Visualizar/Abrir - Universidade Federal de Pernambuco

Transcription

Visualizar/Abrir - Universidade Federal de Pernambuco
PLÍNIO PACHECO C. DE OLIVEIRA
UMA CRÍTICA RETÓRICA AO JUSPOSITIVISMO E AO
ONTOLOGISMO AXIOLÓGICO NO DIREITO
EM TORNO DA CIENTIFICIDADE, DA ABERTURA AO DISSENSO E DA
METODOLOGIA NA TEORIA JURÍDICA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Recife
2012
PLÍNIO PACHECO C. DE OLIVEIRA
UMA CRÍTICA RETÓRICA AO JUSPOSITIVISMO E AO
ONTOLOGISMO AXIOLÓGICO NO DIREITO
EM TORNO DA CIENTIFICIDADE, DA ABERTURA AO DISSENSO E DA
METODOLOGIA NA TEORIA JURÍDICA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade de Direito do
Recife / Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal de Pernambuco PPGD/UFPE,
como requisito parcial para obtenção do grau de
mestre
Área de Concentração: Teoria e Dogmática do
Direito
Linha de pesquisa: Linguagem e Direito
Orientador:
Adeodato
Recife
2012
Prof.
Dr.
João
Maurício
Leitão
Catalogação na fonte
Bibliotecária Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832
O48c
Oliveira, Plínio Pacheco C. de
Uma crítica retórica ao juspositivismo e ao ontologismo axiológico no
direito: em torno da cientificidade, da abertura ao dissenso e da metodologia na
teoria jurídica / Plínio Pacheco C. de Oliveira. – Recife: O Autor, 2012.
105 f.
Orientador: João Maurício Leitão Adeodato.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ.
Direito, 2012.
Inclui bibliografia.
1. Direito - Filosofia. 2. Juspositivismo - Interpretação retórica. 3. Teoria do
direito. 4. Positivismo. 5. Filosofia do direito. 6. Retórica - Linguagem. 7. Direito
natural. 8. Direito positivo. 9. Decisões judiciais. 10. Verdade ética. 11.
Axiologia. I. Adeodato, João Maurício Leitão (Orientador). II. Título.
340.1 CDD (22. ed.)
UFPE (BSCCJ2012-016)
Para minhas mães.
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES pelo auxílio
concedido.
Ao meu orientador João Maurício Adeodato pela sua contribuição para a realização deste
trabalho.
I
“En nuestro empeño por entender la realidad nos parecemos a alguien que tratara de descubrir
el mecanismo invisible de un reloj, del cual sólo ve el movimiento de las agujas, oye el tictac, pero no tiene forma de abrir la caja para ver lo que hay adentro. Si se trata de una persona
ingeniosa, podrá imaginar o suponer un mecanismo que sea el responsable de todo lo que se
observa fuera de la caja, pero nunca podrá estar seguro de si su suposición o lo que él imagina
es lo único que explica los efectos observados. Jamás podrá comparar lo que él imagina con el
mecanismo real que está dentro de la caja y ni siquiera podrá saber si tal comparación tendrá
sentido”.
“Em nosso empenho em entender a realidade nos parecemos com alguém que tratasse de
descobrir o mecanismo invisível de um relógio, do qual só vê o movimento dos ponteiros,
ouve o tique-taque, mas não tem como abrir a caixa para ver o que há dentro. Caso se trate de
uma pessoa engenhosa, poderá imaginar ou supor um mecanismo que seja o responsável por
tudo o que se observa fora da caixa, mas nunca poderá estar seguro de que a sua suposição ou
o que imagina é a única explicação para os efeitos observados. Jamais poderá comparar o que
imagina com o mecanismo real que está dentro da caixa e nem sequer poderá saber se tal
comparação terá sentido”.
(Albert Einstein y Leopold Infeld, La Física: Aventura del Pensamiento, 1950)
II
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
(Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, 2000)
RESUMO
OLIVEIRA, Plínio Pacheco. Uma crítica retórica ao juspositivismo e ao ontologismo
axiológico no direito: em torno da cientificidade, da abertura ao dissenso e da metodologia na
teoria jurídica. 2012. 105 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação
em Direito, Centro de Ciências Jurídicas/FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2012.
O presente trabalho pretende apresentar uma interpretação retórica sobre aspectos
proeminentes de dois horizontes das idéias jurídicas: o paradigma teórico que caracterizou o
juspositivismo até meados do século XX e o cenário recente da teoria do direito. Ante o
primeiro horizonte, damos enfoque ao ideal científico e à distinção entre produzir e aplicar o
direito. Refletimos, por um lado, que a busca de cientificidade do direito floresceu como um
projeto retórico. Ademais, apontamos que o argumento que vincula a ascensão do nazismo ao
formalismo jurídico oriundo do ideal científico é mais um artifício retórico do que um relato
pertinente do juspositivismo. Por outro lado, a respeito da distinção entre criar e aplicar o
direito, consideramos que é ligada, no âmbito do juspositivismo, à pretensão de segurança
jurídica que floresceu no liberalismo clássico. Examinamos, entretanto, que tal distinção
minimiza o espaço da retórica na argumentação judicial. Já em relação à teoria jurídica
recente, criticamos o uso do termo “pós-positivismo” e damos enfoque ao ontologismo
axiológico e à indeterminação do direito. Analisamos que o entendimento de que um valor
acolhido pelo direito é uma verdade ética pode ser problemático diante do ideal democrático
de abertura ao dissenso, pois o ontologismo axiológico pode reduzir possibilidades da retórica
no plano dos discursos opostos à “verdade”. Por outro lado, observamos que a ênfase na
indeterminação do direito ampliou a visibilidade da retórica na argumentação judicial.
Palavras-chave: Retórica. Positivismo jurídico. Ciência do direito. Metodologia jurídica.
Verdade ética.
ABSTRACT
OLIVEIRA, Plínio Pacheco. A rhetorical criticism to the legal positivism and to the
axiological ontologism in law: about scientificism, opening to dissensus and methodology in
legal theory. 2012. 105 p. Dissertation (Master’s degree of Law) – Programa de PósGraduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas/FDR, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2012.
The present work intends to present a rethorical interpretation about prominent aspects of two
horizons in legal ideas: the theoretical paradigm that characterized the juspositivism until the
middle of the last century and the scenery of recent theory of law. In view of the fist horizon,
we focalize the scientific ideal and the distinction between creation and application of law.
We reflect, on the one hand, that the intention to adapt the legal theory to a scientific model
flourished as a rethorical project. Meanwhile, we analyze that the argument which links the
nazism’s ascension to the legal formalism derived from the scientific ideal is more a rethorical
artifice than a pertinent report about juspositivism. On the other hand, as regard the distinction
between production and application of law, we consider that it is linked, in the field of
juspositivism, to the intention to control the future which flourished in classical liberalism.
Nevertheless, we consider that such distinction minimizes the rethoric’s space in judicial
argumentation. Regarding the scenery of recent theory of law, we criticize the use of the term
“post-positivism” and focalize the legal indeterminacy and the assertion of ethical truths. On
the one hand, we consider that to understand a value received by legal norms as a
representation of an ethical truth may be something problematic regarding the democratic
intention to make the law opened to distinct values, because such understanding may build
obstacles against diverging arguments that reduce the rethoric’s possibilities in the field of the
discourses opposed to the “truth”. On the other hand, we observe that the emphasis in legal
indeterminacy amplified the visibility of the rethoric’s space in judicial argumentation.
Keywords: Rethoric. Legal positivism. Science of law. Legal methodology. Ethical truth.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – Uma observação retórica em torno do discurso científico, da metodologia
e dos valores no âmbito da teoria jurídica ................................................................................13
1. Alicerces filosóficos sobre os quais será construída a dissertação: o contextualismo na ética
e no conhecimento, a dúvida quanto ao domínio da verdade e a idéia de que a retórica
constitui caminhos da linguagem e da realidade ..................................................................... 13
2. A retórica em face da ciência e da jurisdição não criativa, e perante a verdade ética e a
indeterminação do direito ........................................................................................................ 15
3. Resumo de conteúdo: esta dissertação abordará relações entre a retórica (como faculdade
de identificar os meios disponíveis para usar eficientemente a linguagem) e a teoria do direito,
lançando o foco de análise sobre o ideal científico e a metodologia que caracterizaram o
juspositivismo, e sobre o ontologismo axiológico e a consciência da construção interpretativa
do direito no âmbito das idéias jurídicas recentes ................................................................... 17
CAPÍTULO PRIMEIRO – Retórica, verdade e fabricação do mundo ................................ 20
1. A tradição da retórica como um longo império cultural que vivenciou seu ocaso por volta
do
século
XIX
e
refloresceu
na
segunda
metade
do
século
passado..................................................................................................................................... 20
1.1 Do alvorecer grego à constância no mundo medieval...................................................... 20
1.2
A
modernidade
e
a
retórica
opaca:
entre
a
sombra
e
a
penumbra.................................................................................................................................. 28
2. A inafastabilidade da retórica na vivência humana: o espelho que dá às linguagens e às
realidades os seus rostos ......................................................................................................... 32
2.1
A
linguagem
como
palco
inseparável
da
arte
de
modelar
o
discurso.................................................................................................................................... 32
2.2 Retórica e construção da “realidade” ............................................................................... 34
3. A retórica como luz para clarificar a verdade ou
arte inútil diante da
evidência.................................................................................................................................. 37
CAPÍTULO SEGUNDO – Juspositivismo, retórica do discurso científico e a idéia de
justificação das decisões judiciais erguida sobre a separação entre criação e aplicação do
direito ...................................................................................................................................... 41
1. O conceito de positivismo jurídico: um quadro entre outros possíveis diante de uma face de
reflexo múltiplo ....................................................................................................................... 41
1.1 Linguagem, ordenação simbólica e o mundo como espelho turvo: observação sobre a
relação
entre
os
conceitos
e
a
realidade
para
uma
adequada
análise
do
juspositivismo.......................................................................................................................... 41
1.2
Delimitação
do
conceito
de
juspositivismo
nesta
dissertação................................................................................................................................ 44
2. Retórica, secularização e o discurso científico do juspositivismo ...................................... 48
2.1 Religião, razão e ciência entre vontade de verdade e vontade de poder: horizontes
antropológicos
e
históricos
da
ascensão
da
racionalidade
e
do
discurso
científico................................................................................................................................... 48
2.2 A retórica no discurso científico juspositivista e na caricatura antipositivista da Reductio
ad Hitlerum ............................................................................................................................. 52
3. Florescimento do liberalismo e do ideal de legalidade como “oráculo” burguês: caminhos
em
direção
à
separação
entre
a
criação
e
a
aplicação
do
direito....................................................................................................................................... 57
4. O espaço reduzido da retórica na justificação de decisões judiciais sob a distinção entre
produzir e aplicar o direito: a limitação da jurisdição a uma racionalidade formal e a um
campo argumentativo no qual é minimizada a contingência em torno do sentido dos textos
normativos ............................................................................................................................... 63
CAPÍTULO TERCEIRO – A retórica diante do ontologismo axiológico e a ênfase na
indeterminação do direito ........................................................................................................ 67
1. A proeminência
da
atitude valorativa
e da consciência da indeterminação do
direito no cenário das idéias jurídicas recentes, e o reducionismo no uso do termo
“pós-positivismo”
para
identificar
o
paradigma
atual
da
teoria
do
direito....................................................................................................................................... 67
2. O ontologismo axiológico ante o discurso valorativo no pensamento jurídico atual, e o seu
caráter problemático em relação ao ideal democrático de tornar o direito um campo aberto
para divergências ..................................................................................................................... 76
3. Adequação da postura opinativa à busca da permeabilidade jurídica e fundamentos
filosóficos para um olhar carente de verdades ........................................................................ 82
4. A visibilidade do espaço da retórica na justificação das decisões judiciais em face da ênfase
na indeterminação do direito ................................................................................................... 87
CONCLUSÃO: O discurso teórico jurídico como um horizonte inafastável da retórica, a
necessidade de mais pertinência na caracterização do juspositivismo por partidários do “póspositivismo” e a precisão de posturas éticas construídas sobre a plataforma da
tolerância.................................................................................................................................. 94
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 99
INTRODUÇÃO: Uma observação retórica em torno do discurso científico,
da metodologia e dos valores no âmbito da teoria jurídica
Sumário: 1. Alicerces filosóficos sobre os quais será construída a dissertação: o
contextualismo na ética e no conhecimento, a dúvida quanto ao domínio da verdade
e a idéia de que a retórica constitui caminhos da linguagem e da realidade. 2. A
retórica em face da ciência e da jurisdição não criativa, e perante a verdade ética e a
indeterminação do direito. 3. Resumo de conteúdo: esta dissertação abordará
relações entre a retórica (como faculdade de identificar os meios disponíveis para
usar eficientemente a linguagem) e a teoria do direito, lançando o foco de análise
sobre o ideal científico e a metodologia que caracterizaram o juspositivismo, e sobre
o ontologismo axiológico e a consciência da construção interpretativa do direito no
âmbito das idéias jurídicas recentes
1. Alicerces filosóficos sobre os quais será construída a dissertação: o
contextualismo na ética e no conhecimento, a dúvida quanto ao domínio da
verdade e a idéia de que a retórica constitui caminhos da linguagem e da
realidade
Nas letras introdutórias dos rumos a serem percorridos em uma reflexão, é cabível
que os apontamentos iniciais sejam destinados à indicação dos pontos de partida, dos
“pórticos de entrada” para os caminhos que serão trilhados. A observação dos “alicerces”
permite, talvez, o melhor entendimento a respeito do que será construído sobre eles. Desse
modo, iniciamos esta introdução indicando três perspectivas que representam bases sobre as
quais será erguida a dissertação (e que receberão fundamentações no decorrer do trabalho):
1) Primeira perspectiva: entre o ser humano e os elementos da existência há uma
“ponte” que não se pode atravessar: o contexto histórico. A percepção é sempre contextual e
inserida em uma tradição, ocorrendo como confluência do passado e do presente, e não como
14
atividade de uma consciência isolada diante dos objetos1. As maneiras de vivenciar o mundo,
incluindo o eu, são condicionadas por uma série de fatores históricos (como a linguagem, os
preconceitos, as relações de poder, etc.) que não permitem o isolamento do sujeito nem a
objetividade do conhecimento e dos valores. Como acontecimento singular, toda relação com
os elementos do mundo traz, em maior ou menor medida, alguma carga de particularidades,
mas as rupturas com o contexto não são totais. A linguagem, por exemplo, é uma expressão
contextual da qual não podemos nos afastar (e que é a forma de manifestação dos outros
fatores históricos que compõem os contextos nos quais se desdobra a existência). São
cotidianas as inovações no seu âmbito, mas não há uma quebra total dos referenciais, dos
conceitos, da gramática, sendo necessário algum nível de permanência nos padrões para que
haja comunicação.
2) Segunda perspectiva: O caráter multifacetado dos elementos do mundo e as
limitações do aparato cognoscitivo do ser humano permitem a dúvida quanto à existência do
domínio de verdades absolutas. A desconfiança de que o ser humano não consegue abarcar “o
absoluto” em sua retina é uma força que move a prudência sobre os juízos e o respeito a
visões divergentes. No entanto, o que é apresentado como “realidade” parece ser apenas a
representação de um conjunto de relatos que triunfaram.
3) Terceira perspectiva: além de teoria das figuras do discurso e de teoria da
argumentação (que são tipos de discurso sobre o discurso), a retórica denota a faculdade de
perceber, em cada caso, os caminhos disponíveis para argumentar eficientemente2 (faculdade
sobre o discurso). Neste último sentido, a retórica é um poder que dá rumos ao uso da
linguagem para que haja sucesso no discurso e que é capaz de fazer relatos prevalecerem
sobre outros — atuando, portanto, como um “manancial de verdades”, que parecem ser apenas
metáforas que servem para identificar opiniões vitoriosas. Desse modo, a “realidade” pode ser
vista como uma obra esculpida por forças retóricas (em conjunto com outros elementos, como
a violência).
1
GADAMER, Hans-Georg. Truth and Method. Second Edition, Revised. London: Continuum, 2006, p. 268 e
s.
2
ARISTÓTELES. Retórica. Introducción, traducción y notas por Quintín Racionero. Madrid: Editorial Gredos,
1994, p. 173 (I, 2, 1355b 25-27).
15
2. A retórica em face da ciência e da jurisdição não criativa, e perante a
verdade ética e a indeterminação do direito
Sobre as bases acima referidas, pretendemos observar o pensamento jurídico por
um enfoque retórico, apontando relações entre o plano das idéias jurídicas e a retórica vista
como uma faculdade que tem um papel constitutivo de caminhos da linguagem e da realidade.
Dessa maneira, a dissertação buscará tratar das seguintes questões:
1) Primeiro, dois aspectos que foram marcantes em teorias juspositivistas, mas
que hoje já não têm (inclusive no positivismo jurídico atual) o mesmo lugar de destaque que
ocupavam na esfera dos saberes jurídicos: o discurso científico e a separação entre a criação e
a aplicação do direito. Em relação à pretensão de adequar o discurso teórico jurídico às
exigências de um saber científico (busca que representa, segundo o juízo de Bobbio, o esforço
do qual nasceu o positivismo jurídico3), refletiremos sobre o sentido retórico do seu
florescimento, observando a sua ligação com o processo de secularização pelo qual passou a
Europa no decorrer da modernidade – em razão do qual o discurso científico assumiu uma
posição eminente entre os outros tipos de discurso, e foi disposto em relevo como um
caminho apropriado para atingir a verdade. Ademais, consideraremos a retórica no argumento
antipositivista que vincula a compreensão de que o direito pode assumir qualquer conteúdo (a
qual foi originada da postura avalorativa erguida pela pretensão de cientificidade do discurso
teórico jurídico4) à afirmação da ética nazista. No que se refere à idéia da separação entre a
criação e a aplicação do direito, apontaremos, por um lado, que expressa no campo teórico
juspositivista uma visão sobre as relações entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário que é
ligada ao ideal de segurança jurídica e domínio do futuro que floresceu no liberalismo
clássico. Por outro lado, refletiremos sobre o espaço da retórica na atividade de justificar
decisões judiciais vista de acordo com tal idéia.
2) Ulteriormente, lançaremos o olhar sobre o horizonte do pensamento jurídico
atual, em que tanto a busca de adequação do discurso teórico aos limites de uma linguagem
descritiva e avalorativa (pretensamente científica) quanto a separação forte entre produzir e
3
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 135.
4
Idem. p.131 e 144 e s.
16
aplicar o direito perderam a centralidade. Inicialmente, refletiremos que o uso do termo “póspositivismo” para representar tal horizonte é marcado pelo reducionismo, pois a oposição que
é feita entre teorias positivistas e pós-positivistas parte, em geral, da desconsideração do
juspositivismo atual. Dessa maneira, observando a teoria jurídica recente como um quadro
multifacetado – no qual a conexão entre direito e moral e a ênfase em questões sobre a
interpretação representam pontos possíveis de articulação entre perspectivas teóricas
heterogêneas5 –, passaremos a abordar dois aspectos: o ontologismo axiológico e a idéia da
indeterminação do direito. Em relação à afirmação de verdades éticas e de conteúdos jurídicos
necessários (que ganhou novo fôlego no pensamento jurídico a partir da crise do
juspositivismo em meados do século passado, quando floresceram posturas teóricas que
assumem um papel valorativo), observaremos o seu caráter problemático em face da
pluralidade ética que caracteriza a sociedade contemporânea. Examinaremos que a idéia de
que um valor acolhido pelo direito é uma verdade ética pode dificultar a abertura da ordem
jurídica para valores distintos, constituindo um bloqueio contra argumentos divergentes que
reduz a capacidade persuasiva e as possibilidades da retórica no plano dos discursos opostos
ao que é visto como verdadeiro. Dessa maneira, considerando que sob a visão opinativa da
ética a retórica não é um instrumento de afirmação de “verdades” que podem representar
barreiras para argumentos contrários – mas sim um poder que serve de modo mais equivalente
o discurso diverso –, refletiremos sobre a adequação da postura opinativa para o ideal
democrático de abertura do direito para perspectivas éticas que não encontram respaldo em
normas jurídicas.
Por outro lado, pretendemos analisar o espaço da retórica na justificação das
decisões judiciais ante a idéia da indeterminação do direito, a qual representa um dos
elementos mais proeminentes no pensamento jurídico recente – em que os problemas em
torno da interpretação e a fragilidade das teorias da única decisão correta são postos em
destaque tanto por teorias juspositivistas quanto por teorias não positivistas.
5
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I, p. 209219, 1998; JUST, Gustavo. La jurisprudence herméneutique et son horizon: l’interprétation entre ses conditions
et ses possibilités. Droits, Paris, nº 40, p. 219 e s., 2004.
17
3. Resumo de conteúdo: esta dissertação abordará relações entre a retórica
(como
faculdade
de
identificar
os
meios
disponíveis
para
usar
eficientemente a linguagem) e a teoria do direito, lançando o foco de análise
sobre o ideal científico e a metodologia que caracterizaram o
juspositivismo, e sobre o ontologismo axiológico e a consciência da
construção interpretativa do direito no âmbito das idéias jurídicas recentes
A dissertação será dividida em três capítulos:
No primeiro capítulo, faremos uma análise sobre a retórica que servirá de
fundamento para o restante do trabalho. Essa parte inicial da dissertação não trará ainda uma
exposição jurídica, mas será um sustentáculo para a reflexão que realizaremos nos capítulos
posteriores em torno de relações entre o campo das idéias jurídicas e a retórica. Desse modo,
abordaremos a retórica tanto na sua dimensão teórica (como discurso sobre o discurso) quanto
na dimensão em que representa a faculdade de perceber na prática os caminhos para
argumentar bem. A princípio, trataremos da retórica como um conjunto de saberes sobre o uso
eficiente da linguagem. Sem a pretensão de apresentar uma história da retórica, ou mesmo de
fazer uma síntese a esse respeito (tarefa que não escaparia da circunstância de que qualquer
síntese é mais caricatura do que retrato), lançaremos um olhar sobre momentos dotados de
relevância histórica e teórica dessa tradição do pensamento sobre o discurso. Em seguida,
refletiremos sobre a retórica como faculdade de identificar os meios disponíveis para usar
eficientemente a linguagem. Esse último sentido do termo “retórica” é o mais importante para
esta dissertação, pois sobre ele será construída a análise de relações entre a retórica e o
pensamento jurídico. Dessa maneira, buscaremos apontar que a prática da linguagem é
inseparável da retórica, a qual demarca o que é adequado ou inadequado no uso dos signos
lingüísticos. Também será feita uma exposição em torno das relações entre retórica e
realidade. Ademais, observando que o campo da retórica é constituído pelo que é contingente,
analisaremos a sua disposição perante o reconhecimento do domínio da verdade.
O segundo capítulo abordará, ante o horizonte teórico do positivismo jurídico, o
discurso científico e a distinção entre criar e aplicar o direito. Inicialmente, examinaremos o
conceito de juspositivismo, e, para tanto, faremos uma reflexão preliminar sobre a atividade
18
de conceituar, indicando que ela representa mais uma forma de controle do mundo do que
uma maneira de representar a realidade. Depois, buscaremos analisar relações entre o discurso
científico juspositivista e a retórica. Para considerar a pretensão do juspositivismo de adequar
o discurso teórico jurídico às exigências da ciência, refletiremos sobre a ascensão do discurso
científico na história a partir da situação de deslocamento do ideal de domínio da verdade e
controle da natureza do âmbito da religião para a razão. Então, será indicado que, no processo
de secularização que ocorreu durante a modernidade na Europa, foram concentradas sobre a
ciência grandes expectativas de atingir tal ideal, o que conferiu prestígio ao discurso científico
e abriu caminhos para a busca de cientificização do pensamento jurídico. Feitos tais
apontamentos, observaremos o significado retórico da pretensão juspositivista de tornar
científico o discurso teórico jurídico. Também lançaremos um olhar sobre a retórica no
argumento antipositivista da Reductio ad Hitlerum (conforme a expressão usada por Bobbio6),
que traz a acusação de que o positivismo jurídico representa uma postura que foi favorável a
regimes autoritários como o nazismo e o fascismo. Por outro lado, faremos uma exposição
sobre o horizonte histórico no qual floresceu o ideal liberal de segurança jurídica e
previsibilidade da ação estatal, e apontaremos que tal ideal – erguido sobre a separação entre a
criação e a aplicação do direito – foi acolhido no juspositivismo. Em seguida, buscaremos
examinar que a metodologia fundada na distinção entre produzir e aplicar o direito minimiza
o espaço da retórica na justificação de decisões judiciais.
No terceiro capítulo, buscaremos, a princípio, observar que o uso do termo “póspositivismo” para identificar o paradigma contemporâneo da teoria do direito é realizado,
ordinariamente, a partir da desconsideração do positivismo jurídico atual, reduzindo este rumo
teórico a características que o marcaram até meados do século passado, mas que perderam
espaço nos seus desenvolvimentos recentes – tais como a concepção de interpretação erguida
sobre a distinção entre criar e aplicar o direito e o entendimento de que os princípios não têm
força normativa. Desse modo, diante do campo da teoria jurídica atual – que pode ser visto
como um plano constituído por correntes “positivistas” e “não positivistas” –, indicaremos
que a reação ao discurso pretensamente avalorativo e científico deu novo fôlego ao
ontologismo axiológico. Então, considerando a pluralidade ética que caracteriza a sociedade
contemporânea e o ideal democrático de abertura do direito ao dissenso, abordaremos que a
afirmação de verdades éticas e de conteúdos jurídicos necessários pode constituir uma atitude
6
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, 225 e s.
19
problemática, pois a idéia do domínio da verdade pode levar a um fechamento do direito para
perspectivas éticas por ele ainda não acolhidas – minimizando a capacidade persuasiva dos
argumentos que discordam do que é concebido como verdadeiro, e, portanto, reduzindo a
força da retórica no plano dos discursos contrapostos à “verdade”. Feitas tais observações,
será apontado que a postura opinativa dispõe o poder da retórica de um modo mais
equivalente em relação ao discurso diverso, e é mais adequada do que ontologismo axiológico
ao ideal da permeabilidade do direito. Ademais, analisaremos fundamentos filosóficos de tal
postura. Por fim, buscaremos refletir sobre o aumento da visibilidade do espaço da retórica na
justificação das decisões judiciais ante o reconhecimento da indeterminação do direito – que,
assim como a atitude teórica valorativa que deu lugar à revivescência do ontologismo
axiológico, é um dos traços realçados no quadro das idéias jurídicas recentes.
CAPÍTULO PRIMEIRO – Retórica, verdade e fabricação do mundo
Sumário: 1. A tradição da retórica como um longo império cultural que vivenciou
seu ocaso por volta do século XIX e refloresceu na segunda metade do século
passado. 1.1. Do alvorecer grego à constância no mundo medieval. 1.2. A
modernidade e a retórica opaca: entre a sombra e a penumbra. 2. A inafastabilidade
da retórica na vivência humana: o espelho que dá às linguagens e às realidades os
seus rostos. 2.1. A linguagem como palco inseparável da arte de modelar o discurso.
2.2. Retórica e construção da “realidade”. 3. A retórica como luz para clarificar a
verdade ou arte inútil diante da evidência.
