando fui approximando-me a uma das janellas d’essa casa, vi a porta da rua aberta e a janela cerrada, e
o bregeiro do gatinho por detraz da porta da janella, mal que sentia que eu ia passando faz assim: Miao,
miao, miao.
Ai de mim, como fiquei!
Naquelle instante se tivesse de ser sangrado por um barbeiro, minhas artérias não lançavam nem uma
gotinha de sangue. Tive muito medo.. muito medo! Pensei que erão cousas de outro mundo, alguns
phantasmas...sim, algum phantasma.(...)6
Embora o termo Crônica da Semana desperte curiosidade, são as palavras Variedade e Folhetim,
que melhor traduzem as páginas literárias da época, pois nessas sessões encontram-se narrativas
literárias, romance, biografia, poemas que eram publicados quase diariamente nos principais jornais
do país e apresentados ao público paraense por meio do Gazeta.
O jornal Gazeta Official publicava, periodicamente, não só textos estrangeiros, principalmente
folhetins, como também publicações de jornais de outros locais, como Pernambuco, Bahia,
Rio de Janeiro, Lisboa. Mas o que o torna, de fato, relevante é a vasta fonte de literatura7 nele
encontrada.
Na pesquisa realizada comprova-se que é a partir de 1859 que o romance-folhetim ganha
destaque nas primeiras páginas da Gazeta Official, quando se observa que no referido ano o periódico
chegou a publicar até três folhetins simultaneamente. Na falta das páginas folhetinescas, os editores
colocavam o título Folhetim na primeira página e substituíam a narrativa por alguma Crônica da Semana,
talvez para atiçar ainda mais a curiosidade dos leitores.
Jornal Gazeta Official, n° 21. 27/01/1859.
Jornal Gazeta Official. n° 68, 29/03/1859. p.2.
7
Acepção do uso de literatura no sentido contemporâneo, ou melhor, no sentido moderno, haja vista nessas colunas
também se encontrarem textos que não tinham relação com o literário atual.
5
6
959
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
2. O literário na Gazeta
Após a análise das informações literárias contidas na Gazeta, constatou-se que o leitor
paraense, do século XIX, servia-se dos jornais, não só como meio de informação, mas também como
difusor de cultura, comportamento e entretenimento, este último favoreceu a afirmação do romance
entre nós, como explica Marisa Lajolo:
Vários fatores contribuíram para a afirmação do romance como gênero de grande força. Um deles foi sua
aliança com o jornal que o publicava em capítulos, sob a forma de folhetins. No final do século XVIII
e começo do XIX, para um jornal conseguir anúncios, ele precisava – como precisa até hoje – dispor de
leitores. A aritmética é simples, numa conta primária de adição e subtração: mais leitores = mais dinheiro.
Menos dinheiro = menos anunciantes; menos anunciantes = menos dinheiro.8
Entre os impressos do século XIX, o jornal foi o meio mais acessível para a expansão e
divulgação da produção literária, por isso esteve presente em muitos lares paraenses.
Pela Gazeta Official é possível perceber o quanto o paraense estava ligado às novidades
advindas da Europa e como essa influência estrangeira colaborou para a consolidação do romance
brasileiro, como assinala Antonio Candido:
Além dos fatores individuais, que se resumem geralmente com o nome de vocação, e da influência
estrangeira, sempre decisiva, houve certamente por parte do público apreciável solicitação, ou pelo menos
receptividade, a influir no aparecimento do romance entre nós. Provam-no a quantidade de traduções e
abundante publicação de folhetins seriados nos jornais, não apenas do Rio, mas de todo o país. 9
Os textos literários encontrados no jornal Gazeta Official corroboram a existência, no Pará,
de grande número de publicações, cuja contribuição para expansão e democratização da leitura foi
significativa.
Segundo Márcia Abreu, até meados do século XIX, a imprensa dedicava relativamente pouco
espaço a comentários sobre livros, limitando-se a pequenas notas sobre lançamentos que se perdiam
em meio a anúncios de saraus, peças teatrais e recepções oficiais10. No entanto, no jornal pesquisado
encontram-se inúmeras informações acerca do literário, o que justifica a escolha não só pela Gazeta
Official, mas também pelo tema deste trabalho.
Na seção Variedade foram publicados trinta e dois textos, porém, nem todos podem ser
ligados à categoria literária atual, haja vista a concepção que se tinha do vocábulo Literatura, naquela
época. Foram compiladas três Chronicas da Semana, as quais justificavam a ausência dos romancesfolhetins na coluna. Três textos publicados na seção A Pedido, dos quais dois provavelmente
retirados do Diabo Coxo, jornal de São Paulo. Apenas um texto foi classificado na seção Miscellânea.
Por fim, foram encontradas quatro Chronicas da Semana dentro da coluna Folhetim, podendo ser uma
forma de ludibriar o público pela falta das narrativas folhetinescas, ou porque tal espaço também
abrigava as crônicas.
Assim, quantitativamente, na seção “Litteratura” foram encontrados oito textos relacionados
ao tema, sendo que o primeiro foi classificado, nesta análise, como uma crítica literária, haja vista o
autor discorrer sobre um livro cuja temática do amor é reverenciada ao longo da seção. Essa crítica
teve lugar em janeiro de 1859, vindo do Diário de Pernambuco e inaugurando a seção Litteratura, a qual
posteriormente seria contemplada por romances-folhetins.
Como se pode notar, a Gazeta Official trazia publicações de jornais de outros estados como
da Bahia, do Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas, entre outros. Textos que, na maioria das vezes,
eram publicados sem autoria, com pseudônimos ou anônimos. Contudo, há que se considerar que
nessa época, começava a surgir certa preocupação em relação à apropriação de obras literárias.
LAJOLO, Marisa. Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p.35-36.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 2 vol. 3 ed. São Paulo: Martins, 1969.
p.120.
10
Cf. ABREU, Márcia. Rumos da Ficção no Brasil oitocentista. In: Moara: Revista dos cursos de Pós-graduação em Letras
da UFPA. Nº 21, p. 7-31, jan./jun., 2004.
8
9
960
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Foi encontrada na Gazeta Official, uma reivindicação sobre um poema retirado de um almanaque
de lembrança de 1860 e publicado no referido jornal, como sendo de outro autor. Observe:
Figura 01 – Crítica do Gazeta Official – Poeta Marte
Fonte: Gazeta Official, n° 245. 02/11/1859. p. 02.
O texto acima apresenta certa preocupação com a autoria, pois, nesse período, era comum os
autores não assinarem seus escritos, porém, vê-se que isso não foi o que aconteceu com o texto plagiado,
uma vez que ele fora publicado com a assinatura do autor. No entanto, Socorro Barbosa adverte:
Mas o fato de serem anônimos e não estarem ligados a um autor “célebre” não os torna menos importantes
na reconstituição dos modos de ler da época. Nesse sentido, a crítica literária, mesmo que precária, presente
nesses jornais da Corte e das províncias, pode dar pistas, não só dessa atividade propriamente dita, mas de
como ela foi responsável pelo que aqui circulou influenciando e formando o gosto dos leitores.11
É o caso do texto intitulado Litteratura, extraído do Diário de Pernambuco, citado no início do
segundo capítulo.
O segundo texto é, mais uma vez uma crítica literária publicada na Gazeta, intitulada O drama
Religioso em França, extraída, novamente, do Diário de Pernambuco, nela o autor faz indagações acerca da
religiosidade no século XIX.
Observe que nos fragmentos literários há um questionamento em relação à religiosidade
que fora preterida não só do teatro francês, mas de todo o cenário europeu; outro ponto relevante é a
literatura abarcar o drama religioso e o caráter profano estar tomando espaço no teatro moderno.
LITERATURA
O drama religioso em França
I. Quero indagar porque motivo o drama religioso em França occupa tão pequeno lugar na nossa literatura.
(1) Polejeuta Esther e Athalia”, eis os únicos grandes nomes do drama religioso que parece ter sempre tido
uma obra de excepção. Porque está nossa condição o drama religioso? Será por culpa do gênio francez
que parece mais inclinado a critica e a incredulidade do que a devoção?(…) Vem enfim as peças santas do
seculo XVIII entre as quaes podem-se distinguir dous gêneros differentes; as peças de Corneille e de seus
predecessores ou de seus contemporâneos, as peças de Racine e de seus sucessores.12
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova
Prova, 2007. p. 72.
12
Jornal Gazeta Official, n° 25 e 30, dias 05 e 08/02/1859.
11
961
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Percebe-se, nos excertos em análise, que o crítico adota posição religiosa ao defender a
ideologia cristã, nas obras literárias, quando se refere: “A influencia christã existe por toda a parte,
graças a Deos, derramada na litteratura europea, de quem he a mais nobre e melhor inspiração”.
Critica, ainda, a secularização das obras decorridas do Renascimento, observe: “Toda a Europa, no
seculo XVI, soffreu a influencia do renascimento, e secularizou-se o melhor possível tanto em sua
litteratura como em sua legislação, mas não houve revolução tão grande em parte alguma como no
theatro” e acusa a modernidade de valorizar o profano.
O crítico enaltece os jesuítas por cultivarem o teatro ligado à ideologia cristã o que demonstra
claramente sua posição em relação à igreja: “Os jesuítas foram os poetas mais fecundos e mais hábeis
desse theatro”, é possível inferir que tal crítica tenha sido publicada no Pará por causa da forte
ideologia jesuítica presente na Província, na época.
É possível perceber a contribuição dos jornais para com a Literatura, não porque destinavam
uma seção especial para ela, mas pelo intercâmbio que havia entre os diários, ou seja, na impossibilidade
de publicar determinado texto literário no Pará, os jornalistas se valiam de publicações de outras
províncias ou até mesmo da Europa. Tudo para proporcionar ao leitor o contato com as novidades
de fora e vender jornais, como assinala Socorro Barbosa:
Pode-se dizer que a crítica literária nasceu nos periódicos brasileiros, primeiramente, a partir das notícias
biobibliográficas, do lançamento de livros, muitas vezes retirada de outros jornais, alguns estrangeiros. De
início, o foco de interesse eram as publicações estrangeiras e a notícia da sua repercussão nos países de
origem, principalmente a França.13
No dia 24 de setembro de 1859, a Gazeta apresentou, nas primeiras páginas do nº. 213,
na seção Litteratura, a terceira crítica literária a ser analisada, intitulada Rápido Estudo sobre a Poesia
Brasileira. Assinado pelo Sr. J. C. Fernandes Pinheiro14, apresenta comentários a propósito da nova
edição dos Suspiros e Saudades, pelo Sr. P. J. G. de Magalhães. Percebe-se, nesse ensaio, menos elogio,
mais aprofundamento nas comparações e nas idéias abordadas por Fernandes Pinheiro, o que nos
leva a crer que a literatura do Brasil ganha credenciamento no cenário nacional. Como se comprova
no exemplo a seguir:
LITTERATURA
RAPIDO ESTUDO SOBRE A POESIA BRASILEIRA.
A propósito da nova edição dos – Suspiros e Saudades – pelo Sr. D. J. G. de Magalhães.
Não inspirarão sempre aos nossos poetas os esplendores da natureza brazilica, e com pezar confessamos
que a originalidade não é o typo característico da poesia nacional. Indifferentes ás magnificências da terra
americana, cerrando os olhos para lhos não deslumbrarem os brilhantes raios da constellação do cruzeiro,
os nossos bardos continuavão, nas margens dos rios gigantescos, as estrophes começadas nas pittorescas
ribas do Mondego. Inspiravão seus cantos o clássico Apollo e as Musas do Parnaso, e as tradições d’alemmar poderosamente actuavão em suas imaginações, a ponto de tornal-os extranhos ao torrão natal. Faziaos brasileiros o acaso de nascimento, portuguezas porem erão suas ideias.
Verdade é, que aqui e acolá divisão-se alguns vislumbres de cor local, em Gregorio de Mattos, Botelho
d’Oliveira, Anonymo Itaparicano, Brito Lima, e alguns outros poetas da primeira epocha. São porem
ensaios fortivos, tentativas mallogradas, ou quiçá devaneios da musa, condemnados pelo gosto da epocha.
13 BARBOSA. Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova
Prova, 2007. p. 71.
14
O Cônego Fernandes Pinheiro (1825-1876) foi um dos intelectuais brasileiros que mais se destacaram no aparelho cultural
do Império, uma vez que teve uma vida intensamente dedicada às letras que compreende andanças por diversos campos
institucionais do período. Se, naquele tempo, obteve uma posição privilegiada no “Império das letras”, a recepção da elite literária
posterior não conservou esse mérito, oferecendo-lhe apenas um profundo silêncio. Na tentativa de resgatar tal personalidade
de nosso passado cultural, esse trabalho procura estudar o Cônego Fernandes Pinheiro como crítico literário pioneiro das
letras brasileiras, a partir da leitura e análise dos livros mais relevantes dele: o Curso elementar de literatura nacional (1862), as
Apostilas de Retórica e Poética (1871) e o Resumo de história literária (1873); bem como de seus artigos e ensaios publicados
nos principais periódicos românticos. Com isso, pretende-se reavaliar a obra desse importante intelectual oitocentista, posto à
margem pelos estudos literários e, assim, contribuir para a historiografia literária do Romantismo brasileiro. In: MELO, Carlos
Augusto de. Conego Fernandes Pinheiro (1825-1876) : um critico literário pioneiro do romantismo no Brasil. Disponível em:
<http://biblioteca.universia.net/html_bura/ficha/params/id/22571397.html>. Acesso em: 20 ago. 2008.
962
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
(...)
Imperceptivel e gradualmente desenha-se o typo brazileiro nos poetas da segunda epocha, que, segundo o
nosso modo de entender, tem por balizas Claudio Manoel da Costa e José Bonifácio d’Andrada. Vejamos
onde descobrimos esse typo, ou essa por local.
(…) Voltando ao Sr. Magalhães, dhemos que os seus Suspiros Poeticos e Saudades, de que acaba de dar uma
nova edição consideravelmente melhorada, exporgando-a d’alguns erros d’impressão, e addicionandolhe algumas novas producções, serão sempre considerados como um marco milliario, como a hegira da
nossa regeneração literaria. Fora-lhe vaticinado este brilhante futuro por um dos nossos mais profundos
pensadores, o Sr. Conselheiro F. de Salles Torres-Homem, que na ja citada Nictheroy assim se exprimia.
“Este volume de poesias do Sr. Magalhães não é somente uma collecção de bellas harmonias; mas tambem
um código de moral na sua expressão mais sublime, nas suas formas as mais ternas e consoladoras, e cuja
luz allumia sem irritar, como o doce clarão, que a lua espalha sobre um dedalo de flores. Elle é proprio a
applacar a necessidade d’emoções grosseiras, que a nossa epocha agita. O sopro do infurtunio, da religião
e da philosophia animou esses cantos onde demos domina um doloroso enthusiasmo por tudo quanto é
grande, bom e justo. Parece que a Providencia faz soffrer todos os poetas de génios, afim de que instruão os
outros homens com a sublime melodia de seus gemidos: as creaturas mediocres sofrem menos; porque seja
queixumes não téem harmonia, e são um desaccordo de mais entre os sons confusos do mundo moral.
“Esta producção d’um novo genero é destinada a abrir uma nova era á poesia brasileira. Permita Deus que
não fique solitaria no meio da nossa litteratura, como uma sumptuosa palmeira no meio do deserto”.
Estas eloquentes palavras, produzidas em face da nova edição, servem de gracioso portil ao bello templo,
alçado pelo genio do Sr. D. G. de Magalhães.
J. C. Fernandes Pinheiro.15
É possível constatar a tentativa do crítico em construir uma critica literária brasileira.
Contudo, ele afirma “que a originalidade não é o typo característico da poesia nacional”, haja vista os
nossos escritores estarem influenciados pelo pensamento do colonizador português, isso porque “as
tradições d’alem-mar poderosamente actuavão em suas imaginações, a ponto de tornal-os extranhos
ao torrão natal. Faziam os brasileiros o acaso de nascimento, portuguezas porem erão suas idéias”.
Embora Fernandes Pinheiro compare nossos árcades aos grandes escritores europeus, às
vezes entronizando estes; outras, àqueles, ele argumenta que é a partir da segunda época de nossa
literatura, ou seja, do Arcadismo, que as nossas letras começam a ganhar uma cor local. Observe:
“Imperceptível e gradualmente desenha-se o typo brazileiro nos poetas da segunda epocha, que, tem
por balizas Cláudio Manoel da Costa e José Bonifácio de Andrada”.
O crítico comenta a ascensão de nossas letras com a obra Uruguay, de José Basílio da Gama,
ao dizer que o autor é “Superior a Virgilio, quase um Homero e a Tasso, mostra-se o nosso illustre
patrício da pintura dos caracteres”. Chega a comparar o poema de Basílio da Gama ao de Homero:
“e podemos sem temor dizer, que o Uruguay é uma Illiada em miniatura”.
Fernandes Pinheiro, ao se reportar aos Suspiros Poéticos e Saudades, garante que a obra é “um
marco milliario, como a hegira da nossa regeneração” e adverte o público: “Este volume de poesias do
Sr. Magalhães não é somente uma colleção de bellas harmonias; mas tambem um código de moral”.
Entretanto, faz um apelo em relação ao novo estilo inaugurado no Brasil, em 1836, por Gonçalves de
Magalhães: “Esta producção d’um novo gênero é destinada a abrir uma nova era á poesia brasileira.
Permita Deus que não fique solitária no meio da nossa litteratura, como uma sumptuosa palmeira no
meio do deserto”.
Isso significa que a literatura brasileira ainda tinha nuances estrangeiras em virtude de uma
série de fatores como a proibição de publicação, a carência de tipografia, a censura, a classe analfabeta,
que iniciaram com a colonização nacional e se estenderam pelo longo período de nossa independência.
A quarta crítica literária localizada na Gazeta, intitulada “Uma viagem a Grécia – A poesia popular
– sua fonte próxima”, pertencente a A. R. de Torres Bandeira, trata da poesia popular e suas origens.
No texto, observa-se, o questionamento do autor aos “antiquários e os sabedores das letras e
das sciencias” sobre a preferência do público na escolha da contemplação dos países antigos. Começase a enaltecer as belezas da Grécia antiga, fonte de inspiração para muitos escritores. Observe:
15
Jornal Gazeta Official, n° 213, 24/09/1859, p.1-2.
963
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
LITTERATURA
UMA VIAGEM Á GRECIA – A POESIA POPULAR – SUA FONTE PROXIMA.
Não sabemos porque fatalidade somos arrastados sempre ou a maior parte das vezes para a contemplação
desses quadros tão magníficos e elegantes que o mundo antigo nos offerece no vastíssimo theatro de suas
bellezas artísticas.
Sonhamos, por ventura, com um passado que fora mais fértil para as grandiosas concepções do engenho?
Houve já uma época mais fadada para as conquistas da intelligencia e para os trabalhos do espírito?
Respondam os antiquários e os sabedores das letras e das sciencias.
Uma viagem de phantasia pela Grécia dos artistas, dos poetas e dos philosophos será melhor jornada para
quem embevece ainda com as doçuras da belleza ideal, com as suavidades do bom gosto.
Realmente, nenhum paiz chegou nunca a esse grao de elevação pasmos que tanto se deixa ver na historia
grega, nessa historia que assinala os nomes de milhares de artistas e de investigadores zelosos e infatigáveis.
(...)
Tomada essa poesia no seu verdadeiro sentido, vemo-la grega em sua origem, nos seus primeiros esforços,
no seu primitivo desenvolvimento: mas nada disto obstou a que mais tarde ella mesma começasse a ser
cultivada com esmero e dedicação por outros povos, e no meio de outras nações.
Assim, a poesia popular é de todos os tempos e de todos os lugares; surge com as tradições de uma sociedade
qualquer; acompanha-a no seu movimento, reflete-se nella, assume as cores dessa Sociedade; reproduz as
feições que mais a caracterisam, e não morre nunca, em quanto o espirito desse povo, stereotypado em suas
instituições, e em seus costumes e crenças, viver em toda a sua força e enthusiasmo nativo.
A differença que existe hoje no desenvolvimento dessa poesia, quando comparado com o que se lhe
assignara na Grécia, é que, sendo a maior parte dos povos e das nações influenciadas por idéias muito
diversas e por crenças inteiramente oppostas, o genio e o caracter dessa poesia popular são na actualidade
baseados n’outras opiniões e tendências. (...)
Prouvera a Deos que d’entre tantos ingenhos que por ahi se desnortêam, por vezes, em poesia de imitação
ou de copia infeliz, e que seguem estradas que não immortalisam a ninguém, alguns com tempo se
voltassem para esse ramo da poesia, que n’um paiz de tantas recordações como o Brasil, se abre magestoso
em milhares de fontes inexhauriveis!
Os poetas populares são – repetimol-o – de todos os tempos e lugares, e a nossa pátria tambem deve ter
os seus: – que o tentem os que podem fazel-o, que o gênero de cultura há de superabundar de seiva e de
gloria para os cultivadores.
A. R. de Torres Bandeira. 16
Percebe-se a preferência do autor pela tradição ao apelar “divaguemos nos com toda a
liberdade possível por um desses paizes de que a antiguidade nos falla com tanto enthusiasmo e
vamos sentar-nos com o litterato e com o archeologo sobre as ruínas ainda famosas de algumas
dessas nações ainda famosas de outras épocas”, ainda que o mundo já viva em plena modernidade.
O autor propõe uma viagem à Grécia como fonte de inspiração para outros povos: “Assim a
poesia popular é de todos os tempos e de todos os lugares”, uma vez que ela “surge com as tradições
de uma sociedade qualquer”, pois “o gênio e o caracter dessa poesia popular são na actualidade
baseados n’outras opiniões e tendências”.
O crítico ainda reitera que em vez de alguns autores copiarem ou imitarem poesias sem
originalidade, deviam se voltar para “esse ramo da poesia, que n’um paiz de tantas recordações como
o Brasil, se abre magestoso em milhares de fontes inexauríveis!”.
Apresentada pelo Sr. Franklin Doria17, a quinta crítica literária trata do “verdadeiro caracter”
da poesia brasileira. O autor procura distinguir a literatura do Brasil da literatura de Portugal,
Jornal Gazeta Official, nº 217, 29/09/1859, p.2 e 3
Franklin Américo de Meneses Dória, 1º e único barão de Loreto, (Ilha dos Frades, 12 de julho de 1836 — Rio de Janeiro,
28 de outubro de 1906) foi um advogado, político, orador, magistrado e poeta brasileiro, membro fundador da Academia
Brasileira de Letras. Era casado com Maria Amanda Lustosa Paranaguá, filha de João Lustosa da Cunha Paranaguá.
No mesmo ano de sua formatura, em 1859, publicou Enlevos, seu único volume de poesia, impregnado de lirismo, ao
reproduzir estados de alma, e de caráter objetivo, nas descrições do cenário das belezas naturais da “ilha encantada” do
poeta. Quase todas as poesias subordinam-se a esse caráter e ao estilo descritivo. Cedo abandonou o verso. E desde o
aparecimento do seu primeiro livro só publicou, em poesia, um trabalho a tradução de Evangelina, de Longfellow, lido na
presença do Imperador D. Pedro II. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Franklin_D%C3%B3ria>. Acesso
em: 20 ago. 2008.
16
17
964
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
argumentando que embora as duas tenham sido “filhos do mesmo tronco; e por isso ao se separaremse, um para ficar na Europa d’onde saira, e outro para viver na America – no Brasil – unicamente seu,
não se despediram inimigos”, cada uma tem suas peculiaridades, como afirma no excerto:
LITERATURA
I. A POESIA BRASILEIRA – SEU VERDADEIRO CARACTER – O QUE É ELLA E O QUE DEVE
SER NO BRASIL.
II. ENLEVOS PELO SR. FRANKLIN DORIA.
Não há muito que deste mesmo lugar pronunciamos algumas palavras em relação a essa idea fecunda,
quase indefinível, que a poesia revela, e que lhe serve de typo essencial em suas tão variadas manifestações,
de todo o gênero e natureza. O que dissemos então á propósito do principio e de seo desenvolvimento
pratico, em tal assumpto, era e é o nosso pensar intimo, a nossa inabalável convicção: – partimos do ideal
para comprehender e apreciar a sua forma real e artística; e o que se nos figura desde muito a synthese
completa da creação deste mundo, nós o fomos examinar de perto na analyse deliciosa mais simples das
producções de engenho e dos rasgos soberbos da imaginação. (...)
As épochas de renascença para as sciencias e para as letras vem-na brotar como criança tímida, mas que já
se atira, pela educação que a espera, para futuros em que melhor se lhe desatem os risos e mais risonhos
lhe alvoreçam os dias: – a poesia então períodos semelhantes, é sonhadora infantil, romanesca e louçãa,
é virgem a mirar-se em sua própria formosura e a cantar, sem atavios e sem disfarce, a trova elegante dos
seos primeiros amores. (...)
A litteratura de um povo que se unira a principio a outro por um traço commum, pela filiação da linguagem,
de certo tempo em diante começou a refazer-se de typos seus: não os foi buscar ao tempo visinho que já
em parte estava desmoronando; mas, respeitando-lhe e venerando-lhe as memorias esparsas por tantos
monumentos de artes, ergueu-se por sua vez – e hoje vai sua derrota com donaire e magestade. Eram
irmãos e filhos do mesmo tronco; e por isso, ao se separarem-se, um para ficar na Europa d’onde saira, e
outro para viver na America – no Brasil – unicamente seu, não se despediram inimigos; e ambos ainda hoje
entendem-se no mesmo verbo que fallam, na expressão dos sentimentos que traduzem.
Eis, posta de parte a periphrase, o que há de especial na litteratura brasileira: eis a nossa vida para as lettras
e impreterivelmente para a poesia. Não somos, porem, dos que chamariam somente como tal a forma
d’arte primitiva no Brasil, e que desejariam, talvez, reduzir toda a nossa poesia a esses rasgos da musa
indígena, que estava em seu alvor de infância, quando tripudiava garrida e instinctiva em festas rústicas, ao
som de seus instrumentos bellicos. Não! A índole da poesia brasileira não é esta: – a cor local, os traços
e os caracteres individuaes, a phisionomia especial, – eis o que constitue e particularisa um povo em sua
existência artística e litteraria – em sua poesia como sob qualquer outra relação. (...)
Que muito não é para os poetas do Brasil o terem já de cantar o seu paiz independente, o poderem fazel’o com
dignidade, á luz de uma civilisação como a que se nota n’este seculo! Cantem-se esses factos, essas proezas,
essas acções heróicas dos nossos avós; recordem-se essas lições de valor patriotico: embeba-se a nossa poesia
popular n’essa fonte das inspirações que por vezes podem apparecer bem vividas nos votos solemnes que se
presta á verdade histórica; reproduzam-se mesmo pela forma lyrica e sob as condições do drama, não poucas
dessas paginas em que lê a nossa vida social, desde o seu começo ; mas não se pretenda emprestar á litteratura
e á poesia brasileira o caracter que, porventura, é mais americano do que especialmente pátrio.
É dessa maneira que podemos comprehender a poesia como verdadeiramente nacional, como brasileira; e
se o espaço nol-o permitisse, cremos que não nos seria difficil provar com evidencia o que há de justo na
these, e no sentido em que a sustentamos. (...)18
Para o autor a índole da poesia brasileira é “a cor local, os traços e os caracteres individuaes,
a phisionomia especial – eis o que constitue e particularisa um povo em sua existência artística e
literária”. Como se percebe, são várias as tentativas de identificar a literatura brasileira e apartá-la
da portuguesa, isso porque, naquela época, o Brasil tentava se firmar como nação independente e
autônoma.
O sexto texto apresenta como tema a mulher, mas é possível constatar, pela leitura, que o
tema é preterido em favor de fatos históricos, como é possível observar no exemplo a seguir:
ÉPOCAS DA VIDA DA MULHER.
Nos torneiros, quando um cavalleiro se distinguia, quando a victoria o acompanhava, tanto no encontro
da lança como na luta de espada, em três justas successivas, as damas juntavam as suas palmas às dos
mais espectadores e quando elle corria à sua dama a entregar-lhe o premio do combate, prestando-lhe
18
Jornal Gazeta Official, nº 218, 30/09/1859, p.1 e 2
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
homenagem, recebia d’ella em recompensa um beijo na fronte. (...)
Em França, n’um torneiro as damas enthusiasmaram-se tanto com as proesas dos justadores, que lhes
atiraram para os recompensar com quasi tudo que tinham sobre si. Quando no fim do combate se viram
de seio descoberto, braços nús, o vestido em desordem, os cabellos desatados sobre os hombros, tiveram
um momento de pejo, mas percebendo depois que todas assim estavam largaram-se a rir d’ uma aventura,
que sem que ellas se apercebessem, as tinha deixado apenas vestidas.
Foi assim que a cavallaria dominou a Europa por espaço de três seculos, mas como tudo o que é humano
vem a acabar, a cavallaria não podia deixar de morrer. Por um lado concorreo para isso a exaltação das suas
homenagens, por outro a nova face que tomou a sociedade.
Quando Carlos V em Bolonha no anno de 1530 abaixou a sua espada sobre uma multidão de homens
para o fazer cavalleiro, juntando – Estote milites, estote milites, todos, todos, já não fazia mais do que aviltar a
Cavallaria, cujo principal caracter era ser pessoal e deferida com toda a escolha. Os guerreiros retiram-se
contentes julgando-se cavalleiros, e elles já não eram mais do que uma somma de instituição. Cervantes
podia cobri-los de ridiculo.
Grande instituição, disse, foi-o com effeito.
Escola de humanidade, de desinteresse, de pundunor, de elegantes, é a ella que os opprimidos do seo
tempo deveram o amparo, que as leis lhes não davam; é a ella, que nunca soffreu uma afronta, que hoje
devemos a consciencia da dignidade pessoal, que os antigos não conheciam, porque Catão limpou o rosto
quando Lentula lhe cuspio, e Caio Lectorio vinha mostrar em público as pizaduras, que o punho de Appio
Cláudio lhe havia imprimido na face; é a ella em summa, que a sociedade moderna foi buscar a cortezia que
a distingue, a lealdade que se chama honra, o sentimento de respeito e galanteria que tributa à mulher.
Esta já não é um ídolo de tantas adorações, é força dize-lo, já não triumpha senão na lyra dos poetas ou no
florete de alguns duelistas, que pelas susceptibilidades da sua alma, ou enthusiasmo do seo coração, são os
cavalleiros de hoje; não obstante está ainda no throno que a cavallaria lhe conquistou, e em recompensa,
se são menos faustosas as homenagens que se lhe dedicam, tambem são recompensadas de ternura e
dignidade, e por ventura mais douradouras.
A. X. RODRIGUES CORDEIRO.19
No texto em análise é nítida a influência européia. Em alguns momentos o autor
enfatiza mais fatos históricos, como a cavalaria e o descobrimento da América, do que a temática
feminina. Esses acontecimentos históricos direcionam ao espírito de aventura da época: “os
governos estabelecendo-se em bases mais firmes e prestando mais apoio à segurança dos cidadãos,
dispensaram o auxílio do cavalleiro”.
Nesse elogio à mulher, é possível inferir que o autor toma a iniciativa de direcioná-lo a um
público feminino, ou seja, há uma tentativa de focalizar uma leitora, quando diz que “é a ella em
suma, que a sociedade moderna foi buscar a cortezia que a distingue, a lealdade que se chama honra,
o sentimento de respeito e galanteria que tributa à mulher”.
A sétima crítica encontrada trata mais uma vez da religiosidade católica, desprezada em
favor de comportamentos profanos. O autor M. F. Baguenault de Puchessi defende os ideais cristãos
e apresenta um livro “dedicado aos que duvidão e aos que crêem”:
LITTERATURA
O CATHOLICISMO APRESENTADO NA UNIÃO DE SUAS PROVAS.
Por M. F. Baguenault de Puchessi.
Este livro é dedicado aos que duvidão e aos que crêem. A primeira, poder-se-hia perguntar como chegará ao seu
fim? Que provas terão de fazer do catholicismo os que crêem, e como os que duvidam serão sensíveis á
estas provas? Duvidar mesmo, parece pedir uma energia q’ o nosso seculo não tem. (...)
Infelizmente nos dias em que vivemos, nos tempos em que a fé é rara e vacilante, as almas escapam com
facilidade do seu jugo, e mais que nunca ella tem tambem de reconduzi-las á sua lei. Nestas multidões que
obstruem nossas igrejas nos dias de grandes festas, poder-se-hia facilmente contar aquelles que tem a gloria
e o prazer de não ter jamais esquecido nem despresado o caminho das solemnidades catholicas.20
A crítica parece ser voltada para a moralidade das pessoas ausentes das igrejas, ou até mesmo
àquelas que duvidam da doutrina católica. A religiosidade, caracterizada pelo Romantismo, parece
ainda ser a tônica das críticas encontradas na Gazeta.
Jornal Gazeta Official, n° 1, 13/01/1860, p. 2
Jornal Gazeta Official, n° 57,12/03 /1860, p.2 e 3
19
20
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
O último texto da seção Litteratura, afasta-se do gênero crítica literária e aproxima-se do
romance-folhetim, é o intitulado Typos Estrangeiros: O Zampognaro, trata-se de uma narrativa que
apresenta uma seqüência incompleta semelhante a um folhetim.
O texto, embora sem autoria, pressupõe ser uma narrativa italiana que conta a história de um
“zampognaro”, o Pietro Zerbi, um músico pobre que vai à Nápoles, cidade mais católica do mundo,
para passar o mês de dezembro – época da Imaculada Conceição e do Natal – tocando, a fim de
ganhar o sustento da família composta pela esposa, os filhos e o pai cego.
Pela localização e pelo teor do texto é possível inferir que havia uma tentativa de transferir
os romances-folhetins para a seção Litteratura, o que reforça a idéia de que a Gazeta Official já destinava
uma coluna especial para os textos literários, ao agregar a seção Folhetim à Litteratura.
Dessa forma, há que se ressaltar a contribuição da Gazeta Official para a formação do leitor
paraense, uma vez que foi possível constatar a quantidade de textos literários nela encontrados. É
válido considerar, também, a importância dessa folha como veículo propagador da literatura na
província do Pará. Na Gazeta Official, periódico noticioso e literário que circulou entre 1858 e 1866,
foi possível constatar a grande quantidade de informação acerca da literatura, bem como a variedade
de narrativas ficcionais que promoviam além de entretenimento e diversão ao público paraense, a
expansão da leitura literária no século XIX.
Assim, foi possível comprovar a contribuição histórico-literária da Gazeta para a (in)formação
de um público leitor/escritor e consumidor de literatura na província do Pará, haja vista a gama de
informação nela coletada, e a confirmação de que a literatura caminhava a passos largos para sua
concepção atual e consolidação no Pará.
Referências
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______. Letras, Belas-letras, Boas Letras. In: BOLOGNINI, Carmen Zink. História da Literatura: o discurso
fundador. Campinas-SP: Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil(ALB): São Paulo: Fapesp, 200
______. Rumos da Ficção no Brasil oitocentista. In: Moara: Revista dos cursos de Pós-graduação em Letras
da UFPA. Nº 21, p. 7-31, jan./jun., 2004.
ALENCAR, José de. Como e por que sou romancista. Campinas: Pontes, 1990.
BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre:
Nova Prova, 2007.
BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 2 vol. 3 ed. São Paulo: Martins, 1969.
FACIOLA, Rosana Assef. Os romances-folhetins dos jornais de Belém do Pará entre 1858 e 1870. Belém (Dissertação
apresentada à coordenação do curso de pós-graduação do Centro de Letras e Artes da UFPA). Pará, 2005.
LAJOLO, Mariza & ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999.
LAJOLO, Mariza. A leitura rarefeita: Leitura e Livro no Brasil. São Paulo: Ática, 2002.
_______. Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
LUSTOSA, Isabel. O nascimento da Imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2003.
MEYER, Marlyse. As mil faces de um herói canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora: UFRJ, 1998.
_______. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MONTEIRO, Benedito. História do Pará. Belém: Editora Amazônia, 2005.
ROQUE, Carlos. História geral de Belém Grão-Pará. Atualização de textos: Antônio José Soares: Belém,
Distribel, 2001.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
SALES, Germana Maria Araújo. Um público leitor em formação. In: Moara Revista do curso de PósGraduação em Letras da UFPA, nº 23, p. 23-42, jan/jun/2005.
SALLES, Vicente. Memorial da Cabanagem: esboço do pensamento político e revolucionário no Grão-Pará.
Belém: CEJUP, 1992.
SERRA, Tânia Rebelo Costa. Antologia do romance de folhetim (1839 a 1870). Brasília: Ed UNB, 1997.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
______, História da Literatura Brasileira. 10ª ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.
TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetim no Brasil: 1830 a atualidade. São Paulo: Duas cidades, 1994.
ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC, 2001.
968
Volume 3
JULIO CORTÁZAR:
UM ANTROPÓFAGO LATINO-AMERICANO?
Maria Luiza Teixeira BATISTA
(Universidade Federal da Paraíba)
RESUMO: Neste trabalho, apresentaremos uma leitura da obra de Julio Cortázar à luz de Haroldo de Campos
e Silviano Santiago. No texto, “Da razão antropofágica: diálogo da diferença na cultura brasileira”, Haroldo
de Campos retoma o conceito de antropofagia literária, ampliando sua aplicação para a América Hispânica.
Campos denomina os escritores latino-americanos como novos bárbaros, devoradores de outras literaturas e
culturas. Neste sentido, Cortázar também é considerado um destes novos bárbaros que se apropriou do legado
cultural universal em busca de uma maneira própria de expressão. Silviano Santiago também encontrou no
escritor a presença do antropófago literário que aqui mencionamos. Santiago entende o conceito de leitura
como um convite a praticar a escrita. O escritor se transforma em um devorador de livros e suas leituras
estimulam seu processo de criação. Como é sabido, a leitura sempre esteve presente na vida de Cortázar e
muitas destas ficaram sedimentadas na sua escrita.
PALAVRAS-CHAVE: Julio Cortázar; antropofagia; Haroldo de Campos; Silviano Santiago
RESUMEN: En este trabajo, presentaremos un análisis de la obra de Julio Cortázar a la luz de Haroldo de
Campos y Silviano Santiago. En su texto “Da razão antropofágica: diálogo da diferença na cultura brasileira”,
Haroldo de Campos retoma el concepto de antropofagia literaria, aplicándolo también a los escritores de la
América Hispana. Campos afirma que estos escritores son los nuevos bárbaros, devoradores de otras literaturas
y culturas. En este sentido, Cortázar también es considerado uno de estos nuevos bárbaros que se apropió de la
cultura universal en búsqueda de una manera propia de expresarse. Silviano Santiago también encontró en el
escritor la presencia del antropófago literario que aquí mencionamos. Santiago entiende el concepto de lectura
como una invitación a la práctica de escritura. El escritor se transforma en un devorador de libros e sus lecturas
estimulan su proceso de creación. Como se sabe, la lectura siempre estuvo presente en la vida de Cortázar y
muchas de estas quedaron sedimentadas en su escritura.
PALABRAS CLAVE: Julio Cortázar; antropofagia; Haroldo de Campos; Silviano Santiago
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Talvez Cortázar tenha sido um dos escritores argentinos mais estudados nas últimas décadas,
muitos foram os trabalhos críticos onde se apresentam diversos enfoques e interpretações sobre a sua
obra. Por este motivo, encaramos como um desafio analisar seus textos de maneira original. Nesta
busca de novas perspectivas, nos deparamos com um dado curioso que nos levou a indagar sobre a
relação que o escritor argentino manteve com escritores e críticos brasileiros, entre estes encontramos
Haroldo de Campos.
Encontramos, no capítulo de abertura da edição crítica de Rayuela publicada em 1991,
um texto de Haroldo de Campos onde recorda que talvez tenha sido o primeiro crítico brasileiro
a escrever sobre esse romance, referindo-se a um artigo publicado em 1967.1 Foi por causa deste
texto que Haroldo de Campos e Julio Cortázar estabeleceram um primeiro contato que, em seguida,
se transformou em um vínculo afetivo e profissional. É possível que date daquela época – final da
década de 60 – os primeiros contatos entre Cortázar com seus colegas brasileiros, uma ponte por
onde certamente os leitores de ambas as latitudes (Brasil e Argentina) continuam atravessando.
Não somente um vínculo de amizade unia os dois escritores, para Campos, Cortázar fazia
parte de um grupo denominado novos bárbaros, relendo o conceito de antropofagia oswaldiana. Neste
sentido, nossa intenção neste trabalho é retomar e desenvolver a proposta do crítico brasileiro ao
designar Cortázar um antropófago à moda brasileira.
2. Antropófagos latino-americanos
No seu texto “Da razão antropofágica: diálogo da diferença na cultura brasileira”, Haroldo
de Campos, retoma o conceito de antropofagia literária de Oswald de Andrade e o amplia ao
resto da América Latina. Considera, não apenas os escritores brasileiros, mas também os escritores
hispano-americanos como antropófagos literários. Para Campos, estes escritores, ao retornar as suas
raízes buscando a diferença, ou seja, sua originalidade, se transformam em canibais, devoradores
da cultural universal. Por sua vez, o canibal é também um antologista, um colecionador de textos
literários, que deles se alimenta, extraindo os nutrientes necessários para renovar suas próprias
forças (Cf. CAMPOS, 1992, p. 234-235).
Estes escritores-canibais se apropriam do “legado cultural universal”, o re-elaboram e
modificam, construindo assim um sistema novo (Cf. CAMPOS, 1992, p. 234). Deste modo, acabam
inscrevendo a América Latina no cenário da literatura internacional. Entre estes canibais, ou novos
bárbaros, como os definia Campos, encontramos a Octavio Paz, Jorge Luis Borges, José Lezama Lima,
Severo Sarduy, Leopoldo Marechal e Julio Cortázar.
O crítico acreditava que estes novos bárbaros latino-americanos se alimentava de bibliotecas
como a Biblioteca de Babel de Borges.2 Eles esmiuçavam a tradição literária ocidental (e também oriental),
transformando-a em um caldo substancioso, como resultado deste processo de nutrição,
Lezama criolliza a Proust e intercomunica Mallarmé com Góngora: suas citações são truncadas e aproximativas
como restos de uma digestão diluvial. Adán Buenosayres, de Leopoldo Marechal (com sua ‘Viaje a la Oscura
Ciudad de Cacodelphia’), e Rayuela, de Julio Cortázar, dialogam, em turnos e planos diversos, com o Ulysses
de Joyce, sem perder com isto a marca da circunstancia argentina (ainda quando, no caso de Cortázar,
transmigrada, com nostalgias portenhas, para a París de Rive Gauche). (CAMPOS, 1992, p. 252)
Trata-se do artigo “O Jogo da Amarelinha”, publicado no Correio da manhã no Rio de Janeiro em 1967.
Era na sua Biblioteca de Babel onde Borges se refugiava para ler e escrever. Muitos anos mais tarde já no final de sua
carreira, o escritor argentino se propõe a registrar as leituras que foram imprescindíveis na sua vida. No prólogo de
Biblioteca Personal, o escritor afirma: “A lo largo del tiempo, nuestra memoria va formando una biblioteca dispar, hecha de
libros, o de páginas, cuya lectura fue una dicha para nosotros y que nos gustaría compartir. […] Deseo que esta biblioteca
sea tan diversa como la no saciada curiosidad que me ha inducido, y sigue induciéndome, a la exploración de tantos
lenguajes y de tantas literaturas.” (BORGES, 1998, p. 7-8)
1
2
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Assim, na opinião de Haroldo de Campos, a antropofagia latino-americana estabeleceu uma
nova relação entre Europa e América Latina. Esta nova relação é exemplificada pelo fenômeno do
boom da literatura latino-americana que aconteceu na década de 60. O boom foi uma forma de mostrar
ao resto do mundo que os novos bárbaros latino-americanos há muito tempo vinham corrompendo
o seu legado literário e cultural. Este fenômeno serviu de alerta para os europeus e norte-americanos,
pois eles já ao podiam ignorar a presença destes maus selvagens, antropófagos, que silenciosamente
vinham socavando as suas bases literárias (Cf. CAMPOS, 1992, p. 253-254). O boom seria, então,
a concreção da proposta antropófaga de Oswald de Andrade. Foi através deste fenômeno que a
literatura da América Latina se deslocou da periferia para ocupar um lugar mais próximo do centro.
É certo que este foi um fenômeno bastante polêmico. O que para alguns críticos foi um
marco na história de literatura com a descoberta de uma nova forma de narrar; para outros, o boom não
passou de um jogo de marketing editorial, sustentado apenas pelo êxito de vendas. Houve ainda quem
dissesse que foi um acontecimento passageiro por causa das deficiências estéticas dos romances que
estavam nas suas listas (Veja: BLANCO AMOR, 1976, p. 13). Seja como for, temos que reconhecer
que este fenômeno foi de uma importância fundamental para nossa literatura, pois, graças ao boom, a
literatura latino-americana e seus escritores puderam se projetar no cenário literário mundial.
Nas famosas listas do boom estavam vários escritores e seus romances, mas os que tinham
maior destaque eram Julio Cortázar (pela publicação de Rayuela em 1963), Mario Vargas Llosa (com
La ciudad y los perros, 1962), Carlos Fuentes (com La ciudad y los perros, 1962) e Gabriel García Márquez
(com Cien años de soledad, 1967).3 Estes nomes passaram a ser considerados celebridades literárias e a
estar nas capas de jornais e revistas, como Primeira Plana, uma importante revista literária da época.
A mídia foi fundamental para tirar estes (e outros) escritores do anonimato, em pouco tempo eles se
transformaram em estrelas, comparadas com as da música e do cinema.
No entanto, o fenômeno do boom não só beneficiou a estes quatro protagonistas, serviu
também para revelar novos escritores e relançar escritores já consagrados por uma elite leitora. O
público descobriu escritores (como Borges, por exemplo) cujos livros já haviam sido publicados nas
décadas anteriores, mas que eram desconhecidas do grande público.
Dentro deste panorama, a tradução de textos em espanhol (e também em português) a
outros idiomas foi um dos fatores importantes que contribuiu para chamar a atenção dos europeus
e norte-americanos para a literatura que se publicava na América Latina. Isto favoreceu a conquista
do público leitor de línguas não-hispânicas e também o reconhecimento da crítica estrangeira. Outro
fator, não menos importante, foi a revolução cubana que obviamente atraiu a atenção do resto do
mundo para esse país do continente. Vale também lembrar que muitos escritores do boom foram
defensores da causa revolucionária, como é o caso de Julio Cortázar.
Como já dissemos, Cortázar deve à publicação de Rayuela a ascensão da sua carreira literária,
posto que suas obras anteriores eram pouco conhecidas até então. Foi a partir deste romance que o
leitor descobre Bestiário (seu primeiro livro de contos, publicado em 1951) e Los Premios (seu primeiro
romance, publicado em 1960), entre outros.4 Como uma de suas figuras principais, é interessante
observar a opinião do escritor sobre este fenômeno. Cortázar entende o boom como uma toma
de consciência do povo latino-americano com relação a sua própria identidade, isto, por sua vez,
redundaria em uma forma de desalienação, no sentido marxista da palavra. Reconhece também o
leitor como uma peça fundamental neste processo, toda vez que é a ele que se deve este descobrimento
do escritor latino-americano.5
Nestas listas também se encontrava um escritor brasileiro, trata-se de João Guimarães Rosa e seu fabuloso romance
Grande Sertão Veredas (1956).
4
No seu libro, Más allá del boom. Literatura y mercado, Ángel Rama apresenta um quadro onde expõe a quantidade de
exemplares de Bestiario e Los Premios publicados antes e depois de Rayuela. Os números indicam que depois de 1963, todos
os livros de Cortázar publicados antes deste período foram reeditados em tiragens muito maiores (Cf., RAMA, 1984, p.
87-88).
5
Tal opinião foi expressada por Cortázar em uma entrevista concedida a Ernesto González Bermejo em 1972 e reproduzida
no livro, Revelaciones de un cronopio. Conversaciones con Cortázar (Cf. GONZÁLEZ BERMEJO, 1986, p. 148).
3
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Apesar de todas as polêmicas surgidas ao redor do boom, não podemos deixar de reconhecer
que este trouxe benefícios à literatura latino-americana, pois foi através dele que o resto do mundo
descobriu que na América Latina se escrevia literatura de qualidade. Se, como muitos críticos pensavam,
os escritores latino-americanos só escreviam cópias de textos europeus, estas supostas cópias estavam
atravessadas pelas circunstancias locais e pessoais. Deste modo surgiram textos novos que pouco ou
nada deviam a sua suposta matriz.
Desta perspectiva, não seria absurdo considerar Cortázar como um dos novos bárbaros
mencionados por Haroldo de Campos. Assim como Borges, que se alimentou da sua Biblioteca de Babel,
Cortázar se nutriu de muitos textos em busca de uma maneira particular de se expressar. Comparando
as bibliotecas de ambos escritores, a do segundo chama a atenção por sua variedade de estilos; até
chegou a ser mencionada em uma entrevista concedida a Luis Harss e registrada em Los Nuestros
(1966); sua biblioteca também chama a atenção de Lezama Lima quem muitos anos mais tarde revela
o que lá encontrou.
Harss destacou o interesse de Cortázar pela literatura estrangeira, ao apontar a quantidade de
livros em francês e inglês, em oposição ao escasso número de livros em espanhol e, principalmente,
de literatura argentina (Cf. HARSS, 1981, p. 261). No entanto, na década de 60, quando foi concedida
a entrevista, Cortázar já havia descoberto a literatura de seu país, e havia elegido a Horacio Quiroga,
Roberto Arlt, Leopoldo Marechal e Jorge Lis Borges, por diferentes razões, como os seus mestres,
como aqueles que lhe ensinaram a escrever. Nesta mesma entrevista, admite que, na sua juventude,
costumava ler mais nestas duas línguas (francês e inglês) que em espanhol. Isto se devia ao gosto
refinado e elitista que caracterizava a pequena burguesia portenha do começo do século XX, segmento
social que pertencia. Depois, confessa que passou a interessar-se pelo que denominava “literatura de
excepción” (literatura de exceção), ou seja, aquela que não chegou a se consagrar.
Já Lezama Lima apontou a preferência eclética e até contraditória do escritor, pois, em
sua estante, se podia encontrar um livro de Julio Verne ao lado de um de Roussel. Esta aparente
disparidade pode significar que os livros parecem estar mesclados, como estão os elementos que
compõem uma fórmula secreta e onde cada um é indispensável para o resultado final do produto.
No fragmento citado a seguir, vemos que Lezama entende a leitura como um processo de nutrição,
semelhante ao que disse Haroldo de Campos e que citamos anteriormente:
Al lado de la galería aporética, la librería délfica soñada por Gracián. Cada libro por inexplicable,
imprescindible. Julio Verne al lado de Roussel. Todo lo pensado puede ser imaginado. Toda imago deja
huella. Hacer de tres no un cuarto sonido, sino un astro, decía un abate que tenía su gabinete de alquimia
al lado de su celdilla de penitente. Encontrar los necesarios textos como alimento terrestre de lo único
que podemos digerir, que cada cual necesita transformar para crecer. Todas esas lecturas semejantes al
encuentro con la prostituta de Avignon llamada Jean Blanc (1477-1514) son, como evoca Cortázar en esa
mezcla de lo lúdico y lo terrible, que es una de sus constantes más reiteradas, vivencias desprendidas de un
cuadro de Masaccio (LEZAMA LIMA, 1996, p. 712).imprescindta e onde cada um nificar que os livros
parecem estar mesclados como estao es, por diferentes razoes, como os seus m
Ao que parece, a estante de livros não faz parte apenas da decoração da sua casa; este objeto
é recuperado pela memória quando o próprio escritor recorda sua infância em um subúrbio pobre
de Buenos Aires. Confessa que sua relação com os livros começou desde muito cedo. E foram suas
leituras da infância que o alimentaram, o fizeram crescer e desenvolver a sua intelectualidade. Diz
Cortázar:
Cada vez que veo las bibliotecas donde se nutren los niños bien educados, pienso que tuve suerte; nadie
seleccionó para mí los libros que debía leer, nadie se inquietó de que lo sobrenatural y lo fantástico se me
impusieron con la misma validez que los principios de la física o las batallas de la independencia nacional
(Cortázar, 194, p. 81).
Se considerarmos este escritor argentino como um antropófago literário, observamos que
a noção de alimentar-se de leituras está presente em muitos de seus críticos. Ao recordar Cortázar
em um texto publicado logo após sua morte, Saul Yurkievich fala sobre sua paixão pela leitura: “las
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
lecturas bien digeridas” (YURKIEVICH, 1997, p. 274), ou seja, processadas e analisadas. O crítico
define os hábitos de leitura de Cortázar como uma bibliogula, um desejo de instrução inerente aos
latino-americanos. Cortázar foi um glutão literário, assim como Borges também o foi. Graças a estes e
outros vorazes leitores periféricos, transformados em escritores, se pode retirar a literatura da América
Latina da periférica para colocá-la mais ao centro.
Yurkievich reconhece o sentido antropófago da leitura, ao mencionar que estes leitores/
escritores se apropriaram de tudo o tinha valor na literatura universal, a digeriram e a transformaram;
a usaram como uma forma de nutrição para seu próprio exercício de escrita. Neste sentido, o crítico
confirma o caráter antropófago na literatura de Cortázar na seguinte passagem:
Julio se formó como yo, por hibridación literaria, practicando esas antologías, como las de Borges, que
compilan muestras de todo mundo y toda época, nutriéndose de sofisticados mejunjes librescos. De tales
mezclas salen, por maceración, sus relatos. O bien la mezcolanza es, como en Rayuela o en los almanaques,
el dispositivo que constituye la obra (YURKIEVICH, 1997, p. 276).
As leituras, como disse Jaime Alazraki, são o “suelo intelectual donde crece la obra de todo
escritor” (ALAZRAKI, 1980, p. 260). Usando outra metáfora, diríamos que a leitura é o alimento que
nutre o escritor e contribui para sua própria produção literária. Esta idéia de leitura como alimento
é mencionada pelo próprio Cortázar quando recorda a época em que viveu nas pequenas cidades
do interior da província de Buenos Aires, diz: “devoré millares de libros” (HARSS, 1981, p. 263).
Esta afirmação ratifica o caráter nutritivo presente nos seus hábitos de leitura. Em outro momento,
ao evocar suas leituras da adolescência, se auto-define como um leitor onívero (lector omnívero) capaz
de devorar os mais variados tipos de literatura (Cf. PREGO GADEA, 1997, p. 67). E quando se
refere a influencia de outros escritores nos seus textos, afirma que todos estes textos e seus escritores
formam uma “especie de caldo cultural y vital” (CASTRO-KLARÉN, 1980, p. 33). Tudo o que leu e
tudo o que está ao seu redor, somado a sua herança cultural, se constitui em um caldo, uma mistura
substanciosa, que nutre sua vida e que ele não pode negar.
Cortázar não tem nenhum pudor em admitir que diversas leituras atuaram sobre sua atividade
literária, por este motivo não concorda com a teoria da angustia das influencias postuladas por Harold
Bloom, onde aponta a influencia como um mal que aniquila toda possibilidade de originalidade. Para
o crítico norte-americano, todo jovem poeta busca algo impossível de alcançar: a originalidade; além
do mais, ele luta contra a influência dos poetas fortes, luta contra a grandeza do poema precursor (Cf.
BLOOM, 1991, p. 18). A angustia das influências é, então, uma enfermidade que acomete o poeta
que se sente inibido diante da importância de seus antecessores. A cura para dita enfermidade está na
superação desta angustia que lhe impede de criar. Esta superação se dá na medida em que o jovem
poeta consiga se distanciar do seu precursor (Cf. BLOOM, 1991, p. 22). Do ponto de vista de Bloom,
é através da má leitura, ou do erro de interpretação dos grandes poemas, que o jovem poeta se afasta
daqueles que, de uma maneira ou de outra, influenciaram seu trabalho, traçando assim seu próprio
rumo. Ao que parece, Cortázar não sofre deste mal descrito por Bloom, não se angustia porque seus
antecessores, que estão copiosamente citados nos seus escritos, influenciaram seu trabalho; também
não teme que os críticos encontrem marcas de outros textos a sua literatura.6
A leitura faz parte do legado deixado pelos seus antecessores e estas leituras nutriram o
escritor desde sua infância. Neste sentido, analisando textos sobre sua obra, não é difícil encontrar
opiniões de estudiosos e críticos que mencionem esse desejo de alimentar-se com leituras e livros.
Este é o caso de Davi Arrigucci Jr quando reconhece os escritos cortazarianos como um “texto, que
se alimenta de outros textos” (ARRIGUCCI JR, 1973, p. 17). Do mesmo modo quando Lezama
Lima afirma ser a leitura o alimento do escritor, que o transforma e o faz crescer, como citamos
anteriormente. Falando sobre Rayuela, verdadeira antologia de seu conhecimento livresco, Jaime
Alazraki afirma que:
Todo lector de Rayuela percibe de inmediato el acaudalado bagaje de lecturas que forma el andamio
intelectual con cuya ayuda Cortázar levanta su novela. Esas lecturas aparecen a lo largo del libro a veces
6
Na entrevista a Sara Castro-Klarén, Cortázar expõe sua opinião sobre este assunto. Veja: CASTRO-KLARÉN, 1980, p. 32-33.
973
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
como puntos de apoyo sobre los cuales hace palanca la obra; otras, simplemente como nervaduras invisibles
o semivisibles que alimentan o sostienen sus páginas (ALAZRAKI, 1980, p. 259).
Ainda considerando Cortázar como um novo bárbaro, vale a pena observar o texto de Silviano
Santiago que também encontrou nos escritores latino-americanos a presença do antropófago literário
que buscava na literatura universal sua forma de expressão mais autêntica. O crítico brasileiro ressalta
o conceito de leitura como um convite para praticar a escrita. O escritor latino-americano é um
devorador de livros e a leitura de outros escritores estimula sua criação e é o princípio organizador
da sua obra. O crítico parte da noção de textos legíveis e textos escrevíveis, tratada por Roland Barthes no
seu livro S/Z.7 Os textos legíveis podem ser lidos, mas não escritos nem reescritos; enquanto que
os textos escrevíveis incitam o leitor à produção, serve de impulso para o trabalho da escrita. Neste
sentido, Santiago afirma:
...suas leituras [a dos escritores latino-americanos] se explicam pela busca de um texto escrevível, texto
que pode incitá-los ao trabalho, servir-lhes de modelo na organização de sua própria escritura. [...] O
segundo texto se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro texto, e o
leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original em suas limitações, suas fraquezas,
em suas lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo com suas intenções, segundo sua própria direção
ideológica, sua visão do tema apresentado de início pelo original (SANTIAGO, 2000, p. 20).
Silviano Santiago entende a leitura como um processo de tradução de signos. Por este motivo
afirma que o escritor ao ler, traduz, mas sua tradução não é literal; sua tradução é transformadora, pois
nela entra em jogo a imaginação criadora do leitor/escritor que ao ler acaba traduzindo, interpretando,
criticando e criando, ou seja, outorgando um novo significado ao texto lido. Aqui, o conceito de
antropofagia se aplicaria neste processo de leitura/tradução. O leitor/escritor antropófago traduz a
seu modo o texto lido; esta nova maneira de ver o suposto texto original lhe serve de suporte para sua
escrita e seu trabalho de criação.
Cortázar, como um grande tradutor, soube tirar proveito dos textos por ele traduzidos. Talvez
seja por este motivo que observamos a incontestável presença de Edgar Allan Poe o de Marguerite
Yourcenar na sua literatura, quem o escritor (e também tradutor) argentino traduziu magistralmente.
Como tradutor, ele conhecia as sutilezas que envolvem o trabalho de passar um texto, uma frase,
uma palavra de um idioma a outro. Gostava do jogo de palavras que transforma a tradução em outro
texto, uma versão muitas vezes “más rica y más metafísica que el original” (CORTÁZAR, 1995, p.
36), como ele mesmo afirmou em um texto escrito nos anos setenta, mas só publicado em 1995 na
revista Proa.
3. Considerações finais
Para concluir nosso trabalho, falta dizer que se Cortázar foi um perseguidor, como muitos
críticos assim o definem, foi um perseguidor de sua própria forma de expressão. Nesta busca, percorreu
diversos caminhos, um destes foi o da leitura, pois se sabe que possuía um vasto conhecimento
livresco. A leitura sempre esteve presente na sua vida; foi um leitor voraz, como ele mesmo confessa,
e sempre admitiu que não tinha medo que os críticos reconhecem influencias de outros escritores na
sua literatura, pois muitas de suas leituras ficaram, de uma forma ou de outra, sedimentadas no seu
trabalho de escrita.
No livro S/Z, Roland Barthes, ao analisar Sarrasine de Balzac, postula a existência de textos legíveis e escrevíveis, diz o
crítico: “De un lado está lo que se puede escribir, y del otro, lo que ya no es posible escribir: lo que está en la práctica del
escritor y lo que ha desaparecido de ella: ¿qué textos aceptaría yo escribir (re-escribir), desear, proponer, como una fuerza
en este mundo mío? Lo que la evaluación encuentra es precisamente este valor: lo que hoy puede ser escrito (re-escrito):
lo escribible. ¿Por qué es lo escribible nuestro valor? Porque lo que está en juego en el trabajo literario (en la literatura como
trabajo) es hacer del lector no ya un consumidor, sino un productor del texto. […] Por lo tanto, frente al texto escribible
se establece su contravalor, su valor negativo, reactivo: lo que puede ser leído pero no escrito: lo legible. Llamaremos clásico
a todo texto legible.” (BARTHES, 2004, p. 1-2)
7
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
O escritor argentino utiliza seus conhecimentos livrescos como fundamento de sua própria
poética. No entanto, outros ingredientes entram no caldearão do matabelé (o primitivo descrito
pelo próprio Cortazar em Para una Poética e que aqui utilizamos metaforicamente para designar o
escritor).8 Ele é o novo bárbaro que devora o legado da cultura ocidental, o sintetiza e o transforma
em um caldo substancioso que lhe serve de alimento, a maneira do escritor antropófago postulado por
Haroldo de Campos.
Referências
ALAZRAKI, J. Cortázar en la época de 1940: 42 textos desconocidos. In: Revista Iberoamericana. No 110-111.
Pennsylvania: 1980. p. 254-269.
ARRIGUCCI JR, D. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973.
BARTHES, R. S/Z. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2004.
BLANCO AMOR, J. El final del boom literario y otros temas. Buenos Aires: Ediciones Cervantes, 1976.
BLOOM, H. La angustia de las influencias. Caracas: Monte Ávila Editores, 1991.
BORGES, J. L. Biblioteca personal. Madrid: Alianza Editorial, 1998.
CAMPOS, H. de. Da razão antropofágica: diálogo da diferença na cultura brasileira. In: Metalinguagem e outras
metas. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 231-255.
CASTRO-KLARÉN, S. Julio Cortázar, lector. In: Cuadernos Hispanoamericanos. Nº 364-366. Madrid: Ediciones
Mundo Hispano, oct-dic 1980. p. 23-31.
CORTÁZAR, J. Translate, traduire, tradurre: traducir. In: Proa. Nº 17. Buenos Aires: Editorial Proa, mayo/
junio 1995. p. 35-38.
_____. Notas sobre lo gótico en el río de la Plata. In: Obra Crítica / 3. Madrid, Alfaguara, 1994 a. p. 77-88.
_____. Para una poética. In: Obra crítica / 2. Buenos Aires: Alfaguara, 1994 b. p. 265-288.
GONZÁLEZ BERMEJO, E. Revelaciones de un cronopio. Conversaciones con Cortázar. Buenos Aires: Editorial
Contrapunto, 1986.
HARSS, L. Cortázar, o la cachetada metafísica. In: Los Nuestros. Buenos Aires: Sudamericana, 1981. p. 252300.
LEZAMA LIMA, J. Cortázar y el comienzo de la otra novela. In: CORTÁZAR, J. Rayuela. Edición Crítica.
México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 710-719.
RAMA, A. Más allá del boom. Literatura y mercado. Buenos Aires: Folios Ediciones, 1984.
SANTIAGO, S. Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
YURKIEVICH, S. Julio Cortázar: mundos y modos. Barcelona: Minotauro, 1997.
No texto Para una Poética, Cortázar compara o poeta ao homem primitivo (o matabelé), afirma que ambos “reconoce[n]
y acata[n] las formas primitivas; formas que, bien mirado, sería mejor llamar ‘primordiales’, anteriores a la hegemonía
racional, y subyacentes luego a su cacareado imperio.” (CORTÁZAR, 1994, p. 277)
8
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Ir para o Sumário
As construções do sentido
de violência nas práticas culturais
do Sertão Central do Ceará
Maria Mônica Ramos de MELO
(UECE/FECLESC)
Claudiana Nogueira de ALENCAR
(Orientadora/UECE/FECLESC)
RESUMO: Este trabalho é parte de um projeto mais amplo intitulado “As construções do sentido da violência
das práticas culturais do Sertão Central do Ceará” que é uma proposta de investigação das práticas discursivas
e práticas sociais vivenciadas no Sertão Central do Ceará a partir do estudo da constituição dos sentidos nos
diversos jogos de linguagem reais do cotidiano e suas repercussões na vida social. Nosso objetivo é analisar os
processos semânticos discursivos de nomeação e designação de gênero para entender como a prática cultural
do forró “pé de serra” reifica sentidos para formas de violência cotidiana. Utilizamos como aparato teórico e
metodológico a pragmática (WITTGENSTEIN, 1989) e a análise do discurso crítica (FAIRCLOUGH, 1992,
2003). Os dados coletados até o momento nos levam a entender que a linguagem corporifica a violência
através dos atos de fala de nomeação e designação que constroem e reivindicam identificações tradicionais para
homens e mulheres do campo, legitimando ideologias machistas.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Pragmática; Identidade; Violência.
RESUMEN: Este trabajo es parte de un proyecto más amplio titulado “La construcción de los significados de
la violencia en las prácticas culturales del interior de Ceará Central” que es una propuesta de investigación de
prácticas discursivas y prácticas sociales vivenciadas en el interior del Ceará Central el estudio de la formación
significados de los distintos juegos de lenguaje real de la vida cotidiana y sus repercusiones en la vida social.
Nuestro objetivo es analizar los procesos de semántic-discursivos de nombramiento y designación de gênero,
para comprender como la práctica cultural del forró “pie de las montañas” reificaban significados de las formas
de violencia cotidiana. Utilizarse como aparato teórico y metodológico, la pragmática (Wittgenstein, 1989) y
análisis crítico del discurso (Fairclough, 1992, 2003). Los datos recogidos hasta el momento nos llevan a creer
que la lenguaje corporifica la violencia a través de los actos de nombramiento y designación que constoren la
demandan y identificaciones tradicionales para los hombres y mujeres del campo, haciendo la legitimación de
las ideologías machistas.
PALAVRAS-LLAVE: Discurso; Pragmática; Identidad; Violencia.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Análise da conjuntura ou condições de produção (distribuição)
Como a pesquisa está em fase inicial o que se percebe é que em Quixadá o público do forró
pé-de-serra está mais voltado para os idosos, os quais em sua grande maioria não curtem o forró atual,
pela questão das letras serem consideradas “imorais’, diferentemente do pé-de-serra, em que suas
letras retratam principalmente o sertão”.
As pessoas da cidade de Quixadá que apreciam o forró pé-de-serra podem escutar esse
gênero musical, de segunda a sexta-feira, a partir das 17 horas, o programa forrozão na casa grande,
na FM sitiá de Quixadá. No Bairro Campo Novo, há um local onde as pessoas podem apreciar esse
gênero, além do Balneário Clube, que nas quintas-feiras também divulga o FPS.
O forró pé-de-serra é caracterizado por ter como fonte de inspiração artística o universo
rural do sertanejo e tem sua origem em meados da década 1940 no Nordeste, É tocado por trios
de zabumba, sanfona e triângulo (SYLLOS; MONTANHAUR, 2002) dando característica timbrica
singular à música e na dança é comum vermos o passo básico e variações simples, tais como giros
simples da dama, não sendo muito freqüentes, estes tipo de passos.Luis Gonzaga, Jackson do Padeiro
e Dominguinhos são exemplos de músicos que tocam FPS.
O repertório de Luis Gonzaga demonstra a permanência de características relacionadas
com a tradição. Esse repertório abrange aspectos que enfatizam as culturas caboclas das fazendas,
cujas características afloraram como um resultado do projeto econômico colonial; precisamente o
Nordeste tradicional se desenvolveu a partir de dois sistemas de economia: a plantação de canade-açúcar na região costeira e a criação de gado no interior. “Casa grande” e a “fazenda” foram os
centros de decisões políticas, administrativas e de desenvolvimento da vida sociocultural.
Em relação ao Nordeste, o estudo sobre as áreas culturais elaborados por Diegues Júnior
(1960) representa uma importante ajuda para o pesquisador. Este autor destaca duas principais áreas
culturais: O Nordeste agrário do litoral e do sertão nordestino. O primeiro na sua descrição, o mais
caracterizado pela sua mistura étnicos entre europeus e africanos, relaciona-se com o plantio de canade –açúcar, é representado pela casa grande e o engenho, onde se concentravam os poderes político
e socioeconômico.
Cita Diégues Júnior:
... a economia açucareira, a princípio com o engenho é hoje com a usina, tornou-se o principal responsável
pela formação da sociedade agrária, de linhas aristocráticas , de características patriarcais. (DIEGUES
JUNIOR, 1960,p. 20)
Em torno do litoral agrário que compreende os Estados de Pernambuco, Alagoas, parte da
Paraíba e do Rio Grande do Norte, Sergipe e Bahia, se formaram vilarejos, e depois cidades, como uma
extensão dos engenhos, Assim a influência do ambiente rural do engenho penetrou nas novas áreas
urbanas. As usinas, que os sucedera, ainda se mantiveram como o centro para o desenvolvimento das
relações sociais, das descrições políticas, do crescimento demográfico. O continente africano, como
principal força de trabalho, trouxe grande contribuição do processo de caracterização dessa região.
O interior do Nordeste, extensão dos povoados litorâneos, foi, paulatinamente sendo
ocupado por criadores de gado que ali encontraram uma área propícia a sua atividade. Assim surgiram
as fazendas que se constituíram num outro ponto de evolução da vida social. O canal de comunicação
foi o Rio São Francisco que faz a ligação entre os vários estados nordestinos. Desce o século XVI
grupos pioneiros, criadores de gado, partiram da Bahia e de Pernambuco desbravando terras onde
estabeleceram suas fazendas.
Não se pode omitir o fato de que a diversificação cultural no Brasil tem sua origem no princípio
formador de organização das relações sociais e políticas: o crescimento da família, a língua e a religião.
Para Diegues Júnior (1960), estes dois últimos aspectos – língua e religião – são os principais
elementos que configuraram a cultura brasileira, fazendo aparecer características específicas. A
riqueza étnica, constituída à base da miscigenação, acrescidas a língua e a religião, são elementos
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
indispensáveis para se entender melhor o processo de crescimento da música popular nordestina, isto
é, o desenvolvimento da vida musical, nos engenhos e nas fazendas do sertão.
Também se deve evidenciar a organização da vida social no mundo rural. Nesse sentido,
os ritos do catolicismo brasileiro têm funcionalidade, pois promovem a solidariedade entre vizinhos,
entre famílias e indivíduos. Uma capela existe na maioria das fazendas, se torna o centro da vida social:
tudo ocorre em torno da capela: nas celebrações do padroeiro ou de outros santos importantes na
vida dos grupos familiares, além de cada grupo eleger seu patrono cada família também escolhe o seu,
que é festejado na data do nascimento.
Na obra, a invenção do Nordeste e outras artes de Durval Muniz Alburquerque podemos
entender que o Nordeste foi construído à partir de uma diversidade de discursos, os quais foram
esteriotipando a região, seja na música, na literatura, ou em outras práticas discursivas.Uma dessas
construções concebe o Nordeste como espaço da saudade, devido à imigração de milhares de
habitantes para o Sul. Deixar suas terras significava buscar novos horizontes e deixar de ser “gente
de alguém “ o Sul se tornava a esperança de uma vida melhor para essas pessoas. Aí então podemos
perceber que já se cria uma imagem de uma terra não apropriada para viver.È construída também a
imagem de Nordeste seco, onde a terra não produz por falta de chuvas.
A música de Luís Gonzaga constrói imagens à respeito do nordestino, ou seja representa a
identidade regional de seu povo. Os elementos ultilizados para essa construção são vários, dentre eles
podemos destacar: o próprio tom da voz de Luís Gonzaga, sua forma de cantar, as expressões locais
que ele ultiliza, os elementos culturais populares e principalmente os rurais, até mesmo o sotaque vai
“significar” o Nordeste. Este último elemento funciona como um dos primeiros elementos que causa
identificação e também esteriotipa a região e seus habitantes.
Para Durval o sucesso de Luís Gonzaga foi fruto por um lado de um código de gosto
que valorizava as músicas dançantes, as de natureza lúdica e, por outro lado, atendia o consumo
crescente de signos nordestinos e regionais como signos da nacionalidade. Mas seu maior se dá entre
os migrantes nordestinos que buscava resgatar os seus valores.
Segundo Luís Gonzaga ele cantou as coisas positivas e também os problemas da região
Nordeste. O cantor vê a seca como o principal problema da região. Essa música produz uma visão do
Nordeste e se apropria de temas e imagens já cristalizados, ligados á própria produção cultural: a seca,
o Padre Cícero, o cangaço, a questão da honra. Este Nordeste de povo sofrido, simples e resignado,
devoto e capaz de grandes sacrifícios é reproduzido na música de Luís Gonzaga.
A música gonzageana contribui para reforçar a percepção do Nordeste como sendo uma
região à parte do país e uma oposição ao Sul. Em suas músicas o sertão é o lugar dos bons valores,
dos tradicionais e a cidade é o local da perda desses valores.
Enfim Luís Gonzaga foi o artista que legitimou o Nordeste como o espaço da saudade, não
da escravidão, do engenho, das casas- grandes, mas a saudade do sertão, de sua terra, de seu lugar.
2. Revisão teórica
Nesta pesquisa utilizarei a pragmática (WITTGENSTEIN, 1989) e a análise do discurso
crítica (FAIRCLOUGH 1992, 2003) como aparato teórico
Para Wittgenstein a linguagem se apresenta em segmentos múltiplos e diferenciados, sendo
assim ela não pode ser concebida como uma estrutura lógica e formal.
Wittegnestein entende a linguagem como uma forma de vida, ele diz que para cada situação
usamos um jogo de linguagem, considerando a diversidade dos jogos, podemos falar em diversas
formas de vida.
O autor questiona “O que designam, pois, as palavras dessa linguagem? – O que elas
designam, como posso mostrar isso, a não ser na maneira do seu uso?...” Nesta passagem entendemos
que palavra tem uma designação de acordo com o seu uso.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A análise do discurso se baseia no funcionalismo que utiliza a linguagem em uso, diferentemente
do paradigma formalista no qual o discurso é definido como a unidade acima da sentença.
A Teoria Social do Discurso é uma abordagem de Análise de Discurso Critica (ADC),
desenvolvida por Norman Fairclough, que se baseia em uma percepção da linguagem como parte
irredutível da vida social dialeticamente interconectada a outros elementos sociais (Fairclough, 2003a).
Podemos compreender que a linguagem está ligada diretamente com o social. No entanto podemos
dizer que a linguagem utilizada no forró, interfere diretamente na sociedade. Baktin apresenta (2002)
o meio social como o centro organizador da atividade lingüística.
Nesse sentido, Fairclough refuta naturalmente, o conceito saussuriano de parole, que vê a
fala como atividade individual e que, portanto, jamais se prestaria a uma Teoria Social do Discurso.
Aí a crítica que Fairclough faz a Saussure por ele vê a fala como uma atividade individual. Fairclough
define discurso como forma de prática social, modo de ação sobre o mundo e a sociedade um elemento
da vida social interconectada a outros elementos.
Tal definição vai ser constituída pela Teoria Social do Discurso, a partir das idéias de Foucault
(2003, p. 10) que destaca a face constitutiva do discurso, concebendo a linguagem como uma prática
que constitui o social, os objetos e os sujeitos sociais. Devemos lembrar que a reflexão entre discurso
e sociedade está inserida no contexto da modernidade tardia ou do novo capitalismo. A partir desse
contexto, Giddens(2002) reflete sobre o conceito de identidades. As identidades são vistas por ele
como uma construção reflexiva, em que as pessoas operam escolhas de estilo de vida, ao contrário
das sociedades tradicionais, em que as possibilidades de escolhas são pré- determinadas pela tradição.
Porém, um problema na Teoria de Giddens é que ele privilegia as “oportunidades” geradas pela
globalização e não percebe que para a maioria só restam os “riscos”.
É preciso sabermos que reflexibilidade refere-se à possibilidade de os sujeitos construírem
ativamente suas auto-identidades, em construções reflexivas de sua atividade na vida social. Por outro
lado, identidades sociais são construídas por meio de classificações e mantidas discursivamente. Assim,
podemos perceber que se as identidades são construídas discursivamente, elas também podem ser
contestadas no discurso.
A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Hall (1992, p.07)
resume o argumento da teoria da social da seguinte forma: “as velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o
indivíduo moderno até que enfrentamos atualmente é a chamada ‘crise de identidades’”.
Hall percebe na história do conhecimento três concepções de identidade: a do sujeito do
Iluminismo, a do sujeito sociólogo e a do sujeito pós- moderno. O sujeito do Iluminismo era muito
“individualista”, consistia num núcleo interior. O sujeito sociológico tinha uma concepção “interativa”
da identidade e do eu, e essa concepção da identidade é que desencadeiam a “interações” do eu com a
sociedade. Todo o processo pelo qual o sujeito sociológico passou é que desencadeou a concepção de
sujeito pós- moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.
Na pós- modernidade, a identidade torna-se uma “celebração móvel”, formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam (HALL,1987). Vemos aí que o sujeito fica disperso, não sabe ao certo que
identificação, ele segue, não há uma unificação, ele segue diferentes identidades em diferentes momentos.
Desse modo, podemos entender que a globalização, um dos fenômenos mais marcantes dessa época em
que vivemos, causou um grande impacto na questão da identidade cultural.
As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e
permanente. Nesse contexto da globalização, o tempo e o espaço são também as coordenadas básicas de
todos os sistemas de telecomunicações – deve traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais.
Quando se fala em cultura popular, é preciso compreender que com a globalização à visão que
tínhamos à respeito do assunto precisa ser mudada, pois não se pode dizer que uma prática cultural
permaneceu da mesma forma antes deste processo. Entendemos que as culturas populares passaram a
estabelecer relações com os meios de comunicações, afim de se adequar a esse novo mercado.
980
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
3. Análise
Neste trabalho, trago uma pequena amostra de análise das canções do gênero Forró de Péde- Serra através da canção de Nelson Valença, com o título de “a mulher do meu patrão”.
A MULHER DO MEU PATRÃO (1974)
Eu tenho pena
Da mulher do meu patrão
Muito rica, tão bonita
Ai meu Deus que mulherão
Não tem meninas
Para não envelhecer
Mas nervosa sofre muito
Por não ter o que fazer
No atiço da panela,
No batuque do pilão
Tem somente quinze filhos
Mais o xaxo do feijão
Sarampo, catapora,
Mais a roupa pra lavar
Resfriando, tosse braba.
Lenha para carregar
Pote na cabeça
Tem xerém para cozinhar
Tira o leite da cabrinha,
Tem o bode pra soltar
Vivo com minha nega
Num ranchinho que eu fiz
Não se queixa não diz nada
E se acha bem feliz
Com tudo isso
Ainda sobra um tempinho
Um agrado um carinho
Eu não quero nem dizer
Com tudo isso
Ainda sobra um tempinho
E um moleque sambudinho
Todo ano é pra nascer.
Ao analisar a letra desta música podemos perceber que ideologias são criadas e consolidadas
através do discurso machista. Considerando o conceito de ideologia de Fairclourgh (2001,p.117), no
qual ele diz que ideologias são significações/construções da realidade(o mundo físico, as relações
sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das
formas sentidos das práticas discursivas e que contribui para a reprodução ou a transformação das
relações de dominação. Percebemos que na música quando ele se refere à mulher do patrão, ele a
critica, “por não ter o que fazer”, isso já faz parte de uma ideologia a respeito da mulher, na qual
acredita-se que a mulher tem a obrigação de ser doméstica e submissa.
Vemos na segunda estrofe uma designação para o que seria considerado como a verdadeira
mulher sertaneja, suas “obrigações” e a sua submissão, sustentado por um discurso machista. Quando
ele diz que vive com a “nega” dele em um ranchinho e ela não se queixa de nada. Aí está explícita a
submissão da mulher sertaneja. Quando o autor nomeia a mulher dele de “nega” designa uma mulher:
simples, castigada pelo sofrimento e com muitos filhos, aspecto típico do sertanejo.
Na última estrofe, percebemos que esta mulher com todos seus obstáculos se considera
feliz, pois ela não percebe como sua vida poderia ser de outro modo, por conta da sua identidade ter
981
sido construída da maneira tradicional. Logo, por esse padrão identitário tradicional pelo qual toda a
carga de trabalhos domésticos é vista como obrigatoriamente responsabilidades do gênero feminino,
sua forma de viver é aceita como fazendo parte da sua natureza, não só por personagem feminina,
mas também tal padrão é considerado o desejável para a sociedade. Pode-se dizer, assim, que há uma
naturalização desse sentido de submissão para o gênero feminino, um sentido que se torna ideológico
na medida em que estabelece relações de poder social.