1. A tradição da retórica como um longo império cultural que vivenciou seu
ocaso por volta do século XIX e refloresceu na segunda metade do século
passado
1.1. Do alvorecer grego à constância no mundo medieval
A retórica no sentido de metalinguagem, de um conjunto de saberes voltado para
o uso eficiente da linguagem, surgiu na Sicília grega no século V a.C. tendo uma vocação
original para uma teoria da argumentação, para uma teoria do discurso persuasivo, e resultou
de conflitos de propriedade, da necessidade de eloqüência judiciária em um período no qual
não havia advogados e cabia aos próprios litigantes a defesa de suas causas.7 Esse saber, cujo
nome é proveniente do termo “rétor” [rhetor], que para os gregos era o mesmo que orador8,
teve como primeiros professores Empédocles de Agrigento, Córax de Siracusa (seu aluno) e
7
CUNHA, Tito Cardoso e. Prefácio. In: NIETZSCHE, Friedrich. Da Retórica. Tradução de Tito Cardoso e
Cunha. 1ª Edição. Lisboa: Veja, 1995, p. 07; BARTHES, Roland. La Aventura Semiológica. Traducción de
Ramon Alcalde. 2ª edición. Barcelona: Ediciones Paidós, 1993, p. 86-88; REBOUL, Olivier. Introdução à
Retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 02.
8
VICO, Giambattista. Instituciones de Oratoria (selección de los 10 primeros capítulos). Traducción del latín y
notas de Francisco Navarro Gómez. Cuadernos sobre Vico, Sevilla, nº 15-16, p. 415-430, 2003.
21
Tísias, sendo atribuída aos dois últimos a autoria da primeira obra sobre o assunto, destinada
ao sucesso judicial.9
No entanto, o despertar dos regimes democráticos nas cidades-estados gregas no
decorrer do século V a.C. constituiu um campo favorável para o florescimento da retórica. A
eloqüência, então, despontava como uma virtude necessária ao cidadão para um adequado
exercício da sua atividade política, e o ensino da arte oratória foi propagado entre os povos
helênicos. A este respeito discorreu J. B. Bury:
As instituições de uma cidade democrática grega pressupunham no cidadão médio a
faculdade de falar em público, e para qualquer um que tivesse ambição de uma
carreira política ela era indispensável. Se um homem era arrastado a uma corte
jurídica pelos seus inimigos e não sabia como falar, ele era como um civil
desarmado atacado por soldados. O poder de expressar idéias claramente e de tal
modo como persuadir um auditório era uma arte a ser aprendida e ensinada10.
Como professores viajantes entre as cidades gregas, os sofistas supriam, em
alguma medida, as necessidades de conhecimentos que tornassem os cidadãos aptos para suas
funções políticas, e pensadores como Protágoras e Górgias desempenharam um papel para a
difusão da retórica, que entre os sofistas era um saber fundamental.
Contudo, dispondo-se nas margens do caminho de valorização da arte oratória,
Platão enxergou os saberes retóricos de um ponto de vista depreciativo. Na sua perspectiva, os
objetivos da retórica e da filosofia são distintos, e os filósofos, definidos como “amantes da
visão da verdade”11, não se confundem com os retóricos, comprometidos com a persuasão e
não com a verdade, que sequer precisam conhecer.12 A retórica, segundo a concepção que
apresentou no diálogo Górgias (em que esse sofista é um interlocutor que Platão contrapõe
pela voz de Sócrates), não é uma arte, mas apenas “uma experiência em produzir um tipo de
9
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 2ª Edição. São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p. 02; RICOEUR, Paul. The Rule of Metaphor: the creation of meaning in language.
Translated by Robert Czerny with Kathleen McLaughlin and Jonh Costello. London: Routledgde, 2004, p. 383.
10
The institutions of a Greek democratic city presupposed in the average citizen the faculty of speaking in
public, and for anyone who was ambitious for a political career it was indispensable. If a man was hauled into a
law-court by his enemies and did not know how to speak, he was like an unarmed civilian attacked by soldiers.
The power of expressing ideas clearly and in such a way as to persuade an audience was an art to be learned
and taught. BURY, J. B. Apud KERFERD, G.B. The Sophistic movement. Cambridge: Cambridge University
Press, 1981, p. 17.
11
“Lovers of the vision of the truth”. PLATO. The Republic. In: Dialogues of Plato. Col. Great Books of the
Western World. Translated by Benjamin Jowett. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. p. 370 (475).
12
Idem. Gorgias. In: Dialogues of Plato. Great Books of the Western World. Translated by Benjamin Jowett.
Chicago: Encyclopedia Britannica, 1952, p. 259 (459).
22
encanto e satisfação”13, algo ignóbil, não muito digno de crédito. Desse modo, reduziu a
retórica ao nível da culinária, alegando que esta tem com o corpo a relação que a retórica tem
com a alma, pois são experiências voltadas apenas para agradar (a culinária com o prazer
sensorial, e a retórica com o encanto que proporciona à alma), sem a preocupação com o que
realmente é bom ou ruim.14
Tal abordagem negativa foi uma das mais importantes para a tradição antiretórica, considerando a vasta influência de Platão no pensamento ocidental. E esse mau juízo
se refere à condenação dos próprios sofistas, que eram cultores da retórica naquele período, e
que, em grande parte em razão do prestígio das obras de Platão, foram marginalizados nas
páginas da história da filosofia, lançados para longe dos relatos sobre os protagonistas.
Já na obra de Aristóteles, a retórica encontra uma das mais firmes e expressivas
elaborações teóricas ao seu respeito. Formuladas como uma teoria da argumentação, as
reflexões de Aristóteles nesse âmbito partiram da compreensão de que a retórica é “a
faculdade de teorizar sobre o que é adequado em cada caso para convencer”15, e que a sua
tarefa é, portanto, “reconhecer os meios de convicção mais pertinentes para cada caso [...] o
convincente e o que parece ser convincente”16. Desse modo, dividiu a retórica em três
gêneros: o deliberativo, o judicial e o epidídico. O âmbito próprio da deliberação seria
aconselhar e dissuadir, o da retórica judicial seria a acusação e a defesa, e o do discurso
epidídico seria o elogio e a censura17. Observa-se, contudo, que essa tripartição perdeu espaço
na própria obra de Aristóteles, que centrou a retórica no campo deliberativo, afirmando que “a
tarefa desta última versa, portanto, sobre aquelas matérias sobre as quais deliberamos e para
as quais não temos artes específicas [...]”18. Neste sentido, comentou Quintín Racionero:
13
“An experience in producing a sort of delight and gratification”. PLATO. Gorgias. In: Dialogues of Plato.
Great Books of the Western World. Translated by Benjamin Jowett. Chicago: Encyclopedia Britannica, 1952, p.
260 (462).
14
Ibidem. p. 261 (464 e 465) e 281 (501).
15
“La faculdad de teorizar lo que es adecuado em cada caso para convencer”. ARISTÓTELES. Retórica.
Introducción, traducción y notas por Quintín Racionero. Madrid: Editorial Gredos, 1994, p. 173 (I, 2, 1355b 2527).
16
“Reconocer los medios de convicción más pertinentes para cada caso [...] lo convincente y lo que parece ser
convincente”. Ibidem. p. 172 (I, 1, 1355b 15-17).
17
18
Ibidem. p. 194 (I, 3, 1358b 6-10).
“La tarea de esta última versa, por lo tanto, sobre aquellas materias sobre las que deliberamos y para las que
no disponemos de artes específicas[...] Ibidem. p. 182 (I, 2, 1357a 1-5).
23
Esta vinculação da retórica às matérias da deliberação é particularmente interessante.
(...) O elogio e a oratória forense vão perdendo terreno, até o ponto em que sequer
são aqui mencionados, e, por outro lado, a necessidade de controlar racionalmente
“o que pode ser resolvido de dois modos” (ou seja, o campo do ético e, ainda mais,
do político) se converte no tema principal, senão único, da última versão da
Retórica.19
Dessa maneira, concebeu Aristóteles que a tarefa da retórica é referente a matérias
em torno das quais é possível deliberação, entendendo que só se pode deliberar sobre o que,
ao menos aparentemente, pode ser resolvido de dois modos.20 Para o tratamento de tais
assuntos, foi atribuído o papel mais importante ao silogismo retórico (entimema), visto como
o corpo da persuasão e o centro da retórica, e constituído principalmente por premissas que
enunciam o que é apenas provável.21
Quanto aos modos de persuasão, Aristóteles compreendeu que são de três
espécies: o que decorre do caráter pessoal do orador (êthos), o que provém da disposição
emocional provocada nos ouvintes pelo discurso (páthos) e o que diz respeito ao próprio
discurso (lógos). No primeiro tipo, a qualidade pessoal de quem fala (honradez, dignidade,
autoridade, etc.) dá credibilidade e torna o discurso aceitável, provocando a adesão do
auditório. No segundo, o auditório é disposto em um estado de emoção (tristeza, alegria, etc.)
que leva a um julgamento favorável relativo ao discurso, resultando a comoção em
convencimento. Já no último modo, a persuasão é decorrente da expressão do conteúdo do
discurso, é oriunda do que ele demonstra ou parece demonstrar. 22
Entretanto, no século IV a.C, em que viveu Aristóteles (384 a 322 a.C), o mundo
grego viveu grandes mudanças políticas e culturais. Com a expansão da Macedônia, realizada
por Felipe II e Alexandre (que reinaram de 359 a 336 a.C. e 336 a 323 a.C., respectivamente),
toda a Grécia e larga extensão do oriente foram incorporadas ao seu império. A organização
política do mundo grego, até então disposta sobre cidades-estados livres, foi transformada em
razão da submissão aos macedônios, e uma mútua influência entre os gregos e os povos
19
Esta adscripción de la retórica a las matérias de la deliberación es particularmente interessante. (...) El
elogio y la oratoria forense van perdiendo terreno, hasta el punto de que ni siquiera son aquí mencionados, en
cambio de la necesidad de controlar razonablemente “lo que puede resolverse de dos modos” (o sea, el campo
de lo ético y, más aún, de lo político) se convierte en el tema principal, si no único, de la última version de la
Retórica. RACIONERO, Quintín. In: ARISTÓTELES. Retórica. Introducción, traducción y notas por Quintín
Racionero. Madrid: Editorial Gredos, 1994, p. 183.
20
ARISTÓTELES. Retórica. Introducción, traducción y notas por Quintín Racionero. Madrid: Editorial Gredos,
1994, p. 182 e 183 (I, 2, 1357a 5-8).
21
Ibidem. p. 465 (II, 25, 1402b 12-16).
22
Ibidem. p. 175 a 177 (I, 2, 1356a 1-20).
24
orientais dominados foi estabelecida, originando a chamada cultura helenística, na qual foram
fundidos elementos desses universos culturais distintos23.
As formas de vida gregas, então, foram amplamente difundidas. Alexandre, que
buscava reproduzir as instituições gregas onde exercia o seu domínio, chegou mesmo a se
intitular, segundo Bertrand Russell, o apóstolo do helenismo24. E nesse percurso histórico de
irradiação da cultura grega, os saberes retóricos foram propagados e desenvolvidos,
integrando o mundo helenístico (que, após a morte de Alexandre, em 323 a.C., se dividiu em
diversos reinos, os quais se prolongaram até o período em que sobreveio o domínio romano,
entre os séculos II e I a.C.25). Entre os retóricos do período helenístico, pode-se mencionar
Teofrasto (discípulo de Aristóteles), Demétrio de Falero e Hermágoras.
No entanto, se entre os gregos a retórica foi mais altiva do que em qualquer outro
povo, em Roma os saberes retóricos tiveram uma projeção cultural perene, prolongando-se
desde a república até o fim do império. Na era republicana (509 a 27 a.C.), Roma deu
molduras e cores latinas à retórica grega com a qual estabelecera contato, conferindo à
herança helênica uma orientação pragmática, voltada para as exigências práticas da vida
social26. Nessa época, Cícero (106 a 43 a.C) escreveu as suas obras retóricas: Rethorica ad
Herennium (a autoria desse texto ainda é discutida), De Inventione, De Oratore, Orator,
Brutus, De Optimo Genere Oratorum, Topica e Partitiones Oratoria.
Entre esses escritos, que tiveram grande influência na tradição retórica, o De
Oratore é apontado como a obra-prima da retórica ciceroniana27. Nesse texto, elaborado em
forma de diálogo, Cícero observou que a arte oratória demanda estilo e conhecimento sobre o
que se vai falar, e que é exigido do orador um amplo horizonte de saberes, sendo a filosofia, a
23
BOWRA, C.M. Grécia Clássica. Biblioteca de História Universal Life. Tradução de Pinheiro de Lemos. Rio
de Janeiro: José Olympio Editora, 1972, p. 157-171; RUSSELL. Bertrand. A History of Western Philosophy.
New York: Touchstone, 1972, p. 218 e s.
24
RUSSELL. Bertrand. A History of Western Philosophy. New York: Touchstone, 1972, p. 219.
25
BOWRA, C.M. Grécia Clássica. Biblioteca de História Universal Life. Tradução de Pinheiro de Lemos. Rio
de Janeiro: José Olympio Editora, 1972, p. 157-171; RUSSELL. Bertrand. A History of Western Philosophy.
New York: Touchstone, 1972, p. 218 e s.
26
GARCÍA, María del Carmen; HERNANDEZ, José António. Historia breve de la retórica. Madrid: Síntesis,
1994, p. 53.
27
Neste sentido, José António Hernandez e María del Carmen García comentaram que o De Oratore é “según la
opinión de lamayoría de críticos, la obra maestra de la retórica ciceroniana”. Ibidem, p. 57. Também Olivier
Reboul se refere ao De Oratore como a obra axial de Cícero. Ver em REBOUL, Olivier. Introdução à
Retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 71.
25
política e a moral complementares à retórica28. Desse modo, definiu que “o completo e
perfeito orador é aquele que, em toda e qualquer matéria, pode falar com plenitude e
variedade”29.
Contudo, a retórica latina entrou em uma fase de declínio com a emergência do
império. Tal percurso descendente teve como um dos principais motivos a redução dos
espaços de debates, que foi decorrente do estabelecimento de um maior controle público das
discussões30. A arte oratória, então, foi disposta em um contexto hostil, pois a eloqüência
perde valor num ambiente em que as palavras ficam represadas na consciência. Neste sentido,
Nietzsche chamou a retórica de “uma arte essencialmente republicana” 31, dizendo com isso
que ela pressupõe a aceitação de opiniões e pontos de vista alheios. Mas apesar dessa perda de
força, o ensino da retórica fez parte da formação dos romanos durante toda a época imperial32,
o que demonstra que a arte oratória estava longe do horizonte de obscurecimento que seria
configurado na modernidade.
Do período imperial, teve grande projeção o texto Institutio Oratoria, de
Quintiliano (35 a 96 d.C.). Nessa obra, na qual se percebe a influência de Aristóteles (como
na divisão dos tipos de oratória em deliberativo, epidídico e judicial), o foco central é a
educação na retórica, vista como “a ciência de falar bem”33. Na sua perspectiva sobre a arte
oratória, Quintiliano estabeleceu o vínculo com o justo como um aspecto fundamental,
rejeitando as concepções que afirmavam que a retórica também servia como instrumento para
assegurar a injustiça. Assim, alegou que:
Desde que um caso seja baseado na injustiça, não tem lugar nele a retórica, e,
conseqüentemente, raramente pode acontecer, mesmo sob as mais excepcionais
28
CICERO. De Oratore: Books I, II. The Loeb Classical Library. Translated by E.W. Sutton. Cambridge:
Harvard University Press, 1967, p. 43-45 (I, XIII, 58-59).
29
“The complete and finished orator is he who on any matter whatever can speak with fullness and variety”.
Ibidem. p. 45. (I, XIII, 59)
30
GARCÍA, María del Carmen; HERNANDEZ, José António. Historia breve de la retórica. Madrid: Síntesis,
1994, p. 60 e s.; REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 2ª Edição.
São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 74 e s.
31
NIETZSCHE, Friedrich. Da Retórica. Tradução de Tito Cardoso e Cunha. 1ª Edição. Lisboa: Veja, 1995, p.
30.
32
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 2ª Edição. São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p. 76.
33
“The science of speaking well”. QUINTILIAN. Institutio Oratoria. Books I-III. The Loeb Classical Library.
Translated by H. E. Butler. London: Harvard University Press, 1996, p. 315 (II, XV, 34).
26
circunstâncias, que um orador, ou seja, um bom homem, fale indiferentemente em
ambos os lados [defendendo tanto o que é justo como o injusto]34.
Dessa maneira, a teorizar sobre a formação do orador, elaborou uma pedagogia
da oratória que foi firmada como uma das mais influentes contribuições da antiguidade para a
tradição retórica. Além das preocupações sobre a beleza do discurso, abordou, entre outros
elementos, problemas em torno do conceito de retórica, a história dessa arte, seus tipos, as
partes do discurso e o uso persuasivo da emoção.
Contudo, o colapso do império romano e o seu processo de desestruturação
montaram um novo cenário da história na Europa, e novas formas de vida centradas numa
cultura teocêntrica (cristã) e feudal configuraram a Idade Média. Naquele novo palco da
história, o regime escravista deu lugar ao feudalismo, que era fundado na vida rural, no
microcosmo representado pelo feudo (dotado de um alto grau de auto-suficiência) e tinha
como eixo as relações de produção entre duas classes sociais sem mobilidade: os proprietários
de terras (minoria formada pelo clero e pela nobreza) e os servos, população camponesa que
usava a terra alheia e era disposta sob uma condição servil (não confundida com a escravidão,
pois os servos não eram propriedade dos senhores feudais).35
No entanto, a tradição clássica da retórica persistiu no mundo medieval, e,
integrando a cultura cristã, sua depositária, foi ensinada e desenvolvida durante toda a Idade
Média (do século V ao século XV),36 sendo um dos elementos permanentes dos programas
educativos de tal período.
A entrada da retórica, no século V, em sua fase medieval (limiar que a conduziu
ao isolamento dos monastérios, os quais concentraram a cultura durante o período da alta
Idade Média) foi marcada pela obra De Doctrina Christiana, de Santo Agostinho, na qual,
diante do conflito entre a cultura cristã e a cultura pagã, ele defendeu que os cristãos deveriam
se utilizar dos elementos da herança antiga úteis ao cristianismo, abrindo caminhos para os
34
“Since if a case be based on injustice, rethoric has no place therein and consequently it can scarcely happen
even under the most exceptional circumstances that an orator, that is to say, a good man, will speak indifferently
on either side”. QUINTILIAN. Institutio Oratoria. Books I-III. The Loeb Classical Library. Translated by H.
E. Butler. London: Harvard University Press, 1996, p. 339 (II, XVII, 31-32).
35
36
VICENTINO, Cláudio. História Geral. São Paulo: Scipione, 1997, p. 108 e s.
BARTHES, Roland. La Aventura Semiológica. Traducción de Ramon Alcalde. 2ª edición. Barcelona:
Ediciones Paidós, 1993, p. 105 e s.; REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução de Ivone Castilho
Benedetti. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 76 e s.
27
saberes retóricos37. Neste sentido, argumentou que: “Visto que a arte da palavra possui o
duplo efeito (o forte poder de persuadir seja para o mal, seja para o bem), por qual razão as
pessoas honestas não poriam seu zelo em vista de se engajar ao serviço da verdade?”38.
Do mesmo século, outro texto basilar para a retórica medieval foi o De Nuptiis
Philologiae et Mercuri, de Marciano Capella, no qual foram esboçadas as sete artes sobre as
quais o saber medieval foi estruturado. Segundo Jacques Le Goff:
Não foi de Cícero ou de Quintiliano de quem os clérigos da alta Idade Média
tomaram seu programa científico e educativo, mas de um retórico de Cartago,
Marciano Capella, que, em começos do século V, definiu as sete artes liberais em
seu poema: As Núpcias de Mercúrio e da Filologia.39
Essas sete artes eram: Música, Geometria, Aritmética e Astronomia (quatrivium) e
Retórica, Gramática e Dialética (trivium). Entretanto, o trivium se prolongou durante toda a
Idade Média como um conjunto de saberes relativos à palavra, constituindo uma das bases da
educação medieval. Considerando a relação entre as três disciplinas do trivium, comentou
Barthes que:
[…] Desde o século V ao XVI, a liderança emigrou de uma arte para outra, de
maneira tal que cada segmento da Idade Média esteve sob o predomínio de uma arte
distinta: sucessivamente, foram a Retórica (séculos V-VII), logo a Gramática
(séculos VIII-X) e logo a Lógica (XIV-XV) as que dominaram suas irmãs, relegadas
à categoria de parentes pobres.40
A retórica, portanto, assumiu um protagonismo no âmbito do trivium no princípio
da Idade Média, mas foi disposta em um plano secundário do século VIII ao século XV, algo
provavelmente decorrente da tendência de reduzir a arte oratória ao ornato do discurso.
37
LE GOFF, Jacques. La Civilización Del Occidente Medieval. Traducción de Godofredo González.
Barcelona: Ediciones Paidós, 2002, p. 98.
38
AGOSTINHO, Santo. Da Doutrina Cristã: manual de exegese e formação cristã. Tradução do original latino
cotejada com versões em francês e espanhol de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002, p. 209.
39
No fue de Cicerón o de Quintiliano de quienes los clérigos de la alta Edad Media tomaron su programa
científico y educativo, sino de un retórico de Cartago, Marciano Capella que, en los comienzos del siglo V,
definió las siete artes liberales en su poema: Las nupcias de Mercurio y de la Filología. LE GOFF, Jacques. La
Civilización Del Occidente Medieval. Traducción de Godofredo González. Barcelona: Ediciones Paidós, 2002,
p. 95.
40
[...] Desde el siglo V al XVI el liderazgo emigró de una arte a otra, de manera tal que cada segmento de la
Edad Média estuvo bajo el predominio de una arte distinta: sucesivamente, fueran la Rethorica (siglos V-VII),
luego la Grammatica (siglos VIII-X) y luego la Logica (XIV-XV) las que dominaran sus hermanas, relegadas al
rango de parientes pobres. BARTHES, Roland. La Aventura Semiológica. Traducción de Ramon Alcalde. 2ª
edición. Barcelona: Ediciones Paidós, 1993, p. 105.
28
1.2. A modernidade e a retórica opaca: entre a sombra e a
penumbra
Considerando a retórica como metalinguagem, pode-se observar, assim como
Nietzsche, que o nível do seu desenvolvimento constitui uma das grandes diferenças entre os
antigos e os modernos41. Com efeito, os saberes retóricos, que ocupavam uma posição
proeminente na antiguidade ocidental desde as suas raízes gregas, decaíram na modernidade,
a qual, segundo João Maurício Adeodato, representa “esse hiato que torna a retórica ainda
mais marginal, até a ‘virada lingüística’ do século XX, quando recomeça alguma atenção às
perspectivas retóricas”42.
Todavia, pode-se enxergar que esse quadro de degradação da arte oratória na
educação e nas produções intelectuais não tem como moldura toda a modernidade, e que os
traços que marcaram o declínio da tradição retórica foram delineados com mais nitidez no
século XIX. A retórica, saindo do plano secundário em que permaneceu durante a maior parte
da Idade Média, assumiu uma proeminente posição na cultura européia nos séculos XV, XVI
e XVII, situação que foi decorrente de vários fatores, entre os quais a revalorização dos
clássicos e a recuperação de textos latinos originais (notadamente de Cícero e Quintiliano)43.
Observa-se, no entanto, que os saberes retóricos decaíram já no século XVII44, e que
deixaram, então, a postura de protagonismo que ocupavam para seguir caminhos de
obscurecimento, como os abertos na obra de Descartes. O seguinte comentário desse filósofo
francês, feito no princípio do Discours de la méthode, aponta para os roteiros de
desvalorização do ensino da retórica:
Eu estimava muito a eloqüência e era apaixonado pela poesia, mas eu pensava que
uma e outra eram dons do espírito e não frutos do estudo. Aqueles que têm o
raciocínio mais forte, e que digerem melhor seus pensamentos a fim de torná-los
41
NIETZSCHE, Friedrich. Da Retórica. Tradução de Tito Cardoso e Cunha. 1ª Edição. Lisboa: Veja, 1995, p.
27.
42
ADEODATO, João Maurício. Retórica Constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros
fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 26.
43
GARCÍA, María del Carmen; HERNANDEZ, José António. Historia breve de la retórica. Madrid: Síntesis,
1994, p. 91-93.
44
Ibidem. p. 107-108.
29
claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor sobre o que propõem, ainda
que só falassem baixo bretão, e não tivessem jamais aprendido retórica.45
Contudo, se houve no século XVIII uma efêmera revitalização da arte oratória
(com a publicação de muitos tratados sobre o assunto, que ainda integrava o currículo da
maioria das principais universidades e escolas européias), no século XIX foram alongadas as
vias do seu declínio, e foi configurado o “ocaso” da retórica no horizonte da cultura. 46
Entre os motivos dessa situação, figura a promoção do valor da evidência47, que,
representando uma força capaz por si só de levar à persuasão, minimiza o espaço sobre o qual
se desdobra a retórica. Nesse sentido, Perelman e Olbrechts-Tyteca comentaram que as
concepções de razão e raciocínio de René Descartes, as quais partem da consideração de que
o ser humano pode ter o domínio da verdade e têm como marca a idéia da evidência, tiveram
larga influência na filosofia do século XVII ao século XIX, e desempenharam um papel no
contexto da perda de prestígio da retórica e da argumentação.48
Também como motivo do obscurecimento, podemos apontar a tendência de
restringir a retórica a uma teoria dos ornamentos do discurso. Se entre os gregos a retórica foi,
sobretudo, uma teoria da persuasão, da argumentação, a sua história posterior levou
progressivamente à redução a uma de suas partes. A este respeito, discorreu Paul Ricoeur:
Esta é uma das causas da morte da retórica: reduzindo a si mesma a uma de suas
partes, a retórica [...] se tornou uma disciplina fútil e irregular. A retórica morreu
quando a propensão para classificar figuras de linguagem suplantou completamente
a sensibilidade filosófica que animou o vasto império da retórica, manteve suas
partes juntas, e ligou o todo ao organon e à primeira filosofia. 49
45
J'estimois fort l'éloquence, et j'étois amoureux de la poésie; mais je pensois que l'une et l'autre étoient des
dons de l'esprit plutôt que des fruits de l'étude. Ceux qui ont le raisonnement le plus fort, et qui digèrent le mieux
leurs pensées afin de les rendre claires et intelligibles, peuvent toujours le mieux persuader ce qu'ils proposent,
encore qu'ils ne parlassent que bas-breton, et qu'ils n'eussent jamais appris de rhétorique. DESCARTES, René.
Discours de la méthode. Paris: Bnf-Gallica, 2006, p. 38-39.
46
BARTHES, Roland. La Aventura Semiológica. Traducción de Ramon Alcalde. 2ª edición. Barcelona:
Ediciones Paidós, 1993, p. 86 e s.; GARCÍA, María del Carmen; HERNANDEZ, José António. Historia breve
de la retórica. Madrid: Síntesis, 1994, p. 91-93 e p. 108 e 121.; REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica.
Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 77 e s.
47
BARTHES, Roland. La Aventura Semiológica. Traducción de Ramon Alcalde. 2ª edición. Barcelona:
Ediciones Paidós, 1993, p. 114.
48
OLBRECHTS-TYTECA, Lucie; PERELMAN, Chaïm. Tratado de Argumentação: a nova retórica.
Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 01 e s.
49
This is one of the causes of the death of rhetoric: in reducing itself thus to one of its parts, rhetoric […]
became an erratic and futile discipline. Rhetoric died when the penchant for classifying figures of speech
completely supplanted the philosophical sensibility that animated the vast empire of rhetoric, held its parts
together, and tied the whole to the organon and to first philosophy. RICOEUR, Paul. The Rule of Metaphor:
30
Na segunda metade do século XX, porém, houve uma revivescência dos estudos
retóricos, ao menos nos Estados Unidos e em países Europeus. Nesse sentido, são marcantes
os caminhos teóricos de Chaïm Perelman, que evocou a importância do contingente, do
verossímil, da relação com o auditório, anunciando uma “nova retórica” como uma teoria
“vinculada a uma velha tradição, a da retórica e da dialética gregas”50. Na sua obra, a retórica
ganhou novamente os contornos de uma teoria da argumentação, de uma “ciência” que “tem
como objeto o estudo das técnicas discursivas que visam a provocar ou aumentar a adesão dos
espíritos às teses apresentadas a seu assentimento”51.
O seu livro mais importante, o “Traité de l’Argumentation: la nouvelle
rethorique” (Tratado de Argumentação: a nova retórica), elaborado com Lucie OlbrechtsTyteca e publicado em 1958, foi feito sob a pretensão de constituir uma teoria da persuasão
em reação ao modelo de racionalidade cartesiana, e descerrou rumos para o regresso da
retórica, para a revalorização dos saberes sobre o discurso.
No âmbito específico do Direito, também aconteceu uma revivescência dos
estudos retóricos. Observa-se tal reflorescimento em autores como Theodor Viehweg, Niel
MacCormick, Ottmar Ballweg, o próprio Chaïm Perelman, Katharina Von Schlieffen, e, no
Brasil, sob a influência da Escola de Mainz, João Maurício Adeodato, da Faculdade de Direito
de Recife.
Na obra “Topik und Jurisprudenz” (Tópica e Jurisprudência), de Viehweg,
lançada em 1953, a retórica encontrou um pórtico fundamental para o seu regresso ao
pensamento jurídico. Esse livro, que teve ampla repercussão teórica, parte da diferença
traçada por Vico entre o método de conhecimento antigo (retórico, tópico) e o moderno
(crítico). Tomando como eixo o conceito de problema (“toda questão que aparentemente
the creation of meaning in language. Translated by Robert Czerny with Kathleen McLaughlin and Jonh Costello.
London: Routlegde, 2004, p. 09.
50
OLBRECHTS-TYTECA, Lucie; PERELMAN, Chaïm. Tratado de Argumentação: a nova retórica.
Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 01.
51
“A pour objet l’étud des techniques discursives visant à provoquer ou à accroître l’adhésion des esprits aux
théses qu’on presente à leur assentiment”. PERELMAN, Chaïm. Logique Juridique: Nouvelle réthorique.
Deuxième édition. Paris: Dalloz, 1979, p. 105.
31
admite mais de uma resposta e que necessariamente pressupõe uma compreensão
provisória”52), herdado de seu mestre Nicolai Hartmann, Viehweg considerou que a tópica é
uma técnica de pensar problematicamente53, é um método de perceber os casos apresentados
como problemas, como questões sem soluções definitivas, sobre as quais há apenas opiniões.
Na sua visão, a jurisprudência é um espaço tópico, e o problema fundamental do direito é a
questão do que é justo aqui e agora, que é irrecusável e sempre emergente54. O direito, sob tal
perspectiva, não se compromete como a idéia de sistema, mas com a solução que promove o
que é justo no caso, que envolve apenas respostas opináveis em razão do caráter problemático
de tal questão.
Contudo, mesmo que obras germinais como a de Viehweg tenham aberto
horizontes para o ressurgimento da retórica na segunda metade do século XX, o espaço dos
saberes retóricos ainda parece ser pequeno na educação e nas produções intelectuais, inclusive
no universo jurídico, e pode-se dizer que a retórica está longe do protagonismo que exercia na
antiguidade. Atualmente, ainda há uma ênfase no seu sentido negativo, e, no curso da
linguagem, flui a idéia que caracteriza o discurso retórico como ornamento para encobrir o
vazio de conteúdo55 ou máscara para ocultar o vácuo que há por trás da sua bela imagem.
A respeito de tal concepção que generaliza a retórica como recurso para preencher
a ausência de substância, entendemos que é uma perspectiva demasiadamente pobre, que
revela o desconhecimento da ampla tradição retórica. Ademais, o preconceito contra a parte
ornamental das artes oratórias e contra as preocupações estéticas acerca do discurso tem o
poder de empobrecer a linguagem, de retirar dela o encanto da beleza, dando-lhe traços de
uma feição grosseira.
52
“Toda cuestión que aparentemente admite más de una respuesta y que necesariamente presupone una
comprensión provisional”. VIEHWEG, Theodor. Tópica y Jurisprudencia. Traducción de Luíz Díez-Picazo
Ponce de Léon. Madrid: Taurus, 1964, p. 50.
53
Ibidem. p. 49.
54
Ibidem. p. 129-130.
55
ADEODATO, João Maurício. Retórica Constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros
fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 17-19; CUNHA, Tito Cardoso e. Prefácio.
In: NIETZSCHE, Friedrich. Da Retórica. Tradução de Tito Cardoso e Cunha. 1ª Edição. Lisboa: Veja, 1995, p.
05.
32
2. A inafastabilidade da retórica na vivência humana: o espelho que dá às
linguagens e às realidades os seus rostos
2.1. A linguagem como palco inseparável da arte de modelar o
discurso
Se a retórica erguida como reflexão sobre o uso eficiente da linguagem encontra
suas origens na Grécia antiga, a retórica considerada como faculdade de identificar os
caminhos disponíveis para bem argumentar (ou seja, “faculdade sobre o discurso”, e não
“discurso sobre o discurso”) é anterior a qualquer teoria sobre ela, sendo algo inafastável da
experiência da linguagem, com raízes tão antigas quanto a própria vivência do ser humano.
Afinal, o falante ou escritor que pretende convencer a respeito de algo organiza suas idéias,
estrutura o discurso, usa figuras de linguagem que ilustram o seu relato, seleciona aspectos do
acontecimento que dêem respaldo ao que defende e o tipo de linguagem que usará. Ou seja,
busca caminhos para bem argumentar e persuadir, e, para isso, monta (mesmo que de maneira
inconsciente) estratégias, métodos.
Pode-se dizer, portanto, que a retórica como “ciência” ou conjunto de saberes
sobre o uso eficiente da linguagem permite um maior domínio da argumentação, mas também
que a retórica enquanto faculdade de identificar na prática os meios para argumentar bem se
manifesta mesmo sem essa metalinguagem (meta-retórica), persistindo mesmo diante do
comum desprezo que é dedicado à arte oratória. A retórica no sentido de faculdade sobre o
discurso é como uma espécie de “personagem” que, mesmo quando está invisível ou sem
nome diante da platéia, sempre desempenha um papel no cenário. Sobre isso discorreu
Nietzsche:
Mas não é difícil provar, à luz clara do entendimento, que o que se chama retórica,
para designar os meios de uma arte consciente, estava já em acto, como meios de
uma arte inconsciente, na linguagem e no seu devir, e mesmo que a retórica é um
aperfeiçoamento dos artifícios já presentes na linguagem. A linguagem ela mesma é
o resultado de artes puramente retóricas [...] essa força [a retórica] é ao mesmo
33
tempo a essência da linguagem. [...] É o primeiro ponto de vista: a linguagem é a
retórica, porque apenas quer transmitir uma doxa, e não uma epistêmê 56.
Numa perspectiva semelhante (baseada no olhar de Nietzsche), Ottmar Ballweg
também observou a situação de inafastabilidade da retórica, e a definiu em três sentidos: 1)
retórica material, identificada com a própria linguagem, que “tem todos os meios retóricos a
seu alcance”57; 2) retórica prática, metalinguagem que ensina “o emprego transcendente dos
meios retóricos imanentes à linguagem”58; 3) retórica analítica, que corresponde a um estudo
descritivo das relações entre as retóricas materiais e práticas59.
Desse modo, ainda que se apresente por meios irrefletidos, como uma “arte
inconsciente” (de acordo com a expressão de Nietzsche acima referida), a retórica dá rumos
ao uso dos signos lingüísticos, dá à linguagem substância e vestes, modelando-a como faz o
escultor de uma obra “inacabável”. E tal obra (linguagem) tem um caráter fluido, e assume
variados padrões (não definitivos) em diferentes circunstâncias.
A respeito dessa variedade de padrões, é de se observar que a vida social é um
complexo de ambientes lingüísticos, uma rede de comunicação que se desdobra em variados
contextos que apresentam distintos modelos de linguagem. A existência social implica, em
maior ou menor grau, uma pluralidade de ambientes lingüísticos, e as linguagens utilizadas no
trabalho, no lar e em cerimônias religiosas, por exemplo, ocorrem sobre diferentes padrões.
Nesse sentido, um advogado não usa a linguagem da mesma maneira na intimidade familiar e
numa audiência, assim como um cientista assume discursos diferentes ao escrever um artigo
científico e ao conversar com amigos em um momento de lazer. E o padrão de linguagem
profissional do advogado não é o mesmo de um médico, ou de um engenheiro, pois as
exigências técnicas e os problemas são distintos, e o uso adequado da linguagem em uma peça
processual não é o mesmo que em um diagnóstico de uma enfermidade.
Entretanto, as diferentes esferas de linguagem que constituem a sociedade
impõem alguma adequação aos padrões estabelecidos, algum nível de conformação às regras
em curso, compondo múltiplos horizontes retóricos, que apresentam à vista caminhos de
56
NIETZSCHE, Friedrich. Da Retórica. Tradução de Tito Cardoso e Cunha. 1ª Edição. Lisboa: Veja, 1995, p.
44-46.
57
BALLWEG, Ottmar. Retórica analítica e direito. Tradução de João Maurício Adeodato. Revista Brasileira de
Filosofia, São Paulo, nº 163, Vol. XXXIX, p.175-184, jul/set, 1991, p. 176.
58
Ibidem. p. 178.
59
Ibidem. p. 179 e s.
34
modelação da linguagem (a escolha do que dizer, com quais palavras dizer e de qual maneira
usá-las) para que haja sucesso no discurso. Todavia, os múltiplos padrões de linguagem e os
horizontes retóricos não são fechados, definitivos, mas abertos, em permanente redefinição.
Pode-se notar essa abertura lançando um olhar sobre a modificação da linguagem teórica no
direito com a perda de espaço do modelo de discurso científico. Com efeito, a idéia de
constituir um saber jurídico em conformidade com as exigências do conhecimento científico
firmou um padrão de discurso pretensamente neutro e descritivo60 e um horizonte retórico
diante do qual a linguagem avalorativa desponta como apropriada ao discurso teórico. No
entanto, a crise do juspositivismo na segunda metade do século XX deu lugar a um campo
teórico caracterizado por um modelo de discurso valorativo, afirmativo de uma linguagem que
envolve temas e conceitos que representam uma postura valorativa.61
Ademais, a própria retórica, que é um poder capaz de fazer relatos prevalecerem
sobre outros, tem um papel na construção e na transformação de padrões de linguagem, na
demarcação do que é adequado ou inadequado no uso da linguagem. A constituição do padrão
de discurso avalorativo no juspositivismo, por exemplo, decorreu de um projeto retórico de
enquadramento a um tipo de discurso (o científico) considerado legítimo, então dotado de
grande prestígio e força persuasiva (como será analisado mais detalhadamente no capítulo
posterior).
2.2. Retórica e construção da realidade
A conclusão de que o ser humano enxerga o mundo pelas lentes da linguagem
marcou a virada lingüística (linguistic turn) da filosofia do século XX. Com essa guinada, que
levou a linguagem ao centro dos problemas filosóficos, a idéia de que o conhecimento é algo
feito sem a mediação da linguagem (uma das perspectivas fundamentais da filosofia ocidental
desde suas raízes platônicas) deu lugar à concepção de que o conhecimento é algo lingüístico.
60
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 135 e s.
61
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 247 e s.; CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo.
Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I, p. 209-219, 1998; REGLA, Josep Aguiló.
Positivismo y postpositivismo. Dos paradigmas jurídicos en pocas palabras. Doxa: cuadernos de filosofía del
derecho, Alicante, nº 30, p. 665-675, 2007.
35
Sob tal consideração, a linguagem é o pórtico que abre para os olhos os horizontes da vivência
humana, e a retórica desempenha a função fundamental de estruturar tal ponto de entrada para
todas as vias, desde os alicerces sobre os quais é sustentado até os adornos que o tornam mais
belo.
Contudo, pode-se dizer que não há uma isomorfia entre o real e a linguagem, e
que a visão da realidade e das essências nas palavras é uma miragem da compreensão. A
gênese e a dinâmica da linguagem ordinária não são fundadas em análises ontológicas que
levem à conclusão da existência de uma essência comum entre os objetos a serem designados.
Na fabricação dos conceitos, o determinante são ligações de semelhanças conjugadas com
abstrações de diferenças, como percebeu Wittgenstein62. Conceituar é envolver elementos
complexos e indefinidos da existência na dimensão artificial dos signos lingüísticos, é a
atividade de encobrir uma pluralidade de características distintas com uma mesma “máscara”.
O inevitável entendimento do mundo pela linguagem, portanto, implica reconstruí-lo, e a
retórica, ao estruturar a linguagem, modela as “lentes” pelas quais vemos (criamos) o mundo.
Em tal “construção de realidades”63, ela assume um papel semelhante ao de um arquiteto.
Sobre as relações entre realidade e retórica, Hans Blumenberg compreendeu que
podem ser reduzidas a duas alternativas: a retórica se refere às conseqüências do domínio da
verdade ou da sua impossibilidade. Essas alternativas são vinculadas a duas perspectivas
antropológicas fundamentais, de riqueza ou de carência: de um lado, o ser humano visto como
rico é capaz de atingir verdades absolutas, e a retórica serve como instrumento de
comunicação da realidade objetiva, e, de outro lado, enquanto carente, o ser humano não é
capaz de atingir a verdade, e a retórica serve para o trânsito de idéias num mundo de
aparências e opiniões, em que a linguagem é a “única realidade artificial com que é capaz de
lidar”64.
Considerando essa redução antropológica de Blumenberg, a carência é disposta
como uma condição na qual a verdade é algo inapreensível, que habita dimensões
inalcançáveis, além das fronteiras do que é cognoscível. Todavia, podemos enxergar a idéia
62
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Translated by G.E.M. Anscombe. Third Edition.
Singapure: Blackwell Publishing, 2001, p. 27 e s. (principalmente os fragmentos 66 e 67)
63
BLUMENBERG, Hans. Las realidades en que vivimos. Trad. de Pedro Madrigal. Madrid: Ediciones Paidós,
1999, p. 115 e s.
64
ADEODATO, João Maurício. Retórica Constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros
fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 17.
36
de carência em um sentido mais amplo, entendendo-a como a condição na qual não há
afirmação do domínio da verdade pelo ser humano, seja em razão do juízo de que isso é
impossível ou em virtude da suspensão de juízo a esse respeito, mas sem negação da
possibilidade de verdade. Tomemos o exemplo do ceticismo da antiguidade para observar a
postura de carência antropológica nesse sentido.
Com o ceticismo pirrônico, o primeiro organizado como escola, e que leva esse
nome porque foi formulado inicialmente por Pírron de Elis (360 a.C a 275 a.C.), a carência
não é disposta no sentido de negar a possibilidade de verdade. Os céticos pirrônicos não
afirmavam que detinham a verdade ou que ela era inapreensível, mas continuavam
investigando65. O princípio desse ceticismo consiste em contrapor perspectivas conflitantes
dotadas de igual força. Assim, diante da equivalência de argumentos contraditórios
(isostenia), chega-se à suspensão de juízos definitivos (epoché). Os pirrônicos, portanto, não
consideravam qualquer perspectiva como verdadeira, e assumiam as aparências como a base
do conhecimento.
Por outro lado, os céticos acadêmicos (que têm esse nome porque constituíram e
desenvolveram uma corrente filosófica cética na antiga Academia platônica66) consideravam a
verdade como algo inapreensível. Filósofos como Arcesilau e Cornéades afirmavam a
impossibilidade de verdade, reconhecendo a opinião como a única forma válida de lidar com
65
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Pyrrhonism (Pyrrhoniae Hypotyposes – PH I, II e III). Translated by
R.G. Bury. Cambridge: Harvard University Press, 1976, p. 3.
66
É interessante observar que os rumos tomados pela Academia após a morte de Platão levaram a um domínio
do ceticismo no seu âmbito. Essa guinada cética da Academia pode ter, em alguma medida, ligação com alguns
elementos da obra de Platão que dão margem a uma leitura cética. Como exemplo de perspectiva que pode dar
lugar a alguma perspectiva cética, há a compreensão platônica do mundo das aparências. Partindo da distinção
entre realidade e aparência, que foi traçada pela primeira vez por Parmênides, segundo Bertrand Russell
(RUSSELL, Bertrand. History of western philosophy: and its connection with political and social
circumstances from the earliest times to the present day. London: Routlegde, 1999, p. 135), Platão considerou
que o mundo real é constituído por elementos imutáveis, eternos, absolutos, não podendo ser apreendidos pelos
sentidos. Por outro lado, concebeu que o mundo visível é composto por elementos irreais que sofrem constante
mudança (aí se percebe a influência de Heráclito). Sobre o mundo das aparências, no entanto, entendeu que não
se pode ter uma visão da verdade e construir conhecimento (o entendimento platônico de “conhecimento”
disposto na República pressupõe verdade), pois os seus elementos não são puros ou simples, mas complexos,
contraditórios, só se podendo falar em opinião a esse respeito. Ver PLATO. The Republic. In: Dialogues of
Plato. Col. Great Books of the Western World. Translated by Benjamin Jowett. Chicago: Encyclopaedia
Britannica, 1952. p. 370-373.
37
o mundo. O primeiro, por exemplo, entendeu que:
Falsas e verdadeiras apresentações são indiferenciáveis: não existe critério válido:
não temos guia a não ser a opinião, e nós apenas podemos pensar, acreditar e agir de
acordo com o que parece razoável e provavelmente certo.67
Sob tais perspectivas céticas, observa-se que vivemos num mundo de aparências,
no qual há apenas opiniões sobre a verdade absoluta. Nesse horizonte filosófico, as aparências
são julgadas como distintas da verdade ou são suspensos os juízos sobre a correspondência
entre o que é aparente e o que é verdadeiro. Assim, por exemplo, pode-se considerar certa a
sensação de doçura do mel (aparência), mas não é reconhecido critério válido para identificála com uma verdade absoluta, em torno da qual podemos apenas opinar. O mesmo ocorre em
relação à ética, pois também não é admitida a existência de qualquer critério suficiente para a
identificação de valores universais, e os juízos éticos são vistos como opiniões.
Ante tais concepções, pode-se dizer que o que é proferido como “realidade” é um
conjunto de opiniões e aparências que triunfaram, e que foram consolidadas sob o rótulo de
“verdade”. A retórica, entretanto, encontra um espaço em que tem uma importância
fundamental. Ao fazer relatos prevalecerem sobre outros, a retórica exerce uma função
constitutiva da “realidade”, delineando a face em que o mundo é reconhecido.
3. A retórica como luz para clarificar a verdade ou arte inútil diante da
evidência
Como refletiu Vico, “se a retórica [rhetorica] pudesse ser vertida em latim com a
elegância grega que a caracteriza, se diria ‘o que flui’ [fluentia]”68. Afinal, a retórica é uma
faculdade ou arte que não é restrita a nenhuma doutrina ou ideologia, e que se desdobra na
amplitude de qualquer discurso, dando força de expressão a qualquer voz ou texto. Daí a
67
False and true presentations are indistinguishable: no valid criterion exists: we have no guide but opinion,
and we can only think, believe, and act in accordance with what seems reasonable and probably right.
ARCESILAU. Apud BURY, R. G. Introduction. In: SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Pyrrhonism
(Pyrrhoniae Hypotyposes – PH I, II e III). Translated by R.G. Bury. Cambridge: Harvard University Press, 1976,
p. xxxiii.
68
“Si la retórica [rhetorica] pudiera verterse en latín con la elegancia griega que la caracteriza, se diría ‘lo que
fluye’ [fluentia]”. VICO, Giambattista. Instituciones de Oratoria (selección de los 10 primeros capítulos).
Traducción del latín y notas de Francisco Navarro Gómez. Cuadernos sobre Vico, Sevilla, nº 15-16, p. 415,
2003.
38
“fluência” identificada por Vico, que fez da retórica algo moldável como úmida argila nas
mãos da história, a qual lhe deu, como um artífice de tempo, a consistência de vaso em que
cabe qualquer líquido, qualquer conteúdo.
Contra essa versatilidade, argumentou Platão que é uma característica que
representa um vazio, uma ausência de um espaço próprio preenchido, e que, portanto, a
retórica não é uma arte, mas apenas uma experiência, algo “incapaz de explicar ou de dar uma
razão da natureza de suas próprias aplicações”69. Aristóteles, porém, deu à retórica o campo
da contingência, o espaço que preenche com todas as suas possibilidades. O seu domínio é
todo assunto que, ao menos aparentemente, pode ser resolvido de dois modos70, é uma esfera
constituída pelo que pode existir ou ser compreendido de maneiras distintas. Afinal, de acordo
com o que percebeu Aristóteles, a argumentação tem pouco ou nenhum valor diante de algo
que só pode ser de uma maneira e que só pode ser visto sob uma mesma forma.
No entanto, se a contingência tem uma maior dimensão diante da incerteza sobre
o que é a verdade, ela é também admitida por concepções afirmativas do domínio da verdade.
Afinal, a existência da “verdade” pode não ser condição suficiente para sua aceitação, pois o
que é compreendido como verdadeiro pelo orador pode ser assunto de discordância com o
interlocutor, e a questão pode ser resolvida em um sentido contrário à “verdade”. Dessa
maneira, a retórica serve de instrumento para a defesa do que é visto como justo e verdadeiro
ante a contingência relativa à adesão do interlocutor. Neste sentido, Aristóteles afirmou que
a retórica é útil porque por natureza a verdade e a justiça são mais fortes que seus
contrários, de modo que se os juízos não são estabelecidos como se deve, será
forçoso que sejam vencidos por ditos contrários, o que é digno de recriminação71.
Santo Agostinho também refletiu sobre a importância da retórica para os
defensores da verdade, e observou que a falta de eloqüência dos que devem persuadir para o
bem pode ser um fator que determina a vitória dos adversários partidários do erro. Deste
modo, discorreu:
69
“Unable to explain or to give a reason of the nature of its own applications”. PLATO. Gorgias. In: Dialogues
of Plato. Great Books of the Western World. Translated by Benjamin Jowett. Chicago: Encyclopedia Britannica,
1952, p. 261 (465).
70
ARISTÓTELES. Retórica. Introducción, traducción y notas por Quintín Racionero. Madrid: Editorial Gredos,
1994. p. 182 e 183 (I, 2, 1357a 5-8).
71
La retórica es útil porque por naturaleza la verdad y la justicia son más fuertes que sus contrários, de modo
que si los juicios no se establecen como se debe, será forzoso que sean vencidos por dichos contrarios, lo cual es
digno de recriminación. Ibidem. p. 169 e 170 (I, 1.5, 1355a 20-25).
39
É um fato, que pela arte da retórica é possível persuadir o que é verdadeiro como o
que é falso. Quem ousará pois afirmar que a verdade deve enfrentar a mentira com
defensores desarmados? Seria assim? Então, esses oradores, que se esforçam para
persuadir o erro, saberiam desde o proêmio conquistar o auditório e torná-lo
benévolo e dócil, ao passo que os defensores da verdade não o conseguiriam?72
Todavia, perante a visão da “verdade” no conhecimento ou na ética, há uma
redução, ao menos aparente, do campo da retórica, ficando a contingência limitada à aceitação
ou não da verdade pelo interlocutor. Dessa maneira, o reconhecimento do domínio da verdade
dispõe a retórica como um instrumento útil para a sua comunicação e defesa, mas, por outro
lado, minimiza a capacidade persuasiva dos discursos que discordam do que é visto como
verdadeiro, enfraquecendo a retórica no âmbito dos argumentos que afirmam perspectivas
distintas.
Porém, se a própria existência da “verdade” for considerada suficiente para levar à
sua aceitação, a retórica e a argumentação se tornam instrumentos dispensáveis na sua defesa.
Sob tal ótica, a verdade ostenta a força da evidência e é capaz por si só de provocar persuasão,
independentemente das armas da retórica. Dessa maneira, não é considerado um espaço de
contingência, pois o lampejo da evidência conduz a uma mesma visão do que é verdadeiro. A
idéia de que a norma jurídica é clara, por exemplo, dispõe como prescindíveis esforços
argumentativos e habilidades retóricas para a indicação do seu sentido na justificação de uma
decisão.
A evidência, contudo, pode também ser vista como um instrumento retórico. Para
a argumentação nos espaços da contingência, Aristóteles apontou que o orador pode utilizar
argumentos irrefutáveis, premissas necessárias, evidentes, que expressam o que não pode ser
de outra maneira73. Sob tal consideração, a evidência de um argumento é um elemento
retórico quando ele é inserido em um espaço deliberativo, em que serve para resolver uma
questão que poderia ser resolvida de outra forma. Assim, a evidência presente em um
entimema (silogismo retórico) irrefutável74 serve para resolver questões não evidentes,
dispostas no reino da retórica.
De todo modo, a idéia de que algo é evidente pode ser um resultado retórico, um
relato realçado retoricamente que é compartilhado por intérpretes que o aceitam em um grau
72
AGOSTINHO, Santo. Da Doutrina Cristã: manual de exegese e formação cristã. Tradução do original latino
cotejada com versões em francês e espanhol de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002, p. 208.
73
ARISTÓTELES. Retórica. Introducción, traducción y notas por Quintín Racionero. Madrid: Editorial Gredos,
1994. p. 163, 184 e s., 465 e 466.
74
Ibidem. p. 467 (II, 25.2, 1403a 10-15).
40
suficientemente elevado para que ele tenha uma aparente clareza. A visão da evidência na
identificação do bem, do mau, do belo, do feio e do sentido dos textos pode ser apenas a
representação de relatos vitoriosos, que, em razão da força que têm no contexto em que são
inseridos, estabelecem a idéia de que manifestam as únicas visões corretas e possíveis. A
evidência do sentido de um texto normativo jurídico em um easy case (no qual a solução a ser
dada ao caso é aparentemente clara), por exemplo, pode ser vista como produto de um acordo
acerca da ligação entre significante e significado, a qual foi retoricamente consolidada em
uma comunidade de intérpretes. Afinal, não há significados intrínsecos nos textos (e nos
outros elementos do mundo), mas apenas caminhos interpretativos contextuais.
Portanto, do complexo conjunto de ligações teóricas feitas entre a retórica e
concepções do domínio da verdade, podemos identificar, de maneira simplificada, ao menos
dois tipos de ligações: 1) a retórica como instrumento útil à comunicação e afirmação da
verdade; 2) a retórica como algo que tem pouco valor para o objetivo de comunicar a verdade,
a qual é dotada de evidência.
CAPÍTULO SEGUNDO – Juspositivismo, retórica do discurso científico e a
idéia de justificação das decisões judiciais erguida sobre a separação entre
criação e aplicação do direito
Sumário: 1. O conceito de positivismo jurídico: um quadro entre outros possíveis
diante de uma face de reflexo múltiplo. 1.1. Linguagem, ordenação simbólica e o
mundo como espelho turvo: observação sobre a relação entre os conceitos e a
realidade para uma adequada análise do juspositivismo. 1.2. Delimitação do
conceito de juspositivismo nesta dissertação. 2. Retórica, secularização e o discurso
científico do juspositivismo. 2.1. Religião, razão e ciência entre vontade de verdade
e vontade de poder: horizontes antropológicos e históricos da ascensão da
racionalidade e do discurso científico. 2.2. A retórica no discurso científico
juspositivista e na caricatura antipositivista da Reductio ad Hitlerum. 3.
Florescimento do liberalismo e do ideal de legalidade como “oráculo” burguês:
caminhos em direção à separação entre a criação e a aplicação do direito 4. O espaço
reduzido da retórica na justificação de decisões judiciais sob a distinção entre
produzir e aplicar o direito: a limitação da jurisdição a uma racionalidade formal e a
um campo argumentativo no qual é minimizada a contingência em torno do sentido
dos textos normativos
1. O conceito de positivismo jurídico: um quadro entre outros possíveis
diante de uma face de reflexo múltiplo
1.1. Linguagem, ordenação simbólica e o mundo como espelho
turvo: observação sobre a relação entre os conceitos e a realidade para uma
adequada análise do juspositivismo
A condição fundamental do ser humano parece ser a relação simbólica com o
mundo.