Considerações finais
Esperamos contribuir para uma mudança social, a parir da compreensão de que as formas
lingüísticas como formas da cultura constroem identidades e estabelecem, muitas vezes, relações
de dominação. Tais relações e identidades tradicionais devem ser questionadas e repensadas como
ideologias construídas no discurso para que possamos pensar em uma sociedade mais justa.
Esse projeto tem o apoio da UECE (Universidade Estadual do Ceará) e do Governo do
Estado Ceará.
Referências
WITTGENSTEN, investigações filosóficas, São Paulo,Ed. Nova Cultural, 1989.
HALL, Stuart, a identidade cultural na pós- modernidade, Trad. Tomaz Tadeu da Silva , Rio de Janeiro,
Ed.DP&A,1997.
RESENDE , Viviane Melo e RAMALHO, Viviane, análise de discurso critica,São Paulo,2006.
RAMALHO, E. B. Luiz Gonzaga: a síntese poética e musical do sertão. São Paulo: Terceira Margem, 2000. v.
1. 190 p.
MARCAS DE IRONIA NO JORNAL DE TÍMON,
DE JOÃO FRANCISCO LISBOA
Maria Rita SANTOS
(Universidade Federal do Maranhão)
RESUMO: Abordagem da ironia no Jornal de Tímon, de João Francisco Lisboa. Nessa obra, a ironia se irrompe
do ajustamento entre atitude/situação. Por serem do mesmo tronco, os diversos processos de expressão irônica
guardam um traço comum – a evocação da idéia do riso (sub-risos). Sem poder ser diferente o riso e o sorriso
têm uma função social na proporção em que correspondem a algumas exigências da vida comum, de onde
resulta a significação cultural e ou as dimensões sociais. A ironia tem assim a sua marca social permeada pela
base cultural e revelada em seus vários níveis. O riso é uma ação polivalente, porque proporciona ao homem
assumir várias posições face ao mundo. Assim, observa-se bem marcada/demarcada a ironia processada por
Tímon, no seu Jornal – pretexto com base cultural, política e social.
PALAVRAS-CHAVE: Níveis irônico; Social; Cultural; Político.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Tímon, para o Maranhão de sua época constrói uma arquitetura irônica ambivalente sim,
pelo que agradável para se compreender o mau exercício político pela trilha da construção do riso
carnavalesco que, não raro, explode em gargalhada (júbilo).
Esse modo risível proposto por Tímon quer, antes de tudo, alcançar e expor a supremacia
estabelecida para, alfim, diluí-la, revertê-la, invertê-la ou subertê-la em favor de uma mudança geral.
Ou seja: condizente ou representativa do processo histórico vivenciado ou objetivado. Dessarte, o
risível brota das malhas de um estado crítico e, por isso, sua base não é senão uma visão de mundo.
Cada época ou cada indivíduo possui sua concepção de mundo e Tímon, pela sua expressão,
incontestavelmente, comprova o afirmado. Desse modo, por via de uma estrutura lingüística, Tímon,
ao apresentar a situação do seu momento, fá-lo para afirmá-lo ao mesmo tempo que a nega ou a
renega pela sua atividade exclusivamente irônica.
A cosmovisão de Tímon permite que o homem da sociedade por ele escolhida seja, a
um tempo, sujeito e objeto do rísivel, pelo que, dominados e dominadores, dirigentes/dirigidos,
nas suas respectivas ações políticas, são colocados alternada ou simultaneamente numa ou noutra
posição no seio do processo-histórico. É a transposição lingüística do discurso cultural da época
com vista a desestruturá-lo.
Pelo exposto, depreende-se que todo texto que signi-faz o Jornal de Tímon, em análise, está
de lés a lés eivado de atitude irônica. De outro modo: a totalidade textual em causa é um tecido de
base extremamente irônica, onde a ironia é processada em vários graus e o título é já um primeiro
indicativo. Ao longo da tessitura, apreende-se uma profunda estruturação parodística que eleva o texto
ao estatuto de narrativa dialógica. Parodiar é apontar, no vigente, a dimensão do obsoleto nele contido,
abrindo-se arestas para a manifestação da dúvida e daí possíveis questionamentos a propósito dos
valores tradicionais. Enquanto parodiador, Tímon assume sua cultura para, por fim, recusá-la, o que se
processa por meio da posição de confronto em que coloca as várias culturas (antigas e modernas) os
vários regimes e facções políticas e os indivíduos.
Um outro grau irônico tecido por Tímon é o humor. Este, na sua peculiar ação de inverter
valores consagrados, posiciona-se bem mais sutil que a ironia satírica, mais sério que cômico, o que
não impede a gestação do sorriso ou riso e, até mesmo, a gargalhada. Essa atitude, a um tempo séria
e galhofeira, quer, antes de tudo, formar um ambiente de conscientização para reclamar uma eficaz
mudança já visivelmente necessária, inadiável. Entrementes, é por meio da estrutura paródica que
Tímon denuncia a derrota do poder instituído. É por meio deste esteriótipo intencional (paródia) que
almeja agredir ou recusar os significantes, reforçando o significado ou vice-versa num querer mostrar
que só é possível haver muito riso porque há, de fato, pouco siso.
Em desprezo à repetição, a mostra do risível, estruturada por Tímon, ater-se-á apenas à
parte dedicada aos “Partidos e eleições no Maranhão”. A propósito, veja-se este passo:
Acordado este ponto, torna S. Exc. á roda dos amigos, e cuida-se de veras em metter mãos á obra. Na
secretaria tinham apenas ficado dous officiaes mais moquencos e experimentados em crises taes; mandaramse vir mais alguns, e começou então aquillo a que a opinião maliciosa e desvairada tem chamado testamentos
presidendeaes. (LISBOA, 1852, p. 111)
Considerando-se o contexto, observa-se o ajustamento do emprego dos adjetivos maquencos,
experimentados, maliciosa e desvairada numa nítida atitude de descompromisso respeitante à afirmação/
negação. Expectativa de envolver o receptor em busca de adesão. No caso, em primeiro plano, pelo
riso carnavalesco debochado, demolidor, escarnecedor, aderente e comprometido, por conta do
estruturado perfil da ridicularização para garantir pela inevitabilidade o aval do receptor. Socorrendose dessa atitude comunicativa, Tímon sugere o alvo para onde o enunciado aponta. Ao mesmo tempo
que diz, mobiliza-se também lingüisticamente no sentido de se desembaraçar da responsabilidade do
que diz, quando utiliza a expressão aquillo a que.
Assim, a relação texto/contexto faz brotar um novo texto a eles paralelo (atitude
própria da paródia) que reclama decodificação. Essa espécie de sombra textual, que também
é texto, pode perfeitamente ser vista sob vários ângulos, aparece com o ranço do paradoxal
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
(comportamento paródico) e pela trilha do fato histórico. É um terceiro sentido emergente
dos dois outros referidos anteriormente – texto/contexto. Esse modo de processar o texto
denota a sutileza da confecção macrossintática de Tímon – ao mesmo tempo que afirma
(registra por júbilo), nega (critica ou questiona para reflexão) no intuito de destruir ou inibir
o mau exercício da atividade política e do consumo passivo da ideologia dominante, em favor
do bom exercício político. A crítica referente ao binômio dominado/dominador é perceptível
pela expressão definida ou determinada a opinião maliciosa e desvairada, onde o artigo definido a
reclama importância na medida em que remete o leitor para informações antecedentes postas
ou pressupostas que muito têm a ver com a contextualização (significação pelo contexto dado).
O registro linguístico denota tratar-se de um juízo que, não obstante as conseqüências, ainda
não é de todos (sociedade ou maioria desta), porém apenas dos mais perspicazes, e Tímon é
um deles. A repassagem da idéia de loucura é para ressaltar o grau de conscientização política
de alguns poucos, no que destoam da maioria – loucura/não-loucura. Posição antípoda da
expectativa de, pelo menos, no futuro a maioria, pela conscientização política, venha a possuir
o juízo “malicioso” e “desvairado” da minoria consciente, anulando assim o espaço da nãoloucura ou disso pelo menos se aproximando.
Corroborando, notifique-se que o louco, o bobo e o palhaço, tanto na Antigüidade
Clássica quanto na Idade Média, eram elementos que, pelo seu grau de conscientização, almejavam
mais intensamente as transformações sociais. Mas, como tal pretensão era sempre recusada por
meio de várias manobras, no mais das vezes os indivíduos mais sagazes de uma dada sociedade
socorriam-se, por conta de suas pretensões, do recurso do estado de louco, bobo ou palhaço para
mais comodamente agredirem e transgredirem o convencional senilizado e tudo por conta da (s)
mudança (s) ambicionada (s).
A análise supra conta ainda com o recurso do itálico, que destaca a expressão arrematante
do trecho – testamentos presidenciaes.
Dissimulando descompromisso ou imparcialidade (posição de cronista), Tímon afirma
aquilo que exatamente pretende negar (inversão). A sua descrição-argumentativa do processo político
aponta íntima relação entre a forma escolhida de dizer e a seleção conteudística, mostrando que o
descrever possui o seu lado opcional, a sua dimensão de compromisso.
Como se vê, os adjetivos inicialmente destacados e semanticamente considerados aparecem
no texto, qualificando os designativos que configuram o mau exercício político atinente ao contexto.
É nessa confluência que o texto vai signi-fazendo o contexto até que aquele seja a representação deste
(concepção de mundo).
Prosseguindo-se, segue a transcrição:
O Snr. Montalvão de Mascarenhas, mal que se viu installado no governo e no paço, desapressado da
importuna e constrangida hospedagem do seu illustre antecessor, fez consigo termo de verificar bem
e conscienciosamente a sua posição política e particular, para dahi lançar as suas contas e proceder
ulteriormente como dictassem os seus interesses, quero dizer, os da Província, dos quaes um bom presidente
não sabe nem é capaz de separar os proprios. (LISBOA, 1852, p.129)
Aqui o peso irônico recai e é denunciado sobretudo pelos termos e expressões de verificar
bem e conscienciosamente a sua posição política e particular. Os termos bem e conscienciosamente são usados
em atitude de reforço para realçar única e exclusivamente o lado individual da ação representada,
pelo que os termos para o diante política e particular não aparecem com marca opositiva individual
x social, antes como, sinônimos (ações identitárias). Assim, a conjugação substantivo x advérbio
denota consciência cuidadosa no plano individual referente à manutenção do processamento do mau
exercício político (injusto e arrasador), e não consciência escrupulosa em relação ao bom exercício
político ao nível social. O que ora se expende é ratificado ainda pelos termos interesses e Província,
onde a inicial maiúscula do segundo substantivo evoca mais a idéia de coletividade que uma mera
observação às regras ortográficas. Para tanto, basta que se coteje Província com o possessivo seus, que
precede o primeiro termo em questão.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A ação política é colocada, no seu desenvolvimento, de acordo com os interesses individuais
e/ou com os interesses da elite minoritária (evocação do nepotismo) jamais de acordo com os
interesses do povo e/ou da maioria deste.
A expressão quero dizer é explicativa e aparece como ênfase à aura irônica previamente
instaurada e esparramada no trecho. As vírgulas usadas antes e depois representam a compulsória
entonação, o que auxilia infinitamente a repassagem da proporção atitudinal de Tímon. Em verdade,
é um exemplo de infiltração da enunciação no enunciado como deve ser.
O complemento restante do trecho: dos quaes um bom presidente não sabe nem é capaz de separar os
próprios, enquanto parte da coordenação sintática para construção do sentido do enunciado, homologa
a extensão irônica de Tímon, onde se apreende uma perfeita dissintonia intencional entre o posto e
o pressuposto. Malgrado a noção opositiva, apreende-se a intenção reflexiva pelo confronto entre o
bom e o mau presidente. A dimensão irônica agasalha ao mesmo tempo dois matizes que se interferem
para melhor representar a intenção tímoniana – paródia e humor.
Considerando-se a totalidade do trecho tem-se a revelação da verdade pelo relevo do aspecto
negativo da situação (ação política). Trata-se de uma atitude cômico-séria. No dizer de Bergson é urna
transposição lingüística. É, pois, neste limite que o cômico se irrompe e o risível se estrutura para
escavar o espaço da ironia, do humor, da sátira, da paródia e em várias dosagens.
Na expressão um bom presidente, o artigo indefinido (morfema) ao mesmo tempo que remete
o discutível e confrontável para Montalvão de Mascarenhas, remete também para informações
anteriores/posteriores constantes a nível de posto ou pressuposto respeitante ao teor caricatural de
outras personagens detentoras do poder maior, confeccionadas por Tímon. É o cotejo do aspecto
cômico com os demais aspectos encontráveis em tudo e em todos no jogo das relações homem/
homem/mundo. Por conta disso, é a paródia da paródia, isto é, coexistência de dois textos ou de duas
tessituras paralelas interferentes e dependentes, que faz fluir para ser fruído o texto do texto, no texto,
pelo texto.
Vale destacar que Montalvão (protótipo do mau presidente), semelhantemente aos demais
de sua estirpe, está sempre voltado para a ação política em favor de seus interesses. A política, assim
exercida, vê nesses interesses os da comunidade, o que não é nem falso nem verdadeiro, na medida em
que tem procedência na imprevisibilidade peculiar ao Homem. Por essa óptica, os interesses sociais
são exclusivamente particulares dos governantes e é nessa concepção de homem público que repousa,
primeiro o cerne da manutenção do mau exercício político.
Montalvão de Mascarenhas é um modelo de governante que já existiu, existe e existirá, o que
só depende do consentimento popular. Forma e motives não estão em questão e nem é preciso.
A título da ampliação do que se pretende ratificar, segue o trecho: “Este de sua parte dedicouse de todo coração a resolver o seguinte problema: obter o diploma de bacharel com o menor estudo,
e com a maior despeza possível.” (LISBOA, 1852, p. 149)
O plano irônico aqui se apresenta com sabor visivelmente satírico.
A encarnação do tipo serve para ridicularizá-lo de modo profundamente extensivo por
conta do objetivo pré-estabelecido – retratar o mau exercício político para destruí-lo em favor de um
procedimento novo e adequável aos anseios da maioria social.
Assim, com base numa pintura exata da verdade concebida, o cômico flui, destacando-se,
e tudo porque já se encontra embutido no modelo rascunhado. No caso vertente, o satirista Tímon
percebe e estrutura o tipo, salientando a visível deformação com objetivo de garantir a sustentação
de sua tese. Paralelamente, facilita a apreensão da totalidade em crítica (por comparação) em favor da
conscientização e devida repreensão indispensáveis, dirigidas a dominadores e a dominados.
Desse modo, o esboço do barechal (Afrânio) releva a má atitude dos governantes
a propósito da cidadania. Em menor escala, releva também o mau do direito/dever político
processado e efetuado pelos governados no tocante ao consumo passivo, pelo que endossante
da ideologia dominante. No caso, diz respeito aos critérios da escolha de bolsistas da Província
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
(protecionismo). Acresce-se ainda, como saliência do objeto ridicularizado, a visão falseada ou
dissimulada do molde intelectual como reflexo da má atitude política no prioritário sistema de um
governo sério educação/cultura/instrução.
Assim é, pois, a partir do expendido, que o irônico se processo estruturando o cômico,
que reclama o riso (júbilo pelo desejo de renovação). Trata-se, pois, de uma crítica pelas malhas do
“fazer pouco”; logo, é troça. Esta, enquanto parte da sátira, é caricatura. A caricatura é uma amostra
dolosa ou propositada da deformação para troçar e troçando ou ironizando, Tímon vai afirmando o
esclerosamento da ideologia dominante por conta do escopo pretendido – desvelar a dimensão do
mau exercício da atividade política. Por esta trilha aspira à morte desse mal (contra ideologia) efetivado
por dominantes e dominados (cada um a seu modo) Em suma: a afirmação/negação simboliza o
extermínio do mal potente, porque grassante ou contaminador pela falta de contestação, que é já uma
forma de endosso.
Mas não se deve esquecer que, à proporção que o satirista afirma, nega e vice-versa, numa
visão invertida de mundo não é senão a estruturação do humor, que é um matiz irônico. No caso, a
afirmação/negação requer o riso de júbilo no afã do renascimento. Ademais, é um modo de formar uma
consciência que bem pode desembocar na formulação de uma contra-ideologia. Esta, uma vez intuída
e endossada pela maioria social, bem pode trabalhar com mais eficácia na direção da reformulação
aspirada. Numa operação desse quilate importa ressaltar que a retórica, enquanto argumentação
utilizada por Tímon, prova ser um método possível e indispensável na comunicação ou na informação.
Nessa altura é que se compreende quão valiosa e útil é a complexidade da linguagem.
O Jornal de Tímon, enquanto comunicação política, é um texto satírico (irônico) por excelência
e um excelente exemplo de estruturação argumentativa (rede de relações que fazem o texto), Por
intermédio dos níveis maléficos enfocados é que Tímon, sustentando sua tese, dialoga com o leitor
na esperança de persuadi-lo e arrancá-lo da passividade em que se encontra para, juntos, refletirem
sobre o mal do caráter político em suas nuanças. No caso em discussão, a incompetência, acrescida de
atitudes similares, a saber: vaidade, sandice, engodo, desmando, desrespeito, perdularismo, ganância –
geradoras de crise – são postas em estado risível em favor de mudanças.
Retomando o trecho, destaquem-se marcas linguísticas que testemunham a enunciação,
corroborando assim o até agora discorrido: menos estudo e maior despeza. Esse jogo de contrários
complementares (noção oximorizada), permitido pela complexidade da linguagem, instaura e sustenta
uma dimensão irônica que, em primeiro tempo, se gradua satírica e, por último, pormenoriza-se
caricatura, O primeiro nível remete para a fragilidade de conhecimento do bacharel (Afrânio), o que
indica tratar-se de um bacharel arranjado, negociado (de direito, não de fato). Pelo despreparo, seu
conjunto de atitudes mais as circunstâncias contextuais encarregam-se de tecer o volume caricatural
que se lhe torna peculiar, assegurando a universalidade do riso daí resultante – riso carnavalesco. A
segunda expressão menor despeza, enquanto parte do paralelismo já aventado, assinala prodigalidade,
alienação e inércia com ranço de nepotismo, na medida em que recebia obséquios do governo da
Província durante seu período de “estudante de direito” em Olinda. Assim, o bacharel é um tipo
linguisticamente representado para reflexão de um dos níveis do mau exercício da atividade política.
A utilização do termo obter também aponta na mesma direção, na medida em que é empregado
no sentido do ganho fácil, “generosidade”, e não no sentido de progresso intelectual.
O destaque que segue é um exemplo que encerra mais claramente uma particularidade curiosa
constante na totalidade textual – a conjunção de dois ou mais degraus irônicos: “Desembargado que
seja o novo presidente, ficão para logo sabidas como que por milagre a sua pátria natal, a sua família,
as suas mais intimas relações, e toda a sua vida tanto publica como particular.” (LISBOA, 1852, p. 140)
Pela estruturação sintagmática percebe-se o entrecruzamento de dois planos irônicos – o
humor e a caricatura, confirmando de resto a profundidade e a extensão irônicas que se vem alegando
no que diz respeito à feitura textual.
No caso em exame, a enunciação se assinala em primeiro plano, sobretudo pela tendência à
meticulosidade. O mal enfocado é mostrado a partir da interiorização factual. Com a ânsia da clareza,
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
aponta o modo (ação) como o grupo ligado ao poder sempre recebia os presidentes nomeados (não
eleitos) para a província. Entretanto, repare-se bem, a crítica objetivada (pedido de reflexão) não recai
necessariamente sobre o grupo de apoio ou de sustentação do poder, mas antes sobre a maneira de
tomada de atitudes do grupo em questão. É o particular processando o universal. Por conta disso,
as atitudes enunciadas carregam um ressaibo de naturalidade (evocação da inerência do princípio
do bem e do mal na natureza humana) como se fossem inalteráveis ou corretas, no que ganham um
tempero de imparcialidade.
Como transparência de sua intenção, linguisticamente, vale-se Tímon das expressões ficão
para logo sabidas (= imediatamente) por milagre (= ardil, perversão, rapidez na sondagem). É o jogo que
aponta todos os meios como válidos para se alcançar o desejado.
O seguinte trecho complementa o afirmado: “Feito este primeiro estudo do homem, tratase de indagar os seus sentimentos politicos e moraes, o seu caracter, o seu genio, o grão de sua
inteligencia, seus gostos, e mais que tudo o seu fraco.” (LISBOA, 1852, p. 140)
A expressão inicial feito este primeiro estudo do homem (= observação cuidadosa ou anatômica
dos ângulos humanos que por analogia servirão aos propósitos do inevitável ou indispensável grupo
rondante do poder de qualquer regime político), aponta o maquiavelismo das ações desse grupo.
Com o registro de sequência enunciativa fica comprovado que a realidade dessa ação política
é mostrada pelo ranço das minúcia (s) e que, de fato, a crítica se investe de imparcialidade, como
prossegue de forma indicativa a expressão trata-se de indagar. Aqui a partícula se ofusca a determinação
do sujeito, emprestando ao fato comentado uma aura de retidão e justiça. Com tal procedimento,
Tímon assume a atitude de moralista com o frontispício de um cientista sociopolítico. Essa visão
de ares indiferentes mas com apego à particularidade (conforme utilização do artigo definido o (s)
associado ao pronome possessivo seu) denuncia humoristicamente uma das manobras da ideologia
dominante que procura sempre unificar e garantir os interesses da classe dominadora. No caso vertente,
de conformidade com os dois trechos em questão, fica claro que os reais interesses sociais são logo, a
partir de articulações dessa natureza, relegados ou arquivados em favor da potente minoria. Essa, de
uma forma ou de outra, por esse ou aquele motivo, quando insistente e ininterruptamente assim age,
é porque tem o endosso da maioria social.
Quanto à nota caracitural, prende-se ao perfil de um tipo grupal que sustenta e é sustentado
pelo poder. A forma como Tímon o retrata faz aflorar o ridículo nele incrustado, refletindo o grotesco
da ação bajulatória. O conjunto expressivo e mais que tudo (= sobretudo, principalmente) norteia e
assegura a direção ora afirmada.
O destaque abaixo selecionado procura, num crescendo, sustentar a tese proposta por
Tímon, pelo que atenta de modo sutil para a diferença entre ter/ser:
O pobre do pretendente vivia entretanto a cortejar o seu partido, e não sahia de palacio, sendo força
confessar que os nossos dignos presidentes o recebiam com muita deferencia, sem duvida dominados pela
importancia da sua elevada posição social, quero dizer, pela sua riqueza, que como se sabe, é um grande
elemento de ordem, e dá aos que a possuem o caracter, o nome, e todas as virtudes de homem de bem.
(LISBOA, 1852, p. 158)
O adjetivo pobre precedido do artigo definido o, que o substantiva, reporta-se à personagem
anteriormente delineada (coronel Santiago). É um tipo que funciona como referente da relação ter/
ser na visão de mundo repassada pela ideologia política do grupo detentor do poder. Paralelamente
a Santiago, outras personagens são referenciadas na mesma tônica no propósito de reforçar o
objetivo pré-estabelecido. A totalidade do sentido assim esboçada é mais uma variante do processo
de estruturação do mau exercício político. A encarnação dessa tipologia objetiva apontar o seu grau
de ultrapassagem do instituído e mostrar que tal prática se apresenta incompatível com os interesses
da maioria social. Assim, o termo pobre é empregado para indicar a direção do nível do ser do coronel
Santiago, o que pode ser comprovado tanto pelo rascunho das suas atitudes políticas como das
mesmas atitudes referentes aos tipos a ele semelhante (que lhe completam e são por ele completados)
traçados por Tímon para aclarar e sustentar a deformação política em causa (posição especular).
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
A conjunção adversativa entretanto, reforçando a questão num propósito de afunilamento
conclusivo, aponta a real mobilização dos aspirantes aos quadros dos partidos políticos (facções) e
o posicionamento desses, face à questão ter/ser. Com tal aclaramento, Tímon pretende convidar o
receptor para uma reflexão (dominados x dominadores) a propósito da formação e/ou ampliação dos
quadros dos partidos políticos. Para tanto, sugere que o importante é buscar o Homem no homem em
favor de um real compromisso e de um nível de abnegação partidária condizente com as aspirações
da maioria social.
A expressão sem dúvida (= seguramente) direciona para o rumo do aclaramento pretendido
constatável na seqüência discursiva que condiciona alta posição social (lastro econômico ou plano de
ter) ao plano do ser. Vale ressaltar que o sujeito ideologicamente assim construído e imposto não o
é de fato, apenas está a ser, pelo que é um processo pernicioso para o desenvolvimento comunitário
ou social. O ter e o ser não são planos incompatíveis, apenas são diferentes. Entrementes, na visão
político-partidária aparecem sempre como se fossem necessariamente acoplados, isto é, aparentando
atrelamento. Assim, não é o simples ter econômico que dá a dimensão do ser político do sujeito
(humanização), numa proposta de poder temporal ou ideológico. A expressão denotativa de retificação
logo a seguir quero dizer indica bem a sugestão oximorizada constante do paralelo estabelecido por
Tímon para arrematar na impertinência da igualdade (riqueza = virtude) proposta como legítima pela
classe dominante e assim consumida pelas classes dominadas.
O emprego da expressão que como se sabe (= prática corrente) convida à reflexão de que não é
necessariamente o poder econômico que dá ao homem as qualidades de Homem, no caso Homem
público. Por essa vertente, salienta mais um grau de deformação do mau pensamento político, que
é já o mau exercício político, quando afirma, para negar, que o homem de teres é o homem de bem.
Como reforço, põe tal expressão em itálico no propósito de assegurar a carga irônica almejada numa
expressão per contrarium. Assim, mostra que o cerne da questão do mau exercício político está na
confusão que se faz entre homem de bens e homem de bem no instante da formação das agremiações
políticas e do respaldo eufórico a elas dado pelo massa (aglomerado passivo, irracional e escravo).
O destaque a seguir desenha um perfil das festas partidárias que se desenrolavam com nota
de patriotismo e com marca de massificação:
Repletos e esquentados, os nossos heroes, em número pouco mais ou menos de quatrocentos, inclusive os
casacas, sahiram a percorrer as ruas, música na frente, atacando-se foguetes a cada canto, levantando-se de
continuo desentoados vivas e morras, e apedrajando-se para completar o folguedo, as vidraças de uma ou
outra casa habitada por adversarios. (LISBOA, 1852, p. 187)
O rascunho desse modo de festividade maranhense mostra a um tempo a repassagem e o
consumo de ideologia faccionária dominante, marcando bem a sustentação da prática demagógica pela
massa emocionada, a seu modo assegurada pelos dominadores por meio de achaques periódicos de
paternalismo (período eleitoral). Na impossibilidade de ser diferente, uma das características da massa
é se esquivar da procura de soluções dos problemas sociais devido a sua incapacidade de raciocinar. Por
conta disso, a procura de soluções próprias do estado de povo é substituída pelo uso de estereótipos
fornecidos pelo líder demagogo e também por assuadas ou revoltas apaixonadas. A referência à
gritalhada em termos clicherizados e aos quebra-quebras convenientemente orientados reforçam a
assertiva. O denotativo inclusive (= sobretudo) referindo-se aos casacas aponta o lado trabalhado da
massa pelos demagogos para lhes servir de apoio e garantia nos instantes convenientes além de
espelho para o restante da massa. A expressão de contínuo (= constantemente) aponta assinalando o
caricatural numa dirigida manifestação de massa.
O indicativo das presentes afirmações está logo no início com a expressão ironicamente
definidora os nossos, que se reporta ao “heroísmo irresponsável” advindo das emoções da massa
demagogicamente dirigida ou insuflada. A expressão para completar o folguedo dá a dimensão da
responsabilidade e do malefício no desenrolar de um processo político cuja maioria social assim
se reparte: de um lado, hábeis demagogos e, do outro, um contigente social imensurável adestrado
convenientemente para consumir de maneira passiva a ideologia dominante. Desse modo, o referido
989
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
contingente social retarda cada vez mais a sua própria ascensão de massa (ilógica e caótica) a povo
(lógico, organizado) com capacidade de escolha e exigência. Além disso, a expressão em causa evoca
e repassa uma aura carnavalesca clara no rascunho caricatural da única forma de “mobilização” da
massa, que é sempre em favor de um “messias” ou indivíduo carismático.
Repletos e esquentados são termos que somados carregam uma idéia de farmacon respeitante à
massa (pão, vinho, divertimento), idéia aliás sugerida em todo trecho, porque se encontra recheando
todo o texto em análise pelo poder da linguagem usada intencionalmente pelos demagogos. Esses
objetivam alcançar a arruaça faccionária para mais comodamente transferir a responsabilidade dos
passíveis acontecimentos para a orla da revolta popular. Trata-se; pois, de uma dupla manobra ou de
um duplofarmacon – o farto banquete e o comício veemente com tempero de divertimento (liberação).
É o grito e o estouro da boiada detectados e documentados posteriormente pelo também jornalista
Euclides da Cunha na questão dos Canudos.
O seguinte trecho procura fornecer de forma irônica a noção exata do dinamismo infrutífero
das agremiações políticas que se formam sob o pretexto de solver os problemas sociais.
Eis porque os nossos partidos, renovando a trama de Penelope com o fim moral de menos, fazendo e
desfazendo, andando e desandando, n’um continuo e monotono vai-vem, se transformam, corrompem,
gastam, e dissipam inutilmente, nos esforços incessantes e estereis da acção e reacção, ou do fluxo e refluxo
que os leva, traz, arrasta, confunde, baralha e submerge. (LISBOA, 1852, p. 241)
A expressão eis porque introduz a mimésis da dinâmica do partidarismo (facção) no seio de uma
sociedade pouco afeita à eficaz participação política. Para que a noção de dinanismo ganhe mais força
na retratação, Tímon, em primeiro plano, a compara de modo inferiorizado com o mito de Penélope
na sua longa espera. A expressão de menos remete a questão para o grau e a esfera de inferiorização. As
formas gerundivas (com e sem prefixo) operam a intenção dinâmica pretendida por Tímon, onde o
mal é rascunhado em princípio por uma óptica de inutilidade (mal = inútil) e a expressão n’um continuo
garante a idéia de intermitência favorecendo a instauração do nível satírico.
O substantivo vai-vem reforça a idéia de dinamismo emprestada à tessitura do desenho do
perfil partidário. Pela falta de objetivo e programas definidos, a noção de partido é de pronto também
inferiorizada, pelo que é conduzida apenas a idéia de facção. O advérbio inutilmente em acordo com o
objetivo estereis mostra o estado estacionário e caótico no qual se encontram as agremiações políticas
desde sua organização. São facções amplamente movimentadas, mas sem história. Os termos acção x
reacção, fluxo x refluxo, com a ajuda dos prefixos, reportam-se ao tamanho das vicissitudes na prática
do exercício político. Apontam, outrossim, o grau de circularidade infrutífera numa movimentação
partidária e assinalam ainda a falta de seriedade e incompetência que norteiam as organizações que se
propõem interessadas na solução dos problemas de ordem social. A utilização dos verbos no presente
do indicativo completa a repassagem da idéia de dinâmica ineficaz.
É apontando tais deformações que Tímon satiriza o mau exercício político em favor de
uma reflexão que venha, de fato, reformular, em primeira instância, pela inibição do mau exercício da
atividade política.
Como se vê, é descendo à realidade dos fatos historicamente processados na comunidade
que Tímon tece todo um conjunto irônico, onde vários matizes da ironia se interpenetram, se
cruzam ou se conjugam para interpretarem o pretendido – a dimensão do mau exercício da atividade
política (predominância).
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992
Volume 3
O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA:
A LEITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS
COMO PROPOSTA DE LETRAMENTO
Marília dos Santos BORBA
(Universidade Estadual de Santa Cruz)
RESUMO: Este artigo, de natureza exploratória e bibliográfica tem como tema central a utilização da teoria
dos Gêneros Textuais nas aulas de língua estrangeira - LE em escolas públicas brasileiras com o propósito de
Letramento. Apresenta reflexões acerca da importância do trabalho da leitura nas aulas de línguas, enfatizando
seu papel social como instrumento primordial à formação de cidadãos com postura crítica e participativa. A
fim de despertar interesse dos profissionais da educação desta área para novas formas de pensar sua prática
pedagógica, uma abordagem teórica dos conceitos Gêneros Textuais e Letramento é descrita. Em seguida, um
paralelo entre tais temas e a função social da leitura destaca como essas abordagens estão correlacionadas ao
ensino de LE, bem como o papel fundamental do professor nesse contexto. Após tais discussões, tal estudo
busca reforçar a necessidade do profissional de LE em redimensionar caminhos para contribuir de forma
significativa ao letramento dos aprendizes.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero Textual; Letramento; Leitura.
ABSTRACT: This article, of exploratory and bibliographic nature has as main theme the use of Textual
Genre theory in foreign language - FL classes of Brazilian public schools with the literacy purpose. It presents
reflections about the importance of reading work in language classes, emphasizing social role of it, as an
essential tool to the formation of a citizen with critical and active posture. In order to awake interest of
education professionals in this area to new ways of thinking their pedagogical practice, a theoretical approach
is described about Textual Genre and Literacy concept. Next, a parallel among these themes and reading social
function detach how these approaches are related to English Language Teaching, besides fundamental role
of teacher in that context. After these discussions, these study intends to reinforce the necessity of foreign
language professional in changing ways in order to contribute of a significant way to the learners` literacy.
KEY WORDS: Textual Genre; Literacy; Reading.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
O presente artigo trata da utilização da teoria dos gêneros textuais nas aulas de língua
estrangeira em escolas públicas brasileiras com o propósito de letramento. Tenciona despertar o
interesse de profissionais da área de línguas que buscam sempre repensar, inovar e melhorar a sua
prática como verdadeiros educadores. Tal trabalho busca contribuir para uma reflexão acerca da
importância de trabalhar a leitura em língua estrangeira bem como a sua função destacando o papel
social que a própria leitura traz como ferramenta indispensável para formação de um cidadão crítico
e participativo.
Como professora de língua inglesa da rede de ensino público brasileiro, percebo a grande
dificuldade que os aprendizes apresentam na compreensão e interpretação de textos, e, portanto,
a imensa necessidade de dar atenção às suas necessidades, buscando tornar as aulas de leitura em
Língua Estrangeira - LE mais significativas, interessantes e que representem aplicabilidade na vida
cotidiana desses aprendizes, potencializando assim seu próprio aprendizado.
A pertinência conceitual dos gêneros textuais e do letramento no processo da leitura em
Língua Inglesa – LI se dá em decorrência do viés social da linguagem e da leitura, no qual texto e
leitor dialogam construindo significados a partir de um engajamento discursivo (PCNs - Parâmetros
Curriculares Nacionais Brasileiros, 1998), pois, o enunciado tem sentido através do outro.
Para atingir este escopo, considero que os gêneros textuais por apresentarem a característica
de manifestar concretamente a linguagem, ou seja, refletir o que acontece no cotidiano de leitura
dos aprendizes, estes podem concorrer ao aluno o desenvolvimento desse engajamento discursivo
e tornar as aulas mais interessantes e assim, ajudar a desenvolver com mais eficácia e significado a
prática da leitura em LE.
Outro motivo relevante que me inspirou a realizar este trabalho foi justamente a proposta
apresentada pelos PCNs (2001). Esse documento sugere que ler e compreender uma língua estrangeira
são um meio de acesso à cultura, à tecnologia e de abertura para o mundo e, que aprender a ler é
aprender a comunicar-se, é ter uma leitura de mundo. Essas informações me levaram ao estudo da
teoria dos gêneros. Segundo Rojo (2005), esse tema tem sido pesquisado devido, justamente, aos novos
referenciais nacionais de ensino de línguas, que indicam os gêneros como objetos de ensino, e mostram
a relevância de considerar as características dos mesmos na leitura e na produção de textos.
Assim, também com a perspectiva de contemplar o conceito de letramento que é o estado
ou condição de quem lê e escreve atendendo de maneira adequada às intensas demandas sociais
através do uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita (Soares, 2004), para o aprendiz do ensino
fundamental, este trabalho busca construir uma nova dimensão pedagógica utilizando para tanto a
leitura de gêneros textuais nas aulas de línguas, no intuito de propor transformações necessárias ao
processo de ensino aprendizagem, além de proporcionar aos sujeitos nele envolvidos uma ampla
“visão” de mundo para interagir no mundo social, como é destacado nos PCNs: “A utilização em sala
de aula de tipos de textos diferentes, além de contribuir para o aumento do conhecimento intertextual
do aluno, pode mostrar claramente que os textos são usados para propósitos diferentes na sociedade.”
(PCN Língua Estrangeira 5ª a 8ª séries, 2001, p. 45).
Portanto, considerando tais perspectivas e implicações, este artigo de natureza exploratória
e de cunho bibliográfico busca refletir e discutir aspectos, no que tange ao processo de ensino
aprendizagem de inglês como língua estrangeira, estabelecendo uma relação entre o conceito de
letramento e gêneros textuais.
Partindo de tais pressupostos, discorrerei inicialmente sobre o conceito de gêneros textuais, sua
importância e utilização em aulas de leitura em LE. Em seguida, abordarei o tema letramento e a sua
importância no contexto social. Na terceira parte, farei um paralelo entre gêneros, letramento e a função
social da leitura, sinalizando como tais temas estão correlacionados ao ensino de língua estrangeira bem
como o papel relevante do professor neste processo de ensino e aprendizagem. E, finalmente, apresentarei
as considerações finais, onde serão discutidas algumas questões apontando conclusões e reflexões.
994
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
2. Fundamentação teórica
2.1. O que são gêneros textuais?
Estudos realizados por vários pesquisadores apontam o conceito de gênero textual como um
paradigma de manifestação concreta da linguagem. Bakhtin (1997) declara gênero textual ou gênero
discursivo como um “enunciado de natureza histórica, sócio-interacional, ideológica e lingüística,
relativamente estável.” Esse conceito pioneiro compartilha com outras definições no decorrer dos
anos, confirmando predições e contribuindo para novas análises.
Segundo Swales (1990), gêneros textuais são eventos comunicativos, com propósitos
compartilhados por membros de um determinado grupo, ou seja, uma comunidade discursiva. Bhatia
(1993) define-os como um evento comunicativo reconhecível, caracterizados por uma variedade de
propósitos comunicativos identificados e mutuamente compreendidos por membros da comunidade
profissional ou acadêmica na qual ocorrem; são formas de ação tática, são ferramentas selecionadas
adequadamente a serviço de algum objetivo.
Marcuschi (2002), por sua vez, entende que são ações sócio-discursivas para agir sobre o
mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo; noção propositalmente vaga para referir os
textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sóciocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica.
Pode-se afirmar desta forma que gêneros textuais são eventos históricos de natureza social,
ideológica e interacional que são construídos a partir da identidade cultural de determinado grupo que
usa, reconhece e compartilha uma mesma linguagem. Assim, textos como cartas, bulas de remédio,
notas fiscais, e-mail, anúncios, convites, cardápio, placas, etc., são exemplos de gêneros textuais, ou
seja, são textos que refletem a vida real e que possuem um contexto social e cultural.
No Brasil, o estudo das teorias de gênero tem ocorrido a partir de 1995, devido em parte
aos novos referenciais nacionais de ensino de línguas (PCNs de língua portuguesa e estrangeira), que
indicam os gêneros como objeto de ensino ou destacam a relevância de considerar as características
dos gêneros na leitura e na produção dos textos (Rojo, 2005). Esses referenciais novos também
mostram que o uso de textos que manifestam concretamente a linguagem, como é o exemplo dos
gêneros textuais podem proporcionar ao aluno, o desenvolvimento de uma visão diferenciada em
relação às aulas de leitura em LE.
A relevância do estudo de tais eventos para o ensino, especialmente para o ensino de línguas é
notória, pois funciona como um recurso da linguagem e também como contribuição ao trabalho realizado
em aulas de leitura em LE mais especificamente. Isto porque, como já mencionado anteriormente, os
gêneros textuais representam a linguagem da vida e da sociedade, por isso, refletem as intenções, os
propósitos reconhecidos por determinada comunidade discursiva; comunidade discursiva que pode ser
definida como um grupo social de estrutura cultural que compartilha atividades discursivas em comum.
Essa característica de refletir a linguagem da vida e da sociedade permite utilizar fatores
importantes e fundamentais que auxiliam na análise e interpretação de textos que podem tornar
as aulas de leitura em LE muito mais significativas e interessantes. Dar atenção a aspectos como
elementos do contexto em que o texto é produzido (assunto, propósito, destinatário, público-alvo,
fonte, intenção e organização), podem sim ter muito mais sentido para os aprendizes de línguas, do
que o ato de traduzir meramente o texto.
Os gêneros discursivos, por assim dizer, só podem ser compreendidos dentro do contexto de
sua produção. Como Swales (1990) destaca: um texto não pode ser interpretado apenas pela análise de
elementos lingüísticos e sim, pelo seu contexto ou até mesmo sob a ótica de cultura dos participantes
da comunidade discursiva. Argumenta que o conhecimento do texto em si não basta para quem
precisa redigir. O conhecimento de gênero é que vai dar um norteamento significativo a essa prática,
pois, depende de conhecimentos além daqueles relevantes ao próprio texto.
Roxane Rojo (2005) também enfatiza que os gêneros não podem ser compreendidos,
conhecidos ou produzidos sem referência aos elementos de sua situação de produção. Por isso, ao
995
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
buscar a compreensão de um texto, os contextos social e cultural devem ser levados em consideração,
devem ser analisados e fazer parte dos critérios para análise do mesmo. Dar atenção apenas aos
aspectos lingüísticos ao interpretar um texto, pode não possibilitar o sucesso desse processo, é
necessário perceber essas outras características que constituem o texto.
Por isso, a escolha da utilização de gêneros textuais para aulas de leitura em LE pode permitir
que o aprendiz perceba que ele pode utilizar elementos básicos para auxiliá-lo na própria prática de
ler e de entender melhor qualquer texto, utilizando para tanto o que ele já traz consigo, o seu próprio
conhecimento prévio, informação, experiência, cultura, etc. Essa maneira de trabalhar a leitura em LE
pode também proporcionar ao estudante a idéia de capacidade em realizar algo, elevando sua autoestima e estimulando seu aprendizado. Em nossos contextos de ensino, podemos pensar em oferecer
aos nossos estudantes esse tipo de prática de análise textual, em que o cenário social e cultural no qual
o texto está inserido é fator preponderante no momento da compreensão do mesmo.
Portanto, a utilização de gêneros textuais em aulas de línguas, como salienta Ramos
(2000), funciona como uma ferramenta pedagógica de grande poder, já que permitem ao professor
compreender o discurso através de seu propósito e contexto social além de seu conteúdo lingüístico,
para ensinar de forma prática e objetiva aos aprendizes a reproduzir o seu próprio discurso.
Assim, essa prática ganha sentido e favorece em potencial a postura participativa do aprendiz
diante de um texto, mesmo quando escrito em língua estrangeira. Mesmo porque, o aprender a ler
em outra língua significa desenvolver também a capacidade de “desconstruir” o texto a partir da
utilização de sua própria faculdade como sujeito proprietário da linguagem, com o propósito de
trazer significado real para os textos que se propõe interpretar sob a sua condição de leitor, ou seja,
descobrir maneiras de (re)construir significados a partir do texto, e não utilizando a tradução palavra
por palavra, termo a termo.
Além disso, os gêneros textuais em aulas de leitura em LE podem facilitar a compreensão
e análise de diferentes textos, pois, contemplam o princípio básico de que só se assimila bem algo,
e mais rapidamente quando há sentido no que se está aprendendo e as necessidades estão claras, ou
seja, a aprendizagem precisa apresentar-se sempre significativa.
2.2. O que é letramento?
Para Magda Soares (2004), letramento é uma palavra nova no vocabulário da Educação e
das Ciências Lingüísticas, surge no discurso de especialistas dessas áreas na segunda metade dos anos
80. Vários estudiosos como Cato (1986), Verdiani (1988), Kleiman (1995) fazem menção ao assunto,
conceituando, diferenciando e ilustrando em suas obras publicadas. Toda palavra nova, pressupõe novos
conceitos, novas maneiras de pensar. A palavra letramento surge a partir de um contexto das ciências da
linguagem em que se busca compreender o fato, idéia ou maneira nova de conceber a escrita no mundo
social, trazendo assim a necessidade de entendimento e utilização desta nova palavra.
Contudo, não há apresentação de conceituações da palavra letramento em dicionários
conhecidos da Língua Portuguesa como o Aurélio. Segundo Soares (2004), ela aparece no intitulado
Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de Caldas Aulete, editado há mais de um século,
onde é caracterizada como uma palavra “antiga, antiquada”, com o significado de “escrita”. Outras
palavras do mesmo campo semântico sempre foram familiares: analfabetizado, analfabeto, alfabetizar,
alfabetização, alfabetizado, letrado e iletrado.
O termo letramento com o sentido que hoje lhe é atribuído foi retirado certamente da
versão para o Português da palavra literacy, da Língua Inglesa, que etimologicamente vem do latim
littera (letra), com o sufixo - cy, que denota qualidade, condição, estado, fato de ser, definido por
Magda Soares:
[...] literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implícita nesse
conceito está a idéia de que a escrita traz conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas,
lingüísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la.
(SOARES, 2004, p. 17)
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Assim, um indivíduo que se torna letrado é aquele que lê e escreve atendendo de maneira
adequada e coerente as intensas demandas sociais através do uso amplo e diferenciado da leitura e da
escrita. A capacidade de letramento é, contudo, algo inerente a qualquer ser humano, pois cada pessoa
carrega consigo seus próprios conhecimentos prévios e de mundo e que permitem atingir este estado,
o de tornar-se letrado. Magda Soares defende ainda que “letramento é, pois, o resultado da ação de
ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um
indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita” (2004, p. 18).
Antes de novos estudos acerca do “letramento” serem realizados, o termo usado para o indivíduo
que não conseguia exercer os seus direitos de cidadão em sua plenitude, não dispunha da tecnologia do
ler e do escrever, o indivíduo marginalizado pela sociedade, e o que não tinha acesso aos bens culturais
da humanidade, das sociedades letradas, era “analfabeto”. Hoje o termo emergente utilizado para as
pessoas que são capazes de exercer esses direitos não é “alfabetizado”, mas, sim “letrado”.
Com o surgimento do chamado letramento, a importância em se analisar a capacidade de
um indivíduo “alfabetizado” usar a leitura e a escrita para uma prática social, tornou-se muito mais
importante e significativa do que apenas a habilidade de codificar o próprio nome. Por exemplo, ler e
entender um bilhete simples demonstra muito mais as habilidades e competências que um indivíduo
necessita para ser considerado participante numa sociedade do que apenas decodificar as letras.
Nesse âmbito, segundo as prescrições didáticas do MEC, as habilidades requeridas pela
sociedade letrada para os alunos do Ensino Fundamental, deve ser o texto que é o primeiro ponto a se
considerar. E este deve ser ponto de saída (leitura) e de chegada (escrita). O texto deve ser entendido
como unidade comunicativa – e significativa – por excelência.
Hoje, contudo, diante do surgimento e do intenso crescimento das novas tecnologias, já se
pode falar em letramentos.
2.3. Gênero x Letramento: A Função Social da Leitura
A proposta de utilizar gêneros textuais em aulas de leitura em LE, com o propósito de
letramento, nos leva a necessidade de compreender o significado e a função social da leitura. Os
conceitos de gênero e de letramento estão intimamente ligados, já que a leitura do primeiro contempla
a finalidade do segundo. Como já mencionado anteriormente, os gêneros são eventos que refletem
a linguagem num contexto real, isto é, o que acontece na vida cotidiana, influenciados pelo contexto
social e cultural em que estão inseridos. O uso de textos com essas características em aulas de LE
auxilia o aprendiz a se tornar um indivíduo capaz de exercer suas atividades sociais escrevendo e
lendo de maneira adequada e coerente, que é o objetivo primordial do que se denomina hoje de
letramento.
No tocante ao processo de ensino aprendizagem de línguas voltada para a leitura é importante
também perceber que ao propor-se a entender um texto em língua estrangeira, o indivíduo além de
utilizar-se da idéia inconsciente de organização da língua que no caso, é a sua língua materna, vai também
usar dos outros meios que são inerentes a qualquer tipo de linguagem (as noções sócio-discursivas,
ideológicas, históricas, de constituição de sua própria identidade, etc.). Afinal de contas, a leitura é um
processo de construção de significados através da interação dinâmica entre o conhecimento prévio
do leitor, a informação sugerida pelo texto e o contexto da situação da leitura. É um processo ativo,
uma interação entre texto e leitor, um processo comunicativo. De igual forma a leitura é uma dinâmica
sócio-interacional, ou seja, um processo dialógico da linguagem, em que o sentido se dá com o outro,
num processo de porvir. (Bakhtin, 1992).
Portanto, é fundamental discutir o significado e a função social da leitura no intuito de
redimensionar o cenário atual da sala de aula de línguas, no âmbito da prática de compreensão e
produção textual.
Inicialmente, vale lembrar o conceito da origem da palavra leitura que vem do grego legei,
significa colher, recolher, juntar, que no latim transformou-se em lego, legis, legere, juntar horizontalmente
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
as coisas com o olhar, vemos a dimensão da leitura como instrumento educacional essencial em sala
de aula. Entretanto, a palavra interpretare também foi usada no sentido de ler, mas com um significado
mais profundo, o de ler verticalmente, sair de um plano para outro, de forma transcendente.
Nesse sentido, a leitura tem uma conotação muito além de uma simples decodificação,
ultrapassa o passar de olhos por algo, mais, vai além do visualizar, aventurando-se no desconhecido
para uma plena compreensão do sentido das coisas. Tal questão é fortalecida por Clarice Caldim
(2003) quando enfatiza a função social da leitura como algo de natureza transformadora e renovadora
na vida das pessoas, mostrando pontos comprovadores dessa ação:
A função social da leitura é facilitar ao homem compreender – e, assim, emancipar-se dos dogmas que a
sociedade lhe impõe. Isso é possível pela reflexão crítica e pelo questionamento proporcionadas pela leitura. A
função social da leitura é formar um novo homem. Pela leitura, o ser humano não só absorve o conhecimento
como pode transformá-lo em um processo de aperfeiçoamento contínuo. (CALDIM, 2003)
A aprendizagem da leitura, portanto, possibilita a emancipação e a assimilação dos valores
da sociedade. A leitura como dimensão social, forma um ser humano mais crítico, reflexivo e
transformador na construção de uma sociedade com uma identidade sócio-cultural enriquecida.
Desta forma, enquanto oportunidade de enriquecimento e experiência, a leitura é fundamental
na formação do indivíduo e do cidadão. E esta está posta como habilidade primordial do ensino
de línguas estrangeiras modernas, especialmente, quando temos o objetivo de formar leitores em
língua estrangeira. A necessidade de priorizar a habilidade da leitura no ensino de língua estrangeira
é de extrema importância quando construímos sentido na utilização de diferentes tipos de textos
contextualizados, atribuindo um caráter de prática social, “letramento em língua estrangeira”, a fim de
atender as exigências das sociedades contemporâneas em constante mudança, no entanto não implica
que o professor abandone as demais habilidades lingüísticas.
Collins (2003) aborda novos papéis para o texto, que foram apresentados e pautados a partir
de princípios elaborados após uma experiência realizada com professores e alunos da Rede Pública
de São Paulo. Essas reflexões e indagações levantadas a partir dessa experiência a respeito da prática
pedagógica em aulas de língua inglesa foram despertadas e analisadas com o propósito de re-estruturar
e/ou re-construir o real papel do ensino de uma língua estrangeira. Esses princípios nos oferecem,
assim, uma rica oportunidade para repensar a prática do professor que trabalha a leitura em LE.
Nesse sentido, a autora citada fala a respeito, por exemplo, do significado de se aprender uma
nova língua, ela afirma que aprender uma nova língua significa aprendê-la para alguns propósitos sociais
específicos, ou seja, é possível aprender a comunicar-se em novos contextos sem ocorrer, contudo,
contato com estes e haver o estímulo para a percepção das formas adequadas de comunicação.
Outro fator importante levantado pela referida autora é a respeito da motivação voltada para
as necessidades e desejos de aprendizagem que quando definidas e levadas como pontos importantes
nesse processo, podem tornar o aprendizado da língua muito mais eficiente e significativo. Isto porque,
é fundamental que o aprendiz possa perceber sentido e aplicabilidade no que ele está aprendendo para
que assimile com mais rapidez.
Aponta também o texto, do ponto de vista social, como uma unidade de sentido concreta,
composta de escolhas feitas com o intuito de estabelecer a comunicação adequadamente no contexto
em que o indivíduo está inserido, mostrando assim que é essencial perceber que as pessoas se
comunicam através de textos pertinentes a diversos contextos de comunicação.
Salienta que para a comunicação ocorrer adequadamente é necessário saber escolher bem o
que comporá o texto a ser escrito, levando em consideração o contexto em que o próprio aprendiz
está inserido. Com isso, a autora mostra o quanto é necessário conscientizar-se de que a aprendizagem
da comunicação em diferentes contextos sociais e para diferentes finalidades, envolve compreender,
produzir ou reconhecer textos pertinentes e relevantes socialmente.
Discute ainda sobre o importante papel do professor em buscar estimular no aluno
habilidades estratégicas, no âmbito cognitivo e na construção de conhecimentos sobre a gramática, ou
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
seja, no plano lingüístico para que ele possa alcançar o sucesso em seu desempenho de compreensão
e produção de textos, sempre sob a perspectiva de conscientização constante sobre a função social da
linguagem, em seus vários aspectos.
Portanto, os princípios apresentados por Collins (2003) corroboram com as idéias
apresentadas aqui a respeito do trabalho com o texto em língua estrangeira. É essencial pensar o
trabalho de leitura em LE como um meio de proporcionar ao indivíduo atuação social participativa,
acesso a cultura, às tecnologias, “visão” de mundo; compreender que ler na outra língua, implica
também atingir um nível de (re)construção de sentido que atenda a necessidade de entendimento de
forma a apreender o enunciado do texto posto; observar como os elementos do contexto em que
um texto é produzido, tais como: assunto, propósito, destinatário, fonte, muitas vezes não percebidos
na aula em que se utiliza o texto, estão relacionados ao conceito de gêneros textuais e que estes são
elementos que precisam ser observados e utilizados nas aulas de leitura em LE.
Contudo, é comum o ensino de uma língua estrangeira ser visto por grande parte dos professores
como um programa que tem por função ensinar sobre a língua em si, enquanto que as “habilidades
a serviço de expressões sociais”, a verdadeira construção de conhecimentos, os ricos e importantes
instrumentos de comunicação são deixados de lado, são descartados, como enfatiza Heloisa Collins:
A concepção de uma língua estrangeira como um conjunto de habilidades a serviço de expressões sociais
geralmente não faz parte da vivência do professor de línguas. Raramente encontramos práticas pedagógicas
que focalizem o desenvolvimento de capacidades que permitam ao aluno “fazer coisas” socialmente
importantes com o inglês. (COLLINS, 2003, p. 136)
Nesse sentido, a prática em sala de aula torna-se limitada a um ensino voltado para os
aspectos puramente lingüísticos, formais que desconsidera o valor indispensável e significativo do
trabalho com o texto.
Diante da diversidade de gêneros textuais (anúncios, cartas, artigos, placas, e-mail, blogs,
chats, etc.), cabe ao professor conscientizar o aluno de que é necessário analisar o contexto social e
cultural do texto para melhor compreendê-lo. Então, devem ser adotados como critérios ações neste
sentido, como por exemplo, analisar quais as possíveis razões do escritor ao discutir determinado
assunto, qual a intenção do mesmo ao abordá-lo, ou seja, despertar o aprendiz a ler nas entrelinhas.
Podendo-se, assim, ir mais além da decodificação, isto é, da leitura inicial, e o aluno deve sim, ser
estimulado não só a assimilar o que o texto diz, mas também como e para que diz.
Conforme Moita Lopes (2001) aponta: “A leitura é a única habilidade que atende as
necessidades educacionais e que o aprendiz pode usar em seu próprio meio”. No presente estudo,
observa-se que a leitura proporciona ao estudante a possibilidade de aumentar seus limites conceituais.
E, partindo do princípio que através da leitura em uma LE, o aprendiz terá uma exposição de visões
diferentes do mundo, de sua própria cultura e de si mesmo como ser humano, além de poder inferir
neste contexto e contribuir de forma significativa no desenvolvimento da habilidade de ler em Língua
Materna - LM. Paulo Freire fortalece essa idéia quando declara a seguinte assertiva: “Uma questão
sociopolítica está implícita aqui, posto que esta proposta de ensino de leitura em LE pode auxiliar
no desenvolvimento da capacidade de letramento global do aluno da escola pública, dando-lhe uma
possibilidade a mais de lutar pela transformação social.” (FREIRE, 1974).
Outro fator a ser considerado na aula de leitura em aulas de LE é sobre o que o aluno já
traz de conhecimento a partir de sua experiência. De acordo com os PCNs, “o que é crucial no
ensino de leitura é a ativação do conhecimento prévio do leitor, o ensino de conhecimento sistêmico
previamente definidos para níveis de compreensão específicos e a realização específica da noção de
que o significado é uma construção social.” (PCN Língua Estrangeira 5ª a 8ª séries, 2001, p. 90)
Tal observação é extremamente válida, e favorece o sucesso do processo de ensinoaprendizagem, pois mostra ao aluno que, na verdade o texto não carrega o significado por si só.
Mostra que ele, como leitor traz elementos importantes tais como conhecimento, informação, emoção,
experiência e cultura para o texto escrito e que contribuem de maneira grandiosa ao processo de
interpretação do texto, mesmo em língua estrangeira.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Após todo esse arcabouço de observações, resume-se que a leitura é condição primordial
para que o aluno possa compreender o mundo, os outros, suas próprias experiências e a necessidade
de inserir-se no mundo da escrita, e por isso, torna-se imperativo desenvolver neste a capacidade da
leitura e fazê-lo ir além da simples decodificação de palavras. Assim, presume-se que a função social
da leitura é requisito básico para que o indivíduo ingresse no mundo letrado e possa construir seu
processo de cidadania. A leitura é, portanto, um ato social, e como tal, uma questão de cidadania.
3. Considerações Finais
Este trabalho buscou discutir e refletir dentro de um quadro teórico fundamentado nas
conceituações sobre gênero e letramento, o processo de ensino aprendizagem em aulas de leitura em
LE, voltado para compreensão e interpretação de texto. Tratou-se de discussões de conceitos muito
caros ao professor de línguas, especialmente ao professor de leitura: gêneros textuais e letramento.
Reforçou-se aqui a necessidade de se olhar para os textos usados em sala de aula não como textos
que encerram em si o sentido, mas com olhos mais voltados para o contexto da produção deles, bem
como a construção no social da compreensão e do sentido a eles atribuídos.
Como já foram mencionadas neste artigo, algumas idéias sobre gênero textual enquanto
instrumento social e cultural em potencial para as aulas de línguas, já vem sendo desenvolvidas em
outros trabalhos que tem a preocupação de contemplar o conceito de letramento nos aprendizes
utilizando o trabalho de leitura como ferramenta para este fim. No entanto, esta proposta buscou
proporcionar reflexões e, portanto, uma contribuição para a questão da possibilidade em formar, em
aulas de língua estrangeira, cidadãos realmente letrados.
Além disso, o tema abordado neste artigo deixa clara a preocupação em fazer-se necessário
e urgente a formulação de um programa de desenvolvimento de habilidades e funções de linguagem,
em que as necessidades dos alunos sejam consideradas. Pois, a iniciativa da mudança, de imaginar
novas formas de ver as coisas, principalmente, em relação ao papel dos textos em aulas de LE pode
proporcionar resultados positivos aos alunos tornando-os mais interessados e motivados, e fazendo
com que o aprendizado se apresente mais significativo e relevante em suas vidas especialmente
quando contextualizado.
Ao discutir sobre os conceitos indicados aqui e as reflexões que deles decorrem, acredito
que este trabalho possa trazer aos professores que trabalham com leitura em aulas de LE, novas
maneiras de pensar, de aplicar e de inovar a sua prática pedagógica no sentido de proporcionar aos
aprendizes uma ampla visão da leitura, fazendo-os perceber que compreender e interpretar textos
são demandas necessárias aos mesmos, primeiro de situarem-se enquanto sujeitos emancipados para
interagir no meio social, pressupondo-se, portanto, detentores de capacidade de ler o “mundo”, e
depois de serem leitores de textos para ingresso na universidade. São novas maneiras de pensar e
inovar a prática pedagógica.
Referências
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Volume 3
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SWALES, J. M. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge University Press. 1990.
1001
Ir para o Sumário
A Construção de Ideologias Machistas
na Prática Cultural do Forró
Marília Pinheiro RIBEIRO
(Universidade
Estadual do Ceará /FUNCAP)
Claudiana Nogueira de ALENCAR
(Universidade Estadual do Ceará)
RESUMO: Este artigo é parte de um projeto de pesquisa mais amplo e intitulado “As construções dos
sentidos da violência nas práticas culturais do Sertão Central Ceará” que partiu do desejo de focalizar novas
possibilidades de investigar e teorizar a linguagem, enfatizando o papel do lingüista e a contribuição do seu
estudo para a vida social. De forma específica, procuramos analisar a construção identitária do gênero social e
suas ideologias na presente prática cultural do forró, utilizando como aparato teórico-metodológico a Análise do
Discurso Crítica (CHOULIARAKI & FAIRCLOUH, 1999, FAIRCLOUH, 1989, 1992, 2003, RESENDE &
RAMALHO, 2006), para questionar de que maneira os sentidos construídos nas canções de Forró naturalizam
e legitimam ideologias machistas. Partindo da idéia que as práticas culturais do Nordeste têm manifestado
uma expressiva e crescente forma de violência lingüística, percebemos escolhas lingüísticas que violentam
ao constituir sentidos negativos para as mulheres e para os homens. A análise sócio-discursiva nos permitiu
depreender que o perfil identitário nas letras das canções de Forró baseia-se num discurso machista a partir
da estratégia da estereotipização, reforçando relações de poder e assim inferiorizando a mulher ao designar o
gênero feminino como submisso e vulgar.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Cultura; Identidade; Violência.
RESUMEN: Este artículo es parte de un proyecto de investigación más amplio, titulado “La construcción de
los significados de la violencia en las prácticas culturales interior de Ceará Central”, que partió de la voluntad
de centrarse en nuevas oportunidades para investigar y teorizar la lenguaje, haciendo hincapié en el papel y
la contribución de los lingüistas de su estudio a la vida sicial. En particular, examinaré la construcción social
de la identidad de género y sus ideologías en la práctica cultural de forró, utilizando como aparatos teóricos y
metodológicos el análisis crítico del discurso (CHOULIARAKI y FAIRCLOUH, 1999, FAIRCLOUH, 1989,
1992, 2003, y RESENDE RAMALHO, 2006), a la pregunta de cómo se construye el significado de las canciones
de forró naturalizan y legitiman ideologías sexistas. A partir de la idea de que las prácticas culturales del Noreste
han mostrado una importante y creciente forma de violencia lingüísticos, vemos que las opciones violentas
lingüística a ser negativo para las mujeres y los significados para los hombres. El análisis socio-discursivo nos
permitió inferir que el perfil de la identidad de las letras de canciones forró están basadas en un discurso de la
estrategia de los estereotipos sexistas, reforzando las relaciones de poder y, por tanto, inferiorizando las mujeres
al nombrarlas de sumisas y vulgarres.
PALAVRAS LLAVE: Discurso; Cultura; Identidad; Violência.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Introdução
Este trabalho parte de um projeto mais amplo intitulado “As construções dos sentidos
da violência nas práticas culturais do Sertão Central do Ceara”. Partimos do desejo de investigar o
sentido da violência e suas representações identitárias nas práticas culturais do Forró, através das
manifestações dos discursos, considerando o uso da linguagem como uma prática social. O discurso é
moldado pela estrutura social mais também é constitutivo da estrutura social (FAIRCLOUGH, 1989)
e nisso consiste uma dialética entre discurso e sociedade. É através dessa dialética, que integramos
nossas formas concretas de viver e produzir sentidos através de práticas de linguagem.
O mundo moderno tardio, considerado como uma cultura de risco (GIDDENS, 2002)
manifesta expressivas e crescentes formas de violência: violência simbólica, estrutural, física e
psicológica. Desse modo, percebe-se em manifestações culturais escolhas lingüísticas que violentam
no próprio ato de fala, construindo sentidos preconceituosos, através das designações e nomeações
de gênero social.
A violência na sociedade é uma questão preocupante. Odalia (1983, p. 9) afirma que, “a
violência, no mundo de hoje, parece tão entranhada em nosso dia-a-dia que pensar e agir em função
dela deixou de ser um ato circunstancial para se transformar numa forma do modo de ver e viver o
mundo do homem”.
A partir dessa realidade, decidimos investigar como os sentidos da violência são construídos
nas práticas culturais do Forró, vivenciadas em Quixadá, cidade do Sertão Central do Ceará. As
escolhas lingüísticas são vistas aqui como sentidos constituídos e reproduzidos nas vivências culturais
do cotidiano, numa abordagem crítico-discursiva que procura enfrentar as relações entre linguagem e
sociedade. Assim, procuramos trabalhar como uma versão de análise do discurso crítica que leva em
conta a interação lingüística concreta de pessoas reais e que considera o sujeito não como o senhor
soberano do seu discurso, muito menos o sentido como fruto de uma intenção. Ao contrário, nessa
concepção, considera-se que todo sentido é historicamente constituído a partir de diversos fatores
(sociais, culturais, econômicos, políticos) integrados na produção e interpretação lingüísticas. Por essa
perspectiva de estudo, esperamos contribuir para a formação da consciência das relações de poder,
através de um olhar crítico sobre a linguagem, dentro e fora do campo da lingüística.
1. O Forró como produto da indústria cultural
Para discutir a relação entre o massivo e o popular nas práticas culturais vivenciadas em
Quixadá, levaremos em conta o estudo de Oliveira (2007) que procura rediscutir o conceito de cultura
popular e as teorias da recepção dos produtos culturais ou as apropriações do cultural, explicitando as
demandas culturais, “resultantes inclusive da sobreposição das relações de consumo e da sobreposição
da indústria cultural em todos os espaços sociais e no contexto cultural”(idem, p. 263).
Oliveira (2007) discute as quatro posturas científicas e políticas que levaram o popular à cena:
os românticos, os folcloristas, o populismo de esquerda e os gerentes do meio de comunicação.
Os românticos, rompendo com a formalidade técnica prescrita pelas artes clássicas,
idealizaram as culturas populares por seus aspectos informais, tentando resguardar o popular da
contaminação trazida pela civilização moderna. Esse sentido romantizado do popular continuará
com o pensamento folclórico do século XIX, pois os folcloristas acreditavam na cultura popular
como manifestações tradicionais, que embora fazendo parte de um tempo presente, guardavam uma
identidade sobrevivente e fiel a sua origem.
No séc. XX, os populistas de esquerda criticaram as visões românticas e folclóricas tradicionais
das culturas populares como sendo alienadas e ingênuas. Para o populismo de esquerda o popular
na cultura seria marcado pela crítica e por uma tentativa de conscientização da população através da
cultura. No entanto, em 1980, com a ascensão dos meios de comunicação, o popular passa a ser visto
como sinônimo de popularidade: o que vende em massa, o que agrada as multidões.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Esses estudos fundamentaram a análise das interações que se estabelecem entre a prática
cultural do Forró vivenciada em Quixadá e considerada como expressão da estética e da cultura
popular nordestina (SILVA, 2003) com a sociedade de consumo e com o processo de industrialização
da cultura.
O Forró é uma exemplificação de prática cultural que tem sofrido influência da mídia,
transformado em produto vendável. Numa visão mais crítica do consumo e da vivência dessa prática
cultural é preciso compreender como a produção do Forró passa a atender as demandas do mercado,
popularizado para as massas como resultadas da industrialização da cultura, pela instauração e
sustentação de um novo tipo de poder no contexto de globalização.
A indústria cultural, segundo Adorno e Horkheimer (1985) impõem a milhões de pessoas que
dela participam métodos de reprodução dos produtos culturais, em nosso caso de estudo as músicas
do Forró, tornando inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades
iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria
a organização e o planejamento pela dominação de grandes empresários que estabelecem formas e
padrões para o “gosto pessoal” e para o consumo. Os padrões seriam resultados originariamente
das necessidades dos consumidores: eis porque são aceitos sem resistência. Adorno e Horkheimer
explicam, desse modo, o círculo da manipulação e da necessidade retroativa em um terreno no qual a
técnica conquista seu poder sobre a sociedade, o poder que os economicamente mais fortes exercem
sobre o social. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter
compulsivo da sociedade alienada de si mesma.
Para os autores (idem) os automóveis, as bombas e o cinema, a cultura, a arte, nesse novo
contexto de reprodução artificial em massa, mantêm coeso o todo e chega o momento em que
seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça para qual serve. A técnica da indústria
cultural levou-nos à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a
lógica da obra e a do sistema social.
O Forró considerado uma expressão tipicamente nordestina também sofreu os efeitos da
técnica, própria da Indústria Cultural. Foi Luiz Gonzaga juntamente com alguns parceiros como
Humberto Teixeira e Zé Dantas que introduziram o Forró no Nordeste e no restante do país, a
partir da década de 1940. Luiz Gonzaga cantava uma cultura nordestina, a política, a seca, amores,
saudades e todo meio sócio-cultural em que fazia parte. Mais foi na década de 1990 que o Forró,
considerado como manifestação regional e artesanal, assumiu uma feição massiva alcançando vários
públicos. Desde o lançamento a banda “Mastruz com Leite”, por iniciativa do empresário Emanuel
Gurgel, as bandas de Forró passaram a utilizar técnicas de produção e reprodução musical para as
grandes massas, gerando o chamado Forró eletrônico. O Forró passou a usar uma linguagem mais
repetitiva, a dança ganhou mais sensualidade, os instrumentos passaram a ser eletrônicas. Seus temas
são marcados por bebedeiras, triângulo amoroso, sexo, amores impossíveis.
O Forró eletrônico é, pois um produto da indústria cultural. Zan (2001, p.106) afirma que
o produto cultural é um elemento através do qual a sociedade se objetiva, isto é, um processo pelo
qual momentos da estrutura social, posições, ideologias conseguem se impor nas próprias obras de
arte. O forró eletrônico, desse modo, acaba por assumir uma linguagem particular utilizando palavras
de baixo calão, linguagem informal, focando um publico alvo jovem e criando todo um universo de
consumo, de auto- afirmação, padrões de comportamento e de personalidade, enfim um estilo de
consumo e formas de representação específica para homens e mulheres.
A música funciona como um elemento de sociabilidade que converte jovens admiradores
de um determinado gênero numa comunidade, constituindo sentidos para moldar comportamentos,
vestuários e visões de mundo, condizentes com suas construções discursivo-musicais. Portanto, é
preciso considerar mais de perto a esfera que sustenta toda a indústria cultural: o público - receptor. É
com os olhos fitos nesse público que os compositores compõem as letras e músicas para que os seus
receptores, acabem estabelecendo identificações, e construam uma identidade específica: a identidade
de “forrozeiro”.
1005
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
2. Discurso como prática social
Para Chouliaraki e Fairclough (1999) a Análise do Discurso Crítica está situada na ciência
social crítica e na pesquisa crítica sobre a mudança social na sociedade moderna tardia. A Análise do
Discurso Crítica defende uma relação dialética entre discurso e sociedade, para a promoção de uma
mudança social.
Fairclough (1992, trad, 2001) define o termo discurso numa concepção tridimensional. O
autor por meio de seu modelo tridimensional propõe que as análises lingüísticas passem a considerar a
parte social. O discurso deve ser visto como sendo simultânea (i) um texto; oral ou escrito, (ii) prática
discursiva (produção, distribuição e consumo) (iii) prática social; nisso consiste uma relação dialética
através da qual o discurso molda e é moldado pela estrutura social. Segundo Magalhães (2000, p.92)
na prática social são considerados “três aspectos principais: o econômico, o político - ligado às noções
de poder e de ideologias e o cultural - ligado a a valores e identidades culturais”.
Fairclough (trad. 2001 a p117) apresenta a definição de ideologia como sendo:
Construções da Significado/realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são
construídas em varias dimensões das formas/ sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a
produção, a reprodução ou transformação das relações de dominação.
Para Fairclough as ideologias são embutidas nas práticas discursivas, pois são muito eficazes
quando se tornam naturalizadas e atingem o status de “senso comum”. Hegemonia para Fairclough
(trad, 2001. p.122) é tida como:
Liderança tanto quanto dominação nos domínios econômicos, político, cultural e ideológico de uma
sociedade. Hegemonia é o poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes economicamente
definidas como fundamentais em aliança com outras forças sociais, mais nunca atingindo senão parcial
ou temporariamente como um “equilíbrio” instável. Hegemonia é a construção de alianças e a integração
muito mais simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante as concessões ou meios ideológicos
para ganhar consentimento. Hegemonia é um foco de constante luta sobre pontos de maior instabilidade
entre classes e blocos para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação/ subordinação,
que assume formas econômicas, políticas e ideológicas.
Porém, entende-se a hegemonia como um domínio exercido pelo poder de um grupo sobre
os demais, baseado no consenso e não no uso da força. Uma posição hegemônica passa pelo discurso
e cria novas ideologias que são interpretadas, reproduzidas ou contestadas.
O discurso tem alguns efeitos constitutivos e um deles é a construção de identidades sociais.
Nesse sentido, podemos entender o conceito de identidade como uma representação de um discurso.
Sendo representação, socialmente constituída, nossa identidade é a maneira como pensamos que as
outras pessoas nos e vêem e nos avaliam. Em um nível estrutural, as identidades são idéias culturais
sobre status sociais que ocupamos e ainda pensamos no eu ideal, ou seja, quem deveríamos ser e não
realmente somos, se é que simplesmente somos. (JOHNSON, apud LIMA , 2007, p. 34).
Para Fairclough (2003) o discurso figura de três principais maneiras como parte de uma
prática social: como modos de agir, através dos gêneros textuais; como modos de representar, através
dos discursos e como modos de ser, através de estilos. A cada um desses modos de interação entre
discurso e prática social corresponde um tipo de significado: o significado acional, o significado
representacional e o significado identificacional. Resende (2005, p. 28) define o significado acional como
focalizando o texto como um modo de interação em eventos sociais. Já o significado representacional
é mostrado como enfatizando a representação de aspectos do mundo em textos e o significado
identificacional como se referindo à construção e à negociação de identidades no discurso.
Neste trabalho, o significado acional nas letras das canções do Forró foi analisado por
meio da intertextualidade. A intertextualidade enfatiza a dialogicidade, um conceito bakhtiniano que
mostra que todo texto faz parte de uma cadeia dialógica, ou seja, responde e antecipa outros textos,
articulando diversas vozes. Nossa análise procurou identificar, como indicou Fairclough (2003), quais
vozes foram incluídas e quais foram excluídas nas composições das canções estudadas, isto é, que
ausências significativas foram observadas.
1006
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
No que diz respeito ao significado representacional, analisamos a interdiscursividade, uma
categoria que procura salientar a heterogeneidade do discurso. Segundo Resende (2005, p. 34) um
mesmo aspecto do mundo pode ser representado através de diferentes discursos e “textos representando
o mesmo aspecto do mundo podem, portanto, articular diferentes discursos, em relações dialógicas
harmônicas ou polêmicas”. Neste trabalho procuramos estudar a heterogeneidade, mostrando os
diversos discursos articulados nos textos das canções de Forró.
Quanto ao significado identificacional analisamos os estilos, que constituem os aspectos
discursivos das identidades, através da categoria avaliação. A avaliação inclui afirmações que apresentam
juízos de valor com verbos de processo mental afetivo tais como: gostar, detestar etc. e presunções
valorativas sobre o que é bom ou desejável (RESENDE, 2005, p. 36).
Portanto, a Análise do Discurso Crítica é produtiva para estudarmos a prática cultural
do Forró, pois suas categorias lingüísticas de análise apontam para o social, permitindo desvendar
ideologias, posições hegemônicas e investigar como são interpretadas, reproduzidas ou contestadas
identificações ou identidades produzidas por homens e mulheres nessa prática discursiva.
3. Análise Discursiva Crítica: Analisando as canções de Forró
Como afirma Resende (2005, p. 143) há textos em que muitas vozes se articulam numa
abertura para a diferença. Em outros são escassas as instâncias de discurso relatado e há uma redução
da diferença com pequena visibilidade de vozes. No caso das letras de Forró estudadas observamos
que há uma ausência significativa de vozes femininas, predominando hegemonicamente a voz do
gênero masculino.
Observemos nas cenas enunciativas abaixo como as vozes femininas não são apresentadas
nem como interlocutoras, mas a mulher aparece como algo do qual se fala. A mulher é coisificada,
sendo apresentada como um objeto pertencente ao homem em 1:“Por isso cuidado com seu
mulherão”), apresentada como um prêmio: em 2 (“onde eu chego tem sempre uma namorada esperando”),
ou como um ser sem vontade própria a mercê dos desejos do macho, como em 1 (bota a gata pra
dançar)e em 3 (“você pode observar pulando a cerca e atacando as mulheres...É carinhoso saber conversar se
tem mulher chorando vai logo consolar”). Em poucas canções em que a voz feminina é protoganizada
(ver o texto 4), esta representada de forma submissa, suplicando o amor do homem que detém o
poder sobre várias mulheres as quais se submetem a ele (“Ela fica com tudo e eu não levo nada”).
Desse modo, em termos de representação dos atores sociais o homem é representado como
uma figura central e a mulher como um acessório, um detalhe da forma de vida masculina. Vejamos
as letras:
(1) Abre o som do porta- mala,
bota a gata pra dançar,
desce mais uma cerveja,
que hoje o bicho vai pegar.
(2) Tenho fama se ser mulherengo
chavequeiro e de Dom Juan.
Onde eu chego tem sempre
Uma namorada me esperando
sou o bam, bam, bam
(3) Eu estou preocupado com um ricardão tarado que está por todo lado
você pode observar pulando a cerca e atacando as mulheres
Não quer saber de nada ele quer é agarrar
É carinhoso saber conversar se tem mulher chorando vai logo consolar
Por isso cuidado com seu mulherão ele está por todo lado
e vai pular o seu portão
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
(4) Não quero ficar nesse jogo de cartas marcadas
Ela fica com tudo e eu não levo nada
Só me resta saudade quando você se vai
Não quero esse amor de metade, esse gosto de fel
Essa coisa incerta, esse amor de motel
Você vê minha vida eu quero bem mais.
Eu quero dormir com você, te amar de manhã
E na frente dela não te tratar como irmã
Quero dizer pra essa outra que eu amo você
A análise da intertextualidade nos conduz a perceber a articulação dos discursos presentes
nos textos das canções de Forró, nas quais predominam o discurso machista, quando representam
o ator social “homem”. Nas letras analisadas “homem” tem que ser o “pegador”, construindo um
sujeito do discurso dominador: o homem de verdade é aquele que chega nos lugares e encontra as
mulheres que estão lá somente a sua espera. Tanto a texto (1) como o texto (2) representa a mulher
como algo fácil, um ser que não apresenta recusas para o deleite sexual dos homens, pois, por meio
desse discurso, elas estão sempre a espera do homem, prontas para satisfazer as suas vontades, como
fossem simples objetos. Tal representação indica também a articulação do discurso da submissão
feminina ao discurso machista, uma vez que a mulher é representada como um ser sem escolhas e sem
vontade própria, cujo único desejo é satisfazer aos homens.
Em termos de significado identificacional percebemos que o Forró eletrônico transformouse, nos dias atuais, em um estilo, um padrão de vida. No texto da canção (1) “Abre o som” percebemos o
que acontece em locais abertos, como as praças, aonde alguns jovens chegam com seus carros e abrem
o som do porta-malas para ouvir as músicas de forró, em disputas pela soberania do espaço, e nesse
sentido, colocam o som mais alto numa disputa pela atenção das mulheres. Foi o que observamos em
nossa pesquisa sobre o consumo do Forró em Quixadá, com observação-participante na Praça José
de Barros, local onde se reúnem os jovens para “curtir” o Forró.
A identidade é uma representação, socialmente construída. Segundo Lima (2007, p. 34), na
construção de identidades, há valores culturais que fazem com que tenhamos a nossa auto-estima alta
ou baixa, de acordo com as posições que ocupamos na sociedade. No caso do Forró, em termos de
significado identificacional, os elementos lingüísticos avaliativos depreciam a identidade feminina e
exaltam a identidade masculina através da voz do gênero masculino, que se auto avalia positivamente
como um “macho”, um homem virilizado para várias mulheres, naturalizando as ideologias patriarcais,
como em (2) “sou o bam, bam, bam”. Esta “voz masculina emite juízos de valor sobre as mulheres
através de presunções valorativas depreciadoras do ‘eu” feminino, como podemos observar nas letras
das canções abaixo:
(5) Mulher quanto mais safada é que o homem gosta.
Mulher quanto mais safada é que o homem gosta.
(6) Mulher Não Vale Nem Um Real
É hoje que eu vou encher a cara
Pra me esquecer da fuleragem da mulher
Considerações finais
Através desse “valor cultural” que é o Forró, os jovens acabam por construir uma
identidade, e nessa construção, utilizam-se de escolhas lingüísticas que estereotipam e inferiorizam
a mulher. Através dessa cultura de massa vemos uma construção de sentido de violência em relação
ao significado: acional, representacional e identificacional, tanto para o gênero feminino quanto para
o gênero masculino.