Para alcançar o mundo, lançamos sobre ele uma extensa e complexa rede de
42
símbolos, composta por elementos como a linguagem, a arte e o mito75. Mas quando o temos
ao alcance, já não é nele que tocamos, e as nossas mãos só nos permitem tatear a sua
superfície simbólica (tocá-lo é como tocar em nós mesmos). Ao mesmo tempo em que essa
“rede de símbolos” nos traz o mundo sobre o qual foi lançada, ela o encobre para poder
aproximá-lo. E, assim, o mundo ressurge em nós como uma espécie de espelho turvo: as suas
imagens são sempre projeções dos traços do ser humano, as suas aparências são delineadas
pelos nossos contornos. Essa relação com o mundo é bem expressa em uma cena do filme “Le
Testament d’Orphée” (O Testamento de Orfeu), de Jean Cocteau76, na qual um pintor não
consegue pintar nada além da sua própria face.
No universo simbólico em que se constrói a vivência humana, o centro é a
linguagem. Os signos lingüísticos são condições de possibilidade para que possamos
compreender e lidar com os elementos da existência, e eles estruturam as outras formas
simbólicas pelas quais nos relacionamos com o mundo: as expressões religiosas, artísticas ou
míticas só ocorrem como manifestações da linguagem. No entanto, como já observado no
capítulo anterior, os processos de criação e transformação da linguagem ordinária não são
baseados em análises ontológicas que autorizem a conclusão da existência de uma essência
comum entre os objetos a serem designados. Na prática cotidiana da linguagem, não há uma
rigidez analítica a respeito da estrutura ontológica do mundo, tal como pretendido pelo
essencialismo em suas várias formas. Para que se chame algo de “justo” no uso ordinário das
palavras, por exemplo, não é estabelecida uma investigação sobre a “essência da justiça”
como condição prévia de designação. As desconsiderações de diferenças conjugadas com
ligações de semelhanças parecem constituir o grande fundamento da gênese e dinâmica da
linguagem. Sobre a ausência de uma essência comum por trás das palavras, escreveu
Wittgenstein:
Considere, por exemplo, os procedimentos que chamamos de jogos. Quero dizer
jogos em tabuleiro, jogos com cartas, jogos com bola, jogos Olímpicos e assim por
diante. O que é comum a todos eles? Não diga: deve haver algo comum, ou eles não
seriam chamados de jogos. Mas olhe e veja se há qualquer coisa comum a todos.
Pois, se você olhar para eles, você não verá algo que é comum a todos, mas
75
CASSIRER, Ernst. Antropología Filosófica: introducción a una filosofía de la cultura. Traducción de
Eugenio Ímaz. 5ª Edición. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1968, p. 26.
76
LE TESTAMENT d’Orphée. Long-métrage de Jean Cocteau. Paris: Studio Canal, 2005. 1 DVD (77 min.)
Son, film en noir et blanc.
43
semelhanças, relações [...] Eu não posso pensar em nenhuma expressão melhor para
caracterizar estas similaridades do que semelhanças de família.77
A linguagem, portanto, não tem como matriz a preocupação com a verdade, e o
grande manancial dos conceitos parece ser formado por processos cotidianos de associação
entre semelhanças que fluem sem grande análise ou reflexão. Dessa maneira, a linguagem,
que é o pórtico que descerra para o ser humano todos os horizontes da existência, lança a
nossa visão sobre realidades artificiais (simbólicas) constituídas pelas as palavras.
Contudo, mesmo que representem distanciamentos em relação ao real, somente
pelos conceitos “o homem acordado tem a certeza clara de estar acordado” 78. As palavras
permitem uma ordenação do mundo ao reduzirem acontecimentos a conceitos, ao reunirem
aspectos complexos e multifacetados em uma mesma identidade. Os conceitos representam
um controle simbólico do mundo, e ordenam elementos diversos em rótulos como Direito,
ciência, juspositivismo, jusnaturalismo, etc.
Max Weber observou construções conceituais que chamou de tipos ideais ou
puros, que mostram “a unidade mais conseqüente de uma adequação de sentido o mais plena
possível; sendo talvez por isso mesmo tão pouco freqüente na realidade — na forma pura,
absolutamente ideal do tipo”79. Tais formas expressam um tipo perfeito, a situação ideal de
reunião de todas as características que formam uma unidade plena, e que normalmente não
ocorre. Têm função classificatória, de enquadramento terminológico: elementos do mundo
que apresentam alguma característica do tipo ideal são nele enquadrados, mesmo que não
77
Consider for example the proceedings we call games. I mean board-games, card-games, ball-games, Olympic
games and so on. What is common to them all? Don’t say: there must be something common, or they would not
be called games. But look and see whether there is anything common to all. For if you look at them you will not
see something that is common to all, but similarities, relationships […] I can think of no better expression to
characterize these similarities than family resemblances. WITTGENSTEIN, Ludwig.
Philosophical
Investigations. The German Text, with a Revised English Translation. Anniversary Commemorative Edition.
Translated by G.E.M. Ascombe. Third edition. Singapure: Blackwell Publishing, 2001, p. 27.
78
NIETZSCHE. Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral. In: Obras incompletas. Coleção
Os Pensadores. Seleção de textos de Gérard Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. 2ª ed.
São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 50.
79
La unidad más consecuente de una adecuación de sentido lo más plena posible; siendo por eso mismo tan
poco frecuente quizá en la realidad — en la forma pura absolutamente ideal del tipo. WEBER. Max. Economía
y Sociedad: Esbozo de sociología comprensiva. Traducción de José Medina Echavarría, Juan Roura Parella,
Eugenio Ímaz, Eduardo García Máynez y José Ferrater Mora. 2ª Edición. Décimosexta reimpressíon. México D.
F.: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 17.
44
preencham todas as suas características, que não tenham uma adequação completa a ele
(como acontece ordinariamente).
Entretanto, o conceito de juspositivismo será aqui observado como uma forma de
ordenação simbólica que aproxima vários elementos do mundo, e não como algo que reflete a
realidade. A palavra juspositivismo é um tipo ideal usado para identificar um campo teórico
multifacetado, e envolve um conjunto de elaborações teóricas que não manifestam
necessariamente uma adequação plena às características do tipo puro.
1.2. Delimitação do conceito de juspositivismo nesta dissertação
A adequada investigação sobre os conceitos não deve ser a busca das “naturezas”,
mas dos usos que são dados às palavras80. No entanto, conforme apontou Hart, a observação
do termo “juspositivismo” a partir do seu uso demonstra uma pluralidade de sentidos e de
critérios para a sua definição que torna o seu conceito um assunto complexo81. Nos limites
deste trabalho, porém, não pretendemos fazer uma análise sobre os vários significados da
expressão “juspositivismo”, e a delimitação do seu conceito cumpre apenas a finalidade de
apresentar o sentido em que usamos tal termo. Dessa maneira, com a palavra “juspositivismo”
indicamos um rumo teórico segundo o qual:
1) o direito é uma construção social, e só é admitido caráter jurídico no direito
positivo;
2) não há vínculo necessário entre o direito e qualquer conteúdo ético –
compreensão referida como a “tese da separação”82. No plano teórico recente, as diferenças de
80
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. The German Text, with a Revised English
Translation. Anniversary Commemorative Edition. Translated by G.E.M. Ascombe. Third edition. Singapure:
Blackwell Publishing, 2001, p. 41 e s.
81
82
HART, Herbert. Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 57.
A título de exemplo, ALEXY, Robert. Derecho y Moral: Reflexiones sobre el punto de partida de la
interpretación constitucional. In: MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Coord.). Interpretación Constitucional.
Tomo I. Traducción de Eduardo R. Sodero. México D.F.: Editorial Porrúa, 2005, p. 01 e s.; HART, Herbert.
Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 49 e s.; MARMOR,
Andrei. Law in the Age of Pluralism. New York: Oxford University Press, 2007, p. 128 e s.; WALUCHOW,
45
interpretação em torno dessa tese dividiram correntes juspositivistas e deram lugar aos rótulos
“positivismo jurídico exclusivo” e “positivismo jurídico inclusivo”. Para as versões do
positivismo jurídico exclusivo (o qual encontra expressões em obras de autores como Andrei
Marmor 83 e Joseph Raz 84 ), a validade das normas jurídicas não pode ser condicionada à
adequação a conteúdos morais, mas sim à existência de aspectos formais como a proveniência
de autoridade competente e o cumprimento de normas procedimentais para sua elaboração.
De outro modo, o positivismo jurídico inclusivo (o qual tem Hart85 e Jules Coleman86 entre os
seus representantes) reconhece que não há conexão necessária entre o direito e a moral, mas
admite que a conformidade com determinados conteúdos morais pode ser adotada, ao lado de
requisitos formais, como uma condição de validade em ordens jurídicas. Neste sentido,
comentou Hart que “em alguns sistemas, como nos Estados Unidos, os critérios últimos da
validade jurídica incorporam explicitamente princípios de justiça ou valores morais
substantivos”87. Dessa maneira, compreende-se que é possível (mas não necessário) que o
vínculo com determinados conteúdos éticos sirva como critério de validade jurídica88. A este
respeito, afirmou Marmor que:
o positivismo jurídico inclusivo sustenta que a moral e outras considerações
avaliativas “podem” determinar, sob certas circunstâncias, o que o direito é, mas
essa é uma questão contingente, dependente das regras sociais particulares de
reconhecimento de sistemas jurídicos particulares, em tempos particulares [...]89.
Wilfrid. Legal positivism, inclusive versus exclusive. Routledge Encyclopedia of Philosophy. Disponível em
<http://www. rep.routledge.com.libaccess.lib.mcmaster.ca/article/T064>. Acesso em 3 de dezembro de 2011.
83
MARMOR, Andrei. Positive Law and Objective Values. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 49 e s.
84
RAZ, Joseph. The Authority of Law: Essays on Law and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1979, p.
37 e s.
85
HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 312 e s.
86
COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: In defense of a pragmatist approach to legal theory. Oxford:
Oxford University Press, 2003, p. 151 e s.
87
HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 220.
88
WALUCHOW, Wilfrid. Legal positivism, inclusive versus exclusive. Routledge Encyclopedia of
Philosophy. Disponível em <http://www. rep.routledge.com.libaccess.lib.mcmaster.ca/article/T064>. Acesso em
3 de dezembro de 2011.
89
Inclusive legal positivism maintains that moral and other evaluative considerations “may” determine, under
certain circumstances, what law is, but this is a contingent matter, depending on the particular social rules of
recognition of particular legal systems, at particular times […]. MARMOR, Andrei. Law in the Age of
Pluralism. New York: Oxford University Press, 2007, p. 129-130.
46
Assim, apesar das divergências, essas duas correntes do positivismo jurídico
compartilham o entendimento de que o direito é uma construção social que não tem ligação
necessária com a moral.
No entanto, considerando o juspositivismo nesse sentido que foi acima indicado,
não é cabível falar da sua superação por um outro paradigma teórico, como é anunciado entre
partidários do “pós-positivismo” 90 (conceito que não denota uma orientação teórica uniforme
–
como será analisado mais detalhadamente no próximo capítulo – mas que envolve a
afirmação de uma postura valorativa na reflexão jurídica e o enfraquecimento da idéia da
separação entre direito e moral). Apesar da crise vivenciada pelo juspositivismo a partir da
segunda metade do século passado (quando discursos antipositivistas erguidos sobre a
exigência de aproximação do direito de determinadas perspectivas morais passaram a ter
grande expressão teórica), as concepções juspositivistas permanecem no cenário teórico
recente, como podemos observar no debate entre o positivismo jurídico exclusivo e o
positivismo jurídico inclusivo. Dessa maneira, é carente de justificativa a periodização que
sugere o rótulo pós-positivismo91, pois o juspositivismo é um rumo teórico que tem expressão
atual e que continuou a ser desenvolvido durante a segunda metade do século XX, em que
encontrou expoentes como Hart, que publicou o seu influente livro “The Concept of Law” (O
Conceito de Direito) em 1961.
Entretanto, os desenvolvimentos recentes do positivismo jurídico representam um
campo teórico multifacetado que não é o mesmo que foi disposto pela abordagem
juspositivista na primeira metade do século passado. Em relação ao positivismo jurídico atual
não é cabível, por exemplo, a alegação de que é caracterizado pela idéia de que a
interpretação “consiste numa atividade puramente declarativa e reprodutiva de um direito préexistente”92. Com efeito, se as teorias da única decisão correta (erguidas sobre a idéia de que a
criação e a aplicação do direito são atividades distintas) refletem a concepção usual de
90
A este respeito, escreveu Barroso que “a quadra atual é assinalada pela superação – ou, talvez, sublimação –
dos modelos puros [juspositivismo e jusnaturalismo] por um conjunto difuso e abrangente de idéias, agrupadas
pelo rótulo genérico de pós-positivismo”. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 247.
Também Aguiló Regla apontou “el paradigma postpositivista como una superación del paradigma positivista”.
REGLA, Josep Aguiló. Positivismo y postpositivismo. Dos paradigmas jurídicos en pocas palabras. Doxa:
cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 30, p. 668, 2007.
91
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico político. São Paulo: Método, 2006, p. 51.
92
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 211.
47
interpretação no século XIX e na primeira metade do século XX93, o mesmo não ocorre em
relação ao juspositivismo recente, em que ganha destaque a indeterminação do direito e o
papel criativo do intérprete. Em tal sentido, concepções como a de Kelsen e a de Hart abriram
horizontes do positivismo jurídico para o entendimento de que o processo interpretativo
envolve escolhas determinantes do significado do enunciado normativo. Kelsen, com sua
imagem da moldura, compreendeu que as palavras e as seqüências de palavras têm uma
pluralidade de significações, e que o julgador se encontra diante de várias significações
possíveis em relação à “norma” (há ainda a confusão entre significante e significado nesse
autor, que não enfatiza a dimensão pragmática da linguagem, e centra a sua análise nos
aspectos semânticos)94. Dessa maneira, entre as várias significações possíveis (as que podem
ser inscritas na moldura interpretativa), não há uma que possa ser identificada como a única
correta. Por sua vez, Hart observou a “textura aberta do Direito”95 compreendendo que “a
linguagem geral dotada de autoridade em que a regra é expressa pode guiar apenas de modo
incerto”96.
Todavia, neste capítulo pretendemos observar os seguintes aspectos que foram
marcantes no juspositivismo:
1) primeiro, a busca de cientificidade do saber jurídico, que foi uma das bases
sobre as quais foi erguido o positivismo jurídico, mas que aparenta não ter a mesma força no
juspositivismo atual. Analisaremos o sentido retórico do florescimento de tal busca em um
horizonte histórico no qual o discurso científico foi erguido como caminho adequado para a
obtenção da verdade. Ademais, observaremos a retórica no argumento antipositivista da
Reductio ad Hitlerum (de acordo com a expressão utilizada por Bobbio97), que traz a acusação
de que o entendimento segundo o qual o direito pode assumir qualquer conteúdo (que foi
originado da atitude avalorativa baseada na busca de cientificidade do saber jurídico)
representa uma postura que foi favorável a regimes autoritários como o nazismo e o fascismo.
93
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 391.
94
Ibidem, p. 388 e s.
95
HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 137.
96
97
Ibidem. p. 140.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, 225 e s.
48
2) depois, a metodologia fundada na separação entre a criação e a aplicação do
direito. Por um lado, apontaremos que essa metodologia jurídica manifesta, no campo teórico
juspositivista, uma concepção sobre as relações entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário
que é ligada ao ideal de segurança jurídica e domínio do futuro que floresceu no liberalismo.
Por outro lado, refletiremos sobre o espaço da retórica na justificação de decisões judiciais
vista de acordo com tal metodologia.
2. Retórica, secularização e o discurso científico do juspositivismo
2.1. Religião, razão e ciência entre vontade de verdade e vontade
de poder: horizontes antropológicos e históricos da ascensão da
racionalidade e do discurso científico
Parece certo que o ser humano tem um instinto questionador, e que o ato de
perguntar é tão natural para nós quanto é o vôo para um pássaro. Porém, se de um lado temos
essa característica, também nos parece ser inato o impulso de enxergar “verdades”, de
“fabricar” certezas e segurança. A vontade de verdade transborda na história das idéias,
inundando a ciência e a filosofia, que foram erguidas, em grande medida, em razão da força
dessa vontade. E o instinto de poder (de prevalência sobre os outros seres humanos e sobre o
restante da natureza), que faz da existência um palco permanente dos jogos de poder, se
manifesta na vontade de verdade. Se o impulso em direção à verdade não é, inteiramente, uma
manifestação da vontade de poder, como entendeu Nietzsche (o qual definiu “toda força
atuante, inequivocamente, como vontade de poder98”), há, ao menos, uma forte ligação entre
essas vontades, que parece existir independentemente de uma reflexão sobre os fatores do
poder, podendo ser consciente ou irrefletida.
Com efeito, a consideração de que se tem o domínio da verdade dispõe quem
assim julga, ao menos ilusoriamente, em uma situação de poder. A idéia do conhecimento da
98
NIETZSCHE. Friedrich. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e
pósfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 40.
49
verdade, da posse de um saber universalmente válido, que representa um estado de
consciência quanto ao funcionamento da realidade, projeta níveis de controle de expectativas
sobre os acontecimentos futuros, estabelece uma relativa segurança quanto ao devir e permite
enxergar (mesmo que de maneira fictícia) o que é ou não controlável e formas possíveis de
controle. Assim, em uma cultura na qual predominam as ligações religiosas com o mundo, a
explicação divina promove o conhecimento da dinâmica da existência, permite um
entendimento do que é controlável ou não, e o domínio de formas de controle do mundo,
como rituais em que se oferece à divindade algo em troca dos acontecimentos favoráveis
(objetos, animais, a própria vida humana, etc.). Por outro lado, em culturas nas quais há uma
projeção da ciência, observa-se que sobre tal tipo de saber são lançadas expectativas de
conhecimento e domínio da realidade. A fé nas divindades cede espaço para a fé na ciência, e
as crenças em torno de rituais religiosos para atingir o objetivo de controlar o mundo dão
lugar às expectativas sobre as técnicas baseadas nos saberes científicos, as quais permitem,
entre inúmeras possibilidades, a criação de medicamentos, de naves espaciais, de
computadores e mesmo de outros seres vivos.
Sobre o vínculo entre o conhecimento e o poder, é emblemática a narrativa bíblica
do Gênesis, que apresenta o conhecimento da verdade em torno do bem e do mal como uma
condição que iguala o ser humano a Deus, o qual reconhece que “o homem se tornou como
um de nós, conhecedor do bem e do mal”99.
No entanto, pode-se dizer que a secularização (entendendo como tal a transição de
formas de vida predominantemente religiosas para formas de vida sem caráter religioso100)
não implica o esvaziamento da vontade de verdade, mas sim a modificação de caminhos para
a realização (aparente) dessa vontade. Da maneira que ocorreu na Grécia, por volta do século
VI a.C., e no decorrer da modernidade na Europa, a secularização representou o deslocamento
do eixo da verdade da religião para a razão. Na Grécia, foi lançado sobre o discurso filosófico
o ideal de domínio da verdade, e, na modernidade ocidental, provavelmente foi a ciência a
forma de conhecimento sobre a qual mais expectativas para atingir a verdade foram
concentradas.
99
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução, introdução e notas de Ivo Storniolo e Euclides Martins
Balancin. São Paulo: Paulus, 2000, p. 17.
100
SALDANHA. Nelson. Da Teologia à Metodologia: secularização e crise no pensamento jurídico. Belo
Horizonte: Del Rey, 1993, p. 57.
50
Na Grécia do século VI a.C., o desabrochar da filosofia descerrou caminhos para
explicações e questionamentos não religiosos sobre o mundo, manifestando o processo de
secularização da cultura grega, erguido sobre uma forte crença nas capacidades da razão.
Considerando, como Sexto Empírico, a divisão dos tipos de filósofos em acadêmicos (os que
negam a possibilidade de verdade), céticos (identificados por Sexto com os pirrônicos, que
suspendem o juízo sobre a verdade) e dogmáticos (os que reconhecem que têm o domínio da
verdade) 101 , pode-se observar que a filosofia grega foi, em grande parte, a filosofia de
dogmáticos (como Parmênides, Platão e Aristóteles) que acreditavam na capacidade racional
do sujeito cognoscente de apreender a realidade.
Por outro lado, foi marcante na história da filosofia e na história do direito do
ocidente o processo de secularização que ocorreu durante a modernidade na Europa. A
modernidade (termo aqui usado para designar um período histórico iniciado no século XVI,
delimitando o fim da Idade Média) foi caracterizada pelos discursos com pretensão de
validade universal sustentada pela razão. Nos debates sobre modernidade e pós-modernidade,
é patente a divergência em torno dos significados desses termos, mas ressalta das discussões a
idéia de modernidade como condição filosófica de crença em discursos universais construídos
racionalmente, que representa uma disposição filosófica que marcou o período definido como
moderno em oposição ao período medieval. Nesse sentido, Jean-François Lyotard definiu pósmodernidade simplesmente como “incredulidade em relação às metanarrativas” 102 , como
descrença em torno da pretensão de validade universal dos discursos.
Durante a modernidade, o conhecimento e a ética perderam muitos matizes
divinos, e na razão foi firmado o sustentáculo da pretensão de universalidade. A ciência,
situada entre as formas racionais de conhecimento, foi posta em relevo como veículo do
progresso e do controle da natureza, e assumiu uma posição fundamental no “projeto da
modernidade”. Neste sentido, comentou Habermas que:
o projeto da modernidade, como ele foi formulado pelos filósofos do Iluminismo no
século XVIII, consiste no inexorável desenvolvimento de ciências objetivas, dos
fundamentos universalistas da moralidade e do direito, e de arte autônoma [...].103
101
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Pyrrhonism (Pyrrhoniae Hypotyposes – PH I, II e III). Translated by
R.G. Bury. Cambridge: Harvard University Press, 1976, p. 03.
102
“Incredulity towards metanarratives”. LYOTARD, Jean François. The Postmodern Condition: A Report
On Knowledge. Translated by Geoff Bennington and Brian Massumi. Manchester: Manchester University Press,
1984, p. xxiv.
103
The project of modernity as it was formulated by the philosophers of the Enlightenment in the eighteenth
century consists in the relentless development of objectivating sciences, of the universalistic foundations of
51
Entretanto, o discurso científico assumiu uma posição eminente entre os outros
tipos de discurso, havendo mesmo a igualação entre conhecimento racional e conhecimento
científico (identificação essa que caracteriza o modelo de racionalidade que domina a ciência
moderna, conforme aponta Boaventura de Souza Santos 104 , e que dispõe como irracional
qualquer tipo de conhecimento que não seja constituído como ciência).
No campo das idéias jurídicas, a busca da cientificidade só triunfou com o
advento do positivismo jurídico, mas a ascensão do jusracionalismo, nos séculos XVII e
XVIII, já demonstra um novo horizonte antropológico, o mesmo que elevou o discurso
científico. A visão que o ser humano tinha de si mesmo subjacente ao jusracionalismo, apesar
de não romper necessariamente com um olhar religioso (Grócio, por exemplo, acreditava em
Deus, que considerava o autor da natureza humana racional da qual emana o direito
natural105), não representa mais uma perspectiva teocêntrica, mas um olhar disposto sobre o
eixo da razão, aproximado de uma visão antropocêntrica, de soberania sobre os elementos da
existência. O célebre comentário de Grócio de que o “direito natural é tão imutável que não
pode ser modificado nem mesmo por Deus” 106 ressalta uma compreensão do mundo que
estabelece uma centralidade do entendimento racional e dos ditames da razão que o poder
divino não pode atingir, conferindo à natureza humana uma grandeza que não é subordinada
ao arbítrio de Deus.
Portanto, o juspositivismo surgiu, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, em um
plano histórico no qual a fé nas divindades já tinha cedido muito espaço à fé na ciência, e
grandes expectativas eram lançadas sobre o discurso científico. Em um quadro social afastado
das cores do teocentrismo, o saber científico era disposto em relevo por um grande prestígio,
delineado como forma legítima de conhecimento e caminho apropriado para alcançar a
verdade.
morality and law, and of autonomous art […]. HABERMAS, Jürgen. Modernity: An Unfinished Project. In:
Habermas and The Unfinished Project of Modernity: Critical essays on Philosophical Discourse of
Modernity. Edited by Maurizio Passerin d' Entrèves and Seyla Benhabib. Translated by Nicholas Walker.
Cambridge: MIT Press, 1997, p. 45.
104
SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso sobre as Ciências. 7ª edição. Porto: Edições Afrontamento,
1995, p. 10 e s.
105
GROTIUS. On The Rights of War and Peace. Translated by William Whewell. Cambridge: Cambridge
University Press, 1853, p. 04 (digitalized by Google).
106
“Natural law is so immutable that it cannot be changed by God himself”. Ibidem. p. 04.
52
2.2. A retórica no discurso científico juspositivista e na caricatura
antipositivista da Reductio ad Hitlerum
No século XIX, a propagação da idéia de adequação dos saberes sociais às
exigências do conhecimento científico resultou no desabrochar das ciências sociais. Esse
processo de conformação a um modelo científico pode ser compreendido como um percurso
retórico, como um caminho de modelação de discursos para revesti-los dos atributos de um
tipo de discurso (o científico) dotado de grande prestígio e capacidade de convencer. O
projeto de atingir um caráter científico representou uma estratégia retórica de legitimação a
partir do enquadramento a um modelo dotado de grande força persuasiva.
O pensamento jurídico seguiu essa tendência, e foi difundida a pretensão de
conferir cientificidade à abordagem sobre o direito. Como roteiro de auto-afirmação, a
metalinguagem que é a teoria do direito incorporou exigências que estruturam um modelo de
discurso científico, e o paradigma do juspositivismo teve como um dos seus alicerces a idéia
de constituir o saber jurídico de acordo com uma postura científica 107 . Desse modo, o
florescimento da busca de tornar científico o conhecimento sobre o direito teve o sentido
retórico de trazer para o discurso teórico jurídico o crédito da ciência, envolvendo o campo
das idéias jurídicas com o “encanto” que marcou a narrativa científica na modernidade – o
qual consiste na ideal possibilidade de espelhar de maneira exata e objetiva a realidade.
Com efeito, a modernidade não foi palco do declínio da fé, mas da perda de
espaço da fé nas divindades para a fé na razão, e pode-se dizer que a crença na validade
universal dos enunciados científicos 108 – os quais são dispostos no âmbito dos discursos
107
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 135 e s.
108
Entendemos que a idéia da validade universal dos enunciados científicos é carente de fundamentos. Por um
lado, compreendemos que as teorias científicas dependem, em sua formulação e justificação, de circunstâncias
históricas em que são produzidas. Os fatores sociais dão forma às interpretações do mundo, e os requisitos para
que um enunciado seja definido como científico (como a utilização de determinados métodos e instrumentos de
análise) refletem exigências contextuais. Uma perspectiva semelhante encontra-se na influente obra “The
Structure of Scientific Revolutions” (A Estrutura das Revoluções Científicas), de Thomas Kuhn. Em tal livro, a
53
racionais – deu grande poder de convencimento às ciências. Dessa maneira, os esforços
retóricos para conferir à teoria jurídica a credibilidade do discurso científico tiveram como
traço marcante uma noção de ciência que se associa com o ideal da certeza e da objetividade
do saber. Neste sentido, Savigny, que nos seus primeiros escritos identificava direito positivo
com direito legislado (em contraposição aos seus escritos posteriores, nos quais fez a defesa
dos costumes como fonte do direito)109, escreveu que “a lei deve ser objetiva, ou seja, deve se
expressar diretamente”
110
, e que “denomina-se saber histórico todo saber de algo
objetivamente dado [...] por conseguinte, todo o caráter da ciência legislativa deve ser
histórico”111. Também Kelsen pretendeu “elevar a Jurisprudência [...] à altura de uma genuína
ciência [...] e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência:
objetividade e exatidão”.112
Sobre tal modelo objetivista de discurso científico, pode-se dizer que, apesar de
ser uma construção retórica, assim como qualquer discurso, reduz o espaço da retórica, que é
o campo da contingência (o qual engloba todo assunto que pode existir ou ser compreendido
história da ciência não é vista como uma progressão de teorias fundadas em uma metodologia e uma concepção
de razão comuns, mas sim de uma forma descontínua, com rupturas e revoluções. Dessa maneira, o
conhecimento científico se desdobra em contextos específicos, nos quais são compartilhados fundamentos
avaliativos comuns e marcos conceituais (paradigmas). A verdade científica, portanto, é fragmentada em
“perspectivas” confirmadas por critérios que não extrapolam os contextos (ver KUHN, Thomas. The Structure
of Scientific Revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1970, p. 111-136). Por outro lado, além da
consideração do caráter paradigmático do conhecimento científico, pode-se observar que a lógica da ciência não
autoriza a conclusão de que se tem o domínio de verdades universais. Neste sentido, Popper formulou uma
percepção da lógica da descoberta científica caracterizada pela “falseabilidade”. Aduziu que os enunciados das
ciências não expressam elementos singulares, e que são dotados de um caráter totalizante, abarcando um
universo de situações, como ocorre, por exemplo, na afirmação “todos os cisnes são brancos”. Assim, expôs que
os enunciados científicos não são verificáveis, pois não podemos investigar o mundo todo de modo a estarmos
certos de que não existe nada contrário à lei científica. Dessa maneira, por exemplo, pode-se dizer que as
experiências passadas confirmam o enunciado “todos os cisnes são brancos”, e que ele não foi falseado. Porém,
não se pode dizer que é verdadeiro, pois é possível que haja um cisne negro, já que o nosso campo de
experiência é limitado. O critério de demarcação da ciência, portanto, é a falseabilidade, já que não se pode
decidir definitivamente sobre a verdade de seus enunciados. No âmbito desse critério de demarcação proposto
por Popper, não é utilizada a lógica indutiva, pois não há uma passagem de experiências particulares para uma
conclusão universal. O que há é a constatação de que as experiências particulares não demonstram a falsidade da
idéia, algo que ainda é possível ocorrer no futuro. A ciência, sob tal perspectiva, não é sustentáculo do domínio
da verdade, tal como pretendido insistentemente no decorrer da modernidade. Ver POPPER, Karl. The Logic of
Scientific Discovery. London: Routlegde, 2002, p.03 e s.
109
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3ª Edição. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, p. 10 e 11.
110
SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Metodologia Jurídica. Tradução de Heloísa da Graça Buratti. 1ª Edição.
São Paulo: Rideel, 2005, p. 26.
111
112
Ibidem. p. 20.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. XI.
54
de maneiras distintas). Mesmo que a objetividade seja uma metáfora para identificar um
conjunto de opiniões e aparências que triunfaram, mesmo que seja apenas um rótulo que
encobre a incerteza e a relatividade, ela provoca uma redução, ao menos aparente, da
contingência e, conseqüentemente, do espaço da retórica.
Entretanto, a busca de adequação à narrativa científica deu ao juspositivismo uma
linguagem descritiva, pretensamente neutra, que procura retratar o modo de ser dos objetos do
conhecimento sem a emissão de juízos de valor. Neste sentido, Kelsen comentou que a sua
Teoria Pura do Direito, em razão de ser ciência do direito, “procura responder a esta questão:
o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o
Direito, ou como ele deve ser feito” 113 . Dessa maneira, os limites do discurso científico
demarcaram a inadequação da abordagem da justiça e do manejo de elementos conceituais
que não satisfazem a pretensão de neutralidade. A postura avalorativa, portanto, não foi
delineada em razão da “visão vazia dos olhos dos positivistas [...] [apontada como]
conseqüência, até certo ponto exótica e inesperada, da sua irremediável cegueira moral”114,
mas sim em virtude de uma estratégia retórica de legitimação do discurso teórico sobre o
direito.
Dessa postura avalorativa derivou o formalismo jurídico que caracteriza o
juspositivismo, segundo o qual o direito não é delimitado pelo seu conteúdo, mas pela
maneira que se manifesta.115 Assim, as normas jurídicas não envolvem qualquer vínculo ético
necessário, e são caracterizadas por elementos como coercitividade, heteronomia e
bilateralidade. Os requisitos de validade das normas jurídicas, desse modo, são relativos
apenas a aspectos formais como a proveniência de autoridade competente e o cumprimento de
normas procedimentais para a elaboração. Também os critérios para solução de antinomias
entre regras jurídicas como o hierárquico (lex superior derogat inferiori), o da especialidade
(lex specialis derogat generali) e o da posterioridade (lex posterior derogat priori) não
representam meios afirmativos de qualquer conteúdo ético necessário.
113
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 01.
114
PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico: uma introdução à interpretação sistemática
do direito. 1ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 66.
115
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 131 e 144 e s.
55
Porém, a pretensão de adequação do pensamento jurídico aos limites do discurso
científico entrou em crise após a segunda guerra mundial, quando foi desencadeada uma
grande reação ao positivismo jurídico. Em um cenário histórico no qual a legalidade abrigou a
ascensão do nazismo e do fascismo, tal reação teve como um dos aspectos relevantes o
entendimento de que a idéia de neutralidade e o formalismo do positivismo jurídico foram
elementos que favoreceram os regimes totalitários116. Dessa maneira, em um contexto que
passou a apresentar uma crescente demanda de respostas em torno da problemática da justiça
no direito, o caminho retórico de conformação do discurso jurídico a um modelo descritivo
deu lugar a um horizonte teórico no qual foi firmada a exigência de um discurso valorativo
diante do direito.
Entretanto, o argumento da vinculação ao nazismo e ao fascismo – que Bobbio
observou como Reductio ad Hitlerum117, e que foi um dos fatores mais eficientes da retórica
antipositivista – projetou “caricaturas” negativas do positivismo jurídico. Tal argumento
segue a comum estratégia retórica de associar o objeto da crítica a um elemento que goza de
desprestígio no auditório que se pretende convencer. Esse tipo de associação é uma manobra
argumentativa que tem um potencial de transferência de desprestígio capaz de obscurecer
eventuais aspectos positivos da postura criticada. Representa um caminho que leva o
interlocutor a enxergar o alvo da crítica em imagens (caricaturas) que dispõem em relevo as
características negativas. É uma maneira eficiente de compor a figura do objeto criticado por
meio de uma seleção de aspectos negativos, “um artifício retórico que objetiva desqualificar
os adversários sem análise da substância”118.
Porém, são carentes de fundamentos os argumentos que indicam que o
positivismo jurídico é uma postura que apoiou autoritarismos e que “acabou se convertendo
em uma ideologia, movida por juízos de valor [...] [diante da qual] o debate acerca da justiça
116
GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Introducción. In: GARZÓN VALDÉS, Ernesto. (Org.). Derecho y filosofia.
Barcelona: Editorial Alfa, 1985, p. 06 e s.; HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese
de um Milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 469 e s.; PAULSON, Stanley L. Lon L. Fuller, Gustav
Radbruch, and the Positivist Theses. Law and Philosophy, Netherlands, nº 3, Vol. 13, Special Issue on Lon
Fuller, p. 313 e s., aug, 1994.
117
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 225.
118
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico político. São Paulo: Método, 2006, p. 260.
56
se encerrava quando da positivação da norma”119. A perspectiva de que a validade é uma
condição suficiente para a existência da justiça é “principalmente um alvo criado pelos
antipositivistas para conduzir sua polêmica”120, é mais uma manobra retórica para facilitar o
discurso antipositivista do que uma característica do juspositivismo. Com efeito, não é
sustentada por exemplos a idéia de que o positivismo se converteu em um rumo teórico
segundo o qual qualquer conteúdo ético acolhido pelo direito representa a justiça. O
formalismo que caracteriza as correntes teóricas juspositivistas não implica o juízo de que
todo valor acolhido pela ordem jurídica representa o justo, mas sim o juízo de que não são os
conteúdos éticos que delimitam o conceito de direito. Há uma diferença fundamental entre o
reconhecimento da “existência do direito” e o da “existência da justiça – o problema da
validade e o problema da justiça não se identificam. Conforme observado por Kelsen, “um
direito positivo não vale pelo fato de ser justo, isto é, pelo fato de a sua prescrição
corresponder à norma da justiça – e vale mesmo que seja injusto”121. Desse modo, admite-se
que as normas jurídicas podem refletir quaisquer faces do bem e do mal, e não que a
positivação do direito encerra a questão da justiça.
Portanto, é impertinente interpretar que o formalismo jurídico denota
cumplicidade com o regime estabelecido por Hitler. Pode-se dizer que tal interpretação não
conduz a um relato adequado da trajetória do juspositivismo, mas permite a construção de
“caricaturas” que facilitam o sucesso dos discursos que se opõem a esse rumo teórico.
Conforme observamos, a vinculação do discurso adversário a um elemento que sofre rejeição
no auditório é um método retórico que tem grande potencial de provocar convencimento, o
que torna a Reductio ad Hitlerum um rumo argumentativo que confere força persuasiva a
relatos que se opõem ao juspositivismo.
Do mesmo modo, é carente de fundamentos o entendimento de que a postura
avalorativa serviu de sustentáculo para o nazismo. A atitude teórica construída sobre o ideal
de neutralidade não implica a concordância com tal regime, mas uma disposição que busca
adequar o pensamento jurídico aos limites da linguagem descritiva – os quais foram erguidos
119
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e
a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009 p. 241.
120
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 230.
121
KELSEN, Hans. O problema da justiça. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 68.
57
pela retórica do discurso científico como forma de legitimação da teoria jurídica. Com efeito,
se a abordagem avalorativa que caracterizou o juspositivismo não se oferece à crítica da ética
nazista, também não é afirmativa dela. Contudo, apesar de ser improcedente, a perspectiva de
que a postura avalorativa representa cumplicidade com o nazismo também dá poder
persuasivo aos relatos antipositivistas.
3. Florescimento do liberalismo e do ideal de legalidade como “oráculo”
burguês: caminhos em direção à separação entre a criação e a aplicação do
direito
De acordo com o que já indicamos neste capítulo, pode-se dizer que, até meados
do século passado, o juspositivismo foi marcado pela pretensão retórica de adequar o discurso
teórico jurídico a um modelo científico e pela concepção de que a aplicação do direito não
representa uma atividade produtiva de normas jurídicas. No entanto, depois de termos
refletido sobre a retórica em relação ao discurso científico no direito e ao argumento
antipositivista da Reductio ad Hitlerum, passamos, agora, a lançar o foco de análise sobre este
outro aspecto que foi proeminente no positivismo jurídico: a idéia da separação entre a
criação e a aplicação do direito. Dessa maneira, faremos uma abordagem sobre o horizonte
histórico no qual floresceu o ideal liberal de segurança jurídica e previsibilidade da ação
estatal, e buscaremos apontar que a distinção entre produzir e aplicar o direito expressa, no
campo teórico juspositivista, uma visão sobre as relações entre o Poder Legislativo e o Poder
Judiciário que é ligada a tal ideal.
Pode-se dizer que o florescimento da pretensão liberal de estabelecer a
previsibilidade da ação estatal ocorreu com ascensão da burguesia no âmbito do Absolutismo
– em que os monarcas não eram submetidos a limites jurídicos no exercício do poder político.
Com efeito, as monarquias nacionais européias se consolidaram em regimes absolutistas a
partir do século XVI, tomando como ponto de partida as guerras civis religiosas posteriores à
Reforma. Sobre as bases da independência do poder do monarca e da ausência de controle de
sua atividade por qualquer outro poder, o Absolutismo formou uma esfera de ação suprareligiosa, buscando a extinção ou neutralização de instituições autônomas, mas permanecendo
58
ligado à divisão social estamental122. Porém, o fim das agitações provocadas pelas guerras
civis religiosas (como decorrência da ação pacificadora e da ordem jurídica supra-religiosa)123
dispôs o Regime absolutista em um horizonte histórico distinto daquele que legitimou a sua
ascensão e que era seu sustentáculo. Os burgueses, então, concentrando o poder econômico
em uma Europa que já vivia um estágio desenvolvido do capitalismo, continuavam reduzidos
à condição de súditos, sendo excluídos do poder político (restrito ao soberano e aos seus
ministros) e submetidos a um espaço público que retirava das convicções privadas a sua
repercussão política 124 . Nesse sentido, Hobbes bem expressou a condição do cidadão
referindo que “a liberdade de um súdito reside apenas nas coisas que, ao regular suas ações, o
soberano permitiu” 125. Ademais, o regime absolutista, de modo geral, mantinha uma série
privilégios da nobreza, gerando tratamento desigual em relação às outras classes sociais. Na
França do século XVIII, por exemplo, a nobreza tinha considerável favorecimento em relação
às outras classes, como a isenção de vários tributos e o recebimento de pensões dadas pelo
Estado. Os nobres, por força da tradição, eram mesmo formalmente dissuadidos de exercer
alguma profissão, e a burguesia se via desprestigiada por uma monarquia revestida por um
caráter aristocrático e mesmo feudal 126.
Em tal contexto histórico, o Estado absolutista ainda impunha altas cargas
tributárias, e atuava na economia sob uma concepção fortemente intervencionista. Tais
aspectos foram vistos como limitadores do desenvolvimento do capitalismo127, sendo vetores
da insatisfação burguesa e servindo de catapulta para as idéias liberais. O liberalismo,
entretanto, emergiu como um complexo de idéias que atendiam a anseios políticos e sociais da
burguesia, se desdobrando, entre outras características, como proposta de construção de
esferas de liberdade individual diante do Estado e de enquadramento da atividade estatal em
122
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de
Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ, Contraponto, 1999, p. 19 e s.; SCHIERA,
Pierangelo. Absolutismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Org.).
Dicionário de Política. 1ª Edição. Volume 1. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 2 e s.
123
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de
Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ, Contraponto, 1999, p. 40.
124
Ibidem, p. 31 e s.
125
The Liberty of a Subject, lyeth therefore only in those things, which in regulating their actions, the Soveraign
hath praetermitted. HOBBES, Thomas. Leviathan. Oxford: Oxford University Press, 1929, p. 161 (digitalized).
126
HOBSBAWM, Eric. The Age of Revolution. New York: Vintage Books, 1996, p. 56.
127
VICENTINO, Cláudio. História Geral. São Paulo: Scipione, 1997, p. 174.
59
normas jurídicas128. Dessa maneira, se no Absolutismo a consciência era a única instância
livre para os súditos129, o liberalismo firmou-se como proposta de projetar essa consciência
para o espaço público, assegurando a sua expressão a partir da limitação do poder estatal.
Assim, as idéias liberais representaram um dos fatores que deram forma às revoluções
burguesas. Sobre a Revolução Francesa, comentou Hobsbawn que:
[...] um notável consenso sobre idéias gerais entre um grupo social bastante coerente
deu ao movimento revolucionário unidade efetiva. O grupo era a “burguesia”; suas
idéias eram aquelas do liberalismo clássico, tal como formuladas pelos “filósofos” e
“economistas” e propagadas pela maçonaria em por associações informais. Nessa
medida, os “filósofos” podem ser justamente responsabilizados pela Revolução. 130
Na maioria dos países da Europa continental, o liberalismo passou a ter grande
expressão no século XIX, o que já ocorria na Inglaterra desde o século XVII 131 . Em tal
horizonte histórico do século XIX, no qual foi marcante a influência da experiência
revolucionária francesa e floresceu o liberalismo e a sua forma de Estado (o Estado liberal),
teve grande prestígio a doutrina da separação dos poderes. Na obra de Montesquieu, essa
doutrina ganhou os seus contornos mais célebres, e foi estabelecida sobre a compreensão de
que existência da liberdade só é possível quando não houver reunião dos poderes do Estado
(legislativo, executivo e judiciário) em uma mesma pessoa ou mesmo órgão132.
Firmado como instrumento assecuratório das liberdades individuais, o princípio
da separação dos poderes foi erguido sobre a idéia da separação entre a criação e a aplicação
do direito. A atividade de criar o direito, assim, foi entendida como algo pertinente à
competência do Poder Legislativo, cabendo ao Judiciário e ao Executivo as outras funções do
128
JUST, Gustavo. O Princípio da Legalidade Administrativa: o Problema da Interpretação e os Ideais do Direito
Público. In: ADEODATO, João Maurício; BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco (Coords.).
Princípio da legalidade: Da Dogmática Jurídica à Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.236.
129
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de
Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ, Contraponto, 1999, p. 30 e s.
130
[…] a striking consensus of general ideas among a fairly coherent social group gave the revolutionary
movement effective unity. The group was the 'bourgeoisie'; its ideas were those of classical liberalism, as
formulated by the 'philosophers' and 'economists' and propagated by freemasonry and in informal associations.
To this extent 'the philosophers' can be justly made responsible for the Revolution. HOBSBAWM, Eric. The
Age of Revolution. New York: Vintage Books, 1996, p. 58.
131
MATTEUCCI, Nicola. Liberalismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,
Gianfranco (Org.). Dicionário de Política. 1ª Edição. Volume 1. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1998, p. 697 e s.
132
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
167 e s..
60
poder político, que deveriam ser exercidas nos limites da lei. Neste sentido, expressou
Montesquieu que “no governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes sigam
a letra da lei”133, e que, para cumprir essa função de aplicar o direito, o juiz “só precisa ter
olhos”134.
Contudo, a idéia de jurisdição como atividade reprodutiva do direito criado
anteriormente não é exclusiva do pensamento liberal, e já existia no pensamento político
legitimador do absolutismo. Hobbes, por exemplo, escreveu que
O legislador, em todos os Estados, é apenas o soberano, seja ele um homem, como
em uma monarquia, ou uma assembléia de homens, como em uma democracia ou
aristocracia [...] Em todas as cortes de justiça, o soberano (que é a pessoa do Estado)
é quem julga: o juiz subordinado deve considerar a razão que levou o seu soberano a
fazer tal lei, para que a sua sentença possa estar de acordo com ela, e então a
sentença é a sentença do seu soberano; de outra maneira, será sua própria sentença, e
será injusta. 135
Assim considerada, a atividade jurisdicional deve ser uma manifestação das
escolhas do soberano, não cabendo ao juiz elaborar o direito, mas apenas concretizar os
desígnios que levaram o detentor da soberania a elaborar a lei. Desse modo, a idéia de
jurisdição não criativa do direito serve como garantia da concentração do poder político nas
mãos do soberano, e não para a sua divisão, como disposto na doutrina da separação dos
poderes.
Porém, com a ascensão do liberalismo, a separação entre a criação e a aplicação
do direito foi posta a serviço do valor da segurança jurídica, do ideal da previsibilidade da
atuação estatal. Sob a compreensão de que a linguagem é normalmente dotada de uma clareza
suficiente para que todos entendam do mesmo modo um enunciado legal, a idéia de ação
estatal conforme a lei num Estado organizado sobre a separação dos poderes foi concebida
como algo que permite a previsão segura dos caminhos a serem tomados pelo Poder
133
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
87.
134
135
Ibidem. p. 87.
The Legislator in all Common-wealths, is only the raignis Soveraign, be he one Man, as in a Monarchy, or
one Assembly of men, as in a Democracy, or Aristocracy […]In all Courts of Justice, the Soveraign (which is the
Person of the Common-wealth) is he that Judgeth : The subordinate Judge, ought to have regard to the reason,
which moved his Soveraign to make such Law, that his Sentence may be according thereunto ; which then is his
Soveraigns Sentence ; otherwise it is his own, and an unjust one. HOBBES, Thomas. Leviathan. Oxford:
Oxford University Press, 1929, p. 204 (digitalized).
61
Executivo e pelo Poder Judiciário136. A legalidade, sob tal perspectiva, foi convertida em uma
espécie de “oráculo”, diante do qual é possível a revelação do futuro.
Esse “planejamento utópico do futuro” 137 foi vinculado ao interesse econômico
da burguesia de projetar com certeza as conseqüências jurídicas da conduta adotada, o que
permitiria uma proteção patrimonial e uma garantia contra as arbitrariedades. Com efeito, o
ideal de ordenação social por normas jurídicas claras que oferecessem segurança à
propriedade contribuiu para a ascensão da metodologia jurídica consagrada na doutrina
clássica da separação dos poderes. Neste sentido, observando a participação de fatores
econômicos na formação de características do direito no século XIX, expressou Max Weber
que:
[…] a direção de sua influência consistiu na racionalização e sistematização do
direito, o que em geral significou para os interessados no mercado, com a reserva de
uma limitação posterior, uma crescente possibilidade de cálculo do funcionamento
da administração da justiça, que é uma das mais importantes condições prévias das
explorações econômicas de caráter permanente, especialmente aquelas de tipo
capitalista [...] 138.
Entretanto, o positivismo jurídico surgiu na passagem dos séculos XVIII e XIX
diante do contexto histórico de ascensão do liberalismo na Europa, e acolheu o ideal liberal de
segurança jurídica e previsibilidade da ação estatal. A fase inicial do juspositivismo foi
marcada pela idéia da separação dos poderes traçada sobre uma perspectiva legalista, segundo
a qual o legislador tem o monopólio da criação do direito. Neste sentido, a Escola da Exegese
(que abriu caminhos do positivismo jurídico nascente e dominou o pensamento jurídico
francês no século XIX) teve como traço fundamental a idéia de que o direito positivo se
136
MAIA, Alexandre da. Racionalidade e progresso nas teorias jurídicas: o problema do planejamento do futuro
na história do Direito pela legalidade e pelo conceito de direito subjetivo. In: ADEODATO, João Maurício;
BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco (Coords.). Princípio da legalidade: Da Dogmática Jurídica à
Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 06 e s.
137
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Tradução de
Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ, Contraponto, 1999, p. 10.
138
[…] la dirección de su influencia consistió en la racionalización y sistematización del derecho, lo que en
general significó para los interesados en el mercado, con la reserva de una limitación posterior, una creciente
posibilidad de cálculo del funcionamiento de la administración de justicia, que es una de las más importantes
condiciones previas de las explotaciones económicas de carácter permanente, especialmente aquellas de tipo
capitalista […]. WEBER. Max. Economía y Sociedad: Esbozo de sociología comprensiva. Traducción de José
Medina Echavarría, Juan Roura Parella, Eugenio Ímaz, Eduardo García Máynez y José Ferrater Mora. 2ª
Edición. Décimosexta reimpressíon. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 650.
62
identifica por completo com a lei 139 , e dispôs que o Judiciário tem apenas o papel de
“descobrir, elucidar o sentido exato e verdadeiro da lei”140. A este respeito, é expressivo o
comentário de Laurent, um dos representantes de tal Escola:
Os códigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete, este não tem já por missão
fazer o Direito: o Direito está feito. [...] Não é verdade que o papel dos
jurisconsultos se encontra reduzido; só que não devem ter a ambição de fazer o
Direito ao ensiná-lo, ou aplicá-lo; sua única missão consiste em interpretá-lo... A
141
eles não compete o trabalho de legislar, mas ao poder legislativo .
No entanto, apesar do legalismo ter encontrado refutações já entre os
contemporâneos da Escola da Exegese, como ocorreu, por exemplo, no pensamento de
Savigny (que destacou a idéia de que o direito não emana apenas da lei, ressaltando que os
costumes também representam uma fonte do direito, o qual foi visto por ele como um reflexo
do “espírito do povo”142), a legislação continuou a ocupar, ao menos na Europa continental e
na América latina, o centro teórico do pensamento jurídico até a segunda metade do século
XX – quando os problemas em torno da interpretação e da indeterminação do direito
passaram a ser enfatizados na teoria jurídica, provocando o deslocamento do foco das
atenções da legislação para a jurisdição143. Entretanto, a despeito do desenvolvimento teórico
que levou o juspositivismo para além da ingenuidade das teorias legalistas, a compreensão
sobre as relações entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário continuou a ser marcada pela
concepção que limita a aplicação judicial de textos normativos a uma atividade técnica,
cognitiva do direito prévio. Até meados do século passado, “a teoria usual da interpretação
[...] [manifestava a crença de que] a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas
139
BONNECASE, J. La Escuela de la Exegesis en Derecho Civil. México D. F.: Editorial Cultura, 1944, p.
140-141.
140
“Descubrir, dilucidar el sentido exacto y verdadero de la ley”. DEMOLOMBE, J. C. F. Apud BONNECASE,
J. La Escuela de la Exegesis en Derecho Civil. México D. F.: Editorial Cultura, 1944, p. 150.
141
Los Códigos no dejan nada al arbitrio del intérprete, este no tiene ya por misión hacer el Derecho: el
Derecho está hecho. [...] No es verdad que el papel de los jurisconsultos se encuentra reducido; sólo que no
deben tener la ambición de hacer el Derecho al enseñarlo, o aplicarlo; su única misión consiste en
interpretarlo... A ellos no les toca el trabajo de legislar, sino al poder legislativo. LAURENT. Apud
BONNECASE, J. La Escuela de la Exegesis en Derecho Civil. México D. F.: Editorial Cultura, 1944, p. 141.
142
SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Sistema del Derecho Romano Actual. Traducción de Jacinto Mesía y
Manuel Poley. Tomo I. Madrid: F. Góngora y Compañía Editores, 1878, p. 29 e s. e 108 e s.
143
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I, p. 215,
1998; JUST, Gustavo. Guinada Interpretativa. In: Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenação de Vicente
de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, Unisinos, 2006, p. 395.
63
as hipóteses, apenas uma única solução correta”144. Dessa maneira, apesar da perda de espaço
das perspectivas legalistas, a lei continuou a ser vista, no horizonte teórico do juspositivismo,
como um elemento que serve para um controle seguro de expectativas em relação à atividade
do Poder Judiciário. Em conformidade com o ideal liberal de previsibilidade da ação estatal, a
lei permaneceu como um instrumento capaz de permitir o cálculo exato das conseqüências
jurídicas da conduta adotada, assegurando o domínio do futuro.
4. O espaço reduzido da retórica na justificação de decisões judiciais sob a
distinção entre produzir e aplicar o direito: a limitação da jurisdição a uma
racionalidade formal e a um campo argumentativo no qual é minimizada a
contingência em torno do sentido dos textos normativos
A metodologia jurídica baseada na idéia de que a jurisdição é uma atividade
cognitiva (reprodutiva) de normas pré-existentes minimiza na justificação das decisões
judiciais o espaço da retórica considerada como faculdade de identificar os meios disponíveis
para argumentar bem (que se manifesta sobre qualquer expressão lingüística, mesmo que
irrefletidamente, e independentemente da desconsideração ou depreciação da retórica como
metalinguagem). Essa redução é devida à limitação da esfera de atuação do julgador a
atividades que se assemelham a operações de lógica formal e a um campo argumentativo no
qual é subdimensionada a contingência em torno do sentido dos textos normativos.
A jurisdição, sob tal metodologia, é concebida como uma atividade técnica, sem o
caráter volitivo e político que envolve a criação do direito, e representa algo que se desdobra
dentro das fronteiras da lógica, sob a forma de subsunção dos fatos às normas (como
silogismo judicial), e que se manifesta, desse modo, como uma atividade rigorosamente
racional se for realizada sem falhas ou desvios. Para tal ótica (que teve como um dos
sustentáculos a idéia da completude do direito, a qual foi um dos elementos marcantes do
juspositivismo 145 ), as questões em torno da justiça e da racionalidade dos conteúdos
144
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 391.
145
Neste sentido, ver BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. 2ª edição.
São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 259-299.