A presente pesquisar objetivou admitir que as identidades construídas se da através dos
processos de nomeação e designação para homens e mulheres onde são interpretadas e repetida
1008
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
na vivencias cotidianas, naturalizando sentido de violência através da legitimação de ideologias
machistas.
Fairclough vê a linguagem como uma prática que constitui o social, os objetos e os sujeitos
sociais. Pois o discurso ele não é somente um resultado de uma prática, ele ajuda também constituí-lo.
A analise não se esgota por aqui. Há vários outros focos que podem ser observados,
analisados e que poderão contribuir com a discussão teórica e metodológica, e que, certamente,
também contribuirão para as práticas discursivas, reflexivas e transformadoras.
Referências
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_____. Quando Dizer é Fazer– Palavras e Ação. Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre, Artes
Médicas, 1990.
DIAS, Tatiana Rosa Nogueira. Práticas Identitária em relatos de mulheres vítimas de violências doméstica. Brasília, 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A Ed, 1997.
LIMA, Higo da silva, SILVA, William Robson Cordeiro. O Forró como Produto da Indústria Cultural e a sua
Influência nos Adolescentes, Natal, 2008.
LIMA, Maria Cecília. Discurso e Identidades de Gêneros no Contexto da Escola. Brasília, 2007.
MUSSALIN, Fernanda & Anna Christina BENTES (2001) (orgs.) Introdução à Lingüistica: Domínios e Fronteiras.
Volume 2. São Paulo: Cortez Editora.
PINTO, Joana Plaza. Estilizações de gênero em discurso sobre linguagem. Campinas, SP: [s.n.], 2002.
RAMALHO, Elba Braga. Cantoria nordestina: musica e palavra. São Paulo: Terceira Margem, 2000.
RESENDE, Viviane, RAMALHO, Viviane. Análise do Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
WITTGESTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchun-gen). São Paulo: Abril
Cultural, 1984.
Anexos: Letras de canções analisadas
Aviões do Forró - Abre o Som
Abre o som do porta-mala
bote a gata pra dançar
desce mais uma cerveja
que hoje o bicho vai pegar
Sai da frente rapaz,
sai da frente rapaz
quando o Avião tá tocando
todo mundo vai atrás
Abre, abre, abre, abre, abre,
Abre, abre, abre, abre, abre,
Abre, abre, abre, abre, abre,
Abre, abre, abre, abre, abre.
Fiquei sabendo que a galera endoidou
quando a guitarra chora todo mundo grita ôu!
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Ôu! ôu! ôu! ôu! ôu!
Ôu! ôu! ôu! ôu! ôu!
Ôu! ôu! ôu! ôu! ôu!
Aviões do Forró - Amor de Motel
Não quero ficar nesse jogo de cartas marcadas
Ela fica com tudo e eu não levo nada
Só me resta saudade quando você se vai
Não quero esse amor de metade, esse gosto de fel
Essa coisa incerta, esse amor de motel
Você vê minha vida eu quero bem mais.
Eu quero dormir com você te amar de manhã
E na frente dela não te tratar como irmã
Quero dizer pra essa outra que eu amo você
Não quero sair por aí te chamando de amigo
Quando na verdade você é minha vida
Ela não é sua dona eu amo você.
Não quero esse lance
De bola dividida
Vem ficar comigo
Você é minha vida (Bis)
Não quero esse amor de metade, esse gosto de fel
Essa coisa incerta, esse amor de motel
Você vê minha vida Eu quero bem mais.
Eu quero dormir com você te amar de manhã
E na frente dela não te tratar como irmã
Quero dizer pra essa outra que eu amo você
Não quero sair por aí te chamando de amigo
Quando na verdade você é minha vida
Ela não é sua dona eu amo você.
Não quero esse lance
De bola dividida
Vem ficar comigo
Você é minha vida (bis)
Aviões do Forró - Mulher Quanto Mais Safada
Muler quanto mais safada é que o homem gosta.
Mulher quanto mais safada é que o homem gosta.
Ela faz e acontece bicho complicado
Quando ela quer amar deixa agente apaixonado
Com essas mulheres é só sofrer
Sem essas mulheres não sei viver
Mulher quanto mais safada é que o homem gosta.
Aviões do Forró - Mulher Não Vale Nem Um Real
É hoje que eu vou encher a cara
Pra me esquecer da fuleragem da mulher
Eu hoje vou sair fazer zueira
Quero acodar de bobeira dormindo num cabaré
Essa mulher nao vale nem um real
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Eu gosto dela e nao é da conta de ninguém
Por isso agora eu digo Tô decidido!
Se ela não ficar comigo não fica com mais ninguém
Mas aí o coro come, a cobra fuma, o bicho pega
Eu tô com essa danada e quem manda nessa bodega
Piriri, Piriri, Pocotó, Pocotó...
1011
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ORALIDADE E ESCRITA NA POESIA
DE MANOEL DE BARROS
Marinei ALMEIDA∗
(Universidade do Estado de Mato Grosso)
RESUMO: Propomos nesta comunicação algumas reflexões sobre a relação oralidade e escrita em poemas
do escritor brasileiro Manoel de Barros, reconhecido, atualmente, como um dos mais originais do país. O
trabalho poético de Manoel de Barros resulta de uma constante experimentação poética, tendo como objetivo
maior atingir o fôlego primeiro do nascimento de uma palavra. Tal trabalho é centrado, sobretudo, na criação
de novas palavras, no reaproveitamento e resgate de outras em desuso, e por vezes no aproveitamento da
linguagem oral e costumes culturais da região pantaneira, espaço que comparece, em grande parte da obra
desse poeta brasileiro, como motivo de reflexão poética. Dessa maneira, a atenção deste trabalho recairá,
sobretudo, na leitura da obra Livro de Pré-coisas (1985), a qual apresenta “releituras” de lendas e costumes da
cultura oral, bem como da regional.
PALAVRAS-CHAVE: Manoel de Barros; poesia; oralidade; escrita.
ABSTRACT: We propose, in this communication, to afford some considerations about the relation between
orality and writing in some poems of the Brazilian writer Manoel de Barros, lately renowned as one of the
most original writers of the country. His poetic work is the result of a constant poetic experimentation, one of
his aims being the achievement of the original breath of the birth of a word. Such a work is centred, most of
all, in the creation of new words, in the reuse and rescue of some words which fell in disuse, and, sometimes,
in the exploitation of the oral language, as well as the cultural habits of the Pantanal, the geographical space
which is conspicuously present in the work of this Brazilian poet, as a motive of poetic reflection. Thus, the
aim of this paper will be chiefly the reading of Livro de Pré-coisas (1985), a book which presents “rereadings” of
legends and habits of the oral, as well as the regional, culture of Pantanal.
KEY WORDS: Manoel de Barros; poetry; orality; writing.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Desde o primeiro livro do poeta mato-grossense Manoel de Barros, Poemas concebidos sem
pecado, de 1937, a viagem é motivo de descobertas para Cabeludinho, que anos depois viaja de trem
para os “rios de janeiros” para fazer seus estudos. Nas duas obras seguintes, Face Imóvel (1942) e Poesias
(1956) o cenário de seus poemas é composto por observações do mar, das pessoas e acontecimentos
no Rio de Janeiro e em algumas vezes seus versos voam num retorno às lembranças da fazenda – chão
de sua infância. Nas obras seguintes é constante a presença de um sujeito poético que percorre lugares
ao encontro da matéria que compõe sua obra: a natureza humana, vegetal e animal.
Além do tema da viagem, como acabamos de apontar, e das mudanças que ela provoca
no viajante para toda a vida, em maior ou menor grau, outro tema que comparece com pertinência
e insistência, dentre outras várias possibilidades oferecidas pelo conjunto das obras de Manoel de
Barros, atravessada constantemente pelo trabalho metalingüístico, é a memória.
Nos poemas de Manoel de Barros, o papel da memória é bastante importante para sua
realização. Essa memória é constantemente revisitada e reinventada. Sua escrita, dessa maneira, talvez
aponte para a afirmação de que se vive na linguagem o que, de certa forma, não se pode viver na vida
ou no momento exato das experiências. Assim, o tempo funcionaria como aquela “maquininha” de
construir histórias que permite a possibilidade de viver muitas vezes aquilo que se vive, “concretamente”
apenas uma vez, ou aquilo que se poderia ter vivido. Nesse sentido, a poesia de Manoel de Barros
significa, de certa forma, esse gesto de repetição que não cansa de dizer ou inventar um mundo de
possibilidades que se abre ao leitor. E a memória funciona como um instrumento indispensável para
empreender as mais diversas viagens através da escrita (ALMEIDA, 2008).
Considerando, então, que há no “viajar sem porto a sede de uma inteligência sempre inquieta
de novos horizontes” (BOSI, 1993, p.135), Manoel de Barros, em entrevista a José Castelo (1996, p.
12), nos conta que alguns anos de sua vida andou por vários lugares, pois
havia um certo fascínio em mim por cidades mortas, casas abandonadas, vestígios de civilização. Um
fascínio por ruínas habitadas por sapos e borboletas. Eu gosto de ver alguma germinação da inércia sobre
ervinhas doentes, paredes leprentas, coisas desprezadas. As fontes de minha poesia, estou certo, vêm de
errâncias desurbanas.
Essas casas abandonadas são como aquelas lembranças que adormecem sob o peso dos dias,
mas que pelas mãos do poeta são acordadas sempre para que digam o que não terminaram de dizer.
Essas borboletas e sapos nos seus mundos de ar e água são para o poeta, o invisível que ele quer e
anseia por tornar visível e vivo pela sua poesia atravessada pelo crivo da linguagem.
Esse gosto pela observação de pequenas coisas aflorado no jovem e curioso Manoel –
espécie de um “turista aprendiz” - é que percorrerá várias imagens criadas no tecido textual da obra
deste poeta, num claro diálogo com a experiência vivida.
No entanto, de todas as experiências vividas, à volta e o contato com sua terra natal e,
sobretudo com o Pantanal, é que marca definitivamente a arte criativa de Manoel de Barros. Lugar
onde “árvores, bichos e pessoas têm natureza assumida igual” (BARROS, 2004, p. 9) e em cada
fazenda desse lugar se encontra uma “ilha lingüística”, na opinião do poeta.
O Pantanal, enquanto matéria prima, atravessa quase toda sua produção. Este procedimento
já rendeu em Manoel de Barros, por inúmeras vezes, a classificação de “poeta ecológico”, “poeta
pantaneiro”, e na grande maioria, suas obras constantemente são classificadas como “guia literário
do Pantanal”. A nosso ver, esta classificação acaba por restringir e muito a grandeza, não só de seu
trabalho como a da linguagem, mas também acaba por reservar um lugar inferior aos valores, aos
costumes e às crenças de uma gente que se faz ouvir pela voz do poeta. Nesse sentido diríamos que
a linguagem é o lugar do trabalho plástico dessas coisas, é o lugar da verbalização de um mundo que
possui sua própria linguagem e que o poeta traduz.
A obra Livro de Pré-coisas, publicada em 19851, objeto de nosso trabalho, é dividido em
quatro partes. Na primeira, “Ponto de partida”, além da advertência aos viajantes-leitores, conforme
1
1014
Neste texto foi utilizada a 4ª edição, publicada em 2003.
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
já comentamos, um “Narrador apresenta sua terra natal” que por meio da metalinguagem apresenta
Corumbá - “Portão de Entrada para o Pantanal”, “cidade velha” em que “o tempo e as águas esculpem
escombros nos sobrados anciãos” e “desenham formas de larvas sobre as paredes podres”, que “são
trabalhos que se fazem com rupturas – como um poema” (BARROS, 2003, p.11).
No decorrer da obra, observamos que tal ruptura se dá tanto com o tempo presente, como
com a natureza completa e exuberante que o Pantanal oferece. Manoel de Barros rompe com esta
natureza já construída e propõe uma outra. O poeta se comporta ora como uma testemunha, ora
como um inventor dessa nova natureza, desse novo espaço. Não será por acaso que nessa obra está
presente uma voz que narra e outra que conta, fornecendo elementos sobre essa “excursão poética”,
proposta já de início.
Nessa primeira parte nos deparamos com várias características típicas da escrita desse
autor. Ao apontar um narrador para apresentar sua terra natal, inserindo, portanto, um elemento
tipicamente do gênero narrativo, permite o alargamento do gênero poético. E no decorrer dessa
obra, vemos que a voz do narrador ora se mistura, ora se assemelha a uma voz muito próxima
à do contador oral, inclusive ao incorporar a linguagem local e o aproveitamento de “causos” e
crendices da região “transfeita”.
Começa por desenhar através da voz e do olhar do narrador, uma tela onde os elementos
são incorporados: a natureza, o vegetal, o animal e o humano. Através desse olhar é que nos é aberto
o “Portão de Entrada para o Pantanal”, e por meio desse olhar “transfazedor” é que essa natureza
não nos é dada por completa e acabada, muito pelo contrário, esse Pantanal será poeticamente criado
ou recriado através dos versos narrativos, dos causos, “das águas e de pedras”, dos “cuiabanos, papabananas, chiquitanos e turco”, além do silêncio e do “rumor de útero nos brejos” (BARROS, 2003,
p. 12) que compõem a segunda parte da obra intitulada “Cenários”. Na terceira parte da obra nos é
apresentada uma personagem emblemática, a qual comparecerá em várias obras vindouras de Manoel
de Barros - Bernardo, que se mistura à própria natureza que o rodeia. Já na última parte intitulada
“pequena história natural”, nos é dado a conhecer mais intimamente alguns bichos, pássaros e insetos.
Suas vivências e presença se misturam ao corpo poético e pantaneiro da obra construído através da
edificação da linguagem.
Dessa maneira, propomos analisar aqui alguns elementos inseridos no Livro de pré-coisas2,
tendo como objetivo principal algumas reflexões sobre o par oralidade e escrita na obra citada.
1. A arte de contar “as nossas coisas simples”
Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e
lembranças,é botando enchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. É, enfim
através das vadias palavras, ir alargando os nossos limites.
(Manoel de Barros)
Através destes versos retirados do LPC e que servem de mote da discussão empreendida
por nós nesta parte do texto é que também nos autoriza retomar as palavras de Octavio Paz (1982,
p. 43) extraídas do seu belíssimo texto “Linguagem”, texto citado em momentos anteriores, quando
este estudioso compara a palavra a uma “ponte através da qual o homem tenta superar a distância que
o separa da realidade exterior”, já que ela – a palavra -, na opinião de Paz, é o único testemunho da
realidade do homem.
Nesses versos, em epígrafe, observamos que além da utilização da palavra como meio
de reduzir o isolamento e alargar os limites, há de considerar a importância dada à questão do
“aproveitamento” de materiais da realidade na tessitura poética. Essa questão, na obra que ora lemos,
inclui não somente “o contar lorotas”, mas, sobretudo a exposição e escolhas de elementos da (con)
vivência do poeta no e com o seu espaço – o Pantanal. Recurso este que, como já afirmamos, não
2
Passaremos a nos referir com a seguinte abreviação: LPC, grafada em itálico e letras maiúsculas.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
diminui o valor deste poeta e nem vai ao encontro da classificação, que por várias vezes, lhe foi
atribuída – a de poeta regional, ecológico, entre outras denominações, mas antes de tudo nos revela
uma criação madura e bem resolvida esteticamente, sobretudo pelo rigor da utilização das palavras e
criação de imagens inusitadas.
Levando em conta que “uma obra, embora pertencendo ao ramo genérico cuja essência
a escrita revela prioritariamente, pode participar também da natureza ou dos traços particulares
de outros gêneros” (LEITE, 1991, p. 88), observamos, dessa maneira, que a obra, aqui analisada,
apresenta gênero híbrido trazendo algumas marcas narrativas como, por exemplo, a presença de
personagens – considerando nomes próprios, situações de diálogos que permeiam tais personagens -,
a presença de um narrador, pequenos “causos” e lendas, o emprego de marcas lingüísticas do registro
coloquial, além da demarcação de um espaço, o Pantanal. Estes últimos elementos, que apontamos,
corroboram para o hibridismo do gênero, dialogando, dessa forma, com a literatura oral.
Essa literatura – a ignorada irmã mais velha e popular da literatura oficial (CASCUDO, 1952,
p.23) - tem no seu alicerce o uso da linguagem oral, a qual ainda age cantando, falando, representando,
dançando no meio do povo, segundo Câmara Cascudo, pois “não há povo que possua uma só cultura,
entendendo-se por ela uma sobrevivência de conhecimentos gerais” (Idem, p.27). Essa linguagem, “a
nossa herança” (HAVELOCK, 1995, p. 27), faz parte de nós tanto quanto a habilidade de andar ereto
ou usar as mãos, segundo Eric Havelock, por isso mesmo, “constitui um engano descartar tal herança,
aplicando-lhe rótulos como primitiva, selvagem ou inculta.” (Idem, p. 27).
No entanto, a relação entre a literatura escrita e oral possui o caráter de uma tensão mútua e
criativa contendo uma dimensão histórica, afirma Haveloch (1995, p.18), e que por vezes essa tensão
pode manifestar-se como tendência em favor de uma oralidade resgatada.
A presença do uso da linguagem oral é uma constante no conjunto da obra de Manoel de
Barros, como já afirmamos. A utilização dessa linguagem marcada por uma coloquialidade recai com
certa ênfase em várias de suas obras, remetendo, dessa maneira para um espaço, sobretudo em LPC
quando essas marcas coloquiais ficam latentes nas vozes trazidas na obra, através dos diálogos entre
personagens e em algumas vezes na maneira de contar um “causo”, uma crendice.
Inferimos que essa coloquialidade textual em Manoel de Barros, sobretudo nesta obra,
“aponta para uma maior proximidade com um interlocutor e chama atenção para certa quebra da
cerimonialidade, dita “culta”, (acrescentaríamos formal ou até padrão), da escrita” (LEITE, 1991, p.
95), quebra esta que revela o gosto e escolha “por um certo estatudo consonante com a oralidade”
(Ibidem). Ao percorrermos os versos de LPC nos deparamos com o resgate de vários recursos
característicos da oralidade, dos quais passamos a visitar.
Como afirmamos, nesta obra comparece um sujeito que viaja e que conta sua aventura. Esse
“eu”, que tomamos a liberdade de denominar como “eu-narrador”, ao adentrar pelo portão que o
leva ao Pantanal e ao deparar com os ribeirinhos que ali vivem, vai registrando o que presencia. A essa
voz que conta se misturam outras vozes, as dos habitantes daquele lugar.
Logo na primeira parte de LPC comparece uma sábia recomendação de Pocito – um dos
moradores da região pantaneira e conhecedor do lugar - que dá um conselho ao narrador que viajou
“de lancha ao encontro de seu personagem” (BARROS, 2004, p.15): “Oive de mi, xará. Quem não
ouve conselho, conselho ouve ele” (Idem, p. 16), para em seguida apresentar a esse narrador “o portão
da Nhecolândia, entrada pioneira para o Pantanal”. E a partir dessas primeiras vozes que observamos
no início dessa obra, comparecem outras que se mesclam a elas.
Essa observação nos leva às reflexões que Walter Benjamin (1994) empreendeu ainda
em 1936, sobre o narrador clássico no texto “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov”, no qual ele discute o fim da arte de narrar. De maneira mais ampla, o teórico fala sobre a
nossa crescente incapacidade de contar. Walter Benjamin afirma que a “arte de narrar está em vias
de extinção” (Idem, p.197), por vários motivos. Um deles é causado pelo “declínio da aura” da arte
tradicional. Outro motivo é a conseqüência trazida pela guerra, pois quando esta terminava o homem
voltava vazio de experiências vividas. Segundo Benjamin,
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém
narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos
parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências (p. 197-198).
Para esse teórico, dentre os narradores, existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas
maneiras: aquele que viaja, pois segundo o povo, quem viaja tem muito que contar, portanto é aquele
que sai do seu mundo individual e participa do mundo do outro, e o segundo grupo trata-se daquele
que conhece suas próprias histórias e tradições.
Levando em consideração o tema da viagem em obras de Manoel de Barros, bem como sua
afirmação de que “o que escrevo resulta de meus armazenamentos ancestrais e de meus envolvimentos
com a vida”,(BARROS, 1990, p. 315) podemos afirmar que não é por simples acaso a criação dessas
vozes “narradoras” em LPC. Vimos a semelhança entre esses narradores que transitam nos dois
grupos apontados por Walter Benjamin aos dois exemplos que trouxemos nos trechos, acima citados,
o do “narrador” que viaja ao encontro de seu personagem e a figura de conselheiro, Poctio, que dá
conselhos ao visitante. Pocito aqui toma para si o papel daquele narrador clássico, o sábio que dá
conselhos, conforme Walter Benjamin aponta.
A maneira simples de contar tem suas raízes na necessidade do homem se comunicar, e
segundo Walter Benjamin na sua capacidade de intercambiar experiências. Dessa maneira, observamos
em “Lides de campear”, poema inserido também na primeira parte de LPC, uma tentativa de compensar
ou justificar o trabalho artesanal do pantaneiro, quando o poeta atesta sobre tal ofício:
No conduzir de um gado, que é tarefa monótona, de horas inteiras, às vezes de dias inteiros – é no uso de
cantos e recontos que o pantaneiro encontra o seu ser. Na troca de prosa ou de montada, ele sonha por
cima das cercas. É mesmo um trabalho na larga, onde o pantaneiro pode inventar, transcender, desorbitar
pela imaginação. (p. 33)
Por um lado este trabalhador se aproxima ao universo do homo-narratio, para reportarmo-nos
novamente ao pensamento benjaminiano, no uso de sua capacidade inventiva de criar e transmitir suas
experiências, as quais são inseparáveis do mundo que o rodeia. A enumeração dos verbos “inventar”,
“transcender”, “desorbitar”, no infinitivo, traz uma movimentação ao trabalho monótono do pantaneiro,
remete ao trabalho do homem ainda ligado ao trabalho manual, parecido ao do artesão e do próprio poeta,
pois assim como este, “o pantaneiro vence o seu estar isolado, e o seu pequeno mundo de conhecimentos,
e o seu pouco vocabulário – recorrendo às imagens e brincadeiras” (BARROS, 2003, p. 34).
Nesse trecho é muito interesse notar a perspectiva adotada pelo poeta em relação à meditação
desencadeada, a partir da própria construção da textura verbal, que remete ao ato de escrever enquanto
trabalho de concretização.
Dessa maneira, “Nos primórdios” (Idem, p.37) – poema inserido também na primeira parte
de LPC – o “eu” que conta começa com o verbo “era”, utilizado no início da maioria das narrativas
orais como fórmula usual: “era uma vez...”:
Era só água e sol de primeiro este recanto. Meninos cangavam sapos. Brincavam de primo com prima.
Tordo ensinava o brinquedo “primo com prima não faz mal: finca finca”. Não havia instrumento musical.
Os homens tocavam gado. As coisas ainda inominadas. Como no começo dos tempos. (p. 37)
O verbo utilizado no pretérito “era” acompanhado pelo advérbio “só” remonta um tempo
outro – o início de uma formação de sociedade ainda não nomeada, ainda não existente enquanto
modelo, tal qual hoje concebemos. Remete, portanto, ao tempo mítico, ao tempo inaugural.
O tom de contar se aproxima ao bíblico, mas atravessado de certa ironia:
Logo se fez a piranha. Em seguida os domingos e feriados. Depois os cuiabanos e os beira-corgos. Por fim
o cavalo e o anta batizado. Nem precisavam dizer crescei e multiplicai. Pois já se faziam filhos e piadas com
muita animosidade. (p.37)
Apesar de apontar para um tempo passado, “Nos primórdios”, como atesta o título, essa
voz que conta não é o do habitante daquela região, pois a construção sintática obedece ao padrão
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
normativo das regras de construções frasais. No entanto, a temática escolhida e a maneira de exposição
simples, com seqüência lógica, aproximam-se das narrativas orais. Sabemos que cada vez que se conta,
ou se narra algo, é um acontecimento, situado de acordo com os fatores do meio e da cultura. Marca
esta que apontamos como uma atualização do ato de contar nesta obra, assim como vamos perceber
em outros “causos”, uma vez que o “Pantanal é muito propício a assombrações”. Um deles versa
sobre os “lobisomens, que são uma espécie de assombração que bebe leite” (p.53). Assim, lemos
nestes versos que:
Houve quem tenha visto até lobisomen de chinelo. Vento que sopra na folha do rancho pode que seja.
Passos no quarto da moça, imitando com passo de
gente, já ouvi chamar de lobisomen. Parente de viúva
aparece muito de noite. Pede mingau, pede vela e se
vai. Às vezes até pede para a viúva acompanhá-lo do
outro lado do mato, a fim que não fique extraviado o
errante por esses cerradões de três pêlos.
(...)
Tem gente que não conhece lobisomem de vista.
É muito difícil mesmo. Houve quem enviasse bilhete
em pescoço de cachorro marcando encontro na hora
que a lua tiver arta. Fazem caprichos. (p 53)
Outro “causo” é sobre a velha Honória que virou “serepente”, destino daquele que “termina
de inteirar cem anos”, já que o “Pantanal tem muitos veios para esses indumentos” (p. 54).
Foi o caso de uma velha Honória. Outubro ela sumiu de casa e tardou comprido. Dezembro apareceu de
escamas na beira da vazante. Estava pisada na cacuncunda e os joelhos criaram cascão de tanto andar no
tijuco. A língua muito fininha, ofídica, assoprava agora como no tempo de pegar a arca de Noé. Mesmo
até raios de sol às vezes nela tremblavam. Hora teve que não se podia mais dizer se era ave estrupício ou
peixe-cachorro. (p.53)
Percebemos, também aqui, certa atualização destes pequenos “causos” no ato de contar,
realizado por meio do recurso da ironia, que é atravessado por outro elemento, o humor. A ironia e o
humor são a grande invenção do espírito moderno, segundo Octavio Paz (2003, p.70-71). O humor
nasce com Cervantes, lembra-nos Paz, e consiste em tornar ambíguo o que toca: “é um juízo implícito
sobre a realidade e seus valores, uma espécie de suspensão provisória, que o faz oscilar entre o ser e
o não ser.” (Idem, p. 71).
No primeiro “causo”, o do lobisomen, Manoel de Barros retoma uma lenda popular
conhecida em quase, ou, em todo o Brasil. No entanto, esse novo enredo toma uma fisionomia
particular aqui, através do elemento da ironia, pois essa “assombração” é plenamente humanizada na
descrição de suas ações: beber leite, entrar no quarto de moças, visitar viúvas fingindo ser parente.
No segundo “causo”, o tom irônico também prevalece. Ao contrário das atitudes
características humanas do primeiro, aqui a velha Honória recebe uma grande carga de animização
como: criar escamas, ter língua “ofídica”, rastejar de joelhos ao invés de caminhar ereta. A ironia
ganha uma carga maior, neste segundo “causo”, quando esta voz que conta traça uma comparação
do acontecido com a velha Honória relacionada a outras lendas que tratam da transformação de
pessoas em outras espécies. No entanto, essas pessoas transformadas voltam ao seu estado normal na
resolução do feitiço ou do enigma ou até mesmo pelo término de um castigo ou por algum “gesto de
amor”, mas aqui, a velha Honória não deseja voltar à sua forma inicial:
Heróis gregos viraram de rochas de anêmonas de Água – freqüentemente. Porém desviraram logo, ao
primeiro gesto de amor. Velha Honória parece que não pretende desvirar. Nem que a chamem de darling.
(p.54-55)
A posição de quem conta fica bastante evidente ao situar-se ora num campo bastante criativo que
aponta para uma subjetividade crítica nesses pequenos “causos”, por meio do par ironia e humor, ora no
campo do mito, ao resgatar lendas da tradição popular, adequando-as ao espaço da região apontada.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Câmara Cascudo, ao abordar sobre os elementos e temas da Literatura Oral (CASCUDO,
1952, p.31), começa por afirmar que por muito tempo acreditou-se ser esse tipo de produção (estória
popular, anedota, ditado, adivinha, canto com letra) formado por elementos simples e reduzido à estrita
função daquele uso e, como expressão local. Tal produção, também, serviria para o conhecimento
dos vizinhos e entendimento dos estrangeiros ao apontar, por meio das estórias, características do
lugar. No entanto, cada produção é constituída por “elementos justapostos, encadeados, formando o
enredo, o assunto, o conteúdo.”, pondera Câmara Cascudo (Idem, p.31). Mesmo não se tratando de
elementos novos e inéditos, essas ‘estórias’, sob várias nuances, aparecem em muitos outros lugares,
próximos e distantes. A novidade, segundo esse estudioso, “consiste na forma tomada por esses
elementos-temas para a combinação” (Ibidem) de cada uma delas. Essa combinação se dá pelos
inúmeros elementos que o escritor lança mão em sua produção.
O narrador desses “causos”, em LPC, não se comporta como simples transmissor daquilo
que ouviu, não se coloca também como detentor de tal história, pois as modifica inserindo nelas
elementos do cotidiano, como as ações da suposta assombração, o lobisomen, e por vezes, elementos
que remetem ao espaço alagadiço e brejoso do Pantanal, como “beira da vazante”, citado no
penúltimo trecho. Fatores estes que tornam responsáveis por denunciar no espaço uma região, e no
tempo uma época, segundo Câmara Cascudo (Ibidem), marcando com isso um caráter universal nessa
produção.
Segundo Walter Benjamin, “quem escuta uma história está em companhia do narrador;
mesmo quem a lê partilha dessa companhia” (1986, p. 213). Ato que se diferencia do estado solitário
do leitor do romance, na opinião desse crítico. Assim, somos convidados, por várias vezes, a “ouvirler” outros pequenos “causos” e outras pequenas lendas distribuídas nas páginas do LPC, como se o
“eu” que conta se dirigisse não somente ao seu narratário, aquele que está perto “ouvindo” a história
nas páginas da obra, mas também aos seus leitores ou futuros leitores: “O caso eu aprendi de oitava,
xará. Oive de mi” (p.80). Esse é outro elemento resgatado das fontes orais nessa obra e que, de certa
maneira, traz o objetivo de fornecer um contexto sobre a formação humana, vegetal e animal do
espaço pantaneiro.
Em nossa opinião, algumas dessas pequenas “estórias” que lemos remetem a experiências e
conhecimentos bastante particulares, os quais acreditamos que só podem ser contados ou transmitidos
por uma pessoa que mantém ou manteve contato mais próximo com o interior daquela região e
daquela cultura específica. No entanto, vale a pena ressaltar que toda essa carga de vivências, que
insistimos em apontar, na produção desse poeta vem atravessado pelo trabalho crítico e subjetivo da
linguagem, papel de todo escritor que se atreve a pisar no terreno movediço e oscilante das imagens,
no mundo indizível da poesia, na constante fronteira da oralidade e a escrita.
Octavio Paz afirma que “a verdade do poema apóia-se na experiência poética, que não difere
essencialmente da experiência de identificação com a “realidade da realidade” (PAZ, 2003, p.50). Assertiva
que respalda o que afirmamos acima e que reforça a nossa opinião de que a escrita de Manoel de Barros
também é resultado de sua (con)vivência no e com aquele espaço, matéria de sua poesia.
Encontramos em LPC, outras passagens que apontam para certas particularidades daquela
região. E mais uma vez o ato contado é reatualizado e marcado pelo crivo do sujeito da enunciação,
com o objetivo, nesta obra, de aludir à origem, hábitos, crenças e costumes de um determinado povo,
conforme atestamos:
Pois foi esse o povo ladino, sensual e andejo que um dia atravessando o rio Taquari, encheu de filhos e de
gado o que se chama hoje, no Pantanal, a zona da Nhecolândia. (p. 75)
O ato de dormir em redes, por exemplo, é ainda hoje um costume bem típico do interior de
Mato Grosso, ora para amenizar o enorme calor da região que constantemente chega a quarenta graus
durante o dia, ora pela facilidade no aproveitamento do próprio material artesanal proporcionado
pela cultura do plantio de algodão que, depois de colhido e transformado em fios resistentes, foram e
são produzidos pelas mulheres, agora em menor escala, redes bordadas com vastas franjas, decoradas
com motivos da região. Vejamos uma passagem em LPC:
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Em 1926, o antropólogo Claude Lévy-Strauss, de viagem por ali, notou a pobreza dos móveis que encontrou
no interior das residências. Dois ou três mochos na sala, arames de estender roupas nos quartos servindo
de armário – e redes. Redes armadas por todos os cantos. Redes muitas de varandas artísticas, servindo de
vasilhas de dormir e de sestear. (p. 74-75)
Outro elemento típico das regiões amazônica e mato-grossense, logo da região pantaneira,
é o uso do guaraná em pó, substituindo, em determinados locais, sobretudo o rural, o café. Pelo
positivo teor dos componentes ativos do guaraná, que ajudam no cansaço físico e mental no seu uso
diário, muitas são as lendas referentes a esse produto, inclusive de atribuir ao guaraná certo poder
afrodisíaco.
O costume da utilização do guaraná, bem como de seus efeitos, ganha uma nova versão
nesta obra. Após sabermos do costume típico da reprodução humana através do “hábito de sestear
ao mormaço do meio-dia” sobre as redes, onde “se amulheravam e se afilhavam também”, pois “a
blandícia do mormaço engendrava crianças” (75), gesto este apontado pelo ‘eu’ que narra como
“coisa imanente e afrodisíaca, que muito deve ter influído nas tendências voyeurísticas daquele povo”
(Idem), somos informados sobre o poder do guaraná:
(...) bem como o hábito do guaraná que é bebida afrodisíaca, porém no seu ralar e não na substância da
bebida. Eis que no ralar a mulher meneia os quadris. E o desejo dos homens provém do mover dos quadris.
Coisa que eu não descreio. (p75)
Através da ironia, as potencialidades atribuídas ao guaraná ganham uma outra versão. A ironia
é enfatizada pela última sentença que insere o consenso da voz que conta, marcada pelo pronome
pessoal em primeira pessoa do singular “eu”: “Coisa que eu não descreio.”
“Dos veios escatológicos”, a memória do “eu” que conta vai ao encontro de pequenos
e corriqueiros acontecimentos e/ou comportamentos bastantes particulares da região rural de
Mato Grosso. Assim lemos sobre uma vila que ainda não possuía instalações sanitárias como hoje
conhecemos:
Na Vila não se praticam latrinas. Donas desabavam em urinóis. E os homens no mato. Os porcos seguiam
os homens pelos trilheiros que davam no mato. (...) Na hora do homem fazer força, quando a vaidade se
acaba, justo aí chegavam os porcos famintos e, lhes entrando nos homens por debaixo, saíam com eles nas
costas, quando lhes não prostravam na própria obra. (p. 73)
A estória popular, segundo aponta Câmara Cascudo, “é revelador dos dados imediatos de
psicologia coletiva, humor, alegria, compreensão, sentido social e humano, crítica, sátira, consagração
e repulsa” (CASCUDO, 1952, p261). O elemento do humor revela o lado psicológico desse “eu”
que informa satirizando sobre pequenos atos desse povo “ladino” que um dia atravessou o Rio
Taquari, ao mesmo tempo, esse contador acaba por atualizar esses atos, injetando nesse contar sua
versão particular, ou melhor, esses atos contados se modulam a essa nova versão dada (BRUNER;
WEISSER, 1995, p.144).
Essa atualização de “causos” e de pequenos contos que afirmamos acima faz parte do
trabalho poético e experiência de Manoel de Barros e se realiza aqui através da chamada memória
semântica (Idem, p. 147), um dos três diferentes sistemas de transmissão da memória humana,
que consiste na capacidade dessa memória conter uma função esquematizadora e extremamente
eficaz, não somente de selecionar e organizar vastas quantidades “de material armazenado em
padrões de significado, mas também de ‘girar em torno’ de esquemas já formados e reorganizá-los
segundo as intenções e atitudes” (Ibidem). Portanto, esse sistema de memória além de fornecer um
repertório, possui a capacidade de transformar, alterar, modificar tal repertório. Essa capacidade
atribuída à memória semântica, sobretudo relacionada ao poeta, vem perpassada por um outro
fator, a imaginação que, segundo Octavio Paz concebe, é “a condição necessária de toda percepção;
e, além disso, é uma faculdade que expressa, mediante mitos e símbolos, o saber mais alto” (PAZ,
2003, p. 78), o do campo poético.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Referências
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Eduardo White”. São Paulo: FFLCH – Universidade de São Paulo,2008. [Tese de Doutorado – 213f].
BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão – poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização, 1990.
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_____. Livro de pré-coisas. 4.ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Record, 2003, p., 9.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.7 Ed. São,m Paulo:
Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1)
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix,1993.
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LEITE, Ana Mafalda. “Da poeticidade à narrática”. In: A Poética de José Craveirinha. Lisboa: Veja, 1991.
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_____. Signos em rotação. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
1021
Ir para o Sumário
A REPRESENTAÇÃO DA POBREZA SOCIAL NA
FICÇÃO BRASILEIRA DO OIAPOQUE AO CHUÍ
Marisa de Assis SOUZA
(Universidade de São Paulo)
RESUMO: Este estudo visa descrever a representação da pobreza social na ficção brasileira como um novo
mapa no formato de cartomorfose literária, obtido a partir do conjunto dos fatos e dados presentes na urdidura da
ação. Em poucos ela é descrita qual parte da paisagem humana, em certas ficções aparece sob a configuração
de um compromisso ideológico, em outras é um desabafo da condição de quem a vivenciou, ou pode formar
o equivocado tripé: pobreza, desigualdade social e vontade política como causas da criminalidade. É possível
verificar que, às vezes, a ficcionalização da pobreza parece pouco verossímil. Essas possibilidades estão
presentes nas obras de Erico Verissimo (O tempo e o vento), Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo), Paulo Lins
(Cidade de Deus), Miltom Hatoum (Relato de um certo Oriente/Dois irmãos) –– realidades sociais do Brasil de 1750
aos dias atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Cartomorfose literária; Compromisso; Double Bind; Paisagem; Pobreza.
RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo describir la respresentación de la pobreza social social en la
ficción brasileña como en un nuevo mapa en el formato de la cartomorfose literaria, obtenidos de todos los
conjuntos de los hechos y datos presentes na urdimbre de la acción. En algunas novelas se describe lo que el
paisaje humano, en algunos de ficción aparece en la configuración de un compromiso ideológico, em otras es un
desahogo de la condición de quienes han experimentado, o puede servir de mal trípede: pobreza, desigualdad
social y voluntad política como causas de la delincuencia. Es comprobable que a veces, la ficcionilización de la
pobreza no parece probable. Estas posibilidades están presentes en las obras de Erico Verissimo (O tempo e o
vento), Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo), Paulo Lins (Cidade de Deus), Milton Hatoum (Relato de um certo
Oriente/Dois Irmãos) –– la realidad social del Brasil em 1750 a la fecha actual.
PALABRAS CLAVE : Cartomorfose Literaria; Compromiso; Double Bind; Paisaje; Pobreza
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Refletir a respeito das condições sociais dos desassistidos no contexto da literatura
brasileira requer uma investigação em relação a certos aspectos do Brasil e da prosa editada no
país a partir de 1960. Tal atitude implica um olhar que vai além de épocas e lugares, acima dos
entusiasmos em face de uma região geográfica no contexto das sociedades contemporâneas, até
finalmente, constatar como os autores conseguem inscrever sua obra no espaço sem fronteiras que
é a Literatura. A elaboração de qualquer crítica começa desta tomada de consciência da estética
textual. O pesquisador esquece os rótulos e lembra que toda arte em geral tem um caráter e uma
destinação universal. Ao agir assim, o crítico ou ensaísta perceberá de maneira bem nítida a noção de
que todo texto é sempre regional, à medida que ele é uma experiência do criador, porém incessante
em seu compromisso com a universalidade do particular e a transformação do regional em universal
–– fronteira de um mapa por fazer.
Visto por esse ângulo, o estudo da representação ficcional da pobreza, seja ela do norte ou
do sul, nacional ou estrangeira, não é um análise regionalista desse fato social. O intuito desta é outro,
é o de verificar como alguns autores fizeram essa inclusão. Em poucos ela surge integrada a paisagem
humana; em outros ela é retratada como compromisso ideológico, mais marcadamente do que outra
coisa, em poucos, ela é um desabafo de um fato concreto experimentado. Por fim, existem aqueles
que caem na armadilha de interpretar a pobreza, a desigualdade e vontade política como causas da
criminalidade. Desse modo, a literatura transforma o perímetro da área ficcional no verbo transitivo
direto –– fronteirar: tornar fronteiros os habitantes dos mais distantes lugares quando os dispõe
frente a frente a pobreza, ou quaisquer outros fatos sociais como expressão limite de articulações
culturais dinâmicas em suas mais diversas faces. Ao extrapolar o debate da distribuição da riqueza
entendida restritamente ao fenômeno monetário, igualmente inclui dentro dos limites da nação, os
aspectos político, religioso e social do país ao problema da penúria, da escassez.
Dito ficcionalmente: de leste a oeste, dos pólos a linha do Equador as reiteradas caracterizações
da pobreza desenham uma outra cartografia, diferente daquela elaborada para representar parte
do mundo, até mesmo todo ele, de espaços menores de uma região ou cidade. Tampouco é uma
cartografia militar de cunho estratégico. Mas, estranhamente é tudo isso. Transforma-se num mapa
temático, no qual símbolos quantitativos e qualitativos do fenômeno a ser representado são mostrados
em sua distribuição espacial. Curiosamente, “quase se concretiza na forma de um cartograma, cujo
desenho denota a população e o uso do espaço onde estão inseridas”. Do mesmo modo, “assemelhase a uma anamorfose pela distorção de um espaço real retratado para se tornar proporcional a uma
das variáveis que está sendo representada” –– as sequelas da desigualdade social e da concentração de
renda. Assim sendo, o termo regionalista empregado para o estudo dos contrastes sociais presente na
literatura torna-se obsoleto.
O universo ficcional deve ser visto como um novo mapa no formato de cartomorfose literária,
obtido a partir do conjunto dos fatos e dados descritos na urdidura da ação. Ele não pressupõe um
centro, o percorrer de um ponto de partida para um outro de chegada, não se limita a descrever
os aspectos que diferem o interior e a metrópole. Pelo contrário, o interesse maior desse tipo de
caracterização é o conteúdo mostrado: o acesso às informações descritas pelo narrador, como este
compõe um lugar para onde convergem as coisas simbólicas inseridas nas particularidades de um chão
histórico. Mais do que isso, cartomorfose literária é um ambiente usado para a elaboração de situações
atemporal ou não, que provocam interesse e concorrem para um determinado desenlace de uma
época. Por um acaso, transforma-se no campo de debate de determinados temas de maneira exaltada
ou diminuídas exageradamente no contexto criado e consequentemente se remete para um espaço
cultural mais amplo que o narrador pretende chegar.
Isto é, no espaço maior dos enredos desenrolam-se os conflitos humanos daqueles que
vivem no mais diversos cantos do Brasil e do mundo. E, inserido nesse espaço maior, encontra-se o
espaço menor. É nesse pequeno universo elaborado que as experiências de todos os personagens são
remodeladas pela cartomorfose literária e lançam o indivíduo diante de um quadro, no qual os sujeitos
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
são alocados em um espaço-tempo moldado por uma tensão entre a subjetividade individual e a
coletiva. Os acontecimentos, conflitos e distinções –– fontes indiscutíveis dos interesses, moralidade,
política, economia, lutas do cotidiano, discriminação e o preconceito –– aí se desenrolam de maneira
dicotômica a realidade significativa e a modalidade que opera sobre as ações dos atores das histórias
narradas. Lugar onde enunciado e enunciação se envolvem em processos representativos, responsáveis
pela organização do desfecho do texto ficcional. Enfim, não segue necessariamente os limites das
fronteiras estaduais, nacionais ou internacionais, pois seus critérios incluem múltiplos fenômenos
cujo dinamismo implica uma delimitação e existência de elementos que dão certa homogeneidade
a essas áreas. Em virtude das desigualdades locais, o alcance dessa crítica, o tipo de explicação que
ela propõe tem por objetivo instigar o leitor a pensar a respeito das complexas relações existentes
entre os temas retratados. Incitá-lo a observar a maneira como as pessoas reagem, ignoram ou se
acomodam frente às instituições que tem a função de resolver as especificidades dos problemas desse
mesmo complexo espacial num dado momento.
A partir desse alerta, acompanhar, avaliar e fazer um diagnóstico da pobreza urbana ou
não descrita na literatura brasileira é um desafio quádruplo, quando não se tem uma noção profunda
do funcionamento do sistema público, das instituições financeiras, das estratégias de organização e
desenvolvimento para locais completamente diferentes. Primeiro, porque os pobres constituem a maior
parte da população urbana. Desse modo, no discurso nacional ela figura-se como sinônimo de povo.
Segundo, enquanto categoria social se tornou alvo de teorias a respeito de seu papel nas sociedades
em desenvolvimento. Terceiro, a freqüente representação da pobreza nas artes –– literatura, cinema e
outros sistemas semióticos contribuem para demarcá-la negativamente como enunciação genuína, às
vezes legítima das desigualdades sociais. Por fim, as formas elaboradas de representação da pobreza,
propiciam um fascínio ambíguo, despertado por sua presença nos meios de comunicação, bem como
nas artes. Indiretamente não só reforça, mas reconhece como autentico o quadro de exclusão pela
espetacularização da miséria e dos fatos que ela gera, dentre eles o banditismo.
Há séculos os escritores de diversas partes do mundo descrevem as condições de classe em
seus textos; as acusações dos excluídos carregadas de ódio; neles incluíram mensagens moralistas; o
sentimento de senhor da terra e de escravos, incapazes de desenvolver com seus subalternos relações
liberais; as condições de vida do homem do campo e da cidade, as privações dos habitantes de bairros
miseráveis e dos moradores de condomínios fechados de luxo; do providencialismo transformado
em ferramenta para incitar o pobre à resignação na miséria, levando-o à aceitação dos problemas
cruciais de sua existência, mediante a esperança de uma recompensa futura; a luta por geração de
oportunidades e de um mapa da mina dos expedientes usados por seus personagens para alcançarem
com facilidade um objetivo difícil ou custoso. Mais do que isso, o percurso temporal proporcionado
pelo conjunto das obras permite a observação de um processo da primazia do relacional sobre o
individual, do hierárquico sobre o igualitário.
Na década de 1950, Josué de Castro usou a expressão círculo vicioso da miséria e da fome
para explicá-las e enfatizar a relação entre o biológico e o social. Ela não compreende apenas a
inanição, mas sim todas as formas visíveis e ocultas, reveladas pelos exames laboratoriais, ou pelos
coeficientes de mortalidade de numerosas doenças, que não passam afinal de disfarces da fome. A
fome constitui um fenômeno universal, uma expressão biológica de males sociológicos em íntima
relação com as distorções econômicas (CASTRO, 1984, p. 115). Ela também atua sobre a estrutura
mental humana e a conduta social quando alcança os limites da inanição.
Contudo, autores mais recentes, entre eles, o antropólogo Luiz Eduardo Soares admite
que “a duplicidade dos modelos culturais tende a ser vivida pela sociedade, como mensagem
dupla (doublé bind), que gera práticas e valores contraditórios [...] multiplicando cenas potencias
de humilhação” (SOARES, 2000, p.36-37). De um lado todos os indivíduos fazem parte de uma
cidadania legal, mas, na prática os exclui e beneficia as elites. Esta condição produz uma outra
face do panorama social brasileiro em relação à moradia, saúde, alimentação, e a violência na
representação dos menos privilegiados.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
2. A pobreza como paisagem
Dos sete volumes que compõem O tempo e o vento, O Continente, O Retrato e O Arquipélago
contem não só o relato da história da família Terra Cambará, igualmente é redigida simultaneamente
a história do Rio Grande do Sul como a do Brasil –– inicia com um episódio nas Missões Jesuíticas,
em 1745 e acaba cronologicamente em 1945, com a queda de Getúlio Vargas, que representa o
crepúsculo da dominação dos estancieiros gaúchos sobre o país. Ao longo da trilogia, sucedem-se as
linhas de fronteira, que opunham lusos e brasileiros a espanhóis e a implantação lenta dos progressos
técnicos da civilização.
Um dos recortes possíveis desse romance se refere à formação da classe dominante do
Rio Grande do Sul. Uma camada social que se fortaleceu no período colonial, estabelecendo-se
economicamente durante o Império, mas chegou ao poder apenas com a República. Parte da história
gaúcha, dos últimos decênios do século XVIII e de todo século XIX é descrito nos volumes de
O Continente. O narrador delineia, principalmente, a origem da sociedade sul-rio-grandense sob o
controle de uma elite audaciosa, guerreira e sanguinária em consequência das lutas fronteiriças e de
revoluções fratricidas. Por conseguinte, a história do povo humilde, os sonhos triviais de Zé Borges
de ter o seu trigal, possuir uma casa; de Maneco Terra obter o título de uma sesmaria; o desejo do
negro Caré de montar seu próprio cavalo; como os índios das missões foram usurpados pelos jesuítas;
as dificuldades financeiras dos trabalhadores tanto dos Amarais quanto dos Cambarás; a vida dos
soldados que voltaram aleijados das inúmeras guerras e os estancieiros que tiveram suas terras griladas
se perdem em meio à gênese da família Terra Cambará.
O território gaúcho foi ocupado simultaneamente por ação privada e intervenção estatal. A
primeira, nas bandas dos Campos de Cima da Serra, e comandada por aventureiros sorocabanos e
lagunenses, estendeu-se rumo ao oeste e ao sul da região, em busca de planícies férteis para o pastoreio.
A segunda, mais litorânea, por meio da imigração açoriana e do estabelecimento de fortificações
militares pelo Estado português. Ambas encaminharam e se unificaram, no entanto, em um grande
objetivo comum: a ocupação da terra e do gado selvagem alçado.
Mais especificamente no primeiro volume de O Continente, as passagens estão marcadas
de críticas sociais, principalmente em relação à violência e aos privilégios que originaram uma
sociedade onde terra era sinônimo de desigualdade, isto por ser uma região esquecida pelas
autoridades, permeada de disputas por espaços e fronteiras. A divisão indignava os pobres pelo
fato de muitas sesmarias e empréstimos serem dadas sempre para os mesmos homens. Esses
prosperavam, compravam escravos, pediam e conseguiam mais lotes, assim de pequenos lavradores
ascenderam em grandes estancieiros. A terra era repartida para quem tivesse dinheiro, pudesse
plantar, colher, ter escravos e povoar os campos.
A justificativa para a falta de justiça e decência dada a Maneco Terra era que o governo
fazia tudo que os grandes estancieiros pediam porque precisava deles. O Estado não podia manter
guarnições muito grandes de soldados profissionais nas áreas da fronteira, então contava com esses
fazendeiros, aos quais apelava em caso de guerra. Assim, transformados em coronéis e generais,
eles vinham com seus peões e escravos para engrossar o exército da Coroa. Em recompensa de
seus serviços recebiam às vezes títulos de nobreza, privilégios, sobretudo mais terras. (VERISSIMO,
2004a, 125-126). Isto é, o governador não cedia terras para qualquer um que fosse ao paço pedir
terras, botavam-no para fora. O resto, o povinho continuaria mal assistido. Era claro que, quando
havia uma questão entre esses graúdos e um pobre diabo, era sempre o ricaço quem tinha razão.
Todavia, Padre Alonzo sempre via aquele pedaço de terra com um outro olhar. A brisa que
soprava ao redor das missões exalava um suave perfume de macela. A paisagem não era trágica como
certas regiões da Espanha. Pelo contrário, era pura linha de cores. As coxilhas verdes recobertas de
macegas cor de palha aqui e ali transmitia a idéia de simplicidade e ingenuidade, uma aquarela pintada
pela mão duma criança. Quando escrevia aos parentes e amigos, Alonzo não esquecia de elogiar a
organização das reduções. A produção das lavouras e estâncias pertencia à comunidade. Do dinheiro
apurado na venda de erva-mate e outros produtos que exportavam para o Rio da Prata, pagava
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
impostos ao rei da Espanha, o governo era encarregado de dar assistência às viúvas sem arrimo.
Muitos índios, além da língua nativa, falavam latim e espanhol. Eram músicos capazes de provocar
lágrimas naqueles que os ouvissem. (VERISSIMO, 2004a, p.53-56). Para Alonzo, a comunidade dos
Sete Povos era a gênese das mais belas civilizações de que o mundo teria notícia.
Este aspecto persistirá em O Retrato, por meio de um discurso mais elaborado. O que move
a história no plano político é a candidatura ao Senado do Marechal Hermes da Fonseca, desafeto
do Dr. Rodrigo Cambará. As páginas dos dois volumes relatam as primeiras décadas do século XX:
o momento em que os velhos oligarcas são substituídos por caudilhos ilustrados, entre eles o Dr.
Rodrigo. Um diálogo entre este doutor e o positivista amigo, o Tenente Rubim termina por fazer
uma aproximação entre o nordeste e o sul enquanto assistem à passagem dos desanimados grupos
carnavalescos. Para Rubim os rapazes estavam sérios, solenes, marchavam numa cadencia quase
militar. Rodrigo não gostou quando o amigo chamou o povo de triste, a cumprir um dever cívico ou
religioso. Ele retruca da seguinte forma: passamos “a vida brigando desde os tempos do povoamento
do Continente. Tivemos onze campanhas em setenta anos, veja bem, onze!. Não nos sobrou tempo
para fazer música, dançar ou cantar. [...] Praticamente trabalhávamos com a enxada numa mão e a
espingarda na outra”(VERISSIMO, 2004b, p.182). Isto é, o tema aos poucos muda: passa para a arte
popular e a imaginação, os perigos constantes, os homens sempre lutando, as guerras de fronteiras e
tratados, depois para as condições em que sempre viveu o povo gaúcho. Mesmo assim, os pobres e os
miseráveis não fazem parte da sociedade descrita. Por fim os três volumes de O Arquipélago mostram
não apenas a derrocada da família dirigente e a decadência política dos estancieiros gaúchos, como
também a emergência vitoriosa dos novos grupos sociais, especialmente dos alemães e dos italianos.
Em Encruzilhada, a última parte, tem um título que define a situação em que a família Cambará e o
país encontra-se naquele final de 1945, eles estão numa encruzilhada da vida. A população que reside
nos bairros imundos, desprovidos de quaisquer benefícios pouco aparecem, embora o narrador tenha
conseguido ampliar as fronteiras do texto ao relacionar as dificuldades da aprovação de projetos para
o desenvolvimento do povo gaúcho ao governo central, sediado no longínquo Rio de Janeiro. Por
isso mesmo, o drama da sobrevivência social é deslocado para um outro registro, em que a carência é
mais simbólica do que econômica.
3. A pobreza como desabafo
Em O quarto de despejo (1993), Carolina de Jesus descreve a pobreza sob a configuração de
desabafo. Registra por meio de uma narradora homônima em primeira pessoa todas as sequelas
deixadas pela desilusão, do desamor e principalmente o desespero da fome. Nele a pobreza é um
estado social de carência efetiva no qual é muito difícil lutar devido ao imediatismo do consumo e
dos recursos que a narradora-personagem busca em seu dia-a-dia, para a manutenção de um barraco
situado em uma favela, seu próprio sustento e dos três filhos. A falta de perspectiva de mudança da
constante penúria, da condição social negativa, tem como base de sustentação a luta da protagonista
contra a pobreza e a insatisfação pelo trabalho, realizado num constante recomeço. Hoje igual ontem,
amanhã igual hoje. Nessa mesmice, o dinheiro e a personagem coisificam-se. O trabalho transforma
o papel, o ferro, o plástico colhido do lixo em arroz, feijão e roupa. A pobreza é uma materialidade
manifestada nos estados psicológicos contraditórios da narradora, ora alegria, ora ódio, em alguns
momentos de plena satisfação, noutros, total revolta pelo eterno retorno às avessas: fome-trabalhosobrevivência, ao invés de alimento-ócio-prazer.
Em Geografia da fome escrito em 1946, o tema era atual e próximo ao período da ambientação
dos relatos de Jesus. Josué de Castro denunciava que a fome e a miséria constituíam um dos tabus da
civilização, que nem a ciência e tecnologia foram capazes de eliminar. A sua compreensão do problema
é o resultado da observação atenta de duas vertentes. Entendia que a fome não é, necessariamente, a
falta de alimentos e tampouco é um fato natural. A primeira está relacionada à alimentação inadequada.
A segunda é produto das relações econômicas que possibilitam apenas uma parcela da população ter
acesso aos bens produzidos. Assim a fome decorre da ação do próprio homem.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Carolina tem consciência da extensão de sua pobreza. Sabe que a condição financeira afeta
não só a sua barriga, mas igualmente sua aparência. Ao tropeçar e cair, um homem ao vê-la suja,
associa o tombo a fome. Mas ela sabe que a razão é outra, estava com muito sono. Então pensou em
uma solução. Andaria com um cartaz preso em suas costas para explicar o motivo de sua sujeira. Há
“duas semanas que eu não lavo roupa por falta de sabão. As camas estão sujas que até dá nojo” (JESUS,
1993, p.89). Não ficou revoltada com as palavras ouvidas, sua indignação era outra. Uma delas era a
frase que repetia incessantemente em seu cérebro “Comida! Comida! Comida!” (JESUS, 1993, p.153).
Uma obsessão que não conseguia controlar. Ela entrara na fase em que os interesses vitais e todos
os outros desejos desapareceram e “o pensamento se concentra exclusivamente nas possibilidades de
encontrar alimento” (CASTRO, 1984, p.136). A personagem sabia que a fome e suas consequências
igualmente era um dos diversos motivos de sua aparência tão velha. Diante do espelho viu o quanto
seu rosto era quase igual ao da falecida mãe. Estava “sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer
de fome” (JESUS, 1993, p.153). Provavelmente isso fosse para a narradora-personagem a constatação
mais dura de aceitar. Todavia, Carolina não opta pelo caminho curto e mais fácil para obter os bens
necessários a sua família –– possibilidade já prevista por Castro. Para o médico e cientista social a fome
“cria um meio social extremamente receptivo às atividades tanto do banditismo quanto do misticismo
[...] as belas qualidades desaparecem como que por encanto nos períodos de fome” (CASTRO, 1984,
p. 56). A fome e miséria desencadeariam certos fenômenos sociais tais como banditismo, prostituição,
depravação carnal, tudo como conseqüência mais ou menos direta dos efeitos dissolventes da fome.
O ser humano disciplinado, trabalhador, industrioso e honesto desaparece.
Outras oposições são feitas por ela além da riqueza/pobreza, condomínio fechado/favela,
brancos/negros, luxo/lixo. Trata-se da relação iguais/marginais. Em sua simplicidade consegue discernir
a diferença entre a falta de políticas públicas e marginalidade. Era fácil atribuir a delinquência à população
favelada, dela ser o lugar propenso a formação desse tipo de pessoas. Então se os dirigentes do país
sabiam dessa estreita relação, por que Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek e Adhemar de Barros não
resolveram o problema?Assim como respostas, seus relatos eram uma espécie de “aviso aos pretendentes
a política, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descreve-la [...] O Brasil
precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora” (JESUS, 1993,
p.153). Por isso ela odiou todos eles e se pudesse os matava, os enforcava ou os queimava. Carolina
deixou de ser a mulher resignada. Suas palavras expressam sua consciência a respeito das explicações
hipócritas dadas não só aos favelados, mas igualmente a todos os destituídos da abundância.
Com um olhar fixo na cidade de São Paulo e nos políticos que visitam as favelas durante as
campanhas eleitorais, mas após a vitória não escrevem um projeto para humanizá-las, e de lá somem;
Carolina faz um resumo que se presta ao Brasil: “Eu classifico São Paulo assim: O Palácio é a sala
de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os
lixos” (JESUS, 1993, p.28). Em outras palavras, Brasília é a sala de visita, o Senado e a Câmara dos
Deputados a sala de jantar, os governos estaduais e as prefeituras o jardim, e grande parte do país, o
quintal onde tudo está por fazer. Não exclusivamente o problema da fome, mas do mesmo modo os
políticos deveriam olhar para a criança, o negro, o velho, os pobres. Com certeza o dia 13 de maio
fosse uma data de luta contra a todos os tipos de escravidão, falta de escola e professores qualificados,
assistência médico-hospitalar, estradas de qualidade e seguras para o transporte de bens duráveis
e perecíveis. Provavelmente o país não tivesse tantas favelas. Isto é, todo um conjunto de relações
sociais e econômicas que determinam as ideologias, e por isso mesmo ultrapassa o discurso visível da
revolta de uma favelada a relacionar falta de rede de esgotos e de abastecimento de água, da casa as
escuras, dos desabrigados das enchentes, dos barrancos ameaçados de cair a qualquer hora.
4. A ausência de legitimidade da cidadania nas distinções de ordem social
Tanto Relato de um certo Oriente quanto Dois irmãos de Miltom Hatoum mostra o lado aviltante da
cidade de Manaus: os segredos familiares, processos diversificados da discriminação e do preconceito.
As empregadas da casa destes romances conhecem de perto a dimensão do desprezo e da humilhação.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Elas são submetidas a todo tipo de constrangimento, a constância de trabalhar sem salário em troca
de um canto para morar e comida para os filhos. Materializam em si todos os significados do verbo
servir. Estavam lá para prestar serviços de qualquer natureza, os patrões se consideravam uma dádiva
de Deus, seus benfeitores, que haviam as retirado da orfandade. Em retribuição deveriam realizar
as tarefas da casa como préstimo ao casal e aos seus filhos, em troca, tomar para si uma porção dos
alimentos. Porém, jamais se misturariam, viveriam isoladas em seus quartinhos de fundo. Foi nessas
condições que Anastácia Socorro chegou à casa de Emilie. Ela fora escolhida entre as demais meninas
abandonadas nas salas da Legião Brasileira de Assistência.
Dos diversos aspectos descritos pelo narrador relacionados ao contraste da condição social
entre a empregada e o senhor, dois momentos isolados referentes a um mesmo ato apresentam a
medida exata para essa distinção. A comilança dos patrões e a comilança de Anastácia e seus afilhados.
Em algumas reuniões de sexta-feira havia cantoria, poemas místicos ou fábulas de Attar eram recitados,
o Canto da Rosa era evocado, as conversas eram proferidas exclusivamente em árabe. Era o momento
mais alegre e exótico do ritmo habitual da casa durante a ingestão de diversificadas iguarias. Mas, aos
domingos, Emilie sempre reclamava de Anastácia, achava que ela comia igual a uma anta, e quando os
parentes da empregada apareciam a patroa arrumava uma ocupação qualquer para todos eles. Como
recompensa, “os fâmulos não comiam a mesma comida da família, e escondiam-se nas edículas ao
lado do galinheiro, nas horas das refeições. A humilhação os transtornava até quando levavam a colher
de latão à boca” (HATOUM, 1991, p.86). Embora ela nunca tivesse pago um tostão as empregadas e
lavadeiras da casa, outros membros da família julgavam ter o direito de maltratar as serviçais. Algumas
“entravam num dia e saiam no outro, marcadas pela violência física e moral.[...] Vozes ríspidas, injúrias
e bofetadas também participavam deste teatro cruel no interior do sobrado” (HATOUM, 1991, p.86).
Era um jeito estranho e novo de escravidão o qual Dorner, fotógrafo alemão freqüentador da casa
bem resumira um dia. Para ele, o açoite vinha configurado na forma de humilhação e ameaça, as
correntes e golilhas estavam presentes na comida e na integração ilusória à família do senhor.
Em Dois irmãos, Nael, ex-residente de um velho bairro portuário de Manaus, palco de
inúmeras cenas causadoras de revoltas e indignações, trinta anos depois volta, onde foi criado para
tentar construir sua identidade. Por meio de sua narrativa é apresentada a discriminação sofrida tanto
por parte dos patrões quanto dos vizinhos, ao ser considerado o filho da empregada e um dos filhos
gêmeos da casa onde sua mãe trabalhava.
Após a morte dos pais Domingas fora levada para o orfanato de Manaus. Ali aprendeu a
ler, escrever, costurar, bordar, lavar banheiros e as roupas das irmãs. Um dia, foi levada para a casa de
Zana e Halim. Anos mais tarde, quando quis sair de casa e passear um pouco a “patroa estranhou,
mas consentiu, desde que Domingas não voltasse tarde” (HATOUM, 2000, p.74) Foi a única vez que
mãe e filho deixaram a casa onde trabalhavam.
Nunca foi reconhecida a posição de Nael como membro da família. Ele dormia num
quartinho construído no quintal, fora dos limites da casa. Além disso, tinha de conviver com a idéia
de aceitar aquilo que sobrava dos gêmeos –– roupas, livros e até uma vaga na escola, alcunhada
Galinheiro dos Vândalos. E, no meio de tantas injustiças, ele presenciou anos a fio sua mãe ser
explorada, impiedosamente, até seus últimos dia de vida.
Os dois romances proporcionam ao leitor o sentido da representação de um grupo no
espaço manauara. Presta-se, à descrição de muitos trabalhadores que em sua pobreza financeira e
educacional caem na armadilha do serviço escravo, sem as garantias trabalhistas. Tornam-se sujeitos
da double bind descrita por Soares: “você é um indivíduo e, portanto, um cidadão igual aos demais, sob
a lei e as instituições do Estado; você não é um indivíduo como todos os outros e deve respeitar os
limites de sua posição na rede hierárquica de relações interpessoais” (SOARES, 2000, p.37). O pobre,
o subalterno, deve colocar-se em seu lugar, não acreditar na existência de igualdade entre as classes.
Numa sociedade estratificada, em que os subalternos vivem numa privação e numa dependência cujo
símbolo maior é a inadequação pecuniária do amor entre os moradores da casa e o ilegítimo Nael e
Domingas devem aceitar a condição de excluídos sujeitos à margem da sociedade.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
5. A pobreza não pode ser o sinônimo da contravenção
Explicar certas condutas violentas, muitas vezes sem motivo aparente, apenas pelas dimensões
objetivas, como a pobreza e outras variáveis estruturais, não deixa de ser pertinente, mas é inadequado.
A resposta para a violência e o crime não podem ser reduzidas ao costume que se tem de apontar a
pobreza, a desigualdade e falta de vontade política como as três principais causas responsáveis pela
criminalidade. É uma interpretação que dá margem ao engano. Viver em coletividade exige regras e
renuncias, mas, na atualidade, esse princípio está alterado. As instituições que assegurariam esse pacto
entraram em crise de legitimidade. Então, mediante a sensação de impunidade e o desejo de prazer
total a própria sociedade dá origem a deprimidos e delinqüentes.
Logo no início de Cidade de Deus de Paulo Lins uma frase chama atenção: “Antigamente a
vida era outra aqui neste lugar”, os novos moradores levaram lixo, cães vira-lata, exus e pombagiras
em guias intocáveis, no rosto e nos móveis as marcas das enchentes. Vinham em caminhões estaduais
cantando “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”. A partir daí o leitor fica prevenido para o
turbilhão dos fatos que envolvem a comunidade –– substantivo usado para amenizar a denominação
da favela carioca. Mas, Zé Miúdo, assim que chega à Cidade de Deus faz o comentário definitivo e real
para a denominação dada ao local.
Conjunto o quê? Favela! Isso mesmo, mermo, isso aqui é favela, favelão brabo mermo. Só o que mudou
foi os barraco, que não tinha luz, nem água na bica, e aqui é tudo casa e apê, mas os pessoal, os pessoal é
que nem Macedo Sobrinho, que nem no São Carlos. Se é na favela que tem boca-de-fumo, bandido pra
caralho, crioulo à vera, neguinho pobre à pamparra então aqui também é favela, favela de Zé Miúdo (Lins,
2004, p.219).
Com esse argumento o contraventor se determina não só no aspecto social, cultural,
econômico e ideológico, mas igualmente a coletividade da favela em sua historicidade. Zé Miúdo,
enquanto escarnece o conjunto e expõe suas vilezas (que são ao mesmo tempo o desdobramento das
degradações do ambiente em que buscará galgar degraus na escala social), dentro de uma narração
marcada pela tensão entre os métodos de brutalidade adotados por bandidos e policiais.
Nesse ambiente, as notícias nos jornais do dia seguinte, era a recompensa esperada, uma
vez que todo bandido tem que ser famoso para ser respeitado. Em poucos meses, cinco viaturas e
dez camburões invadiram o novo bairro que figurava constantemente nas manchetes dos jornais em
virtude dos contínuos assaltos, estupros e arrombamentos dentro e nas imediações da Cidade de
Deus.
Três tipos de indivíduos descritos pelo narrador caracterizam as várias faces da comunidade:
os contraventores lá residentes, os policiais corruptos e os usuários vindos do asfalto. Zé Miúdo
considerava o conjunto sua propriedade, o dono da rua, o rei, o jogo das armas. A violência para ele
era natural, como se matar seis pessoas de uma só vez fosse algo a ser feito antes de dormir para o
sono ser tranqüilo. Trata-se de uma violência ressimbolizada, um estilo do contraventor, usado como
traço identificador, diferenciador de território. Miúdo tinha certeza que sua boca era a melhor de
todas, até os playboys da Zona Sul o procuravam para comprar drogas. Ele atendia não só a Zona
Sul, mas igualmente a Oeste, a Norte e os subúrbios da central. Estas condições o transformariam
num homem rico em pouco tempo. (Lins, 2004, p. 218-219). Este tipo de perfil tanto agradava aos
bandidos mais perigosos, quanto as jovens locais, por conquistarem uma posição de prestígio em
virtude do conhecimento da violência de seus companheiros. Um recurso de expressão quanto uma
estratégia de obtenção de visibilidade, sobretudo a partir da possibilidade da inserção de ambos no
circuito de consumo com ressonância social.
O local não era aterrorizado exclusivamente pelos bandidos. Policiais corruptos apanhavam
alimentos nas lojas, padarias e mercados. Outros preferiam extorquir dinheiro dos moradores ou
dos próprios bandidos, fazer negócio de uma parte das drogas e armas apreendidas. Além da Polícia
Militar, os detetives e delegados da Polícia Civil também ganhavam suas comissões. Os policiais do
bairro diziam que os coronéis ganhavam dinheiro. Os detetives acusavam os delegados. (Lins, 2004,
p.217-218). Nesse embate de forças, bandidos e policiais corruptos criaram uma cartografia militar de
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
cunho estratégico: quando e quem cercear, quanto tempo à parceria entre ambos seria conveniente e
o momento certo para encerrar essa sociedade, via morte de algum membro dos dois lados.
Essa relação ambígua faz que as camadas menos privilegiadas, constantemente tenham seus
direitos negados. Isso fez surgir em 1980 uma representação do operário e do vigarista, da pobreza e
da contravenção. Em A máquina e a revolta (2000) Alba Zaluar apresenta um estudo da Cidade de Deus
real e desmistifica a inexistência de uma separação rígida entre bandido e trabalhador. Para a autora,
ao contrário da polícia, o bandido tenta garantir a imunidade de sua área. Ao mesmo tempo “pode
ser reconhecido como defensor do trabalhador [...] Diante da inevitável humilhação e da ausência
de proteção policial e jurídica, o bandido transformar-se no vingador de seu povo” (ZALUAR,
2000, p.141). Em contrapartida, e por esse contrassenso no romance de Lins, a comunidade não
se constrangia quando os marginais mais perigosos e os policiais corruptos eram assassinados de
modo violento. Ao redor desses dois grupos gravitam os bicheiros, os matutos responsáveis de trazer
bagulho e brizola boa na hora que eram solicitados, e proibir os assaltos nas redondezas para não
chamar a atenção da polícia.
Nesse caso, a prática de alguns roubos e furtos é simples reações à necessidade, pura resposta
à fome, às doenças dos filhos, entre outras razões apontadas. Todavia Ana Rubro Negra após ser
abandonada por Pouca Sombra, convida Joana e Nostálgica a deixar seus empregos. Ela chegara
a conclusão que o retorno do trabalho de doméstica, prostituta, feirante e traficante de pequenas
quantidades de droga era lento e muito pequeno. Seria melhor organizar uma nova estratégia.
Combinaram de não falar na nova atividade a mais ninguém, de se alternarem nos mercados e agir
nos dias de muito movimento. Com o passar do tempo “não eram mais aquelas, tinham dinheiro para
levar uma vida que passava longe do campo da miséria, sem trabalhar em empregos que só fazem mal
ao corpo e ao espírito. [...] trabalho pesado e dinheiro curto” (LINS, 2004, p.228). Nostálgica sempre
argumentava que ela e suas comparsas não foram quem inventara aquele quadro de injustiça social,
do racismo, o abandono da escola em detrimento do ingresso precoce no mercado de trabalho. Ela
apenas queria “dinheiro para dar uma vida digna aos filhos [...] fazia de trinta a quarenta investidas nos
mercados, sempre alcançando resultado positivo. Tiveram dinheiro para médico, dentista, alimentação
e para o material escolar dos filhos. Não queriam mais do que uma vida digna” (LINS, 2004, p.228).
Uma prática que mantiveram daí em diante por outras motivações. Aumentaram suas respectivas
moradias, mudaram o vestuário, investiram em objetos de consumo tomados como símbolo de
integração, status, prazer e poder.
Logo, somente cada um desses sujeitos, dos três grupos acima pode conhecer o sentido
de suas ações. Sob esse aspecto, a avaliação de Luiz Eduardo Soares e Alba Zaluar relacionados ao
trabalho, ao banditismo, a contravenção e a violência são semelhantes. Para Soares (2000, p.27-35),
o nó da história do Brasil é a aliança dos setores dominantes do campo e o da cidade, o acordo
estabelecido pelas elites e o compromisso firmado pelas oligarquias. A transferência em massa das
pessoas para as cidades, de modo caótico e em condições extremas de privações, exploração e miséria
colaboraram para o quatro social do Brasil após a década de 1970. Portanto, a criminalidade não
pode ser destacada unilateralmente, como única variável possível de definição em resposta para a
miséria e a conservação das diferenças e suas consequências. Esse é o grande equívoco cometido por
muitos. O propósito que orienta o fazer e o ter do trabalhador é a do ter, do possuir: casa, os mais
variados bens duráveis, família, dinheiro, lazer, do acúmulo como condição para alcançar a felicidade.
O contraventor tem os mesmos desejos. Desse modo, as ações de ambos convergem para um mesmo
fim. Contudo, do ponto de vista do sistema de produção e distribuição, que por sua organização
gera trabalhadores e marginais precisa ser modificado. Como afirma Zaluar (2000, 145), a lógica
do bandido não pode prevalecer. O status do trabalhador, sujeito integrado, que possui objetivos
definidos não pode ser rebaixado e qualificado como sinônimo de otário, que trabalha cada vez mais
para ganhar cada vez menos.
Desse modo, em alguns romances brasileiros, embora o discurso econômico esteja
amenizado, não há uma separação definitiva das consequências do sistema capitalista. Isto é, se
for pensado em 1970 em diante e mais contemporaneamente, é possível verificar que, às vezes, as
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
tentativas de ficcionalizar a pobreza, no geral, parece inverossímil. Em cada época há um olhar e
eventos sociais diferentes que compõem a ação ficcional. Dessa maneira, a reordenação da tradição
literária brasileira mostra-se empenhada e interessada, o literato é de certo modo um historiador, um
sociólogo à medida que observa e apreende o meio em que vive de um ponto de vista particular. Em
cada tempo a construção de valores e registro daquilo que o Brasil já foi, como exemplo em O tempo
e o vento, de Erico Verissimo; daquilo que grande parte do Brasil é em Quarto de despejo, de Carolina
Maria de Jesus. A pobreza e a miséria no Brasil persistem como resultante de uma cruel concentração
de renda, poder e propriedade que provoca a distância entre ricos e pobres. E, por isso mesmo
desenvolveu uma ideologia explicativa da desigualdade social como algo inerente a toda e qualquer
sociedade ou mesmo dos desígnios divinos. A inexistência de igualdade da cidadania em Dois irmãos
e Relato de um certo Oriente, ambos de Miltom Hatoum até chegar a alteração do pacto de convivência
social na sociedade contemporânea no espaço físico da Cidade de Deus, de Paulo Lins corroboram para
uma idéia de um quadro nacional alarmente.
Avaliá-los num mesmo mapa da pobreza, num mesmo tempo presente e como mera linha de
norte ao sul do Brasil pode parecer equivocado, à medida que a representação do tema pelo ponto de
vista da literatura requer interpretação dos exemplos negativos que a sociedade em geral lhes oferece.
Saber que a solução para a pobreza urge intervenções radicais. Os governos precisam mergulhar na
questão da miséria propriamente dita, mas igualmente no problema da saúde, moradia, segurança
pública, educação. Brasília ser um centro de decisões radicais, os líderes assumirem compromissos
com projetos e reformas de Brasil, de nação e não de governo.
De um jeito ou outro, a observação do tema num único conjunto constitui um calidoscópio
de fatos concretos da realidade nacional, cuja intenção é quebrar os limites da subdivisão do país.
O intuito é fazer o caminho oposto do mapa dos complexos regionais brasileiro para a fronteira
do mapa, e propagar-se para regiões além, mostrar que a pobreza não se restringe a uma ou outra
unidade federativa brasileira, mas vê-la como um estado, uma condição de muitos a partir do século
XVIII aos dias atuais.
Nas últimas décadas, os mais ricos, em torno de 20% da população controlam entre 60%
a 65% da renda nacional. Em virtude de tal situação a amplitude do campo de escolha de muitos é
influenciada para roubar, não querer estudar ou trabalhar. Não quer dizer que a educação formal seja a
garantia de emprego, mas, provavelmente afasta o indivíduo da contravenção. Por outro lado, a exclusão
voluntária do processo modernizador converte aqueles que fazem uma opção pela transgressão num
sujeito duplamente marginalizado, porque não participa do patrimônio cultural da humanidade, bem
como pelo motivo de ser um contraveniente.
Ficcionalmente todos os autores conseguem mostrar como a falta de ações sociais voltada
para todos gerou situações diferenciadas e graus de periculosidade para enfrentar a pobreza. Em O
tempo e o vento, em geral as mulheres rezam, outras se amasiam, algumas se suicidam. Nos romances
de Hatoum as empregadas aceitam trabalhar sem um salário, resignam-se da perda de proteção
daqueles que poderiam ampará-las e lhes dar o sentido de dignidade. Nael testemunhou na infância,
as passagens vividas na casa da família libanesa onde foi criado. Seu ponto de observação é o
quartinho dos fundos, no quintal do sobrado de Zana e Halim, onde vivia com a mãe Domingas,
índia manauara aculturada e empregada da casa. O terreno compartilhado é o da casa familiar, onde
as relações de poder e subserviência ditados pela aculturação sutil dos nativos manauenses, entre
estes a mãe Domingas.
A experiência relatada pela narradora-personagem e catadora de lixo em O quarto fechado é o
produto da penúria por ela vivenciada. Enquanto escreve ela procura alguém que aceitasse publicar
seu diário e por meio dos direitos autorais concretizarem seus sonhos. Soma-se a ele o desejo que
outros dela tomem conhecimento, é a matéria da qual se nutre a narrativa. Não só conseguiria sair da
favela, do mesmo modo proporcionaria aos filhos um outro padrão de vida, ao mesmo tempo sua
obra seria uma denúncia contra a negligência do poder público, e por isso viabiliza a emergência de
políticas sociais justas.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Mas, a escolha de muitos moradores da Cidade de Deus foi à radicalização. Ela é desenhada na
ação corrosiva da marginalidade que ambiguamente pode ser ou não produto da pobreza, do desejo
de sair da condição social de miséria pela opção de métodos escusos, via mais cômoda para chegar
mais rápido aos objetivos, porque o trabalho diário seria a permanência na condição de miserabilidade.
Assim sendo, as manifestações desviantes iniciais de mulheres e crianças perdem o sentido e mostram
indivíduos menos sensíveis, crédulos de agirem corretamente. A estilização realizada por Lins não
atenua ou suaviza práticas classificadas como bárbaras ou cruéis. Pelo contrário adiciona-lhes novos
sentidos. Homens, mulheres e crianças se envolvem na venda de drogas e armas, na prostituição, na
realização de roubo em pequena e grande escala. A ação envolve políticos, polícia, milicianos, a classe
média alta que alimenta o ciclo vicioso da venda e a compra de armas e drogas. A opção do autor pela
espetacularização da violência e dos métodos de roubo como meio de suprir a falta ultrapassa a uma
necessidade, reflexo da pobreza real.
Na cartomorfose literária das páginas dos romances escolhidos há uma denúncia às
inúmeras maneiras de riscar muitos indivíduos do mapa por meio de várias formas de exclusão.
Mais do que isso, no contexto criado o tema da pobreza foi exaltado ou diminuído exageradamente
para compor um centro simbólico inserido nas particularidades de um chão histórico, polarizado em
torno de seus interesses fundamentais dos fatos de toda a ordem que consideram importantes relatar.
Por esse motivo, os autores prestaram atenção ao que julgavam merecer consideração, para revelar
determinados valores deles mesmos ou de suas respectivas épocas, e consequentemente se remetem,
para um espaço cultural mais amplo que pretendem chegar. Mostraram o contingente fora do limite
mínimo exigido para participarem do sistema produtivo em virtude da desqualificação profissional,
transformados no plano exterior aos romances em dados estatísticos dos milhões de desempregados
ou trabalhadores informais, dos miseráveis, da parcela da população impedida de ter um salário e
dignamente usufruir de mercadorias e serviços para satisfação de suas necessidades.
Referências
CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome, um tema proibido. Últimos escritos de Josué de Castro. 2.ed.
Petrópolis: Vozes, 1984.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
____ . Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
JESUS, Maria Carolina. O quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 1993.