64
normativos são exteriores ao campo argumentativo da jurisdição, a qual é uma “forma” do
direito previamente criado incidir na sociedade, é uma atividade pela qual o julgador aplica
escolhas éticas alheias. Assim, tais questões éticas dizem respeito aos criadores das normas
jurídicas, e extrapolam os limites da racionalidade judicial, que é dirigida para garantir a
harmonia lógica entre as premissas e conclusões jurídicas em jogo. Portanto, o espaço da
retórica na argumentação judicial é reduzido a um âmbito formal, destinado à demonstração
de caminhos cognitivos (lógicos) pelos quais se chegou à decisão, não se referindo a juízos de
valor do próprio julgador.
Para tal perspectiva, a alegação de aplicação das normas jurídicas é feita em um
campo argumentativo que minimiza a contingência a respeito dos sentidos dos textos
normativos, que são vistos como previamente determinados. Essa idéia de anterioridade do
direito em relação aos processos interpretativos é baseada na confusão entre significantes e
significados, entre textos de normas e normas 146 . Sob tal visão, os textos jurídicos
(significantes) já representam a própria norma (significado), não cabendo uma produção
normativa na interpretação, mas sim a apreensão do sentido da norma pré-existente diante da
sua clareza ou pela superação da falta de clareza por meio de cânones da interpretação. Desse
modo, a clareza é uma propriedade das normas que permite um entendimento sem esforços
interpretativos, e, nas situações de obscuridade das normas, o positivismo jurídico se serviu de
métodos interpretativos (tais como o lógico, o histórico, o sistemático e o gramatical,
propostos por Savigny147 ) para dar luz ao que não é claro por si só (o sentido da norma
jurídica), mas que já existe previamente. Entretanto, a retórica perde valor na alegação de
aplicação de normas claras, que exige do julgador que ele aponte o que já transparece por si
só. Por outro lado, nos casos em que não há clareza, meios hermenêuticos levam à
reconstrução do sentido contido na norma148, com a superação da incerteza. Assim, no que se
refere ao sentido do texto normativo, há uma redução da contingência, do espaço
argumentativo e, desse modo, do campo da retórica.
146
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes. 2ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 11.
147
SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Sistema del Derecho Romano Actual. Traducción de Jacinto Mesía y
Manuel Poley. Tomo I. Madrid: F. Góngora y Compañía Editores, 1878, p. 150 (digitalizado).
148
Idem. Metodologia Jurídica. Tradução de Heloísa da Graça Buratti. 1ª Edição. São Paulo: Rideel, 2005, p.
26.
65
Portanto, a retórica na justificação das decisões judiciais é subdimensionada
diante da metodologia erguida a partir da separação entre a criação e a aplicação do direito,
sendo lançada sobre um âmbito da argumentação jurídica que é limitado a uma racionalidade
formal, e que parte de uma visão interpretativa que oculta a incerteza nos textos normativos.
Essa idéia da redução do espaço da retórica ganha contornos mais nítidos quando
é observada em relação ao panorama contemporâneo da teoria e da filosofia do direito. Em tal
horizonte, há uma ênfase na idéia de que a decisão judicial é uma atividade que se desdobra
sobre a incerteza dos textos normativos, que tem um papel criativo da norma e envolve uma
atitude valorativa do julgador149. Desse modo, é ampliada a importância da retórica, pois há
um aumento da contingência e do espaço argumentativo no que diz respeito ao sentido dos
textos normativos, e a perspectiva de que a jurisdição é um cenário da criação da norma
atribui um maior significado ético à argumentação (que não representa a exposição de um
caminho cognitivo em direção ao direito pré-constituído, mas o momento de justificação em
torno do direito produzido no caso).
No entanto, diante da concepção de que não cabe à jurisdição produzir o direito,
tal campo reduzido da argumentação e da retórica na justificação das decisões judiciais é visto
como ideal, pois a criação da norma no caso reflete uma situação na qual o julgador ultrapassa
os limites da sua função, violando a separação dos poderes e pondo em risco a liberdade e a
segurança jurídica. Neste sentido, demonstrando a persistência de uma metodologia erguida
sobre a idéia da separação entre a criação e a aplicação do direito, um juiz do Tribunal
Regional Federal da 5ª Região (identificado apenas como “juiz 9”, em virtude da garantia de
sigilo para os entrevistados na pesquisa de Eduardo Neves) declarou que:
Eu não tenho a mais mínima dúvida de que, se o juiz quiser agir corretamente, ele
tem que aplicar o direito pré-existente. Por uma questão de lógica, o juiz não pode
criar direito. Se o juiz pudesse criar direito, nós não estaríamos numa democracia.
Uma das características do Estado Social e Democrático de Direitos é a
separabilidade das funções. Estuda-se isso até em organização política e social desde
o ginásio: que o poder executivo deve aplicar a lei de ofício, o legislativo forma o
sistema jurídico e o judiciário aplica o sistema jurídico. Se o judiciário, além de
aplicar o sistema jurídico, formasse o sistema jurídico, ele estaria usurpando as
150
funções do legislativo .
149
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I, p.
209-219, 1998; JUST, Gustavo. Guinada Interpretativa. In: Dicionário de Filosofia do Direito. Coordenação de
Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, Unisinos, 2006, p. 395.
150
NEVES, Eduardo. Entre a Teoria e a Práxis Jurígenas: por um translegalismo na criação semântica do
direito. 2009. Monografia (graduação) - Curso de Direito, Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2009,
p. 37.
66
Sob tal perspectiva (anacrônica em relação à teoria do direito contemporânea), é
exigida a conformação do discurso judicial ao ideal da jurisdição como atividade reprodutiva
da norma prévia, e, dessa maneira, a argumentação adequada é a que não revela atividade
criativa do direito pelo julgador. A retórica, portanto, indicando os caminhos para argumentar
bem de acordo com tal concepção, serve para conter o discurso judicial dentro de um espaço
em que ela própria é reduzida. É ela disposta como um instrumento para modelar a “máscara”
da reprodução normativa, que oculta as escolhas éticas do julgador, esconde a invenção do
direito na sua concretização e é uma condição de legitimidade no teatro da justificação das
decisões judiciais.
CAPÍTULO TERCEIRO – A retórica diante do ontologismo
axiológico e a ênfase na indeterminação do direito
Sumário: 1. A proeminência da atitude valorativa e da consciência da
indeterminação do direito no cenário das idéias jurídicas recentes, e o
reducionismo no uso do termo “pós-positivismo” para identificar o
paradigma atual da teoria do direito. 2. O ontologismo axiológico ante o
discurso valorativo no pensamento jurídico atual, e o seu caráter
problemático em relação ao ideal democrático de tornar o direito um campo
aberto para divergências. 3. Adequação da postura opinativa à busca da
permeabilidade jurídica e fundamentos filosóficos para um olhar carente de
verdades. 4. A visibilidade do espaço da retórica na justificação das decisões
judiciais em face da ênfase na indeterminação do direito.
1. A proeminência da atitude valorativa e da consciência da
indeterminação do direito no cenário das idéias jurídicas recentes, e o
reducionismo no uso do termo “pós-positivismo” para identificar o
paradigma atual da teoria do direito
Na segunda metade do século XX, o modelo teórico (retórico) de
neutralidade científica e a idéia da separação entre a criação e a aplicação do direito
foram postos em crise. Nesse período, floresceu o entendimento de que o pensamento
jurídico não deve ser limitado a uma linguagem descritiva e pretensamente neutra (vista
como representativa de uma atitude teórica que não se opôs à ascensão do nazismo e do
fascismo) e foi firmada a tendência de construir o saber jurídico sobre uma atitude
valorativa. Dessa maneira, a teoria do direito descerrou sobre si um horizonte retórico
distinto do que fora estabelecido pela busca de conformação do discurso a contornos
científicos: a escolha dos caminhos persuasivos para o discurso (pelas vias do lógos, do
páthos e do êthos) encontrou uma maior abertura para o manejo de temas e conceitos
que transpõem os limites do saber descritivo e pretensamente neutro e que representam
68
uma atitude teórica valorativa. A teoria jurídica, que incorporava exigências que
estruturam um modelo de discurso científico, deu lugar para uma linguagem que assume
um papel construtivo do próprio objeto de análise. Por outro lado, a interpretação
passou a constituir um eixo de análise, e foi exposta a fragilidade da idéia de que a
jurisdição é uma atividade meramente reprodutiva de normas previamente constituídas.
Com efeito, a consciência da indeterminação do direito e do papel criativo do intérprete
passou a ser um dos traços destacados no quadro das idéias jurídicas, e deu lugar a uma
mudança de agenda na teoria do direito, passando a decisão e a aplicação a ocuparem o
centro de reflexão, tomando o foco que era dedicado à legislação151.
Fala-se, no entanto, de um novo modelo para a teoria do direito, de um novo
paradigma que foi erguido a partir da crise do juspositivismo, em meados do século
passado, e que caracteriza o pensamento jurídico atual: o pós-positivismo152. Esse termo
não denota uma escola ou um movimento homogêneo, mas nos debates em que é
utilizado ressalta o significado de uma tendência teórica que busca aproximar o direito
de determinadas perspectivas morais e que reconhece a força normativa dos princípios e
a indeterminação do direito. Contudo, a oposição que é feita entre positivismo e póspositivismo parte, em geral, da desconsideração (talvez por motivo de desconhecimento,
em alguns casos) do juspositivismo atual, reduzindo este rumo teórico a características
que o marcaram até meados do século XX, mas que não expressam a sua feição
contemporânea – tais como uma visão de interpretação traçada sobre a idéia da
separação a criação a aplicação do direito e o entendimento de que os princípios são
carentes de normatividade.
151
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I,
p. 209-219, 1998; JUST, Gustavo. Guinada Interpretativa. In: Dicionário de Filosofia do Direito.
Coordenação de Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, Unisinos, 2006, p. 395.
152
A título de exemplo, BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo:
os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 247 e s.;
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 264 e s.;
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I, p.
209-219, 1998; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 136 e s.; DANTAS, David Diniz. Interpretação Constitucional no PósPositivismo: Teoria e casos práticos. São Paulo: Madras, 2005. GUERRA FILHO, Willis Santiago.
Teoria Processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos, 2000, p. 169; REGLA, Josep Aguiló.
Positivismo y postpositivismo. Dos paradigmas jurídicos en pocas palabras. Doxa: cuadernos de filosofía
del derecho, Alicante, nº 30, p. 665-675, 2007.
69
No que diz respeito à idéia da indeterminação do direito, ela é apontada
como um elemento que caracteriza o pós-positivismo. Fala-se, assim, da “escassa
atenção que prestou o positivismo jurídico à interpretação”153, e que nas abordagens
pós-positivistas “o centro de atenção se deslocou para a indeterminação e para a solução
de casos indeterminados” 154 . Desse modo, o pós-positivismo é referido como um
paradigma que dispõe em relevo as questões em torno da interpretação e o papel
produtivo de normas jurídicas desempenhado julgador. No entanto, é acolhida por
partidários do pós-positivismo a concepção de que as correntes juspositivistas
constituem um horizonte teórico marcado pela perspectiva de que “criar normas e
aplicar normas são operações conceitualmente opostas”155. Assim, o pós-positivismo é
mencionado como
um movimento crítico que encerra o predomínio da dogmática jurídica
tradicional [...] [a qual tem como um dos seus elementos característicos a]
representação da atividade do juiz meramente como tarefa de
156
“conhecimento” da lei [...].
Porém, a problemática da interpretação e a idéia da indeterminação do
direito têm destaque no positivismo jurídico recente157. Com efeito, abordagens como a
de Hart e a de Kelsen abriram caminhos para além da separação entre a criação e a
aplicação do direito, e os intérpretes dos textos normativos passaram a ser protagonistas
no palco das teorias juspositivistas. Entretanto, não é adequado o entendimento de que a
ênfase na indeterminação do direito e o reconhecimento do papel criativo do intérprete
refletem uma orientação teórica que não se conforma ao juspositivismo, mas a um
153
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I,
p. 212, 1998.
154
“El centro de atención se ha desplazado a la indeterminación y a la solución de los casos
indeterminados”. Ibidem. p. 212.
155
“Crear normas y aplicar normas son operaciones conceptualmente opuestas”. Ibidem.p. 671.
156
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p. 136.
157
A título de exemplo, BIX, Brian. Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford: Oxford
University Press, 2003; MARMOR, Andrei (Org.). Direito e Interpretação: Ensaios de Filosofia do
Direito. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004; Idem. Interpretation and
Legal Theory. 2nd ed. Oxford: Hart Publishing, 2005;
WALUCHOW, Wilfrid. Inclusive Legal
Positivism. Oxford: Oxford University Press, p. 191-272, 1994.
70
paradigma distinto, considerado como pós-positivista. Tal entendimento expressa um
reducionismo no uso do termo “pós-positivismo”, pois limita o juspositivismo a um
modelo teórico que não contempla os seus desenvolvimentos recentes.
Por outro lado, a atribuição de caráter normativo aos princípios é apontada
como uma característica do pós-positivismo. Neste sentido, observa-se que “com o póspositivismo, os princípios passam a ser tratados como direito”158, e que
no conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse
paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na
interpretação jurídica, com reconhecimento de normatividade aos princípios
e de sua diferença qualitativa em relação às regras [...].159
Dessa maneira, o positivismo jurídico é visto como uma orientação teórica
que limita o direito a um modelo de regras, e o pós-positivismo é referido como um
paradigma que adota o entendimento de que as normas jurídicas compreendem regras e
princípios.
Todavia, ante os vários sentidos que têm os termos “regra” e “princípio”, e
na tentativa de não tornar obscura a nossa exposição, é cabível uma abordagem sobre a
diferença entre regras e princípios. Com efeito, há diversos critérios que são usados para
essa distinção, entre os quais ganham destaque o grau de generalidade e o modo de
solução de antinomias. Robert Alexy, na “Theorie der Grundrechte” (Teoria dos
Direitos Fundamentais), comentou que “o [critério] da generalidade é o mais
freqüentemente utilizado”160. Contudo, tal constatação se refere ao panorama teórico que
esse autor observava no contexto em que foi escrita essa obra (a qual foi lançada em
1986), e, atualmente, o critério que parece ter o maior destaque é o modo de solução de
conflitos entre normas – protagonismo que ocorre, em alguma medida, em virtude da
influência de desenvolvimentos teóricos realizados por Alexy. O uso desse critério,
158
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 264.
159
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 249.
160
“El de generalidad es el más frecuentemente utilizado”. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos
Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1993, p. 83.
71
conforme apontou Aguiló Regla, é um dos aspectos proeminentes no cenário atual das
idéias jurídicas161.
De acordo com o critério da generalidade, os princípios são caracterizados
pelo elevado grau de generalidade que apresentam, enquanto nas regras esse grau é
baixo. Contra esse critério, pode-se argumentar que apresenta grande imprecisão, pois
os limites que separam as regras dos princípios ficam demasiadamente indefinidos.
Apesar de haver dispositivos que manifestam com relativa clareza um acentuado ou
reduzido nível de generalidade (a exemplo, respectivamente, do princípio da dignidade
da pessoa humana e do artigo 18, § 1º, da Constituição Federal, que dispõe que “Brasília
é a Capital Federal”162), as fronteiras entre o alto e o baixo grau de generalidade são
obscuras.
Por outro lado, o modo de solução de conflitos entre normas representa um
critério que leva a uma diferenciação qualitativa entre regras e princípios. Segundo esse
critério, o conflito entre duas regras implica a invalidade de uma delas, e metanormas
como a da posterioridade (lex posterior derogat priori), a da superioridade (lex superior
derogat inferiori) e a da especialidade (lex specialis derogat generali) podem resolver a
questão de qual das regras em contradição é valida163. Essas metanormas podem servir,
por exemplo, para a solução de uma antinomia entre dois dispositivos que estabeleçam
prazos distintos para a interposição do mesmo recurso. Já as colisões entre princípios
encontram solução além da dimensão da validade, e a decisão de aplicar um dos
princípios contrapostos não implica o reconhecimento da invalidade do outro, mas sim
que as circunstâncias do caso levaram a uma ponderação pela qual um determinado
princípio prevaleceu 164 . Assim, por exemplo, no Habeas Corpus nº 82424-2 foi
161
REGLA, Josep Aguiló. Positivismo y postpositivismo. Dos paradigmas jurídicos en pocas palabras.
Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 30, p. 669-670, 2007.
162
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 14 de
dezembro de 2011.
163
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 88-89; DWORKIN, Ronald. Taking Rights
Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 27.
164
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 89.
72
configurada uma colisão entre os princípios da dignidade da pessoa humana e o da
liberdade de expressão, e o Supremo Tribunal Federal concluiu que, diante das
circunstâncias do caso (no qual se constatou a publicação de livros com teor anti-semita
por Siegfried Ellwanger), o primeiro princípio deveria prevalecer – pois o preceito
fundamental da liberdade de expressão não poderia contemplar práticas racistas 165 .
Desse modo, o julgamento que fez prevalecer do princípio da dignidade não envolve
uma declaração de invalidade do princípio da liberdade de expressão, mas sim uma
ponderação de valores. Todavia, perante circunstâncias distintas, a colisão entre os
princípios poderá ser resolvida de outra maneira, e o princípio que não foi aplicado no
caso – mas que continuou com a sua validade intacta – poderá prevalecer em outro
contexto166.
Entretanto, observa-se que as regras apresentam uma diferença qualitativa
em relação aos princípios, pois estes “têm uma dimensão que as regras não têm – a
dimensão do peso e da importância”167. Ante essa dimensão, as soluções de conflitos
entre princípios podem ser expressas como julgamento sobre qual das normas em
colisão é afirmativa do valor que tem maior importância, maior “peso” no contexto do
caso.
No entanto, feitas essas indicações sobre diferenças entre regras e
princípios, entendemos que não é pertinente a perspectiva de que o juspositivismo é
limitado à concepção de que as normas jurídicas compreendem apenas regras. Talvez
seja cabível afirmar que, até meados do século passado, as teorias juspositivistas não
reconheciam a existência de normatividade nos princípios ou observavam neles um
165
B R ASI L . S up r e mo T r ib u na l Fed e r al . P le n ár io . Hab ea s Co r p u s nº 8 2 4 2 4 – RS.
Re la to r : M i ni str o Mo r eir a Al ve s. B r a sí lia , 1 7 .0 9 .2 0 0 3 . DJ U e m 1 9 .0 3 .2 0 0 4 .
Di sp o ní v el
e m:
< h tt p :// www. s t f . go v.b r /p o r t al/j ur i sp r ud ê nci a/ li st ar J ur isp r ud e nc ia
Det al he .a sp ? s1 =0 0 0 2 9 6 8 7 8 &b a s e=b a se Aco r d ao s>. Ac es so e m 0 1 d e a go sto d e 2 0 1 1 .
166
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 89.
167
“Principles have a dimension that rules do not – the dimension of weight or importance”. DWORKIN,
Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 26.
73
caráter normativo apenas subsidiário (destinado a impedir lacunas do direito)168. Porém,
não é cabível estender tal afirmação ao positivismo jurídico recente, no âmbito do qual
ganhou espaço a idéia de que os princípios são revestidos de força normativa169.
Por sua vez, em relação à atitude de assumir um papel valorativo na reflexão
sobre o direito, compreendemos que não é um aspecto que apenas pode ser enquadrado
em abordagens não positivistas. É cabível considerar que o positivismo jurídico figura
como um amplo e complexo painel em que a busca de conformação a uma linguagem
avalorativa – erguida a partir da retórica do discurso científico – pode ser vista em
matizes marcantes e traços fortes. Contudo, os dois aspectos fundamentais do
juspositivismo (a idéia de que não há conexão necessária entre o direito e a moral, e a
concepção de que só há caráter jurídico no direito positivo) não implicam a exclusão da
postura valorativa. Afinal, emitir juízos de valor e defender como mais justa uma
determinada perspectiva ética não implica a admissão de que há direitos além do direito
positivo ou a concordância com a idéia de que há conexão necessária entre o direito e a
moral. Neste sentido, pode-se dizer que “é uma suposição falaciosa [...] [considerar que]
a teoria do positivismo jurídico é, em si mesma, confinada ao estudo da existência [do
direito], ao passo que oposta ao mérito [...]”170. Com efeito, conforme observou Jeremy
Waldron, “em anos recentes, filósofos do direito prestaram crescente atenção à
possibilidade de que o positivismo jurídico seja remodelado como uma tese normativa
sobre o direito” 171 , e rótulos como “positivismo ético” e “positivismo normativo”
168
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 262 e
s.
169
A título de exemplo, MARMOR, Andrei. Positive Law and Objective Values. Oxford: Oxford
University Press, 2001, p. 81 e s.; SHAPIRO, Scott J. On Hart´s Way Out. In: COLEMAN, Jules (Ed.).
Hart´s Postcript: Essays on the Postscript to the Concept of Law. Oxford: Oxford University Press,
2005, p. 164 e s.; WALUCHOW, Wilfrid. Inclusive Legal Positivism. Oxford: Oxford University Press,
1994, p. 168 e s.
170
“Is a fallacious assumption [...] the theory of legal positivism is itself confined to the study of the
existence as opposed to the merit […]”. CAMPBELL, Tom. Prescritive Legal Positivism: Law, Rights
and Democracy. London: UCL Press, 2004, p. 25.
171
“In recent years, philosophers of law have paid increasing attention to the possibility that legal
positivism might be recast as a normative thesis about law.” WALDRON, Jeremy. Normative (or
Ethical) Positivism. In: COLEMAN, Jules (Ed.). Hart´s Postcript: Essays on the Postscript to the
Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 411.
74
passaram a ter lugar no palco das idéias jurídicas – expressando a perspectiva de que a
linguagem valorativa não é incompatível com a postura juspositivista.
Desse modo, há carência de pertinência tanto no relato de que o positivismo
jurídico se converteu em uma ideologia segundo a qual todo direito é justo (conforme
apontamos no capítulo anterior) quanto no relato que reduz esse rumo teórico a uma
linguagem que “deve excluir o elemento da correção de conteúdo”172.
Portanto, de acordo com o que acima foi exposto sobre o positivismo e o
pós-positivismo, pode-se dizer que o uso deste último termo envolve, ordinariamente,
uma caracterização reducionista do positivismo jurídico. Para descrever o plano do
pensamento jurídico atual – que dispõe em relevo os problemas da interpretação e
apresenta um horizonte retórico aberto para a linguagem valorativa –, a referência a um
espaço teórico que é constituído por correntes “positivistas” e “não positivistas” (tal
como fez Alexy173, por exemplo) é mais adequada do que a alusão ao paradigma do póspositivismo. Da mesma maneira, a oposição entre positivismo e jusmoralismo também é
mais apropriada do que a menção a um modelo pós-positivista para representar o
panorama das idéias jurídicas recentes (conforme sugeriu Dimoulis, considerando que a
maioria das teorias não positivistas atuais não refuta a tese de que só há caráter jurídico
no direito positivo, mas sim a tese de que não há conexão necessária entre o direito e a
moral174).
De qualquer modo, como já observado nesta dissertação, os conceitos não
são representações da realidade, mas sim produtos de seleções de aspectos comuns entre
elementos distintos. O enquadramento de uma conjuntura teórica multifacetada em
conceitos como pós-positivismo ou jusmoralismo é uma forma de controlar os
172
“Must exclude the element of correctness of content”. ALEXY, Robert. The Argument from
Injustice: A Reply to Legal Positivism. Translated by Stanley L. Paulson and Bonnie Litschewski
Paulson. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 13.
173
Idem. Derecho y Moral: Reflexiones sobre el punto de partida de la interpretación constitucional. In:
MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Coord.). Interpretación Constitucional. Tomo I. Traducción de
Eduardo R. Sodero. México D.F.: Editorial Porrúa, 2005, p. 01 e s.; Idem. The Argument from
Injustice: A Reply to Legal Positivism. Translated by Stanley L. Paulson and Bonnie Litschewski
Paulson. Oxford: Oxford University Press, 2004, p.03 e s.
174
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico político. São Paulo: Método, 2006, p. 85 e s.
75
elementos do conhecimento, e não uma forma de espelhar a realidade. Pode-se dizer,
todavia, que a observação por meio de dicotomias – como positivismo e jusmoralismo
ou positivismo e não positivismo – é retoricamente favorável, pois a representação
(caricatural) por meio de conceitos antagônicos torna mais simples a identificação dos
adversários, facilitando, portanto, a construção de argumentos para triunfar sobre os
opositores.
Contudo, ante o horizonte da teoria jurídica recente – que observamos como
um conjunto de abordagens que podem ser enquadradas nos rótulos de “positivismo” e
“não positivismo” –, buscaremos discorrer sobre os seguintes aspectos no restante deste
capítulo:
1) primeiro, o ontologismo axiológico, que ganhou novo fôlego com a
abertura retórica que houve para a linguagem valorativa no discurso teórico jurídico a
partir da crise do juspositivismo. Refletiremos sobre o caráter problemático da
afirmação de conteúdos jurídicos necessários perante a pluralidade ética da sociedade
contemporânea, e observaremos que o entendimento de que um valor respaldado por
normas jurídicas é uma verdade ética pode dificultar a abertura do direito para valores
distintos – erguendo uma barreira contra argumentos divergentes que reduz a
capacidade de convencimento e as possibilidades da retórica no campo dos discursos
que oferecem oposição ao que é tratado como verdadeiro. Desse modo, faremos uma
análise a respeito da adequação da postura opinativa (em que não há reconhecimento do
domínio da verdade) ao ideal democrático de abertura do direito para perspectivas éticas
que nele não são acolhidas;
2) depois, buscaremos refletir que a ênfase na indeterminação do direito
trouxe um aumento da visibilidade do espaço da retórica na justificação de decisões
judiciais.
76
2. O ontologismo axiológico ante o discurso valorativo no pensamento
jurídico atual, e o seu caráter problemático em relação ao ideal
democrático de tornar o direito um campo aberto para divergências
Com o obscurecimento do jusnaturalismo e a emergência do juspositivismo
o eixo da verdade no pensamento jurídico foi deslocado dos valores para o discurso
científico. Porém, com o reflorescimento da atitude valorativa no campo das idéias
jurídicas a partir de meados do século passado, houve uma reaproximação da pretensão
de domínio da verdade em relação aos valores e uma retomada de perspectivas
jusnaturalistas175. No âmbito da teoria jurídica recente, em que a conexão entre o direito
e a moral integra a agenda prioritária176, os discursos éticos erguidos sobre a plataforma
da “verdade” ganham espaço significativo com abordagens não positivistas. A este
respeito, observou Dimoulis que
em obras recentes se multiplicam as referências a conceitos como justiça,
verdade, moral, ética e dignidade humana enquanto valores que impõem o
abandono do positivismo jurídico. [...] Constatamos aqui a insistência na
crença metafísica em uma justiça que se identifica com a verdade, ignorando
os debates filosóficos do século XX que levaram ao abandono do
177
dogmatismo idealista .
Neste sentido de afirmação do ontologismo axiológico, fala-se de uma ética
“universal na deferência às desigualdades [que] investiga valores que espelham a
175
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de
Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 225 e s.; KAUFMANN,
Arthur. Filosofia do Direito. Tradução de António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 46 e s.; REGLA, Josep Aguiló. Positivismo y postpositivismo. Dos paradigmas
jurídicos en pocas palabras. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 30, p. 672 e s., 2007;
WIEACKER, Franz. Historia do direito privado moderno. Tradução de A. M. Botelho Hespanha. 2ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 679 e s.
176
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I,
p. 218, 1998.
177
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico político. São Paulo: Método, 2006, p.51-52.
77
essência do supremo bem”178, no direito “compromissado com valores como a Justiça (=
verdade = valor)”179, e também é feita a proposta de “levar a todo o planeta um marco
mínimo de respeito entre as mais diversas culturas, para que haja diálogo entre elas [...]
ao contrário do que ocorreria com o relativismo, pois não haveria como chegar a um
mínimo de entendimento”180.
Porém, o discurso valorativo totalizante que tem lugar no cenário atual das
idéias jurídicas é estabelecido em um quadro social marcado pela diversidade cultural e
pela pluralidade ética, no qual o direito constitui “o único ambiente ético comum”181.
Na sociedade contemporânea, as concepções (políticas, éticas, estéticas, etc.) que são
dispostas como únicas visões corretas ou possíveis se deparam, ordinariamente, com
visões que enxergam de maneiras divergentes. Com efeito, os enunciados orais ou
escritos são normalmente projetados sobre auditórios caracterizados pela falta de
comunhão de idéias e valores (nos quais tanto a razão quanto a falta dela apresentam
várias faces), e essa falta de homogeneidade torna o consenso um resultado difícil de ser
atingido. Dessa maneira, resta fragilizada a idéia de que discursos racionais são capazes
de provocar a adesão de todos os interlocutores sensatos, como formulou Perelman com
a sua concepção de auditório universal (composto pelo “conjunto daqueles que são
considerados como homens racionais e competentes na matéria”182). Na atual conjuntura
social, em que o dissenso tem cores mais vivas do que o consenso, fica mais nítido que
a razão não é um caminho que leva ao mesmo ponto, mas sim uma faculdade que se
178
LIMA JUNIOR, Oswaldo Pereira de. Ética, pós-positivismo e ensino do direito na pós-modernidade.
Mneme: Revista de Humanidades, Caicó, nº 11 (28), p. 64, ago/dez, 2010. Disponível em
<http://www.periodicos.ufrn.br/ojs/index.php/mneme>. Acesso em 14 de agosto de 2011.
179
NERY, Rosa Maria de Andrade. Noções Preliminares de Direito Civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 22.
180
REIS, Marcus Vinicius. Multiculturalismo e Direitos Humanos. Disponível em: <http://
www.senado.gov.br/sf/senado/spol/pdf/ReisMulticulturalismo.pdf>. Acesso em 13 agosto 2011.
181
ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 3ª ed. rev. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 273 e s.
182
“Ensemble de ceux qui sont considérés comme des hommes raisonnables et compétents en la matière”.
PERELMAN, Chaïm. Logique Juridique: Nouvelle Réthorique. Deuxième édition. Paris: Dalloz, 1979,
p. 122.
78
assemelha a uma janela que abre para os olhos uma inesgotável multiplicidade de
horizontes.
Entretanto, o ontologismo axiológico pode levar à desconsideração da
pluralidade ética, pois aquele que assume que tem a compreensão da verdade se fecha
para possibilidades postas além das fronteiras do que concebe como verdadeiro: a ótica
da verdade pode significar a invisibilidade do outro. O dogmatismo pode ser uma
espécie de escudo contra os discursos dos adversários, enfraquecendo as possibilidades
da retórica no campo dos argumentos que se contrapõem à perspectiva assumida como
verdadeira. Apesar do reconhecimento do domínio da verdade não ser algo que se opõe
à retórica (pois esta serve como instrumento útil à comunicação e afirmação do que é
visto como verdade), tal juízo minimiza a capacidade persuasiva dos argumentos que
discordam do que é concebido como verdadeiro, e, portanto, reduz a força da retórica no
plano dos discursos contrapostos à “verdade”.
Quando transposta do plano teórico para a legislação ou a jurisdição, a idéia
de que um valor acolhido pelo direito é uma verdade ética pode dificultar a abertura do
direito para valores distintos. No âmbito legislativo, quando a visão totalizante toma os
olhos de parlamentares (assim como ocorre em relação a qualquer sujeito), ela tem a
força de polarizar as concepções apresentadas nos debates, situando-as, por um lado, no
campo que é visto como o da verdade ética e, por outro lado, no campo das idéias que se
opõem à verdade. Dessa maneira, o ontologismo axiológico é capaz de reduzir a
possibilidade de aceitação de propostas que envolvam valores contraditórios à
“verdade” ética já firmada pelo direito, podendo constituir um obstáculo para debates
efetivos em torno da modificação de textos normativos (que servem de fundamento para
as determinações de sentidos das quais surgem normas jurídicas nas decisões judiciais,
ou que servem, ao menos, como fundamento aparente para legitimar decisões que
partem de outras bases, como os preconceitos dos julgadores).
Como exemplo de uma concepção ética ontológica que dificulta a abertura
para o diálogo com perspectivas divergentes em esferas legislativas, pode-se mencionar
a idéia de que a vida humana tem um valor intrínseco e inviolável, independente de
qualquer processo histórico ou contexto social. Conforme apontou Ronald Dworkin, tal
79
idéia representa, no mundo inteiro, a base mais poderosa da proibição a todas as formas
da eutanásia, estabelecendo fortes obstáculos para a aceitação dos argumentos a favor
dessa prática183 (como a dignidade do paciente e a liberdade de escolha para abreviar a
vida quando não há cura para uma enfermidade que provoca grande sofrimento). Assim,
tal alicerce ontológico da condenação à eutanásia dispõe uma impenetrabilidade ética
em relação aos discursos favoráveis à legalização, minimizando a capacidade de
persuasão dos argumentos nesse sentido, e, portanto, as possibilidades da retórica.
Já no âmbito judicial, a admissão de concepções éticas ainda não acolhidas
por normas jurídicas (que são resultados de interpretações) pode ser feita quando o
julgador segue diferentes rumos interpretativos, seja por entender textos e/ou fatos de
maneiras distintas das que são estabelecidas, ou por dispor de um novo texto que
descerra novos caminhos para a interpretação. Porém, a flexibilidade interpretativa que
abre espaço para valores que não encontram respaldo em normas jurídicas pode ficar
engessada em razão do ontologismo axiológico. Quando um valor acolhido por
orientações interpretativas é visto como verdade ética pelo julgador, essa visão pode
dificultar que ele siga caminhos da interpretação diversos. Assim, por exemplo, nos
ordenamentos jurídicos em que a união homoafetiva não tem proteção do direito, a
concepção ontológica de que só a união heterossexual é correta diante de Deus pode ser
uma barreira para o rumo interpretativo que disponha que o princípio da igualdade
impõe tal proteção (rumo o qual foi percorrido pelo Supremo Tribunal Federal, que
consagrou uma interpretação desse princípio que representa uma abertura no
ordenamento jurídico brasileiro à perspectiva ética de que os homossexuais merecem
um tratamento igualitário em relação aos heterossexuais184).
Contudo, diante da pretensão democrática de abertura política aos anseios
dos vários segmentos sociais que constituem o povo, e da impossibilidade do direito
183
DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de
Jefferson Luiz Camargo. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 95 e s. e p. 302.
184
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
4277 – DF. Relator: Ministro Ayres Brito. Decisão unânime. Brasília, 05. 05. 2011. DJE nº
89.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=400547&tipo
=TP&descricao=ADI%2F4277>. Acesso em 01 de agosto de 2011.
80
abrigar todos esses anseios (que são muitas vezes contraditórios entre si), é adequado
que os procedimentos legislativos e jurisdicionais não sejam campos fechados para a
consideração de perspectivas éticas não contempladas pelas interpretações das quais
surgem as normas jurídicas (os textos normativos são apenas significantes, pré-formas
da norma, a qual é o significado185). A abertura para dialogar com as divergências é uma
forma de afirmação do ideal democrático, e essa “permeabilidade” não traduz a
aceitação de toda postura ética, mas sim o diálogo construído sobre a “possibilidade do
outro", e não apenas sobre o “erro do outro". No debate que parte de uma concepção
vista como verdadeira, o indivíduo que assume previamente que tem a posse da verdade
tende a realizar um “monólogo” sob a aparência de diálogo. Tal abertura, portanto,
cumpre a finalidade de conferir visibilidade e voz à divergência em procedimentos dos
quais emana o direito, servindo os debates como uma filtragem pela qual a perspectiva
que ainda não é acolhida pelo direito será admitida ou não.
Não obstante, em razão da dificuldade ou mesmo impossibilidade de sua
concretização plena, pode-se opor que tem contornos de utopia a idéia de que a ordem
jurídica seja um campo aberto para concepções éticas por ela ainda não acolhidas. Mas
mesmo se for vista como utopia, essa idéia representa uma busca que pode provocar
efeitos sociais desejáveis. Como pensou Eduardo Galeano, se a utopia é algo que não se
alcança, por mais que se caminhe na sua direção (como um ponto no horizonte que se
afasta dois passos quando damos dois passos), serve ao menos para não deixemos de
caminhar186.
Porém, a permeabilidade do direito exige restrições, pois há posturas éticas
que têm um grande potencial destrutivo da possibilidade de abertura do direito a
divergências, como é o caso do neonazismo. A limitação na permeabilidade jurídica,
desse modo, é uma condição de preservação da sua própria possibilidade de existir, e é
necessário o fechamento do direito a concepções éticas que se opõem ao ideal
185
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes.
Tradução de Ana Paula Barbosa-Fohrmann, Dimitri Dimoulis, Gilberto Bercovici e outros. 2ª ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 11.
186
GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Tradução de Eric Nepomuceno. 4ª. Edição. Porto
Alegre: L&PM, 1994, p. 310.
81
democrático de abertura às divergências. Contudo, é uma questão problemática a
definição dos limites de aceitação de manifestações de intolerância, e a própria
identificação de quais são as posturas éticas opostas à democracia e ao ideal de abertura
pode dar lugar ao dissenso. Com efeito, falar da necessidade de fechamento do direito a
perspectivas negativas da democracia é abordar um assunto complexo e multifacetado.
Afinal, a grande vagueza e ambigüidade do termo “democracia”, o qual está no centro
desse debate, permite reunir sob tal rótulo uma pluralidade de concepções diversas.
Mesmo que em um determinado contexto haja um exemplo em torno do qual exista
concordância sobre a presença do caráter democrático, esse consenso pode ser apenas a
manifestação de que há pontos de acordo entre diferentes concepções de democracia.
Por outro lado, tal como foi observado por W. B. Gallie, a controvérsia sobre termos
como “democracia” e “obra de arte” pode ser explicada, em alguma medida, pelo fato
de que pessoas diferentes interpretam diferentemente exemplos paradigmáticos em
relação aos quais há um consenso de que os termos deveriam ser aplicados187. Dessa
maneira, o quadro “Guernica”, de Pablo Picasso, pode ser visto como um exemplo
paradigmático de obra de arte, mas diferentes interpretações em torno desse modelo de
expressão artística podem conduzir a diferentes concepções sobre o que é uma obra de
arte. Do mesmo modo, o plebiscito e a liberdade de imprensa podem ser vistos como
exemplos paradigmáticos do que é uma manifestação da democracia, mas diferentes
interpretações acerca desses modelos de experiência democrática podem levar a
divergências no entendimento do que é a democracia.
Não pretendemos, todavia, nos lançar sobre essa complexa tarefa de
identificar os discursos contrários à democracia e à permeabilidade jurídica, mas apenas
mencionar a necessidade de que a abertura para a divergência tenha limites.
Portanto, diante das considerações que foram feitas acima, entendemos que
a revivescência do ontologismo axiológico no campo das idéias jurídicas representa o
florescimento de uma postura ética que pode ser problemática em relação ao ideal
democrático de abertura ao dissenso.
187
GALLIE, W. B. Apud BIX, Brian. Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford: Oxford
University Press, 2003, p. 55.
82
3. Adequação da postura opinativa à busca da permeabilidade jurídica
e fundamentos filosóficos para um olhar carente de verdades
Apesar de discursos totalizantes sobre a ética poderem envolver posturas
inflexíveis, também é possível, por outro lado, que abram espaços para a divergência e
não sejam inadequados a auditórios caracterizados pela carência de comunhão de idéias
e valores. Nesse sentido, os discursos afirmativos da universalidade dos direitos
humanos de igualdade e liberdade de expressão representam uma ética que busca
promover a integração jurídica das diferenças, protegendo a heterogeneidade no
entendimento sobre o mundo e nos modos de vivenciá-lo. A moral universalista que
esses discursos pressupõem corresponde a uma moral do dissenso188 e eles podem ser
eficientes em auditórios sem homogeneidade. Não implicam a compreensão de que há
uma racionalidade uniforme capaz de persuadir qualquer interlocutor racional, e buscam
assegurar uma melhor convivência entre visões divergentes. Ademais, os termos
“igualdade” e “liberdade de expressão” são muito amplos, o que confere a tais discursos
uma elevada capacidade retórica de neutralizar divergências, pois a vagueza e a
ambigüidade têm uma força de provocar consensos aparentes, que escondem a falta de
acordo quanto aos significados. Assim, por exemplo, um orador pode obter uma fácil
adesão do auditório heterogêneo quando exprime que é a favor da liberdade de
expressão, mas se houver um aprofundamento dos debates que leve a uma discussão
sobre o que é a liberdade de expressão e quais são os seus limites, provavelmente o
dissenso terá vez.
Porém, como já foi observado neste texto, o ontologismo axiológico não
deixa de apresentar o seu lado que dificulta a integração jurídica das diferenças. A
noção de que valores têm um caráter absoluto, a qual ganhou novo fôlego no
pensamento jurídico, pode representar um fechamento à diversidade. E isso nos leva a
pensar que uma postura opinativa sobre os valores fundada numa atitude filosófica que
188
NEVES, Marcelo. La Fuerza Simbólica de los Derechos Humanos. Doxa: cuadernos de filosofía del
derecho, Alicante, nº 27, p. 153, 2004.
83
não afirma verdades éticas é a mais adequada ao ideal (à utopia) de tornar o direito um
campo aberto para o diálogo efetivo com as concepções éticas por ele ainda não
acolhidas. Com efeito, a postura opinativa dá espaço para o questionamento sobre os
próprios pontos de vista: demarcar uma visão como opinião é admitir a possibilidade de
que não corresponda à verdade, ou mesmo reconhecer que não abarca a verdade,
quando se julga impossível a apreensão desta. Sob a ótica opinativa, a retórica não é um
instrumento de afirmação de uma verdade que pode representar uma barreira para
argumentos opostos (limitando a retórica dos adversários), mas sim um poder que serve
de um modo mais equivalente o discurso diverso. Dessa maneira, a postura opinativa é
mais aberta do que o ontologismo axiológico para a consideração do que é alheio ou
mesmo contraditório, e permite transigência para lidar com as divergências, com a
pluralidade de perspectivas éticas.
Contudo, a carência de verdade ética não pressupõe a fraqueza de valores e
a admissão de toda perspectiva. Se a atitude opinativa pode traduzir niilismo e falta de
firmeza em torno dos valores, pode também, por outro lado, ser uma base forte para a
ética. A verdade não é o único alicerce para o bem e o mal, e a opinião pode ser um
campo de afirmação de valores e idéias, em que há emissão de juízos (não definitivos) e
a consideração de que algumas concepções são melhores do que outras. O razoável e
provavelmente certo são guias para o conhecimento e para a ética, para o pensamento e
para a ação189, e conduzem a juízos de valor e à aceitação ou recusa de determinados
pontos de vista. Desse modo, a disposição opinativa não implica o esvaziamento dos
valores, e permite uma abertura para a diversidade que se ajusta ao ideal da
permeabilidade do direito.
No que se refere aos fundamentos filosóficos da atitude ética opinativa,
pode-se dizer que a falta da consideração de que se tem o domínio de verdades éticas
absolutas reflete uma prudência sobre os juízos. Um dos fatores que justificam essa
cautela é o grande complexo de narrativas contraditórias entre si acerca dos valores.
Perante as várias faces do bem e do mal, há lugar para a dúvida sobre quais são os seus
rostos verdadeiros. A observação de que diversas culturas, povos e mesmo indivíduos
189
ARCESILAU. Apud BURY, R. G. Introduction. In: SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Pyrrhonism
(Pyrrhoniae Hypotyposes – PH I, II e III). Translated by R.G. Bury. Cambridge: Harvard University
Press, 1976, p. xxxiii.
84
inseridos em um ambiente comum manifestam perspectivas éticas conflitantes torna
cabível uma atitude filosófica que se conforma ao pirronismo. Sob tal posicionamento,
há a suspensão de juízos definitivos em torno da posse da verdade em virtude da
percepção da relatividade das relações e da igualdade de forças (isostenia) entre
concepções distintas no que diz respeito à probabilidade ou improbabilidade190.
Ademais, a ausência do reconhecimento de que se tem o domínio da
verdade ética também é justificada diante da desconfiança de que os valores não são
mais do que fatores históricos, do que elementos culturais ligados a contextos. A idéia
de que existe uma ética universalmente válida, a qual independe da história e extrapola
qualquer contexto, parece ter base, de um modo geral, na falta de sentido histórico do
pensamento. Afinal, o contexto histórico dispõe necessidades, práticas, relações de
poder e crenças, entre outros elementos, que influenciam as interpretações do mundo, as
maneiras de vivenciá-lo, e condicionam a ética. Os fatores históricos (como a economia,
a política, a tecnologia, a violência, etc.) constroem, transformam, conservam e
destroem os valores. As concepções éticas dependem, em sua formulação e justificação,
de circunstâncias históricas que constituem o ambiente em que são situadas, e o que é
dito como verdadeiro e universal parece ser apenas “uma soma de relações humanas,
que foram enfatizadas poética e retoricamente [e também pelas vias da violência],
transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e
obrigatórias”191.
Para exemplificar que elementos históricos determinam valores e que o bem
e o mal têm múltiplas aparências, podemos observar alguns aspectos da difusão no
ocidente da concepção cristã sobre o valor da vida, e a abertura para a conduta de tirar a
vida que tinha lugar em contextos históricos anteriores à ascensão do cristianismo.
No ocidente, a proteção à vida sob a idéia de que ela tem um valor
intrínseco e inviolável foi configurada, fundamentalmente, após a emergência do
190
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Pyrrhonism (Pyrrhoniae Hypotyposes – PH I, II e III).
Translated by R.G. Bury. Cambridge: Harvard University Press, 1976, p. 21-93.
191
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral. In: Obras
incompletas. Coleção Os Pensadores. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 48. (1)
85
cristianismo na Europa192. Antes do triunfo do cristianismo, a cultura ocidental era mais
permissiva a respeito do ato de tirar a vida. Apontando para tal permissividade,
discorreu Durkheim, no seu estudo sobre o suicídio, acerca de um tipo dessa prática o
qual chamou de suicídio altruísta, e que identificou como algo comum em povos
primitivos193. A esse tipo de suicídio foi dado tal nome porque se refere a manifestações
de renúncia individual diante de valores compartilhados por um grupo social,
representando a melhor conduta. Nesse gênero, foram inseridos casos em que idosos
tinham o dever de se matar, sendo punidos com a desonra, e, muitas vezes, com castigos
religiosos, em caso de desrespeito a essa regra. Umas das explicações para isso
Durkheim encontrou na idéia de que é no chefe de família que reside o espírito que a
protege, e que esse espírito passa pelos mesmos estados de saúde e de doença do
indivíduo em que estiver presente, também envelhecendo ao mesmo tempo. O
envelhecimento do chefe de família, assim, representaria o enfraquecimento do espírito
protetor, algo contrário ao interesse do grupo 194 . Desse modo, uma crença religiosa
dispôs um significado positivo no abreviamento da vida, e estabeleceu um valor
afirmativo da prática do suicídio.
Também demonstra permissividade em relação ao ato de tirar a vida o fato
de que em cidades-estados da Grécia antiga o suicídio era uma conduta tão aprovada
que magistrados portavam porções de veneno para qualquer um que desejasse morrer195.
Já em Roma, devido à influência dos estóicos, a idéia de morrer bem era considerada
um valor máximo, parte de uma vida nobre, sendo permitido o suicídio em caso de
dolorosas doenças terminais196. Contudo, com a ascensão do cristianismo, a vida passou
a tomar um novo significado em virtude dos rumos que tomaram duas crenças
192
SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 3ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 98 e 99; Idem. Unsanctifying human life. Massachusetts: Blackwell Publishers, 2002, p.
228-30.
193
DURKHEIM, Émile. Suicídio. Tradução de Luz Cary, Margarida Garrido e J. Vasconcelos Esteves.
Lisboa: Editorial Presença, 1977, p. 243-74.
194
Ibidem, p. 247.
195
ADMIRAAL, Pieter. Euthanasia and assisted suicide. In: Birth to death: science and bioethics. New
York: Cambrigde University Press, 2003, p. 208 e s.
196
Ibidem, p. 208 e s.
86
fundamentais: a crença na imortalidade da alma e a crença na indisponibilidade da vida.
Em razão da primeira, tirar a vida humana assumiu o significado de conduzir a pessoa
ao seu destino eterno, e, em virtude da segunda, a vida passou a ser tomada como algo
pertencente a Deus, de que o ser humano não poderia dispor, sendo um direito divino a
escolha de quando devemos viver e morrer197. Tais crenças e as posturas éticas nelas
fundamentadas foram profundamente sedimentadas na cultura européia durante os
séculos em que foi dominada pelo cristianismo.
A partir do século XV, com o colonialismo, o universo europeu passou por
um processo de expansão e de imposição cultural e econômica em razão do qual a ética
cristã (representando a ética dos dominadores) foi elevada a uma situação de
predominância no ocidente. Com efeito, o triunfo que houve no mundo ocidental da
concepção cristã de que a vida tem um valor intrínseco, sagrado e inviolável é um
elemento da projeção do mundo europeu sobre outros contextos históricos. A grande
difusão do cristianismo e da sua ética no ocidente não é decorrente das verdades que
podem envolver, mas sim de processos históricos de dominação.
Em relação às faces que apresentam o bem e o mal, pode-se dizer que a
concepção firmada pelo cristianismo representa somente uma entre diversas outras
visões a respeito do valor da vida que tiveram ou que ainda têm espaço nos horizontes
da história. E há também a pretensão de abarcar verdades éticas entre os pontos de vista
distintos da perspectiva cristã, como no caso da afirmação religiosa do suicídio altruísta.
Dessa maneira, há espaço para que se trilhe o caminho pirrônico em direção à suspensão
de juízos definitivos. Pode-se fazer uma oposição, nesse sentido, entre a idéia cristã de
que o suicídio é sempre uma violação ao valor da vida e a idéia que dispõe tal conduta
como algo desejável em razão da necessidade de preservação da força do espírito
protetor do grupo. Cada uma das duas é considerada verdadeira pelos seus defensores,
tendo cada qual uma explicação de origem divina para o valor defendido, baseado na fé.
197
SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 3ª edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 98 e 99; Idem. Unsanctifying human life. Massachusetts: Blackwell Publishers, 2002, p.
228-30; TRAN, Peter Hung Manh. How Christians overcame the culture of death. Newsweekly,
Melbourne,
September
19,
2006.
Disponível
em:
<http://www.newsweekly.com.au/articles/2006aug19_b1.html>. Acesso em 9 de agosto de 2011.
87
É cabível entender, entretanto, que são duas perspectivas dotadas de uma mesma força,
de uma mesma probabilidade ou improbabilidade, e que permitem a suspensão do juízo
sobre se o suicídio é uma conduta intrinsecamente boa ou má.
Todavia, a dependência de circunstâncias históricas e a ausência de uma
visão única sobre o bem e o mal parecem ser condições gerais da ética, as quais são
dispostas sobre qualquer valor. E tais condições permitem a falta do reconhecimento de
que se tem a posse de verdades éticas, constituindo fundamentos filosóficos para a
postura opinativa, que, em razão de dispor o poder da retórica de um modo mais
equivalente em relação ao discurso diverso, é mais adequada do que ontologismo
axiológico ao ideal da permeabilidade do direito. Portanto, é cabível a desconfiança de
que a ética é um palco no qual há apenas o espetáculo do trânsito entre opiniões, e no
qual a retórica desempenha (em conjunto com outros elementos, tal como a violência)
um papel que tem a força de determinar quais opiniões usarão, em triunfo, a máscara de
verdade.
4. A visibilidade do espaço da retórica na justificação das decisões
judiciais em face da ênfase na indeterminação do direito
De acordo com o que já indicamos neste capítulo, pode-se dizer que o
pensamento jurídico atual é marcado por um horizonte retórico aberto para a linguagem
valorativa (característica que deu lugar a uma revivescência de discursos afirmativos de
“verdades” éticas) e pela perda de força da oposição entre criar e aplicar o direito.
Entretanto, depois de termos refletido sobre aspectos da problemática referente ao
ontologismo axiológico e à permeabilidade jurídica, passamos, agora, a projetar o foco
de análise na questão do reconhecimento da indeterminação do direito e na visibilidade
do espaço da retórica na justificação das decisões judiciais.
Com efeito, assim como a atitude valorativa, o entendimento de que o
direito é constituído por processos interpretativos pode funcionar como um ponto de
articulação entre abordagens heterogêneas que integram o cenário da teoria jurídica
88
recente198. Em tal cenário – no qual o protagonismo deixou de ser desempenhado pelo
legislador e o julgador (intérprete) passou a ser visto como o personagem
proeminente–, a insistência nos problemas da interpretação e a ênfase na indeterminação
do direito provocaram uma “guinada interpretativa”, e, desse modo, o centro de análise
do direito passou a ser a decisão e a aplicação.199
Entre os fatores que contribuíram para que as questões sobre a interpretação
ocupassem um lugar central na teoria do direito e na filosofia do direito, podemos
destacar a guinada lingüística (linguistic turn) da filosofia no século XX – que tornou a
linguagem o eixo dos problemas filosóficos, os quais passaram a ser realçados como
problemas em torno da linguagem ou, ao menos, como problemas dependentes de
questões relativas à linguagem. Esse “giro lingüístico” da filosofia repercutiu no âmbito
das idéias jurídicas recentes, no qual as reflexões acerca da linguagem e da interpretação
manifestam significativa influência de filósofos como Gadamer e Wittgenstein. Em
relação a esse último autor, pode-se dizer que o seu trabalho tardio – o qual tem o título
de “Philosophische Untersuchungen” (Investigações Filosóficas) e concebeu a
linguagem como uma condição de possibilidade do conhecimento humano e uma
atividade que não espelha essências200 – inspirou abordagens sobre o direito baseadas na
prática da linguagem, e é uma das obras que apresentam maior prestígio nos debates
sobre a linguagem que têm lugar no campo do pensamento jurídico recente. Entre os
198
JUST, Gustavo. La jurisprudence herméneutique et son horizon: l’interprétation entre ses conditions et
ses possibilités. Droits, Paris, nº 40, p. 219, 2004.
199
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 21 I,
p. 209-219, 1998; JUST, Gustavo. Guinada Interpretativa. In: Dicionário de Filosofia do Direito.
Coordenação de Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, Unisinos, 2006, p. 395.
200
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea.
2ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 126 e s.; WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical
Investigations. The German Text, with a Revised English Translation. Anniversary Commemorative
Edition. Translated by G.E.M. Ascombe. Third edition. Singapure: Blackwell Publishing, 2001, p. 27 e s.
89
teóricos do direito influenciados pela filosofia da linguagem de Wittgenstein, estão
Hart201, Marmor202 e Bix203 e Waldron204.
Já em relação a Gadamer (o qual compreendeu que “todo entendimento é
interpretação, e toda interpretação acontece por meio de uma linguagem” 205 ), o seu
pensamento também tem uma repercussão expressiva nas idéias jurídicas, como é
notável na chamada “jurisprudência hermenêutica”. Essa corrente teórica, que foi
constituída principalmente no decorrer das décadas de 1960 e 1970, tem entre seus
protagonistas autores como Josef Esser, Friedrich Müller e Konrad Hesse, e recebeu da
hermenêutica filosófica, sobretudo de Gadamer, uma influência direta no que diz
respeito às teorizações acerca da interpretação e do raciocínio jurídico206.
Ademais, ao lado da guinada lingüística da filosofia, também podemos
destacar a constitucionalização do direito – ocorrida na Europa continental e na América
latina na segunda metade do século XX – entre os fatores que contribuíram para o
surgimento da crise de indeterminação dos textos normativos. Com tal processo, a
constituição passou a ter uma força normativa com contornos firmes, deixando de ser
um mero programa para o Estado, e os princípios gerais do direito (então relegados ao
papel secundário de algo que não se sobrepõe à lei, mas que é depreendido da lei para
preencher as obscuridades e omissões do direito) foram convertidos em princípios
201
Sobre a influência de Wittgenstein na obra de Hart, ver BIX, Brian. Questões na interpretação jurídica.