LINS, Paulo. Cidade de Deus. 3. ed. Lisboa: Caminho, 2004.
SOARES, Luiz Eduardo. Uma interpretação do Brasil para contextualizar a violência. In: PEREIRA, Carlos
Alberto Messeder [et al.] Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p.23-46.
VERISSIMO, Erico. O Tempo e o vento: O continente. Vol. I. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004a.
____ . O Tempo e o vento: O retrato. Vol. II. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004b.
ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2000.
1033
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DALCÍDIO JURANDIR:
A AMAZÔNIA NA CONSTRUÇÃO DE
UM PROJETO ESTÉTICO-IDEOLÓGICO
Marlí Tereza FURTADO
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Este trabalho objetiva demonstrar que o autor Dalcídio Jurandir (1909/1979) em artigos que
escreveu para a Imprensa, principalmente a imprensa comunista, se revela ideologicamente comprometido
com a realidade brasileira e com ideais partidários. Esse comprometimento se refletiu em sua recriação artística
do universo, tanto no ciclo Extremo Norte, composto de dez romances, quanto na obra Linha do Parque que se
situa fora do ciclo, escrita sob recomendação do Partido Comunista Brasileiro. Para direcionar a reflexão, foram
selecionados artigos que o autor escreveu para os periódicos de Belém (O Estado do Pará e Escola),e do rio de
Janeiro (Diretrizes, Cultura Política).
PALAVRAS-CHAVE: Dalcídio Jurandir, projeto estético, ideológico.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Dalcídio Jurandir Ramos Pereira, nascido em Ponta de Pedras, no Marajó, em janeiro de
1919,ao falecer, no Rio, em junho de 1979, no deixou como legado o vasto e denso ciclo literário do
Extremo Norte, composto de dez romances, listados conforme data da primeira publicação: Chove
nos campos de Cachoeira (1941); Marajó (1947); Três casas e um rio (1958); Belém do Grão
Pará (1960); Passagem dos Inocentes (1963); Primeira manhã (1968); Ponte do Galo (1971);
Os habitantes (1976); Chão dos Lobos (1976); Ribanceira (1978). Como muitos escritores de sua
geração, demonstrou força criadora e dedicação extremada a essa aptidão. Além de ter produzido o
ciclo citado, colaborou ativamente com a imprensa, principalmente a comunista, em virtude de sua
filiação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Comumente, a bibliografia sobre o autor aponta que, no Pará, ele teria contribuído com os
jornais O Imparcial, Crítica e Estado do Pará; com as revistas Escola, Guajarina e A Semana.
No Rio,teria colaborado com O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Correio da Manhã,
Tribuna Popular, O Jornal, Imprensa Popular, com as revistas Literatura e O Cruzeiro, além dos
semanários A classe Operária, Para Todos e Problemas.
Por outro lado, aceitou a incumbência do PCB de se deslocar até o porto do Rio Grande
para pesquisar com os portuários a fim de escrever sobre o movimento operário do início do século,
conforme nos informa Dênis de Moraes (MORAES, 1994, p. 160):
As revistas culturais frequentemente publicavam capítulos de romances, contos e poemas sintonizados
com o realismo socialista. Pelo menos três romances foram escritos de encomenda, sendo os autores
obrigados a conhecer de perto as condições de vida do proletariado para retratá-las com fidelidade. O
paraense Dalcídio Jurandir foi mandado para a cidade gaúcha do Rio Grande a fim de preparar um livro
sobre os portuários locais.
Dessas pesquisas, resultou o romance proletário Linha do Parque, que de certa forma
historia o movimento operário do início do século XX, no Rio Grande do Sul. A encomenda explica
a razão de Linha do Parque, quarta obra que publicou, não se enquadrar ao ciclo do Extremo
Norte. Apesar de pronto em 1954, o livro foi publicado sem a chancela do Partido, em 1959, pois,
curiosamente, o próprio PCB teria censurado a obra encomendada. Ainda é Dênis de Moraes
(MORAES, 1994, P. 160) quem relata:
Mesmo os romances de encomenda tropeçaram na censura partidária e custaram a ser editados. Alina Paim
e Dalcídio Jurandir tiveram que mudar os seus, várias vezes, por “inconveniências”. [...] Linha do Parque
adormeceu anos nas gavetas dos dirigentes e permaneceu inédito até 1959, o que permitiu a Dalcídio
elaborar a versão final sem os rigores do início da década” (MORAES, 1994,p.162).
A informação de Dênis de Moraes nos leva à recepção das idéias zdhanovistas no Brasil, pelos
filiados ao PCB, caso de Dalcídio Jurandir, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Alina Paime outros, nas
décadas de 40/50. O zdhanovismo, base do conhecido realismo socialista, se contrapunha à literatura
realista, então considerada como recriadora do universo da burguesia decadente. Em contrapartida a
isso, o realismo socialista propunha o retrato da sociedade regida pelo socialismo, em obras nas quais
avultava um herói positivo, um líder operário.
Se Dalcídio Jurandir se submeteu às regras zdhanovistas ao escrever Linha do parque,
apenas uma análise detida dessa obra nos revelaria tal aspecto, é o que afirmamos em tese de doutorado
sobre o autor (FURTADO, 2002). Nos últimos anos, a obra do autor tem sido alvo de estudos cujo
resultado tem sido as muitas dissertações de mestrado e algumas teses de doutorado produzidas nas
academias, principalmente no Curso de Mestrado em Letras da UFPA, onde foram defendidas, de
2000 para cá, cerca de quinze dissertações. Desses estudos, nenhum recai sobre Linha do Parque, um
dos livros menos citado e estudado desse escritor. Ressalve-se a dissertação de mestrado de PERES
(2006), defendida na Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), RS, com o título Linha
do Parque, de Dalcídio Jurandir (a gênese do movimento operário no Extremo Sul do Brasil).
É instigante em Dalcídio Jurandir essa aparente dicotomia entre o ciclo Extremo Norte,
criado dentro do que se poderia chamar de realismo crítico, e o livro de fora desse ciclo, criado
sob a possível concepção do realismo socialista. O instigante na realidade se torna intrigante ao
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
estudioso, uma vez que a passagem de uma leitura para outra nos leva aparentemente a autores
diferentes. Essa discussão, entretanto, não cabe aqui, momento em que procedemos ao levantamento
da contribuição dalcidiana para a imprensa a fim de investigar o entrecruzamento dela com a obra
ficcional que produziu.
Dedicação equiparada à que demonstrou ao Partido, seu front ideológico, Dalcídio
revelou ao seu projeto estético, a criação de um ciclo romanesco sobre a Amazônia paraense,
e sua fidelidade a certos princípios desvelou-o um homem um tanto ascético, a ponto de viver
pobremente em quartinho de pensão, sem se deixar afetar e parar de produzir. Em virtude desses
pontos, percebemos que a investigação dos artigos assinados pelo autor para a Imprensa, de modo
geral, e para a imprensa comunista, de modo particular, se torna um passo importante para se
discutir, com mais propriedade, os aspectos ideológicos que nortearam o pensamento de Dalcídio
Jurandir e como esse pensamento se desdobrou em sua recriação artística do universo, tanto em
Extremo Norte, quanto em Linha do Parque.
Isso posto, empreendemos o projeto de pesquisa Dalcídio Jurandir e o realismo socialista,
cujo propósito se volta para três pontos: a contribuição escrita de Dalcídio Jurandir para a Imprensa;
a obra Linha do Parque enquanto criação literária; a relação entre o autor de textos para a imprensa
e o autor de textos fictícios, principalmente aquele encomendado pelo PC e deslocado do universo
amazônico. Como já dissemos, neste texto, nos voltaremos para o primeiro ponto de nossa pesquisa,
a contribuição dalcidiana para a Imprensa.
Antes, gostaríamos de nos deter em um fato: em trabalhos anteriores verificamos que nas
entrevistas que o autor concedeu em vida (a Eneida de Moraes e a Bastos Morbach, em 1960; a
Antonio Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão, em 1976), demonstrou aguda consciência crítica
sobre a realidade brasileira e revelou-se, também, consciente de seu ato criador, a ponto de falar em
concessões e não concessões a enredos e técnicas fáceis (FURTADO, 2002).
Hoje, reforçamos essa constatação com uma parte da correspondência pessoal do autor
e vários artigos assinados por ele para a imprensa. Dalcídio revela, nesse material, que o profundo
conhecimento que demonstrou a respeito da sociedade amazônica, no universo romanesco do ciclo
Extremo Norte, não provém apenas de sua vivência e observação pessoal, mas de estudos publicados
na época. Em cartas escritas para a esposa Guiomarina,por exemplo, nos dois períodos em que foi
preso, em 1936 e em 1937, sempre lhe pediu livros. Em uma delas, de 37, solicita Fausto, de Goethe,
em francês, com dois outros títulos, sem identificação de autor. Veja-se: “Manda dizer ao Flaviano
procurar com Gentil Puget os livros Negros brasileiros e Religiões negras que preciso estudar
aqui”. (NUNES, 2006).
A contribuição dalcidiana para a imprensa se divide entre os gêneros poético e narrativo,
desdobrando-se o último em várias formas: a crônica literária (esparsas tentativas); a reprodução
de trechos de seus romances; o ensaio (utilizamos o termo para denominar os textos em que ele
analisa aspectos e/ou fenômenos da realidade, além daqueles em que discute assuntos do PCB ou
as premissas teóricas do Partido); crítica literária (geralmente seguindo seções dos jornais reservadas
para tal, como a denominada Front literário, do jornal Diretrizes, assinadas entre 1942 e 1943; e
reportagens. Ele assinou desde reportagens em que falados seringueiros e dos índios da Amazônia,
como uma em que reporta a febre do movimento imobiliário do Rio, especificamente a construção
do Edifício Internacional, na época símbolo de arrojo e inovação na construção civil.
De parte do material para a imprensa (há textos a serem digitalizados) e da correspondência
com Nunes Pereira (cartas, ainda não publicadas, mas prefaciadas por Paulo Nunes em 2004), os
aspectos a serem ressaltados podem ser agrupados em três linhas: 1–consciência do fazer poético;
2–consciência social; 3–consciência ideológico partidária. No campo da consciência do fazer poético,
desmembramos duas posturas, a do crítico literário e a do autor empenhado em um projeto estético,
planejado a princípio em uma série de dez volumes (MORAES, 1960), e depois pensado em até doze
livros. O crítico literário complementa o autor crítico. Assim de uma carta a Nunes Pereira, de 1945,
destacamos trecho em que podem ser consideradas algumas preocupações suas:
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Acho que deves reunir em livro as notas sobre o Arquipélago, antes tirando um pouco da gordura verbal,
certas protuberâncias de estilo. [...]. É necessário dominar a exaltação panteísta. Acho que deves juntar ao
livro notas sobre o número de municípios, população, áreas, principais produtos, mapa do desenvolvimento
pastoril, sempre histórica, número de grandes propriedades e o estudo sobre o negro. Tudo isso num
apêndice. Não esquecer a nova visão marajoara do petróleo. (NUNES, 2004).
Interessante que, apesar de ter escrito romances longos (de Extremo Norte os mais curtos
têm entre 150 e 200 páginas), não caiu em contradição com o que recomenda ao amigo Nunes
Pereira. Daí o estilo seguido no ciclo que fratura modelos naturalistas de descrição e minúcias da
natureza local, o que demonstra, também, a fuga à exaltação panteísta, razão pela qual a crítica da
época sinalizou o distanciamento de seus romances do regionalismo. Assim recebeu Fausto Cunha
(apud NUNES, 2006) o romance Os Habitantes, antepenúltimo da série, publicado em 1976, sobre
o qual escreveu um texto intitulado Uma ficção que dispensa vitórias-régias.
O crítico literário precedeu em publicações o autor literário, pois a contribuição para jornais
de Belém, parte dela datada em 1938, três anos antes da publicação do seu premiado livro Chove
nos campos de Cachoeira, insere críticas a livros de Érico Veríssimo, Artur Porto e Osvaldo Orico.
Merece destaque o que fala de Seiva, de Orico, por ocasião do discurso deste ao tomar posse na
Academia Brasileira de Letras.
Osvaldo Orico entrou na Academia com a manhã de sol de seu discurso. Me fez reconciliar com o apressado
romancista da “Seiva”. “Seiva” é apenas estilo. Não tem humanidade, a força interior, o sentimento da terra
que se encontram nos romances de Gorki, Knut Hansum, de Pearl Buck, na obra de Lins do Rego, Abguar
Bastos. O autor não meteu os pés na lama das várzeas nem sujou as mãos no lodo da aninga, não ficou de
molho num barracão das ilhas para ver e ouvir a terra em sua misteriosa e dramática profundidade com os
seus bichos e o seu povo. O romancista de “Seiva” foi a Amazônia a bordo dum vaticano, de gravata, uma
kodak, uma boa Brahma, muito bem posto como um bom turista. (JURANDIR, 1938)
Alguns de seus textos publicados n’O Estado do Pará, entre 1939 e 1941, demonstram que
Dalcídio nada tinha desse turista de Kodak a tiracolo em suas andanças pelos interiores amazônicos.
Reproduzimos parte de “Os viradores de madeiras”, de 14 de junho de 1939, que será incorporado
esteticamente em Ribanceira, romance publicado em 1978, último do grande ciclo. Vejamos:
Na minha viagem às ilhas pude ver de perto os trabalhos dos madeireiros. Madeira é nome que apaixona
o povo das ilhas como foi a borracha no seu tempo (...)Andei pelas ilhas no casco, de reboque, em escaler,
na montaria, em navio pontão. Peguei no remo de faia sob o solzão da baía de Curralinho quando um dos
nossos remeiros, de baço inchado e peito comido pela febre, tinha um passamento e se vasava de disenteria.
Andei pelo atoleiro do igarapé S. Roque e fui ver a rolação da coaruba no centro onde a onça deixa rastros
o jaquiranaboia espeta o ferrão no marupaseiro. Ali os homens mergulham no mato e saem com os toros
enormes amassando a terra que a chuva empapa nestes últimos dias de Maio. Os homens, silenciosos e
sombrios quando entram no mato, se transfiguram desde o momento que começam a rolar os tóros nas
estivas longas. Enchem de exclamações a floresta contra os paus bem criados de duas ou três toneladas.
(...).Tamboriramba! E’ uma das interjeições selvagens com que eles dobram os paus encalhados ou caídos
fora da estiva. Tamboriramba! é um grita heroico, uma grande voz humana saltando da terra onde se
abatem os madeiros (...). (JURANDIR, 1939)
Além desse, há dois artigos em que ele fala sobre os festejos de junho, o primeiro intitulado
“São João e vêm” (de 05 de junho de 1941) e “Chaminé, o pai de Francisco” (de 18 de junho de
1941) que aparecerão desenrolados no enredo de Chão dos Lobos, penúltimo romance da série e
de 1976.
A consciência do fazer poético, esse meter a mão na argamassa, chegou a fazer com
que Dalcídio estabelecesse uma espécie de pacto com suas personagens, para exigir de si mesmo
coerência entre o mundo que retratava e as concessões para publicar suas obras. Note-se o que
disse quando negociava, em 1948, Três casas e um rio para ser publicado pelo Clube do Livro,
como livro do mês:
Submeto-me a isto porque Orígenes me sugeriu, por iniciativa dele, depois probabilidade de uma renda
de trinta a quarenta contos porque o Clube do Livro poderá vender uns dez a quinze mil exemplares.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Como sempre fui muito panema. [...] Minhas personagens devem estar envergonhadas de mim. Afinal elas
não sofreram, não amaram e nem morreram para serem negociadas assim. E isto, é o nosso regime do
latifúndio e do imperialismo. (NUNES, 2004)
Ainda nas cartas, mas também em outros textos dirigidos à imprensa, sempre deixa clara
a perseguição à técnica. Diz, por exemplo, que não quer repetir certos processos, que quer sempre
parecer outro em cada romance e que sua literatura deve fazer o leitor pensar, ao contrário da leva
folhetinesca da época, bastante representada por Escrich (Vicente Perez) cujos folhetins, ressalve-se,
aparecem no primeiro romance dalcidiano sendo lido pela personagem Salu, grande leitor do gênero.
Aliás, na obra literária dalcidiana, não somente algumas personagens, como também o narrador,
quando extradiegético, aparecem enredadas por leituras do cânone, como outras se engendram ou se
fascinam pelas narrativas orais, retiradas da tradição regional.
A consciência social do autor, fundamento de todo seu pensamento, se esparrama não só
em suas falas, mas se converte em textos etnográficos, como os que publicou em Cultura Política
(1942), sobre a ilha de Marajó. O que disse a Nunes Pereira, “não esqueça que o fundamental, ou
melhor, a estrutura social do Brasil está assentada, de maneira geral, no latifúndio e na submissão
ao imperialismo” (NUNES, 2004) explica a elaboração dos vícios do latifúndio em sua obra,
com o propósito de denúncia, sobretudo e mais de perto em Marajó, seu segundo romance, cuja
recepção tem se voltado, insistentemente para a análise com escopo teórico da sociologia e da
antropologia.
Os artigos que escreveu para a imprensa belenense, nos anos 30, quando exerceu função de
2.º oficial na Diretoria Geral de Educação e Ensino Público do Estado do Pará, conjugam a consciência
social e partidária do autor empenhado em discutir e solucionar problemas da educação no Estado.
A colaboração com a local revista Escola demonstra e ratifica sua visão libertária. Destacamos um
texto de agosto de 1934, sobre a criação do curso de piscicultura no Pará:
O Governo criou o curso de piscicultura nas escolas do Salgado. [...]Com essa ato o Governo vai
compreendendo o verdadeiro senso rural das escolas no interior. A adaptação do ensino rural ao ambiente
em que se acha localizado, criando os «centros de interesse» no meio e nas tendências, é, em suma, o ideal
do ruralismo por que tanto se bate o bom senso dos nossos sociólogos e dos que veem a solução do
problema nacional na fixação definitiva das nossas populações rurais.
Hoje mais do que nunca devemos encaminhar o nosso povo a fixar a sua realidade dentro do meio em que
nasceu e trabalha, educando-se na sua própria atmosfera de atividades.
A piscicultura nas escolas do Salgado vai ser o maior «centro de interesse» da curuminzada escolar. Acabouse a velharia didática, desfez-se o nevoeiro dos áridos programas, tudo se transforma em um núcleo vital,
em colmeia inteligente e criadora, esboçando-se, promissoramente, a tão sonhada educação infantil do
nosso caboclo.
Os métodos da escola rural devem inspirar-se nas condições e necessidades do trabalho e do interesse das
crianças na sua própria ambiência. (JURANDIR, 1934).
Note-se a possível atualidade da notícia com a possível atualidade da visão do autor, embebido
das ideias do médico e pedagogo belga Jean Ovide Decroly (1871/1932) a quem cita em artigo de
setembro de 35, na mesma revista, em texto que enfrenta todo o discurso tradicional, se colocando,
tal como o fizera Decroly, contra o ensino religioso na escola:
Todos nós sabemos que os modernos processos educativos não comportam mais os inúteis e vagos
métodos de catecismo entre os alunos. Todos os mestres querem dar á criança a licção da própria vida
e para isso só um método eficiente e humano é capaz de atingir os profundos objetivos da educação
moderna. As crianças nada aproveitarão do catecismo. O que elas aprendem é a vida, o espetáculo do
egoísmo e da miséria nas ruas e nos lares, a realidade em todos os seus aspectos de mentira, vicio e
opressão.
A criança deixa a escola e, ao encontrar a realidade que a envolve e brutaliza, vê o tremendo antagonismo
entre o ensino e a vida. (JURANDIR, 1935).
Ainda em setembro de 1935, para a mesma revista Escola, o autor defende o conceito de
educação correlato ao de liberdade e se insurge contra o que considera danoso, a correlação extremada
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
entre educação e comportamento disciplinar, o que para ele importava sempre em “opressão, negação
absoluta da personalidade, atrofia da consciência individual” (JURANDIR, 1935).
A consciência partidária de Dalcídio Jurandir exigiu dele um compromisso acirrado com o
Partido, ao que correspondeu com disciplina e obediência, a ponto de ter sido mal visto em alguns
episódios polêmicos, como o da eleição da ABDE (Associação Brasileira de Escritores), em 1949.
Também por isso aceitou a incumbência de escrever o livro sob encomenda do Partido,Linha do
Parque, denominado por alguns de retrato do extremo sul. Independente da dicotomia norte/sul, o
que se ressalta é sua opção pelo proletariado, daí alinhar-se a Jorge Amado e a autores surgidos a partir
de 30 que optaram pelo romance proletário. Devemos relevar a presença da obra de Patrícia Galvão
(Pagu), Parque industrial, de 1933, cujo título parece ter influenciado o autor paraense.
Responder se Dalcídio seguiu as formas do realismo socialista de fato demanda um estudo
centrado apenas no livro encomendado. Dois pontos nos fazem relativizar a obediência do autor à
forma: a censura do Partido e a censura dos operários, informação dada pelo próprio escritor. “O
livro não agradou. Os operários ficaram zangados porque eu não embelezei o quadro. Apareceu muita
miséria. E eles ficaram zangados comigo. Mas é um livro em que eu tenho muita fé, como romance
político”. (TORRES/MARANHÃO/GALVÃO, 1976).
Há muito que retirar dessa fala para interpretação do pensamento do autor, mas fiquemos,
por enquanto com o destaque à fé depositada por ele na obra como romance político, o que nos
remete à distinção que fazia entre este livro e os demais do ciclo. Apenas para instigar o leitor: se o
realismo socialista se contrapunha ao insistente retrato da burguesia decadente, Dalcídio insistiu pelo
menos no retrato da decadência em todo o ciclo, a ponto de render vários estudos em que a palavra
“ruína(s)” estabelece as relações paradigmáticas importantes para análise de sua obra.1Vale lembrar que
o protagonista do ciclo é um mestiço pobre e culto que perambula pela Amazônia paraense, condoído
com o drama do povo pobre. Termina o ciclo desempregado e indagando-se sobre a vida...
Referência
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Romancista da Amazônia. Literatura & Memória. Belém: SECULT; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa/
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FREIRE, José Alonso. Entre construções e ruínas: uma leitura do espaço amazônico em romances de Dalcídio Juirandir e
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FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. IEL/ Unicamp: Campinas,
2002. Tese de doutorado.
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JURANDIR, Dalcídio. Osvaldo Orico e o seu discurso na Academia. In: O estado do Pará, 12 de agosto de 1938.
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MALIGO, Pedro. Ruínas idílicas: a realidade amazônica de Dalcídio Jurandir. São Paulo: Revista USP, n.º 13, 1992.
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1
1040
Ver MALIGO (1992), FURTADO (2002) e FREIRE (2006).
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
NUNES, Benedito (org.). Dalcídio Jurandir. Romancista da Amazônia. Literatura & Memória. Belém:
SECULT; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa/Instituto Dalcídio Jurandir, 2006.
NUNES, Paulo (org.) Cartas amazônicas. A correspondência de Dalcídio Jurandir a Nunes Pereira
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TORRES, Antônio; MARANHÃO, Haroldo; GALVÃO, Pedro. Um escritor no purgatório. In: Revista
Escrita, ano I, n.º 6, 1976.
1041
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POLIFONIA NO HIPERTEXTO:
UMA ANÁLISE DISCURSIVA
Naira Augusta Pedroso de SOUSA
(Universidade Federal do Pará/ Santarém)
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo abordar a importância de se trabalhar com o hipertexto,
em ambiente escolar, no desenvolvimento de trabalhos voltados para a leitura, a partir de uma concepção de
língua como lugar de interação; visto que a situação da leitura é amplamente discutida pelos estudiosos da
linguagem, assim como também, é objeto de grande preocupação no que se refere à maneira como tornála mais prazerosa e atrativa, especialmente no âmbito educacional. O desenvolvimento de leitores críticos,
capazes de ler qualquer texto e de desenvolver leituras produtivas, é um desafio que se apresenta ao profissional
de Letras. Entende-se, para tanto, a necessidade de se criar novas formas de trabalhar com o texto, a fim de
alterar a lamentável realidade de indivíduos que não encontram prazer na atividade da leitura, contribuindo
na formação de leitores mais críticos e conscientes. Na pesquisa bibliográfica desenvolvida, foi analisado um
hipertexto eletrônico, com uma temática polêmica: o aborto, abordando os aspectos discursivos existentes,
como as formações ideológica e discursiva, a polifonia, o sujeito e a construção do sentido. Visando contribuir
para a reflexão de práticas educacionais referentes à leitura hipertextual, abordaremos, nessa pesquisa, aspectos
relevantes dos estudos sobre a Análise do Discurso e a Polifonia, a fim de mostrarmos em que medida esses
conhecimentos podem ajudar na produção da leitura de hipertextos.
PALAVRAS-CHAVE: Hipertexto. Análise do Discurso. Polifonia.
RESUMEN: Este trabajo pretende abordar la importancia de trabajar con el hipertexto en el medio escolar,
el trabajo de desarrollo destinado a la lectura desde una concepción del lenguaje como un lugar de interacción,
porque la situación de la lectura es ampliamente debatido por los estudiosos de la lengua y, además, es objeto de
gran preocupación en lo que respecta a la manera de hacerlo más agradable y atractivo, sobre todo en la educación.
El desarrollo de lectores críticos, capaces de leer cualquier texto y lecturas para desarrollar productiva, es un reto
que se presenta a la bibliografía especializada. Se entiende, y por lo tanto la necesidad de crear nuevas formas de
trabajar con el texto, a fin de cambiar la triste realidad de las personas que no encuentran placer en la actividad
de la lectura por ayudar a los lectores en la formación de más crítica y consciente. Desarrollado en la literatura
de investigación se revisó un hipertexto electrónico, con un tema controvertido: el aborto, abordar las cuestiones
actuales del discurso, como el ideológico y formaciones discursivas, la polifonía, el tema y la construcción de
significado. Para ayudar a la discusión de las prácticas educativas relacionadas con la lectura hipertextual, abordar
esta investigación, aspectos importantes de los estudios sobre el Análisis de Discurso y polifonía, para mostrar en
qué medida este conocimiento puede ayudar en la producción de la lectura de hipertextos.
PALABRAS CLAVE: hipertexto; Análisis de Expresión, la polifonía.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Análise do discurso
A Análise do Discurso (doravante AD) surgiu na França, na década de 60, do século passado,
inserida num contexto marxista, num período em que a Lingüística estava se firmando. O nascimento
da AD é regulado pelo materialismo histórico, pela psicanálise de Lacan e pela lingüística de caráter
estruturalista.
É numa abordagem estruturalista da linguagem que a Análise do Discurso vai se constituindo.
No entanto, a Lingüística Saussureana não era suficiente para fundamentar os estudos discursivos, já
que esta prioriza a língua em detrimento da fala. Era necessária uma teoria do discurso, mais ampla,
para compreender as práticas discursivas.
Segundo Orlandi (1986), existem duas vertentes de pensar a teoria do discurso. Uma de
tendência americana e a outra européia. Atualmente, no entanto, não se fala apenas em uma escola de
AD francesa ou americana, mas em várias análises do discurso. Conforme Maingueneau (1997), toda
situação discursiva constitui-se em objeto de análise, devido as fortes relações sociais que vigoram na
sociedade.
No estabelecimento da AD, foi fundamental a influência de dois teóricos, Althusser e
Foucault. O primeiro abordava suas reflexões voltadas para a questão da ideologia em relação com
a sociedade, subjacentes ao texto. A linguagem aparece como um instrumento em que a ideologia se
concretiza. O segundo teórico, Foucault, deteve seus estudos dirigidos ao Discurso.
Nesse panorama de estudo do discurso, também foi de suma importância a colaboração de
Pêcheux, um dos destacados estudiosos da AD, que desenvolveu os conceitos de Formação Ideológica
e Formação Discursiva.
Para este trabalho, escolhemos adotar a Análise do Discurso Francesa, analisando como
os elementos que a constituem podem ser estudados conjuntamente para a produção da leitura de
hipertextos.
1.1. Análise do discurso: Alguns conceitos fundamentais
Quanto ao estudo da Análise do Discurso, alguns conceitos são fundamentais para que haja
um melhor entendimento desta disciplina e para o desenvolvimento de nossa pesquisa.
1.1.1. Discurso
Segundo Maingueneau (1976), o discurso foi introduzido nos estudos lingüísticos com os
formalistas russos, que direcionaram a concepção de textos para um âmbito além da frase; mas esse
avanço foi limitado pelos estruturalistas, seus seguidores, os quais estudavam a estrutura do texto “nele
e por ele mesmo”, sem dar importância à sua exterioridade. No que tange à Análise do Discurso, não
se abordava o estudo da gramática, mas o do discurso, da prática da linguagem,
levando em conta o homem na sua história, considera os processos e as condições de produção da
linguagem pela análise estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz
o dizer. Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua produção, o analista de discurso
relaciona a linguagem à sua exterioridade. (ORLANDI, 2003: 16)
Diversos estudiosos colocam em destaque o discurso, conceituando-o. Maingueneau (1997:
50) afirma com propriedade a concepção de discurso, levando em consideração as teorias da AD:
O discurso, bem menos do que um ponto de vista, é uma organização de restrições que regulam uma
atividade específica. (...) À AD cabe não só justificar a produção de determinados enunciados em detrimento
de outros, mas deve, igualmente, explicar como eles puderam mobilizar forças e investir em organizações
sociais.
Um dos teóricos mais fecundos em AD no que concerne ao discurso foi Foucault. As
contribuições desse estudioso no que se refere ao estudo do discurso foram férteis, pois concebe o
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
discurso como prática que é gerada com a influência de outras práticas discursivas e não discursivas,
além disso, introduz a noção de formação discursiva, que constitui um dos núcleos da articulação entre
língua e discurso. Dentro dessa perspectiva, distingue enunciado de enunciação, esta ocorre quando
alguém produz um conjunto de signos, é o momento em que o enunciado é executado, portanto é
único, enquanto aquele se refere ao que antes chamava-se de sentença ou frase gramatical e caracterizase pela repetição, isto é, um mesmo enunciado pode se repetir em diferentes enunciações.
O conceito de formação discursiva (FD) é utilizado pela AD para designar o lugar onde se
articulam discurso e ideologia. Portanto, uma FD é governada por uma formação ideológica.
1.1.2. Ideologia
Conforme Chauí (1980), o termo “ideologia” foi criado pelo filósofo Destutt de Tracy, em
1810, para nomear a faculdade de pensar, abordando as idéias numa relação do homem com o meio
ambiente.
Para Marx, a ideologia é carregada pelas idéias da classe dominante, reduz-se, dessa
forma, ao aspecto da crítica ao sistema capitalista e à ideologia burguesa; refere-se, portanto, a
um mecanismo de dominação da classe dominante sob a classe dominada, restringindo, assim, o
conceito num ângulo social.
Althusser (citado por FLÔRES, 2006: 129) afirma que a “ideologia representa a relação
imaginária das pessoas com suas reais condições de existência.”. Inconscientemente, reproduzimos as
condições para que tal relação imaginária se mantenha.
Dentro desse contexto, o Estado tem interesse em que a ideologia se perpetue para que haja
uma relação de dominação. Para isso, segundo Althusser, a classe dominante reproduz os mecanismos
ARE - Aparelhos repressores de Estado, compostos pelo Governo, Exército, Polícia, Tribunais,
funcionando de forma primeiramente repressiva e depois ideológica; além destes, existem os AIE
– Aparelhos Ideológicos de Estado, que ao contrário dos primeiros, dependem da ideologia para
funcionarem; fazem parte desses Aparelhos, a família, a escola, a religião, o sindicato, a cultura e
outras instituições particulares que integram esse aparelho. A ideologia, portanto, se materializa nos
AIE, pois os indivíduos dela participam e sua prática é por ela determinada. Althusser confirma essa
questão, explicitando que os indivíduos são interpelados em sujeitos pela Ideologia, sendo, portanto, a
ela assujeitados. Nessa concepção, o sujeito é o individuo porta-voz da ideologia. Logo, para que haja
sujeitos, é necessária a ideologia, e esta, por sua vez, só existe no sujeito.
1.1.3. Sujeito
A AD passou por três fases, segundo Pêcheux, e a noção de sujeito está relacionada conforme
essas fases. Na primeira fase, denominada AD 1, o discurso é gerado por uma máquina discursiva.
Nessa fase, de caráter estruturalista, o sujeito é concebido como construído no discurso.
Na formação discursiva, o sujeito define o que pode e deve ser dito por ele. Tem-se a visão
de uma FD homogênea e o sujeito é assujeitado, ele é comandado por uma ideologia, uma teoria ou
uma instituição. Tem como característica a unicidade.
Na AD 2, a formação discursiva começa a reconhecer a exterioridade, sofre influência de
outras formações discursivas. Surge a noção de heterogeneidade discursiva e interdiscurso, “o exterior
específico” de uma FD que aparece no interior desta FD. O sujeito, no entanto, continua assujeitado
à FD com a qual ele se relaciona. Uma FD estabelece o que pode/deve ser dito a partir de certo lugar
social. Nessa fase, o sujeito começa a ter mais liberdade, tem-se a noção de dispersão do sujeito, isto
é, ele ocupa diferentes papéis consoante as diversas posições que ocupa no espaço interdiscursivo.
Tanto na AD-1 como na AD-2, o sujeito é ideológico, não-individual; a ideologia se concretiza por
meio dele.
Na AD 3, esses conceitos se aprofundarão. A identidade discursiva é contaminada pela
alteridade, pela heterogeneidade, pela influência do outro no discurso, existindo uma relação do
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
discurso com outros discursos. De sujeito assujeitado abre-se para a alteridade, o reconhecimento da
presença do discurso alheio. O sujeito é social, fruto da interação entre o eu e o tu. É a presença do
outro que confere ao discurso um caráter heterogêneo.
Inaugura-se, dessa maneira, uma nova tendência em AD. O sujeito passa a ser definido numa
relação com o outro, como um sujeito descentrado, o outro passa a ser integrante de sua identidade.
Assim como o discurso, o sujeito é heterogêneo.
Para Pêcheux (1969), a noção de sujeito se determina pela posição, pelo local de onde se fala,
falando do interior de uma formação discursiva coordenada por uma formação ideológica.
Para Orlandi (2000), o sujeito se organiza como autor ao construir o texto. O autor é o local
onde se edifica a unicidade do sujeito, desenvolvendo o seu projeto em plenitude.
A concepção de sujeito também é discutida por Althusser, o qual expressa que o sujeito
existente é o sujeito da ideologia e que não há outro. Já para Foucault, sujeito está diretamente
relacionado com o discurso. Ser um sujeito é ocupar uma posição como enunciador, sendo os discursos
caracterizados como enunciados.
1.1.4. Sentido
A constituição de sentido, na AD, será manifestada pelas posições ideológicas em que as
palavras são construídas. A AD considera como parte integrante do sentido, o contexto histórico social,
considerando as condições em que o texto foi produzido. Para a AD, os sentidos são historicamente
construídos. Vão se constituindo à medida que se constrói o próprio discurso, ou seja, o sentido não
existe antes do discurso.
O lugar ideológico determina o sentido do enunciado, sofrendo a sua influência.
Os sentidos possíveis de um discurso, portanto, são sentidos demarcados, preestabelecidos pela própria
identidade de cada uma das formações discursivas colocadas em relação no espaço interdiscursivo.
(MUSSALIM, 2001: 131-2).
Para a AD, os conceitos de sujeito e sentido estão interligados, pois ambos são constituídos
no discurso. De acordo com Pêcheux (1975 citado por BRANDÃO, 2002:62):
O sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente
com a literariedade do significante), mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no
processo sócio-histórico em que palavras, expressões, proposições são produzidas (isto é, reproduzidos).
Embora apresentados distintamente, os conceitos de discurso, ideologia, sujeito e sentido
ora se confundem, ora mantém uma profunda interdependência, sendo complicado falar de uma
noção sem abordar a outra. É notório perceber a relação e a importância desses termos a fim de
compreender mais claramente a Análise do Discurso.
2. Polifonia: Várias vozes no discurso
O conceito de Polifonia foi estabelecido por Oswald Ducrot e está relacionado às várias
vozes que permeiam um discurso. O termo, emprestado a Bakhtin, diz respeito ao “coro de vozes
que se manifesta normalmente no discurso, visto ser o pensamento do outro constitutivo do nosso,
não sendo possível separá-los radicalmente” (INGEDORE, 2004: 140). Entende Ducrot (1990) por
Polifonia, a natureza de um diálogo cristalizado, em que várias vozes se sobrepõem umas às outras
na enunciação.
A relação dialógica e, portanto, polifônica é necessária para que a comunicação seja
concretizada. A Polifonia, dessa forma, é caracterizada pela revelação explícita de vozes, aquelas em
que o autor cita conscientemente uma mensagem, como também por outras vozes em que o autor
não tem consciência, nem mesmo controle, mas que procedem do contexto social e de diversos meios
que servem de referência, de imitação e de inspiração ao homem.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Por meio desse conceito, Bakhtin apresenta que a base do processo comunicativo se
estabelece no dialogismo, isto é, na relação com o outro. Um texto não existe por si mesmo, mas se
constitui em uma resposta aos textos que o antecedem e, ao mesmo tempo, será responsável pelo
surgimento de outros.
A linguagem tem a propriedade de aglutinar em si a presença do EU e do OUTRO, a
presença da diferença; e diluir o Eu e o OUTRO no Nós.
Orlandi (2000) propõe uma enunciação como polifônica sob duas formas. Na primeira, a
polifonia é manifestada se o discurso produzido apresenta mais de um locutor para o enunciado. Nesse
caso, o locutor pode revelar-se como “eu” no texto, disfarçar-se na impessoalidade ou apresentar-se
como responsável pela enunciação, como locutor.
Outra possibilidade de ocorrer a Polifonia é quando se expõe mais de um enunciador num
discurso, ou seja, mais de uma perspectiva de onde desenvolvem as enunciações. Pode existir, por
exemplo, para um discurso, um enunciador que corresponda ao locutor e um enunciador genérico.
Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião sempre têm uma expressão verbalizada.
Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este não pode deixar de refletir-se no
enunciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto, mas também para os discursos do outro
sobre ele. No entanto, até a mais leve alusão ao enunciado do outro imprime no discurso uma reviravolta
dialógica”. (BAKHTIN, 2003: 300).
Maingueneau (1997) afirma em sua obra quando se refere à questão da heterogeneidade
enunciativa, a crítica elaborada por Ducrot no que tange ao pressuposto de que há apenas um falante
em cada enunciado, identificado como autor e locutor, simultaneamente. Para Ducrot, existem, na
realidade, dois tipos de personagem, os enunciadores e os locutores, distintamente, caracterizando a
Polifonia. Para o autor, não há unicidade do sujeito falante.
Compreende-se por locutor aquele que é o responsável pelo enunciado, sem, no entanto,
ele ser necessariamente o produtor físico enunciativo. É o que ocorre, por exemplo, numa empresa
em que o funcionário assina um documento formulado pela gerência, sem ser ele o autor efetivo. Em
outro caso, implica dizer que, embora um enunciado possua um autor, não se indica propriamente
que também seja locutor.
Guimarães explicita que no conceito de Polifonia para Ducrot a noção de história é excluída.
Para ele, a concepção de historicidade refere-se ao momento presente da enunciação; enquanto que
para Bakhtin, a noção de história é imprescindível.
A alteridade, no discurso, pode ser apresentada através de duas maneiras, de acordo com
Authier (citado por BRANDÃO, 1998: 125-130): a primeira refere-se a manifestação do discurso de
forma explícita, ou seja, o Outro aparece através de marcas evidentes; como, por exemplo, no caso
de um link, remete ao local de onde se retirou a colocação. As fontes da enunciação são colocadas
e mostradas. Já na segunda maneira de manifestação do discurso, não se percebe a voz do Outro
de maneira direta, é necessário sair da superfície para alcançar a profundidade, não se percebe
imediatamente uma nova voz, pois a presença se dá sutilmente. A alteridade representa não apenas
o reconhecimento do Outro, mas a chance de que ele se revele direta ou indiretamente. Por conta da
importância e da constituição do Outro é que os links são instrumentos polifônicos.
3. Hipertexto: Conceito e perspectivas
Historicamente, o surgimento do hipertexto apresenta dois períodos. O primeiro têm seu
ícone em Vannevar Bush, em 1945. Essa primeira tendência tinha como objetivo proporcionar
o acúmulo de informações por meio dos sistemas computacionais. O nome hiper, segundo seu
criador, Theodore Nelson, deve-se à noção de extensão. A intenção dos pioneiros do hipertexto
era, justamente, montar uma biblioteca em uma imensa rede, em que todos pudessem ter acesso na
interação dos dados.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
O segundo momento despontou em meados da década de 80, com os princípios idealizados
pelos criadores do hipertexto eletrônico. Neste período, que se prolonga até a atualidade, foi permitido
um maior avanço tecnológico, ampliando ainda mais a interação com os usuários, especialmente
pela utilização da hipermídia, aliando ao aspecto gráfico recursos não-verbais, como as imagens e os
sons.
Segundo Marcushi (1991, citado por INGEDORE, 2002: 63), o hipertexto constitui “um
processo de leitura/escrita multilinearizado, multisseqüêncial e não determinado, realizado em novo
espaço – o ciberespaço”.
Ainda sobre o conceito de hipertexto, Leão (1999, citado por GOMES, 2006), o considera
como:
Um documento digital composto por diferentes blocos de informações interconectadas. Essas informações
são amarradas por meio de elos associativos, os links. Os links permitem que o usuário avance em sua
leitura na ordem que desejar. Através de estruturas interativas, o leitor percorre a trama textual de forma
única, pessoal.
Lévy (citado por MARCUSCHI e XAVIER, 2005) define o hipertexto a partir de duas
esferas: a técnica e a funcional. A técnica refere-se ao conjunto de nós interligados. Esses nós podem
ser imagens, gráficos, páginas, palavras, os quais podem constituir hipertextos. Quanto ao aspecto
funcional, o hipertexto diz respeito a um tipo de programa que tem o objetivo de oferecer dados e
informações. Para este mesmo autor, o hipertexto é considerado como uma metáfora da comunicação
humana, porque conecta palavras e frases que geram significados entre elas, estabelecendo uma rede
de associações entre elas, no intelecto do leitor.
Ingedore (2002: 64) propõe as essenciais características do hipertexto:
1. não linearidade (geralmente considerada a característica central);
2. volatilidade, devida à própria natureza (virtual) no suporte;
3. espacialidade topográfica, por se tratar de um espaço de escritura/leitura sem limites definidos, nãohierárquico, nem tópico;
4. fragmentalidade, visto que não possui um centro regulador imanente;
5. multissemiose, por viabilizar a absorção de diferentes aportes sígnicos e sensoriais, numa mesma
superfície de leitura (palavras, ícones, efeitos sonoros, diagramas, tabelas tridimensionais);
6. interatividade, devido à relação contínua do leitor com múltiplos autores, praticamente em superposição
em tempo real;
. iteratividade, em decorrência de sua natureza intrinsecamente polifônica e intertextual;
. descentração,em virtude de um deslocamento indefinido de tópicos, embora não se trate, é claro, de um
agregado aleatório de fragmentos textuais.
Primo (2002, citado por RECUERO, 2004), levando em consideração o princípio de
interatividade do hipertexto, divide-o em três formatos:
Hipertexto potencial: é aquele em que os nós hipertextuais são criados pelo próprio
programador da página, sendo que ao usuário só é facultado o seguimento do caminho sugerido por
aquele e não há possibilidade de inclusão das idéias pelo hiperleitor.
Hipertexto colagem: é aquele em que o programador/ autor viabiliza uma atuação mais
ativa do usuário do que no hipertexto anterior. Na colagem, o internauta pode criar, embora não haja
debate entre os envolvidos no processo.
Hipertexto Cooperativo: é aquele em que há debate entre autor e usuário da página. Nesse
sentido, a construção dos caminhos oferecidos é elaborada de forma coletiva. De acordo com o autor:
“O que se vê hoje em dia nas páginas Web é a configuração de um hipertexto potencial ou colagem,
devido ao baixo grau de interferência dos internautas nos hipertextos da Web”. (Primo, citado por
RECUERO, 2004).
Quanto ao princípio da não linearidade, Marcushi (2001 citado por GOMES, 2006) aponta
a preocupação com a seqüência da leitura que, algumas vezes, é comprometida pelo fato de que o
leitor, em geral, é acostumado a fazer a leitura de textos lineares, o que torna a leitura hipertextual
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
fragmentada, caso o leitor não tenha facilidade em utilizar esse sistema eletrônico. Nesse caso, é
necessário que haja um maior letramento por parte do leitor.
A identidade do hipertexto virtual aparece sob a utilização de seus constituintes internos,
chamados de nós e links. Os links são canais, dispositivos que permitem o acesso à leitura hipertextual.
Eles são utilizados para construir o sentido no hipertexto. No que se refere aos tipos de hiperlinks,
Ingedore (2002) explicita que existem os fixos e os móveis. Os primeiros são aqueles que não têm
mobilidade, são constantes no site. Os segundos já se distinguem dos primeiros por apresentarem
mobilidade e sua aparição na tela varia consoante o interesse do leitor. Eles exercem as funções dêitica
por estabelecer e apontar caminhos para aquisição dos dados.
Outra função exercida pelos links, diz respeito à função coesiva, ou seja, deve apresentar
uma organicidade no conteúdo, através da utilização dos operadores ou conectivos para que a leitura
seja orientada de maneira correta e coerente.
A função cognitiva dos links relaciona-se à ativação do conhecimento humano, que norteia
a pesquisa de acordo com a necessidade apresentada. O hiperleitor vai a busca do conteúdo desejado,
construindo, cognitivamente, o sentido textual.
Um aspecto importante na discussão dos links retrata a questão da autoria e leitura dos
hipertextos. Conforme Possenti (2002, citado por CAVALCANTE, 2005: 163):
[...] o hipertexto acabaria atribuindo ao leitor um papel similar ao do autor, na medida em que caberia em
grande parte ao leitor organizar a seqüência do que vai ler (clicando ou não palavras-chaves, por exemplo,
ou seja, indo ou não a um outro espaço, e tendo que decidir se volta ou não ao texto como o autor o teria
disposto ou imaginado).
Ribeiro (2005) propõe a distinção entre hipertexto impresso e hipertexto eletrônico para
evitar confusão quanto ao meio adotado pelo leitor; além disso, afirma sua posição ressaltando que
os hipertextos são sempre textos, sejam eles verbais ou não; no entanto, alerta que nem todo texto é
hipertexto, sendo que, para ela, a principal característica deste é a não-linearidade, independente do
suporte empregado, isto é, impresso ou eletrônico. O aspecto novo se dá no que concerne ao próprio
suporte e a velocidade com que se acessa os hipertextos eletrônicos, mas o hipertexto impresso já
existia a mais tempo, por meio do uso das notas de rodapé, fotos, referências bibliográficas, permitindo
uma completude na leitura textual, de maneira a deslinearizá-la.
Sendo a tela do computador o suporte do hipertexto eletrônico, surgem com ele, novos
leitores, os virtuais, que começam a ter contato com outros tipos de suportes, que não os manuais.
Segundo Ribeiro (2005: 133):
O suporte em que o texto se encontra também influencia a emergência de novos gêneros da escrita, e o
leitor amplia seu leque de possibilidades de leitura À medida que entra em contato com esses suportes
e gêneros reconfigurados, que por vezes são híbridos, “cruzamentos” de algo conhecido com alguma
possibilidade nova, parcialmente estranhos, mas parcialmente reconhecíveis.
O hipertexto é considerado um texto, pois apresenta em sua constituição as condições de
textualidade, como a coerência, coesão, informatividade, situacionalidade, intertextualidade, além
de outras características já mencionadas. Esta última característica textual, permite admitir que se
trata de textos que evocam outros, por isso, é essencialmente dialógico e polifônico. Para Bakhtin,
o dialogismo é a condição de sentido do discurso, é um espaço interacional entre o eu e o tu e o eu
e o outro, no texto/ hipertexto. Na constituição do sentido, é necessário levar em consideração a
perspectiva de outra voz.
No que tange à leitura do hipertexto, é importante que se saiba, preliminarmente, as
informações as quais se pretendem obter, a fim de chegar ao caminho certo, afinal um link leva
a outro e novas idéias são sugeridas e, nesse caso, ocorre uma “conexão de cascata”, desviando a
continuidade temática do objetivo ao que o leitor se propôs. Remete-se, portanto, a uma questão da
manutenção da coerência textual, visto às várias possibilidades de leitura oferecidas pelos links para
a obtenção da informação. Com essas viabilidades, é possível atentar para o aspecto polifônico dos
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
links que oferecem ao hiperleitor variados acessos, sendo que eles constituem a porta de entrada para
o aquilo que se está procurando.
Pode-se afirmar que a leitura hipertextual garante ao leitor navegar por vários
caminhos, a fim de construir o sentido textual almejado, a leitura, dessa forma, constitui-se
numa co-autoria, sem muitos limites entre leitor e escritor. O hiperleitor tem liberdade de
decidir o trajeto da leitura consoante o que se dispõe a ler, no entanto, essa construção da
leitura nunca é totalmente livre, visto que dependendo do tipo de hipertexto que se esteja
acessando, o hiperleitor interage em maior ou menor grau. Expõe Marcuschi (1999, citado
por INGEDORE, 2002: 70) que “a leitura do hipertexto é como uma viagem por trilhas. Ela
nos obriga a ligar nós para formar redes de sentido”. O debate sobre a produção de leitura
hipertextual é muito ampla e não se esgota nessa tese. São muitas as questões a serem discutidas
com maior profundidade sobre esse conteúdo, mas o nosso propósito se limita a abordar as
relações entre Hipertexto, Análise do Discurso e Polifonia, observando em que medida esses
três fatores atuam durante a atividade de leitura.
3.1. Hipertexto: Uma análise discursiva e polifônica
Existe uma interessante relação entre os conceitos que norteiam a Análise do Discurso, a
Polifonia e a Produção de leitura dos Hipertextos. Mostraremos como eles se interelacionam por
meio da análise de um hipertexto e como é importante observar essa relação para que haja uma leitura
mais proveitosa e fecunda.
A AD fornece uma série de ensinamentos no que tange à estrutura de um texto. Um deles,
sem dúvida, está ligado a forma que o discurso pode ser construído para satisfazer as intenções
lingüísticas do falante. Além disso, a compreensão e o entendimento do funcionamento dos conceitos
que a ela se unem, como o discurso, sujeito, ideologia, sentido, formação discursiva e formação
ideológica, muito contribuem para a realização de uma produção de leitura mais eficaz.
Para a Análise do Discurso, todo discurso é híbrido ou heterogêneo, ou seja, constituído
de muitas vozes. Essa heterogeneidade se manifestaria em dois planos, designados ambos por
Bakthin, como Polifonia, mas que poderiam ser conceituados como heterogeneidade mostrada e
heterogeneidade constitutiva (ou interdiscurso). Todo texto/ hipertexto, portanto, é constituído
pela influência de outros, nesta ação interpelativa entre um enunciado e outros enunciados que
constituem um discurso. Para demonstrar esses aspectos discursivos citados, faremos a análise de
hipertextos eletrônicos, caracterizando-os e mostrando como eles possuem marcas discursivas e
polifônicas em sua constituição.
Os hipertextos abordados, nesta pesquisa, fazem parte do site www.brasilsemaborto.com.br,
criado em 2006 por uma comissão de parlamentares com a iniciativa de desenvolver uma campanha
nacional pela erradicação do aborto.
Em sua página principal os links relacionados à temática abordada – o aborto – são variados
e se agrupam nos seguintes hiperlinks: “Notícias”, “Artigos”, “Comitês Estaduais”, “Cadastro”,
“Downloads” (música e folder da campanha), “Galeria de Imagens” e fale conosco, sendo que cada
hiperlink, remete a hipertextos e, dependendo do interesse do leitor, uma nova página é aberta. No
caso do link “Artigos”, por exemplo, há uma gama de outros links, que o levam a outros e todos eles
se referem à mesma temática, garantindo a sua manutenção.
Além desses links principais, há outros logo abaixo, na página, como: Lista de Candidatos que
apóiam a campanha, outras Notícias, Depoimentos, Destaques e Faça sua Doação para a Campanha.
Quanto à organização desses outros links, nota-se uma forte presença polifônica, especialmente nos
hipertextos conativos que convidam o hiperleitor a desenvolver a leitura. Como no caso do hipertexto
“Leia +”. Ao ser clicado, uma outra página vai ser aberta e outros hipertextos surgirão. Neste site, os
tipos de links adotados são fixos e móveis. Estes últimos aparecem no Link “Notícias” e só ficam fixos
se forem pressionados para serem lidos.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Quanto ao princípio de interatividade proposto por Primo (2002 citado por RECUERO,
2004), podemos classificá-lo como hipertexto potencial, pois ao hiperleitor é possibilitado apenas
seguir o trajeto da leitura proposto pelo programador da página, sem inserção de suas idéias no site,
de forma ativa, como ocorre nos blogs, por exemplo. Não há uma liberdade plena na seqüência da
leitura, justamente pela caracterização limitada dos links e do conteúdo abordados.
A maioria dos links apelam para a polemicidade, o próprio assunto tem essa característica e divide
a opinião pública quanto a sua execução. O discurso adotado pelo site, refere-se à manutenção da vida.
Neste caso, o aborto é visto como um atentado à vida humana. Diante dessa concepção, os hipertextos
expostos terão como principal sentido a divulgação dessa ideologia. Ela se concretiza, claramente, na
linguagem empregada. Os links de caráter polêmico caracterizam bem esse aspecto ideológico, portanto,
pode-se afirmar que se há uma defesa de uma ideologia, é porque há uma posição contrária a mesma
tese, daí ser um dos aspectos que revelam a marca polifônica do discurso defendido.
Embora a página eletrônica seja visitada por pessoas que se reúnem em torno de uma mesma
formação ideológica, muitas delas também não a possuem de forma definida. A intenção, também,
de retratar uma campanha contra o aborto consiste num forte apelo de convencimento dos que têm
uma FI contrária a da que se prega e dos que têm dúvida sobre o seu posicionamento em relação ao
assunto em questão. O lugar ideológico determina o sentido do enunciado, por isso a construção do
referido sentido se dá em sintonia com a formação ideológica preestabelecida.
Não sendo individual, o discurso não se separa das condições de produção que é produzido,
nem das condições históricas e políticas que a ele se integram. Aprender a linguagem enquanto discurso é
percebê-la muito além dos seus aspectos puramente lingüísticos. O discurso, como vimos, é contaminado
pela alteridade, pela heterogeneidade, pela influência do Outro, por ideologias. Portanto, há no discurso
uma heterogeneidade polifônica e ele nunca se apresenta como ideologicamente neutro.
A polifonia pode ser apreendida, conforme afirma Maingueneau (1997) pela heterogeneidade
mostrada, que representa, justamente, as manifestações discursivas explícitas no enunciado. No Link
“Depoimentos”, percebemos a presença do discurso direto com a exposição da fala da própria
pessoa que realizou o aborto, quando diz: “Eu me sinto uma assassina”; além desse enunciado, outros
mais são revelados, por meio da utilização das aspas, recurso que caracteriza o discurso direto e são
verdadeiros marcadores da alteridade. Embora assuma a responsabilidade do enunciado, a costureira,
que é a própria locutora desse enunciado, acaba divulgando o discurso, que muitas vezes, fica na
clandestinidade pela falta de coragem de algumas pessoas em assumir o ato de abortar.
Como apregoa a Análise do Discurso, não há um único sujeito na enunciação, há diversas
vozes que ressoam mediante uma formação ideológica comum, embora em diferentes formações
discursivas, afinal as realidades e situações tecidas no hipertexto, nos mostram, claramente, esse
panorama, em especial, no link “Depoimentos”. Neste link, a Polifonia é perceptível, destacando a
participação de variadas pessoas, que socializam suas experiências sobre o aborto, umas, inclusive,
representam a voz de várias outras pessoas, são porta-vozes do discurso de outras.
O sujeito, na perspectiva da AD, é um elemento dotado de ideologia, ele é social, heterogêneo,
acrescentamos, ainda, polifônico, pois seu discurso é construído, é determinado por uma série de
fatores como a historicidade, a alteridade, a formação ideológica, que formam um todo discursivo,
todas essas marcas de subjetividade são encontradas no hipertexto em questão. O sujeito do discurso
se define não pelo que ele é, mas pelo que ele não é; o sujeito se define em função do outro. No
discurso, o sujeito utilizando-se da palavra, materializa as forças sociais que o constituem.
O sujeito apresentado no hipertexto em questão, é possuidor dessas características, ele não
é único, individual, mas social, polifônico, repleto de ideologias, assumidas e notadas na produção do
discurso empregado.
Considerando a “Polifonia como um dos lugares de se observar a relação entre as diferentes
formações discursivas e a constituição do texto em sua unidade”, conforme afirma Orlandi (2000: 58)
, pode-se abordar que são variadas tanto as formações discursivas como as ideológicas que acessam o
hipertexto. Explica-se, com isso, que a construção do sentido, também será distinta.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
No hipertexto, o leitor torna-se co-autor do texto, pois enquanto evento comunicativo, o hipertexto é
heterogêneo, intertextual e não-linear, características que o tornam polifônico e um espaço aberto para
leituras possíveis, onde o leitor participa da redação do texto que lê (GOMES, 2006)
Tem-se o entendimento que na relação com o texto, todos são sujeitos da enunciação, o
leitor tem a possibilidade de atribuir, portanto, o sentido que lhe aprouver diante da situação dada;
além disso, ao passar de uma formação discursiva a outra, o hipertexto muda de sentido. A produção
de sentidos é, certamente, a tese discursiva mais evidente no hipertexto, pois o sentido atribuído a ele
vai depender da formação ideológica que o hiperleitor possui e, nesse caso, se a FI está em sintonia
com o discurso preconizado pelo site, o sentido conferido aos hipertextos serão favoráveis, caso
contrário, se a FI for oposta, o sentido concedido ao conteúdo do site será desfavorável, não haverá
concordância com os hipertextos ali expostos.
Para Ducrot (1987: 174), “o sentido é uma qualificação da enunciação, e consiste notadamente
em atribuir à enunciação certos poderes ou certas conseqüências”. No que tange ao aspecto social
da produção do sentido, é muito forte, principalmente, no setor religioso a presença do discurso
favorável à manutenção da vida e a posição contrária da igreja quanto ao aborto. E em diversos
links, isso é comprovado, como no caso do Link “Notícias”, em que algumas informações revelam o
posicionamento desta instituição que é respeitada por uma ampla parcela da sociedade, o que se nota
ser este um forte argumento para se propalar a ideologia do site.
Como podemos observar, o hipertexto, em geral, possibilita a manutenção e a defesa da
Formação Ideológica adotada no discurso através de inúmeros argumentos e também da polifonia,
uma vez que os links são marcas polifônicas e vão levar o hiperleitor a um outro hipertexto que
também compartilha da mesma Formação Ideológica. Exatamente por isso o hipertexto apresentase como um importante instrumento de ensino para a construção de leitores críticos, pois exige do
hiperleitor a ativação de conhecimentos e um posicionamento para que possa navegar com sucesso
pelos seus links e, assim, construir um percurso de leitura coerente.
4. Leitura, hipertexto e análise do discurso: Potencialidades para o ensino
Não é nossa intenção desenvolver, aqui, propostas metodológicas sobre a produção de
leitura dos hipertextos, mas sim, sugerir uma reflexão acerca de sua utilização no ensino da linguagem,
com base nas teorias estabelecidas pela Análise do Discurso francesa e da Polifonia.
Estudar um gênero do discurso, no caso desta pesquisa, o hipertexto eletrônico, é estudar a
linguagem como realidade social, a sociedade e as forças sociais que agem na sua organização e que
regem o comportamento do homem e suas formas de ver o mundo e de viver nele, além disso, é
estudar o homem representado na linguagem.
Falando em linguagem, ela se renova quando se renovam os meios. E com o advento das
inovações tecnológicas, profundas mudanças ocorrem também no processo de ensino aprendizagem
da língua na e fora da escola. Com o avanço e a constante utilização dos novos gêneros digitais, como
o hipertexto, a produção de leitura também passa por um processo de mudança em sua realização,
especialmente, com o amplo uso do computador. As práticas sociais são alteradas da mesma forma,
mediante a relação existente entre a escrita e o suporte adotado, neste caso, o próprio computador.
Xavier (2005) associa o hipertexto a um novo contexto social, a uma nova ordem mundial, a
qual chama de Tecnocracia, e esta tendência nos desafia a atualizarmos nossos conhecimentos sobre o
estabelecimento dos hipertextos na prática de ler e de escrever. Não há como passarmos despercebidos
ou ignorar esse período histórico e atual da tecnocracia, uma vez que ele reflete diretamente no uso da
língua e, conseqüentemente, no processo de ensino aprendizagem.
Com o aparecimento de novos suportes e novos recursos, surgem também novos leitores
e estes entram em contato com diversos gêneros discursivos, ampliando as possibilidades de leitura;
além disso, viabiliza ao leitor o estabelecimento do letramento digital, ou seja, o leitor poderá explorar
e ter acesso a outros gêneros com suportes diferentes, aprendendo ou reaprendendo a utilizá-lo.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
A produção de leitura dos hipertextos carrega em seu bojo a relação com outros componentes
comunicacionais que auxiliam na compreensão textual como os sons, as imagens, os ícones animados
ou não, as tabelas tridimensionais, em suma, todo esse aparato disponibilizado por esse gênero virtual;
viabilizando, dessa forma, uma leitura sinestésica, que significa o envolvimento e o estabelecimento
desses múltiplos recursos midiáticos, fornecidos pela leitura hipertextual. Na internet, apesar da
confluência de imagem e som, a escrita é a base essencial para o seu funcionamento.
Os indivíduos envolvidos no processo de produção da leitura são sujeitos ativos na construção
dos seus próprios conhecimentos e a utilização dos hipertextos no contexto educacional oportuniza
ao aluno/ leitor o acesso a novos meios de produzir a leitura, em que ele experimenta um certo grau
de autonomia enquanto navega na informação, contribuindo para que a aprendizagem se efetue.
A aquisição do conhecimento por meio da leitura do hipertexto é algo de muita importância,
pois permite ao hiperleitor, ainda que de maneira virtual, está imerso em uma cadeia informativa
simultaneamente com outros leitores, recebendo informações recentes e atuais. Assim como o texto
impresso, o texto eletrônico exige de seus usuários mais do que uma mera decodificação das palavras,
faz-se necessário interpretar adequadamente as questões que não estão explícitas.
O hipertexto, portanto, é um espaço de construção de múltiplos discursos, de co-produção
dos sentidos, em que várias vozes discursivas permeiam seu conteúdo, apesar de se perceber que a
liberdade nessa produção é limitada. Em relação a produção de sentido, que é uma das teses mais
profícuas da relação entre a AD e polifonia, referente ao hipertexto, ela funciona com base em
determinados interesses e suposições, em que as formações discursivas e ideológicas semelhantes
irão se confluir quando há um assunto abordado, conferindo aos hipertextos uma interpretação
sintonizada com o padrão discursivo e ideológico estabelecidos.
Numa outra perspectiva, a concepção de leitura vista como um processo de produção
de sentidos, requer o conhecimento de que o sujeito-leitor, o sujeito-autor e os sentidos são
historicamente determinados. É necessário que se considere que ler é um ato de interpretação, o qual
se constitui no momento crítico de uma relação autor/texto/leitor. Este não reconhece sentidos,
mas preenche lacunas e é interpelado pela posição-sujeito que o afeta; instaura seu próprio trabalho
discursivo, des/construindo o texto lido e atribuindo sentidos que não são aqueles necessariamente
esperados pelo autor.
A construção de sentido, a interpretação é possível porque há o outro nas sociedades e na
história. “É com esse outro que se estabelece uma relação de ligação, de identificação ou de transferência
que possibilita a interpretação”. (PÊCHEUX, 1990: 45). É nessa direção que o interdiscurso se revela
como o lugar do outro. Portanto, ler reveste-se em uma prática social que articula o interdiscurso,
direcionando o leitor enquanto sujeito histórico, inscrevendo-se nas múltiplas possibilidades de
interpretação, de evocação dos sentidos, o que caracteriza uma heteregoneidade provisoriamente
estruturada. Como afirma Indursky (2001), ler “é mergulhar em uma teia discursiva invisível construída
de já ditos para desestruturar o texto e (re)construí-lo, segundo os saberes da posição-sujeito em que
se inscreve o sujeito-leitor”.
Nas práticas de produção de leitura no âmbito educacional, Orlandi (1996) afirma que essas
práticas devem favorecer ao aluno compreender que por meio de textos/hipertextos pode-se chegar
a discursos e como estes, ao funcionarem de um modo ou de outro, produzem sentido.
Inserir na prática educacional, a leitura de hipertextos, além de viabilizar o contato com
novos gêneros textuais, permite um processo de desconstrução do hipertexto pelo sujeito-leitor;
desconstrução esta que possibilita a produção de novos textos e leitura, não necessariamente com os
mesmos sentidos esperados pelo sujeito-autor.
De acordo com Morgado (1998) essas são algumas vantagens em trabalhar com o hipertexto:
permitir diferentes níveis de conhecimento prévio, encorajar a exploração, permitir a visualização de
subtarefas mais globais e a adaptação de informação aos estilos individuais da aprendizagem.
Além dessas questões citadas pela autora, é importante que, no âmbito educacional, o
professor desenvolva a criticidade em seu aluno por meio da leitura hipertextual. E isso pode ser
1053
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
trabalhado com a percepção das ideologias apresentadas, que, na maioria das vezes, não está dita
explicitamente, mas estão colocadas de forma implícita. Essa tarefa é do professor, ajudar o aluno a
perceber as informações subjacentes, encontradas em todo discurso.
A presença da Formação Ideológica nos hipertextos é notória e pode, perfeitamente ser
apresentada durante as aulas. A utilização do computador como suporte na produção da leitura é um
atrativo para o aluno, desde que seja monitorada pelo professor, evidentemente; a fim de que haja um
maior aprimoramento da pesquisa almejada.
O trabalho com os gêneros digitais nas aulas de linguagem é de suma importância e deve ser
direcionado para o desenvolvimento de leitores mais críticos, possibilitando a construção de cidadãos
mais conscientes, formados por um processo de ensino aprendizagem norteado pela prática discursiva
e polifônica da leitura.
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1054
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
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A MEMÓRIA E TRADIÇÃO AMAZÔNICA
NA COMPOSIÇÃO DAS NARRATIVAS
DO ACERVO IFNOPAP
Natasha Queiroz de ALMEIDA
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Contar histórias é o meio pelo qual as pessoas passam de geração em geração seus hábitos,
crenças, costumes e comportamentos, sendo assim a mais antiga de todas as artes. No entanto, na tradição
oral existe a tendência de muitas histórias serem perdidas. Nesse contexto, surgiu o projeto IFNOPAP, o
qual busca o resgate da valorização da memória e da tradição amazônica paraense a partir da coletagem de
narrativas orais populares que, atualmente, estão no formato digital, em virtude da necessidade de preservação
deste rico material de pesquisa. Nestes tempos, no acervo IFNOPAP tem se desenvolvido um trabalho de
classificação dessas narrativas, em temáticas e tipologia. Nesse respeito, alguns temas merecem destaque:
narrativas de enterro, bestialidade, preconceito, drama familiar, mistério, sobrenatural, seres da floresta, seres
do rio. Dentre os seguintes tipos: lendas, fábulas, conto, canção, piadas, ditos, parábolas. Este trabalho de
classificação narrativa potencializa os estudos literários e afins, viabilizando o acesso a este material tão rico e
diverso, de forma organizada e sistemática.
PALAVRAS-CHAVE: memória; tradição amazônica; narrativas orais populares; temática; tipologia.
ABSTRACT: Telling stories is the way for what the people pass of generation to generation their habits,
beliefs, customs and thus the oldest of all arts. However, it’s important to emphases that in the oral tradition
exists the tendency of many stories are lost over the time. In this context, emerged the IFNOPAP project,
which seeks the rescue of the valorization of the memory and of the Amazon from Pará tradition by a working
collection of popular oral narratives which, nowadays, are in digital format, due to need to preserve this value
material of search. In these times, the achievements IFNOPAP has developed a work of classification of the
narratives listened, in thematic and typology. The impressive diversity thematic of the narratives has added the
research and the academic interest in this area still is growing. Then, some issues deserve emphasis: narratives
of burial, bestiality, prejudice, family drama, mystery, supernatural, beings of the forest, beings of the river. Of
the following types: legends, fables, story, song, jokes, sayings, parables. This work of narrative classification
enhances the studies based on production of a text about memory, theme or Amazon Tradition, enabling the
access to this material of too value and diverse, so organized and systematic.
KEY WORDS: memory; tradition of the Amazon; popular oral narratives; thematic; typology.
1. A memória e a tradição oral
Contar histórias é o meio pelo qual as pessoas passam de geração em geração seus hábitos,
crenças, costumes e comportamentos, sendo assim a mais antiga de todas as artes. De fato, conforme
dito por Nicolau Sevcenko “a narrativa não é uma exposição do assunto. É o modo supremo da vida”.
Sim, pois na transferência dessas histórias via oral, o elemento amazônida, enquanto elo entre sua
cultura e sua sociedade no momento da performance da contação, acaba por transmitir em forma
narrativa sua essência aliada a preservação dos hábitos, costumes e manifestações culturais.
Tais narrativas são o resultado de um processo imanente à memória humana: a seletividade.
Na mitologia grega, Zeus nada seria sem o canto mais que contemplativo das Musas, um canto
memorial que o tirava do Esquecimento a Memória, nada desproposital; posto que o canto de glória
era estrategicamente praticado e acabava por reafirmar as delícias de Zeus, enquanto supremo, a fim
de que este não caísse no esquecimento. Desta feita, o caráter de seletividade presente na Memória
jaz no próprio Esquecimento, posto que nada é esquecido ou “cai no esquecimento” à esmo, mas
sim a anamnese (a rememoração) aplica-se ao mesmo discurso memorial ao tirar do esquecimento a
historia oficial. As narrativas populares orais são um produto dinâmico do poder seletivo da Memória
humana que, por sua vez, não lembra de tudo, sem selecionar nada; a isto se deve também a bendita
excentricidade das narrativas orais populares quando do ato de contar, sugestionam pelo esquecimento
de alguns aspectos narratológicos em detrimento de outros, a fim de acirrar emoções e reações no
expectador da performance. Sempre a lembrança de Sêmele acompanhava o deus Baco; com tal
freqüência e tão grande intensidade pensava em sua mãe que um dia, Baco resolveu procurá-la para
conduzi-la com honras e pompas de deusa ao Olimpo. A memória é instigadora e motivacionalmente
seletiva.
Dada tal propriedade, a memória humana não é quantitativa, tal qual a de um computador
que deleta ou salva tudo, antes é qualitativa. Nessa fenda entra o protagonista do filme Eternal Sunshine
of the Spotless Mind: “Se eu tivesse um meio de apagá-la da minha mente...”. Ao descobrir que sua exmulher se submeteu a um tratamento experimental para apagá-lo de suas lembranças, o protagonista
decide passar pelo mesmo processo. Porém, durante a experiência, ele percebe que não quer esquecêla, pois sua ex-mulher ainda encontra-se sobre um signo em sua mente representativo de elevado valor
qualitativo; apesar de que nesta ficção cinematográfica um processo físico viabiliza o esquecimento,
o total apagamento não é possível com a mente humana, assim como ocorre com o armazenamento
de informações das máquinas.
As narrativas de tradição oral, nada avessas a essa realidade, são representações da produção
qualitativa de “uma série de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma
cultura” (SIMÕES, 2006, p. 119), que pelo seu imaginário organizam seu passado, constroem seu
presente e articulam seu futuro. Nesta relação subjaz a tênue linha de complementaridade entre
Memória e Tradição oral na literatura, sendo esta última um produto histórico de uma aprendizagem
transmissível de geração para geração.
No entanto, na tradição oral existe a tendência de muitas histórias se perderem com o passar
do tempo: o Esquecimento em favor da Memória. Ainda assim, muitas destas narrativas são (re)
contadas a cada contar, pois mesmo quando tratam do mesmo assunto, tornam-se de alguma forma
singulares pelo elemento novo que carregam.
Nesse contexto, surgiu o projeto IFNOPAP, o qual busca o resgate da valorização da
memória e da tradição amazônica paraense por meio de um trabalho de coleta de narrativas orais
populares que, atualmente, estão no formato digital, em virtude da necessidade de preservação deste
rico material de pesquisa.
2. O acervo IFNOPAP: temáticas e tipologias narrativas
Em tempos atuais, no acervo IFNOPAP tem se desenvolvido um trabalho de classificação
das narrativas catalogadas, em temáticas e tipologia.
Vale lembrar que personagens e ações constantes nos relatos orais são como que tiradas
da vida real, passada ou presente, baseadas em experiências vividas. Trata-se de experiência, parte
do cotidiano dos nossos contadores, que, não raro, se ligam às narrativas advindas da tradição e da
memória da comunidade, em que circulam.
As narrativas orais constituem, portanto, espécie de verdade literal, e, sem que se negue o
seu conteúdo ‘poético’ e ‘maravilhoso’, parte respeitável dos temas mais recorrentes é, na maioria das
vezes, extraída de, ou articulado com, referências a acontecimentos reais.
Assim sendo, não se pode desprezar a necessidade de uma classificação tipológica com visíveis
elementos de configuração sóciocultural, considerando hábitos e práticas dos grupos predominantes,
mas também, é possível fazer classificação que esteja determinada por modelos mais clássicos e, até,
por sua conformação estrutural.
As categorias e tipologia das narrativas não são estanques e as obras que as ilustram são
susceptíveis de cruzamentos e múltiplas gradações; este juízo, sobremodo, justifica-se no caso das
narrativas orais, sem se desprezar o fato de que, toda manifestação humana, por um ato volitivo
ou não, pode ser o testemunho de desejos, sonhos e impulsos humanos. A cada momento, a cada
leitura emergem motivos e mais motivos: alguns bem próximos do ar respirado pelos textos cânones,
facilmente perceptíveis.
Nesse respeito, Câmara Cascudo em seu livro A literatura Oral no Brasil enfatiza a
interdependência entre as duas literaturas - a escrita, erudita, e a oral – e lembra que a persistência
pela oralidade pode se dar, inclusive, pela fixação tipográfica; ou seja, as fontes contínuas da literatura
oral podem ser explicitamente e predominantemente orais (estórias), a exemplo dos cantos populares,
danças de roda, danças cantadas, jogos infantis, acalantos, cantigas anônimas, anedotas, adivinhações,
lendas e outras formas de expressão, e também impressas (publicações populares, como os antigos
folhetos e livretos originários principalmente de Portugal e de Espanha, com motivos correntes nos
séculos XIII ao XVI, até a produção brasileira contemporânea, como o cordel. Senão, vejamos uma
cantiga adaptada a voz de um de nossos contadores:
Ele saudou ela:
– Deus a salve Juliana1
em tua porta recostada
Ela respondeu:
– Deus o salve
meu D. Jorge
no teu cavalo montado.
Aí, ela disse, respondeu para ele:
– Eu soube meu D. Jorge
que tu está para casar
Ele respondeu para ela:
– Quem te disse Juliana
não te fiz desenganar2
os [banho] tão corrido
e eu vim te convidar
que hoje será a festa
amanhã será o dia.
Aí, ela cantou:
– Esperai meu D. Jorge
enquanto eu vou lá no sobrado
buscar um cálice com vinho
que para ti tenho guardado.
Aí, ele cantou:
– Juliana, Juliana não me vem com falsidade
bem sabes que somos parentes,
1
2
os diálogos desta narrativa são cantados.
expressão que corresponde a “não mentiu”
minha prima de minha alma.
– Juliana, Juliana que puseste no teu vinho
que estou com rédea na mão
e já não enxergo meu Rosinho3
Não enxergava mais o cavalo. Aí, ele cantou:
– Minha mãe agora pensa
que tem o seu filho vivo
Daí, ela cantou:
-A minha também pensava
que tu casavas comigo
(e era, era dois primo mesmo?) Era! aí, ela, ela cantou:
-Acabou-se, acabou-se, acabou-se já deu fim
Meu D. Jorge subiu ao céu,
parece um anjo Serafim
Morreu, quando ele morreu.
Nesta narrativa, a que demos o titulo de “Juliana e Dom Jorge”, assistimos à retomada do
tipo das cantigas medievais em que a donzela apaixonada se confronta com um amor impossível, visto
que seu amado irá se casar. Assentado num diálogo entre dois amantes, é latente, qual aspecto de
uma tradição, a atmosfera de uma sociedade patriarcal na voz de desabafo da mulher acerca da vida
(terrível) que leva, cerceada por padrões e (pré)conceitos, tanto mais pela impossibilidade de se casar
com o homem que ama pelo fato de este ser também seu parente, o primo. Na narrativa referida ainda
desfila uma série de sentimentos humanos atemporais, tal como o notório ciúme que a donzela sente
pelo iminente casamento de seu amado primo, o que culmina com um trágico final, com o calculado
crime passional cometido pela mulher contra seu primo, numa tentativa desesperada de não vê-lo
casar-se com outra.
Em “Juliana e Dom Jorge” foi uma narrativa contada por uma informante do bairro do
Jurunas, da região metropolitana de Belém. Mesmo sendo uma narrativa ambientada em pleno
século XXI, os ares aspirados pela narrativa figura um cenário que remete em muito ao das cantigas
medievais ou trovas do século XII em Portugal, em que tais poemas são provenientes também de uma
tradição oral e eram comumente cantados. Para tanto, muitas são as similaridades entre a narrativa oral
belenense e as cantigas portuguesas: o clamor a Deus em situações amorosas, a decepção amorosa e a
expectativa frustrada da mulher e de sua mãe em relação ao casamento dos primos, a ênfase dada pelo
próprio informante da narrativa quando menciona que os versos são cantados, a própria ambiência
da narrativa assentada na relação imagética do amado chegando à casa em um cavalo.
Este diálogo atemporal estabelecido entre textos de épocas e contextos culturais diferentes
não são aleatórios. Antes, são registros documentais da presença do colonizador e seu saber,
experiências, comportamentos trazidos também em seu imaginário, em que todas essas modalidades
de saberes foram codificados pelo elemento amazônida, em particular, facilitando a absorção dos
conhecimentos repassados.
Foram detectados resquícios do colonizador ainda em determinadas contações muito
similares aos contos de fadas, a exemplo de histórias como de João e Maria, ou da Chapeuzinho Vermelho,
assim como o aparecimento de reis e princesas:
Branca de neve versus Chapeuzinho Vermelho
“É porque a Branca de Neve era mais, era mais elegante...”
Era uma vez a Branca de Neve, estava na casa dela; aí Chapezinho Vermelho foi levar doce pra ela, aí estava
envenenado.
Aí ela morreu. Aí o príncipe ficou; aí ela beijou ela quando ela estava morta; aí ela sobreviveu; aí eles ficaram
juntos. Aí depois disso ela, ela, ela conheceu a mãe dela.
(— Ela não conhecia a mãe dela?)
— Não.
3
nome do cavalo.
Aí, ela encontrou com os Sete Anões. Aí eles levaram ela pra uma casa. Aí ela cresceu, aí namorou.
(— Ela namorou com quem?)
— Com o príncipe.
(— E onde ela conheceu o príncipe?)
— Na mata.
(— Foi? E como foi pra ela encontrar o príncipe?)
Ela era pequenininha, aí ela encontrou com ele e começou a brincar. Aí depois ela cresceu, cresceu, cresceu;
aí eles começaram a namorar.
(— E aí, ela casou com ele?)
— Casou. Aí foi quando ela desmaiou, dos docinhos que a,a moça levou pra ela. Aí ele beijou ela, aí ela
sobreviveu.
(— Quem foi que levou os docinhos envenenados pra ela?)
— Foi a Chapeuzinho Vermelho.
(— E ela queria matar a Branca de Neve? Por quê?)
— É porque a Branca de Neve era mais, era mais elegante.
(— É?!)
Aí ela chegava na frente do espelho e falava:
— Espelho, espelho meu, quem é a mulher mais bonita do que eu?
Aí o espelho respondia que era, que era a Branca de Neve.
(— Aí o Chapeuzinho Vermelho ficou com ciúme dela?)
— Foi.
(— E ela deixou os Sete Anões?)
— Não, ela... os Sete Anões saíam pra trabalhar, aí ela... e todo dia, ela vinha; a Chapeuzinho Vermelho
com uma coisa pra dar pra ela.
(— Ela era amiga dela? Aí, depois, ela casou com o príncipe?)
— [ Foi]. E desmaiou; depois eles ficaram juntos. Aí depois ela teve um nenenzinho.
(— Era o quê? Menino, ou menina?)
— Era menina.
(— Como era o nome do nenê dela?)
— Era Branca de Neve, também.
(— Era Branca de Neve, também? Ela só teve uma nenê? E depois que ela casou,ela continuou morando
com os Sete Anões?)
— Aí o príncipe também.
Em outras narrativas, foi encontrada a forte influência de contos consagrados na cultura
oriental, tal como o conto Ali Babá e os 40 ladrões. Tais influências acabam se mesclando com elementos
da cultura amazônica na memória do narrador; um grande exemplo disto é de uma narrativa localizada
no bairro do Coqueiro, em que o informante ao invés de mencionar na história a tradicional maçã
envenenada, cita a pupunha, palmeira nativa da região Amazônica e que é consumida na forma de
frutos, frutos esses que na narrativa estão envenenados:
– Vou contar uma história, da pupunha, da maçã, aí era a maçã, aí põe a maçã, apanharam, aí os gnomos
falou, o gnomo [guto] falaram “mas este pé de pupunheira é meu”, mas...
– Aí, aí a bruxa falou: “mas eu vou enfeitiçar vocês por causa que não querem me devolver a nos
sa casa de pupunha”.
Narrativas de grande destaque encontradas na pesquisa foram aquelas classificadas como
de preconceito, posto que nestas o narrador fala com desdém da cor, nível intelectual ou nível social de
outrem. Entretanto, mostram-se bastante atreladas à influência européia, posto que desde o ideal de
beleza que entranha o pensamento do narrador-caboclo até valores de respeito e admiração apenas
são considerados valorativos, quando se assemelham a valores culturais europeus. Desta feita, as
pessoas louras, brancas e gordas são exaltadas em muitas narrativas, tal qual sinônimo de beleza, o
que é um fato histórico e se torna atemporal, visto que em épocas passadas as formas arredondadas
são muito mais valorizadas nas pinturas renascentistas, no retorno ao modo de pensar às formas
estéticas greco-romanos, assim como a imagem da mulher de pele alva e fios de cabelo louros
(DOMÍCIO FILHO, 1989). Essa transferência de valores pode ser contada como um forte aspecto
da memória dos povos da Amazônia, em decorrência da preservação de uma tradição anterior e
remota, trazida pelos povos que aqui chegaram e estabeleceram parte de suas vidas e história. O
que é facilmente perceptível na narrativa que segue:
Adivinhação da princesa
Quem adivinhasse, quem dissesse uma desse; uma que não tivesse no livro dela, casava com ela, né. Então,
o pessoal da cidade... não tinha mais gente; ela era uma menina feinha né, pretinha né. Então, todos que
viam ela, não queriam casar, né.
Algumas outras narrativas refletem o desdém do elemento nativo em detrimento do
colonizador, o que também configura (pré)conceitos construídos num imaginário que parte de uma
generalidade coletiva para o plano individual. Note:
Uma lógica
“Tu tens um aquário na tua casa?”
Aí, o português perguntou, né? o que é lógica?
Aí:
— Olha, lógica, por exemplo, olha. Tu tens um aquário na tua casa?
Aí, ele :
— É, tenho, tenho sim.
Aí, disse:
— Se tu tens um aquário é porque tu tens criança.
Aí, ele:
— Oh, como é que tu sabes, rapaz?
— Isso é lógica, é lógica isso.
Aí, ele disse:
— Olha, que ver outro exemplo: se tu tem crianças é porque tu, se tu tem criança na tua casa é porque tu
tens filhos, né?
Ele:
— Mas é, e como é que tu sabes? Se tu já foi lá em casa?
— Não, rapaz, isso é lógica. É lógica, cara.
Ele disse:
— Olha, eu vou te dar outro exemplo. Se tu tens filhos, provavelmente tu deve ser casado, né?
Ele:
— É, é mesmo. Como é que tu sabes, rapaz? Eu nem te convidei pro meu casamento.
Aí, disse:
— Isso é lógica, cara, lógica. Olha, um, um outro exemplo bem fácil, tu vai entender agora: Oh, se tu é
casado, sinal que tu tem uma esposa e se tu tem uma esposa tu não é fresco, porra.
Ele:
— É, é mesmo, num sou fresco. Mas rapaz, como é que tu sabes, cara?
— É lógica. Olha, toma, eu tenho um compromisso agora. Tu fica aí com o livro, certo? lendo. Aí, tu, tu
me entrega amanhã. Tu passa lá em casa e leva.
O Manoel ficou lá lendo o livro, quando ele chegou, quando ele viu veio se aproximando o Joaquim, né?
— Oh, Manoel.
— Oh, oh Joaquim.
— O que é que tu estás a ler?
— Ah, isso aqui é um livro de lógica.
— O que é lógica?- o Joaquim perguntou.
Aí, disse:
— Lógica é, por exemplo, tu tens um aquário na tua casa?
Ele:
— Não, não, não tenho.
— Então tu é fresco.
Outro grupo temático encontrado que merece realce diz respeito a uma narrativa específica:
de bestialidade. Esta é particularmente interessante, em virtude de que o narrador menciona o
relacionamento de um homem com a fêmea do boto, a bota; a comparação antropomórfica que
o narrador faz entre a mulher, ao tentar explicar os motivos que levaram um dado pescador a ter
relações sexuais com uma bota, torna-se superiormente interessante, pois compara os seios femininos
ao relevo do tórax do animal, bem como assemelha a genitália animal à humana.
É fato dos estudos atuais que as narrativas desfilam sobre os mais diversos tipos e temas
literários que se traspassam numa série de combinações temáticas e tipológicas.
Quando aqui se menciona uma classificação temática das referidas narrativas, esta investigação
pauta-se no conceito de Tema, pensado por Boris Tomachevski (1973, p.169), segundo o qual se trata
da “significação de elementos particulares da obra na constituição de uma unidade”. Em virtude do
fato de que toda obra literária possui uma unidade, quando construída a partir de determinado tema,
que se desenvolve paulatinamente, em relação a essa pesquisa, em Literatura oral, a saber, a estrutura
dessas narrativas orais, não se apresenta diferente; este pressuposto de tema foi observado, quando da
execução do árduo trabalho de classificação das narrativas do campus de Belém, dada à variedade de
temas possíveis no corpus estudado, bem como à complexidade das contações em si.
Desse pressuposto decorrem várias conseqüências, pois considerando a escolha do tema de
uma narrativa, com vistas à classificação, foi identificado um verdadeiro embate para a captação temática,
mesmo para um simples leitor das narrativas. Isto porque Tomachevski delimitou categoricamente a
função de um leitor, enquanto captador do tema, posto que mesmo depois deste deixar de ler a obra,
ainda assim encontrará as significações dos elementos particulares da mesma:
A figura do leitor esta sempre presente na consciência do escritor, embora abstrata, exigindo o esforço
deste para ser leitor de sua obra. (...)a experiência literária, a tradição à qual se refere o escritor, revelamse-lhe como uma tarefa legada por seus antecessores, tarefa cuja realização exige toda sua atenção.
(TOMACHEVSKI, 1973, p. 170)
O exercício de classificação das narrativas, em questão, figurou como uma prática de
apreensão oscilante entre a tradição literária e as particularidades da época, tanto do narrador quanto
do leitor, ou quando se detinham a temas universais ligados à atualidade ou ao modo particular de
vida do amazônida paraense.
Sob este aspecto, urge destacar que a aplicação deste pressuposto teórico do russo Tomachevski
mereceu considerável reflexão e adaptação a uma realidade literária não-pronta e não-canônica, como
em geral, acontece nas obras literárias escritas; por se tratar de narrativas orais, as reflexões teóricas
merecem um enquadramento específico, posto que há exaustivos estudos e pesquisa na teoria literária,
com base nos textos escritos, e não oral. Logo, não é de se admirar que o referido formalista russo
embase suas reflexões acerca do tema nas obras literárias, ‘na figura do leitor enquanto agente sempre
presente na consciência do escritor’ e não de um contador, tal como é o caso de nossa pesquisa.
Entretanto, optou-se pela conceituação teórica de Tomachevski (1973) em virtude da
importância com que o autor teoriza sobre os tipos de tema e os critérios de escolha relativos ao
assunto. Ademais, foi possível aplicar estas considerações na classificação das narrativas, pelo fato de
que o acervo IFNOPAP não mais se constitui apenas de narrativas audíveis, posto que cerca de 2.000
destas já foram transcritas, viabilizando assim a aplicação de determinados critérios consagrados pela
teoria literária na análise de sua estrutura particular.
Outrossim, é inegável determinadas similaridades encontradas em Tomachevski (1973), no
estudo inevitavelmente comparativo e conseqüentemente passível de adaptação entre narrativas orais
e escritas: “É preciso sustentar o interesse, estimular a atenção do leitor. O interesse atrai, a atenção
retém” (TOMACHEVSKI, 1973, p. 172). Não é diferente o que ocorre nas narrações orais analisadas;
o elemento emocional é igualmente ou tanto mais marcante nas contações orais e este foi levado em
conta na escolha e delimitação dos mais diversos temas encontrados no corpus; um ato heróico, um
sentimento de indignação, um juízo de valor, a comicidade, o medo mórbido, a luxúria, um desejo
de vingança, um ato de generosidade figuram em diferentes temas ou na formação de uma unidade
composta de pequenos elementos temáticos dispostos numa certa ordem.
Nesse contexto, o conteúdo emotivo destas contações está impregnado da identidade
cultural dos povos amazônidas. O ato de contar não consiste apenas na narração em si, o narrador
inconscientemente se apropria e aplica elementos temáticos ao que se conta de forma ingênua e
espontânea, episódios esses tidos como acontecimentos verídicos nos quais sempre se contam
as origens de alguma coisa. E, ao lado das narrativas eruditas da Literatura canônica, têm-se as
narrativas populares orais que são uma espécie da história de certa forma esquecida, transmitindo,
em adição, os costumes, crenças, concepções de mundo e comportamentos sociais dos usuários de
cada cultura, numa
[...] forma de vivência e de reprodução cultural que tendem a permanecer vivas e fecundas, na medida em
que sobreviverem no espaço amazônico, as condições essenciais desse ‘locus’, no qual a presença humana,
do índio ao caboclo atual, encontraram meios para uma produção poetizante da vida. (SIMÕES, 2000, p.
60),
perpetuando-se. Tais narrativas são reelaboradas a cada contar, num processo comunicativo
em que a experiência individual e coletiva se misturam, configurando uma tradição que se faz
presente desde o início da formação da comunidade até os dias de hoje, por isso trata-se de um
discurso essencialmente memorialista em seu sentido lato. O ato de reelaboração a cada narrativa
contada é o que potencializa o acervo IFNOPAP, tamanha a diversidade de narrações que; mesmo
tratando aparentemente de um mesmo tema, acrescentam elementos temáticos que as diferenciam
de outros temas recorrentes acrescidos também de novos traços singulares da memória e tradição
de um povo.
Vale destacar a importância das narrativas orais nesse processo de consolidação cultural como
difusoras de variadas práticas culturais, tais como crenças, festejos religiosos e profanos, culinária etc.;
sobretudo, pelo imenso repertório de narrativas de tradição oral e dos relatos de experiência de vida,
oriundos desses agentes que ajudaram a compor o variado repertório narrativo da Amazônia, para
o qual, em base de pesquisa, localizamos os traços marcados e marcantes nas narrativas advindas da
tradição e da memória da comunidade em que circulam.
Nesse ínterim, a impressionante diversidade temática e tipológica das narrativas tem
somado a pesquisa e o interesse acadêmico nesta área ainda em expansão. Para tanto, alguns
temas merecem destaque: narrativas de enterro, bestialidade, preconceito, drama familiar, mistério,
sobrenatural, seres da floresta (curupira, matinta perera), seres do rio (boto, cobra grande).
Dentre os seguintes tipos: lendas, fábulas, conto, canção, piadas, ditos, parábolas. Este trabalho de
classificação narrativa potencializa os estudos em função de produção de um texto sobre memória,
tema ou tradição amazônicas, viabilizando o acesso a este material tão rico e diverso, de forma
organizada e sistemática.
Jakobson(1977) afirmava que, como a língua, a obra popular, sob certos aspectos, tem
uma existência independente, em potencial. Mas, ao mesmo tempo, destacava que há impulsos
determinados, pela circunstância, que animam os intérpretes das narrativas e acabam por promover
uma criação individualizada. Estas inovações individuais, segundo o estudioso, correspondem, de
qualquer maneira, também, a uma espécie de “requerimento” da coletividade. Enfim, o contador de
história, espécie de arauto da comunidade, no momento da performance, é, sobretudo, aquele que
representa a memória do grupo social.
O acervo IFNOPAP torna-se, portanto, um registro testemunhal da memória e das
tradições imanente ao colonizador que aqui chegou, somando ao elemento nativo de outrora,
com impressões que transitam em uma nova ordem a partir de um mundo de encantamento,
textualmente marcadas pelas formas cânones da gênese do discurso da narrativa oral – como, por
exemplo: “era uma vez...” até expressões coloquiais de reafirmação da veracidade autoral de quem
narra, como: “Isso eu vi...”, “É verdade porque aconteceu comigo!”, “Isso acontece mesmo”. É
o modo de nossos contadores manterem vivos sua voz e sua cultura no imaginário descendente,
não somente pela ato em si de narrar, mas também pela estratégias retóricas, aliada aos símbolos,
alegorias, ritos, mitos e lendas acaba por conduzir o pesquisador deste espetacular corpus a tradução
e cingimento do homem em sua totalidade.
Referências
CASCUDO, L. C. Literatura oral no Brasil. 3ª. ed. São Paulo: EDUSP, 1984.
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
______. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1989
PROENÇA, D. F. Estilos de época na literatura. 9ª. ed. São Paulo: Ática, 1989.
RONCARI, L. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. 2.ed.São Paulo:
EdUSP, 2002.
SCOHLES, R.; KELLOGG, R. A natureza da narrativa. Rio de Janeiro: MCGrallHill, 1977.
SIMÕES, M. S.; GOLDER, C. (org). Belém Conta… Belém: UFPA, 1999.
SIMÕES, M. S. (org). Memória e Comunidade – entre o rio e a floresta. Belém: UFPA, 2000.
SIMÕES, M. S. (org). Revisitando o Marajó: um arquipélago sob a ótica da ciência, educação, cultura e
biodiversidade. Belem: EDUFPA, 2006.
TOMACHEVSKI, B. A vida dos procedimentos da trama. In: ______ et al. Teoria da Literatura,
formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973.
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AS PRÁTICAS VOLTADAS PARA A MOTIVAÇÃO E
AUTONOMIA DOS APRENDENTES NA LEITURA
E ESCRITA EM LÍNGUA MATERNA
Nelma do Socorro Santana QUEIROZ1
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Este trabalho é o resultado de uma intervenção didática desenvolvida com alunos da quinta série
de uma escola da rede estadual de ensino do Pará. O procedimento foi realizado paralelamente aos estudos
sobre autonomia e motivação como disciplina do Mestrado em Lingüística da Universidade Federal do Pará. A
realização da intervenção didática teve como impulso a problemática de leitura e escrita dos alunos da referida
série e a dificuldade de trabalho dos professores com esses alunos que se encontravam em idade avançada para
a série que cursavam e não apresentavam interesse e motivação para os estudos, o que afetava o trabalho dos
professores e desencadeava no baixo rendimento da aprendizagem desses alunos.
PALAVRAS-CHAVE: motivação; autonomia; sequência didática; leitura; escrita.
ABSTRACT: This work is the result of a didactic intervention developed with students of the fifth series of
a school of the state net of teaching of Pará. The procedure was accomplished parallel to the studies about
autonomy and motivation as discipline of the Master’s degree in Linguistics of the Federal University of Pará.
The accomplishment of the didactic intervention had as pulse the reading problem and the students’ of the
referred series writing and the difficulty of the teachers’ work with those students that were in age moved
forward for the series that traveled and they didn’t present interest and motivation for the studies, what affected
the teachers’ work and it unchained in the low revenue of those students’ learning.
KEY WORDS: motivation; autonomy; didactic sequence, reading, writing.
Mestranda em Lingüística, com graduação em Licenciatura Plena em Letras (Habilitação em Língua Portuguesa) na
Universidade Federal do Pará e em Formação de Professores, na Universidade do Estado do Pará.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Primeiras palavra
Na certeza de que o desenvolvimento da competência comunicativa tanto da linguagem oral
como da escrita passa por um processo de autonomização e motivação no seguimento do ensino/
aprendizagem, optou-se por desenvolver com esta turma a intervenção didática que será descrita nos
tópicos seguintes deste artigo. O procedimento didático com a referida série não teve como foco
apenas o despertar para a motivação dos estudos em si, mais que isso, procurou-se delimitar a atenção
para a competência escrita e a oralidade, isso porque os alunos demonstravam pouca habilidade em
relação à língua escrita, o que comprova a dificuldade dos demais professores em trabalhar com a
turma em qualquer disciplina.
Sendo assim, é relevante mostrar em primeiro lugar uma visão ampliada sobre alguns
aspectos que envolvem a produção e aquisição da escrita em ambientes escolarizados, para posterior
apresentação da sequência didática e seus devidos resultados.
2. A leitura e escrita em ambientes escolarizados: algumas considerações
As pesquisas referentes à leitura e produção escrita nas escolas apontam para uma relevante
mudança de concepção dos termos e posturas em ambientes escolares. Isto não significa dizer que
já nos encontramos no patamar desejado para tal habilidade, visto que o processo é lento, depara-se
com barreiras de diversas ordens, mas já apresenta resultados tímidos, entretanto satisfatórios.
Em se tratando de leitura e escrita nas escolas, Silva (1998) argumenta sobre tal como um
objeto de conquista ao relatar a dificuldade do trabalho dos profissionais da educação no seu ambiente
de trabalho – a escola. Tudo isso pela falta de investimento em educação e pelos percalços do dia-adia que dificultam as condições de trabalho e de ensino/aprendizagem. Para o autor:
(...) a inserção dos educandos no mundo da escrita não é uma questão de dom ou sacrifício, pois depende
de trabalho, de instrumental de trabalho (livros) e de situações significativas de ensino-aprendizagem na
esfera da escola. (Silva,1998: 20)
O autor reage contra o metodologismo e o dogmatismo vigentes nas escolas por parte dos
professores que esterilizam a consciência dos educandos por meio de métodos ultrapassados que em
nada acrescentam na preparação para a vida social dos educandos pela insignificância dos métodos
pedagógicos adotados. Para agir contra essa postura, Silva (1998) afirma que:
Podemos ter em mente uma formulação clara e precisa a respeito do leitor que educamos, de por que o
estamos educando (...). Na ausência de experiências inovadoras, nascidas da comunhão dos professores no
horizonte de busca de uma nova sociedade, a revolução qualitativa da educação brasileira – colocando-se aí
o ensino da leitura e da escrita – não passará de uma veleidade ou ilusão. (Silva, 2008:24)
Nasce de tal concepção a necessidade de um ensino/aprendizagem de leitura e escrita como
um processo que possibilita a participação crítica do homem em sociedade. Dito de outra forma, a
apropriação de leitura e escrita não pode estar desvinculada da conscientização de indivíduos ativos
na sociedade. Para tal finalidade, na contramão das dificuldades supracitadas, Silva (1998:25) afirma
que “temos de buscar ou construir técnicas de ensino a partir daquilo que existe em nossa frente, isto
é, da realidade concreta das escolas e das necessidades dos educandos”.
3. A importância da motivação e autonomia no ensino/aprendizagem da leitura e escrita
em língua materna
3.1. Motivação
O avanço nos estudos motivacionais no contexto de ensino/aprendizagem tem contribuído
bastante para o desenvolvimento de teorias e estudos voltados para o contexto favorecedor da
aprendizagem. Entre os pesquisadores que mais contribuíram para tal estudo, levando à mudança de
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
paradigmas, estão Dornyei, Gardner, Julkunen, entre outros. Segundo Ribeiro (2006), as pesquisas
voltadas para a situação de aprendizagem e para os fatores motivacionais que variam de acordo com
o evento de aprendizagem, pouco foram desenvolvidas recentemente. Entretanto, estes autores
vêm defendendo as situações de aprendizagem como interferentes no ensino/aprendizagem, o que
possibilitou o desenvolvimento de algumas teorias neste sentido, como é o caso da relação entre os
fatores motivacionais internos (“trait”) e fatores motivacionais externos ou situacionais (“state”)
apresentados por Tremblay, Goldberg e Gardner (1995) apud Ribeiro (2006).
Os fatores internos envolvem disposições estáveis e duradouras, ou seja, orientações motivacionais mais
gerais, e diversas atitudes tais como, atitudes em relação à aprendizagem de línguas em geral, interesse por
línguas estrangeiras, atitudes em relação à comunidade lingüística alvo, além de ansiedade e persistência
nos estudos, e os fatores externos ou situacionais se referem a respostas ou condições transitórias e
temporárias, ou seja, à condição motivacional em um determinado momento. (Ribeiro, 2006:33)
Nesta teoria os autores explanam com bastante propriedade como as atitudes dos sujeitos
perante a aprendizagem influenciam positiva ou negativamente a aquisição do conhecimento dos
alunos, de acordo com os fatores supracitados. Para Ribeiro (2006:33) “a interação entre esses dois
fatores vai resultar na disposição do aluno para se dedicar aos recursos pessoais, tais como tempo e
energia empregados nas tarefas de aprendizagem da língua”.
Considerando os estudos de Ribeiro (2006), afirma-se que as pesquisas voltadas para a
motivação direcionadas por Gardner (2001) apontam para três aspectos da motivação do aluno: o
esforço, o desejo e as atitudes em relação à aprendizagem. Estes estudos unidos aos que investigam
sobre a motivação interna e a motivação externa/situacional deram passagem para uma ampla
discussão sobre a temática o que acarretou, e ainda acarreta, pesquisas direcionadas aos componentes
motivacionais.
3.2. Autonomia
A dedicação de pesquisadores voltados para os estudos sobre a autonomia no ambiente
escolarizado tem logrado bastante êxito para as em educação. Entre os autores mais referenciados
nesta área está Phil Benson que concebe a autonomia como “(...) uma capacidade multidimensional
que assumirá formas diferentes para indivíduos diferentes, e até mesmo para o mesmo indivíduo em
épocas diferentes”1 (2001:47).
Outra definição relevante para o termo é a exposta por Dam (2000) quando afirma que
autonomia é:
O desejo e a capacidade do aprendiz de controlar ou supervisionar seu próprio aprendizado. (...) alguém se
qualifica como aprendiz autônomo quando escolhe independentemente objetivos e propósitos e estabelece
metas; escolhe materiais, métodos e tarefas, exercita a escolha e a finalidade ao organizar e desempenhar as
tarefas escolhidas; e escolhe os critérios para a avaliação.2
Para Magno e Silva (2007) autonomia consiste em:
Um processo e, portanto, o termo “autonomização” revela-se mais apropriado. Esse processo pode ser
implementado gradativamente, com ou sem a ajuda de outrem (professor, colegas, parentes etc.) e pode
levar a um saber de crescimento exponencial. Esse processo pressupõe fases, nem sempre nitidamente
separadas, de conscientização, mudança de atitudes e transferência de responsabilidades.
Por meio dessas acepções há de se recorrer às considerações sobre o papel do professor como
mediador do processo de autonomização dos alunos, em que as mudanças de atitudes e as responsabilidades
no processo de aprendizagem dos alunos são influenciadas pala postura do professor.
Texto original: “... a multidimensional capacity that will take different forms for different individuals, and even for the
same individual in different contexts or at different times”.
2
Texto original: “The learner’s willingness capacity to control or oversee her own learning. (...) that someone qualifies
as an autonomous learner when he independently chooses aims and purposes and sets goals; choice and purpose in
organizing and carrying out the chosen tasks, and chooses criteria for evaluation.
1
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
4. Os sujeitos: agentes no desenvolvimento da motivação e autonomia
“O desenvolvimento da autonomia dos aprendentes
depende do desenvolvimento da consciência
do professor de seu papel no processo.”
Leni Dam
A considerar que todo e qualquer processo de ensino/aprendizagem tem como foco o aluno
e, por conseguinte, toda a prática do professor de línguas tem por finalidade o desenvolvimento das
suas habilidades e competências comunicativas, argumenta-se em favor de um elemento motivacional
que o favoreça. Sendo assim, opta-se por voltar o olhar, neste trabalho, para o papel do professor
enquanto agente estimulador da autonomização do aluno.
Baseada nos fundamentos epistemológicos de Leni Dam, Phil Benson, Paiva e outros, a
resposta para a questão supracitada suscita um olhar para o estudo da autonomia docente, que se
apresenta como o elemento de fundamental relevância no processo de motivação. Tal posicionamento
é inspirado ainda nos pressupostos de David Little (2003), o qual argumenta em favor da importância
do papel do professor no processo de autonomização do aprendente.
Em se tratando de motivação, é relevante destacar que esta “é o esforço que a pessoa emprega
na aprendizagem, seja por conta de um desejo ou da satisfação que o indivíduo sente em realizar
tal tarefa” (Gardner, 1998 apud Ribeiro, 2006). Ribeiro (2006) afirma ainda que os componentes
motivacionais situacionais fundamentados no ambiente social é a principal ênfase dos estudos atuais
de Gardner. Dessa maneira, considera-se o papel do professor em sala de aula como um desses
componentes responsáveis pela motivação do aluno. Sobre isto, a autora afirma:
“A partir dessas discussões, deu-se início a uma abordagem na pesquisa em motivação centrada nos fatores
situacionais (‘situated approach’) ou aspectos mais dinâmicos e próximos do aluno, tais como o professor
e a sala de aula” (Ribeiro, 2006:30)
Dessa maneira, a Ribeiro reafirma o caráter decisivo do professor na motivação do aluno
quando apresenta “os componentes relativos ao professor (personalidade, estilo e prática pedagógica)”
(2006:31) como um dos três tipos de componentes relacionados ao contexto de aprendizagem
relevante para a motivação do aluno.
Em outras palavras, a atuação do professor em sala de aula é crucial para a motivação
do aluno, tanto positiva quanto negativamente. Isto porque, ao se deparar com uma experiência
frustrante no ambiente de ensino/aprendizagem, o aluno poderá ser afetado de maneira a bloquear
sua motivação interna, ou mesmo desestimular sua autonomização.
Esse fato vem retomar o posicionamento sobre a responsabilidade dos docentes em sala de
aula em relação à motivação dos aprendentes. Algo que não se deve considerar como foco exclusivo,
mas que pelos estudos de autores renomados e experiências do contexto escolar, vem nos apontar
como um dos principais elementos no processo motivacional dos alunos.
5. Aplicação da seqüência didática em torno da habilidade de leitura e escrita: um relato da
experiência
Para melhor visualização desses aspectos no ambiente escolar, optou-se por apresentar um
relato de experiência voltado para tais concepções teóricas. Após uma seqüência de situações que
desencadearam no péssimo rendimento da turma 503 da escola “Otávio Meira”, Benevidaes/PA, em
suas avaliações, decidiu-se, em comum acordo entre a professora de português e os alunos, modificar
a metodologia com a qual estavam trabalhando a disciplina. Por meio de uma nova metodologia
baseada nos estudos da motivação e da autonomia, se planejou e se desenvolveu todo o procedimento.
Os alunos tiveram participação autônoma e fundamental na escolha dos passos da seqüência didática
em sala de aula, o que pôde refletir em novas posturas no processo de ensino/aprendizagem.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Acreditando que o ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa tem por objetivo maior o
desenvolvimento da competência comunicativa do aprendente, seja na língua oral e/ou escrita, isso
se faz com a valorização das produções dos alunos em sala de aula e com a socialização dos frutos
dessa aprendizagem, o que possibilita a aquisição da autonomia deles enquanto estudantes de língua
e o despertar para a produção textual escrita e para o hábito de leitura.
Fundamentados nos estudos de Schneuwly e Dolz (2004), a intervenção didática apresentada
a seguir, a qual foi desenvolvida com a turma em questão, tem um caráter modular de aplicação em
torno do gênero poema, cabendo a cada módulo os objetivos específicos que foram criados no
decorrer da aplicação mediante as necessidades identificadas no desenvolvimento dos trabalhos dos
alunos. Sobre isso, os autores assim se expressam:
A modularidade é um princípio geral no uso das seqüências didáticas. O procedimento deseja por em relevo
os processo de observação e de descoberta. Ele distancia-se de uma abordagem “naturalista”, segundo a
qual é suficiente “fazer” para provocar a emergência de uma nova capacidade. O procedimento evita uma
abordagem “impressionista” de visitação. Ao contrário, se este se inscreve numa perspectiva construtivista,
interacionista e social que supõe a realização de atividades intencionais, estruturadas e intensivas que
devem adaptar-se às necessidades particulares dos diferentes grupos de aprendizes. (Schneuwly & Dolz,
2004:110)
A intervenção didática contou com uma sequência de atividades em torno do gênero poema e
se compôs em alguns módulos, a seguir: escolha do gênero e temáticas (amizade e respeito), apresentação
do gênero, primeira produção, análise e reescrita da produção, estudo de conteúdos curriculares por
meio dos poemas produzidos, entre outros.
5.1. Escolha coletiva da temática e gênero a serem trabalhados
A primeira dimensão é a do projeto coletivo de produção de um gênero oral ou escrito, proposto
aos alunos de maneira bastante explícita para que eles compreendam o melhor possível a situação de
comunicação na qual devem agir; qual é, finalmente, o problema de comunicação que devem resolver,
produzindo um texto oral ou escrito.
(Schneuwly & Dolz, 2004:99)
Após a verificação do fracasso dos alunos em duas avaliações consecutivas, optou-se por
mudar a metodologia aplicada em sala de aula. Tal procedimento aconteceu da seguinte forma:
primeiramente, os alunos avaliaram a atuação dos envolvidos no processo (professora e alunos),
expuseram suas insatisfações, dificuldades e anseios conformes suas necessidades. Posteriormente,
sugeriram os procedimentos que melhor favoreciam sua aprendizagem.
Em decorrência do fracasso nas médias, os alunos sugeriram à professora que desenvolvessem
um trabalho paralelo que substituísse a média de participação na quermesse da escola, visto que
eles, por falta de motivação, não o fizeram, ficando assim sem a devida pontuação. Acreditando e
ajustando-se às sugestões de trabalho dos alunos, a professora decidiu desenvolver tal atividade que
fora escolhida por eles mediante as alternativas expostas por ela para melhor direcionamento da
seqüência. Para isso ela utilizou quatro perguntas básicas: Qual o gênero? Modalidade oral ou escrita? Qual
a temática a ser abordada? Que material concreto iremos produzir?
As decisões não foram tomadas aleatoriamente. Os alunos decidiram pela modalidade escrita
do gênero poema devido suas dificuldades em escrever, o que refletia no péssimo rendimento nas
demais disciplinas. As temáticas “amizade e respeito” surgiram das situações que levavam sempre a
professora a resgatar a reflexão sobre esses valores em sala de aula. E a idéia de elaboração de um
material concreto surgiu por parte da professora por acreditar que tal atividade deveria representar
algo significativo para os alunos, de forma que eles pudessem recordar e refletir nos anos seguintes
de estudo. Dessa maneira, optou-se pela elaboração de um livro com as composições dos poemas
escritos pela turma. E assim, deu-se procedimento à intervenção.
1071
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
5.2. Apresentação do gênero poema
Para esclarecer as representações dos alunos, podemos,
inicialmente, pedir-lhes que leiam ou escutem um exemplo do gênero visado.
(Schneuwly & Dolz, 2004:99)
Por meio da utilização do recurso didático retroprojetor, a professora apresentou para os
alunos o gênero poema, especificando suas características, como por exemplo, o paralelismo, as rimas,
estrofes e verso. Em seguida, os alunos rabiscaram os primeiros poemas.
Um dos poemas apresentado à turma foi o seguinte:
Me diz amizade
Amizade
Me diz como você é
Me diz como você age
Me diz como devo fazer para ser seu amigo
Amizade
Me diz como te encontrar
Me diz se já tenho
Me diz se já sou amigo
Amizade
Me diz quais os sentimentos que são encontrados
Me diz como esses são vivenciados
Me diz como eles são interpretados
Amizade
Me diz como devo fazer
Para que você me entenda
O que quero dizer
Giovana Pereira de Souza
5.3. Produção inicial
É assim que se definem o ponto preciso em que o professor pode intervir melhor
no caminho que o aluno tem ainda a percorrer: para nós, essa é a essência da avaliação formativa. Dessa
forma, a produção inicial pode “motivar” tanto a seqüência como o aluno.
(Schneuwly & Dolz, 2004:101)
Nesse momento, houve preocupação por parte da professora em deixar os alunos à vontade
para produzirem seus poemas, sem rigidez de forma, métrica e outros. A intenção nesse momento era
deixar a criatividade e o ímpeto emocional fluir nos alunos, motivados pelo processo que se iniciara
naquele momento.
As primeiras produções se apresentaram de forma tosca, ou seja, sem refinamento na
composição, o que não desmereceu o trabalho dos alunos, pois a professora, a todo o momento, tecia
elogios de forma que os alunos se entusiasmavam com aquilo que estava sendo produzido.
Para a melhor visualização da evolução das produções dos alunos, optou-se pela sequência
de produções de um grupo de alunos que ao longo desse trabalho serão apresentadas. Como exemplo
das primeiras produções, temos:
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Larissa
Rodrigo
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Cláudio
Nas produções iniciais, é nítida a despreocupação com a forma do gênero, o que se observa
na produção da aluna Larissa, bem como a dificuldade de escrita nos rabiscos do poema do Rodrigo.
Entretanto, alguns alunos apresentaram o mínimo de refinamento na estrutura do poema como é o
caso da produção do Cláudio.
5.4. Análise 1: confronto com poemas de autoria dos próprios alunos
A produção inicial tem um papel central como reguladora da seqüência didática,
tanto para os alunos quanto para o professor (...). Ao mesmo tempo, isso lhes permite descobrir
o que já sabem fazer e conscientizar-se dos problemas que eles mesmos, ou outros alunos, encontram.
(Schneuwly & Dolz, 2004:102)
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Após a primeira produção, a professora selecionou algumas estrofes de alunos que
apresentaram a maior desenvoltura, como forma de incentivar os colegas e fazê-los observar o que
estava sendo preciso melhorar em seus poemas em termos de rima, conteúdos e outros, o que os
levou à segunda produção:
Larissa
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Rodrigo
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Cláudio
Na segunda produção fica evidente a preocupação com o refinamento do texto, da estética
do poema e o avanço na escrita dos alunos pela ausência de “garranchos” em ambos os poemas. Algo
interessante, ainda na segunda produção, é a mudança considerável na escrita do poema da Larissa e
do Rodrigo, comparados às primeiras produções.
5.5. Análise 2: uso do dicionário
A releitura dos textos é feita, naturalmente, com o apoio de obras de referência, habitualmente
disponíveis na sala de aula: dicionários, quadros de conjugação, manuais de ortografia etc. Os alunos
deverão, portanto, estar familiarizado com a utilização desses diferentes meios.
(Schneuwly & Dolz, 2004:118)
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Embora a identificação de um progresso tímido nas produções dos alunos, observou-se que
eles continuavam apresentando dificuldades em termos de ortografia. Os alunos não sabiam escrever
palavras básicas do seu cotidiano. Foi então que a professora, após analisar cada produção, destacou
todos os desvios linguísticos e de vocabulário para que os alunos, em sala de aula e com o manuseio
do dicionário pudessem identificar essas palavras e as suas devidas escritas. A atividade foi feita em
duplas para que não houvesse tanta dificuldade em encontrar as palavras no dicionário. E assim os
alunos reescreveram seus poemas.
5.6. Análise 3: auxílio dos colegas
E revisão dos textos, do ponto de vista da ortografia, é um lugar ideal de colaboração (...).
Em classe, essa colaboração pode assumir diversas formas: troca de textos entre dois alunos,
cujas capacidades em ortografias são bastante próximas; colaboração entre um aluno
que tem facilidade e um que encontra mais problemas...
(Schneuwly & Dolz, 2004:119)
Após uma triagem das produções que já estavam em nível satisfatório, a professora propôs
que os alunos com maior desenvoltura na produção auxiliassem aqueles que ainda se encontravam
num estágio de maior dificuldade. Então, os alunos se dispuseram em duplas conforme a seleção
feita pela professora seguindo o critério de aluno com maior desempenho de escrita com aqueles
com menor desempenho. Nesse momento, foi ainda relembrado o procedimento de rima simples,
pois muitos alunos sentiram dificuldades em estabelecer as rimas em seus poemas. E conforme a
orientação da professora e o auxílio dos colegas, os alunos elaboraram a última versão dos seus
poemas, como se pode observar no exemplo a seguir:
Larissa
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Rodrigo
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Cláudio
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5.7. Estudo dos pronomes e verbos
“(...) o importante é que o aluno encontre, de maneira explícita,
os elementos trabalhados em sala de aula e
que devem servir como critério de avaliação”
(Schneuwly & Dolz, 2004:107)
Para cumprir o programa curricular em andamento, a professora trabalhou pronomes com os
alunos. O procedimento se deu da seguinte maneira: após a explicação do assunto por meio do livro
didático, cada aluno, de posse do seu poema, identificou os tipos de pronomes existentes nos seus
poemas e suas devidas utilizações em determinados ambientes desses poemas. Em seguida, os alunos
fizeram uma lista coletiva dos pronomes mais utilizados nos poemas da turma e a identificação dos
menos utilizados por eles.
6. Produção final: comparação das produções
No momento da produção final, o aluno pode pôr em prática
os conhecimentos adquiridos e, com o professor,
medir os progressos alcançados. A produção final serve,
também, para uma avaliação do tipo somativo,
que indicará sobre os aspectos trabalhados durante a seqüência.
(Schneuwly & Dolz, 2004: 98-99)
Após o procedimento de escrita e reescrita, entre outros, os alunos puderam elaborar a
versão final dos poemas. Muitos não o fizeram, visto que seus poemas já se encontravam em estado
satisfatório logo na terceira produção. Estes alunos estavam apenas encarregados de auxiliar os colegas
com maior dificuldade. Em sequência, a professora redistribuiu todas as produções dos alunos de
forma agrupada para que eles tivessem contato ao mesmo tempo com todas as suas produções e
pudessem identificar os seus avanços. Exemplos das produções finais são os seguintes:
Larissa
Amor de uma amizade
Amizade de um amigo
É o respeito na amizade
O amor de um abraço amigo
Sempre traz felicidade
É amigo quem respeita a amizade
E o respeito de amigo todo mundo quer
Mas a saudade de um abraço amigo
Quase ninguém quer
O amor de uma amizade
Todo mundo quer
Pois amigo do peito
No amor, no respeito e na amizade
Sempre traz felicidade.
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Rodrigo
A força da amizade
A amizade não se desfaz
Como um laço entrelaçado
Amizade só é feita
Com um pouco de amor e respeito
Quando alguém respeita o outro
Não é só um roubo de amor
É um roubo do coração do outro
Como um gesto de amor
A saudade de uma amizade
Não é conosco um pano desfiado
Nem como uma planta mal regada
Pois nunca acaba a sinceridade
Pois quando chega
O amor se espalha
E quando sai
A tristeza quase mata
Cláudio
Quero amizade
Quero teu rosto em minha mente
Teu abraço com respeito
Tua amizade com respeito e carinho
Sempre na minha frente
Ah! Como gostaria de encontrar você, amizade
Como no primeiro dia...
E estar junto de ti
E sentir o seu corpo fluir em minha companhia
Me diz amizade
Como os sentimentos são encontrados
E pode ser que tudo um dia acabe
E nos lembraremos pra sempre
Com felicidade
Pode ser que um dia se passe
E se encontramos de novo
Juntos vivemos um para o outro
Para sempre com respeito e amizade
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A versão final dos poemas foram recolhidas e enviadas para a produção de um livro de
poemas, resgatando um dos objetivos iniciais da sequência. Por sugestão da turma, o livro teve como
título “Os nossos poemas” e foi apresentado à escola com coquetel de lançamento e, posteriormente,
apresentado em outros eventos culturais do bairro.
Após a sequência de atividades em sala de aula, a professora reservou espaço para o relato
dos alunos sobre a análise comparativa das suas produções, em que eles puderam resgatar todo
o procedimento realizado com a turma. Para isso, a professora utilizou um questionário e obteve
respostas diferenciadas, como se observa a seguir:
Nesse momento é relevante darmos destaque para algumas considerações no que tange a
tabela apresentada.
Após três meses de intervenção didática diferenciada e fundamentada nos pressupostos da
motivação e autonomia, pudemos comprovar resultados satisfatórios em termos de aprendizagem,
visto que 96% dos alunos se sentiram mais motivados em desenvolver as atividades, 90% melhoraram
as suas médias depois da nova metodologia e 100% considerou positiva a produção do livro, tanto
para a motivação no estudo de língua materna, quanto para a motivação da leitura e escrita de textos,
entre outros.
Por outro lado, observou-se a efetiva mudança no processo de ensino/aprendizagem por
meio das declarações dos alunos, o que nos leva a confirmar em termos de motivação e autonomia,
o progresso deles enquanto alunos de português - língua materna. Tais declarações são expostas na
tabela a seguir:
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
5.8. Lançamento do livro: apresentação oral
“A inserção dos educados no mundo da escrita
não é uma questão de dom ou sacrifício, pois depende de trabalho,
e instrumental de trabalho (livros) e de situações
significativas de ensino/ aprendizagem na esfera da escola”.
(Silva, 2008)
A intervenção didática foi finalizada com o lançamento do livro no último dia de aula do
ano letivo, e contou com a organização completa dos alunos, onde foi apresentado o livro por meio
de recitações dos poemas pelos próprios e finalizado com um coquetel organizado pelos mesmos, em
um momento de bastante entusiasmo e satisfação pela conclusão do trabalho desenvolvido.
6. Em outras palavras
Em outras linguagens, o caráter modular da intervenção didática aqui exposta baseada nos estudos de
Schneuwly & Dolz (2004) assim se configuram:
Estrutura da sequencia didática aplicada à turma 503
da Escola Otávio Meira, em Benevides/PA
5. Palavras conclusivas
O trabalho aqui apresentado demonstrou a importância das concepções a cerca da motivação
e autonomia nas metodologias aplicadas em sala de aula. Nesse contexto, é importante destacar que
as concepções e relatos dos alunos em meio ao processo é algo de fundamental relevância, visto que
são esses relatos que a todo o momento direcionam o trabalho do professor como colaborador ou
facilitador da autonomia dos aprendentes mediante o processo de ensino/aprendizagem.
Entre os relatos, exposições e questionamentos dos alunos ao longo da intervenção didática,
houve uma que perdurou por muito tempo e demonstrou-se de significância fundamental, o que
resume todo o esforço da professora em promover a motivação neles e com a qual muitos desses
atores se alimentaram durante os momentos de dificuldades para a concretização desse trabalho:
“Professora, a senhora ainda acredita em mim?”.
A resposta positiva a essa pergunta, que sempre esteve presente nas aulas relatadas é o que
nos motiva a buscar sempre mais conhecimentos adequados e dedicação por intervenções didáticas
que favoreçam mudanças dos alunos em termos positivos, para que eles se tornem verdadeiros sujeitos
autônomos e motivados na busca pelo conhecimento.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
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MAGNO E SILVA, Walkyria A. G. P. The challenge of autonomization. In: I Congresso Internacional da
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sentido. Luiz Antônio Marcuschi, Antônio Carlos Xavier (org). 2ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
1085
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EDUCAÇÃO GLOBAL
ATRAVÉS DO ENSINO DE LÍNGUAS
Nilton HITOTUZI1
(Universidade Federal da Bahia)
RESUMO: Este trabalho visa apresentar o Modelo Dramático-Problematizador (MDP), um caminho
alternativo para uma educação pelas línguas em que o aprendente transcende o mero aprendizado lingüístico.
A composição do MDP se deu através de uma intervenção, nos moldes da Pesquisa-Ação, em uma escola da
zona rural do município de Tefé, estado do Amazonas. Os 16 alunos do sétimo ano do Ensino Fundamental
que participaram como co-pesquisadores durante o semestre escolar em que o MDP foi aplicado apresentaram
um elevado nível de proficiência na língua-alvo (inglês) em relação ao seu nível inicial. Também se mostraram
e relataram estar mais motivados a estudar inglês apesar de essa não ser a matéria preferida da maioria deles.
Outro fator positivo, verificado durante e ao final da intervenção, foi a capacidade de o MDP propiciar ampla
oportunidade para a reflexão sobre temas relacionados à realidade dos participantes.
PALAVRAS-CHAVE: Modelo Dramático-Problematizador; educação global; ensino de línguas.
ABSTRACT: This paper aims at presenting the Dramatic-Problematizer Model (DPM), an alternative way
towards an education through languages, in which the learner transcends the mere learning of linguistic items.
The DPM was developed by means of a piece of action research carried out in a rural school in the municipality
of Tefé, state of Amazonas. By the end of the experience, the 16 seven year students who took part in it
displayed a high level of proficiency in the target-language as compared with their initial level. Furthermore,
they also appeared and professed to be more motivated to studying English, despite the fact that it was not the
favourite school subject of most of them. Another positive factor, which was verified during and by the end
of the intervention, was the DPM instrumentality to provide plenty of opportunity for the learners to reflect
on themes related to their reality.
KEY WORDS: Dramatic-Problematizer Model; global education; language teaching.
Bolsista da FAPEAM – Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas e também vinculado à SEDUC-AM-Secretaria
de Educação do Estado do Amazonas.
1
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Nos rincões do Amazonas, embora o avanço tecnológico tenha contribuído para o
encurtamento das distâncias, ainda há muita dificuldade de acesso e escassez de material didático
para uma educação global do jovem rurícola. Essa percepção somada à própria experiência de quem
viveu e estudou na zona rural desse estado constituíram a “mola propulsora” da investigação por uma
abordagem de ensino ampla o suficiente para abrigar possibilidades intra- inter- e transdisciplinares,
objetivando uma educação abrangente, tendo como norte a reflexão sobre temas relacionados à
realidade do aprendente e o desenvolvimento de seu senso crítico.
Surgiu, então, o Modelo Dramático-Problematizador, resultante de uma experiência, pelo
método da Pesquisa-Ação, realizada na zona rural de Tefé, um município do Amazonas, distante
de Manaus, a capital do estado, há 516 km em linha reta e 633 km por via fluvial (IBGE, 2006).
Especificamente, a intervenção concretizou-se na Escola Indígena Santa Cruz, em uma turma
composta de 16 alunos do sétimo ano do ensino fundamental. Esses alunos, doravante chamados
co-pesquisadores, estão divididos em três etnias: Kokama, Kambeba e Tikuna. Mas, falam o português
como língua materna e poucos estudam a língua de seus ancestrais. Inglês foi a disciplina usada para
a aplicação do MDP. Salienta-se, entretanto, a possibilidade de aplicação desse modelo no ensino de
quaisquer disciplinas do currículo escolar.
Na seqüência deste trabalho, serão apresentados sucintamente os pilares teóricos do MDP, a
descrição do modelo, bem como alguns resultados parciais que lhe dão sustentação.
2. Os pilares teóricos do modelo dramático-problematizador
São três os pilares teóricos do Modelo Dramático-Problematizador: o Drama-Processo, a
Aprendizagem de Línguas através de Tarefas e a Pedagogia Crítica. O primeiro é fundamentalmente
uma estratégia de ensino que pode ser utilizada como ferramenta intra- inter- e transdisciplinar dentro
do ambiente escolar; isso, de certa forma, já era preconizado por Cecily O’Neill (O’NEILL, 1995;
2006), a professora de drama e autora que cunhou, na Inglaterra, o termo drama-processo (process drama).
Já o segundo tem como princípio fundante a idéia de que a pessoa aprende fazendo. O terceiro, enfim,
preconiza uma sala de aula em que as relações professor-aprendente e aprendente-aprendente sejam
horizontais, movidas pelo diálogo problematizador. Envolve também trabalho colaborativo em busca
de soluções para problemas propostos. A Pedagogia Crítica prioriza o desenvolvimento do senso
crítico do aprendente.
2.1. O Drama-Processo
Há algumas características deste primeiro pilar do MDP que o separam de outros gêneros
teatrais. Enquanto em outros gêneros é comum a teia de sentidos ser elaborada e comunicada
a uma platéia por um grupo abrangente de participantes (e.g. dramaturgo, diretor, figurinista,
atores e muitos outros), no Drama-Processo (DP) é o professor juntamente com seus alunos que
se investem desses papéis na produção e comunicação de sentidos para si mesmos. Com efeito,
em uma sessão de drama-processo existe uma sinergia resultante da participação do professor
e dos alunos, de forma improvisada, na realização das tarefas emergentes na construção do
sentido, de modo tal que, como argumentam Bowell e Heap (2001), a atitude prevalece sobre a
caracterização. Esse tipo de dramatização, normalmente não dramatizada, é inspirado no Drama
Vivencial de Dorothy Heathcote (BOLTON, 1999; JOHNSON; O’NEILL, 1991; HITOTUZI,
2007). A professora Heathcote prima pela autenticidade da ação dramática; em seu drama, os
participantes vivem a situação enquadrada. Creio que o melhor exemplo disso seja a brincadeira
de criança. Quem já brincou de casinha pode compreender esse fenômeno. Nessa brincadeira não
há roteiro pré-escrito (nem pós-escrito), os participantes não fingem ser um personagem (e.g. a
mãe, o pai), simplesmente o são.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Nesse sentido, o DP parece estar mais propício à aceitação por parte de alunos introvertidos,
pois, além de não precisar alterar seu tom de voz, usar uma fantasia e agir artificialmente, como é
comum em produções teatrais nas escolas, eles se concentram nas atitudes de seus personagens e
os vivenciam com a participação do professor, que passa a ser o professor-em-cena. Essa técnica expõe
o professor a compartilhar com seus alunos das incertezas típicas da produção de conhecimento
aqui-e-agora verificada em dramas-processos. Isso o compele ao diálogo e ao trabalho com e não para
o educando, o que pode fazer com este sinta-se mais à vontade para expressar seu pensamento e
liberar sua verve criativa. Subjacente ao professor-em-cena está um princípio freireano e também
jaspersiano, (para a devida creditação a Karl Jaspers, em quem Paulo Freire se inspira nesta questão
particular), que considero importante para uma educação libertária: o diálogo, a horizontalização
na relação educando-educador: A com B impelidos à ação interativa por uma matriz de “Amor,
humildade, esperança, fé, confiança [e] criticidade” (FREIRE, 2007a, p. 115).
É vestindo o manto do perito, outra técnica do repertório da professora Heathcote (BOLTON,
1999), que alunos, extrovertidos ou não, encontram o ponto de concentração1 no drama-processo.
Destarte, na pele do arquiteto que agora produz a planta de uma escola para concorrer a uma licitação
que poderá lhe projetar na vida profissional, não sobra nem tempo nem espaço para dramatizar, senão
para viver o momento. Outra característica fundamental do DP é a oportunidade franqueada aos
participantes para o desenvolvimento da solidariedade, da reflexão, do senso crítico, de habilidades
para solucionar problemas, tomar decisões, enfim, de valores e habilidades que, em última análise,
podem prepará-los para as situações do macro universo da vida, reconstruídas nos dramas-processos
vivenciados no micro universo da sala de aula.
2.2. A Aprendizagem de Línguas através de Tarefas
O segundo pilar, Aprendizagem de Línguas através de Tarefas (ALT), é, na realidade, um
modo particular de se aplicar a Abordagem Comunicativa. A ALT surgiu no cenário do ensino de
línguas na década de 1980 através de investigações no campo da Aquisição de Segundas Línguas
(DUFF 1986; DOUGHTY; PICA, 1986), sendo difundida amplamente a partir do Projeto de Ensino
Comunicacional (Communicational Teaching Project) executado por Prabhu (1987) em Bangalore, nesse
mesmo período (WILLIS, 2004; VAN DEN BRANDEN, 2006). A ALT se fundamenta essencialmente
no princípio: aprender fazendo; na sala de aula em que a abordagem é aplicada há uma tentativa de se usar
a língua-alvo como é normalmente usada fora do ambiente escolar. Desse modo, o sentido prevalece
sobre a forma. Entretanto, a estrutura de ALT proposta por Jane Willis em seu livro A Framework for
Task-based Learning (WILLIS, 1996a) parece estabelecer um equilíbrio entre forma e sentido. A autora
argumenta que essa estrutura satisfaz quatro condições básicas para a aprendizagem de uma língua
estrangeira: (1) a exposição à língua-alvo, (2) seu uso de forma significativa, (3) a motivação para
estudá-la e (4) a análise de sua forma (WILLIS, 1996b). Willis circunscreve a aprendizagem de línguas
através de tarefas em uma estrutura triádica, como se pode observar na figura abaixo (Figura 1).
Figura 1. Estrutura da Aprendizagem através de Tarefas, adaptada de Willis (1996a, p. 38).
A técnica de se buscar um ponto de concentração é repetidamente defendida por Spolin (2000) como
importância para manter os alunos-atores concentrados no jogo dramático.
1
sendo de suma
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A pré-tarefa é a parte preparatória para a execução da tarefa, onde o professor dá explicações
sobre o caráter da tarefa e a forma de relato.
É nesse espaço em que Willis (1996a, b) trabalha a primeira das quatro condições básicas
à aprendizagem de línguas apresentadas anteriormente. Na concepção dessa autora, é fundamental
que o aluno seja exposto a uma rica variedade do que ela chama real language, ou seja, textos orais ou
escritos que não tenham sido editados ou produzidos com a finalidade de enfocar pontos gramaticais
específicos, por exemplo. Desse modo, um texto extraído de uma revista ou jornal, um fragmento
de noticiários de televisão ou rádio, a própria fala do professor em sala de aula, tudo isso pode se
constituir língua real.
Pelos processos envolvidos na segunda parte de sua estrutura, o ciclo da tarefa, Willis (1996a,
b) abre espaço para o estudante de línguas experimentar e testar hipóteses, de trabalhar a língua de
forma contextualizada, em várias situações, enfim, fazer uso da língua-alvo de modo significativo – a
segunda condição básica para a aprendizagem de línguas. Essa etapa também propicia, segundo a
autora, a terceira condição básica, isto é, a motivação para “processar” o insumo de forma significativa,
bem como “para usar a língua para falar e escrever”2 (WILLIS, 1996b, p. 60). Para a autora, é o objetivo
da tarefa que mais estimula a motivação. O desafio de obter resultados através da participação em
jogos e tarefas de solução de problemas, por exemplo, já é em si um fator motivador. Outro fator
apresentado pela autora consiste na possibilidade de comparação entre o resultado da tarefa proposta
aos alunos e aquele de tarefa semelhante apresentada a eles através de gravações (WILLIS, 1996b).
Sem deixar de oportunizar mais exposição e uso da língua-alvo ao aluno, o foco na forma,
a terceira parte da tríade de Willis, constitui o espaço para a satisfação da quarta condição básica
para a aprendizagem de línguas em sala de aula. Willis (1996b) tem consciência de que, no processo
de aprendizagem de uma segunda língua, o aprendiz carece de momentos para a reflexão sobre a
forma da língua, tanto para evitar o fenômeno da fossilização3 como para sistematizar e ampliar sua
interlíngua4. Já na fase anterior, especificamente no espaço dedicado à preparação para os relatos,
os alunos começam a dar ênfase à forma, naturalmente levados pela iminência da presença de
espectadores as suas publicações.
Uma observação mais detalhada da estrutura proposta por Willis parece indicar que essa última
parte, o foco na forma, constitui o componente-chave do equilíbrio entre forma e uso. É importante
pontuar, no entanto, que a concepção de aprendizagem de línguas do professor é crucial para o
estabelecimento desse equilíbrio. Aparentemente, o professor que possui uma perspectiva heurísticodialógica5 do processo de ensino-aprendizagem de línguas se adapta mais confortavelmente a essa
estrutura e suas demandas de aplicação de atividades nocionais no seu estágio final. Isto é, atividades
que levam o aluno a perceber os fatos da língua, comumente conhecidas como consciousness-raising activities
(RUTHERFORD, 1987; WIDDOWSON, 1990; WILLIS, 1990; NUNAN, 1991; WILLIS, D.; WILLIS,
J. 1996). Ademais, esse perfil heurístico-dialógico do professor pode levá-lo a utilizar atividades de
base lexical (WILLIS, 1990; LEWIS, 1993, 1997, 2000) para chamar a atenção do aluno para o aspecto
formal da língua dentro da última parte da tríade proposta por Willis (1996a). De qualquer modo,
independentemente da abordagem a que se recorra como meio de evitar a polarização radical entre
forma e uso na sala de aula de línguas, a estrutura de aprendizagem através de tarefas desenvolvida por
essa autora pode ser um importante ferramental à disposição do professor que acredita na existência das
“[...] to process [...] to use the language, to speak and write.”
A fossilização é caracterizada pela aprendizagem “defeituosa” de uma segunda língua. O fenômeno se verifica em certos
traços, aparentes na fala do aprendiz, que se diferenciam da fala da comunidade lingüística da língua-alvo. A fossilização é
estabelecida quando não há mais avanço no aperfeiçoamento da fala do aprendiz com relação à irregularidade lingüística
verificada em sua interlíngua (SELINKER, 1972).
4
De modo sucinto, a interlíngua constitui toda a competência lingüística do aprendiz em relação à língua-alvo,
compreendendo, portanto, todo o repertório da segunda língua que o aprendiz consegue utilizar, seja em nível produtivo
ou receptivo. Esse conceito remonta ao texto Interlanguage, de Larry Selinker (SELINKER, 1972).
5
O termo está sendo usado para expressar o estilo de aprendizagem pela reflexão e descoberta colaborativa por meio da
comunicação horizontal do professor com seus alunos e destes entre si.
2
3
1090
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
condições-chaves de aprendizagem aqui mencionadas e que almeje algum tipo de mudança no paradigma
tradicional de ensino de línguas. Mesmo assim, é possível que apesar do respaldo de resultados de pesquisas
com base em tarefas (CATHCART, 1986; MCCREARY, 1986 apud CHAUDRON, 1988; LONG, 1989,
1990; KANAGY; FALODUN, 1993; FOSTER; SKEHAN, 1996, 1999; SKEHAN; FOSTER, 1997,
1999; MEHNERT 1998; ORTEGA 1999; BYGATE, 1996, 1999, 2001; LYNCH; MCLEAN, 2001;
LOCHANA; DEB, 2006; ROCHA, 2005; GUTIÉRREZ, 2005), a adoção da Aprendizagem de Línguas
através de Tarefas em certos contextos escolares pode ainda ser um grande desafio.
2.3. A Pedagogia Crítica
Por fim, a Pedagogia Crítica. Este terceiro pilar é fundamental para uma educação global do
aprendente de línguas. É também pela via de uma pedagogia crítica que o professor pode encorajar e
ajudar o aprendente a exercitar e desenvolver o senso crítico, sem o qual próprio professor está fadado
ao descaso. Destarte, em um determinado contexto escolar, o primeiro passo para uma pedagogia
crítica só será dado quando o próprio professor decidir aprender a pensar criticamente; essa decisão
está normalmente associada ao compromisso.
O compromisso com o aprendente e com a educação de modo geral é a mola propulsora
que moverá o professor a se habilitar a dar o primeiro passo em direção a uma pedagogia crítica.
Ontologicamente, entretanto, os seres humanos são comprometidos: alguns são comprometidos com
a humanização, outros, com a desumanização. Essa é a visão de Freire (2006a). É possível, entretanto,
que ainda haja um terceiro grupo: os humanistas paradoxais. Aqueles que, circunstancialmente, ora
demonstram um compromisso radical com o homem de carne e osso, ora revelam-se inimigos desse
mesmo homem. Não estaria essa oscilação encravada na própria natureza humana? Não é utópica
a linearidade presumida na argumentação de Freire (2006a) - ser ou não ser comprometido com a
humanização? Há de se argumentar que, mesmo não podendo manter-se sempre comprometidos com
a humanização, dada a falibilidade do homem, os pró-humanização devem almejar essa linearidade. A
utopia parece encaminhar as pessoas à perfeição, mesmo que esta jamais seja atingida. No processo,
elas terminam fazendo, ou dando, o melhor de si, mesmo que o feito, ou o dado, esteja longe da
configuração ideal.
Com efeito, se potencialmente o professor está comprometido com o aprendente e a
educação como um todo, esse primeiro passo em direção a uma pedagogia crítica se concretizará,
então, quando ele próprio estiver exercitando e desenvolvendo o seu senso crítico. Um trabalho,
portanto, interior, de auto-análise. Nesse início de jornada de autoconhecimento, pelo menos três
perguntas podem ser trazidas à baila sem perder de vista a complexidade das mesmas: (1) “O que é
senso crítico?”; (2) “Tenho senso crítico?”; e (3) “Como adquirir senso crítico?”
A resposta à primeira pergunta já está envolta pela falta de consenso da parte de eminentes
teóricos do pensamento crítico. Segundo Tenreiro-Vieira e Vieira (2000), tal divergência decorre da
heterogeneidade de princípios investigativos por eles adotados. A autora admite, todavia, a existência
de duas características fundamentais do senso crítico, filigranadas nas perspectivas dos especialistas
consultados: a reflexão e a avaliação (ENNIS, 1985; PRESSEISEN, 1987; BEYER, 1988; NORRIS
e ENNIS, 1989; SWARTZ e PERKINS, 1990; PAUL, 1993; HALPERN, 1996; PIETTE, 1996). A
idéia de que o pensamento crítico envolve processos reflexivos e avaliativos é também verificada na
caracterização freireana da consciência crítica: “1. Anseio de profundidade na análise de problemas. Não
se satisfaz com as aparências. Pode-se reconhecer desprovida de meios para a análise do problema.
[...] 4. Procura verificar ou testar as descobertas. Está sempre disposta às revisões.” (FREIRE, 2006a,
p. 40-41). Essa filigrana também é encontrada em Carraher (1983), para quem o senso crítico é a
capacidade de analisar e discutir problemas de forma inteligente e racional, associada à recusa de
aceitação automática de opiniões próprias ou de outrem.
Embora não pareça existir uma tipologia exata do perfil do pensador crítico (PIETTE, 1996),
Carraher (1983) apresenta um resumo de sete características gerais que podem servir de parâmetro de
verificação da presença ou ausência de senso crítico em uma determinada pessoa (Tabela 1).
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Tabela 1: Perfil do pensador crítico (adaptado de Carraher, 1983, p. xx).
A comparação das características do pensador crítico na Tabela 1 com as dez características
da consciência crítica elaboradas por Paulo Freire (Tabela 2) revela a univocidade da interpretação
desses dois autores com relação ao perfil de quem exercita o senso crítico:
Tabela 2: Características da consciência crítica.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Essas características apresentadas por Carraher (1983) e Freire (2006a) são categorias gerais.
Enquanto que outros autores propõem categorias mais específicas. Ennis (1987), por exemplo, biparte
as características do pensador crítico em habilidades e disposições e apresenta uma detalhada lista de itens
sob esses dois rótulos. Por um lado, para um estudo aprofundado, provavelmente em nível superior,
a proposta desse autor parece mais adequada. Por outro lado, as sete categorias gerais de Carraher
(1983) podem ser mais apropriadas para estudos envolvendo alunos do Ensino Fundamental, por
exemplo. Isso porque tais categorias gerais permitem ao pesquisador estabelecer subcategorias mais
flexíveis e adequadas à realidade do grupo envolvido.
Uma vez identificada a carência de senso crítico (se esse for o caso), resta a busca de uma
resposta à terceira pergunta – “Como adquirir senso crítico?”. Segundo Carraher (1983, p. xx), essa
não é uma habilidade inata, embora todos os seres humanos a tenham em potencial. Ele argumenta
que, mesmo entre crianças de ressaltada inteligência, não se verifica senso crítico, já que o mesmo é
dependente de “[...] amadurecimento intelectual e formalização do pensamento [...]”. Ao longo da
vida, portanto, possivelmente, pela reflexão, vivência diária e leitura, a pessoa pode adquirir, exercitar
e desenvolver seu senso crítico (CARRAHER, 1983).
Para Freire (2006a, p. 39), a consciência crítica só é adquirida através de “[...] um processo
educativo de conscientização”. Um processo educativo mútuo, em que se prima pelo diálogo, pelo
respeito mútuo; em que a perspectiva do educando seja valorizada; em que não haja a anulação
do outro pela imposição do ponto de vista do especialista. Uma educação, enfim, que não deposita
conhecimento acabado no educando como um correntista deposita dinheiro em sua conta bancária
(FREIRE, 2006a,b). Felizmente, essa pode ser uma analogia imprópria.
Observe-se que, neste caso, a conta não questiona seu titular a respeito da origem do dinheiro,
ou por que este valor e não outro, por exemplo; ela simplesmente aceita o depósito e, indiferente ao
que se passa ao seu redor, revela o seu saldo e aceita outras operações mediante simples comandos.
No caso do educando, os próprios “depósitos”, como argumenta FREIRE (2006b, p. 70), podem
fazê-lo enxergar o emaranhado de contradições em que se encontra.
Parece judicioso, pensar, como o educador Paulo Freire, que um processo educativo
centrado na reflexão, na avaliação e na autonomia do educando (FREIRE, 2007b) seja adequado para
o desenvolvimento e o exercício do senso crítico. O professor que almeja tornar sua práxis crítica
terá, então, de fazer uso de sua autonomia e capacidade reflexiva para buscar – como sugere Carraher
(1983) – na literatura, em outras fontes de informação, e na suas interações no e com o mundo a
habilidade de pensar e agir como um autêntico pensador crítico.
3. O modelo dramático-problematizador
Na intervenção feita na Escola Indígena Santa Cruz (EISC), adotou-se o procedimento
de realizar um drama-processo para cada ciclo de atividades. Cada ciclo dividiu-se em sete estágios,
conforme a Figura 2.
No ponto de partida, chamado diálogo inicial aconteciam as discussões preliminares em
torno de temas transversais (e.g. meio ambiente, saúde, questão agrária), e outras questões de caráter
sociopolítico e cultural, objetivando a ampliação da capacidade de reflexão e criticidade dos copesquisadores.
Esse também era o momento em que se estabeleciam as “regras do jogo”; eram esclarecidos
os objetivos e eram projetados os possíveis locais de chegada. Deixava-se claro, entretanto, que, em
um drama-processo, os resultados dependem do trabalho cooperativo construído em curso.
Isso parece ser um fator positivo da abordagem, pois, ao exigir sinergia para a conclusão das
tarefas, ela também exige compromisso.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Figura 2: A estrutura do Modelo Dramático-Problematizador.
O início dos dramas-processos era sempre marcado pela apresentação e discussão de um prétexto. O drama-processo intitulado “Como resolver o problema da falta de segurança dos motores
rabetas no porto da comunidade Nova Esperança?”, por exemplo, teve como pré-texto uma carta da
Secretaria Municipal de Finanças, propondo liberação de verba mediante a apresentação, da parte da
comunidade, de um plano simples e objetivo para a solução do problema. A partir desse pré-texto, já se
começou a instigar os co-pesquisadores à reflexão crítica e à ampliação de seus conhecimentos através
de questões, tais como: (a) Qual o real problema que estamos enfrentando no nosso porto? (b) Por que
seres humanos se apropriam indevidamente dos bens de outros seres humanos? (c) Onde está a raiz do
problema? (d) Existe tal “raiz”? (e) Um processo educativo de conscientização pode ajudar a amenizar o
problema? (f) De imediato o que poderá ser feito? Nesse drama-processo, os co-pesquisadores, no papel
de membros da comunidade, reunidos com o tuxaua (o professor-em-cena), foram unânimes em propor
a construção de uma garagem flutuante para a solução imediata do problema.
Orientados pelos planos dos episódios, em seguida, os co-pesquisadores realizaram alguns
quadros vivos (tableaux vivant), envolvendo o tema abordado, objetivando a obtenção de um nível de
distanciamento suficiente para que ocorresse o fenômeno da “ad-miração”, como sugere Freire (2006a,
p. 43-44), a fim de que a realidade analisada pudesse ser vista de dentro em uma profundidade que lhes
permitisse a compreensão de seu contexto total e de suas partes. Esse momento de contemplação,
que caracteriza o distanciamento dos participantes das cenas improvisadas para o exercício da reflexão
crítica, se repetia a cada novo episódio.
O segundo estágio, a tarefa dramática, constituía o espaço discursivo dedicado à realização dos
dramas-processos em português (L1). A qualquer momento, nessa tarefa, os participantes podiam sair
de cena para se engajar em atividade crítico-reflexiva sobre os temas que fossem surgindo durante o
processo de criação. Podia-se optar, ainda, por permitir que se completasse o drama para que, então,
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
se procedessem às discussões. Em um drama-processo sobre o tema da invasão de terras indígenas,
por exemplo, a todo instante os co-pesquisadores eram convidados a sair de cena para refletir sobre as
decisões tomadas em cena com relação a um grupo de invasores sem teto que se negava a sair de suas
terras. Tanto em cena quanto fora dela, as posições eram marcadamente antagônicas entre os grupos.
Enquanto uns, compadecidos com a miséria dos invasores, estavam dispostos a compartilhar parte de
suas terras com eles, outros demandavam a presença da força policial para retirá-los de lá, alegando
que essa exceção lhes poderia custa mais outros lotes de terra no futuro. Esses momentos de reflexão
estão reunidos na Figura 2 como o terceiro estágio do ciclo de atividades.
Depois de realizado o drama-processo e feitas as pausas reflexivas, adentrava-se o quarto
estágio. Isto é, o período dedicado à edição do insumo. Esse era um trabalho minucioso, pois o
pesquisador fazia primeiramente uma edição em português do drama-processo produzido em sala
de aula a partir das gravações em vídeo para, então, traduzir o texto editado para o inglês. Um dos
problemas enfrentados pelo pesquisador consistia na adequação da linguagem a fim de manter o
mesmo tom de informalidade que permeava o texto em português.
Gerado o insumo na língua-alvo, partia-se para o quinto estágio, a tarefa comunicativa. Nesse
estágio, se buscava capitalizar as técnicas de aprendizagem de línguas através de tarefas sugeridas
por autores como Willis (1996a,b), Ellis (2003), Nunan (2004), Willis D. e Willis J. (2007), além de
outros. Em seguida procedia-se a análise sistêmica6. É nesse estágio que se capitalizava a última parte
da estrutura proposta por Willis (1996a). Aqui ocorriam os trabalhos de maior controle da forma da
língua tanto em termos de pronúncia quanto da produção escrita.
O último estágio, avaliação e reforço, era sempre reservado para avaliar tudo o que havia sido
feito e replanejar o próximo ciclo de atividades. Além disso, era nesse interstício em que se aplicavam
as avaliações para verificação do desenvolvimento da competência comunicativa dos co-pesquisadores.
A esse conjunto de estágios que se repetia a cada ciclo de atividade se escolheu denominar Modelo
Dramático-Problematizador.
4. Resultados parciais da pesquisa com o MDP
Como etapa preliminar à intervenção na EISC, foi aplicado um pré-teste (Anexo I) a fim
de se ter uma idéia do nível inicial de proficiência dos co-pesquisadores. As notas foram atribuídas
usando-se uma escala de 0 a 10. A média do pré-teste (X = 2,3) confirmou a hipótese de que se estava
diante de um grupo com minúsculo conhecimento da língua-alvo.
Depois de dois meses de trabalho, os co-pesquisadores já davam sinal de desenvolvimento de
sua competência comunicativa na língua-alvo. Em uma tarefa que objetivava a exploração discursiva
do texto, por exemplo, eles foram solicitados a ler o texto base em silêncio e responder a três questões
de compreensão de leitura, uma das quais sem nenhuma pista de resposta (Tabela 3).
Tabela 3: Compreensão de leitura.
Conforme esclarecem os Parâmetros Curriculares Nacionais, “O conhecimento sistêmico envolve os vários níveis da
organização lingüística que as pessoas têm: os conhecimentos léxico-semânticos, morfológicos, sintáticos e fonéticofonológicos. Ele possibilita que as pessoas, ao produzirem enunciados, façam escolhas gramaticalmente adequadas ou que
compreendam enunciados apoiando-se no nível sistêmico da língua” (BRASIL, 1998, p. 29).
6
1095
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
As figuras 3, 4 e 5 demonstram que o percentual de acerto das questões de compreensão
de leitura, com a exceção de dois respondentes (R), foi de 100%. Quiçá, esse alto percentual seja
em decorrência de o texto estar vinculado à realidade dos co-pesquisadores e de ter sido produzido
por eles mesmos juntamente com o pesquisador. Isso dá suporte à idéia de que, a menos que seja
realizada uma atividade de pré-leitura adequada, não é desejável a exploração de textos distantes da
realidade do aluno em contextos de aprendizagem de leitura. Na realidade, à base dessa reflexão, está
o pensamento de Paulo Freire; esse educador considerava de suma importância a atrelagem da “letra”
ao mundo circundante do educando e vice-versa no processo de letramento: “a leitura do mundo
precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da
leitura daquele” (FREIRE, 2001, p. 11).
Figura 3: Percentual de acerto da primeira questão (Q1)
na tarefa de compreensão de leitura.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Figura 4: Percentual de acerto da segunda questão (Q2)
na tarefa de compreensão de leitura.
Figura 5: Percentual de acerto da terceira questão (Q3)
na tarefa de compreensão de leitura.
O trabalho de familiarização dos co-pesquisadores com os símbolos do Alfabeto Fonético
Internacional usados para representar graficamente os sons da língua inglesa também se revelou
benéfico a eles. Ao final da intervenção, os co-pesquisadores já conseguiam ler pequenos textos
auxiliados pelos símbolos fonéticos. Na realidade, a falta de energia elétrica e recursos tecnológicos
foram cruciais na decisão de introduzir tais símbolos como elemento ancilar na produção oral da
língua-alvo. O texto da Tabela 4 é parte de um roteiro de leitura feita pelos co-pesquisadores e
registrada em vídeo.
Tabela 4: Roteiro para leitura – apresentação pessoal.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
No que diz respeito à motivação dos co-pesquisadores para continuarem a estudar a línguaalvo, os resultados também parecem positivos. Enquanto que, inicialmente, mais da metade destes
diziam não gostar de estudar inglês (Figura 6), ao final da intervenção, eles foram unânimes em
afirmar o gosto pelo estudo da língua (Figura 7).
Figura 6: Enquete inicial sobre a qualificação do estudo de inglês.
Figura 7: Enquete final sobre a qualificação do estudo de inglês.
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5. Conclusão
A mudança de atitude dos co-pesquisadores com relação ao estudo da língua inglesa ao longo
da intervenção foi atribuída à dinamicidade das atividades do Modelo Dramático-Problematizador.
Não havia, com efeito, concentração apenas no fator lingüístico. As atividades ora requeriam produção
artística, ora cálculos matemáticos, ora discussões sobre problemas sociais, ora produção de textos
em língua portuguesa, enfim, eram exigidas dos co-pesquisadores ações conjuntas que extrapolavam
as raias do conceito tradicionalmente aceito de ensino de língua estrangeira. Entretanto, no tocante
ao conteúdo lingüístico, também houve avanço, conforme os resultados apontaram. Dessa forma,
acredita-se que, embora os resultados da aplicação do MDP na EISC ainda não sejam conclusivos, há
fortes indícios de que o modelo seja adequado para uma educação global em que se capitalize o ensino
de línguas, o envolvimento do aprendente em reflexões sobre questões relacionadas à sua realidade
e também a sua motivação para o estudo, principalmente, em áreas com pouco ou nenhum recurso
tecnológico.
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DIREITOS HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE
Paolo TARGIONI
(Instituto Cuiabá de Ensino e Cultura)
RESUMO: Um fluxo incessante de sensações percorre as veias dos habitantes da metrópole contemporânea;
sensações ligadas a mil estímulos que vão sendo percebidos ao longo do cotidiano na cidade. Mais do que
nunca, é presente uma sensação incontrolável de um sentimento irracional: o medo. As pessoas, apesar de
estarmos numa das sociedades mais seguras da história da humanidade, sentem um medo irracional nunca
experimentado antes. Temos níveis de segurança e de conforto que para nossos antepassados seriam um
sonho; porém, sentimos uma fortíssima necessidade de estarmos cercados de segurança. Para isso procuramos
lugares fechados, seguros, confortáveis, onde viver nossas vidas, fazer nossas compras, passar nossos dias
e nossas noites; experimentamos lazer e companhia em doses graduais que não sejam prejudiciais a nossa
tranquilidade.
PALAVRAS-CHAVE: medo; metrópole; Kafka; direitos humanos.
ABSTRACT: An unstopping flux of sensations goes trough the veins of the inhabitants of the contemporary
metropolis; sensations linked to thousands of stimulations which are felt during the day in the city. More than
ever, an incontrollable sensation of an irrational feeling is present: the fear. People, even living in one of the
surest society of human history, feel an irrational fear which was never felt before. We have sureness and
comfort levels which for our grandparents would be a dream; but we feel a strong necessity of being enclosed
of sureness. For this we look for closed places, sure, comfortable, where living our lives, doing our shopping,
spending our days and night; experimenting pleasure and friendship in little doses which don’t be bad for our
tranquility.
KEY WORDS: fear; metropolis; Kafka; human rights.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Em “Na colônia penal”, um conto escrito em 1914, o escritor boêmio Franz Kafka,
relata uma visita a uma colônia penal, em um indistinto país tropical, por parte de um “viajante”.
Esse viajante é convidado a assistir a execução de um condenado por meio de uma máquina
criada na própria colônia.
O conto começa com um oficial relatando minuciosamente as maravilhas técnicas da
máquina para o viajante, descrevendo-a como sua tecnologia nos mínimos detalhes, enfocando
o discurso sobre a perfeição dessa peça de alta engenharia. Trata-se de uma máquina de tortura
que irá infligir a morte a um soldado que se encontra acorrentado ao lado dos dois personagens
e que, com sua mudez e inação, consegue ser o protagonista principal deste conto.
A máquina irá torturar o soldado, culpado por não ter respeitado seu superior,
escrevendo por meio de uma agulha em seu corpo uma frase até ele morrer por sangramento.
Uma tortura incrível, por meio de uma máquina medieval que foi idealizada e construída por
um antigo comandante do presídio e que foi usada durante anos para infligir as piores torturas
aos condenados. Agora que o antigo comandante morreu e chegou à ilha um novo comandante
com visões mais modernas e liberais sobre as penas e as leis, a máquina está sendo, aos poucos,
abandonada. Só continua fiel a ela e à sua crueldade medieval o oficial, um dos três protagonistas
da obra. Ele mostra a um viajante incrédulo a maravilha da técnica e o horror da crueldade dessa
máquina a pedido do novo comandante. E o oficial, num momento de intimidade, pede-lhe para
interceder por ele junto ao comandante para que possa continuar a utilizar essa máquina, usando
o seu status de visitante, ou seja, alguém com uma visão do mundo mais aberta, para conseguir
não fazer aposentar, por meio das reformas da lei penal, ele e a horrível máquina que ainda dá
um sentido à sua vida.
Frente à firme recusa do viajante, ele percebe que o seu mundo acabou, não existe
mais. O mundo do antigo comandante, o mundo das torturas está sendo cancelado e ele não
tem mais lugar na nova ordem das coisas que está sendo construída. Por isso, decide suicidar-se
utilizando a própria máquina que daí para frente nunca mais será usada por ninguém, e o soldado
condenado, agora livre, é a pessoa que o coloca na máquina e quem a põe em função para realizar
a sentença.
Uma guerra inspirou Kafka a escrever este conto, a Primeira Guerra Mundial que acabava
de explodir. “Na colônia penal” relata a crueldade da tortura através de três vozes igualmente
presentes e igualmente carregadas de humanidade. Humanidade no sentido etimológico do termo:
o sentido mais humano, aquele humano que entra no eu, no bem e no mal em cada homem. E o
bem e o mal são intercambiáveis, por isso temos um diálogo entre um oficial e um viajante, mas
também a presença muda e quase idiota de um terceiro personagem, um soldado culpado de não
ter respeitado a um seu superior. E como já sabemos é este personagem no final que resolve o
impasse. O soldado, vítima ocasional da malvadez do homem, é, no começo, totalmente inerte
frente aos olhares do oficial e do viajante, que passou a controlar as condições da colônia penal,
poucos movimentos e nenhuma palavra até o momento final, o momento de reviravolta de cena.
Se no começo olhamos o prisioneiro quase como espectador involuntário da cena e do diálogo
entre o louco e o testemunho da sua loucura, a situação mudará totalmente no momento em que
o algoz verá seus ideais e a realidade em que acreditava serem fortemente derrotados para sempre.
A única razão de sua vida, uma realidade medieval, sendo superada enfim pela racionalidade e
pela justiça de um sistema melhor estabelecido pelo novo líder da colônia. Será então o soldado,
livre das correntes, a punir seu algoz da mesma punição que era destinada a ele, mas não o punir
por vingança, mas pelo desejo do oficial: morrer por meio da “sua” lei.
Como afirmamos anteriormente, Franz Kafka escreveu este conto num momento
terrível da história mundial. Acabava de explodir uma guerra que deixou em chamas o continente
europeu por vários anos e que teve repercussões, mais ou menos fortes, no mundo inteiro. É
interessante notar o uso que ele faz dos personagens neste conto: o oficial é representado como
um homem medieval, um homem que não pertence ao seu tempo e que usa métodos de justiça
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
um pouco fora dos parâmetros do outro protagonista, o viajante. “Mas então ele juntava em sua
pessoa todos os papéis? Era soldado, juiz, construtor, químico, desenhista?” (KAFKA, 1991, p.
113). Com essas palavras, o viajante direciona-se ao militar que estava contando sobre o antigo
comandante, o antigo rei medieval da colônia, estupefato que não existisse uma divisão dos
poderes ou uma divisão das tarefas em relação à justiça naquele lugar fora do mundo.
Mas a naturalidade com que o soldado defende a “sua” lei chega a parecer incrível no
momento em que o viajante pergunta como foi avaliada a defesa do condenado pelo tribunal, e
o militar candidamente responde: “não foi-lhe deixada nenhuma possibilidade de se defender”
(KAFKA, 1991, p. 114), sustentando a tese segundo a qual a culpa está sempre fora de dúvida. Um
tribunal individual, onde o algoz é também juiz, legislador e superior em grau aos condenados,
uma metáfora de uma sociedade bárbara, medieval, na qual está entrando um sopro de esperança
graças às novas idéias trazidas de fora pelo novo comandante. Novas idéias que Kafka espera
que cheguem também na Europa da Primeira Guerra Mundial, idéias que não chegarão tão cedo,
mas que a partir daqueles eventos terríveis de morte e destruição levarão os homens a começar
a pensar nas palavras direitos humanos.
A partir do século XX, o homem passa a ser uma preocupação do direito internacional
e não mais somente dos estados nacionais. Tiveram que passar pela história da humanidade duas
guerras mundiais para que o rígido conceito de soberania dos estados fosse derrubado, mas
em 1948 enfim a ONU aprovou a declaração universal dos direitos humanos, um documento
fundamental no caminho do homem rumo à convivência pacífica, sobre o qual comentaremos
mais profundamente no decorrer do texto.
Voltando ao conto precedentemente analisado, é pertinente destacar o papel extremamente
interessante desenvolvido pelo viajante: ele encontra-se por acaso passando na ilha e é convidado
pelo novo comandante a visionar uma execução programada para o mesmo dia. O que parece
incrível aos nossos olhos é que o soldado, o algoz em realidade, está feliz em poder demonstrar
o funcionamento da “sua” máquina para alguém tão importante como um estrangeiro. O outro,
o estrangeiro, aquele que não faz parte da comunidade, nesse conto é considerado uma pessoa
quase superior, uma visão do estrangeiro bem diferente daquela que estamos acostumados nos
dias de hoje. Retomaremos com certeza esse tema mais adiante. Este viajante, porém, neste
conto tem um papel importante também porque parece poder interceder com o comandante
a favor ou contra o uso da máquina de tortura. Parece quase que Kafka queria nos dizer, num
momento em que guerra e ódio estavam percorrendo a Europa inteira, que somente graças ao
encontro com os outros, as interações com os estrangeiros, aos relacionamentos entre povos e
comunidades, poderia surgir uma sociedade mais justa e apta para se viver.
Infelizmente os homens não perceberam a mensagem do escritor boêmio, precisaram
ainda muitos anos, mais guerras e mais mortos para poder chegar àquela Declaração Universal
dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral da ONU, em Paris, somente na data
de 10 de dezembro de 1948. Declaração esta que definiu como um “padrão comum de realização
para todos os povos e nações”, os direitos humanos e liberdades fundamentais, noções até então
difusas apenas, de maneira não-uniforme, em declarações e legislações nacionais.
Hoje, no começo do século XXI, costuma-se pensar e falar em direitos humanos
dividindo-os em três gerações. No específico, fala-se em direitos de 1ª geração, quando nos
referimos aos direitos relativos ao princípio da liberdade, os direitos civis e políticos; direitos de
2ª geração, aqueles inerentes ao princípio da igualdade, que são os direitos econômicos, sociais e
culturais; e, direitos de 3ª geração, vinculados ao princípio da solidariedade, que se expressa no
direito dos povos ao desenvolvimento com justiça social.
A Declaração Universal, porém, proporcionou a certeza, segurança e possibilidade dos
direitos humanos, mas não a sua eficácia, e, sobretudo não a sua aceitação completa por parte
de todos.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Temos, hoje em dia, uma grande parte da população mundial que ainda não sabe o que
são os direitos humanos, que vive escravizada, que vive fora do padrão de vida esperado pelos
constitucionalistas que pensaram e escreveram a declaração. Uma parte do mundo ainda vive em
condições, para outros, absurdas, porém, ao mesmo tempo temos uma novidade: uma parte da
população rica e bem sucedida, que goza de todos estes direitos e que, pelo que pode parecer
absurdo abdicou voluntariamente de alguns deles.
Quando Kafka escreveu seu conto a vida humana não tinha o valor que, aparentemente,
tem hoje. A vida humana era pouca coisa em relação aos equilíbrios mundiais e às regras militares
e civis. É indicativo que exatamente depois das duas guerras nasçam estes direitos. Mais estranho é
o fato que 50 anos depois de terem nascido, eles estão abandonados pelos quais poderiam usar.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman em sua obra “Fiducia e paura nella città”
(BAUMAN, 2005) trata sobre a convivência humana nas grandes cidades e nas metrópoles
e, analisando as fronteiras que as percorrem, oferece-nos uma análise interessante sobre esta
situação de abandono voluntário dos direitos humanos.
Segundo Bauman a metrópole é o maior laboratório de convivência que os seres humanos
criaram, “viver na cidade significa viver junto, junto a estrangeiros” (BAUMAN, 2005, p.65), e
isso leva a enfrentar os outros e se relacionar com as diferenças, com os outros e com quem
tem costumes diferentes, mas ao mesmo tempo leva também a perceber fronteiras entre nós e
os outros. Nós criamos fronteiras, dividimos o nós do outro, o eu do ele, mas fazemos tudo isso
porque percebemos que existem diferenças, que existem pessoas que não são como nós, porém
“Fredrik Barth, o grande antropólogo norueguês contemporâneo, percebeu que – contrariamente
à errada opinião comum – as fronteiras não são traçadas para separar diferenças, mas, pelo
contrário, é exatamente porque são traçadas fronteiras que de repente surgem as diferenças, que
as percebemos e ficamos conscientes delas, aliás, vamos procurando diferenças exatamente para
legitimar as fronteiras” (BAUMAN, 2005, p. 66).
É por causa da construção de fronteiras e divisões que percebemos um certo perigo
e um certo medo. O surgimento, por exemplo, dos shoppings nos faz perceber que existem
pessoas que neles podem entrar ou sair e outras que não podem. Isso mostra as diferenças, a
criação de fronteiras cria as diferenças, não o contrário. Segundo Bauman, “cada fronteira cria
suas diferenças, que têm fundamentos e são relevantes” (BAUMAN, 2005, p. 66), ou seja, as
diferenças entre os homens são naturais, existem naturalmente, nenhum de nós é exatamente
igual a qualquer outro, mas aquele que nos faz descobrir que existem algumas diferenças que
nos disturbam mais, que não podemos agüentar, são exatamente as fronteiras que criamos e
que nos fazem perceberem mais essas diferenças. A metrópole e a proximidade com os outros
nos faz sentir mais vulneráveis com certeza, “mais são reduzidos o espaço e a distância, maior
é a importância que lhes atribuem as pessoas; mais é desvalorizado o espaço, menos protectiva
é a distância e mais obsessivamente as pessoas que traçam e movem fronteiras” (BAUMAN,
2005, p. 65-66). Será só isso o que nos leva a fazer essas coisas? Que leva a traçar fronteiras,
sentir diferenças, querer separar? Por que então traçamos fronteiras? Talvez por causa do desejo
(consciente ou subconsciente) de se reservar um cantinho tranqüilo e sossegado num mundo que
parece estranho, selvagem e que dá medo.
No seriado americano LOST, um dos momentos mais importantes da segunda temporada
é o momento em que os “outros” traçam uma fronteira que não deve ser ultrapassada, delimitando
assim um lugar onde nossos heróis podem viver com tranqüilidade e paz. O mundo de LOST é
um mundo feito de fronteiras, um mundo de divisões rígidas e claramente demarcadas, onde os
protagonistas querem apenas tranqüilidade e paz, e onde eles só podem ter esta tranqüilidade
e esta paz se não ultrapassarem as fronteiras impostas. No entanto, o mundo de LOST é um
mundo onde as coisas mais interessantes e enriquecedoras acontecem quando algumas pessoas
ultrapassam estas linhas imaginárias, linhas que são as fronteiras criadas. Quando eles entram no
mundo dos “outros” encontram comida e outras coisas positivas, descobrem e entendem mais,
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
enriquecem em várias coisas, desde bens materiais até conhecimentos. O mundo das fronteiras
criado para distinguir os outros dos protagonistas é um mundo que serviria para oferecer
tranqüilidade aparente (é isso que a maioria da comunidade pensa), mas que em realidade é o
mundo do melhoramento. Graças às interações entre os dois grupos de iguais (nós e os outros)
ambos têm melhorias e conquistas. Mas o mundo de LOST (e o mundo global também diríamos
nós) é um mundo parecido com o oeste selvagem, onde qualquer um pode se comportar de
uma maneira não esperada, irracional, por isso é melhor fugir ou ser o primeiro a atirar. Nesse
sentido é que as fronteiras são importantes, para poder reduzir ao mínimo essas possibilidades
de inesperado, de incomum, de diferente. As diferenças mais importantes são aquelas atribuídas
às pessoas que ousam passar as fronteiras, que do nada aparecem em lugares onde não deveriam
estar; os “outros” que em LOST entram escondidos no grupo, como Ethan, são representados
como selvagens, animais que não deveriam estar por perto, e são mortos.
No mundo de hoje, a comunidade de LOST é quase inexistente, mas os mesmos
problemas são encontrados nas grandes cidades, “as cidades, nas quais vivem mais que a metade
dos seres humanos, são de uma certa forma uns depósitos de lixo para os problemas criados e não
resolvidos no espaço global” (BAUMAN, 2005, p. 68). A cidade é um refúgio para os diferentes,
os estrangeiros, os outros, mas é sobretudo um lugar onde se localizam os problemas criados a
nível global, que terão que ser resolvidos a nível local: o lamentável, mas famoso, 11 de setembro
foi com certeza o resultado de contraste de forças globais, em que o incêndio teve de ser apagado
pelos bombeiros da cidade, a migração para a Europa é uma conseqüência de movimentos globais,
mas quem tem que resolver os possíveis problemas e conflitos que isso cria são as administrações
locais. A globalização, ou economia global criou entre outros problemas uma quantidade enorme
de gente “supérflua” que não pode mais viver como viviam seus predecessores (camponeses
que não conseguem mais viver só com o trabalho da terra, artesãos que não vendem mais seus
produtos) e que são obrigados a emigrarem. Para onde esses novos migrantes econômicos vão
se não para o lugar que tudo acolhe e tudo resolve (ou pelo menos tenta)? A cidade, a metrópole,
por meio de seus administradores locais, nova mãe acolhedora que nunca nega amparo a seus
filhos, os filhos da globalização e de seus desvios.
Essas pessoas vêm para a cidade trazendo a mensagem dessas forças misteriosas, dessas
desventuras, desse perigo, da possibilidade de sermos nós mesmos, num futuro quem sabe
próximo, como eles. Trazem consigo nosso pior pesadelo, a possibilidade de serem supérfluos,
e nós de perdermos nossa posição e nossa segurança social. Lembram-nos, cada vez que as
encontramos, algo que gostaríamos de esquecer: a fragilidade da natureza humana, a precariedade
de nossas vidas e de nossas certezas. Os migrantes são entendidos como portadores da idéia de
seres supérfluos, ou seja, pessoas cujas capacidades de trabalho não poderiam ser utilizadas da
melhor forma, gente que seria melhor que fosse excluída, que seria melhor que desaparecesse.
O progresso econômico sempre tornou muita gente supérflua (camponeses, artesãos,
gente que fazia suas coisas de uma maneira menos dispendiosa, como não se faz agora), sempre
aconteceu isso, mas agora está acontecendo algo novo. Antigamente esse tipo de pessoa ía da
Europa para fora (Américas, Austrália), mas hoje que o mundo inteiro está produzindo supérfluos,
e por esse motivo não existem mais lugares melhores (Américas) onde tentar a sorte, eis que
todos querem ir a cidades de primeira linha. Cidades que infelizmente já têm seus próprios
problemas e seus próprios “inúteis”, que não conseguiram nelas uma recolocação, e que irão se
somando a esse novo exército de deslocados que chegam diariamente.
Existe, para designar esse tipo de pessoa, uma palavra específica nos Estados Unidos:
underclass, ou seja, quem está fora do sistema de classes, não está em cima ou embaixo, está totalmente
fora dele. Essa palavra espalhou-se pelo resto do mundo de uma forma impressionantemente
rápida, tão rápida como a velocidade com a qual muitas pessoas passaram a fazer parte deste
novo grupo. A característica principal da underclass é que as pessoas que dela fazem parte não
estão embaixo ou subindo, crescendo ou oscilando, quem está na underclass está fora, fora do
sistema de classes, fora do ambiente, sem possibilidade nenhuma de entrar nele. Um excluído,
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
parafraseando Eichendorff um good for nothing, um bom para nada obrigado a vagar sem colocação
nenhuma no sistema de trabalho tradicional.
Para se salvar da vista e do contato com essas pessoas, com esses problemas, nas cidades
existe uma tendência geral a construir muros, fronteiras, proteções contra um eventual inimigo
externo, além disso, criaram-se espaços proibidos, ou seja, espaços onde algumas pessoas não
podem sentar, parar ou até não podem entrar, aqueles que o sociólogo americano Steven Flusty
chama de interdictory spaces, espaços proibidos somente para alguns, “préclusos”. Proibidos
não no sentido literal da palavra, mas porque as pessoas criam limitações para si mesmo em
freqüentarem esses lugares. Um caso extremo são as americanas gated communities, ou como é
conhecido aqui no Brasil os condomínios fechados (que são quase a mesma coisa), lugares onde
ninguém pode entrar se não for convidado, que têm seguranças armados dia e noite. Esses lugares
são o espelho, o reflexo desses guetos involuntários em que foram colocados os underclasses e os
migrantes que sobraram: “estes guetos voluntários (...) são o resultado da aspiração a defender
a própria segurança procurando ter só a companhia de seus semelhantes, e deixando longe
os estrangeiros” (BAUMAN, 2005, p. 68). Uma prisão voluntária da qual, graças às televisões
internas, por exemplo, os prisioneiros de si mesmo podem se defender de quem passar por perto,
mas também ter uma visão do mundo no qual não se põe o pé, no qual não se passeia mais, não
se vive mais. Uma prisão voluntária que é alimentada pelo medo dos outros, uma situação em que
as pessoas abandonam voluntariamente alguns dos fundamentais direitos humanos de primeira
geração, entre eles o mais importante, a liberdade. Liberdade de andar livremente na própria
cidade, liberdade de passear sem medo, liberdade de não ser preso em suas próprias habitações
(prisões com todo conforto, mas sempre com grades, gaiolas de ouro), liberdade de perceber que
essas prisões não deixam entrar os “outros”, mas que também não os deixam sair.
Segundo o antropólogo americano Richard Sennet, há um círculo vicioso nesta situação
de condomínio fechado. As pessoas que neles se enclausurarem têm uma grande dificuldade
(ou medo) em se relacionarem com os estrangeiros, ou os outros. Ao mesmo tempo, porém,
eles freqüentam, nesses lugares, só os próprios semelhantes, e quanto mais freqüentam pessoas
similares a eles menos têm disposição de conviver com os estrangeiros, com os diferentes,
têm medo deles e por isso procuram a companhia dos próprios semelhantes. Uma situação de
ansiedade, de medo e de recusa do outro. Uma situação de perda voluntária dos direitos humanos
tão dificilmente conseguidos por nossos antepassados em nome de uma tranqüilidade aparente,
de uma segurança fictícia. Eis, então, que surgem, por exemplo, as escolas fechadas onde nossos
filhos não chegam a entrar em contato com essa gente, filhos das famílias “erradas”, e onde
eles também aprendem a cultura do medo, da recusa do outro, da recusa do diferente e do
abandono voluntário dos direitos humanos fundamentais em nome do novo deus da segurança
e do zeramento do imprevisto.
Referências
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1108
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
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KAFKA, F. Racconti. Milão: BUR, 1991.
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MONTEIRO LOBATO: UM ESCRITOR A SER
REDESCOBERTO NA SALA DE AULA
Patrícia Aparecida Beraldo ROMANO
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Ao se estudar Literatura Infanto-Juvenil brasileira percebemos que ela, enquanto gênero, é vista
antes e depois de Lobato. Foi ele quem encontrou o caminho criador de que nossa Literatura Infantil estava
necessitando ao romper com as idéias de um ensino de literatura estereotipado e criar uma forma inovadora de
produzir textos para as crianças na primeira metade do século XX. As aventuras da turma do Sítio do Picapau
Amarelo e as traduções lobatianas de clássicos da literatura infantil são, hoje, no século XXI, a redescoberta,
por parte de professores e de alunos, de que o jovem leitor continua a ter excelentes textos para lhe despertar o
prazer de ler. Compete, portanto, ao professor, leitor de Lobato, mostrar ao aluno como descobrir, nos textos
lobatianos, o lúdico mundo criado por esse artista da palavra que influenciou toda a geração contemporânea
de escritores infanto-juvenis.
PALAVRAS-CHAVE: Monteiro Lobato; jovem leitor; leitura.
ABSTRACT: Si estudia la literatura Infanto-Joven brasileña que percibimos que, mientras que clase, es antes
y después visto Lobato. Quién era encontró la manera creativa de esa nuestra literatura infantil necesitaba
al practicar una abertura con las ideas de una educación del estereotipado de la literatura y crear una forma
innovadora para producir los textos para los niños por la mitad primer del siglo XX. Las aventuras del grupo
de la granja pequeña del Picapau amarillo y de las traducciones de los lobatianas de obras clásicas de la literatura
infantil son, hoy, en el siglo XXI, redescoberta, de parte de los profesores y de las pupilas, de quienes el
lector joven continúa teniendo textos excelentes para que despierte el placer de leer. Compite, por lo tanto,
al profesor, el lector de Lobato, demostrar a la pupila en cuanto a descubre, en los textos de los lobatianos, el
mundo juguetón creado por este artista de la palabra que influenció a todo el contemporáneo de la generación
de escritores infanto-jóvenes.
PALAVRAS-CHAVE: Monteiro Lobato; lector joven; lectura.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A Literatura Infantil brasileira encontrou em Monteiro Lobato seu maior nome até hoje.
Graças a ele a criança passou a ser vista como pequeno leitor a quem não se deve exigir pouco, mas
sim oferecer o que há de melhor: aprendizado misturado a diversão. Foi por isso que seu projeto de
escrever para crianças em vez de continuar como escritor para adultos fez tanto sucesso numa época
em que o pequeno leitor era visto como alguém que merecia uma literatura apenas voltada para a
moral e os bons costumes.
Em carta ao amigo Godofredo Rangel, em 1916, Lobato comenta:
Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e
mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me, diante da atenção curiosa com que meus pequenos
ouvem as fábulas que Purezinha lhes conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos sem,
entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade fica no subconsciente
para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão (A Barca de Gleyre 2º tomo – p.
104, apud COELHO, 1985, p.186).
E, de fato, em 1921, depois de já ter lançado A Menina do Narizinho Arrebitado, lá estava a
obra Fábulas de Narizinho, mais tarde relançada apenas como Fábulas. Nessa obra, Lobato reconta,
na voz de Dona Benta, uma coletânea de fábulas retiradas de Esopo, Fedro, Bábrio e La Fontaine,
todas bastante “abrasileiradas”, bem ao gosto do escritor de Taubaté. Usando a técnica da avó Benta
que conta aos netos as histórias, o autor permite a recriação das fábulas em linguagem acessível à
criançada, mas sem perder a essência das histórias. Além disso, os comentários das personagens do
sítio (acrescentados anos depois da primeira edição, em 1943), sempre livres para expressar sua opinião,
dão a marca personalíssima de Lobato-- sua irreverência--, e contribuem para uma compreensão
mais crítica desses textos, questionando, inclusive, a moralidade primeira das Fábulas, as “verdades
absolutas” que elas vêm transmitindo através dos séculos.
Essa mesma irreverência na forma de tratar esses textos vai aparecer na sua primeira grande
obra para crianças: Reinações de Narizinho, cujo texto, como hoje o lemos, com todos os episódios,
apenas apareceu em 1931, embora sua primeira publicação tenha acontecido em 1921, sob o título
A Menina do Narizinho Arrebitado. Na obra de 1931, Reinações de Narizinho, no capítulo “Pena de
Papagaio”, temos os episódios “Emília e La Fontaine” e “A formiga coroca”. Ambos reproduzem
um exemplo bem interessante das fábulas introduzidas no mundo do Picapau Amarelo. Pedrinho, a
convite de Peter Pan, vai viajar para o Mundo das Maravilhas com a turminha do sítio e o primeiro
lugar aonde chegam é o País das Fábulas, também conhecido, segundo o texto lobatiano, como Terra
dos Animais Falantes. Lá, encontram-se com o senhor La Fontaine, que toma nota da fábula “O Lobo
e o Cordeiro”. O leitor, então, se depara com um vocabulário bem ao gosto da infância, carregado de
coloquialismos e neologismos, como “senhor Lobência”, chamamento utilizado pelo cordeiro para
se dirigir, ironicamente, ao lobo que o quer devorar. Este, por sua vez, é considerado, pelo narrador,
como “curto de inteligência” ou “para ser mais franco, burro” (LOBATO, 2004a, p.138). Quando
o lobo, finalmente, sem mais argumentos para convencer o esperto cordeirinho de que ele deve ser
devorado, “resolveu empregar a força (...) e avançou para ele [o cordeirinho] de dentes arreganhados.
E já ia fazendo –nhoc! quando o senhor de La Fontaine pulou da moita e lhe pregou uma bengalada
no focinho” (LOBATO, ibid., p. 139). E assim, envolvidos pela mistura entre realidade e fantasia,
que se interpenetram com absoluta naturalidade no estilo lobatiano, descobrimos que a turminha
do sítio empreende conversa com o fabulista e vai acompanhar mais uma fábula, a da “A cigarra e
a formiga”, que no texto lobatiano é intitulada “A formiga coroca”. Descobrimos também que La
Fontaine gosta bastante das cigarras, pois dão-lhes “ideia de bom tempo, sol quente, verão”. Segundo
ainda o fabulista,
este inseto é um pouco boêmio como em geral todos os cantores.(...) Morrem cantando, como os cisnes
[...]. ‘Já escrevi uma fábula sobre a cigarra e a formiga, que é outro inseto muito curioso, símbolo do
trabalho incessante. Aqui temos um formigueiro onde vocês podem observá-las’ (LOBATO, ibid., p.140).
E, assim, vamos rever a famosa historinha já conhecida: a cigarra, exausta e faminta—
entretanto, tísica na obra lobatiana, fazendo jus inclusive à observação primeira feita por La Fontaine
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
de que ele achava a cigarra meio boêmia-- bate à porta da formiga, no texto, coroca, velha, “sem
dentes, com ares de ter mais de mil anos (...) e rabugenta” (LOBATO, ibid., p.141), para pedir alguma
comida, pois está faminta e com muito frio. Recebe, como também já sabemos, uma portada da velha
formiga que afirma:
– Bem me lembro. Cantava de nos pôr doidas aqui dentro. Muita dor de cabeça tive por causa da sua
cantoria, sabe? Agora está tísica e não canta mais, não é isso? Pois dance! Cantou enquanto era moça e
sadia? Pois dance agora que está velha e doente, sua vagabunda!(Id., ibid., loc.).
Quando então imaginamos o fim da fábula, vemos a recriação do texto por Lobato e a
sugestão de uma leitura mais crítica da moralidade capitalista de que “o trabalho enobrece o homem”,
de que “descuidar de determinadas obrigações pode trazer tristeza e faltas”, como diz a moral advinda
de Esopo, pois o texto lobatiano vai apresentar-nos a boneca Emília intervindo na ação da fábula, já
que Emília fica inconformada com os séculos em que a formiga dá portadas na cara da cigarra que
paga caro apenas por ter feito opção de vida diferente da da formiga. Por que os que optam pelo
trabalho com a arte merecem padecer de fome e frio? Trabalhar com arte não é também um tipo
de trabalho? Não há a necessidade de que alguém preencha com arte a vida das pessoas? Trabalhar,
trabalhar e trabalhar... para acumular. É apenas essa a moeda que move o indivíduo? Além disso, ao
recriar a formiga como “coroca”, velha não somente na idade, mas na chatice, na modo ranzinza
e frustrado de ser, Lobato tece crítica às pessoas que não vêem nenhuma importância na arte, que
desconhecem os prazeres que ela proporciona e que, assim, proliferam o elogio à ignorância. Não
podemos esquecer que a formiga não gostava do cantar da cigarra e que isso parece ser metáfora
da anestesia a que as pessoas voltadas apenas para o trabalho mecânico se submetem. Vale lembrar
aqui que La Fontaine foi grande fabulista por ter tratado com simplicidade e arte a verdade que se
desvendava de seus textos. Preocupado em criar uma analogia entre os animais de suas fábulas e as
pessoas que compunham a corte de sua época, La Fontaine foi considerado o maior fabulista da
Literatura. Quando o narrador lobatiano afirma que La Fontaine via nas cigarras um inseto um pouco
boêmio como os cantores em geral, gera para o leitor a possibilidade de discussão da boemia literária,
tão cara aos românticos e aos artistas.
O leitor de Lobato, então, descobre que Emília intervém na fábula para ajudar a cigarra
a ajustar contas com a formiga. A boneca pede à cigarra que bata à porta da formiga novamente e
quando essa atende às batidas, Emília a agarra pela perna seca e a puxa para fora, dizendo:
– Chegou tua vez, malvada! Há mil anos que a senhora me anda a dar com essa porcaria de porta no
focinho das cigarras, mas chegou o dia da vingança. Quem vai levar porta no nariz és tu, sua cara de coruja
seca! (...) A cigarra cumpriu a ordem, e tantas portadas arrumou no nariz da formiga, que a pobre acabou
pedindo socorro ao senhor de La Fontaine, seu conhecido de longo tempo.
– Basta, bonequinha! (...) A formiga já sofreu a sova merecida. Pare, senão ela morre e estraga-me a fábula
(LOBATO, ibid., p. 142).
Somos, então, capazes de perceber a habilidade de Lobato com o mundo infantil. Tudo isso
se passa no Mundo das Maravilhas e a criança não se esqueceu disso. Embora possa parecer cruel, a
formiga bateu por séculos na cigarra, assim, o castigo da formiga é insignificante diante do sofrimento
a que esteve destinada a cigarra. E mais, os séculos e séculos de trabalho não ensinaram nada à
formiga, apenas a tornaram o ser mecânico, repetitivo e insensível que ela é e continua a reproduzir
e significar, a ponto de pedir socorro a seu criador. Tal qual o mundo a que Lobato pertencia e a que
nós, com as devidas mudanças, para pior, diga-se de passagem, também pertencemos. Ninguém nos
ensina os limites da sociedade mesquinha e utilitarista pequeno-burguesa que, como a formiga, pensa
apenas na necessidade de acumulação; somente aprendemos a reproduzir, cega e caladamente, seus
preceitos. Ninguém ou quase ninguém nos mostra que a arte deve fazer parte de nossa existência,
porque tem poderes transformadores. Dificilmente temos Emílias assumindo nossas causas.
Por que, então, não trabalhar Lobato na escola? Depois de Lobato, apenas as décadas de 70 e
80, com os escritores conhecidos como “Filhos de Lobato”, trouxeram para a sala de aula inovação e
preocupação com uma literatura que despertasse a criança para a análise do mundo, já que as décadas
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pós-lobato foram fortemente influenciadas pela ditadura, sofreram limitações em todos os sentidos e
a literatura infantil se voltou, mais uma vez, para a moralização e normas de comportamento. Somente
por volta da metade da década de 70 é que os textos começam a questionar a realidade e os valores
sobre os quais se assentava a sociedade e a nova literatura infantil passa a ser dirigida pela criatividade,
pela experimentação linguística e pela consciência crítica, trabalho que primeiro tinha sido feito por
Lobato em suas obras. Nomes de respeito surgem, como Ziraldo, Ana Maria Machado, Ruth Rocha,
Lygia Bojunga Nunes, João Carlos Marinho e muitos outros que produzem até hoje, mas o nome
de Lobato e suas obras parecem ser mais recuperados pela TV que inaugura uma nova série sobre a
turma do Picapau Amarelo, na década de 801 e outra, agora, nos primeiros anos do século XXI, do
que pela escola, cujo compromisso com o texto lobatiano deveria ser revisto.
Embora de boa qualidade produtiva, a obra televisiva não é a obra literária e a rica
linguagem lobatiana, por exemplo, não pode ser recuperada pela imagem. Muitos professores que
se formaram naquela época tomaram contato com a obra de Lobato apenas pela telinha e quase
nunca tiveram em mãos o texto propriamente dito. Ao trabalharem Lobato, quando isso acontece,
recordam-se apenas das imagens e não das experiências vivenciadas com o texto. Assim ocorre
também com as gerações seguintes à desses profissionais: muito pouco conhecem sobre o lúdico
presente nos textos infantis de Monteiro Lobato. O professor precisa conscientizar-se de que os
textos de Lobato faziam parte de um projeto maior que era o de “ampliar o universo cultural dos
seus leitores” (CATINARI, 2006, p. 96).
Alguns profissionais, certamente, escapam desse grupo e levam a saga do Sítio para a sala
de aula, mas a grande maioria contribui para afastar as crianças de leituras tão prazerosas, lúdicas e
enriquecedoras, já que as histórias do Sítio exigem, em primeiro lugar, o contato do professor com o
texto propriamente dito. Dificilmente compreendemos Lobato através de fichas de leitura que apenas
facilitam o trabalho do professor. Para apresentar esses textos em sala de aula, o professor deve ser
leitor de Lobato, conhecedor do seu estilo e consciente de que seus textos estão preocupados em
nutrir o pequeno leitor de conhecimento também. E esse conhecimento o professor deve dominar,
pois é ele que, muitas vezes, “incomoda” o profissional, já que não basta apenas saber o enredo
das aventuras, é necessário pesquisar sobre o conteúdo apresentado por Lobato. Além disso, esse
profissional, hoje, deve perceber nesses textos algumas questões específicas da época de Lobato e ser
capaz de contextualizá-las e explicá-las.
Em tempos, cujos clássicos literários voltam à tona através de adaptações, questão bastante
controversa, embora não mote desse texto, havemos de perguntar por que motivos os professores não
retomam Peter Pan e Dom Quixote, por exemplo, via adaptação lobatiana. Seguindo a mesma linha das
histórias contadas por Dona Benta à turminha do Sítio, inclusive já comentada quando começamos
esse texto falando sobre as Fábulas, primeiro desses projetos, Lobato investe em mais 4 adaptações:
Histórias de Tia Nastácia, narrativas que se originam todas do folclore, contos, historietas, anedotas,
superstições, sabedoria popular e por aí vamos, cujas raízes são européias, africanas e indígenobrasileiras; as outras três são: adaptação da obra de Hans Staden intitulada As aventuras de Hans Staden,
adaptação da história de Peter Pan, cujo subtítulo é A história do menino que não queria crescer e Dom Quixote
das crianças, sobre a qual vamos nos deter.
Várias são as adaptações para jovens desse clássico da literatura. Não discutiremos aqui o
valor de se ler uma obra integral, em vez de qualquer adaptação, mas se o professor pode iniciar o leitor
nesse clássico, através de uma linguagem mais atrativa, por que não escolher a adaptação lobatiana,
tão rica em possibilidades exploratórias, que extrapolam as ações do texto quixotesco na medida em
que a turminha do Sítio faz suas livres, divertidas e pertinentes intervenções, questionando uma série
de assuntos interessantíssimos para se discutir na sala de aula? Veremos algumas dessas questões
com a leitura de alguns excertos a seguir. Além disso, estamos no mundo textual-infantil de Monteiro
Lobato, indiscutivelmente de qualidade literária, pois apresenta, intrinsecamente, valor estético. Por
Entre os anos de 1950 a 1963, no começo da TV brasileira, houve a primeira série do Sítio do Picapau Amarelo, com
roteiros de Tatiana Belinky, produzida pela antiga TV Tupi.
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mais que o texto lobatiano nasça do texto de Cervantes, é independente na sua composição artística
e, por esse motivo apenas, a obra já se torna interessante e valiosa por si mesma. Assim, professores
e alunos se depararão com o texto de Cervantes dentro da obra de Lobato a qual se faz interessante
pelo mérito de manter-se fiel ao estilo lobatiano de consturção: uma produção estética, artística,
criativa, que se justifica como valiosa leitura para os pequenos (e grandes, por que não?) leitores. Tudo
dentro da mesma obra!
Dessa vez, a iniciativa de conhecer o clássico recontado por Dona Benta é de Emília. Nos
outros textos, em que os picapauzinhos se reúnem para ouvir histórias, em sua maioria, é sempre Dona
Benta quem se coloca como a contadora oral interessada em “instruí-los”. Em Dom Quixote das Crianças,
Emília, que adora mexer nos livros da biblioteca em busca de novidades trata com cuidado especial os
da terceira e quarta prateleiras, que “ela via com os olhos, e lambia com a testa. Por isso mesmo eram
os que mais a interessavam. Sobretudo uns enormes” (LOBATO, 2004b, p.7), entre os quais podia-se
encontrar a edição de Dom Quixote, com ilustrações de Gustave Doré, cujos desenhos a boneca estava
desesperada por ver e pouco se importou quando o livro-pedra despencou lá de cima da estante sobre
o visconde, amassando-o. Vale lembrar que a bonequinha e o visconde somente conseguiram deslocálo graças à engenhosa ideia do visconde de usar uma alavanca. Fica aí uma primeira questão que já
pode ser explorada pelo professor. Em seguida, numa demonstração de nenhuma piedade, afinal
bonecas não têm coração, como lembra Tia Nastácia, Emília avisa que, quando Pedrinho chegasse,
ele consertaria o visconde, afinal, “Criaturas de sabugo têm essa vantagem” (LOBATO, ibid., p.8) e
passa a ler em paz os dizeres da primeira página do livrão: “O engenhoso fidalgo Dom Quixote de
La Mancha, por Miguel de Cervantes Saavedra”, cujo “a”, de Saavedra, repetido, é logo cortado pela
boneca numa demonstração de desrespeito ao livro e, ao mesmo tempo, mote de discussão sobre a
língua escrita da época da tradução do texto que figurava lá na estante de Dona Benta. Mais à frente,
a senhora avó corrigirá a boneca quando essa explica que cortou o segundo “a” porque se considera
“inimiga pessoal da tal ortografia velha coroca que complica a vida da gente com coisas inúteis. Se um
“a” diz tudo, para que dois?” (idem, p. 9). Ao que Dona Benta retifica:
– Você devia respeitar essa edição, que é rara e preciosa. Tenha lá as ideias que quiser, mas acate a propriedade
alheia. Esta edição foi feita em Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo
famoso Visconde de Castilho e pelo Visconde de Azevedo. (...) O Visconde de Castilho foi dos maiores
escritores da língua portuguesa. É considerado um dos melhores clássicos, isto é, um dos que escreveram
em estilo mais perfeito. Quem quiser saber o português a fundo, deve lê-lo – e também Herculano, Camilo
e outros.
– O português perfeito é melhor que o imperfeito, vovó? – indagou Narizinho (LOBATO, ibid., p. 9-10).
Embora não se advogue aqui que a Literatura deva estar a serviço pura e simplesmente da
discussão gramatical ou de qualquer outro mote, é impossível que um professor não aproveite, depois
da leitura e discussão da obra com os alunos, dos comentários muitos sobre questões da língua falada
e da língua escrita, português não-padrão e padrão. Enfim, trata-se de uma forma lúdica de chegar até
mesmo a essas discussões.
E então, após várias interrupções da turminha e esclarecimentos por parte de Dona Benta,
finalmente ela começa a narração da história de Dom Quixote. Vejamos:
– Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo dos da lança
em cabido, adarga antiga e galgo corredor.
– Ché! – exclamou Emília. – Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de esconder
com o Quindin. Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor... Não entendo essas viscondadas, não...
(LOBATO, ibid., p.10).
E depois de Pedrinho ter mostrado que sabia o que significavam os vocábulos, ou ao menos
tentado mostrar isso, pois engasga em “adarga antiga”, Dona Benta percebe a necessidade de rever a
linguagem usada para a narração, afinal corria o risco de perder seu público:
–Meus filhos, – disse Dona Benta, – esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e
sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura
para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
(...) E Dona Benta começou, da moda dela:
–Em certa aldeia da Mancha (que é um pedaço da Espanha), vivia um fidalgo, aí duns cinquenta anos, dos
que têm lança atrás da porta, adarga antiga, isto é, escudo de couro, e cachorro magro no quintal – cachorro
de caça.
–Para que a lança e o escudo? – quis saber Emília.
–Era sinal de que esse fidalgo pertencia a uma velha linhagem de nobres, dos que antigamente, na Idade
Média, usavam armaduras de ferro e se dedicavam à caça como sendo a mais nobre das ocupações
(LOBATO, ibid., p.10).
Assim, Dona Benta consegue que o público conheça o clássico, ouça-o com atenção e, quem sabe,
futuramente, leio-o novamente na versão castilha da linguagem. Marisa Lajolo, especialista em Lobato, lembra
em um de seus artigos, que essa “tática” de Dona Benta já fora apresentada por Lobato em Reinações de Narizinho,
a propósito da obra Pinocchio. Vejamos em Reinações o que o narrador nos esclarece:
A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros de crianças
que há no Brasil são muito sem graça, cheio de termos do tempo da onça ou só usados em Portugal, a boa
velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje; onde estava, por exemplo,
lume, lia fogo; onde estava lareira, lia varanda. E sempre que dava com um botou-o ou comeu-o, lia botou ele, comeu
ele – e ficava o dobro mais interessante. Como naquele dia as personagens eram da Itália, Dona Benta
começou a arremedar a voz de um italiano galinheiro que às vezes aparecia no sítio em procura de frangos;
e para o Pinocchio inventou uma vozinha de taquara rachada que era direitinho como o boneco devia falar
(LOBATO, op. cit.a, pp.106-107).
Vemos em Lobato, então, até a discussão sobre a própria maneira de conceber a linguagem
para o público leitor- criança/adolescente, de forma a prendê-lo ao texto, mas sem pieguices ou
infantilidades. Além disso, Lobato jamais se esquece de que esse tratamento dado à linguagem não
implica um conteúdo reduzido ou retalhado. Ao contrário, voltando a Dom Quixote das crianças,
percebemos a quantidade de informações que serão oferecidas aos pequenos leitores sobre os mais
diversos assuntos, a fim de ampliar o repertório cultural desse pequeno leitor e isso é sempre feito
de forma jocosa, agradável, brincalhona, lúdica, portanto. Podemos perceber vários assuntos a serem
trabalhados com os alunos. Assinalamos, a seguir, alguns:
1) Referência a outros escritores:
Depois de lermos o Dom Quixote, havemos de procurar o Orlando Furioso, do célebre poeta italiano Ariosto
– e vocês vão ver que coisa tremenda eram os tais cavaleiros andantes (LOBATO, op. cit.b, p.11).
2) A proposta de Cervantes:
Cervantes escreveu este livro para fazer troça da cavalaria andante, querendo demonstrar que tais cavaleiros
não passavam duns loucos. Mas como Cervantes fosse um homem de gênio, sua obra saiu um maravilhoso
estudo da natureza humana, ficando por isso imortal. Não existe no mundo inteiro nenhuma criação
literária mais famosa que a sua (LOBATO, ibid., p.11).
3) Significados de muitas terminologias dignas de discussão por parte do professor e que
podem, inclusive, ser exploradas em outras disciplinas, como é o caso da expressão “cavaleiros
andantes”, motivo de dúvida de Narizinho, cujo esclarecimento fica, novamente, por conta de Dona
Benta:
Chamavam-se assim, Porque viviam a cavalo, sempre a correr mundo atrás de aventuras. E tais e tantas foram
suas aventuras, que os poetas começaram a contá-las em seus poemas, como esse de Ariosto; e os prosadores
também [bom momento para explorar também o que vem a ser prosa e poesia]; de modo que a literatura
daquele tempo era só de cavalaria andante, como hoje é quase só de bandidos e policiais (Id., ibid., loc.).
Nessa mesma linha, outra terminologia interessante é a que se refere a “ser armado
cavaleiro”:
– Ser armado cavaleiro é coisa diferente de um cavaleiro armar-se com armaduras e armas. Ser armado
cavaleiro é receber o grau de cavaleiro andante, dado por outro cavaleiro. E nisso ia pensando Dom Quixote
pelo caminho. Era-lhe absolutamente indispensável encontrar um cavaleiro que o armasse cavaleiro (Id.,
Ibid., loc.).
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
4) Ou ainda o método da sangria, bastante utilizado na época em que se passa a narrativa de
Cervantes e que aparece na obra na boca do patrão que explora uma criança e tenta diminuir o que
deve ao menino, lembrando-lhe de que:
Não te devo tanto assim, meu caro—contestou o patrão. –Esqueces de levar em conta que te forneci três
pares de sapatos e ainda paguei as três sangrias que te fez o barbeiro quando estiveste doente (LOBATO,
ibid., p.17).
5) Vale ainda lembrarmos dos episódios em que a turminha demonstra, de fato, ter entrado
na história da loucura do cavaleiro Quixote. Dois são célebres e abrem para a discussão sobre o que
vem a ser esse mundo, por que não dizer, fantástico, da loucura, em que nos perguntamos, de fato,
sobre quem são os loucos e quem são os sãos. Ou ainda, se em Cervantes, Dom Quixote vive como
os cavaleiros dos livros que lia, Emília vive a mesma “loucura” do Cavaleiro da Mancha. Vejamos o
exemplo:
Emília continuava a dar vira-cambotas. Depois foi buscar um cabinho de vassoura e disse que era lança,
e começou a espetar todo mundo. E botou um cinzeiro de latão na cabeça, dizendo que era o elmo de
Mambrino. Por fim montou no visconde, dizendo que era Rocinante”. (...) Nesse momento, Dona Benta
voltou.
– Que barulhada é esta, meninos?
– É inveja, Dona Benta!–Berrou Emília – Esses dois não me aturam mais, de inveja pura, puríssima – e
ria-se, ria-se...
– Inveja de quê? – perguntou Narizinho. – Tinha graça termos inveja duma maçaroca de pano de Cr$ 1,50
o metro...
– Inveja, sim! –berrou Emília. – Sou de pano, sim, mas de pano falante, engraçadinho paninho louco,
paninho aqui da pontinha. Não tenho medo de vocês todos reunidos. Aguento qualquer discussão. A mim,
ninguém me embrulha nem governa. Sou do chifre furado –bonequinha de circo. Dona Quixotinha...
Dona Benta arregalou os olhos. Emília parecia realmente louca.
– Nastácia, acuda! – gritou ela. – Depressa um chazinho de erva-cidreira.
Ainda por alguns minutos Emília esteve naquela crise de cambalhotas e fanfarronadas de todo o tamanho.
Depois, subitamente sossegou.
Só então Dona Benta pôde retomar o fio da história, mas enquanto falava ia espiando a boneca com o rabo
dos olhos. Positivamente Emília estava mudada. Seria mesmo loucura? (LOBATO, ibid., p.64).
Um pouco mais à frente, na narrativa, esse episódio referente à influência da loucura de
Dom Quixote na boneca se completa. Tia Nastácia grita para Dona Benta:
– Sinhá, Emília parece louca. Entrou na cozinha montada no Rabicó, toda cheia de armas pelo corpo, com
uma lança e uma espada, e uma latinha na cabeça que diz que é o “ermo” de Mambrino, e começou a me
espetar com a lança gritando: Miserável mágico! Por mais que te pintes de preto e ponhas saias, não me
enganarás! Pérfido! Infame encantador! E uma porção de coisas assim, sem pé nem cabeça. E a diabinha
me espetaria de verdade com a lança, se eu não jogasse no quintal umas cascas de abóbora. Rabicó foi
voando para cima das cascas e levou consigo a louquinha. E o pobre Visconde atrás, Sinhá – isso é o que
dá mais dó! O pobre Visconde barrigudo, carregando uns saquinhos que ele diz que é alforje...
Dona Benta foi espiar pela janela e de fato viu as estrepolias que a Emília del Rabicó estava fazendo no
quintal. Vestidinha de cavaleira andante, toda cheia de armaduras pelo corpo e de elmo na cabeça, avançava
contra as galinhas e pintos com a lança em riste, fazendo a bicharada fugir num pavor, na maior gritaria. Até
o galo, que era um carijó valente, correra a esconder-se dentro dum caixão (LOBATO, ibid., p.75).
Não podemos terminar sem lembrarmos a consciência que emana da obra de que ouvir a
história de Dom Quixote, ainda mais recontada por Dona Benta, não é a mesma coisa que lê-la, na
íntegra, numa boa tradução e isso Lobato coloca na fala da senhora avó-contadeira de histórias, que
lamenta aos ouvintes:
– É uma lástima (...) eu estar contando só a parte aventuresca da história do cavaleiro da Mancha. Um dia,
quando vocês crescerem e tiverem a inteligência mais aberta para a cultura, havemos de ler a obra inteira
nesta tradução dos dois viscondes, que é ótima (LOBATO, ibid., p.85)
Dona Benta é leitora competente e, portanto, não tem dificuldades para transitar entre a
língua escrita e a oral. Consciente de seu papel de narradora oral das aventuras de Quixote para a
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
turminha sabe que o mais importante é que essa ponte instigue os jovens a mais tarde chegarem ao
texto integral. Essa se faz também uma das preocupações de Lobato como adaptador da obra de
Cervantes. Quando Dona Benta explica mais uma vez a recepção da obra pela turminha do Sítio, não
podemos deixar de notar algo interessante para os nossos dias, que é o comentário feito sobre o estilo
machadiano de escrever. Diz Dona Benta sobre Dom Quixote:
– É que ela está escrita em português que já não é bem o nosso de agora. Hoje usamos a linguagem mais
simplificada possível [estamos na década de 30 do século XX!], como a de Machado de Assis [hoje, no
século XXI, o nosso aluno estranharia tal comentário, já que para ele a linguagem e o estilo machadianos
geralmente representam certa dificuldade], que é o nosso grande mestre. Os escritores portugueses, que
chamamos clássicos, usavam uma forma menos singela, mais cheia de termos próprios, mais rica, mais
interpolada... (Id., Ibid., loc.).
Enfim, parece-nos que diante de tantas opções equivocadas de leituras pelas quais passam
nossos jovens, por que motivos não retomarmos Monteiro Lobato? Não há roteiro de leitura pronto
que dê conta de trabalhar a riqueza de informação e a preocupação formativa presentes nos textos
lobatianos. O melhor roteiro será a leitura do professor-leitor competente, interessado em buscar no
dicionário e em enciclopédias termos e conceitos desconhecidos e preparar seu projeto de leitura e
discussão da obra, começando por ler Lobato com a performance2 merecida (entenda-se aqui entonação
de voz e diferenciação de voz para cada personagem). Essa é uma das funções do professor, ele deve
se colocar no papel de Dona Benta e ajudar o aluno a compreender o estilo lobatiano começando
com uma leitura oral de uma das obras. Os nossos professores devem se lembrar da lição de Harold
Bloom na Introdução a sua coleção Contos e Poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades:
“Declamar um poema ruim é uma experiência de dar vergonha, ler em voz alta uma história maisou-menos é tão ruim quanto” (BLOOM, 2003, p.22). Vale ainda lembrarmos o que salienta Lajolo a
respeito da “estratégia” de contar de Lobato/Dona Benta:
[...] talvez se possa especular que, para Monteiro Lobato, contar a história de um livro é uma estratégia para
superar a transitória incapacidade de os jovens entenderem um clássico na íntegra. Talvez por isso Dona
Benta não se nivela a seus ouvintes nem rebaixa a história que conta: conta-a mantendo, muitas vezes,
alguns termos do original, talvez como estratégia para educar linguística e literariamente seus ouvintes.
Contar a história é uma estratégia para que o mais cedo possível as crianças possam ler Cervantes se não no
original castelhano, ao menos em uma boa e integral tradução para o português brasileiro e contemporâneo
delas (LAJOLO, 2009, s/p).
Essa estratégia pode ser o caminho de acesso aos textos lobatianos. Nada neles é gratuito, há
sempre uma preocupação muito evidente entre o lúdico, a fantasia e a possibilidade de aprender com
isso. “Os conhecimentos fluem numa grande brincadeira, na qual participam adultos, crianças, seres
fantásticos, personagens da vida ‘real’ e da vida ‘literária’, enfim todos! Todos envolvidos nessa busca
incessante de descobrir e saber” (CATINARI, op. cit., p. 102).
Na verdade, como professores, deveríamos apresentar Lobato ao aluno a fim de que ele
descobrisse o prazer que é lê-lo sem compromisso, sem provas para responder ou explicações para
serem dadas. Afinal, ler literatura é isso, é deixar-se levar pelo texto, simplesmente porque gosta do que
lê e porque curte. Assim seria o ideal para descobrir-se leitor do texto lobatiano. Mas como, infelizmente,
leitores assim estão ameaçados de extinção e professores capazes de despertar leitores em potencial
também, que ao menos esses profissionais percebam o papel que lhes cabe de resgatar esse nome tão
fundamental dentro de nossa história literária, lendo-o e trabalhando-o em sala, pois é direito do aluno
conhecer essa herança cultural tão próxima a ele. Enfim, terminamos fazendo referência, mais uma vez,
à estudiosa Marisa Lajolo de que “Nesse Dom Quixote das Crianças, o leitor encontra material bastante rico
para reflexão sobre questões de leitura, de leitura dos clássicos, da adequabilidade de certas linguagens a
certos públicos, do papel a ser representado pelo adulto responsável pela iniciação dos jovens na leitura”
(LAJOLO, 2002, p.103), e, na escola, vale lembrar, esse papel é do professor.
Segundo Zumthor, “A performance é então um momento da recepção: momento privilegiado, em que um enunciado é
realmente recebido” (ZUMTHOR, 2007, p.50).
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Referências
BLOOM, H. Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
CATINARI, A. F. Monteiro Lobato e o projeto de educação interdisciplinar. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro,
RJ: Faculdade de Letras/UFRJ, 2006.
COELHO, N. N. Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil: das Origens Indoeuropéias ao Brasil
Contemporâneo. 3 ed. São Paulo: Quíron, 1985.
LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 ed. São Paulo: Ática, 2002.
______.Monteiro Lobato e Dom Quixote: viajantes nos caminhos da leitura. Disponível em www.unicamp.br/
iel/site/graduação/quixote.rtf. Acesso em 18 mar. 2009.
LOBATO, M. Reinações de Narizinho. 48 ed. São Paulo: Brasiliense: 2004a.
______. Dom Quixote das Crianças. 27 ed. São Paulo: Brasiliense, 2004b.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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AS FOLHAS LITERÁRIAS DO JORNAL DO PARÁ
(1862-1878)
Patrícia Carvalho MARTINS
(Universidade Federal do Pará)
Germana Maria Araújo SALES
(Orientadora / Universidade Federal do Pará)
RESUMO: O presente estudo objetiva evidenciar o papel do Jornal do Pará (1862-1878) como suporte para
publicação de prosas de ficção, mostrando os espaços reservados à circulação de um número significativo de
textos ficcionais distribuídos pelas colunas Litteratura, Variedade, Folhetim, Miscellanea, Gazetilha e Transcripção.
Teoricamente recorremos à Historiografia Literária, para auxiliar na inserção de pesquisas à margem do cânone
literário ou vistas em segundo plano. Para o desenvolvimento deste estudo em análise, o exame de material
primário, fontes do passado literário da região, além de publicações atuais que trazem resultados do trajeto
literário no período oitocentista, nos são de grande importância para traçar uma evolução na literatura do
contexto regional paraense, possibilitando um diálogo que envolve a literatura brasileira no século XIX, a
imprensa periódica e suas relações com o meio social.
PALAVRAS-CHAVE: Jornal do Pará; prosas de ficção; imprensa; século XIX.
ABSTRACT: This study aims to highlight the role of the Journal of Pará (1862-1878) as support for the
publication of prose drama, showing the spaces reserved for the movement of a significant number of fictional
texts distributed by columns Literature, Variety, Folhetim, Miscellanea , Gazetilha and Transcription. Theoretically we
use the Literary Historiography, to assist in the integration of research outside the literary canon or seen in
the background. To develop this study into consideration, the examination of primary materials, sources of
the literary past of the region, and publications that bring results of the current literature in the nineteenth
path, we are of great importance to trace an evolution in the literature of the regional Para´s context, allowing
a dialogue involving the Brazilian literature in the nineteenth century, the periodical press and its relationship
with the social environment.
KEY WORDS: Journal of Pará; prose drama; press; nineteenth century.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
A Belém oitocentista tinha grande destaque no cenário nacional. Conforme, Laurence
Hallewell, no início do século XIX, Belém fazia parte dos cinco maiores portos do Brasil, portanto,
teve intensa participação nos processos sócio-culturais do Brasil oitocentista. Por isso, trabalhos
como este ganham cada vez mais importância não só pelo papel de identificar a formação literária da
nação, mas também para auxiliar nas pesquisas em fonte primária em outros estados também, pois a
divulgação de estudos em jornais contribui para um melhor entendimento do processo de produção,
circulação e recepção da literatura no Brasil durante o século XIX.
Vários fatores da necessidade da pesquisa nos jornais oitocentista para a literatura já foram
comentados, como observou TINHORÃO (1995, p. 37),
considerando-se o papel desempenhado pela imprensa periódica na difusão dos primeiros ensaios de
autores brasileiros nas áreas dos novos gêneros literários do conto, da novela, e do romance, a partir
do início da década de 1830, ‘a história literária do Brasil ganharia pelo menos 10 anos, se se escrevesse
tomando para referência os jornais e não os livros’
Ou ainda como registra BARBOSA (2007, p. 28 e 29),
Uma pesquisa em jornais evita, portanto, tomar a ‘obra’ final – impressa em livro – como definitiva e a
única passível de investigação (...) Essas pesquisas trazem ao presente as práticas culturais mais próximas
daquilo que foram no passado, revelando toda a sua riqueza e peculiaridades. Além disso, possibilitam
rever e avaliar com maior rigor as práticas literárias de várias províncias brasileiras da época, que viram
reproduzir-se nos seus jornais e folhetins o mesmo movimento que se dava nos do Rio de Janeiro (...) E se a
maioria desses escritos foi olvidada na formação do cânone, a pesquisa em jornais da época pode trazê-los
ao presente e reconstituir de forma mais verossímil e não-anacrônica a vida literária do periódico
No século XIX, o jornal era o principal veículo de informação e alcançava diversos
seguimentos sociais, portanto assumia variados papéis, como informar, instruir, entreter. Sobre essas
funções, LAJOLO (2004, p. 34) afirma que “Além de serem muito mais baratos, os jornais induziam
a uma leitura parcelada, aos pedaços, à qual talvez estivessem mais habituados os leitores disponíveis
naquele tempo”. Outro papel dos periódicos oitocentistas era de integrar grupos de pessoas para ler
ou escutar a leitura do jornal, principalmente quando eram os instigantes capítulos dos romancesfolhetins, semelhante ao que atualmente fazem os telespectadores em suas salas pela espera do
próximo capítulo da telenovela preferida.
No Pará, um dos periódicos de maior duração do século XIX foi o Jornal do Pará, publicado
em Belém entre 1862 e 1878 e dirigido por Cypriano José dos Santos. Este jornal serviu de suporte
para divulgação de assuntos políticos, comerciais e, também literários. No periódico, de 1867 a 18781,
foi encontrado um significativo número de textos em prosa de ficção, entre poesias, textos filosóficos
e religiosos. Esses diversos textos circularam em variadas colunas, destinadas as publicações literárias,
espaços que são tratados no título como folhas literárias.
As folhas literárias do Jornal do Pará mostram os principais espaços em que circulavam as prosas
de ficção, o material catalogado e algumas observações sobre os autores e as produções biográficas
encontradas no periódico. Portanto, pretende-se registrar e divulgar a participação do periódico
paraense oitocentista na construção da Literatura Brasileira.
2. Procedimentos Metodológicos
A primeira medida para a construção deste trabalho foi a escolha do periódico que seria
objeto de estudo. O Jornal do Pará se destacou por sua longa permanência na intensa concorrência da
imprensa paraense oitocentista, além ter possibilitado grande espaço para publicações de prosa de
ficção em duas páginas.
No acervo na Biblioteca Pública Arthur Vianna- CENTUR só estão disponíveis os números a partir de 1867, reunidos
nos rolos de 16 à 28, arquivo 01 e gaveta 06.
1
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
A etapa seguinte foi a catalogação, passo importante para identificar a localização das prosas,
facilitando futuras pesquisas neste jornal. Esta medida foi desenvolvida no setor de microfilmagem da
Biblioteca Pública Arthur Vianna – CENTUR, e as informações resultaram em tabelas já estruturadas
pelo projeto “Lendo o Pará: publicação do romance-folhetim nos jornais de Belém do Pará na segunda
metade do século XIX”.
Foi catalogado um total de 90 (noventa) textos no Jornal do Pará. Entre tantos registros,
encontraram-se diversos gêneros, como lendas, textos religiosos e filosóficos, poesias, e um significativo
número de prosas de ficção, que levaram as etapas seguintes, a de seleção dos textos para compilação,
seguindo critérios como:
i) obras completas (muitos textos eram interrompidos ou substituídos devido à recepção
das mesmas ao público leitor ou até mesmo do desconhecimento do real autor);
ii) prosas de ficção publicadas de forma seriada, forma que deu início ao romance de folhetim;
iii) textos que circularam no cenário nacional, por meio dos diálogos entre os diversos
periódicos oitocentistas.
A próxima medida foi desenvolvida em três momentos:
i) compilação dos textos selecionados, a qual foi realizada no espaço de microfilmagem
do Centur, utilizando o recurso de manuscrever as prosas selecionadas ou uso de palmtops adquiridos pelo projeto para facilitar o trabalho das compilações;
ii) digitação dos textos compilados, desenvolvida na sala de pesquisa reservada ao projeto
no prédio de Pós-graduação do Curso de Letras;
iii) análise, de acordo com os critérios hitórico-sociológicos na Literatura.
3. O Jornal do Pará
O Jornal do Pará foi um periódico de grande repercussão na imprensa paraense2 do século
XIX. Publicado entre 1862 a 1878, uma longa duração para a época, era produzido por uma
importante tipografia oitocentista: a de Santos & Irmãos. Substituiu, o Jornal Treze de Maio3 (1840
- 1844), permanecendo na mesma editora familiar Santos, o mais importante jornal lançado após a
cabanagem, fundado por Honório José dos Santos, o qual, de acordo com HALLEWELL (2003, p.
121), ainda com a chamada Typographia de Santos e Menor, fez em 1839, “a primeira publicação
importante local, o Ensaio corográfico sobre a povíncia do Pará, de Antônio Ladislau Monteiro Baena”
O primeiro número do jornal foi publicado em 04 de novembro de 1862 e o último número
em 10 de novembro de 1878, completando, portanto dezesseis anos em circulação, tempo desafiador
para a grande concorrência e variedade de periódicos no século XIX. Sua produção era diária, exceto
às segundas-feiras, dias imediatos aos santificados e de festa nacional. Entre os assuntos publicados,
encontramos informações políticas, noticiosas, comerciais e literárias.
No século XIX, o jornal era o principal veículo de informação e alcançava diversos
seguimentos sociais, portanto assumia variados papéis, como informar, instruir, entreter. Sobre essas
funções, LAJOLO (2004, p. 37) afirma que “Além de serem muito mais baratos, os jornais induziam
a uma leitura parcelada, aos pedaços, à qual talvez estivessem mais habituados os leitores disponíveis
naquele tempo”
O idealizador e fundador do primeiro jornal impresso no norte do Brasil e quinto do país, O Paraense, foi Filipe Alberto
Patroni. O Paraense (1822-1823) defendia os fundamentos da Constituição e o corpo político do Reino Unido e combatia
o arbítrio da administração militar portuguesa. Foi um periódico que surgiu às vésperas da Independência, praticando
um jornalismo liberal, passou a ser identificado como um importante agente da idéia da Independência do Brasil, o que
contribuiu para o fim do jornal.
3
O nome do jornal refere-se a data em que os Cabanos foram obrigados a deixar Belém.
2
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Figura 1 - Página inicial do Jornal do Pará
O Jornal do Pará, como órgão oficial, tinha um forte caráter político, contudo, publicava
diversos assuntos, não só por ser uma característica típica do periódico oitocentista, mas também
para agradar o disputado público. Entre informes, notícias oficiais, anedotas, propagandas, avisos de
reuniões e festas, a presença de textos literários era constante no periódico estudado. Portanto, não
fugiu a prática da publicação em periódicos do século XIX, como observa LAJOLO (2004, p. 36)
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
para um jornal conseguir anúncios, ele precisava – como precisa até hoje – dispor de leitores (...) A receita
para conseguir mais leitores foi contratar escritores que produzissem romances que interessassem ao
público: os folhetins que publicados aos pedaços, mantinham os leitores em suspense por muitos e muitos
números de jornal.
Não só a Literatura, como é concebida na atualidade, mas distintos textos identificados
como literários apareciam em colunas especializadas que hoje não seriam considerados como tal,
observando que os termos modificam seus significados com o passar do tempo, como atenta Márcia
Abreu (2003, p.15):
(...) no momento em que o termo passa a ser empregado na acepção moderna, a palavra literatura associase a algumas obras, alguns escritores, alguns leitores, algumas formas de ler, excluindo a maior parte da
produção e das pessoas. Optei, por isso, pelo termo belas letras, que guarda a indefinição do período,
permitindo que se considere um conjunto amplo de escritos
No Jornal do Pará teremos este conjunto amplo de escritos, que apareceram de diferentes
formas e conteúdos pelas folhas literárias, que se destinavam a publicar não somente as prosas de ficção,
mas também textos de interesse dos leitores, que incluíam tudo que se entendia por bellas letras.
3. As folhas literárias
As “folhas literárias” aparecem no Jornal do Pará (1862-1878) em colunas como Litteratura,
Variedade, Folhetim, Miscellanea, Gazetilha e Transcripção. Não eram somente narrativas o que traziam esses
espaços literários, entre as prosas de ficção, apareciam artigos sobre a terra, a agropecuária, meteoritos,
religião, textos de instrução, religioso ou informação. A esse respeito BARBOSA (2007, p. 31) afirma:
Inúmeros são os textos das colunas Literatura que se debruçam sobre a questão do que chamavam de
‘instrução pública’, digamos, a versão moderna para o século XIX das Bellas-letras e da Ilustração (...)
Observa-se que a matéria literária propriamente dita – o romance, o conto, a poesia e a crônica – está
presente no jornal, mas em outras colunas, cujos nomes estão longe de significar algo atualmente. Variedade,
Miscelânea, Folhetim, etc.; essas, por sua vez, não trazem sempre o literário.
Diante das secções que divulgam textos literários nessa folha noticiosa, a secção em que
mais se fez presente a prosa de ficção, tanto em quantidade quanto em variedade de gêneros, foi a
Variedade, resultado comprovado pelo seguinte gráfico:
Gráfico 1: Quantidade de Gêneros por Secções no Jornal do Pará
Entre os gêneros que circulam nesse espaço, há a constante presença do conto. Essa
preferência pelo conto no periódico do século XIX, momento de consolidação deste gênero, pode ser
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
explicada pelo fato de possuir as mesmas características do romance em uma extensão menor. Como
justifica BARBOSA (2007, p.22), “isso se deu pela facilidade de ser publicado de uma só vez, como
pela ‘simplicidade do entrecho’ e a ‘linguagem singela e corrente, acessível a todos’. MOISÉS (2003,
p. 94) atenta para a característica de que “ao conto não interessa a personagem mas o drama que o de
que participa (...) importam, isso sim, as características básicas das personagens que desencadeiam
o episódio central da narrativa”, portanto, além de ser uma ficção curta, facilita a identificação do
público leitor com as situações vividas.
Não se sabe ao certo a origem do conto, porém este gênero perdura com sucesso até os dias
atuais. No século XIX, MOISÉS (2003), afirma que:
Entrando o século XIX, o conto vive uma época de esplendor. Além de se tornar ‘forma artística’, ao lado
das demais até então consideradas, sobretudo as poéticas, passa a ser vastamente cultivado: abandona o
estágio de ‘forma simples’, paredes-meias com o folclore e o mito, para ingressar numa fase em que se
torna produto literário (...). A publicação de obras no gênero cresce consideravelmente na segunda metade
do século XIX (p.34)
Essa ocorrência maior do conto deve-se também ao fato de que “a quase tudo que é
traduzido atribui-se o formato de pequenos contos, tornando a prosa narrativa o estilo preferido e
preponderante dos periódicos”, diz BARBOSA (2007, p. 48). De metas claras em provocar o leitor
com uma só impressão, e linguagem objetiva, “de imediata compreensão para o leitor”, o conto teve
fácil aceitação, pois alcançava todas as classes sociais e permitia uma leitura breve, consentindo aos
ávidos leitores a possibilidade de passar para outra narrativa em pouco tempo.
Outras possíveis explicações estão ligadas as próprias preferências dos envolvidos na
produção e circulação do Jornal do Pará. Poderia ser predileção do editor, por facilitar as publicações dos
números, ou até mesmo que alguns contos fossem escritos pelos próprios tipógrafos na necessidade
de imprimir diariamente narrativas em suas páginas; ou até mesmo por gosto dos assinantes e leitores
do jornal.
Além do conto, foram identificados outros gêneros que também se destacaram no século
XIX, como a novela, o romance, a crônica. Contudo, as classificações dos textos que circulavam
no período oitocentista se confundiam bastante, seja por estruturas semelhantes ou por critérios
inapropriados.
Lucia Miguel Pereira (1992, p.27) define o romance, a novela e o conto como os três tipos
de ficção em prosa. A autora diferencia em poucas palavras os três gêneros focalizando não só em
quantidade de páginas, mas também em características dos personagens e do núcleo da trama.
As prosas de ficção catalogadas totalizaram 85(oitenta e cinco) 4 e estão distribuídas nas seis
colunas já referidas e detalhadas a seguir por espaço de circulação e gênero.
A primeira coluna literária encontrada5 no Jornal do Pará foi a Litteratura. Localizava-se em geral
na primeira ou segunda página, apareceu em 20 de janeiro de 1867 com o texto Direito de Propriedade,
que tratava de reflexões sobre a relação do homem e a propriedade. Continuou mostrando textos
como Aerolite, com algumas considerações sobre um suposto meteorito, até apresentar a primeira
novela6 intitulada Helena, sem autoria, a primeira prosa de ficção encontrada nesta pesquisa. Não
mostra a fonte da qual foi retirada, contém apenas a informação de que se trata de uma obra extraída.
O enredo se passa em Paris, mas ainda por esta informação não se pode dizer que seja uma história
originalmente francesa, apresenta a narrativa de uma condessa que se via em um conflito misterioso
ocasionado por sua irmã gêmea, da qual desconhecia a existência.
Outra prosa com título feminino que apareceu no jornal do Pará foi Júlia, de F. M. Supíco,
o qual foi um jornalista, investigador e político português, que viveu entre 1830 e 1911, fundou o
Foram excluídas as lendas e alguns textos religiosos devido ao recorte da descrição dos gêneros distribuídos pelas secções
literárias, o total catalogado foi de 90 prosas de ficção.
5
Apesar do Jornal do Pará ter sido publicado de 1862 a 1878, a pesquisa foi realizada a partir da disponibilidade do acervo
na Biblioteca Pública Arthur Vianna – CENTUR, que é de 1867 a 1878.
6
Vale lembrar que a categorização das prosas de ficção encontradas está seguindo a classificação do próprio Jornal do Pará.
4
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quinzenário de literatura moral e religiosa Tempo (1852 – 1859). Nesse mesmo período foi diretor
do Correio Michaelense (1858), e fundador e diretor político do jornal literário-político Santelmo (18591860). Como proprietário, editor e redator do semanário A Persuasão (1862-1911), desempenhou
as funções de porta-voz distrital do Partido Regenerador. Deixou uma vasta colaboração tanto à
imprensa quanto à literatura regional e nacional. Contudo, não é mais reconhecido atualmente, está à
margem das consagradas Histórias da Literatura Brasileira.
A secção Litteratura continuou apresentando temas femininos, com obras como Um amor
de mulher; A vara de açucenas; Fragmento de um livro Inédito; A orfã, as quatro narrativas sem identificação
de autoria; temas familiares como Virtude Laureada, de Victoria Collona, que se acredita ser um
pseudônimo de alguma escritora brasileira, segundo BLAKE (1902, p. 383); e Deveres Maternos, de A.
Silva, além de alguns textos religiosos, que reunidos distribuem-se em oito contos; uma crônica; dois
romances; e uma novela.
A coluna Variedade é a segunda que surge e, como já foi destacado, foi a mais recorrente. A
primeira narrativa trazida para este espaço é A noviça, em seguida a Ponte dos Noivos e a Carteira, todas
sem autoria e tratando de assuntos românticos, bem característicos do estilo preferido da época.
Como assegura TINHORÃO (1994, p. 19 e 20),
quando essas histórias começam a ser postas ao alcance do grande público (...) através da publicação
em rodapés dos jornais, ou sob a forma de folhetins distribuídos a assinantes ou vendidos de porta em
porta (colportage), o romantismo se populariza de vez, aproveitando o sentimentalismo exagerado, a visão
estereotipada da vida, a atração pelo fantástico, o interesse pelo exótico, o fascínio pelas situações dramáticas
e apaixonantes, a crítica subjetiva às injustiças sociais, e a tendência à comovida contemplação da desgraça
humana
Passaram-se vários números do jornal sem o espaço Variedade, precisamente 137 edições, para
não competir com o grande folhetim Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio e Almeida,
publicado na secção Folhetim, em 03 de outubro de 1867, do número 225 ao 297. Ao reaparecer, a
coluna divulga Evangelina, um conto que narra uma linda história de amor em dez capítulos publicados
em um só dia, assinado por Luciano Santos. Ainda em 1867 segue outra grande narrativa neste espaço,
Rivais e Amigas, de Alberto Coutinho Jr, contada em oito capítulos que retratam tramas, descobertas
e desfechos inesperados.
Nos anos seguintes continua a divulgação de narrativas com personagens femininos no
núcleo central, como As Filhas do Céu, de F. M. Supíco; Rosetta,de José Ivo; Seus Olhos, de Pietro de
Castelgandolfo; Haiva, de Mery; Entre Flores, de Candido Leitão; Uma Visão, do Dr. Aureliano José
Lessa (1828 – 1861), que segundo BLAKE (1883, p. 247)) foi “amigo e contemporâneo do laureado
poeta M. A. Álvares de Azevedo, era com ellle, (...) que o mesmo Álvares de Azevedo tencionava
publicar o livro intitulado Três Lyras”; A Condessinha, sem autoria; Leopoldina, sem autoria; Cecília, sem
autoria; Lídia, sem autoria; e Rosa e Margarida Fantasia por Henrique Muger, de A. J. H.
Essa temática da heroína e do mocinho que combate o vilão, o qual pode ser uma personagem
ou uma situação que impede o final feliz entre o casal romântico, deve-se ao fato da popularização
dos periódicos oitocentistas, como registra TINHORÃO (1994, p. 13), “os romances-folhetim
representam no Brasil, assim como na França, uma abertura dos jornais no sentido de conquista de
novas camadas de público, principalmente feminino”.
Neste mesmo espaço aparecem autores hoje não reconhecidos, mas de grande prestígio
no século XIX, e que foram destacados por Sacramento Blake (1893), em seu Dicionário Bibliográfico
Brasileiro, como o baiano Eduardo Ferreira França (1809 – 1857), com o texto O Thesouro, que apesar
da formação médica contribuiu consideravelmente à literatura em seu tempo; e D. Emilia Augusta
Penido (1840 – 1886), amante das letras e das artes, não só produziu variados textos como também
produziu diversos quadros. Dedicou-se a religiosidade católica, por esse motivo, em suas obras, há
sempre relações com temas morais e religiosos, como o conto A Beneficência Delicada, publicado em
1875 no Jornal do Pará e que já havia sido divulgado no Jornal das Famílias7, em 1874.
7
Informação retirada do site http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/, acessado no dia 05/06/08
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Entre autores hoje consagrados aparecem o escritor português Ramalho Ortigão (1836-1915),
com a obra Memórias de um Bom Rapaz. Ortigão, além de escritor foi também crítico literário do Jornal do Porto
e colaborou na Revista Contemporânea e na Gazeta Literária. Das narrativas divulgadas no espaço Variedade,
chegou-se ao resultado de: cinqüenta e um contos; nove crônicas; dois romances; e uma novela.
Esses espaços voltados para a prosa de ficção apareciam muitas vezes num mesmo dia.
Mostrando assim num mesmo número do jornal histórias distintas. Como exemplos dessa prática no
Jornal do Pará, têm-se as prosas Rivais e Amigas e Evangelina, publicadas na coluna Variedade no mesmo
período em que foi divulgado Memórias de um Sargento de Milícias, na coluna Folhetim.
No Jornal do Pará, a coluna Folhetim aparece uma única vez, no dia três de outubro de 1867,
publicando a importante obra à Literatura Brasileira Memórias de um Sargento de Milicias, de Manuel
Antônio de Almeida (1830 – 1861). Segundo Sacramento Blake, “E’ um dos mais bellos livros, que eu
conheço, escriptos na língua portugueza8” (1900, p.13). Este romance, já havia sido propagado, também
anonimamente, no jornal carioca Correio Mercantil, do qual o autor foi um dos últimos redatores, e
foi publicado em livro no ano de 1854, com a autoria identificada. Ainda assim, nesta edição em
folhetim de 1867, não há menção de autoria e aparece assinado apenas por um brasileiro. “A republicação
desses romances de folhetim sob forma de livro era um gambito óbvio para o comércio editorial, que os franceses
dominaram quase imediatamente” (HALLEWELL: 1995, p.140).Além de que o fato de uma publicação
em livro retornar para o formato folhetim, em capítulos diários, comprova a aceitação da circulação
dos romances-folhetins entre os leitores, como também o custo barato torna a obra mais acessível.
Como já elencamos, havia também o espaço Transcripção presente nos periódicos com o
objetivo de divulgação literária. Nesse espaço encontramos três narrativas: um conto moral A mãe de
família, sem autoria; o Evangelho, de J. J Rousseau; e reflexões A Semana, sem autoria, totalizando: dois
contos e uma crônica.
Até o ano de 1876, a coluna Gazetilha trazia apenas informações gerais, contudo neste ano
divulgou cinco contos: Conto de Schimid “As Flores”; Conto de Schimid “A Mãe Piedosa e seus Filhos”; O
cofrezinho; Conto de Schimid; e Um Príncipe entre os negociantes Americanos. Nos anos seguintes não apareceram
mais prosas de ficção nesta secção. Muitas prosas de ficção eram carregadas de valores e ideologias.
TINHORÃO (1994, p. 15 - 16) diz:
Esses pequenos dramas familiares, que os romances mais tipicamente românticos viviam a focalizar apenas
como ‘histórias de amor’, escondiam, pois, outros problemas ligados à preservação da ordem social baseada
no pacto burguês (...) como o romantismo privilegia o indivíduo e o singular, e pretendia negar à razão, o
quadro de tensões reais se agrava literalmente.
Miscellanea, uma coluna presente em quase todos os jornais da época, também aparece uma
única vez no Jornal do Pará, no dia 08 de outubro de 1876 com a crônica História de uma pitada de tabaco,
sem autoria. O gráfico abaixo demonstra essa constante dos “ilustres conhecidos desconhecidos” que
publicaram suas prosas de ficção no Jornal do Pará, na segunda metade do século XIX.
Gráfico 2: Porcentagem de autoria no Jornal do Pará (1862-1878)
8
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Fiel a fonte original.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Das 85 (oitenta e cinco) prosas de ficção catalogadas, 56 eram sem autoria, enquanto que
apenas 29 apresentavam autoria. Lembrando que mesmo identificadas, muitas destas autorias não são
reconhecidas, seja por que as obras foram assinadas com pseudônimos, prática comum na época, ou
porque o nome do autor se perdeu no tempo por não fazer parte das pesquisas Literárias. Diante
desses dados, observou-se que a maioria dos textos publicados neste jornal eram sem autoria, fato
semelhante ao que ocorreu em outros locais, como justifica BARBOSA (2007, p. 32).
Desde os primórdios da imprensa brasileira, observa-se uma tendência forte ao anonimato ou ao uso
indiscriminado do pseudônimo, tanto nos jornais da Corte como naqueles existentes nas províncias a
partir da segunda década do século XIX (...) uma das razões, a mais óbvia talvez, diz respeito à necessidade
de proteção, seja da autoridade, seja da reputação, ou até mesmo, no caso das mulheres, de algum pai ou
marido ciumento.
Esta ocorrência pode ser explicada pelo fato de que a publicação de prosas em jornais era
visto por alguns críticos como subliteratura; ou pela questão de que a “autoria” poderia influenciar
no consumo, afastando ou atraindo o leitor para a obra, afinal as pessoas escrevem para serem lidas;
ou para garantir que o texto recebesse mais importância que o nome do autor; ou até mesmo pela
constante circulação dos textos divulgados entre os jornais da época, muitas prosas eram extraídas de
outros periódicos.
4. Considerações Finais
Neste estudo foi possível ratificar a participação da imprensa oitocentista na facilitação do
acesso as leituras das prosas de ficção, por meio da disponibilização de diversos espaços reservados
para a circulação literária. Não fugiu ao esperado e aos resultados verificados em outras pesquisas
de mesmo cunho histórico literário em outros estados. Demonstrando que no estado do Pará, a
estreita relação da literatura com os periódicos oitocentistas, também se deu de forma semelhante ao
contexto mundial da literatura no século XIX. Sobre essa relação estreita entre imprensa e literatura,
LAJOLO & ZILBERMAN (1998, p. )afirmam que
Imprensa e literatura são formações discursivas diferentes, emanadas de lugares sociais igualmente distintos;
mas ambas integram o mesmo sistema da escrita. Não se confundem, posto sejam intercomunicantes. E o
fato de a imprensa, durante um certo tempo e em certos casos, financiar a literatura é, talvez, a manifestação
mais visível desta intercomunicabilidade.
O periódico paraense Jornal do Pará – mesmo com seu caráter de órgão oficial- trouxe não só
informações noticiosas, políticas e comerciais, mas possibilitou diferentes colunas para a publicação
de narrativas ficcionais, de variados gêneros, mesmo tendo a predominância em suas páginas de textos
mais curtos, como os contos, e de cunho moralista, coerente com o conservadorismo adotado por
este jornal oitocentista.
As informações apresentadas neste estudo têm importância para que futuras pesquisas não
só quanto a História Literária no Pará, mas no Brasil do século XIX. Afinal, a evidência dos variados
espaços disponibilizados no Jornal do Pará a divulgação de materiais literários, ratifica a participação
dos periódicos não só nos modos de produção, publicação e circulação da Literatura oitocentista, mas
também nos diálogos literários e na construção da Literatura Brasileira.
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1130
Volume 3
A HESITAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE IMAGEM NO
GÊNERO ENTREVISTA∗
Patrícia de Castro JOUBERT
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Este trabalho investiga o funcionamento da hesitação em uma entrevista televisiva. Partindo-se
do pressuposto de que a hesitação, além de ser um fenômeno de processamento, influi no andamento do
discurso, assume-se que, no tipo de interação analisada, suas diferentes formas de manifestação contribuem
para a projeção da imagem do locutor como um sujeito inseguro em seu dizer, em constante preocupação
com as suas escolhas lexicais e sintáticas, que devem ser favoráveis à reconstrução de uma imagem nacional.
Trata-se de um estudo de caráter empírico-indutivo, que assume o tratamento da linguagem em seu uso, e que
se desenvolve segundo os princípios teóricos da Análise da Conversação.
PALAVRAS-CHAVE: hesitação; projeção de imagem; Análise da Conversação.
RESUMÉ: Ce travail analyse le fonctionnement de l’hésitation dans une interview télévisée. En considerant
l’hesitation plus qu’un phénomène de traitement, qui influe sur le cours du discours, on conçoit que dans le
type d’interaction analysée, ses différentes formes de manifestation contribuent à la projection de l’image du
locuteur comme un sujet pas sûr de soi-même, souvent soucieux de ses choix lexicaux et syntaxiques, qui
doivent être favorables à la reconstruction d’une image nationale. Il s’agit d’une étude empirique-inductive,
dans laquelle le language est analysé dans son contexte de l’usage, et qui s’appuye sur l’approche théorique de
l’Analyse de la Conversation.
MOTS-CLÉS: hesitation; projection d’ image; Analyse de la Conversation.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Considerações iniciais
A conversação é uma atividade de produção de sentido planejada localmente. Sua análise
põe em evidência o movimento de constante elaboração e re-elaboração das ações verbais, realizadas
pelos interactantes ao longo da enunciação. A não-disponibilidade de tempo prévio pelo falante, para
o processamento de informações linguísticas e não-linguísticas, faz dessa atividade um espaço em
permanente constituição, permeado por diferentes fenômenos de fala, dentre os quais está a hesitação
(TOSCANO, 1999, p. 29).
Durante o projeto interativo que desenvolve com o ouvinte, o falante, quase que
simultaneamente, processa cognitivamente e profere o seu dizer, tomando por base as restrições
impostas pela situação conversacional. A hesitação é, por excelência, o fenômeno de fala que indicia
esta dupla ação realizada pelo falante, motivada pela necessidade de planejamento em tempo real. Ela
é o laboratório que permite observar de perto a (não-) harmonização entre certas escolhas linguísticas
e o requerido interacionalmente.
Tomando por base a sua funcionalidade em situação interativa de entrevista, a hesitação
também pode ser apontada como fenômeno que contribui à projeção da imagem discursiva de um
sujeito inseguro, produzida a partir da fala de um locutor, que, estando tenso, deixa entrever em seu texto
certa preocupação na realização de escolhas lexicais e sintáticas adequadas ao seu propósito interativo.
É baseado nestas considerações que se investiga o funcionamento da hesitação no gênero
entrevista televisiva, a partir de uma orientação textual-discursiva, guiada pelos princípios da Análise
da Conversação, tais como discutidos por Marcuschi (1999), (2006) e Preti (2004).
2. Do corpus ao objetivo da pesquisa
Interessa a este estudo observar uma entrevista televisiva, com objetivo de identificar a
imagem discursiva construída a partir do fenômeno da hesitação presente na fala do entrevistado.
A entrevista selecionada foi transmitida no dia 4 de maio de 2008, no programa Fantástico,
e tem a duração de quinze minutos. O entrevistado é o jogador Ronaldinho. O tópico da entrevista,
conduzida por Patrícia Poeta, é o suposto envolvimento do jogador com travestis na Barra da Tijuca,
fato divulgado como escândalo nacional uma semana antes da emissão.
A transcrição deste corpus obedeceu às normas propostas por Marcuschi (1999a). Para a
sinalização dos segmentos de fala produzidos entre risos, foi adotado o símbolo utilizado por Toscano
(1999). As hesitações foram destacadas em negrito.
3. Estrutura de participação
A estrutura de participação envolve a presença tanto de interlocutores ratificados quanto
de interlocutores não-ratificados. No caso dos programas televisivos, existem aqueles ouvintes que
constituem testemunha ao vivo da fala e que, portanto, são co-participantes, e aqueles que participam
apenas de modo secundário (“a plateia”), já que não podem dirigir suas vozes ao locutor (GOFFMAN,
2002, p. 126).
Seguindo este princípio, considera-se que, na entrevista analisada, além do entrevistador e do
entrevistado, há a presença de uma audiência que, embora não se faça presente fisicamente, tem um
papel fundamental para o encontro conversacional, visto ser o ouvinte a quem realmente se projeta
o dizer. Nesse sentido, pode-se afirmar que, no espaço em que ocorre a entrevista, o jardim da casa
do jogador, acontece uma encenação, na qual a entrevistadora, embora responsável pela condução da
interação, simula ser a verdadeira ouvinte endereçada. Nesta representação, ela “assume” o lugar de
ouvinte, fazendo crer que é a ela que Ronaldo se justifica.
Há, portanto, um jogo em que a fala é conduzida como se fosse direcionada a um único
ouvinte, uma vez que os outros ouvintes não dividem o mesmo espaço físico de seu locutor. Nesse
jogo, Ronaldo profere ao vivo seu dizer à entrevistadora, tentando alcançar diretamente o público.
1132
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
4. O gênero entrevista
Observa-se que a entrevista é um gênero primordialmente oral e altamente padronizado que
implica certos papéis e expectativas normativas. Trata-se de um evento comunicativo que abarca uma
série de outros eventos ou subgêneros (HOFFNAGEL, 2OO5, p. 180).
Independente de suas especificidades, a entrevista envolve necessariamente pelo menos dois
sujeitos, um que é o entrevistador, outro que é o entrevistado, cada um com papéis específicos: cabe ao
primeiro estabelecer o tópico da entrevista e fazer perguntas de acordo com esse tópico; ao segundo,
responder de acordo com o tópico estabelecido (MARCUSCHI, 2000 apud HOFFNAGEL, 2005).
No geral, a entrevista é baseada em relações de assimetria, em que o centro de interesse é
o entrevistado, cabendo-lhe, portanto, a maior parte dos turnos conversacionais. Sendo previamente
elaborada, conta com um roteiro de perguntas para o qual são esperadas respostas. É, no entanto, no
decorrer da interação que toma vivacidade, conforme as necessidades comunicacionais que vão se
impondo (HALPERÍN, 1995 apud ANDRADE, s/d).
Para efeito deste trabalho, assume-se que o papel “primitivo” da entrevista é o de formar
opinião, uma vez que já não há mais espaço para se acreditar em uma concepção de linguagem
neutra; e que é sabido que os programas televisivos trazem pessoas de referência no cenário nacional,
responsáveis por ditar, mesmo que sutilmente, certas ideias e comportamentos. Não se pode esquecer
também que os programas televisivos, antes de chegarem à tela pública, são editados segundo o olhar
de sujeitos, que, por um motivo ou outro, escolhem certas cenas, em detrimento de outras.
No caso da entrevista de Ronaldo concedida ao Fantástico, nota-se que seu objetivo é
reconstituir a autoimagem do jogador, abalada nacionalmente após o escândalo público envolvendo
possível consumo de drogas e relação sexual com travestis. Mais do que informar o público brasileiro,
acredita-se que a entrevista, neste caso, se projeta como um palco de autodefesa pública, em que
qualquer palavra mal utilizada pode ser fatal.
5. A hesitação
A hesitação vem sendo caracterizada como atividade textual-discursiva que se manifesta
linearmente como ruptura na materialidade da frase, em pontos sintáticos e prosódicos não previstos.
Trata-se de uma atividade de processamento, e não de formulação, que coloca em evidência as
estratégias cognitivas realizadas pelos falantes para resolver problemas de processamento on line entre
forma e conteúdo. Este indício de problema, portanto, denuncia o trabalho realizado pelo falante e
provoca no texto um ralentamento (MARCUSCHI, 1999b, p. 163).
Presente em todas as línguas, este fenômeno apresenta como particularidade o caráter
prospectivo, que sugere a relação com lexemas/sintagmas que ainda vão ser proferidos. Logo,
diferentemente da correção, por exemplo, ela não opera como alternativa a um problema de formulação
textual, mas sim como uma pista da busca de solução almejada pelo falante; nem introduz conteúdos
proposicionais para a progressão textual, já que na maioria dos casos se dá por meio de elementos
funcionais (MARCUSCHI, 1999b, p. 163).
5.1. Aspectos formais
Formalmente a hesitação materializa-se por meio dos seguintes fenômenos: a) fenômenos
prosódicos (pausas e alongamentos vocálicos), b) expressões hesitativas (ah, éh, mm...), c) itens funcionais
(artigos, preposições, conjunções, pronomes, verbos de ligação), d) itens lexicais (substantivos,
advérbios, adjetivos, verbos), e) marcadores discursivos acumulados (ah, ontem eu tava lá assim sabe...
sei lá...) e f) fragmentos lexicais (palavras iniciadas e não concluídas) (MARCUSCHI, 1999b, p. 164).
Fragmento1
Entrevistadora: você pode contar pra gente o que que aconteceu naquela noite?
Ronaldo: bom hum... aconteceu que: eu fiz uma uma grande besteira éh::... na minha vida pessoal né: eu
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
acho que... éh:: isso: todos nos tamos éh: estamos sujeitos a a errar e eu cometi um grande erro de buscar
esse esse programa... éh e:: chegando: ao local eu eu... comprovei que que se tratava de de de travesti e
eu tentei éh:: concluir ali de modo que ( ) pudesse voltar pra casa já:... arrependido obviamente de ter feito
aquela escolha e::: e não consegui e daí que começou toda a:: extorsão né
O texto acima corresponde à primeira cena da entrevista de Ronaldo ao Fantástico. Neste
fragmento é perceptível a dificuldade que o entrevistado tem em esclarecer o que aconteceu na noite
do escândalo. Há uma alta incidência de hesitações realizadas por meio de fenômenos prosódicos
(a::, e:::), de expressões hesitativas (hum, éh), de itens funcionais (a a,esse esse, que que, de de de), e de item
lexical (já) que revelam a busca de palavras pelo locutor, para responder da melhor forma ao tópico
estabelecido.
5.2. Tipos de hesitação
Quanto ao tipo de manifestação, a hesitação pode ser classificada em: a) pausas nãopreenchidas, b) pausas preenchidas, e c) repetições hesitativas. O primeiro tipo refere-se aos silêncios
prolongados, decorrentes de rupturas em lugares não previstos pela sintaxe e pelo fluxo da fala. O
segundo tem como traço a ocorrência de marcadores conversacionais (éh, mm, ah), de alongamentos
vocálicos com características hesitativas e de marcadores conversacionais acumulados. O terceiro tipo
corresponde a repetições julgadas não-relevantes semanticamente, manifestas, geralmente, por meio
de itens formais (MARCUSCHI, 1999b, p. 167).
Fragmento 2
Entrevistadora: quando você abordou a pessoa lá na Barra da Tijuca você sabia que se tratava de um
travesti?
Ronaldo: não eu me sinto muito envergonhado até de falar hum: desse assunto até porque éh foi uma
questão muito pessoal éh a minha vida normalmente eu costumo... não abrir pra: pra::: pra imprensa
mas foi um ato: isolado um ato: completamente estúpido da minha parte e que: estou completamente
arrependi:do envergonha:do e e que:: infelizmente aconteceu daquela maneira
Neste fragmento, observa-se a presença de hesitação por meio de pausas não-preenchidas (eu
costumo... não abrir), de pausas preenchidas (hum:, pra: pra:::, ato: isolado um ato:, que:, que::), e de repetições
hesitativas (pra: pra::: pra, e e). Todas estas manifestações dão à fala do locutor um ritmo lento, a partir
do qual ele ganha tempo para processar o seu dizer.
5.3. Funcionalidade
Em um de seus estudos, Marcuschi (2006) aponta dois papéis funcionais para a hesitação,
um cognitivo e outro discursivo. O papel cognitivo, assinalado como primordial, corresponde à
própria atividade de processamento da fala, em que a hesitação figura muito mais como um índice
problemático de formulação do que como uma atividade formulativa. O papel discursivo, por sua
vez, diz respeito a interferências que a hesitação promove na enunciação discursiva, ligadas a diversos
condicionamentos pragmáticos. Assim, por exemplo, é possível que, em certos contextos interacionais,
a hesitação funcione ora como estratégia de manutenção de turno, ora como mecanismo que sinaliza
a entrega do turno ao ouvinte de maneira disfarçada.
Sobre as alterações que a hesitação promove no nível discursivo, Preti (2004), analisando o
discurso dos idosos, afirma que é comum a presença do fenômeno em conversações que envolvem a
manifestação de posições conflitantes entre diferentes gerações, isto é, em conversações que se passam
entre um documentador jovem e um informante idoso. O aparecimento de repetições hesitativas, de
pausas e alongamentos, num contexto em que se deseja expressar uma opinião contrária, sem que isso
traga constrangimento do ouvinte, denuncia a procura por certos ‘eufemismos salvadores’.
Na entrevista em questão não se evidenciam conflitos de valores entre os interlocutores.
Entretanto, ampliando-se a reflexão realizada por Preti ao corpus analisado, tendo em vista o
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
funcionamento da hesitação em seu interior, tem-se que a procura por palavras ou expressões
adequadas pode ocorrer também em contextos interacionais tensos, cujo tópico conversacional
mostra-se desconfortável para o falante. E, nesse caso, não se trata de buscar palavras que evitem
conflitos ideológicos, mas sim de encontrar as palavras adequadas a (re-) construção de uma certa
imagem do locutor.
Fragmento 3
Entrevistadora: e você pretende entrar na justiça processar alguns dos travestis?
Ronaldo: não não... eu:: me ( )/ processaria né na na minha consciência
]
Entrevistadora: ((risos))
Ronaldo: ta: tá ainda: peSAda cum cum cum esse ato né cum esse ato estú:pido que eu tive... num:
fim de noite chegando em ca:sa éh:... tá certo que eu tinha: brigado: com a minha namorada mas uma
briga BOba também e:... foi um ato realmente impensado no qual eu to... MAS do que arrependi:do to
envergonhado a/e e... mas isso também me me: me aproxi:ma das pessoas porque... eu sofri isso na minha
vida inte:ira... como jogador e como jogador bem su/sucedido que eu sou né de de de se:r realmente
colocado numa outra esfera né: eu sou um ser humano eu sou uma pessoa... por trás do personagem que
eu carrego:: eu tenho minhas fraquezas tenho meus medos... tenho:: enfim: tudo que uma pessoa normal
tem então de alguma forma o Ronaldo o fenômeno desculpa eu falar... como terceira pessoa mas é: eu eu
eu:.. eu ( ) aproveito dessa situação pra me aprov/me aproximar mais das pessoas... e dizer que eu sou...
um ser humano e que eu erro e que: enfim tenho minhas fraquezas e: esse momento foi um momento:
trá:gico que eu tive uma decisão::. a pior decisão: na minha vida pessoal
Neste trecho, o entrevistado nega a possibilidade de processar os travestis, mesmo tendo sido
vítima de extorsão armada por eles, afirmação feita em outro momento. Entretanto, ao responder ao
questionamento realizado, Ronaldo deixa entrever mais uma vez em seu texto certa preocupação na
escolha de suas palavras.
Isso acontece porque a entrevista é um gênero altamente padronizado, que exige do falante
um maior controle de suas palavras. No caso da entrevista referida (envolvendo questões de verdade
ou mentira), esta exigência torna-se muito maior, pois o que está em jogo é a reconstituição de
uma autoimagem. Ronaldo, como embaixador da UNESCO e fenômeno do futebol, não pode ter
associadas, a sua imagem pública, suspeitas de uso de drogas e de homossexualidade. Sendo assim, ele
precisa ponderar suas palavras para que não causem um efeito contrário ao pretendido.
Uma tese interessante que pode ser bastante útil à leitura da hesitação neste tipo de contexto
é a de Blanche-Beveniste (1990 apud Marcuschi, 1999b). Para a estudiosa, toda hesitação tem um
referente que não é dado adiantadamente, mas construído por aproximação sucessiva no discurso.
Desta forma, a enunciação se dá numa constante interação com o conteúdo enunciado, impedindo,
portanto, o isolamento do objeto produzido pela atividade de língua (o enunciado) da atividade de
produção dessa língua.
No fragmento em questão, por exemplo, observa-se que as pausas preenchidas e as repetições
revelam certo adiamento na proferência de algumas palavras, o que prenuncia o cuidado na seleção
de uma lexia adequada. Palavras como pesada, estúpido e pior são no texto pontos de chegada para
estes tipos hesitativos, e caracterizam a condição de arrependimento de Ronaldo diante das próprias
atitudes, gesto que é fundamental a sua ‘absolvição’ pública.
6. A projeção de imagem a partir da hesitação
O cuidado na seleção de palavras e estruturas sintáticas é percebido ao longo de quase toda
entrevista de Ronaldo. É este cuidado que provoca no texto o aparecimento excessivo de hesitações,
que, por sua vez, acabam contribuindo para projetar a imagem do locutor como um sujeito inseguro
em seu dizer. Os elementos não-verbais presentes na interação reforçam esta leitura.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
No fragmento 1, em que a entrevistadora pede um esclarecimento sobre o episódio ocorrido
na Barra da Tijuca, o entrevistado manifesta dificuldade em realizar tal explicitação. A dificuldade
em responder não advém da falta de conhecimento do assunto, mas pelo fato de este ser delicado;
afinal, trata-se de desmentir publicamente o envolvimento sexual com travestis, acusação que denigre
a imagem do jogador.
Neste mesmo trecho, Ronaldo bem mais do que contar o episódio ocorrido, se posiciona no
lugar de um sujeito arrependido de seus atos. É interessante observar que o questionamento feito pela
entrevistadora aparece logo após a apresentação de uma sequência de cenas em que são narrados e
visualizados alguns momentos da vida do jogador e algumas polêmicas nas quais já esteve envolvido.
A apresentação é finalizada com o anúncio do escândalo ocorrido, uma semana antes, na Barra da
Tijuca, onde o jogador teria supostamente se envolvido com travestis.
A cena seguinte, na qual se enquadra o fragmento, contrasta com as anteriores, pois nela
o sujeito, ora apresentado como “Fenômeno”, dá lugar à figura de um homem simples e inseguro,
sentado com uma postura curvada, e com olhar baixo. A postura curvada aliada à vestimenta simples
(camiseta, short e sandálias) faz lembrar um réu que, mesmo culpado, pede clemência a seus julgadores.
Há, portanto, um alinhamento entre o que é dito verbalmente e aquilo que é expresso por meio do
não-verbal, demonstrando que a postura que o corpo assume mantém relação direta com a atividade
de fala e a situação social que abriga essa atividade (STEINBERG, 1988 apud TOSCANO, 2002).
Ronaldo figura nesse contexto como um culpado, mas que, contraditoriamente, também
não deixa de ser vítima. É culpado por ter buscado o programa com os travestis, e vítima por ter sido
alvo de extorsão dos travestis. O olhar baixo, de certa forma, confirma a insegurança do locutor que,
durante maior parte da conversação, não encara os olhos de seus ouvintes.
No fragmento 2, a entrevistadora, por meio da pergunta feita, parece estar atrás de um
melhor esclarecimento sobre o acontecido, pois as palavras do locutor no fragmento 1, permeadas de
hesitações e pouco objetivas, não foram suficientes para tanto. Ronaldo tem, portanto, a chance de
dar maior consistência à própria versão do acontecido, negando o testemunho do travesti Andréia,
segundo o qual, ele teria ciência de estar se envolvendo num programa com travestis. Entretanto,
mais uma vez isso é feito de forma pouco consistente. As hesitações novamente deixam perceber o
desconforto da situação para o entrevistado.
No fragmento 3, que se constitui como um dos pontos mais significativos da entrevista, o
locutor reforça a condição de sujeito arrependido de seus atos. Para fazer isso, Ronaldo abstém-se do
status de ‘Fenômeno’, assumindo que, tal como seus ouvintes, tem fraquezas, e por isso também erra
e se arrepende. É óbvio que, como seus ouvintes, também ele deseja o direito de ser perdoado.
Durante a conversação, Ronaldo também procura se autoafirmar como um sujeito
heterossexual, portanto, incapaz de se envolver com travestis. Trata de desmentir, tal como observado
no fragmento 2, a ideia de que, na noite do escândalo, sabia que estava diante de travestis e não de
mulheres. O fragmento 4 também tem como centro o mesmo tópico. Nele chamam atenção não só
a quantidade de hesitações, mas também os elementos que servem como seus referentes. Elas adiam
a enunciação de palavras como travesti, heterossexual e relação, que funcionam como termos-chave à
negação de uma identidade homossexual e à defesa de uma masculinidade pelo locutor.
Fragmento 4
Entrevistadora: e sabe por que que eu pergunto pra você Ronaldo porque a a o o travesti Andréia deu uma
entrevista contando que no iNIcio você não sabia que se tratava de um travesti mas depois quando foram
chamados os outros dois você sim já sabia que eram travestis é verda:de ou mentira?
Ronaldo: não eu nenhum momento soube: que era que era travesti eu sou completamente: heterossexual
e e:: e eu acho que isso num num tem dúvida... mas éh: isso pouco me importa também que ela fala
ou que deixa de falar importante é que... éh: éh o meu erro: criou um problema: muito grande né uma
repercussã:o mundial e que:... graças a Deus também os fatos éh:: e tudo o que eu que eu falei no meu
depoimento ( ) delegado Carlos éh: tá sendo investigado e tá sendo (comprovado)... isso: de alguma
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
maneira mínima éh... me conforta
Entrevistadora: Ronaldo você teve relação com os travestis?
Ronaldo: não num tive: éh::: relação... porque... na hora que eu percebi: que: num era o que eu buscava:..
eu tirei meu time de campo
No fragmento 5, Ronaldo se deixa cair na armadilha de suas próprias palavras. Tentando mostrarse como um sujeito dotado de razão e consciente de seus atos, em um lapso, acaba revelando que,
na noite do escândalo, havia consumido álcool, o que de certa forma fragiliza a afirmação de que
estava sóbrio. Estar sóbrio para locutor, neste contexto, significa ter a certitude de suas ações, e, por
consequência, ter a capacidade de relatar com maior exatidão os fatos.
Fragmento 5
Entrevistadora: você tava sóbrio aquele dia né?
Ronaldo: tava
Entrevistadora: estava estava
]
Ronaldo:
tava
]
Entrevistadora:
num tinha bebi::do...
Ronaldo: não
Entrevistadora: tava só/
]
Ronaldo:
eu tinha bebido um pouqui:nho depois do jogo do flamengo mas... nada que: que: me
tirasse né:.. a capacidade de de de... de raciocinar
No final da entrevista, o tópico, que antes se projetava para o escândalo do passado, volta-se
para as perspectivas profissionais do jogador, para as suas futuras atividades. É nesse momento que se
percebe o reaparecimento de um novo Ronaldo, que reassume a posição de ‘Fenômeno’. É bastante
visível a baixa incidência de hesitações em seu texto, proferido de uma maneira menos tensa e mais
à vontade. O sujeito projetado textualmente nada mais tem a ver com aquele que estava inseguro de
suas palavras, pois mais do que nunca ele se mostra dono de seu dizer.
Fragmento 6
Entrevistadora: então vamos falar de futuro aqui quais são os seus próximos passos? você pensa em voltar
pra Euro:pa ficar aqui no Brasi:l...
Ronaldo: meu contrato com o Milan acaba agora em junho... depois estarei livre... éh: pra negociar com
clu:bes e enfim mas eu não quero: negociar com clube sem saber a minha real condição física então até o
final da minha recuperação eu vou ficar focado só na na fisioterapia e: depois quando tiver bom e tiver
seguro de voltar a jogar... aí eu vou escolher meu caminho que acho que na minha cabeça já ta meio que
traçado
Entrevistadora: ah é e qual é o caminho? tem que contar pra gente
Ronaldo: ((risos)) bom é o meu grande sonho né mas enfim temos que... conversa:r mas isso muito mais
lá na frente e eu não tenho pressa eu acho eu tenho certeza que: as por/as portas do:... do Flamengo
podem estar abertas pra mim quando quando eu tiver bom
No mesmo fragmento, registra-se, ainda, a presença do riso, tanto na fala da entrevistadora
quanto na de Ronaldo, que aponta para um final de conversação mais espontâneo ou menos tenso.
Trata-se de uma estratégia não-verbal que parece aliviar a tensão e o desconforto vivenciados pelo
locutor ao longo da conversação.
7. Considerações finais
Esta pesquisa objetivou analisar o funcionamento do fenômeno da hesitação em uma entrevista
televisiva. Para tanto, admitiu-se este fenômeno não só como o indício de processamento de formas e
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
conteúdos pelo falante, mas também como fator que contribui à projeção da imagem do locutor no
texto. Considerando-se os trabalhos de Marcuschi (1999), (2006) e de Preti (2004), discutiram-se as
características gerais da hesitação, assim como suas implicações no andamento discursivo.
Na análise do corpus, apostou-se no pressuposto de que, em situações interacionais tensas, com
tópicos desconfortáveis para o locutor, há uma maior incidência de hesitações no texto conversacional.
Desse modo, a partir da observação do funcionamento da hesitação na entrevista, constatou-se a
projeção da imagem de um sujeito preocupado quanto ao que deveria falar e como deveria falar, já
que qualquer escolha lexical/sintática não adequada poderia ratificar a imagem negativa difundida
nacionalmente a partir do escândalo com os travestis.
A hesitação observada no corpus funciona, portanto, como indício do processo de busca
de palavras/construções adequadas à reconstrução de uma imagem pública favorável: sujeito
heterossexual, que como qualquer ser humano erra, se arrepende e também merece ser perdoado.
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1138
Volume 3
ORALIDADE E ESCRITA EM CONTEXTOS DIVERSOS
Paula de Carvalho FERREIRA1
(Universidade Federal do Piauí)
RESUMO: Este artigo tem por objetivo descrever e analisar os usos de oralidade e de escrita na escola e na
comunidade. O corpus é um recorte de uma dissertação de mestrado em desenvolvimento, e foi obtido a partir
de uma pesquisa etnográfica, por meio da técnica de observação participante. A pesquisa constatou que o
educando nas suas relações sociais, através de um exercício constante de usos da língua ou da linguagem expressa
emoções, pensamentos e dialoga com o seu semelhante, constituindo assim um processo sociointerativo e
comunicativo. Esses usos no contexto escolar restringem-se a atividades de escrita pautadas no exercício
mecânico da cópia ou de resposta do livro didático, como “verdades” prescritas para serem digeridas por quem
adentra aquele ambiente formal de ensino. O espaço reservado às atividades de oralidade é relegado ao plano
do silêncio, pois o professor em um gesto canônico suprime essa atividade enquanto gerada pelo aluno.
PALAVRA-CHAVE: Oralidade. Escrita. Usos. Escola. Comunidade.
ABSTRACT: This paper seeks for describing and analyzing the uses of speaking and writing inside the school
and in the community. The corpus is part of a Masters degree thesis under development and was obtained
through an ethnographic research with the use of the participant observation technique. The research found
that the student, within his general social relationships, expresses emotions, thoughts, and dialogues through a
constant usage of the tongue or the language as a communicative and socio-interactive process. Theses uses of
tongue and language in school are restricted to writing activities based on the mechanical exercise of copying
or answering the school book, as truths which were prescribed so that they can be digested for those who come
into the formal teaching environment. The room for speaking activities is suppressed by the silence which is
imposed through the teacher scanonic gesture of suppressing this activity from the student.
KEY WORDS: Speaking. Writing. Uses. School. Community.
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Federal do Piauí.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Oralidade e escrita é um tema bastante pesquisado, mas que ainda não se esgotou, nem
tampouco se pretende neste breve artigo atingir tal proeza. A verdade é que essa dicotomia constitui
as duas faces de uma língua, cujo funcionamento ocorre viabilizado pelas regras que as estruturam.
Por sua vez, quando se pensa a escrita a partir da fala, diz-se que a escrita é a representação da fala,
pensamento compartilhado inclusive pelo principal representante da Lingüística Moderna, Saussure
(1975, p.34) quando afirma que a “Língua e a escrita são dois sistemas de signos: a única razão de ser
do segundo é representar o primeiro”.
Contudo, se sabe que a escrita não comporta todos os recursos expressivos da oralidade. Então,
para se fazer representante da fala, a escrita tem que ter suas próprias estratégias, e mesmo assim, ainda
não consegue atingir tal pretensão. Pois um sistema de escrita não é uma mera transposição dos elementos
sonoros da língua, mas sim, um sistema que dispõe de regras previamente convencionadas, para tentar
grafar um som natural em um suporte viabilizador de escrita (MASSINI-CAGLIARI, 1997).
O presente artigo descreve e analisa os usos de oralidade e de escrita no contexto escolar e
comunitário. Os resultados apresentados, analisados e discutidos neste artigo são oriundos de uma
pesquisa desenvolvida na Unidade Escolar “Ambiental Quinze de Outubro” e na comunidade de fala
da Vila Risoleta Neves, no ano de 2008. Ambas localizadas na zona Norte da cidade de Teresina-PI.
Para atender aos objetivos propostos, o texto está estruturado em partes: a primeira parte
contém uma reflexão sobre oralidade e escrita enquanto, dicotomia e trata ainda do evento comunicativo;
na segunda verifica-se o conceito de escrita e de oralidade, apresentando-se em seguida, uma síntese
do tratamento aferido a essa relação bem como uma nova perspectiva de estudo que contempla os
aspetos sociais e lingüísticos, em contextos naturais de uso da língua na perspectiva Etnográfica;
na terceira parte são analisados e descritos os dados da pesquisa, e na quarta, são apresentadas as
conclusões do trabalho, além de algumas considerações finais sobre os usos de oralidade e de escrita
aqui analisados.
2. Considerações iniciais sobre oralidade e escrita
Definida previamente como uma oposição, a relação entre oralidade e escrita foi compreendida
até 1980 (MARCUSCHI, 2001), como dois sistemas distintos cujo resultado foi considerar a oralidade
inferior à escrita. Para isso, alegava-se dentre outros fatores que a oralidade é dependente do contexto
imediato de produção, enquanto a escrita possui certo grau de autonomia sobre este contexto.
Desse modo, a oralidade poderá sugerir uma aproximação entre os falantes, enquanto a
escrita, um distanciamento. Daí a oralidade exigir dos atores a presença face-a-face, o que é dispensado
na escrita, exigindo-se nesta, em contrapartida, mais precisão e autonomia para suprir os recursos
que a conversa presencial requer dos interlocutores, tal como o uso dos paralingüísticos: expressões
faciais, gestos e tonicidade da voz.
O contexto de usos da língua é uma possibilidade de investigação dos elementos lingüísticos
e nao-lingüísticos que a vertente dicotômica de estudo sobre essa relação não considera. Com
isso, surge a corrente que defende o continuum entre ambas, a qual não se prende somente aos
elementos constituintes de cada modalidade. Neste caso específico, a abordagem da oralidade e
da escrita destaca o papel dos sujeitos usuários dessas duas modalidades de uso da língua, sem
dissociá-las.
Considera-se assim a existência de um continuum, conforme proposto por Tannen (1982a
apud MARCUSCHI, 2001). Nesta perspectiva, o usuário da língua perpassa por ambientes diversos
de emprego da língua que variam desde uma saudação cordial a um amigo a uma entrevista formal de
emprego. A este respeito, assevera Marcuschi (2001, p.23), que se deve considerar “um continuum de
relações entre modalidades, gêneros textuais e contextos socioculturais” para que se possa questionar
o modelo dicotômico até então dominante.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Nesse sentido, o sujeito que participa de eventos tanto de oralidade como de escrita tende a
fazer uma adequação da linguagem que ora será informal, como por exemplo: a conversa entre amigos
em um jantar, e ora será formal, como a linguagem que se usa em uma assembléia da associação de
moradores de um bairro. Conforme se pode ler a seguir:
A linguagem diferente é empregada em situações diferentes, de modo que podemos dizer que uma língua
não é uma coisa uniforme [...] Toda a gente é multidialetal e multiestilística, no sentido de que adapta o seu
estilo de falar à situação social em que se encontra. É intuitivamente claro, por exemplo, que um rapaz não
fala da mesma maneira com os seus professores, com os seus pais, com a namorada ou com os amigos no
recreio. [...] (STUBBS, 1987, p. 51).
Os eventos comunicativos de oralidade e de escrita documentam os múltiplos estilos
lingüísticos, através dos quais os usuários de uma língua se comunicam. Esses eventos possuem
suas regras inerentes de organização, evidenciando conseqüentemente que a comunicação humana é
ritualizada a partir das regras e dos limites que os caracterizam. Veja-se o caso da conversa telefônica,
como é exemplificado no texto de Saville-Troike (1984), que é um tipo de diálogo cuja abertura se dá
pelo início do toque do aparelho físico. No nosso caso, pode-se acrescentar que durante a conversa,
há outras regras típicas de telefonemas como a expressão ‘alô, tá me ouvindo?’. E ao término da
comunicação, há o fechamento por meio das despedidas.
Devido aos limites e à organização estabelecidos nos eventos comunicativos, pode-se
observar os diferentes comportamentos dos falantes e as variedades de linguagem ou língua por eles
utilizados, os quais variam conforme varia o evento, seja ele já conhecido da comunidade ou que virá a
sê-lo. De acordo com Saville-Troike (1984, p.134), o “evento comunicativo é uma entidade limitada de
alguns tipos”, havendo indicação dessa limitação de tal sorte que se sabe quando se inicia e quando se
encerra um evento comunicativo. Dito isso, se vê que o evento comunicativo comporta os seguintes
componentes, que são:
Um gênero (piada, história, palestra, cumprimentos e conversas), o tópico, ou foco referencial, o propósito
ou função, ambos do evento em geral e em termos de objetivos interacionais dos indivíduos participantes,
o cenário, incluindo o local, hora do dia, estação do ano, e aspectos físicos da situação (ex: tamanho do
cômodo, organização da moradia), os participantes incluindo suas idades, sexo, etnia e classe social, ou outras
categorias relevantes e suas relações uma com a outra, a forma de mensagem incluindo canais vocais e não
vocais, e a natureza do código que é usado (por exemplo: que mensagem e que variedade), o conteúdo da
mensagem, ou a superfície que nivela as referencias denotativas. Sabe-se o que é comunicado, a seqüência de
atos ou ordenação de atos de discurso comunicativo incluindo revezamento ou sobreposição de fenômenos,
as regras de intenção ou que propriedades deveriam ser observadas e as normas de interpretação, incluindo
o conhecimento comum, as pressuposições culturais relevantes ou entendimentos compartilhados que
permitem inferências particulares para serem desenhadas sobre o que é para ser tomado literalmente ou
descontado (SAVILLE-TROIKE, 1984, p. 137).
O autor esclarece que nestes eventos há mudanças, principalmente nos turnos de fala. Logo,
é possível se perceber em um evento a oscilação dos tons de vozes, das variedades de linguagem,
dos papéis dos participantes, seguindo seu grau de importância no evento. Para tanto, em eventos
comunicativos, transmitem mensagens tanto pela forma verbal quanto pela não-verbal, empregam-se
códigos, a língua em suas modalidades oral e escrita.
Ao realizarem a comunicação não-verbal é fundamental a observação de fatores como o
silêncio e os fatores paralingüísticos, pois em uma situação como esta, o silêncio poderá ter algo a
dizer. Gestos como ficar de pé ou sentar-se podem também comunicar aspectos ritualizados dos
eventos, sobretudo dos religiosos.
No cenário dos eventos comunicativos, é importante destacar a mudança de papéis dos
participantes. Tais papéis não são fixos e junto com a sua dinamicidade tem-se a mudança dos
questionamentos, a qual segue às regras estabelecidas, conforme as ações a serem praticadas. Por
conseguinte, os participantes já conhecem a rotina do evento e sabem que, por exemplo, quando
o padre diz “oremos”, durante a celebração de uma missa, tal expressão requer deles, o ato de
levantar-se.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Nesse sentido, pode-se dizer que os limites ou regras de um evento são os indicadores
comportamentais dos falantes de uma língua e que estas regras ora abrem-no, ora fecham-no. Á
despeito disso, leia a citação de Saville-Troike:
Formal ritual events in a speech commnity have clearly defined boundaries than informal ones because
thee it a high degree of predictability in both verbal and non-verbal content of routines on each occasion
and they are frequently set off from events which precede and follow by changes in vocal rhyhm, pitch,
and intonation (SAVILLE-TROIKE, 1984, p.135-36).
Considerando que cotidianamente, os falantes de uma língua ao realizarem atividades
diversas, interagem ao mesmo tempo, através desses eventos comunicativos na forma oral e escrita,
convém que se conceitue, discutindo o que vem a ser cada uma dessas partes da língua.
2.1. Oralidade e escrita
Nos parágrafos que se seguem, serão tratados os conceitos de escrita e de oralidade bem
como do tratamento aferido à relação oralidade-escrita, além de relatar a abordagem etnográfica
nos estudos sociolingüísticos.
As sociedades que adotaram um sistema de escrita, antes de conhecê-lo, transmitiam e
comunicavam suas idéias, pensamentos e valores predominantemente pela modalidade oral da
língua. Porém, à medida que avançaram em suas formas de comercialização, sentiram a necessidade
de somar aos seus inventos, outro elemento cultural, no caso a técnica da escrita, o que lhes
possibilitou lançar um novo olhar sobre o mundo e suas relações com os seus semelhantes. Inclusive,
as transações comerciais de compra e venda passaram a ser controladas pelo registro escrito, assim
como o prolongamento das informações como um todo.
Dessa forma, assevera Cagliari (1989, p.112), que a “escrita seja ela qual for, sempre foi
uma maneira de representar a memória coletiva, religiosa, mágica, científica, política, artística e
cultural” de um povo”.
Do exposto pode-se conceituar a escrita conforme Martinet (1975, p.4), como sendo
“signos picturais ou gráficos correspondentes aos signos vocais da linguagem”, usados pelas
sociedades há bastante tempo. Enquanto Higounet (2003, p.9-11), compreende-a como algo além
de um instrumento, conforme se segue: a “escrita é mais que um instrumento. Mesmo emudecendo
a palavra, ela não apenas a guarda, ela realiza o pensamento que até então permanece em estado de
possibilidade”, embora o autor admita que a escrita é a possibilidade de materializar o pensamento,
esta consiste conforme suas palavras, no “estudo de uma técnica”.
Enquanto a escrita é um invento cultural inspirado, em alguns casos, na modalidade oral
da língua, esta última é uma maneira natural e primitiva usada pelo homem para se comunicar e,
segundo Marcuschi (2001, p.25-26), “manter-se integrado em processo de comunicação a partir das
produções diversas de textos orais e escritos”. Daí, ser a oralidade a forma inicial de se comunicar
idéias, pensamentos, identidades e valores de um grupo social, o que significa que, antes de ir à
escola apreender as habilidades de leitura e de escrita, o educando há tempo que interage oralmente,
no interior do grupo do qual faz parte.
Por ser um elemento cultural e ter surgido sob o controle de pessoas abastadas, a escrita
sempre tem um lugar de destaque nas sociedades que a adotam e serviu desde seu surgimento,
como um divisor de status social. A conseqüência disso é melhor entendida, quando se verifica a
dicotomia fala-escrita, em que à fala são atribuídos aspectos que a caracterizam quase sempre como
de estrutura menos complexas do que as estruturas da escrita.
A fim de se visualizar essas atividades com seus atributos ao longo do tempo, veja-se no
quadro a seguir, uma sinopse dos estudos sobre a relação oralidade e escrita, baseada nos estudos
do Prof. Marcuschi (2001).
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Quadro 1: Sinopse da relação oralidade e da escrita
Fonte: Arquivo pessoal.
A partir da construção desse quadro pode-se aferir que é através da concepção dicotômica
da língua que se tece as características peculiares à fala e à escrita, sem se admitir um vínculo entre
ambas. Neste sentido, há uma análise centrada no código e nos elementos lingüísticos, a qual deu
origem a primazia da escrita sobre a oralidade e também o estabelecimento de uma norma lingüística
única, onde se percebe a fala como o lugar do erro e a escrita como o bom uso da língua.
Por sua vez, a corrente culturalista dividiu os povos em civilizados e primitivos. Tal fato
ocorreu porque a forma de refletir sobre a língua consistiu em identificar as transformações das
sociedades usuárias ou não de um sistema de escrita.
Pensar a língua a partir dos seus aspectos variacionista é perceber que, em se tratando de usos
da língua, enquanto um conjunto de normas concorrentes, não há porque se mostrar as diferenças entre
as duas modalidades que a constituem, mas sim mostrar que, por meio da variação, uma das normas
lingüísticas estabelecer-se-á como padrão, uma vez, que todos elas não podem ocupar tal posto.
Os falantes de uma língua vivem em processo constates de comunicação e interação. Então, não
se pode dissociar da língua esse caráter dialógico, isto é, da linguagem compartilhada pelos atores engajados
em contextos comunicativos e sociointeracional, que concede à língua, um valor dinâmico, através do qual
a diversidade textual é produzida em co-autoria para que se extraia o discurso e o sentido.
Por fim, embora a escrita, ao longo de sua trajetória, tenha conseguido se sobrepor à fala,
esta sempre será uma forma de comunicação que não se deixa substituir por nenhuma espécie de
tecnologia. Logo, onde a modalidade escrita estiver, terá ao seu lado, a sua contraparte, a fala, a
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
oralidade. Neste caso, não se deve atribuir valor diferenciado a nenhuma delas, mas, antes, reconhecer
que ambas são formas de comunicação adequadas às circunstâncias reais de uso da língua.
Eis aí, o continuum entre a fala e a escrita, por exemplo, ao se tratar de uma conferência dirse-á que há ali uma modalidade oral da língua bem próxima da escrita. Em situação contrária, como
por exemplo, diante de um texto escrito, que pode ser uma carta pessoal ou um bilhete, tratar-se-á de
uma escrita bem próxima da fala (MARCUSCHI, 2001).
Haja vista se considerar agora o continuum entre as modalidades de uso da língua e
a compreensão que se teve da linguagem como interação, nos contextos reais de uso da língua, a
Etnografia é uma abordagem teórica que visa subsidiar os estudos desses usos bem como os cenários
de interação e comunicação entre os falantes da língua.
A Etnografia, enquanto instrumento de pesquisa lingüística, consiste conforme Erickson
(1988, p. 01), em “documentar e analisar aspectos específicos das práticas da fala” numa perspectiva
natural de uso da língua. Assim, a obtenção dos dados ocorre, via de regra, por meio da técnica
de observação participante in loco, em que o observador convive com a comunidade pesquisada.
Portanto, o trabalho necessita da confiança estabelecida entre ele e os sujeitos, de modo que, os dados
representem a realidade por eles vivida (cf. EZPELETA et al.1986).
A escolha desta metodologia deve-se à viabilidade da construção, conforme Rockwell et
al. (1986, p.35), “do processo teórico simultâneo à pesquisa empírica [...] que é importante para a
construção de novos objetos de conhecimentos”, a partir da documentação da realidade estudada,
bem como pela própria inserção do pesquisador na comunidade dos sujeitos, situação esta que melhor
lhe permite ver o seu objeto de estudo, a cultura, e os valores sociais do grupo em estudo, que se
complementam, conforme John Ogbu (1980, apud ROCKWEL et al. 1986, p. 43) com a “ecologiacultural” servindo para associar aos aspetos educacionais formais, os aspectos econômicos a partir da
“unidade adequada para um estudo etnográfico, o bairro”.
Nesse sentido, faz-se necessário um estudo centrado no foco do significado segundo a
perspectiva de Erickson (1988, p. 8), que admite “[...] identificar os significados, do ponto de vista dos
atores nos eventos observados.” Dessa forma, o referido autor diz que:
A etnografia está especialmente interessada naqueles aspectos do significado que não podem ser obtidos
diretamente de informações. Isto envolve usar a observação direta para gerar inferências em relação a
ações habituais, julgamentos e avaliações, em que estariam fora do julgamento consciente, tais como o uso
habitual de ironia ou indiretividade metafórica, ou inferências sobre julgamentos ou avaliações em relação
ao uso de vários dialetos ou registros em uma situação particular (ERICKSON, 1988, p. 8).
Então, a partir da compreensão de usos da língua em contexto natural de ocorrência, criouse a contraparte dos estudos dedicados à língua, enquanto forma abstrata e descontextualizada,
mostrando assim, que:
A unidade fundamental de observação é a situação, a cena do desempenho da fala em que o pesquisador deve
utilizar a observação participante ou o gravador para documentar um uso que ocorre naturalmente e então
verificar as influências sobre o significado social das escolhas estilísticas [...] (ERICKSON, 1988, p.9).
Daí a necessidade de se estudar as situações de interação verbal e não-verbal, onde os atores
tendem a obedecer às regras de estilização nos eventos de fala, tal como levantar um brinde, realizar
votos de casamento, e outros. (cf. ERICKSON, 1988). Assim, tais eventos são manifestações da
competência comunicativa do indivíduo que interage no interior de uma sociedade. A Etnografia,
na sociolingüística, tem por objetivo, segundo Erickson (1988, p.12), “identificar como se distribui
a competência comunicativa dentro de uma população pesquisada”. Corroborando com essa idéia,
Costa (1988), diz que: “[...] uma língua ou fala comporta não apenas aspectos exclusivamente
lingüísticos, mas também aspectos socioculturais de modo que língua e sociedade não estão numa
mera relação de causa e efeito de direção única, mas numa relação de mútua determinação [...]”
(COSTA, 1988, p.10).
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
O que leva Costa (1996), a entender que a sociolingüística à medida que constata, de forma
sistemática, a relação entre língua e sociedade no interior do contexto social dessas relações, ocupa-se
de investigar temas voltados para os dialetos, bilingüismo, multilingüismo, diglossia, variação lingüística,
atitude lingüística, de língua padrão, de identidade lingüística, de competência comunicativa, de eventos
comunicativos, de evento de escrita, de intenção verbal, de uso e valores da fala e da escrita.
3. Análise dos dados
A linguagem compreendida como uma atividade verbal está relacionada com as demais
atividades realizadas diariamente pelas pessoas, nos diversos lugares e no interior das relações sociais.
Ir ao banco, à igreja, ao mercado, à feira, ao botequim tomar uma dose de pinga com os amigos são
atividades sociais, que exigem dos falantes da língua, um conhecimento variado das modalidades
estilísticas, as quais são mediadas tanto pela oralidade como pela escrita, segundo as conformidades
das circunstâncias comunicativas.
Neste sentido, o presente corpus foi coletado em atividades de oralidade e de escrita nos
contextos escolar e comunitário, durante o processo de interação entre os sujeitos do universo
pesquisado. A seqüência para análise dos dados segue dois pontos a se considerar: a oralidade no
contexto escolar e comunitário e os usos de escrita nestes referidos contextos.
3.1. A oralidade no contexto escolar e comunitário
No primeiro ponto selecionado para análise: a oralidade no contexto escolar e comunitário
observou-se que no contexto escolar, a oralidade não constitui o ponto de partida para uma reflexão
consciente do educando. Isso se evidencia na fala da professora, conforme se lê a seguir, que se dirige
aos seus alunos em sala de aula, durante as atividades de aprendizagem de leitura e de escrita da
língua portuguesa: “Vocês têm toda liberdade para conversar, mas aqui dentro não... lá fora”. Porém,
na comunidade, a situação é diferente porque o grupo social vive em situação de comunicação e
interação. Assim é comum a conversa na porta de rua, na partida de futebol, nos templos religiosos,
como mostram os exemplos a seguir:
Exemplo1: conversa de porta de rua
Cunhada: – é dia de domingo? Ela faz é todo dia comida especial... essa daí....
Dona da casa: – hum ((risos))
Cunhada: – não tem dia marcado não... a compra dela é pesada.. de tudo...
Dona da casa: – no dia que me dá vontade... ó... no dia que me dá vontade... qu’eu gosto de cozinhar e faço
ligeiro demais...
Filho: – mãe... queimou o feijão...
Mãe: – queimou fie? Menino.. eu fui d’agorinha lá... deixa lá... depois eu vou ajeitar...
Nesse evento, o propósito da comunicação é a manutenção da integração social das pessoas
por meio de um diálogo informal. Neste caso, trata-se de um evento informal, cuja mensagem se dá
oralmente em tempo real e face-a-face. Os interlocutores estão discutindo sobre problemas familiares,
tipos de comidas, compras, local de moradia. O recorte acima descrito, registrou uma discussão sobre
comida em dias especiais, sendo que no cerne da discussão, o filho da proprietária da casa trouxe um
papeiro com feijão queimado, que havia sido deixado pela sua mãe no fogo.
Exemplo2: partida de futebol “A pelada”.
O exemplo 2 retrata uma partida de futebol, a famosa “pelada”. A pelada é realizada tanto por
adultos como por jovens e crianças na faixa etária dos 10 anos de idade. Neste tipo de interação, o grupo
mantém-se coeso em atividade de lazer. A forma de mensagem aqui empregada também é oral.
O recorte que se faz, contempla duas dessas peladas: uma de jovens, realizada na quadra da
própria comunidade, e outra, de adultos, realizada na quadra do Parque da Cidade, situado ao lado da
Vila Risoleta Neves.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Partida juvenil
Jogador jovem1 – foi mal, ô Marcos.
Jogador jovem2 - Quem foi?
Jogador jovem3 – Joga aqui pra trás.
Jogador jovem4 – Vou já
Jogador jovem2 – ei, tá doido?
Jogador jovem1 – vem pegar
Jogador jovem3 – aqui, Adriano.
Partida adulta
Jogador adulto1 – dexa... dexa...
Jogador adulto2 – pra ele... pra ele
Jogador adulto3 – ei... ei... ei pra cá
Jogador adulto4 – solta.. solta.. solta
Jogador adulto5 – caralho.. rapa
Espectador – mas rapa... não precisa... precisa... nem isso aí rapa
Jogado adulto6 – aqui.. ô.. aqui ô...
Espectador – ó que diaba... o é que ele quer segurar o Cascão... oia... ele de vez em quando segura o Cascão....
A pelada é realizada pelos membros da comunidade somente pelo prazer de brincar com
a bola e com os amigos, conforme afirma o organizador do evento “a maioria aqui são os meninos
da Risoleta... também aqui faz o complemento aqui da nossa pelada e também se não fosse eles não
teria o jogo”.
Os eventos mostrados nos exemplos 1 e 2, permitem aos usuários da língua portuguesa
falada, no Brasil, o emprego de uma linguagem informal, por se tratar de usos da oralidade em
contextos também informais, cuja finalidade é manter o grupo interagindo em meio ao seu convívio
social. Após a descrição e análise dos usos de oralidade, passa-se ao item seguinte que aborda os usos
da escrita na escola e na comunidade.
3.2. Os usos da escrita no contexto escolar e comunitário
Com base em Basso (1974), (Lima (1996, p. 126), ao observar eventos de escrita, constatou
que, a aula é um evento de escrita cuja mensagem se dá de forma oral e escrita, onde “O professor tem
o monopólio da fala. (...) O aluno só deve falar quando solicitado pelo professor. Não é permitido aos
alunos conversarem entre si. Devem copiar textos escritos do quadro de giz e dos livros-textos”.
Dessa forma, compreende-se que na escola, o educando faz uso de uma escrita canônica por
meio de exercícios repetitivos em que ele terá que copiá-la do quadro de acrílico ou do texto-lição,
como se exemplifica abaixo:
Exemplo1: Aula de língua portuguesa em uma turma de 7ª série da educação de jovens e adultos.
Tema: Estudo de texto “Ah! Que saudades que eu tenho.. da Aurora, da Ingred e da Curitiba
dos anos 70!”. A partir de certo número de 10 questões, a professora selecionou algumas, para serem
respondidas por escrito. Observem as questões retiradas do livro-texto e as respostas dos alunos:
Q1. Pode-se afirmar que o texto tem um tom confessional? Justifique sua resposta:
R. Sim, era uma época dos anos 70 que jovens tinham participação na política e no regime militar e faziam
movimentos estudantis.
Q2. O texto mostra que o autor fala de Curitiba de forma ufanista. Retire do texto um trecho que demonstre
tal afirmação.
R. Se em nosso peito bate um coração que ama, este coração jamais haverá de negar o amor a essa terra. Se
Curitiba não nos serviu de berço com certeza servirá de túmulo.
Q3. Retire do texto um trecho que comprove que o autor era um jovem participante ativo dos movimentos
políticos de sua época, citando o que era Regime Militar.
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
R.Tivemos o privilégio de pertencer a uma geração de jovens com intensa participação político-social.
Campeava o regime militar. (Informante E)
Para proceder com essa atividade de escrita, o aluno dispõe do livro-texto, lápis, caneta
esferográfica e de um caderno. Em seguida, de forma individual, passa a transcrever para seu caderno
tanto as perguntas como as respostas. À despeito desse tipo de atividade explana o texto a seguir:
A compreensão é considerada, na maioria dos casos, como uma simples e natural atividade de decodificação
de um conteúdo objetivamente inscrito no texto ou uma atividade de extração de conteúdos. (...) Os
exercícios de compreensão raramente levam a reflexões criticas sobre o texto e não permitem expansão ou
construção de sentido, o que sugere a noção de que compreender é apenas identificar conteúdos. Esquecese a ironia, a análise das intenções, a metáfora e outros aspectos relevantes nos processos de compreensão
(MARCUSCHI, 2000, p. 49).
No que diz respeito à metáfora, conforme sugere Marcuschi, percebe-se que no texto
proposto para estudo pela professora, os termos “Aurora” e “Ingrid” são referências às mulheres com
quem o “eu-poético” teria se envolvido em tempos de juventude. No entanto, não há na atividade
proposta, nenhum questionamento que leve o aluno a verificar tais pistas para o estabelecimento de
um sentido mais amplo ao texto. Em um paralelo que faz entre esses dois nomes femininos presentes
no título do texto-lição, há uma metáfora, em que comportamentos sociais são relatados, consoante
o que se lê a seguir:
[...] bons tempos e não tão bons costumes, em que cada universitário namorava uma Ingrid e possuía uma
Aurora. Ingrid, a donzela loura, casadoura, seios fartos e naturais, fogo contido vigidiadíssima pelos pais,
que permitiam o namoro no sofá da sala, nas quartas feira e sábados [...] A Aurora, em vaivém percorria a
Riachuelo e fazia o que Ingrid negava. Figura pequena, doce, sofrida e, eufemisticamente, diziam que tinha
vida fácil! (VENTURI, 2007, p.04).
Disso, depreende-se que o ensino de língua portuguesa centra-se consoante Landsmann
(2006, p.43), em “propriedades internas do sistema de escrita, seus conectores, sua sintaxe e sua
semântica enquanto sistema notacional”, enquanto as propriedades instrumentais que remetem ao
uso da escrita para atingir objetivos particulares, segundo a situação de uso nos quais são impressos
aspectos culturais, esses passam despercebidos na prática docente.
Exemplo2: Aula de língua portuguesa em uma turma de 3ª série da educação de jovens e adultos
Tema “Frase”. A sistematização desse assunto ocorreu de forma mecânica, onde primeiro
a professora registra-o no quadro de acrílico e simultaneamente, os alunos copiam-no, conforme se
demonstra a seguir em: ‘Atividade de português’:
Frase é a reunião de palavras com sentido completo. Observe: Que maravilha! Que belo dia! Esse tipo de
frase é chamado de palavra-frase.
Classificação da frase - as frases estão classificadas em:
Afirmativa: expressa uma afirmação.
Ex. Hoje, vou ao cinema.
Negativa: expressa uma negação.
Ex. Hoje, não vou ao cinema.
Exclamativa: expressa uma admiração, espanto, dor, susto.
Ex. Nossa, como você cresceu!
Interrogativa: expressa uma pergunta.
Ex. Como é o nome do seu filho?
Imperativa: expressa ordem, pedido.
Ex. Alice, leia este livro. Ex. feche a porta, por favor.
Na leitura que fez das frases escritas, a professora demonstrou pouco entusiasmo com a
entonação. Então, ela alerta: “Olhem, tem que ver a voz quando fala”. Durante toda a aula, o silêncio
imperou na sala, para dar lugar ao exercício da cópia.
Concluída a primeira parte da atividade, veio o feedback a seguir, que constitui resposta de
uma informante:
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1.Classifique as frases em afirmativa, negativa e imperativa:
a) Nina gosta de ir ao cinema. (afirmativa )
b) Não quero estudar aqui. (negativa)
c) Saia da frente do quadro, menina. (imperativa)
d) Cristina, você comprou o vestido?(Interrogativa)
e) Como você está elegante, Ana! (exclamativa)
f) Que dia é hoje? (interrogativa)
2.Sublinhe as palavras-frases
a) Tudo, ponto!
b) Para que ler este livro?
c) Que linda árvore!
d) Que cão lindo!
e) Que beleza!
3.Escreva uma frase:
a) Exclamativa (eu vou hoje a Festa!)
b) Interrogativa (será se eu vou sair amanhã?)
c) Imperativa (menino vai pegar aquela pra mim) (Informante A)
Em relação ao item 3 do exercício de feedback, como se observa a resposta acima, é de uma
aluna, que a professora não procurou tomar conhecimento. Vejamos o que essa aluna, doravante
denominada aluna A manifesta em sua resposta. Como está copiada acima, todas as frases são iniciadas
com letras minúsculas, constituindo segundo a norma padrão da língua, erro ortográfico, como o é
também a grafia da palavra Festa, com letra maiúscula no final da primeira frase.
O enunciado da frase (c) está incompleto, possivelmente por que seu sentido depende do
contexto de fala. Isso acontece provavelmente por negligência da professora, ou por esta aula não
se constituir no que se considera ensino de língua materna, enquanto um ponto de reflexão sobre
a língua, como demonstra a resposta (c). Nesta resposta, há no enunciado, um aspecto pragmático
intrínseco ao pronome dêitico (aquela), através do qual o interlocutor dirige o seu olhar para localizar
o objeto na realidade referida.
O item três foi escolhido para análise por ser, na atividade proposta pela professora,
uma escrita autêntica do aluno, conforme consta no enunciado do referido item. Sendo os demais
transcritos de um texto base.
Salvo o item 3 comentado acima, toda a atividade desenvolvida na aula, inclusive o exercício
teve seu conteúdo obtido pelo viés da cópia numa perspectiva tradicional dos estudos da língua
materna, centrada apenas em aspectos gramaticais, que são questionamentos feitos, conforme assevera
Travaglia (2001):
O ensino de gramática em nossas escolas tem sido primordialmente prescritivo, apegando-se a regras de
gramática normativa que, [...] são estabelecidas de acordo com a tradição literária clássica, da qual é retirada
a maioria dos exemplos. Tais regras e exemplos são repetidos anos a fio como formas “corretas” e “boas”
a serem imitadas na expressão do pensamento (TRAVAGLIA, 2001, p. 101).
Mediante as atividades de escrita (cópia) analisadas no curso deste texto, elas permitem
considerar que, o código escrito apreendido pelo educando na escola, não atende aos anseios dele,
junto as suas vivências de uso da escrita no seu grupo social, podendo inclusive ajudar a promover o
analfabetismo funcional, conforme pondera Ferreiro:
Iletrismo que é o novo nome dado a uma realidade muito simples: a escolaridade básica universal não
assegura a prática cotidiana da leitura, nem o gosto de ler, muito menos o prazer pela leitura [...] É claro
que estar “alfabetizado para continuar no circuito escolar” não garante estar alfabetizado para a vida cidadã.
As melhores pesquisas européias distinguem cuidadosamente parâmetros como: alfabetizado para rua,
alfabetizado para o jornal, alfabetizado para livros informativos, alfabetizados para a literatura (clássicos ou
contemporâneos), etc. a esta lista temos de agregar agora: alfabetizado para o computador e para a Internet
(FERREIRO, 2005, p. 16-17).
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Na comunidade, por seu turno, o uso que o educando faz da escrita, contempla uma função
maior de anseio do grupo social. Para tanto, o educando troca correspondência entre os membros do
grupo social do qual faz parte. A esse respeito, veja o depoimento a seguir:
... eu gostava MUITO é de escrever cartinha... assim quando eu comecei a namorar com ele ( ) eu fazia aquelas
cartas imendada ( ) eu comprava um caderno... rasgava .. tirava as folhas ficava imendano fazia aquelas cartas BEM
grandona de 2, 3 metro ( ) e eu não sei de onde... eu acho que tinha muito coisa errada ..mas foi uma coisa que
sempre gostei de fazer carta....ler .. eu acho que era tudo errado qu’eu já começava assim.. dizeno qu’eu gostava dele
.. as veis eu botava música na carta.. uma música que nesse tempo era do Revelação.. e eu botava muito... pegava na
televisão aí comprava um cd e botava e ficava ouvindo e escrevia pra ele.. minhas carta mais era com música.. eu
terminava dizeno qu’eu amava ele.. amava... amava .. do mei pro fim era só te amo... (Informante A. L).
Também, em suas atividades de comercialização, registra e controla o estoque de mercadorias,
faz anúncio de produtos e serviços em geral, e recebe informações diversas por meio da escrita,
sobretudo preces religiosas e meizinha. Os exemplos que se seguem mostram esse multiuso da escrita
pelos informantes dessa pesquisa, em seu contexto comunitário:
Exemplo3: Propósito da escrita, divulgar produtos e serviços
A falta de trabalho formal leva os informantes dessa pesquisa a criarem formas alternativas
de renda. Por conseguinte, o comércio é a atividade que mais se destaca. De forma precária, reservam
um lugar na própria residência, para comercializar produtos e serviços, conforme consta na figura 1:
Figura 1: Anúncio de produtos e serviços
Fonte: pesquisa direta.
Exemplo4: Propósito da escrita, prece religiosa
A religião predominante na comunidade de fala, é a católica. Para congregar vão aos domingos,
à noite, à igreja da própria vila. Nesse evento, têm às mãos, um livrinho de preces religiosas. Após
a celebração, levam-no consigo e geralmente colocam-no junto a algum símbolo cristão. A figura 2,
ilustra uma prece junto a um terço, na parede da casa.
Figura 2: Prece religiosa
Fonte: pesquisa direta.
1149
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Exemplo5: Propósito da escrita, carta pessoal
A carta pessoal, segundo depoimentos, vem sendo substituída pela tecnologia do telefone, mas, ainda
assim, um ou outro informante pratica esse tipo de escrita. Na figura 3 podemos visualizar uma carta pessoal.
Figura 3: Carta Pessoal
Fonte: pesquisa direta.
Na figura acima, a autora expressa seus sonhos para o futuro. Na verdade, essa carta é um desabafo
pessoal, em que a autora expressa seus desejos por uma vida melhor.
1150
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
4. Considerações finais
A partir da análise sobre os usos de oralidade e de escrita compreende-se que um grupo
social possui a seu dispor as duas modalidades da língua, variando conforme o contexto de emprego
de ambas. Todavia, a maior liberdade de expressão oral ainda predomina fora do contexto escolar,
possivelmente porque, a escola não procura sistematizar o estudo da oralidade para a compreensão
da escrita. Sendo comum, o fato de o professor priorizar esta última, via de regra, pelo simples ato
de pôr o educando para copiá-la do quadro de acrílico ou do livro didático, sem a sua contraparte,
a oralidade. Disso infere-se que a influência da dicotomia oralidade e escrita, ainda encontra lugar
central no contexto escolar, uma vez que fora ela o divisor inicial entre essas modalidades, de modo
que, à oralidade é atribuída e/ou reconhecida como o lugar do erro, já que a escrita é considerada o
bom uso da língua.
Nesse sentido, a escrita que a escola propõe-se a ensinar ao educando, tende a não atingir aos
seus anseios de comunicação e de interação social, além disso, rompe com alguns objetivos propostos
nos Parâmetros Curriculares Nacionais, tais como: expansão do uso da linguagem em instâncias
privadas, utilização dos diferentes registros, inclusive os mais formais, conhecimento e respeito das
diferentes variedades lingüísticas do português falado, entre outros.
Deixando de cumprir esses objetivos, a escola permite que o educando saia do contexto
escolar sem refletir sobre as várias formas de emprego da língua, conforme esperado na sua atuação
na esfera social, na qual desenvolve atividades diversas, utilizando, sobretudo, a linguagem oral e escrita
para tal fim. Nesse sentido, o aluno não toma conhecimento e muito menos vivencia atividades como
o seminário, o debate, a palestra, a conversa informal, entre outros considerados como atividades
características da escola, através das quais, sistematizaria a oralidade como ponto de partida para o
estudo crítico dos elementos intercambiáveis entre oralidade e escrita.
A contraface disso está em seu dia-a-dia, pois ao realizar atividades diversas, o educando
pratica em sua comunidade, no interior do seu grupo social, os usos das atividades da língua oral e
escrita. Usos estes que passam negligenciados pela escola, que prefere resumir o aprendizado das
atividades de leitura e de escrita em um constante exercício de cópia, conforme depõe a informante:
“... a não ser as cópias no colégio que a professora passa né... ela trabalha muito com escrita... a
professora de português... ela gosta muito de passar muitas coisas sobre.. sobre o texto e aí às vezes ela
manda a gente copiar várias coisas .. aí vai ficando cada vez melhor a escrita...”. Dessa forma, a escola
deixa de sistematizar os aspectos da oralidade imbricados na escrita e vice-versa, os quais ajudariam
na conscientização do educando sobre os valores sociais das práticas de oralidades e das práticas de
escrita sem privilegiar a nenhuma dessas modalidades no seu processo de ensino-aprendizado.
Portanto, o que se constata na escola, é uma concepção de escrita divulgada pelos manuais
didáticos, de onde o aluno extrai freqüentemente respostas prontas. Assim, o educando não terá a
linguagem empregada durante uma partida de futebol como objeto de reflexão em que ele possa
avaliar os tipos de expressões empregadas naquela situação. Já em relação à escrita que pratica em sua
comunidade, não a terá como algo reconhecido pela escola, porque tem arraigada a idéia de que a
verdadeira escrita é aquela ensinada na e pela escola.
Dessa forma, constata-se que os usos de escrita escolar são desvinculados dos aspectos
sociais trazidos pelo aluno para a sala de aula. Conseqüentemente a dinâmica da língua não está sendo
considerada no processo de ensino-aprendizagem das atividades de leitura e de escrita. É importante
ressaltar a ausência de um espaço para construção das atividades lingüísticas numa perspectiva dialógica,
entre professor e aluno, enfim em toda a comunidade escolar. Vale destacar que, na distribuição dos
papéis sociais, na escola, a linguagem ocorre de forma assimétrica, onde aquele que possui o poder
de autoridade, é quem fala, no caso, o professor, e o aluno, por sua vez, só escuta, reproduz, portanto
copia. Nesse sentido é muito elucidativa a afirmação de Gnerre (1985, p.16), quando declara que “[...]
a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder.”
1151
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
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1152
Volume 3
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA:
A PALAVRA E O POETA
Paula Cristhiane da Silva OLIVEIRA
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: O presente trabalho visa mostrar a relação íntima entre poeta e palavra. Esta relação será analisada
a partir das composições de Chico Buarque de Hollanda. Buscando, também, mostrar a habilidade que este
musicista tem ao lidar com elas, fazendo destas a principal matériaprima de seu trabalho. A palavra torna-se
nas canções de Chico material poético e a extensão de seu ser que busca materializar seus ideais políticos,
filosóficos e amorosos. Pois, esta é a sua arma e o seu escudo de luta, principalmente no período da Ditadura
Militar, época de repressão e censura. Neste período a palavra transforma-se em instrumento de resistência.
Dentro da poética de Chico a palavra assume um papel importante, ela é carregada de força e de sentido. Chico
faz desta relação uma atitude política.
PALAVRAS-CHAVE: Palavra; poeta; música; política; sociedade.
ABSTRACT: The present work aims at to show to the close relation between poet and word. This relation
will be analyzed from the compositions of Chico Buarque de Hollanda. Searching, also, to show the ability that
this amateur musician has when dealing with them, making of these main raw material of its work. The word
becomes in the songs of poetical material Chico and the extension of its being that it searchs to materialize its
ideals politicians, philosophical and loving. Therefore, this is its weapon and its shield of fight, mainly in the
period of the Military dictatorship, time of repression and censorship. Into this period the word is changedded
into resistance instrument. Inside of poetical of Chico the word it assumes an important role, it she is loaded
of force and direction. Chico makes of this relation an attitude politics.
KEY WORDS: Work; poet; music; politician; society.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
1. Introdução
Este artigo tem por finalidade servir como fonte de estudos para aqueles que se interessam
por música, poesia e por Chico Buarque de Hollanda. E mostra a relação de Chico com a palavra e a
importância deste artista no cenário nacional das três décadas de ditadura. O presente trabalho.
Cabe neste momento justificar a escolha de Chico Buarque de Hollanda como fonte de
análise desta pesquisa, tal escolha deve-se, primeiramente, ao de fato de ser um dos maiores nomes
do cenário artístico de nosso país, destacando-se na música popular e também literariamente (embora
nenhuma análise será realizada sobre a produção literária de Chico). É importante observar que certas
apreciações referentes às canções lhe aproximam muito da poesia, devido à maestria e cuidado com
que foram compostas.
Portanto, este trabalho objetiva analisar a produção musical de Chico Buarque registrando
e reconhecendo tais obras como elementos artísticos, poéticos, políticos e ideológicos. Bem como
reconhecer o caráter contestatório e de interação social que a música pode assumir, identificando as
múltiplas utilidades que as composições desempenham nas práticas sociais e na tradição cultural de
uma nação.
2. Palavra e poeta
A palavra é a arma que o poeta possui para expressar de modo particular seu olhar sensível
diante das inquietações do seu eu diante do mundo. A palavra é para o poeta o seu instrumento de
resistência. A sua razão de ser, é por ela que o poeta tece o seu estado de espírito. E, neste sentido,
Frei Betto define Chico como palavra:
Chico é todo ele palavra. Esse é o seu reino, a sua matria, a razão de seu viver. Por isso a preserva tanto.
Conhece o seu valor e cuida de não desperdiçá-la. Nele também o verbo se faz carne, e música, e texto e
protesto. Por isso, preza tanto o espaço que o abriga: o silêncio, onde aprendeu com os monges a lapidar
significantes e significados. (FERNANDES, 2004, p.53)
Chico faz da palavra a extensão do seu eu, é ela que materializa o espírito sofrido, insatisfeito,
questionador ou incontrolavelmente feliz do poeta. A palavra eterniza o poeta e é por ela que se
rompe o silêncio. Poeta e palavra se fundem como mesma substância de uma arte que é capaz de dar
cores, formas, odores e vida aos nossos sentimentos ou a nossa capacidade de criar. A relação entre a
palavra e Chico é definida por Júlio C. Valadão Diniz:
A palavra, matéria de sua prima criação como poeta, toma a forma de flecha, aguda arma de grave
consistência, que, lançada pela voz como arco. Ilumina com força e suavidade o mundo lírico e dramático
de sua arte. A palavra do artífice funciona como uma estética da ética de seu criador [...]. (FERNANDES,
2004, p.263).
O poeta não existe sem palavra. A palavra é a essência de sua obra. Os versos são a matéria
final do seu labor criativo. Chico tem consciência do que a palavra representa para ele, tanto que
compôs uma canção intitulada “Uma palavra” na qual vai definindo as potencialidades e a sua relação
com o mundo real.
Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
Esta canção exemplifica a força que a palavra possui e o que representa para o poeta, ela é
tudo, está crua, vem antes do entendimento. Uma palavra que comporta o eu do poeta, que engendra
a grandeza da vida, que é a matéria-prima da obra poética, pode ser dócil ou agressiva, pode está no
silêncio ou no barulho, permeia o coração do pensamento, tem inúmeras feições que variam de acordo
com a moldura que a suporta (verso/prosa). Sobre esta canção Valadão faz o seguinte comentário:
1154
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Uma palavra conduz a voz que se cala de um poeta já mudo, que se confessa sujeito e objeto da escrita, seu
criador e sua criatura, escrevendo e sendo escrito. Essa voz dominada pela letra refugia-se na serenidade de
sua interpretação da canção e permite que a força da enunciação verbal a substitua no centro do palco. A
música é concebida num movimento cadenciado, de poucas alternações, repousada numa linha melódica
suave e retraída na contenção dos acordes. (FERNANDES, 2004, p.265)
Outra canção que também estabelece a relação do poeta com a palavra é “A voz do dono e
o dono da voz”, composta em 1981, na qual o compositor estabelece a difícil relação do músico com
as gravadoras. Temos a oposição entre o criador, que vira criatura após atrelar-se a uma gravadora e
aos produtores musicais. Diante desta situação quem é o dono da voz? Será que a voz pode ter outro
dono que não seja o seu criador? Será que é possível uma gravadora capturar a voz de um artista e
silenciá-la se assim o desejar?
Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e paz, contras e prós
...
E o dono foi perdendo a linha – que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém.
As gravadoras têm grande influência sobre o cantor, tanto que nosso poeta usa a palavra
para denunciar esse algoz cruel, Chico faz do seu instrumento de trabalho o seu órgão de defesa, os
dois últimos versos mostram a sua rebeldia (Minha voz, se vós não sereis minha / Vós não sereis de
mais ninguém) é categórico ao afirmar que a voz lhe pertence e que não será de mais ninguém. A voz
e o dono são um casal que compartilham os bons e maus momentos, a entrega de um para o outro é
tão intensa que não podem pertencer a mais ninguém.
A poética é construída a partir das experiências circunstanciais das quais o poeta não
pode separar-se. O poeta está inserido num período histórico-cultural, perpassa as transformações
temporais e sociais, essa experiência pessoal estabelece a relação que o poeta tem com mundo e
constrói as concepções políticas, humanas e religiosas que farão parte de sua poética. É por essa
experiência factual que percebemos na poética de Chico a palavra como instrumento de rebeldia e de
denúncia diante das mazelas sociais.
É pela palavra que o poeta transubstancia o seu estado de espírito em poesia. É por ela que
o poeta profetiza o futuro, que revive o passado, que canto os amores, que chora o presente e que
sonha com o futuro. A palavra é o instrumento mediador entre o poeta e a sociedade, é por ela que
se estabelecem as relações sociais, que o homem vive civilizadamente. É por ela que Chico desvela a
realidade e rompe o silêncio.
Chico é um artista das palavras, são elas que constituem seu mundo, um espaço construído
por símbolos que representam os sentimentos, as frustrações, as esperanças. Os poetas nomeiam o
mundo e os sentimentos, eles conseguem dizer o que pensamos e sentimos, lançam um olhar sobre a
realidade e vêem o que não vemos, são sensíveis e apreendem do mundo as mais íntimas impressões
transpondo-as para a superfície do papel: “[...] o poeta fornece a possibilidade de expressão simbólica
as percepções, afetos e sentimentos não formulados e confusamente vividos; faculta a possibilidade
de uma tradução desse mundo desarticulado em palavra, ofertando-nos o acesso ao mundo do
simbólico.” (MENEZES, 2002, p.241).
3. Música, poesia e política
A música e a poesia têm a capacidade de trazer a possibilidade utópica de transformação política
e social, esta competência posiciona os dois estilos no campo do engajamento e da transformação
como instrumento de mudança, sempre imbuída da temática lírico-amorosa, tornando-se porta-voz
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
de uma consciência política e preocupada com os acontecimentos sociais. É o poeta que materializa
os anseios dos cidadãos, ele é o dono da palavra portadora de indignação, de sofrimento, de amor, de
paixão, de esperança, de coragem, enfim dos sentimentos humanos que norteiam a vida.
Sendo o poeta dono da palavra e portador de consciência questionadora, ele faz da sua arte
a extensão do seu eu. Exteriorizando o seu discurso político e engajado. Exerce simultaneamente
uma função lírica e politizada por meio das canções de protesto, é o que Chico faz na canção “Agora
falando sério”:
Agora falando sério
Eu queria não cantar
A cantiga bonita
Que se acredita
Que o mal espanta
Dou um chute no lirismo
Um pega no cachorro
E um tiro no sabiá
Dou um fora no violino
Faço a mala e corro
Pra não ver a banda passar
...
Agora falando sério
Eu queria não cantar
Falando sério
Agora falando sério
Preferia não falar
Falando sério
Esta canção refaz a trajetória de Chico, na qual assinala o fim da fase de bom moço: cantar
as coisas belas e ter lirismo ingênuo. Estes sentimentos são abandonados, refugiando-se do engano
e do desencanto para o silêncio. Deste silêncio surge uma radicalização da imagem do intelectual de
resistência. A partir da reconstrução da imagem do poeta, há um deslocamento das composições
para um lirismo autêntico. Autenticidade que o leva a “falar sério” a tratar da problemática que acedia
o homem. O poeta faz da palavra o seu instrumento de luta contra a opressão e a censura que
corporifica em malandros, prostitutas, marginalizados, pivetes, operários e poetas delirantes a imagem
das vítimas do sistema político-econômico.
Chico não é apenas o portador da voz mediadora das insatisfações sociais e das reivindicações
políticas que perpassaram as décadas de 60 e 70, mas é também referência de habilidade técnica
e refinamento estético, é símbolo do paradigma músico/letrista. Chega as décadas de 80 e 90
transformado em clássico pelos ouvintes e pela crítica. Chico é todo palavra e musicalidade, sobre
esta relação ele próprio afirma: “Com a maioria das músicas que eu faço, eu faço letra e música juntas.
Nunca uma música pronta, nunca uma letra pronta, para ser depois completadas. É um momento
uma criação só. Mesmo que depois eu vá acertar as pontas, todas elas nascem com letra e música
juntas.” (SANT’ANNA, 2004, p. 2004).
A música popular brasileira passou a ser o campo de tensão de intérpretes e autores que
usavam a palavra como meio de participação política. É neste cenário que Chico ganha sentido e
importância, sua obra sintetiza o imaginário popular, não por ser popular, mas por compreender
o Brasil/brasileiro. Afonso Romano de Sant’Anna o compara a Carlos Drummond de Andrade,
dizendo que ambos têm a essência romântica. Romantismo que se caracteriza pela espontaneidade
e pela sensibilidade do homem brasileiro: “[Chico] Síntese do que se passa na música brasileira
atual, síntese do que ocorre no inconsciente, na alma do brasileiro hoje: desencanto/esperança.”
(2004, p. 163)
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
4. A palavra profética
Adélia Bezerra de Menezes (2002, p. 124) chama Chico de profeta embriagado, em
sentido bíblico “aquele que denuncia, que contesta o poder, apontando as injustiças”. O profeta
não é aquele que somente anuncia o futuro, é também aquele que denuncia o presente. A voz do
poeta revela a crueldade do presente. Um presente que se confronta com o passado, trazendo um
sentimentalismo nostálgico que se apodera do poeta: saudades do passado que parecia belo e medo
do presente que se apresenta terrível na proporção que perdemos o domínio de nossa vida para
“roda viva” (Cf. AGUIAR, 1993, p.41). Uma das canções que exemplifica a postura profética do
poeta é “O que será”:
O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estam falando alto pelos botecos
Que gritam nos mercados, que com certeza
Está na natureza, será que será
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho
Esta canção procura dá voz aos marginalizados. Evoca das sombras para a luz a face dos que
não tem direito ao sol. A canção traz um questionamento sobre o que há no pensamento dos párias de
nossa sociedade, sobre o futuro desconhecido aos amantes, aos poetas delirantes, aos bandidos, aos
infelizes. O poeta/profeta coloca-se ao lado dos desfavorecidos, que não tem tamanho, sentido, nem
juízo. É com espírito profético que interpretamos a letra desta música e abstraímos questionamentos
que perfazem os espíritos insatisfeitos com sua situação e sentem-se inseguros diante do futuro
estranho que lhes é apresentado.
A postura profética de Chico é mais intensamente concretizada por meio da posição
de denunciador que assume na canção “Apesar de você” na qual toma a palavra como meio de
delatar os abusos de poder do regime militar. Esta palavra precisa de outro que a ouça com a
finalidade de persuadi-lo. A relação íntima entre o poeta e a palavra se caracteriza pela junção
destes dois elementos: um não existe sem o outro. Todos possuem a palavra, mas o poeta faz dela
a extensão do seu eu. A palavra age sobre o leitor, é carregada de ideologias que mantêm interrelação entre emissor e receptor, utilizando o signo lingüístico como meio de modificar o outro.
Este é o propósito de Chico ao se apropriar das palavras para expressar os versos: “Quando chegar
o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro” nos quais declara claramente
a sua indignação frente aos desmandos do governo, denunciando as injustiças e corajosamente
desafiando os algozes sociais e profetizando atitudes contraditórias e vingativas: “Vou cobrar com
juros, juro”.
O poeta utiliza a palavra como forma de expressar indignação, tristeza, medo, injustiça, mas
é usada também para demonstra felicidade: “Você vai ter que ver / Amanhã renascer / E esbanjar
poesia”. Poesia aqui tem sentido de beleza, de pureza, de prazer, de liberdade. Mesmo que esta felicidade
seja a esperança de um futuro próximo ou uma promessa que apenas anime os espíritos. O poeta
necessita da palavra, ela é sua riqueza, seu bem maior. Assim, o mundo do poeta é constituído por
palavras que encontram no poeta a combinação perfeita e harmônica capaz de construir um mundo
imaginário que ganha proporções do mundo real na fantasia humana da qual todo ser necessita para
apaziguar os conflitos internos.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
5. O poder das palavras e a sua função social
A palavra vincula a dinâmica social entre os indivíduos, as palavras vinculam as ações
humanas. Assim, toda relação que o indivíduo/sujeito tem com outro indivíduo/sujeito passará
forçosamente pela palavra. E munido desta arma o poeta torna-se um ser dotado de poder, capaz de
transformar e interagir com o mundo que o cerca e com os seres que se apropriam de suas palavras.
A palavra constitui a própria interação social, é por meio dela que abstraímos o sentido da vida que
nos remete para nossas ações ou para nossa inércia. O poeta forma e é formado por palavras que
adquirem proporções reais, sintetizam os valores e representam as imagens humanas.
As relações sociais se estabelecem por meio de palavras, pois o homem é um ser social
que necessita destas para instituírem as relações que norteiam a civilização. A palavra é um elo de
ligação entre os homens. Desta forma, seu uso é indispensável para realizar as mobilizações sociais e
promover as participações políticas que visem o bem comum:
[...] o ser humano não e apenas um animal que vive, é também um animal que convive, ou seja, a ser humano
sente a necessidade de viver mas ao mesmo tempo sente também a necessidade de viver junto com outros
seres humanos. E como essa convivência cria sempre a possibilidade de conflitos é preciso encontrar uma
forma de organização social que torne menos graves os conflitos e que solucione as divergências, de modo
que fique assegurado o respeito à individualidade de cada um. (DALLARI, 1984, p. 16)
Os seres humanos possuem a mesma natureza, por isso deveriam usufruir dos mesmos
direitos, entretanto, a sociedade é dividida em classes e as decisões sobre o que acontece com a
sociedade fica restrita a uma pequena parcela que detém grande concentração de riquezas e possuem
a eloqüência como arma de manipulação sobre a população carente que desconhece seus direitos e
seus deveres. É por esta situação que possuir a palavra não é apenas saber usá-las adequadamente,
mas utilizá-la com função social, fazendo valer o direito de ouvir e ser ouvido com a finalidade de
promover igualdade social.
Os poetas, que a partir da década de 60, envolveram-se com a causa social conscientes da
capacidade de decisão que todo homem possui, passaram a retratar de temas sociais, as composições
poéticas não tratavam só das inquietações pessoais dos poetas correlação ao mundo, mas do homem
como parte de um todo, que tem a competência de influenciar socialmente, já que está inserido dentro
da sociedade e toda decisão tomada neste ambiente exerce alguma conseqüência sobre todos.
Cada indivíduo sofre influência da sociedade em que vive mas, ao mesmo tempo, exerce alguma influência
sobre ela. O simples fato de existir, ocupando um espaço, sendo visto ou ouvido [...]. Por isso, todos
os problemas relacionados a convivência social são problemas da coletividade e as soluções devem ser
buscadas em conjunto, levando em conta os interesses de toda a sociedade. (DALLARI, 1984, p. 21)
Levando-se em conta o papel do homem na sociedade, não se pode aceitar que decisões
que comprometem a vida de todos sejam tomadas por poucos. Cabe a todo cidadão tomar para
si sua responsabilidade como membro da comunidade e participar da vida coletiva, respeitando as
necessidades individuais e coletivas. É imbuído desta consciência que o poeta toma a palavra e faz
dela sua arma para defender os interesses da população que são iludidos por discursos carregados de
ideologias elitistas camufladas por palavras rebuscadas ou pela pressão psicológica.
É tomando para si a postura de cidadão e membro da comunidade que Chico usa
sua arte como meio de atuar socialmente nas decisões que afligem o povo. Tal atitude o torna
um poeta social que utiliza a palavra para desenhar melodicamente a sociedade, extraindo das
palavras a sonoridade e a expressividade que cada uma possui e que combinadas compõe canções
poéticas. Em “Cálice”, de 1973, há o jogo verbal construído a partir do substantivo “cálice” que
se assemelha a forma verbal imperativa “cale-se” e que analisadas sob óticas diferentes podem
expressar informações distintas. Porém, na canção o caráter contestador do poeta é óbvio em
todos os versos:
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
1158
(refrão)
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue.
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta.
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.
Como e difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lança rum grito desumano
Que e uma maneira de ser escutado.
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momenta
Ver emergir o monstro da lagoa.
No refrão, o verso “Pai, afasta de mim este cálice” pode ser entendido como o desejo do
poeta em não participar do sofrimento de seus confrades ou pode ser interpretado como a vontade
de afastar de si aqueles que aspiram seu silêncio. Para o poeta tragar a dor, engolir a labuta, acordar
calado são formas de demonstrar a repressão contra a liberdade individual de manifestar a opinião
sobre aquilo que nos incomoda. A canção é exemplo de uso da palavra como forma de participar
socialmente, seja artística ou legalmente este é um direito garantido a todos e do qual o poeta faz uso,
assegurando seu dever de cidadão e de poeta social que tece a palavra a favor de sua liberdade de
expressão.
6. Conclusão
Para concluir este trabalho é importante fazer uma última reflexão em torno dos objetivos
traçados no início desta pesquisa e seu desenvolvimento, ressaltando os aspectos mais importantes
referentes à obra de Chico.
Inicialmente a proposta que compunha a elaboração deste trabalho era verificar as
características e as relações pertinentes as letras das músicas de Chico Buarque enfatizando o caráter
social e político que a música adquire na vida dos homens, podendo ser usada como fonte de
informação histórica e ideológica e como instrumento de formação de cidadãos conscientes e ativos
de sua sociedade por meio de poesias cantadas que revelam as múltiplas utilidades que podem exercer
nas práticas sociais. Para isto, traçou-se a relação do poeta com a palavra, examinando a importância
desta na sociedade e para o poeta.
A investigação da relação entre música e função social deteve-se em relacionar o desempenho
comunitário que as canções podem executar assumindo um compromisso social e político. Vimos
que Chico é um importante letrista e músico, sua habilidade com a palavra lhe deu o título de poeta
popular. E por fazer da palavra um utensílio de cunho político-cultural, foi definido como poeta
social. Também foi adjetivado por artesão da linguagem, por causa do jogo vocabular e sonoro que
em suas mãos adquirem formas e imagens a partir dos signos lingüísticos.
Para consolidar a proposta inicial constatamos a relação íntima de Chico com as palavras que
com ele ganham a dimensão poética, social, utópica e saudosista. A palavra pertence ao poeta, ele faz
dela a extensão do seu eu. Utiliza sua matéria (sonora/escrita) para perpetuar sua existência e como
forma de imortalizar-se, podendo vencer os obstáculos do tempo e do espaço.
1159
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Referências
AGUIAR, Joaquim. A poesia da canção. São Paulo: Editora Scipione, 1993.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. São Paulo: Abril Cultural / Brasiliense, 1984.
FERNANDES, Rinaldo de (org.). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção
de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
MENEZES, Adélia Bezerra. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. 3ª Ed. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2002
SANT’ANNA, Afonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. 4ª Ed. São Paulo:
Editora Landmark, 2004.
Anexo
AGORA FALANDO SÉRIO
Chico Buarque - 1969
Agora falando sério
Eu queria não cantar
A cantiga bonita
Que se acredita
Que o mal espanta
Dou um chute no lirismo
Um pega no cachorro
E um tiro no sabiá
Dou um fora no violino
Faço a mala e carro
Pra não ver banda passar
Agora falando sério
Eu queria não mentir
Não queria enganar
Driblar, iludir
Tanto desencanto
E você que está me ouvindo
Quer saber o que está havendo
Com as flores do meu quintal?
O amor-perfeito, traindo
A sempre-viva, morrendo
E a rosa, cheirando mal
Agora falando sério
Preferia não falar
Nada que distraísse
O sana difícil
Como acalanto
Eu quero fazer silêncio
Um silêncio tão doente
Do vizinho reclamar
E chamar polícia e médico
E a síndico do meu prédio
Pedindo para eu cantar
Agora falando sério
Eu queria não cantar
Falando sério
1160
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
CÁLICE
Gilberto Gil & Chico Buarque – 1973
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta forca bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momenta
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como e difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
A Voz do Dono e o Dono da Voz
Chico Buarque - 1981
Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casal igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e paz, contras e prós
Fizeram bodas de ace......tato de fato
Assim como os nossos avós
O dono prensa a voz, a voz resulta um prato
Que gira para todos nós
O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deu ao dono os dentes
Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus só deu seu dó
1161
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Porém a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes
Enfim a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar, queria ser um prato
Girar e se esquecer, veloz
Foi revelada na assembléia-atéia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel, trocando de traquéia
E o dono foi perdendo a voz
E o dono foi perdendo a linha que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém
O QUE SERÁ (A FLOR DA TERRA)
Chico Buarque - 1976
O que será, que será?
Que andam suspirando pelas alcovas?
Que andam sussurrando em versos e trovas?
Que andam combinando no bréu das tocas?
Que anda nas cabeças, anda nas bocas?
Que andam acendendo velas nos becos?
Que estão falando alto pelos botecos?
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza.
Será, que será.
O que não certeza, nem nunca terá?
O que não tem conserto, nem nunca terá?
O que não tem tamanho?
O que será, que será?
Que vive nas idéias desses amantes?
Que cantam os poetas mais delirantes?
Que juram os profetas embriagados?
Está na romaria dos mutilados?
Está na fantasia dos infelizes?
Está no dia a dia das meretrizes?
No plano dos bandidos, dos desvalidos?
Em todos os sentidos.
Será, que será.
O que não tem decência, nem nunca terá?
O que não tem censura, nem nunca terá?
O que não faz sentido?
O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar?
Por que todos os risos vão desafiar?
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Por que todos os sinos irão repicar?
Por que todos os hinos irão consagrar?
E todos os meninos vão desembestar?
E todos os destinos irão se encontrar?
E mesmo o Padre Eterno,
Que nunca foi lá,
Olhando aquele inferno
Vai abençoar
O que não tem governo, nem nunca terá?
O que nao tem vergonha, nem nunca terá.?
O que não tem juízo?
O que será, que será, que será, que será....
UMA PALAVRA
Chico Buarque - 1989
Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra
Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra
Palavra dócil
Palavra d’água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra
Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra
Talvez, à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra
Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra
1163
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O PROCESSO ARGUMENTATIVO no editorial
Paulo da Silva LIMA
(Universidade Federal do Pará)
RESUMO: Neste trabalho abordam-se questões referentes ao processo argumentativo no editorial. Apresentamse teorias da argumentação com base nos fundamentos retóricos de Aristóteles. A partir disso, percebe-se
que os mesmos aspectos estudados por tal autor na Grécia antiga, ainda hoje podem ser identificados em
textos de ordem argumentativa. Assim, identificam-se no corpus recursos retóricos e lingüísticos que servem
para demonstrar que o editorial é um texto altamente argumentativo, já que o mesmo traz em sua essência a
presença da ideologia pertencente à uma instituição jornalística.
Palavras-chave: Retórica; Argumentação; Editorial.
Abstract: The article deals with issues relating to the argumentative process in the editorial. The
argumentation theories are shown in this work based on the rhetorical principles by Aristotle. On this account,
these same aspects once studied in ancient Greece can still be identified in argumentative texts today. Thus,
it’s necessary to identify the rhetoric and linguistic resources in the corpus to demonstrate that the editorial
is a highly argumentative text, since it brings in its essence the presence of an ideology which belongs to a
journalistic institution.
Keywords: Rhetoric; Argumentation; Editorial.
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Introdução
Desde a Grécia antiga, as pessoas sempre tiveram a consciência de que a palavra pode se
transformar em uma importantíssima ferramenta para a obtenção do respeito, da credibilidade e, em
conseqüência disso, do poder. Foi a partir disso que, tendo suas origens com Górgias e posteriormente
sendo estudada por Aristóteles, surgiu a retórica, uma disciplina que desde o seu nascimento se
transformou em um campo de estudo de muita importância para as diversas áreas do conhecimento.
Essa relevância da retórica que surgiu na Antigüidade e que perdurou durante todas as
épocas continua muito forte nos dias atuais. Isso porque, nos recentes estudos que se fazem sobre
a argumentação, encontram-se as mesmas técnicas retóricas que eram utilizadas nos ensinamentos
de Aristóteles. Passando-se a encarar a retórica como uma área que pode estar presente em vários
tipos de discurso, pode-se dizer que ela também tem possibilidades de ser identificada no discurso
jornalístico, em nosso caso, no editorial.
Por isso, pensando em discurso como algo que é utilizado para persuadir e convencer alguém
sobre determinados fatos, pode-se afirmar que o editorial é um gênero textual altamente argumentativo,
já que ele traz em sua essência a opinião e a posição ideológica da entidade jornalística a que pertence,
discorrendo a respeito dos principais assuntos que são retratados no dia-a-dia de uma sociedade.
Sendo assim, este trabalho tem como objetivo abordar questões referentes à retórica e aplicalas a um corpus para demonstrar como se dá o processo retórico-argumentativo no editorial.
1. As partes da retórica segundo Aristóteles
1.1. Invenção
A invenção é a primeira parte que compõe a retórica e, portanto, tem a função de levar
o orador a se valer dos argumentos e dos demais meios para que consiga provar a tese que vai
defender. Dessa forma, uma das primeiras atitudes que precisa tomar antes de iniciar um discurso
argumentativo, é pô-lo dentro do gênero a que pertence.
De acordo com a concepção dos antigos gregos, os gêneros oratórios podem ser divididos
em três partes. Assim haveria o Judiciário, baseado em valores que se referem ao justo e ao injusto, cujo
público seria o tribunal. Por isso, sua função restringe-se a acusar ou defender. Além disso, esse tipo
de gênero refere-se ao tempo passado, já que nele busca-se solucionar fatos que já ocorreram.
Por outro lado, o gênero Deliberativo, fundamentado em valores correspondentes ao útil e
ao nocivo, teria como público a assembléia ou senado e, assim, seria responsável por aconselhar e
desaconselhar em assuntos que dizem respeito à cidade, como impostos, importações, paz, guerra,
etc. Nesse gênero o tempo que predomina é o futuro, pois sua ação propõe-se a decisões e projetos
para ações posteriores.
O Epidíctico é o gênero que, inspirado em valores que dizem respeito ao nobre e ao vil, voltase para o público que assiste discursos pomposos, orações fúnebres, etc. Esse tipo de gênero tem a
função de reverenciar o homem ou apenas uma classe dele, como pessoas mortas ou lendárias. Por
isso, refere-se ao tempo presente, já que mesmo fazendo menção ao passado e ao futuro, o orador é
admirado exatamente no instante em que profere o seu discurso.
Os três gêneros do discurso oratório também apresentam diferenças quanto ao tipo de
argumento que é usado em cada um deles. Por isso, no judiciário são empregados com freqüência os
raciocínios silogísticos ou entimemas, pois nesse tipo de gênero que se refere às leis, há a presença de
um público que é familiarizado com o assunto que é abordado. Por outro lado, no deliberativo, cuja
função é presumir o futuro por meio de ocorrências já sucedidas, é mais propício que os argumentos
sejam fundamentados em exemplos, pois o auditório desse gênero é composto por pessoas muito
ágeis e pouco instruídas. No epidíctico, devido à platéia já possuir conhecimento a respeito dos fatos,
recomenda-se o uso do argumento de amplificação e, com isso, a função do orador será a de dar
importância e valor ao discurso que será proferido.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Segundo (Reboul, 2004, p. 43), os três gêneros do discurso oratório podem ser apresentados
no seguinte quadro:
Após ter-se definido o tipo de gênero a que se remeterá o discurso, o orador se incumbirá de
encontrar os argumentos que sustentarão sua tese. Assim, de acordo com Aristóteles, há três espécies
de argumentos que podem ser usados no ato da persuasão.
O primeiro deles, de conduta emocional, denomina-se ethos. Este, portanto, refere-se ao
caráter que deve ser assumido pelo orador para que consiga ter crédito perante o auditório, pois sem
a confiança do público se torna difícil o alcance de uma boa argumentação.
O segundo tipo de argumento, também de ordem emocional, denomina-se pathos. Este se
define como o conjunto de sentimentos que o orador, por meio de seu discurso, deve provocar na
platéia. Por isso, quem profere uma fala necessita saber utilizar bem o lado psicológico e tentar se
adequar aos diversos tipos de público. Somente assim, conseguirá despertar no auditório as emoções
que possam ajudá-lo a consolidar seu discurso.
Diferentemente dos dois já citados, o logos tem o caráter racional e é uma espécie de argumento
que se identifica exatamente pela materialização da argumentação que compõe o discurso. Por isso,
nesse tipo de argumento encontra-se o entimema (silogismo) que se fundamenta no método dedutivo,
com base em premissas prováveis. Há também a presença de argumentos indutivos que, por meio do
exemplo, fazem menção a acontecimentos do passado para que sejam finalizados os futuros.
Para consolidar uma argumentação o orador também pode se valer de provas extrínsecas e
intrínsecas. As primeiras são mostradas anteriormente à invenção e se referem às confissões, leis, etc,
ou seja, compõem todo um conhecimento exterior sobre o que se vai argumentar. Por outro lado,
as provas intrínsecas fazem parte do método pelo qual o orador apresenta seu discurso e, por isso,
são de inteira responsabilidade de quem emite um argumento. É interessante ressaltar também que
as provas extrínsecas podem ser invertidas e transformadas em poderosos e eficazes argumentos de
uma explanação intrínseca.
1.2. Disposição
Diferentemente da invenção, a disposição pode ser classificada como um plano-tipo ao qual
o orador usa como auxílio para produzir seu discurso. Assim, a disposição divide-se em quatro partes,
sendo que cada uma delas desempenha papel essencial na construção de um ato argumentativo. A
primeira parte da disposição recebe o nome de exórdio, pois é a partir dele que se inicia a fala do orador
e sua função seria a de domesticar o auditório, ou seja, causar-lhe interesse em ouvir o discurso. Mais
precisamente é o exórdio que tem a finalidade de deixar o auditório dócil, atento e benevolente.
Tornar o auditório dócil seria precisamente deixá-lo em condições para aprender e
compreender aquilo que será exposto. Por isso é interessante que o orador exponha seus argumentos
de forma clara e breve. Deixar a platéia atenta seria basicamente mostrar que o assunto a ser tratado
traz algo de interessante e por isso o público deve se sentir excitado para ouvir o que o orador tem a
falar. Para tornar o auditório benevolente, seria necessário que o orador usasse com toda sapiência o
seu ethos e, com isso, demonstrasse à sua platéia um caráter de alguém que merece ser ouvido. Assim,
numa argumentação falada ou escrita, o exórdio possui uma função essencial, pois é ele a parte pela
qual o orador inicia seu discurso.
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Seguindo com as partes da disposição, encontramo-nos diante da narração, isto é, o momento
em que se expõe de forma bastante objetiva os fatos que dizem respeito à causa, levando-se sempre
em consideração os argumentos que se referem a uma defesa ou a uma acusação. É pertinente afirmar
que na narração o logos desempenha papel muito mais importante do que o ethos e o pathos.
Sendo assim, a narração deve apresentar três características que são a clareza, a brevidade
e a credibilidade. Nesse sentido, a clareza deve ser expressa de forma que os argumentos sejam bem
organizados e bem empregados, havendo freqüentes retornos para recuperar e dar continuidade à
argumentação. Para demonstrar brevidade, é necessário que o que possa ser constatado como inútil
seja eliminado. Dessa forma, fatos sem importância e circunstâncias que nada esclarecem devem
apenas ser usados para mostrar que na realidade retratam apenas aquilo que se deve estar falando. A
credibilidade deve ser alcançada por meio da enunciação do fato e suas causas, relatando as finalidades
entre o autor e seu caráter, ou seja, sobre o que se sabe e a respeito dele.
A terceira parte da disposição é denominada de confirmação e sua função seria a de refutar e
destruir os argumentos adversários por meio de um conjunto de provas. Na confirmação judiciária,
a amplificação também desempenha papel importante, pois por meio dela é possível que se possa
ampliar qualquer tipo de debate. Por isso, o logos, mesmo recorrendo ao pathos, desempenha função
essencial na confirmação. Além disso, é interessante ressaltar que a narração e a confirmação podem
muitas vezes estar juntas em um discurso, pois pode ser que uma argumentação seja regida em forma
de narração, mas cada seqüência constituindo uma prova. De qualquer forma, essas duas partes da
disposição possuem papel importante no discurso de um orador, mas ele não é obrigado a utilizá-las
de forma sucessiva, pois o importante é que o locutor consiga persuadir sua platéia.
Há também uma parte da disposição, a digressão, que consiste em distrair, mostrar piedade ou
até de indignar o auditório. Ela é bastante usada com o intuito de provocar um relaxamento e pode
ser instaurada entre a confirmação e a peroração.
Para completar a disposição faz-se necessário a peroração, ou seja, aquilo que é posto no
final do discurso. É também uma parte que demonstra suas divisões e por isso pode se apresentar
de forma extensa. Portanto, sua divisão compreende primeiramente a amplificação, que consiste em
demonstrar a gravidade de algum fato. Em seguida vem a paixão, ou seja, momento cujo objetivo
é causar piedade ou indignação na platéia. Por fim, tem-se a recapitulação, isto é, parte em que se
resume a argumentação.
Para Aristóteles, além dessas duas partes já retratadas, a retórica também é composta pela
Elocução e pela Ação. No entanto, neste trabalho não se dará ênfase a essas partes da retórica, pois
com a exploração da invenção e da disposição, os aspectos relacionados à Elocução conseqüentemente
também foram analisados. Quanto à Ação, por o corpus ser um texto impresso, vê-se que não há
possibilidade de aplicá-la à presente pesquisa.
2. Análise de um editorial
AS CAUSAS ESTRUTURAIS DA TRAGÉDIA
Desastres de aviação, dizem os especialistas, sempre têm mais de uma causa. Com a tragédia do Airbus da
TAM não é diferente. As causas são a incompetência, desídia, leviandade, ganância e corrupção presentes
no sistema de transporte aéreo brasileiro. Perto desses fatores estruturais, eventuais falhas técnicas, ou do
piloto, na origem da catástrofe de anteontem em Congonhas são dados acessórios. Essencial é o descalabro
que permite o funcionamento a plena carga do maior aeroporto brasileiro numa área já abarcada pelo
centro ampliado de São Paulo; a recusa das companhias aéreas em reduzir as suas operações ali, ou ao
menos desconcentrá-las dos horários de pico; a submissão cúmplice da Agência Nacional de Aviação Civil
(Anac) aos interesses das empresas que dominam o setor; a calamidade administrativa, a politicagem e a
fraude endêmica na Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero).
Tudo isso sob os olhos - e a responsabilidade objetiva - de um governo cujo presidente só quer ouvir
o som da própria voz e continua a repetir hoje o que, horas antes do terrível acidente, admitiu fazer
no passado - “a quantidade de coisas que eu falei e falava porque era moda falar, mas que não tinha
substância para sustentar na hora em que você pega no concreto”. E que traça ele próprio o retrato
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Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
acabado de sua gestão ao confessar que “em determinados cargos (...) a gente faz quando pode e, se
não pode, deixa como está para ver como é que fica”. No dia 29 de setembro do ano passado, 154
pessoas morreram no que foi, até às 18 horas e 45 minutos de anteontem, o maior desastre aéreo da
história brasileira. Desde os 154 mortos da tragédia da Gol até as duas centenas de mortes desta terçafeira, descontado o palavrório entorpecedor de todos quantos têm parte com os problemas da aviação
comercial no País - e com as possíveis soluções para eles -, continuou-se na estaca zero em matéria de
“pegar no concreto” para melhorar os padrões de segurança de vôo no território. Para todos os efeitos
práticos, “deixou-se como está para ver como é que fica”.
Nesse quadro de falência dos poderes públicos e de voracidade de interesses privados, Congonhas - sem
as chamas, os corpos e os destroços - é a síntese das incompetências e irresponsabilidades que marcam
a administração pública brasileira. Em abril de 2005, um brigadeiro, Edilberto Teles Sirotheau Corrêa,
denunciou a “obsessiva prioridade” dada pela Infraero “às obras que proporcionam ‘visibilidade’, em
detrimento das necessidades operacionais”. De fato, gastaram-se R$ 350 milhões para modernizar esse
shopping center no qual se transformou o terminal do aeroporto que, já em 2005, registrava 228 mil
pousos e decolagens, 33 mil a mais do que o desejável pelos critérios internacionais. Em janeiro último, o
Ministério Público Federal pediu à Justiça a interdição da pista principal de Congonhas. No mês seguinte,
um juiz federal proibiu aviões de grande porte, como Boeings e Airbuses, de operar no aeroporto enquanto
os problemas da pista não fossem sanados. Uma instância superior invalidou a decisão, considerando-a
drástica demais e fonte de impactos econômicos negativos.
Enfim, ao custo de R$ 19,9 milhões, a Infraero contratou o conserto da pista - e a liberou escandalosamente
antes de nela serem acrescentadas as ranhuras transversais que asseguram o escoamento da água das
chuvas e aumentam a aderência dos pneus dos aviões ao solo, facilitando a freada e reduzindo o risco
de derrapadas como a que, na segunda-feira, arrastou por 150 metros, até o gramado próximo, um
turboélice com uma vintena de pessoas a bordo, muito mais manejável do que um Airbus capaz de levar
cerca de 180 pessoas. (Outro episódio, negado pela TAM, foi a arremetida, também na segunda-feira,
de um aparelho da companhia, cujo comandante desistiu do pouso no último momento devido ao
alagamento da pista.) As obras do grooving só poderiam começar na próxima quarta-feira. Pode ser que
tenha contribuído para a tragédia do vôo 3054 um erro na manobra de pouso ou uma pane no sistema de
freios do Airbus. Mas é certo que o desfecho seria outro se a pista tivesse plenas condições de segurança.
Não as tinha e ainda assim era usada, em última análise, por incompetência, desídia, leviandade, ganância
e corrupção.
(O Estado de São Paulo, 19/07/2007)
Considerando as partes da retórica, tem-se inicialmente a invenção, fase em que o orador
recorre aos argumentos e a outros meios para provar a sua tese. Assim, vê-se que no texto em
análise o autor, objetivando um acordo pelo qual pudesse garantir a adesão dos leitores, recheia-se
de conhecimentos e recursos, construindo, assim, um bom repertório a respeito das prováveis causas
que poderiam ter ocasionado a tragédia do Airbus da TAM.
Como bem assinala o texto, o autor mostra ter repletos conhecimentos sobre as limitações
espaciais do aeroporto de Congonhas. Também demonstra saber que a ANAC, desrespeitando a
segurança dos passageiros, permite de maneira irresponsável que as empresas operem os vôos em
grande quantidade.
É na invenção também que o orador deve aderir ao tipo de gênero que possa se adequar
melhor a seu discurso. Como já comentado na parte teórica, os gêneros retóricos se classificam em
judiciário, deliberativo e epidíctico. O editorial desta análise se enquadra melhor dentro do gênero
judiciário, já que seu autor constantemente passa a acusar as possíveis causas e os responsáveis pelo
acidente aéreo. Além disso, outro fator que leva a perceber as características do gênero judiciário nesse
texto é a referência ao tempo passado, pois o autor emite suas acusações com o intuito de encontrar
quem ou o que, de fato, teria causado o episódio já ocorrido.
De acordo com os princípios aristotélicos, após o orador ter se preparado para a defesa de
sua tese, fase que corresponde à invenção, faz-se necessário o início da disposição, momento referente
ao planejamento e à organização do discurso, dando-se início a sua execução. Assim, como já exposto
na fundamentação teórica, a disposição se compõe de quatro partes, sendo que a primeira é o exórdio,
período inicial do discurso.
1169
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Tomando-se o primeiro parágrafo do texto, observa-se que o autor cumpre exatamente
a função do exórdio, pois, ao afirmar que, segundo os especialistas, as tragédias de avião ocorrem
sempre por mais de um motivo, ele tenta excitar os leitores a quererem saber quais seriam as causas
que teriam feito com que o Airbus da TAM explodisse matando tantas pessoas.
Ainda na seqüência, o autor apresenta mais uma característica do exórdio, expondo de
maneira clara e breve os seus argumentos e repassando, de forma geral, a finalidade de seu discurso.
É o que acontece quando se afirma que as causas de tal tragédia seriam a incompetência, a desídia, a
leviandade, a ganância e a corrupção; fatores que se fazem presentes no sistema de transporte aéreo
do Brasil.
Um outro fator referente ao exórdio que pode ser levado em consideração para que o auditório
possa ser seduzido pelas palavras do orador corresponde ao ethos, caráter que o locutor deve assumir
para alcançar a confiança de seu público. No primeiro parágrafo, percebe-se que o autor demonstrase preocupado e interessado em que se faça justiça em relação à morte das pessoas. Assim, ele usa
argumentos pertinentes em suas acusações; além disso, ele demonstra ter plenos conhecimentos a
respeito de tudo o que está acontecendo de errado com a aviação deste país. Uma outra questão que
envolve o caráter desse autor diz respeito ao lugar de onde ele enuncia, já que ele representa a voz do
jornal O Estado de São Paulo, uma das grandes empresas jornalísticas do Brasil. Notadamente isso faz
com que o autor tenha crédito em sua argumentação.
A segunda parte da disposição recebe o nome de narração. Esta se refere ao momento em que
o orador apresenta objetivamente os fatos que condizem com as causas que proporcionam o assunto
a ser defendido. Nessa fase o logos passa a assumir uma importância maior que o ethos e o pathos. No
corpus observa-se que o autor apresenta, numa seqüência bastante definida, aqueles fatos que teriam
ocasionado a tragédia com o avião da TAM. Pode-se perceber isso quando é afirmado no segundo
parágrafo que: “Tudo isso sob os olhos - e a responsabilidade objetiva - de um governo cujo presidente só quer ouvir o som
da própria voz e continua a repetir hoje o que, horas antes do terrível acidente, admitiu fazer no passado”.
Em cada um dos parágrafos o autor expõe argumentos que condizem com a sua tese. Assim,
em todas as partes as idéias são bem distribuídas e tornam o editorial um texto breve, já que todos os
argumentos harmonizam-se num mesmo contexto. Isso pode ser percebido quando se faz referência
ao acidente anteriormente acontecido com o avião da GOL e também quando são referidos os
investimentos que foram gastos para a modernização do aeroporto de Congonhas. Apesar de esses
fatos pertencerem ao passado, eles estão diretamente relacionados ao contexto da argumentação do
jornal O Estado de São Paulo.
Passado o período da narração, o orador vale-se da confirmação, parte em que se refutam
e se destroem os argumentos adversários utilizando-se para isso um conjunto eficaz de provas. Aqui
o logos assume uma função essencial. No corpus, após a afirmação do autor de que as causas da
tragédia seriam a incompetência, a desídia, a leviandade, a ganância e a corrupção que estão imbuídas
no setor aéreo, ele expõe as provas que sustentam a sua tese afirmando que o governo é culpado e cita
a frase de Lula em relação a tal problema. Isso pode ser identificado no seguinte trecho: “a quantidade
de coisas que eu falei e falava porque era moda falar, mas que não tinha substância para sustentar na hora em que você
pega no concreto [...] a gente faz quando pode e, se não pode, deixa como está para ver como é que fica”.
Isso mostra que o autor está confirmando que o governo é incompetente para reger o
sistema aéreo brasileiro, já que o seu representante maior, o presidente da república, não sabe o que
fazer diante da grave situação.
Em seguida o autor usa mais um argumento que confirma sua tese e diz que desde o acidente
da Gol e também com o da TAM, ouve-se o que ele denomina de “palavrório entorpecedor” daqueles que
têm uma parcela de culpa nos problemas da aviação civil. Por isso, fica clara a afirmação de que tudo
ficou na mesma e que nenhuma providência mais séria foi tomada para que se evitasse o acontecimento
do dia 19 de julho de 2007. Numa argumentação ainda mais densa, o autor deixa transparecer que o
acontecimento com o Airbus teve um conjunto de culpados incompetentes e gananciosos que não
se importam com a vida de seres humanos. Por isso, o autor escreve no 3º parágrafo: “Nesse quadro de
1170
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
falência dos poderes públicos e de voracidade de interesses privados, Congonhas - sem as chamas, os corpos e os destroços
- é a síntese das incompetências e irresponsabilidades que marcam a administração pública brasileira”.
A disposição também é composta pela digressão, fase em que orador tenta distrair ou indignar
o auditório. No corpus, vê-se a presença da digressão no final do terceiro parágrafo quando o autor
menciona que, no início do ano em que aconteceu o terrível acidente, o Ministério Público Federal
teria pedido à justiça que a pista principal de Congonhas fosse interditada e logo no mês seguinte os
aviões de grande porte, igualmente ao do vôo 3054, foram proibidos de operar até que os problemas
da pista fossem sanados.
Mas, como se afirma no editorial: “Uma instância superior invalidou a decisão, considerando-a drástica
demais e fonte de impactos econômicos negativos”. Isso dá a entender que o autor tenta indignar o leitor em
relação ao descaso do governo que, interessado somente na questão financeira, arrumou um jeito de
fazer com que o decreto do juiz fosse anulado, já que a não operação de Boeings e Airbuses poderia
causar impactos econômicos negativos. Isso também mostra que o autor quer que o público possa
aderir à tese de que não há preocupação com a vida dos passageiros, mas somente com o dinheiro
que deles se pode faturar.
Completando a disposição, tem-se a peroração, isto é, aquilo que se coloca no fim do discurso.
Nessa parte o orador tem como objetivo demonstrar a gravidade dos fatos, causar indignação na
platéia e também recapitular e resumir sua argumentação. Assim, nas linhas finais do editorial, o autor
expõe os problemas da pista de Congonhas, onde foram gastos mais de R$ 19 milhões pela Infraero e
mesmo assim o serviço principal que era a implantação das ranhuras transversais não foi feito, sendo
a pista liberada para pousos e decolagens.
Com isso, utilizando-se do pathos, o conjunto de sentimentos que o orador deve provocar
na platéia, o autor apresenta a gravidade dos fatos e mostra a sua indignação em relação a tamanha
irresponsabilidade por parte da Infraero, já que se as ranhuras tivessem sido feitas, talvez não teria
acontecido a tragédia. De forma eficiente e recorrendo às funções da peroração, o autor faz a seguinte
afirmação nos dois últimos períodos do texto: “[...] é certo que o desfecho seria outro se a pista tivesse
plenas condições de segurança. Não as tinha e ainda assim era usada, em última análise, por incompetência, desídia,
leviandade, ganância e corrupção”.
Assim, o autor recapitula e resume o que foi mencionado no primeiro parágrafo quando
afirmou que as causas de um acidente têm sempre mais de um culpado e que, segundo ele, seriam a
incompetência, a desídia, a leviandade, a ganância e a corrupção dos que dirigem e se beneficiam do
sistema aéreo brasileiro.
Considerações finais
Pelo que se abordou acima, pode-se dizer o editorial apresenta um alto nível de
argumentatividade, mostrando que, nesse gênero opinativo, a empresa jornalística expõe sua própria
ideologia em relação aos assuntos tratados no respectivo periódico. Assim, pela abordagem das partes
da retórica, viu-se que o texto cumpriu bem os fundamentos aristotélicos, já que foi verificada a
presença da invenção, da disposição e da elocução.
Entende-se, assim, que durante o uso da linguagem há, conseqüentemente, o uso da
argumentação. Por isso, pode-se dizer que a argumentatividade é um processo inerente à própria
linguagem. Isso porque, ao falar, o ser humano expressa seu modo de pensar, de agir, de viver, de
resolver certas situações e, com isso, impõe os seus desejos e sua ideologia.
Assim, para conseguir conquistar a adesão do outro, o locutor tem de se valer das técnicas
argumentativas, mesmo que ele não perceba isso. Dessa forma, aquele que souber utilizar melhor os
princípios da argumentação terá muito mais chance de conseguir persuadir o seu interlocutor e, assim,
implementar os seus desejos e suas aspirações por meio da linguagem.
Deve-se ressaltar também que as propostas aristotélicas são cruciais no exercício da análise de
textos argumentativos. Por isso, como se observou neste trabalho, desde a Antigüidade os princípios
1171
de Aristóteles vem sendo de grande valia para o entendimento do processo argumentativo. Assim, ao
ser feita a abordagem das partes da retórica, pôde-se perceber que elas estão, ainda hoje, presentes nos
textos de ordem argumentativa.
Portanto, ficou bem clara toda a importância do editorial no contexto do jornalismo, já que
nele se expõe a posição ideológica da empresa jornalística a respeito dos fatos que mais repercutem
na sociedade. É também por meio desse gênero que muitos leitores passam a assumir determinados
pontos de vista e a tomar certas atitudes dentro do meio social. Assim, o editorial é entendido como
um texto, cujos argumentos são altamente carregados de intenções e finalidades, características essas
que são capazes de transformar o leitor em um forte aliado na imposição de certas ideologias dentro
da sociedade.
Referências
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ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1964.
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ORLANDI, Eni. Análise de discurso – Princípios e Procedimentos -. São Paulo: Pontes, 2003.
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SOUSA, Jorge Pedro. Introdução à análise do discurso jornalístico impresso. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004.
O PRÓPRIO E O ALHEIO EM EL DELIRIO DE
TURING: REALISMO MÁGICO E FICÇÃO CYBERPUNK
NO ROMANCE DE EDMUNDO PAZ SOLDÁN
Rodolfo Rorato LONDERO
(Universidade Federal de Santa Maria)
RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar o romance El delirio de Turing (2003), do escritor boliviano
Edmundo Paz Soldán, principalmente a partir da sua relação com a ficção cyberpunk, subgênero da ficção
científica surgido originalmente no contexto norte-americano dos anos 1980. Esta relação aparece, desde já,
nas epígrafes da obra, onde um escritor cyberpunk (Neal Stephenson) é citado: na verdade, duas obras deste
escritor, Nevasca (1992) e Cryptonomicon (1999), surgem como referências intertextuais em El delirio de Turing. Mas
Paz Soldán, como integrante da geração McOndo – uma paródia globalizada a Macondo de García Márquez –,
também trava um intenso diálogo com seus antecedentes latino-americanos, os escritores do realismo mágico.
É nesse embate entre o próprio e o alheio (Carvalhal), entre as referências literárias latino e norte-americanas,
que buscaremos compreender a obra de Paz Soldán.
PALAVRAS-CHAVE: Ficção cyberpunk; Realismo mágico; Literatura comparada;
ABSTRACT: The objective of this paper is to analyze the novel El delirio de Turing (2003), by Bolivian writer
Edmundo Paz Soldán, mainly in it relationship with the cyberpunk fiction, subgenre of science fiction appeared
originally in the North American context of 1980’s. This relationship appears, at once, in the epigraphs of the
work, where a cyberpunk writer (Neal Stephenson) is quoted: actually, this writer’s two works, Snow Crash (1992)
and Cryptonomicon (1999), appear as intertexts in El delirio de Turing. But Paz Soldán, as member of McOndo
generation – a globalizated parody of García Márquez’s Macondo –, also maintain an intense dialogue with
their Latin-American antecedents, the writers of magic realism. It is in that collision between the own and the
alien (Carvalhal), between Latin and North American literary references, that we will understand Paz Soldán’s
work.
KEY WORDS: Cyberpunk fiction; Magic realism; Comparative literature;
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
As palavras de Mario Vargas Llosa na contra-capa da edição argentina de El delirio de Turing
(2003) são animadoras: “Edmundo Paz Soldán é um dos melhores escritores da nova geração”. Mas
como pensar nessas palavras ditas pelo mestre peruano do realismo mágico ao considerar quem elas
elogiam, isto é, um escritor boliviano que tem como referência não só a ficção científica em geral1,
mas também uma de suas tendências contemporâneas conhecida como cyberpunk – uma das epígrafes
de El delirio, por exemplo, é citada de Nevasca2 (1992), do escritor cyberpunk Neal Stephenson –, ou seja,
uma antítese, pelo menos aparentemente, das referências populares e folclóricas de quem elogia?
As personagens principais de El delirio, que se revezam a cada capítulo, exemplificam
essa antítese, além de oferecerem um resumo da obra: Miguel Sáenz, criptoanalista de codinome
Turing, é um empregado ordinário da Caixa Negra (um departamento de inteligência para crimes
cibernéticos), mas, num passado recente, ajudou o então governo ditatorial a encontrar guerrilheiros
esquerdistas; Ruth Sáenz, esposa de Miguel, é uma historiadora especializada em criptoanálise que
não aceita o passado criminoso do seu marido; Flavia, filha de Miguel e Ruth, posta num blog sobre
cultura hacker; Albert, antigo chefe e mentor de Miguel, agoniza num hospital, delirando sobre suas
antigas reencarnações, todos criptoanalistas famosos: Edgar Allan Poe, Georges Painvin, o próprio
Alan Turing, entre outros; Ramírez-Graham, norte-americano descendente de pai boliviano, é o atual
chefe da Caixa Negra; o juiz Cardona busca encarcerar Miguel e Albert, os verdadeiros responsáveis
pela morte de sua prima, uma militante de esquerda; Kandinsky é o codinome de um jovem hacker
perseguido pela Caixa Negra devido aos ataques dirigidos a GlobaLux, empresa transnacional que
monopoliza o setor energético de Río Fugitivo, cidade boliviana fictícia onde ocorrem os eventos do
romance. Todas essas personagens distanciam-se dos fundadores de cidades esquecidas, dos profetas
do sertão, dos bruxos do vodu que pontuam o realismo mágico.
Mas, como prova definitiva da antítese que discutimos, lembremos que Paz Soldán
pertence à geração McOndo, idealizada por Alberto Fuguet e Sergio Gómez a partir da coletânea
homônima de 1996 que apresenta, como título-manifesto, um evidente trocadilho entre a
Macondo de García Márquez e a rede mundial de lanchonetes McDonald’s. Na apresentação de
McOndo (1996), lemos que
[o] nome (marca registrada?) McOndo é, claro, uma piada, uma sátira, uma talha. Nossa McOndo é tão
latino-americana e mágica (exótica) como a Macondo real (que, de qualquer forma, não é real, mas sim
virtual). Nosso país McOndo é maior, superpovoado e cheio de contaminação, com auto-estradas, trem,
TV a cabo e quartos de motel. Em McOndo há McDonald´s, computadores Mac e condomínios, além de
hotéis cinco estrelas construídos com dinheiro lavado e malls gigantescos3.
O que os integrantes da geração propõem é “desconstruir” (FUGUET, 2005, p. 103) a
América Latina como imaginada pelos escritores do realismo mágico – para enfatizarmos um termo
citado por Fuguet numa releitura recente da geração. Portanto, no lugar das figuras folclóricas do
realismo mágico, surgem os ícones da cultura globalizada, reflexos do neoliberalismo que atingiu a
América Latina a partir da década de 1990. Ainda em sua releitura, apresentada ironicamente como
“apontamentos sobre McOndo e neoliberalismo mágico”, Fuguet acrescenta o seguinte:
Mas McOndo (isto é, uma América Latina global, misturada, diversa, urbana, do século 21) já estava
explodindo na TV, na música, na arte, na moda, no cinema e no jornalismo. Nossa tese, ou, para ser exato,
nosso argumento era bem simples: a América Latina conturbada, desordenada, é bastante literária, sim,
quase uma obra de ficção, mas não é um conto folclórico. É um espaço volátil onde o século 19 se mistura
ao século 21. Mais do que mágico, sugerimos, esse lugar é peculiar. O realismo mágico reduz uma situação
complexa demais a mera curiosidade.
A América Latina não é curiosa (FUGUET, 2005, p. 106-107).
Ver, neste sentido, Brown (2007).
Tradução brasileira de Snow Crash.
3
Tradução livre do original: “El nombre (¿marca-registrada?) McOndo es, claro, un chiste, una sátira, una talla. Nuestro
McOndo es tan latinoamericano y mágico (exótico) como el Macondo real (que, a todo ésto, no es real sino virtual).
Nuestro país McOndo es más grande, sobrepoblado y lleno de contaminación, con autopistas, metro, tv-cable y barriadas.
En McOndo hay McDonald´s, computadores Mac y condominios, amén de hoteles cinco estrellas construidos con dinero
lavado y malls gigantescos”.
1
2
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Contrária ao exotismo imposto à literatura latino-americana, a geração McOndo busca uma
literatura integrada ao mundo, mas ainda assim diferente. Na verdade, no contexto da geração, mesmo
a expressão “literatura latino-americana” apresenta problemas terminológicos, pois
[p]ara esses escritores, afastar-se da literatura do boom significa não só abolir o realismo mágico, já
transformado num lugar-comum do exotismo latino-americano de exportação, mas também dar prioridade
à pergunta sobre a identidade pessoal em detrimento da tradicional discussão sobre a identidade latinoamericana (embora evidentemente uma redefinição da América Latina esteja em jogo quando se reivindica
que é preciso ir além do “indígena, folclórico, esquerdista” para entendê-la) (VIDAL, 2005, p. 173).
Ou como afirmam Fuguet e Gómez na apresentação de McOndo: “Os contos de McOndo
se centram em realidades individuais e privadas. Suponhamos que esta é uma das heranças da febre
privatizadora mundial”4.
Esses escritores distanciam-se, portanto, da identidade latino-americana para oferecerem
identidades individuais, mas assimiladas ao processo de globalização. Logo, “já não se quer uma literatura
chilena nem latino-americana, mas mundializada, com a qual qualquer jovem em qualquer país do mundo
capitalista possa se identificar” (VIDAL, 2005, p. 174). Aproximamos agora do destino desta discussão
inicial, pois onde encontramos essa literatura do mundo capitalista? Nossa resposta acha-se na ficção
cyberpunk, vista desde já como “[...] a expressão literária suprema, se não do pós-modernismo, então do
próprio capitalismo tardio” (JAMESON, 2006, p. 414; grifo do autor).
De fato, por ser a expressão literária do capitalismo tardio, ou seja, do capitalismo multinacional,
globalizado, encontramos a ficção cyberpunk em vários cantos do mundo, desde na Polônia – “Szkota”
(1996), de Jacek Dukaj – até no Peru – Mañana, las ratas (1984), de José B. Adolph. E aqui retornamos
e justificamos as referências de Paz Soldán citadas no início deste artigo. Apesar de nunca indicarem
explicitamente essa relação – exceto na já citada epígrafe de El delirio –, os integrantes da geração McOndo
sempre se mostraram próximos dos temas do imaginário cyberpunk.
Ao comentarem uma das referências da coletânea McOndo, Fuguet e Gómez citam alguns
termos próprios do universo cyberpunk:
Sua inspiração mais próxima é outro livro: Cuentos con Walkman (Editorial Planeta, Santiago de Chile, 1993),
uma antologia de novos escritores chilenos (todos com menos de 25 anos), que irrompeu ante os leitores
com a força de um recital punk. (...) Como diz a orelha que anuncia a quarta edição, a moral walkman é “uma
nova geração literária que é pós-tudo: pós-modernismo, pós-yuppie, pós-comunismo, pós-babyboom, póscamada de ozônio. Aqui não há realismo mágico, há realismo virtual”5.
Punk, pós-modernismo, realidade virtual, palavras que também encontramos no discurso
cyberpunk. Surgido na década de 1980, no contexto social e tecnológico norte-americano, o cyberpunk
também é uma geração pós-tudo, principalmente pós-modernismo (o pastiche e a implosão de
gêneros) e pós-comunismo (a queda do Muro de Berlim)6. Mas mesmo diante dessas referências,
um escritor como Paz Soldán não descarta totalmente seus antecessores do realismo mágico, como
percebemos nesta reflexão da personagem Ramírez-Graham entre Cem anos de solidão (1967) e os
mistérios em torno da personagem Albert:
Já havia lido e desfrutado, e também havia rido muito ao ver que seus companheiros a tomavam como
uma versão da extravagante e exótica vida na América Latina. Yes, they do things differently down there,
lhes dizia, but it isn’t exotic. Pelo menos não era assim Cochabamba em suas férias. Havia festas e drogas
Tradução livre do original: “Los cuentos de McOndo se centran en realidades individuales y privadas. Suponemos que
ésta es una de las herencias de la fiebre privatizadora mundial”.
5
Tradução livre do original: “Su inspiración más cercana es otro libro: Cuentos con Walkman (Editorial Planeta, Santiago
de Chile, 1993), una antología de nuevos escritores chilenos (todos menores de 25 años), que irrumpió ante los lectores
con la fuerza de un recital punk. (...) Como dice la franja que anuncia la cuarta edición, la moral walkman es ‘una nueva
generación literaria que es post-todo: post-modernismo, post-yuppie, postcomunismo, post-babyboom, post-capa de
ozono. Aquí no hay realismo mágico, hay realismo virtual’”.
6
As questões ecológicas (“pós-camada de ozônio”) são preocupações tardias dos escritores cyberpunks, principalmente de
Bruce Sterling em Tempo fechado (1994). Entretanto, o universo pós-apocalíptico descrito em várias obras do gênero revela,
desde os anos 1980, preocupações semelhantes.
4
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
e televisão e muita cerveja, como em seus anos em Chicago. Nenhum velho amarrado a uma árvore,
nenhuma bela adolescente ascendendo aos céus. E agora que vivia aqui, fuck, sua imaginação o traía: acaso
García Márquez teria algo de razão7 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 172).
Numa sociedade governada por transações virtuais operadas a partir de códigos
“indecifráveis”, pois pertencem ao mundo das máquinas, dos computadores, um criptoanalista como
Albert adquire poderes sobrenaturais, como os bruxos de O reino deste mundo (1949), obra inaugural do
realismo mágico: “Isto é, o hacker se torna um tipo de mago ou guru que tem acesso a conhecimentos
que meros mortais são incapazes de atingir”8 (BROWN, 2006, p. 116). Também observamos essa
relação desde a obra que lança os fundamentos da ficção cyberpunk: o título Neuromancer (1984), do
primeiro romance de William Gibson, “[...] é um trocadilho entre neuro e mântico, criando mágicos
cibernéticos, unindo a força racional da neurociência com as potências desconhecidas da magia”
(LEMOS, 2002, p. 205). Mas a relação torna-se mais próxima, pelo menos do realismo mágico (mas
sem que existam referências intertextuais declaradas), no segundo romance de Gibson: em Count Zero
(1986), entidades do vodu haitiano são acessadas através do ciberespaço. Diante desse quadro, não
nos surpreendemos com alguns escritores chilenos que definem suas obras como “Magic Realism 2.0”,
ou seja, um upgrade do realismo mágico baseado em gêneros considerados não-convencionais pela
literatura latino-americana, como a ficção científica e a fantasia (MUÑOZ ZAPATA, 2007, p. 10).
Tudo isto indica que, mesmo diante da revolução informática, “García Márquez teria algo de razão”.
Mas retornemos mais uma vez à citação de Nevasca como epígrafe de El delirio: o intertexto
mais evidente entre as obras é confirmado por Brown ao comentar as personagens desta última:
“Personagens constantemente acessam a internet, conversam em IRCs, e jogam no Playground – um
mundo de realidade virtual inspirado no Metaverso de Neal Stephenson, de seu bem-conhecido romance
Nevasca, um romance referido por Paz-Soldán numa epígrafe”9 (BROWN, 2006, p. 118). Entretanto,
outras relações se destacam, principalmente se considerarmos que as duas obras apresentam paródias
da ficção cyberpunk. Na verdade, para Person (1998), Nevasca é pós-cyberpunk e, como já indicamos
em outro momento (LONDERO, 2007, p. 127), existe algo de pós-cyberpunk nas recepções tardias
do gênero realizadas pela literatura latino-americana. Porém, enquanto as duas obras assemelham-se
pelas paródias, El delirio se difere pela alternativa utópica que oferece, inexistente na “celebração neoconservadora do presente” (JAMESON, 2007, p. 132) festejada pela ficção cyberpunk. Mas vejamos
cada caso, começando pelas paródias: El delirio, por exemplo, parece ironizar o sucesso comercial do
universo cyberpunk10 ao descrevê-lo como um jogo de computador chamado “Playground”:
Ali, qualquer indivíduo, por meio de uma quantia mensal básica – vinte dólares que poderiam se converter
em muito mais de acordo com o tempo de uso –, criava seu avatar ou utilizava um dos que o Playground
colocava à venda, e intentava sobreviver num território apocalíptico governado com mão de ferro por uma
corporação. O ano em que transcorria o jogo era 201911 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 80-81).
Tradução livre do original: “La había leído y disfrutado, y también se había reído mucho al ver que sus compañeros la
tomaban como una versión de la extravagante y exótica vida en América Latina. Yes, they do things differently down there,
les decía, but it isn’t exotic. Por lo menos no era así Cochabamba en sus vacaciones. Había fiestas y drogas y televisión y
mucha cerveza, como en sus años en Chicago. Ningún abuelo amarrado a un árbol, ninguna bella adolescente ascendiendo
a los cielos. Y ahora que vivía aquí, fuck, su imaginación lo traicionaba: acaso García Márquez tenía algo de razón”.
8
Tradução livre do original: “That is, the hacker becomes a kind of wizard or guru who has access to knowledge that
mere mortals are unable to attain”.
9
Tradução livre do original: “Characters constantly access the internet, chat on IRCs, and play in the Playground – a
virtual reality world inspired by Neal Stephenson’s Metaverse in his well-known novel Snow Crash, a novel Paz-Soldán
references with an epigraph”.
10
Ao comentar a expansão do cyberpunk para além dos limites do gueto da ficção científica, Moreno afirma como isto “[...]
esvaziou o conteúdo revolucionário do movimento e o transformou em um rótulo a mais, que pouco a pouco foi gerando
todo tipo de clichês que desembarcaram, como culminação do processo evolutivo, no cinema comercial de Hollywood”
(MORENO, 2003, p. 8).
11
Tradução livre do original: “Allí, cualquier individuo, por medio de una suma mensual básica – veinte dólares que podían
convertirse en mucho más de acuerdo al tiempo de uso –, creaba su avatar o utilizaba uno de los que el Playground ponía
a la venta, e intentaba sobrevivir en un territorio apocalíptico gobernado con mano dura por una corporación. El año en
que transcurría el juego era 2019”.
7
1176
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Um cenário apocalíptico dominado por corporações multinacionais é o que encontramos
em várias obras do gênero, desde Neuromancer até Synners (1991), de Pat Cadigan. 2019 também é o
ano em que transcorre o enredo de Blade Runner (1982), filme-referencial do imaginário cyberpunk.
Mas tudo isso é, no romance de Paz Soldán, elementos de um jogo de computador que cobra taxas
mensais de seus usuários. Já em Nevasca, ao invés de parodiar o cenário, investe-se contra uma figura
transformada em mito pela ficção cyberpunk:
Na comunidade global de hackers, Hiro é um nômade talentoso. Este é o tipo de estilo de vida que soava
romântica para ele até cinco anos atrás. Mas, à luz mortiça da idade adulta, que é para os vinte e poucos
anos o que a manhã de domingo é para a noite de sábado, ele consegue ver com clareza o que isso realmente
significa: ele está duro e desempregado (STEPHENSON, 2008, p. 25-26).
Na década de 1990, ou seja, no pós-cyberpunk, o hacker perde sua aura romântica: “Longe de
serem solitários alienados, as personagens pós-cyberpunk são freqüentemente membros integrados na
sociedade (i.e., eles têm trabalhos)”12 (PERSON, 1998, p. 11). Ou como explicam Arthur e Marilouise
Kroker num artigo sobre a morte do cyberpunk: os anos 1990 são “[...] o fim da fase carismática da
realidade digital e o começo da lei de ferro da estandardização tecnológica”13 (KROKER; KROKER
apud MORENO, 2003, p. 69). Ou seja, o ciberespaço não é mais um lugar de resistência adotado por
hackers revolucionários, mas um veículo de expansão do capitalismo. Entretanto, curiosamente, em El
delirio persiste a aura romântica em torno do hacker, mas atravessada por uma releitura marxista:
No mesmo instante, a emoção ainda em sua pele, Kandinsky voltaria a ingressar no site do Citibank. Desta
vez, não roubaria números de cartões de crédito; destruiria a página de boas-vindas aos clientes, e a trocaria
por uma foto de Karl Marx e um grafite proclamando a necessidade de resistência.
É o nascimento do ciberhacktivismo de Kandinsky14 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 136).
Para Gabilondo, “a apropriação utópica do ciberespaço como a fronteira final para
hackear, terrorismo contra o sistema, etc., é nada mais que um pensamento libertário desejoso”15
(GABILONDO apud BROWN, 2006, p. 128). Entretanto, para além do pensamento libertário, o
ciberhacktivismo de Kandinsky adota uma postura autenticamente marxista, principalmente ao criticar
o discurso anarquista contemporâneo que “[...] parece valorizar uma vida do presente e do cotidiano,
uma concepção de temporalidade bastante diferente das estratégias de luta anti-capitalista em largaescala como parece impor a perspectiva d’O Capital”16 (JAMESON, 2007, p. 213). Ou seja, ao invés
de um ataque organizado ao sistema capitalista, o anarquismo contemporâneo, por desacreditar em
manifestações como tal, propõe enclaves utópicos no interior desse sistema, convivendo em simbiose.
Identificamos esse tipo de anarquismo no conceito de Zona Autônoma Temporária (ou TAZ, sigla
em inglês de Temporary Autonomous Zone) proposto por Hakim Bey: para ele, “a TAZ é uma espécie de
rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de
terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes
que o Estado possa esmagá-la” (BEY, 2006, p. 14; grifo do autor). No entanto, o que nos chama a
atenção é uma das possíveis origens desse conceito:
Tradução livre do original: “Far from being alienated loners, postcyberpunk characters are frequently integral members
of society (i.e., they have jobs)”.
13
Tradução livre do original: “[...] el fin de la fase carismática de la realidad digital y lo comienzo de la ley de hierro de la
estandarización tecnológica”.
14
Tradução livre do original: “Al rato, la emoción todavía en su piel, Kandinsky volverá a ingresar al sitio del Citibank en
la red. Esta vez, no robará números de tarjetas de crédito; destruirá la página de bienvenida a los clientes, y la reemplazará
por una foto de Karl Marx y un graffiti proclamando la necesidad de la resistencia. Es el nacimiento del ciberhacktivismo
de Kandinsky”.
15
Tradução livre do original: “the utopian appropriation of cyberspace as the final frontier for hacking, terrorism against
the system, etc. is nothing but wishful libertarian thinking”.
16
Tradução livre do original: “[...] would seem to valorize a life in the present and in the everday, a conception of
temporality rather different from the strategies of large-scale anti-capitalist struggle as the perspective of Capital would
seem to impose them”.
12
1177
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
Recentemente, Bruce Sterling, um dos principais expoentes da ficção científica cyberpunk, publicou um
romance ambientado num futuro próximo e tendo como base o pressuposto de que a decadência dos
sistemas políticos vai gerar uma proliferação de experiências comunitárias descentralizadas: corporações
gigantescas mantidas por seus funcionários, enclaves independentes dedicados à “pirataria de dados”,
enclaves verdes e social-democratas, enclaves de Trabalho-Zero, zonas anarquistas liberadas etc. A economia
de informação que sustenta esta diversidade é chamada de Rede. Os enclaves (e o título do livro) são Ilhas
na Rede [Islands in the Net , no original] (BEY, 2006, p. 8).
Piratas de dados, como traduziram Islands in the Net (1988) no Brasil, é um romance de Bruce
Sterling, escritor apontado como ideólogo do movimento cyberpunk. Frisamos isto para destacar o
mútuo interesse entre o gênero e a política de esquerda: na verdade, encontramos uma referência
dúbia ao marxismo nas páginas do pequeno jornal de divulgação do movimento (Cheap Truth
#4), mais precisamente numa resenha de A terceira onda (1980), a “bíblia do cyberpunk” redigida
por Alvin Toffler: “A formação marxista de Toffler teve seus paradigmas fixados desde cedo; ele
concorre para ser o Marx do século XXI, só que desta vez dará certo”17. Observamos na citação
tanto uma admiração quanto uma descrença pelo marxismo, posições que também identificamos
em El delirio – apesar de líder revolucionário, ou justamente por isso, Kandinsky também tem as
mãos “manchadas de sangue” (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 334; grifo do autor) –, embora esta obra
não abandone o marxismo enquanto proposta válida diante do anarquismo contemporâneo, pois
vejamos sua crítica às “ilhas na rede”:
Uma manhã se despertará dizendo que tudo havia sido um sonho magnífico, mas sonho, enfim. Se despedirá
de Iris e lhe agradecerá por haver lhe mostrado o caminho. Ele também teria agora uma utopia pirata: era
certo, havia que reclamar o que lhe correspondia, atacar o Playground até pôr-lo de joelhos; havia que se
reapoderar do espaço virtual, e não somente deste, mas também do espaço real. Havia um Estado, havia
corporações contra as quais devia lutar. De nada servia refugiar-se numa ilha na rede18 (PAZ SOLDÁN,
2005, p. 135).
Apesar das referências ao anarquismo de Bey, sendo “utopia pirata” uma delas19, o que
percebemos nesta reflexão da personagem Kandinsky é um retorno à prática política real, se
assim podemos nos expressar em contraposição à prática política virtual, às “diversas formas de
governo e organização social” (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 135) disseminadas pelas comunidades
virtuais apresentadas a Kandinsky pela personagem Iris. Para um marxista como Jameson, conceitos
semelhantes ao de TAZ enganam ao separarem infra-estrutura e superestrutura, economia e política
(JAMESON, 2007, p. 219) – real e virtual, para ressaltarmos um paralelo revelador entre a posição de
Jameson e o nosso objeto de estudo.
Mas deixemos este debate por um momento e continuemos a estabelecer as relações
entre El delirio e a ficção cyberpunk. Já indicamos anteriormente as paródias deste gênero realizadas
por essa obra, sugerindo inclusive proximidades entre ela e o pós-cyberpunk em geral, mas devemos
também enfatizar suas semelhanças com um tipo de ficção cyberpunk denominada por Sterling
como nowpunk – termo cunhado a partir de obras do gênero que surgiram na virada do século,
ambientadas no presente, ao invés de num futuro próximo. Este é o caso de Reconhecimento de padrões
(2003), de Gibson, e também de El delirio. Entretanto, essa presentificação paradoxal da ficção
científica, ou seja, de um gênero conhecido principalmente por suas extrapolações do futuro, não
é um fenômeno recente, como pode parecer. Encontramos antecessores do nowpunk em alguns
contos de um autor clássico como Ray Bradbury: em “Sim, a gente se encontra na beira do rio”
Tradução livre do original: “Former Marxist Toffler had his paradigms set early; he aims to be the Marx of the twentyfirst century, only this time it’ll be done right”.
18
Tradução livre do original: “Una mañana se despertará diciendo que todo había sido un sueño magnífico, pero sueño al
fin. Se despedirá de Iris y le agradacerá haberle mostrado el camino. Él también tenía ahora una utopía pirata: era cierto,
había que reclamar lo que les correspondía, atacar el Playground hasta hacerlo ponerse de rodillas; había que reapoderarse
del espacio virtual, y no sólo de éste sino también del espacio real. Había un Estado, había corporaciones contra las cuales
se debía luchar. De nada servía refugiarse en una isla en la red”.
19
Sobre esse assunto, ver nosso artigo (LONDERO, 2008a).
17
1178
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
(1969), por exemplo, moradores discutem o abandono de uma pequena cidade devido à construção
de uma rodovia. Pode não parecer um conto de ficção científica, mas verificamos neste exemplo
a definição do gênero proposta por Asimov: “O importante em matéria de ficção científica, até
mesmo fundamental, é aquilo que efetivamente a fez surgir, ou seja, a percepção das mudanças
produzidas pela tecnologia” (ASIMOV, 1984, p. 18). Já Fernandes, ao “esticar os limites das
definições clássicas do termo [ficção científica]”, classifica positivamente Reconhecimento de padrões:
“[...] o livro de Gibson atende a dois requisitos básicos: 1) é uma obra de ficção; e 2) trata em algum
nível de uma ciência (informática)” (FERNANDES, 2006, p. 100). Contudo, o debate em torno da
presentificação da ficção científica ganha relevo a partir de Baudrillard e seu artigo “Simulacros e
ficção científica” (1987), onde é posta em dúvida a qualidade extrapolativa do gênero num mundo
pautado por “façanhas” tecnológicas (viagem à lua, clonagem, etc.):
A partir daí, alguma coisa deve mudar: a projeção, a extrapolação, essa espécie de desmedida pantográfica
que constituía o encanto da ficção científica são impossíveis. Já não é possível partir do real e fabricar o
irreal, o imaginário a partir dos dados do real. O processo será antes o inverso: será o de criar situações
descentradas, modelos de simulação e de arranjar maneira de lhes dar as cores do real, do banal, do vivido,
de reinventar o real como ficção, precisamente porque ele desapareceu da nossa vida (BAUDRILLARD,
1991, p. 154-155).
Baudrillard cita Crash (1973), de J. G. Ballard, como exemplo dessa ficção científica voltada
para o estranhamento do cotidiano. Na verdade, numa introdução posterior à publicação do seu
romance, Ballard segue uma linha de raciocínio muito próxima da de Baudrillard:
Além disso, sinto que o equilíbrio entre ficção e realidade mudou de modo significativo nas últimas décadas.
Cada vez mais seus papéis são invertidos. Vivemos num mundo regido por ficções de todos os tipos – o
consumo de massa, a propaganda, a política conduzida como um ramo da propaganda, o pré-esvaziamento,
operado pela televisão, de qualquer resposta original à experiência. Vivemos no interior de uma enorme
novela. Hoje é cada vez menos necessário ao escritor inventar o conteúdo ficcional de seu romance. A
ficção já está aí. A tarefa do escritor é inventar a realidade (BALLARD, 2007, p. 8).
“Inventar a realidade” é o que propõe o nowpunk, mas Gibson já fazia isso antes de
Reconhecimento de padrões, como mostra Siivonen: “Em Gibson, a tecnologia não mais opera como
um signo de legitimação da concepção científica de mundo característica do gênero. Mais ainda, a
própria tecnologia é o alienígena, a alteridade ‘estranha’ que ameaça o ser humano”20 (SIIVONEN,
1996, p. 234). A tecnologia não é apenas signo de legitimação da ficção científica, mas da própria
sociedade ocidental. Neste sentido, ao apresentá-la como estranha, Gibson reinventa a realidade.
Mas qual é a reinvenção de Paz Soldán? Tal qual Gibson, a tecnologia também surge aqui como
elemento estranho?
Na verdade, em Paz Soldán, o estranhamento não advém de tecnologias, mas de paradigmas
tecnicistas. Comecemos pela cibernética e já podemos observá-la no cyber de cyberpunk: “O prefixo ciber vem
de cibernética, a ciência do estudo do controle de processos de comunicação entre homens e máquinas,
homens e homens e máquinas e máquinas” (LEMOS, 2002, p. 204). Para controlar tais processos de
comunicação, a cibernética traduz qualquer sistema (vivo ou não) em termos de informação, ou seja,
num conjunto de acontecimentos probabilísticos: desde os sinais do código Morse até as moléculas do
código genético. É por isso que a personagem Miguel pensa consigo: “Tocas tua pele cansada, cheia de
rugas. Tu também és informação que vai se degradando irreversivelmente”21 (PAZ SOLDÁN, 2005,
p. 147). Mas se tudo pode ser traduzido em termos de informação, mesmo o corpo humano, então
não há distinções entre o homem e a máquina. Este é o paradigma proposto por um famoso teórico
da cibernética: o matemático Alan Turing, referência fundamental para compreendemos o romance de
Paz Soldán e a personagem Miguel, cujo codinome é Turing. Em “Computadores e inteligência” (1950),
Tradução livre do original: “In Gibson technology no longer operates as a sign for the legitimacy of the scientific
conception of the world characteristic of the genre. Far more, it is technology itself that is the alien and ‘uncanny’
otherness threatening humankind”.
21
Tradução livre do original: “Tocas tu piel cansada, llena de arrugas. Tú también eres información que se va degradando
irreversiblemente”.
20
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Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
por exemplo, Alan Turing começa se perguntando: “Podem as máquinas pensar?”. Para responder
positivamente essa pergunta, o matemático procura semelhanças entre a mente pensante (humana) e a
mente programada (máquina) e as encontra reduzindo a primeira à segunda:
No processo de tentar imitar a mente humana adulta, temos de refletir bastante sobre o processo que a
levou até o ponto onde se encontra. Cumpre atentar para três componentes:
(a) O estado inicial da mente, isto é, ao nascer;
(b) A educação que recebeu;
(c) Outras experiências, que não as descritas como educação, a que foi submetida (TURING, 1973, p. 77).
Logo, “em outras palavras, o cérebro humano é também programado, pela genética, pela
educação e pela experiência” (APTER, 1973, p. 77). Este é o delírio de Turing: um mundo onde tudo
é programação, onde tudo é informação. Porém, um mundo imaginado assim não é exclusivo do
paradigma cibernético, como demonstra Pfohl numa analogia reveladora:
Em outras palavras, a cibernética substitui um modelo simplista de comando em uma só via por uma
visão do processo de mandar e receber mensagens como algo mediado pela influência da própria prática
comunicativa: essa seria uma influência das letras, dos ícones e das imagens em movimento. Não fique
surpreso se aqui você achar semelhanças entre a cibernética, com o seu imaginário de comunicadores
descentrados, amarrados a um fluxo de redes de feedback escriturais, textuais e providos de textura, e a
imagem da vida social oferecida por certas versões da teoria pós-estruturalista. A cibernética e o pensamento
pós-estruturalista emergiram em tempos e espaços historicamente relacionados (da metade para o final do
século XX). Os dois estão genealogicamente relacionados, tanto no campo material quanto no imaginário.
Quando estudados criticamente, cada um também sugere (potencialmente) imagens nas quais se reflete e
se repete uma sensibilidade ao poder (PFOHL, 2001, p. 108-109).
De fato, existem várias similaridades entre a cibernética e o pensamento pós-estruturalista.
Se para a cibernética tudo é informação, para o pós-estruturalismo tudo é texto: Anderson, por
exemplo, explica como o pensamento estruturalista surge da exorbitação do conceito de linguagem
proposto por Saussure, culminado na sentença pós-estruturalista derridiana “não há nada fora do
texto”, “nada antes do texto, nenhum pretexto que não seja texto” (DERRIDA apud ANDERSON,
1984, p. 48). Podemos imaginar o Metaverso de Stephenson, que também encontramos em El
delirio, como uma versão ficcional dessa sentença: “O Metaverso é uma estrutura ficcional feita de
código. E o código é simplesmente uma forma de fala – a forma que computadores compreendem”
(STEPHENSON, 2008, p. 198). Porém, sua representação máxima ainda são aquelas cenas de lugares
e pessoas “codificados” (Fig. 1) que assistimos na série cinematográfica Matrix (1999 e 2003), não por
acaso considerada “o auge do cyberpunk cinematográfico” (MORENO, 2003, p. 118):
Figura 1 (Warner Bros., 1999, Matrix)
1180
Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Na Matrix, tudo é texto, e fora da Matrix não há nada, somente o “deserto do real”. De
algum modo, isso nos remete às alucinações da personagem Albert:
Rostos. Passam em frente a mim. Se sentam. Esperam. Me esperam... Seus gestos são códigos. Suas roupas
são códigos. Tudo é código... Tudo é escritura secreta. Tudo é palavra escrita por um Deus ausente... Ou
hemiplégico... Ou um torpe demiurgo... Um incontinente demiurgo...22 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 38).
Se tudo é palavra escrita por um Deus ausente, então onde está o autor? Morto, como declara
Barthes em “A morte do autor” (1968): “A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde
foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo
que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65). Na verdade, desde Lévi-Strauss, o estruturalismo se empenha
categoricamente em excluir o sujeito de qualquer campo de conhecimento científico (ANDERSON,
1984, p. 44). Já em Foucault, não nos alarmamos ao verificar um discurso auto-replicante, acima do
sujeito, como revelam as palavras eloqüentes que abrem a aula inaugural de 1970:
Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar hoje, e nos que deverei pronunciar
aqui, talvez durante anos. Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além
de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há
muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus
interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não haveria,
portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar,
uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível (FOUCAULT, 2007, p. 5-6).
Empregando mais uma vez Nevasca como analogia, os discursos são “idéias virais”,
“informações auto-replicantes”, enquanto os sujeitos são “hospedeiros” dessas idéias, dessas informações
(STEPHENSON, 2008, p. 368-369). Mas também notamos no discurso de Foucault aquela ojeriza por
começos, origens, que reencontramos no pós-estruturalismo. Um exemplo é a crítica derridiana ao
conceito de valor de uso elaborado por Marx, ou melhor, ao valor de uso enquanto origem deturpada pelo
valor de troca: “Em sua iterabilidade originária, um valor de uso está de antemão prometido, prometido
à troca e para além da troca. Ele está de antemão lançado no mercado das equivalências” (DERRIDA,
1994, p. 216). Como em todo estruturalismo, existe aqui uma aplicação da lingüística saussureana – pois
também não é a linguagem um “mercado das equivalências”? –, mais precisamente da relação arbitrária
entre significante e significado: sob esse ponto de vista, é possível equiparar a experiência de comer filé
e a experiência de dirigir no campo, para nos valermos de um exemplo dado por Jameson (JAMESON,
1997, p. 41). Portanto, mesmo sendo posterior a uma fantasmagoria do valor em si (DERRIDA, 1994,
p. 213), mesmo sendo uma ilusão adâmica, o valor de uso é, para Marx, um argumento fundamental
contra a lógica do mercado, contra a transformação de tudo em qualquer coisa. Observamos essa lógica em El
delirio, como afirma Brown:
Paz Soldán emprega as possibilidades pós-humanas dos hackers como um canal para explorar uma realidade
metafórica onde teorias pós-estruturalistas sobre interconexões entre linguagem e realidade culminam num
mundo onde as pessoas são seus números PIN, os corpos dos hackers se dissolvem em seus avatares
virtuais e as ditaduras se re-codificam como governos democráticos dedicados à política neoliberal23
(BROWN, 2006, p. 118).
Onde tudo é linguagem, tudo é cambiável, nada é particular. Para aproveitarmos a analogia
assinalada por Brown – também indicada noutro momento do seu artigo24 –, há uma evidente relação
Tradução livre do original: “Rostros. Pasan frente a mí. Se sientan. Esperan. Me esperan... Sus gestos son códigos.
Sus ropas son códigos. Todo es código... Todo es escritura secreta. Todo es palabra escrita por un Dios ausente... O
hemipléjico... O un torpe demiurgo... Un incontinente demiurgo...”.
23
Tradução livre do original: “Paz Soldán employs the hacker’s posthuman possibilities as a conduit for his exploration
of a metaphorical reality where poststructuralist theories on the interconnections of language and reality culminate in
a world where people are their PIN numbers, hackers’ bodies melt into their virtual avatars and dictatorships re-codify
themselves as democratic governments dedicated to neoliberal policy”.
24
Sobre a personagem Montenegro, um fictício ex-ditador boliviano, Brown afirma que “Paz Soldán alude aqui ao governo
boliviano de Hugo Banzer, ditador eleito de maneira democrática posteriormente, usando a personagem de Montenegro,
um ditador sangrento que desfruta de sucesso democrático semelhante e que aparece em vários romances de Paz Soldán”
22
1181
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
entre o período pós-ditatorial latino-americano e o neoliberalismo quando Richard define a passagem
do antagonismo ditatorial (direita versus esquerda) ao pluralismo democrático-neoliberal como uma
“cadeia passiva de diferenças que se justapõem, indiferentemente, uma às outras, sem confrontar seus
valores para não desapaziguar o eixo de reconciliação neutro da soma”25 (RICHARD, 1999, p. 321322). A linguagem, a política, o mercado é essa reconciliação neutra onde as particularidades (valores
de uso) abrandam suas diferenças perante uma universalidade (valor de troca) regulada por palavras,
votos e dinheiro. Ou como afirma Adorno, especificamente sobre o mercado: “Acima e além de todas
as formas específicas de diferenciação social, a abstração implícita no sistema de mercado representa
a dominação do geral sobre o particular, da sociedade sobre os seus membros cativos” (ADORNO
apud JAMESON, 1997, p. 63).
Mas é em outro romance de Stephenson que notamos mais uma característica do
estruturalismo: em Cryptonomicon (1999), a personagem Lawrence – não por acaso, amiga fictícia da
personagem Alan Turing, ponto de partida desta rede de relações – é assim descrita:
O problema básico de Lawrence era que ele era preguiçoso. Ele havia entendido que tudo era mais
simples se, como o Super-homem com sua visão raio-x, você olhasse através das distrações cosméticas
e visse o esqueleto matemático subjacente. Uma vez encontrada a matemática da coisa, você saberia
tudo sobre ela, e você poderia manipular o conteúdo de seu coração com nada mais que um lápis e um
guardanapo. Ele viu isso na curva das barras prateadas do seu instrumento de percussão, viu isso no
arco catenário de uma ponte e no tambor capacitador da máquina de computação de Atanasoff e Berry 26
(STEPHENSON, 2002, p. 10).
Da mesma forma que Lawrence abusa de seus “esqueletos matemáticos”, o estruturalismo
abusa de suas estruturas, produzindo um efeito semelhante ao da personagem, ou seja, uma indiferença
pelo conteúdo de suas abstrações, sejam elas “barras prateadas de um instrumento de percussão” ou
“arcos de uma ponte”: “O que é importante na análise estruturalista, em geral, é o fato de que ela separa
o conteúdo real da história e se concentra integralmente na forma” (GONÇALVES; BELLODI,
2005, p. 138). Anderson denomina essa característica do estruturalismo como “atenuação da verdade” e
indica novamente o pós-estruturalismo de Derrida como ponto culminante: para o filósofo francês, a
linguagem é “[...] um sistema puro e simples de significantes flutuantes, sem absolutamente nenhuma
relação determinável com qualquer referente extralingüístico” (ANDERSON, 1984, p. 53). Desde
que descubramos as estruturas ou as “linhas de código” que governam o universo, pouco importa o
que elas representam:
Todas as respostas deveriam conduzir a somente uma: se o programa que faz funcionar o universo for
matemático, haveria um algoritmo primeiro do qual derivam os demais. Se o programa for computacional,
se trataria de três ou quatro linhas de código, responsáveis por explicar tanto as marés como as manchas
do leopardo e a multiplicidade de linguagens e os movimentos de tua mão direita e o vôo das moscas e o
nascimento das galáxias e Da Vinci e Borges e os cabelos pegajosos de Flavia e a sombra que projetam os
salgueiros-chorões e Alan Turing27 (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 238-239).
(BROWN, 2006, p. 116). Tradução livre do original: “Paz Soldán alludes here to the Bolivian governments of Hugo
Banzer, the democratically elected former dictator, using the character of Montenegro, a bloody dictator who enjoys
similar democratic success and who appears in many of Paz Soldán’s novels”.
25
Sobre esse assunto, ver nosso artigo (LONDERO, 2008b).
26
Tradução livre do original: “The basic problem for Lawrence was that he was lazy. He had figured out that everything
was much simpler if, like Superman with his X-ray vision, you just stared through the cosmetic distractions and saw the
underlying mathematical skeleton. Once you found the math in a thing, you knew everything about it, and you could
manipulate it to your heart’s content with nothing more a pencil and a napkin. He saw it in the curve of the silver bars
on his glockenspiel, saw it in the catenary arch of a bridge and in the capacitor-studded drum of Atanasoff and Berry’s
computing machine”.
27
Tradução livre do original: “Todas las respuestas deberían conducir a una sola: si el programa que hace funcionar el
universo fuera matemático, habría un algoritmo primero del que derivan los demás. Si el programa fuera computacional,
se trataría de tres o cuatro líneas de código, responsables de explicar tanto las mareas como las manchas del leopardo y la
multiplicidad de lenguajes y los movimientos de tu mano derecha y el vuelo de las moscas y el nacimiento de las galaxias y
Da Vinci y Borges y la cabellera pegajosa de Flavia y la sombra que proyectan los sauces llorones y Alan Turing”.
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Volume 3
Tema geral: Línguas e Literaturas: Diversidade e Adversidades na América Latina
Este pensamento de Miguel é semelhante ao de Lawrence – o que não nos surpreende,
considerando o tema-comum das duas obras: a criptoanálise. Mas a realidade se esvanece definitivamente
numa referência intertextual de El delirio (PAZ SOLDÁN, 2005, p. 221): o conto “A formiga elétrica”
(1969), de Philip K. Dick. Neste conto, a personagem Garson Poole descobre que é um andróide e, ao
se examinar, encontra um rolo de fita que funciona como um “dispositivo fornecedor de realidade”
(DICK, 2005, p. 90). Mexendo nessa fita, Poole produz efeitos surreais, como patos que surgem no
meio da sala, desmentidos por sua parceira Sarah que nada percebe:
– Não eram de verdade – disse Sarah. – Ou será que eram? Pois como é que...
– Você também não é de verdade – retrucou. – Não passa de um elemento de estímulo na minha fita de
realidade. Uma perfuração que pode desaparecer com verniz. Será que você existe noutra fita de realidade
ou numa que tenha realidade objetiva? (DICK, 2005, p. 102)
Ao fim do conto, Poole é destruído e, junto com ele, toda a realidade! Aqui, como no
estruturalismo, a realidade é reduzida a um rolo de fita, a um texto. Mas diante deste panorama do
estruturalismo que esboçamos até então, o que El delirio oferece como alternativa? Devemos agora
regressar ao apelo de Kandinsky, ou seja, ao retorno do real e, conseqüentemente, do marxismo,
derrotado pelo estruturalismo no início da década de 1960 (ANDERSON, 1984, p. 38). De fato, a
conjugação entre realidade e marxismo realizada por Kandinsky nos parece uma resposta ao delírio de
Turing, ou seja, ao estruturalismo latente de Miguel. O retorno do marxismo é, portanto, o retorno do
sujeito, do particular e do referente. E mesmo esse retorno revela laços de parentesco com o realismo
mágico, pois algo (um simulacro?) da Revolução Cubana ressurge no horizonte de Río Fugitivo.
***
Ao longo deste artigo analisamos o romance de Paz Soldán a partir das suas relações com
a ficção cyberpunk e com o realismo mágico. A primeira aparece, desde logo, nas epígrafes da obra,
onde um escritor do gênero é citado: na verdade, duas obras de Stephenson, Nevasca e Cryptonomicon,
surgem como referências intertextuais em El delirio. Mas como integrante da geração McOndo – uma
paródia dos tempos de globalização a Macondo de García Márquez –, Paz Soldán também dialoga
com seus antecedentes latino-americanos, propondo críticas e releituras das obras do realismo mágico.
Nesse embate entre o próprio e o alheio (CARVALHAL, 2003), é difícil saber quem é quem devido ao
posicionamento ambíguo do autor diante das referências literárias latino e norte-americanas: enquanto
o alheio da ficção cyberpunk torna-se próprio no mundo globalizado, o próprio do realismo mágico
torna-se alheio, artigo de exportação.
Toda essa discussão acaba por desencadear outro embate, entre o estruturalismo e o
marxismo. Se no embate anterior não reconhecemos o que é e o que não é nosso, aqui uma tradição
marxista latino-americana parece responder a uma invasão estruturalista neoliberal. Claro, uma leitura
possivelmente “corrigida” pelas ambigüidades da obra.
Referências
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POESIA BRASILEIRA E MÚSICA ATONAL
Rodrigo de Albuquerque MARQUES
(UECE-FECLESC)
RESUMO: Este artigo procurar apontar o diálogo entre a poesia brasileira da década de 1950 e 1960 e as
vanguardas musicais ligadas à Segunda Escola de Viena. Em diversos textos teóricos e poéticos do concretismo,
Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari dissertaram sobre a linguagem poética e a
linguagem musical de compositores como Schoenberg, Webern, Pierre Boulez e Stockhausen. Ao mesmo
passo, João Cabral de Melo Neto publicou, em 1963, o livro “Serial” que vem estruturado formalmente com
alguns elementos da música dodecafônica.
PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada – concretismo – João Cabral de Melo Neto – música atonal
ABSTRACT: This article analyses the dialogue between the Brazilian poetry (1950 to 1960) and musical
vanguards (Second School of Vienna). In many texts, Augusto de Campos, Haroldo de Campos and Décio
Pignatari discourse about poetry language and musical language of composers such as Schoenberg, Webern,
Pierre Boulez and Stockhausen. At the same time, João Cabral de Melo Neto published in 1963, the book
“Serial” that is formally structured with some elements of the dodecafone music.
KEY WORDS: comparative literature – concretism – João Cabralde Melo Neto – atonal music
Anais do II Congresso Internacional de Estudos Linguísticos e Literários na Amazônia (CIELLA)
A música de vanguarda européia que desagregou o sistema tonal no início do século XX
não se inseriu de forma efetiva e radical no debate estético da primeira fase do modernismo literário
brasileiro. No entanto, o diálogo entre literatura e música de vanguarda seria retomado nos anos de
1950 a 1970 pela poesia d