In: MARMOR, Andrei (Org.). Direito e Interpretação: Ensaios de Filosofia do Direito. Tradução de
Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 206-212; e MARMOR, Andrei. Interpretation
and Legal Theory. 2nd ed. Oxford: Hart Publishing, 2005, p. 100-101.
202
MARMOR, Andrei. Interpretation and Legal Theory. 2nd ed. Oxford: Hart Publishing, 2005, p.95118.
203
BIX, Brian. Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 3662.
204
WALDRON, Jeremy. Vagueness in Law and Language: Some Philosophical Issues. California Law
Review, Berkeley, nº 03, Vol. 82, p. 509-540, may, 1994, p. 516-521.
205
“All understanding is interpretation, and all interpretation takes place in the medium of a language
[…]”. GADAMER, Hans-Georg. Truth and Method. 2nd ed. Revised. London: Continuum, 2006, p.390.
390. 390. 390.
206
JUST, Gustavo. La jurisprudence herméneutique et son horizon: l’interprétation entre ses conditions et
ses possibilités. Droits, Paris, nº 40, p. 219-220, 2004.
90
constitucionais, assumindo a superioridade e hegemonia na pirâmide normativa207. No
entanto, o Poder Judiciário passou a desempenhar o protagonismo no controle de
constitucionalidade, e esse papel foi disposto em um plano constitucional em que textos
com amplo grau de abertura (os princípios) passaram a ter uma importância central, o
que acentuou a visibilidade da incerteza dos textos normativos e da atividade
construtiva de significados que exerce o julgador.
Entretanto, se tornou mais nítido que o texto não representa um rumo que
leva a um mesmo ponto, mas algo que mais se assemelha a uma encruzilhada, a um
lugar onde vários caminhos se cruzam ou podem se cruzar. Desse modo, ficou mais
visível na argumentação judicial o campo da retórica: a contingência, “o que parece que
pode ser resolvido de dois modos”208. De algo que demonstra o direito previamente
determinado (apreendido pelo aplicador em virtude da sua evidência ou pela superação
da falta de clareza por meio de cânones da interpretação), a argumentação judicial passa
a ser realçada como uma atividade que se desdobra sobre o que é incerto, tendo a função
de apresentar um entendimento sobre o que pode ser visto de diversas maneiras, sem
que a variedade de perspectivas represente falhas dos intérpretes. Nesse sentido, por
exemplo, Friedrich Müller fez uma separação entre texto e norma sob a compreensão de
que o direito só surge como resultado da interpretação, sendo os textos legais apenas
“pré-formas legislatórias da norma jurídica, que por sua vez está por ser produzida no
decurso temporal da decisão”209. Assim, ante o reconhecimento da indeterminação do
direito, é ampliada a visibilidade do espaço da retórica na justificação das decisões
judiciais, pois a argumentação deixa ser demarcada como um momento no qual se
aponta o sentido inerente da norma (visto como algo que, ordinariamente, transparece
207
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio
do direito constitucional no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Constituição e Crise
Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 99 e s.; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 289 e s.
208
“Lo que parece que puede resolverse de dos modos”. ARISTÓTELES. Retórica. Introducción,
traducción y notas por Quintín Racionero. Madrid: Editorial Gredos, 1994 . p. 182 e 183 (I, 2, 1357a 5-8).
209
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica estruturantes. 2ª
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 11.
91
por si só em razão da clareza 210 , dispensando esforços argumentativos para sua
demonstração), e ganha o papel de apresentar uma perspectiva entre outras possíveis
sobre o texto, de demonstrar o direito que surgiu no caso.
Dessa maneira, perante a idéia de que o julgador produz direito a partir da
incerteza dos textos normativos, o espaço da retórica na argumentação judicial não
permanece obscurecido na atividade de demonstrar caminhos cognitivos pelos quais se
chegou ao significado inerente da norma, entendida como uma disposição ética prédeterminada. À luz de tal idéia, é ampliado o espaço argumentativo (e,
conseqüentemente, o domínio da retórica), o qual passa a englobar a justificação da
decisão que reflete uma escolha do juiz diante da contingência do significado do texto, e
que é uma construção ética própria, não um veículo de expressão de opções éticas préconstituídas e alheias à esfera jurisdicional. Sob essa ótica, a argumentação justificatória
não é delineada como uma mera forma lógica de apresentação de disposições éticas
alheias, e pode abarcar juízos de valor do julgador que levaram a um determinado
caminho interpretativo. Pode-se dizer, ademais, que a elasticidade em torno do
significado dos textos normativos dá lugar para que o juiz decida a partir dos seus
valores, crenças e preconceitos, e apenas posteriormente escolha entre os significados
possíveis aquele que se conforma à sua decisão.
Portanto, a ênfase na indeterminação do direito constituiu um campo fértil
para o florescimento dos estudos retóricos e das teorias da argumentação que houve no
pensamento jurídico na segunda metade do século passado. Nesse sentido, observa-se
que o eixo das reflexões jurídicas acerca da argumentação é composto pelos hard cases,
em que a pluralidade de caminhos interpretativos é disposta como um dos aspectos
centrais do problema da justificação da decisão judicial211.
210
DASCAL, Marcelo; WRÓBLEWSKI, Jerzy. Transparency and doubt: understanding and interpretation
in pragmatics and in Law. Law and Philosophy, New York, nº 7, 203-224, 1988, p. 203 e s.
211
AARNIO, Aulis. Lo Racional como Razonable: Un tratado sobre la justificación jurídica. Traducción
de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 23 e s.; ATIENZA,
Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução de Maria Cristina
Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003, p. 18 e s.
92
Todavia, pode-se reconhecer que a retórica e a argumentação se desdobram
sobre um plano de incerteza que também abarca os ditos clear cases ou easy cases, nos
quais a solução a ser dada na decisão parece ser clara, óbvia. A clareza que se manifesta
em tais casos não é do texto, mas é uma construção contextual na qual a retórica
desempenhou um papel constitutivo, é o resultado de um contexto interpretativo em que
um conjunto de intérpretes estabeleceu acordo quanto ao sentido do texto em relação a
determinados tipos de caso. E a clareza não é do texto em si porque a linguagem tem um
caráter dinâmico, e as ligações entre significantes e significados são múltiplas e não
definitivas, postas em permanente modificação pela prática, pelo uso. A respeito do
caráter dinâmico das palavras, discorreu Brian Bix:
Se algumas pessoas começassem a usar “vaca” para significar cavalo, os
escritores de dicionários e outros guardiões do uso adequado iriam rotular
aquele uso como “incorreto”. Porém, se pessoas suficientes admitissem
aquele uso, com o tempo ele se tornaria aceitável, e talvez padrão (passando
de idioleto a dialeto ao uso aceito). Similarmente, em um certo nível da
análise jurídica, não há diferença prática [...].212
A clareza, assim, surge como algo circunstancial, referencial, relativo, e não
está no objeto da observação (o texto), mas nos olhos do observador (intérprete).
Decorrente do acordo quanto ao significado em uma comunidade de intérpretes,
expressa uma orientação interpretativa, envolvendo uma atividade produtiva de
significado. E, em virtude da ausência de fronteiras definitivas nas palavras, a “clareza”
deixa sempre abertura para que discordâncias possam surgir. Desse modo, se o
intérprete segue o caminho que lhe apresenta a clareza, não reproduz um significado
intrínseco ao texto (algo que não existe), mas estabelece uma ligação entre significante e
significado que é tão comum em um contexto interpretativo que gera uma aparente
evidência.213
212
If some persons started using “cow” to mean horse, the writers of dictionaries and other guardians of
proper usage would label that usage as “incorrect”. However, if enough people took up that usage, with
time it would become acceptable, and perhaps standard (moving from idiolect to dialect to accepted
usage). Similarly, at a certain level of legal analysis, there is no practical difference […]. BIX, Brian.
Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 65.
213
DASCAL, Marcelo; WRÓBLEWSKI, Jerzy. Transparency and doubt: understanding and interpretation
in pragmatics and in Law. Law and Philosophy, New York, nº 7, 203-224, 1988.
93
No entanto, diferentemente da idéia de clareza do texto, que obscurece o
papel da retórica (pois a argumentação tem pouco ou nenhum valor diante de algo que
só pode ser de uma maneira e que só pode ser visto sob uma mesma forma), a clareza
contextual é um espaço retórico. Afinal, considerando que os textos permanecem
incertos, e que a clareza reflete uma orientação interpretativa vencedora entre as
possíveis, a retórica serve para a sua construção, para a sua manutenção e para a sua
superação. Neste sentido, tem uma força considerável a sentença de Fernando Pessoa:
“O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa
expressão vem-lhe de fora”214. Desse modo, podemos observar os sentidos do mundo e
dos textos como expressões que não são intrínsecas, e que na elaboração da “alma das
coisas” a retórica é um elemento fundamental.
214
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 88.
CONCLUSÃO: O discurso teórico jurídico como um horizonte inafastável
da retórica, a necessidade de mais pertinência na caracterização do
juspositivismo por partidários do “pós-positivismo” e a precisão de
posturas éticas construídas sobre a plataforma da tolerância
Considerada como faculdade de identificar os meios para usar eficientemente os
signos lingüísticos, a retórica é a arte que permite compor o discurso adequado em relação a
um determinado contexto, é a arte de esculpir na linguagem os elementos que a podem tornar
eficiente – fazendo dela matéria-prima para a fabricação de “realidades” artificiais. Nesse
sentido, a retórica representa uma força fundamental na construção do discurso teórico
jurídico, e demarca limites para o uso apropriado da linguagem mesmo quando a retórica na
dimensão teórica é desprezada ou ignorada pelo indivíduo que fala ou escreve. Com efeito, o
germinar do positivismo jurídico, na passagem dos séculos XVIII e XIX, coincidiu com o
período de decadência dos saberes sobre a retórica, os quais, seguindo um processo de
desvalorização que se desdobrou pela modernidade, foram então obscurecidos. Contudo,
apesar de tal horizonte histórico ter vivenciado um ocaso das teorizações sobre a retórica, ela
representou, então, uma força que delineou o discurso juspositivista, conduzindo teóricos do
direito em direção à busca de adequar o saber jurídico aos limites de um discurso científico
(busca que fez florescer, no cenário das idéias jurídicas, a atitude pretensamente avalorativa e
o formalismo215). A própria distinção entre criar e aplicar o direito, a qual foi marcante no
juspositivismo no período em que foi abandonada a dimensão teórica da retórica, figura como
um relato, como uma representação feita por meio da linguagem. Dessa maneira, apesar de
minimizar (aparentemente) o espaço da retórica na justificação das decisões judiciais, tal
distinção se serve da retórica, já que “a linguagem ela mesma é o resultado de artes puramente
retóricas”216. Entretanto, sob a perspectiva de que a linguagem é um universo retórico, é
cabível dizer que o discurso teórico jurídico figura como um horizonte inafastável da retórica.
Com as transformações que ocorreram no seu âmbito durante a segunda metade
do século XX, o pensamento jurídico descerrou novos rumos teóricos, mas a retórica
215
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 131 e s.
216
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Da Retórica. Tradução de Tito Cardoso e Cunha. 1ª edição. Lisboa: Veja,
1995, p. 44-46.
95
permaneceu (como incessante arte de modelar linguagens) a determinar roteiros para o
discurso teórico jurídico. No entanto, a consciência da construção interpretativa do direito
fragilizou o ideal de previsibilidade da atuação estatal e tornou mais visível o campo da
retórica na atividade de justificar decisões judiciais – fazendo da argumentação jurídica, dessa
maneira, uma esfera favorável para a revivescência das teorizações sobre a retórica no direito.
Por outro lado, perante a teoria jurídica foi enfraquecida a retórica do discurso científico,
sendo estabelecido um horizonte retórico aberto para discursos que assumem uma abordagem
valorativa.
Entretanto, é cabível observar que, diferentemente da atitude valorativa que
refloresceu no cenário da teoria jurídica recente, a postura pretensamente científica afastou
discursos afirmativos de “verdades” éticas e conteúdos jurídicos necessários, concentrando as
pretensões de verdade na descrição do direito. Efetivamente, o juspositivismo despontou
como uma orientação que distanciou o discurso teórico jurídico do ontologismo axiológico,
que sobressai na tradição do pensamento jurídico ocidental – a qual foi dominada, até a
ascensão do positivismo, por um conjunto heterogêneo de teorias jusnaturalistas. No entanto,
entendemos que a postura teórica formalista e pretensamente neutra erguida pela retórica do
discurso científico não apresenta obstáculos ao ideal da permeabilidade jurídica. O argumento
de que o formalismo jurídico se converteu em uma atitude de apoio a regimes totalitários –
contrapostos ao ideal democrático de permeabilidade jurídica – é, sobretudo, um artifício
retórico, conforme observamos, e não serve como uma indicação pertinente de que a retórica
do discurso científico acabou dando lugar a posturas afirmativas de concepções éticas
contrárias à abertura do direito a divergências. Compreendemos, a esse respeito, que aqueles
que utilizam tal argumento – entre os quais estão autores que se reconhecem como “póspositivistas”, a exemplo de Luís Roberto Barroso217 – devem rever os seus fundamentos. Do
contrário, permanecerão a manifestar oposição a “caricaturas” do positivismo jurídico, e não à
trajetória efetiva dessa orientação teórica.
Ademais, não concordamos com a perspectiva de que a análise sobre o direito “se
tornou estéril por sua associação com um preconceito pseudocientífico”218. Sob os limites
demarcados pela retórica do discurso científico, o juspositivismo ofereceu importantes
217
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e
a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009 p. 240-242.
218
“Has been rendered sterile by its association with a pseudoscientific prejudice”. UNGER, Roberto
Mangabeira. What should legal analysis become? London: Verso, 1996, p. 122.
96
contribuições para a compreensão do direito, desenvolvendo, por exemplo, a teoria da norma
jurídica e a teoria do ordenamento jurídico219. Todavia, a postura que assume uma abordagem
valorativa representa, no palco das idéias jurídicas, um relevante papel: a crítica de valores,
que pode dispor alternativas para que o direito seja reconstruído para abrigar perspectivas
éticas que nele ainda não são acolhidas. Com efeito, a restrição da teoria jurídica nos limites
de um discurso descritivo e pretensamente neutro levou a uma carência de respostas acerca da
problemática da justiça no direito, e essa significativa carência foi um dos fatores
fundamentais para o desencadeamento, em meados do século passado, da crise do
juspositivismo. No entanto, entendemos que é necessário, em face do ideal de abertura do
direito ao dissenso, que as respostas em torno de tal problemática sejam construídas sobre a
plataforma da tolerância – e não da verdade absoluta – e que os valores que encontram
respaldo em normas jurídicas não sejam tomados como armaduras impenetráveis. Este é um
ponto de partida para a utopia de abertura ao dissenso, é um roteiro para que caminhemos em
direção a ela. E mesmo que jamais a alcancemos, mesmo que ela seja apenas miragem, ela
figura, ao menos, como uma ilusão desejável, que deve ser um modelo para que fabriquemos
“realidades”.
Por outro lado, considerando o tratamento que recebe a ciência no pensamento
jurídico recente, pode-se dizer que há uma persistência do entendimento de que o
conhecimento científico é composto por verdades objetivas. Neste sentido, por exemplo,
Tercio Sampaio apontou que “a ciência é constituída de enunciados verdadeiros, os
enunciados duvidosos ou de comprovação e verificação insuficientes são dela, em princípio,
excluídos”220. Também Cláudio Souto compreendeu que “na procura da verdade científica
[...] o estudioso dos fatos sócio-jurídicos tenta observar esses fatos tal como eles se
apresentam”221. Porém, no campo da filosofia da ciência floresceram perspectivas que
redefiniram a compreensão sobre o conhecimento científico, situando a questão da
cientificidade do saber em horizontes distintos dos que são apresentados pela concepção de
que a ciência é caracterizada pela capacidade de espelhar a realidade com exatidão e
219
A esse respeito, ver BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e
notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 147-210; Idem. Teoria
Geral do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2008; KELSEN, Hans.
Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
220
221
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2006, p. 10.
SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange. Sociologia do Direito: uma visão substantiva. 3ª edição revista e
aumentada. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 55-56.
97
objetividade. Com efeito, filósofos como Thomas Kuhn222 e Feyerabend223 descerraram
caminhos para a compreensão de que os requisitos para a validação científica de um
enunciado (como a utilização de determinados métodos e instrumentos de análise) refletem
exigências que são expressões contextuais (paradigmáticas) e representam “opiniões” aceitas
(retoricamente estabelecidas) em uma comunidade científica sobre o caminho adequado para
a construção da ciência. Dessa maneira, pode-se dizer que a persistência na idéia de que a
ciência é constituída por enunciados universalmente válidos manifesta uma concepção que é
disposta às margens da crise das metanarrativas (conforme a expressão de Lyotard224) que
marca a epistemologia recente225.
Por sua vez, em relação aos autores que se intitulam “pós-positivistas” (os quais
parecem constituir, no Brasil, “a corrente que predomina nos debates sobre a teoria do
Direito”226), entendemos que apresentam, ordinariamente, caracterizações insatisfatórias do
positivismo jurídico, desconsiderando – conforme observamos – todo um conjunto de
desenvolvimentos teóricos recentes que ostentam o rótulo de “juspositivismo”. Efetivamente,
o uso do termo “pós-positivismo” é marcado pelo reducionismo, e uma análise sobre
abordagens que se apresentam como “juspositivistas” no cenário da teoria jurídica recente
(tais como as de Andrei Marmor227, Joseph Raz228 e Jules Coleman229) pode expor que
características referidas como pertencentes ao paradigma pós-positivista (tais como a ênfase
na indeterminação do direito e a atribuição de força normativa aos princípios) são comuns em
teorias positivistas. Entretanto, para que os oponentes do positivismo jurídico – sob o rótulo
222
KUHN, Thomas. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1970,
p. 111-136.
223
FEYERABEND, Paul. Realism, Rationalism and Scientific Method: Philosophical Papers. New York:
Cambridge University Press, 1981, p. 04 e s.
224
LYOTARD, Jean François. The Postmodern Condition: A Report On Knowledge. Translated by Geoff
Bennington and Brian Massumi. Manchester: Manchester University Press, 1984, p. xxiv.
225
A esse respeito, ver PADRÓN, José. Tendencias Epistemológicas de la Investigación Científica en el Siglo
XXI. Disponível em: <http://www.moebio.uchile.cl/28/padron/html>. Acesso em 15 de agosto de 2010.
226
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico político. São Paulo: Método, 2006, p. 63.
227
MARMOR, Andrei. Positive Law and Objective Values. Oxford: Oxford University Press, 2001.
228
RAZ, Joseph. The Authority of Law: Essays on Law and Morality. Oxford: Oxford University Press, 1979.
229
COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: In defense of a pragmatist approach to legal theory. Oxford:
Oxford University Press, 2003.
98
de “pós-positivistas” ou outro qualquer – possam dirigir críticas mais apropriadas ao conjunto
das teorias juspositivistas, compreendemos que é necessário considerar que o positivismo não
foi superado, mas sim transformado por desenvolvimentos que o tornaram um campo teórico
que não é o mesmo da primeira metade do século XX. De qualquer modo, pensamos que a
alusão a um cenário teórico composto por correntes “positivistas” e “não positivistas” é mais
pertinente do que a referência ao “pós-positivismo”.
Resta mencionar, por fim, que as teorizações sobre a retórica ainda parecem ter
uma pequena projeção no campo das idéias jurídicas e no plano geral das produções
acadêmicas. Neste sentido, escreveu Wayne C. Booth que os
retóricos ainda representam uma minúscula minoria na cena acadêmica. A maioria
dos livros sérios na maioria dos campos ainda não tem qualquer referência à
retórica, e aqueles que referem o fazem comumente com desdém. [...] Um colega
recentemente me informou que seus últimos três livros, todos eles originalmente
empregando “retórica” em seus títulos, foram renomeados pelos editores, já que
termos retóricos iriam rebaixar o texto e reduzir a vendas! 230
Porém, de acordo com o que já enfatizamos, a linguagem é um palco inseparável
da arte da retórica, a qual permanece a modelar discursos e a construir “verdades”
independentemente do espaço que os saberes a seu respeito ocupam no universo acadêmico.
230
Rhetoricians still represent a tiny minority on the academic scene. Most serious books in most fields still have
no reference to rhetoric at all, and those that refer to it usually do so dismissively. […] A colleague recently
informed me that his last three books, all of them originally employing “rhetoric” in their titles, had been
retitled by the publishers, since rhetorical terms would downgrade the text and reduce sales! BOOTH, Wayne
C. The Rethoric of Rethoric: the quest for effective communication. London: Blackwell, 2004, p. 09.
REFERÊNCIAS:
AARNIO, Aulis. Lo Racional como Razonable: Un tratado sobre la justificación
jurídica. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1991.
ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica.
3ª edição revista e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007.
_______. Retórica Constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros
fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009.
ADMIRAAL, Pieter. Euthanasia and assisted suicide. In: Birth to death: science and
bioethics. New York: Cambrigde University Press, 2003.
AGOSTINHO, Santo. Da Doutrina Cristã: manual de exegese e formação cristã.
Tradução do original latino cotejada com versões em francês e espanhol de Nair de
Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002.
ALEXY, Robert. Derecho y Moral: Reflexiones sobre el punto de partida de la
interpretación constitucional. In: MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Coord.).
Interpretación Constitucional. Tomo I. Traducción de Eduardo R. Sodero. México
D.F.: Editorial Porrúa, 2005.
_______. Teoria de los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón
Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
_______. The Argument from Injustice: A Reply to Legal Positivism. Translated by
Stanley L. Paulson and Bonnie Litschewski Paulson. Oxford: Oxford University Press,
2004.
ARISTÓTELES. Retórica. Introducción, traducción y notas por Quintín Racionero.
Madrid: Editorial Gredos, 1994.
ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica.
Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003.
BALLWEG, Ottmar. Retórica analítica e direito. Tradução de João Maurício Adeodato.
Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, nº 163, Vol. XXXIX, p.175-184, jul/set,
1991.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.
_______. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Constituição
e Crise Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
BARTHES, Roland. La Aventura Semiológica. Traducción de Ramon Alcalde. 2ª
edición. Barcelona: Ediciones Paidós, 1993.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução, introdução e notas de Ivo Storniolo e
Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 2000.
BIX, Brian. Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford: Oxford University
Press, 2003.
100
BLUMENBERG, Hans. Las realidades en que vivimos. Traducción de Pedro
Madrigal. Madrid: Ediciones Paidós, 1999.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução e
notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
_______. Teoria Geral do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. 2ª edição. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª edição. São Paulo:
Malheiros, 2004.
BONNECASE, J. La Escuela de la Exegesis en Derecho Civil. México D. F.:
Editorial Cultura, 1944.
BOOTH, Wayne C. The Rethoric of Rethoric: the quest for effective communication.
London: Blackwell, 2004.
BOWRA, C.M. Grécia Clássica. Biblioteca de História Universal Life. Tradução de
Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1972.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Disponível em: < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A
7ao.htm>. Acesso em 14 de dezembro de 2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
4277 – DF. Relator: Ministro Ayres Brito. Decisão unânime. Brasília, 05. 05.2011. DJE
nº 89. Disponível em: <http:// www.stf.jus.br/portal/geral/ verPdfPaginado.asp?id
=400547&tipo=TP&descricao=ADI%2F4277>. Acesso em 01 de agosto de 2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Habeas Corpus nº 82424 – RS. Relator:
Ministro Moreira Alves. Brasília, 17.09.2003. DJU em 19.03.2004. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudenciaDetalhe.asp?s1=00029
6878&base=baseAcordaos.> Acesso em 01 de agosto de 2011.
CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho,
Alicante, nº 21 I, p. 209-219, 1998.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003.
CAMPBELL, Tom. Prescritive Legal Positivism: Law, Rights and Democracy.
London: UCL Press, 2004.
CASSIRER, Ernst. Antropología Filosófica: introducción a una filosofía de la cultura.
Traducción de Eugenio Ímaz. 5ª edición. México D.F.: Fondo de Cultura Económica,
1968.
CICERO. De Oratore: Books I, II. The Loeb Classical Library. Translated by E.W.
Sutton. Cambridge: Harvard University Press, 1967.
COLEMAN, Jules. The Practice of Principle: In defense of a pragmatist approach to
legal theory. Oxford: Oxford University Press, 2003.
DANTAS, David Diniz. Interpretação Constitucional no Pós-Positivismo: Teoria e
casos práticos. São Paulo: Madras, 2005.
DASCAL, Marcelo; WRÓBLEWSKI, Jerzy. Transparency and doubt: understanding
and interpretation in pragmatics and in Law. Law and Philosophy, New York, nº 7,
203-224, 1988.
101
DESCARTES, René. Discours de la méthode. Paris: Bnf-Gallica, 2006.
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa
do pragmatismo jurídico político. São Paulo: Método, 2006.
DURKHEIM, Émile. Suicídio. Tradução de Luz Cary, Margarida Garrido e J.
Vasconcelos Esteves. Lisboa: Editorial Presença, 1977.
DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais.
Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. 2ª edição. São Paulo: Atlas,
2006.
FEYERABEND, Paul. Realism, Rationalism and Scientific Method: Philosophical
Papers. New York: Cambridge University Press, 1981.
GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Tradução de Eric Nepomuceno. 4ª.
edição. Porto Alegre: L&PM, 1994.
GARCÍA, María del Carmen; HERNANDEZ, José António. Historia breve de la
retórica. Madrid: Síntesis, 1994.
GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Introducción. In: GARZÓN VALDÉS, Ernesto. (Org.).
Derecho y filosofia. Barcelona: Editorial Alfa, 1985.
GROTIUS. On The Rights of War and Peace. Translated by William Whewell.
Cambridge: Cambridge University Press, 1853 (digitalized by Google).
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. São Paulo:
Celso Bastos, 2000.
HABERMAS, Jürgen. Modernity: An Unfinished Project. In: Habermas and The
Unfinished Project of Modernity: Critical essays on Philosophical Discourse of
Modernity. Edited by Maurizio Passerin d' Entrèves and Seyla Benhabib. Translated by
Nicholas Walker. Cambridge: MIT Press, 1997.
HART. Herbert. Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford: Oxford University
Press, 2001.
_______. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3ª edição. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milênio.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
HOBBES, Thomas. Leviathan. Oxford: Oxford University Press, 1929(digitalized).
HOBSBAWM, Eric. The Age of Revolution. New York: Vintage Books, 1996.
JUST, Gustavo. Guinada Interpretativa. In: Dicionário de Filosofia do Direito.
Coordenação de Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, Unisinos, 2006.
_______. La jurisprudence herméneutique et son horizon: l’interprétation entre ses
conditions et ses possibilités. Droits, Paris, nº 40, p. 219-243, 2004.
_______. O Princípio da Legalidade Administrativa: o Problema da Interpretação e os
Ideais do Direito Público. In: ADEODATO, João Maurício; BRANDÃO, Cláudio;
CAVALCANTI, Francisco (Coords.). Princípio da legalidade: Da Dogmática Jurídica
à Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
102
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Tradução de António Ulisses Cortês.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
KELSEN, Hans. O problema da justiça. Tradução de João Baptista Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______.Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
KERFERD, G.B. The Sophistic movement. Cambridge: Cambridge University Press,
1981.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo
burguês. Tradução de Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ,
Contraponto, 1999.
KUHN, Thomas. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of
Chicago Press, 1970.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3ª
edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
LE GOFF, Jacques. La Civilización Del Occidente Medieval. Traducción de
Godofredo González. Barcelona: Ediciones Paidós, 2002.
LE TESTAMENT d’Orphée. Long-métrage de Jean Cocteau. Paris: Studio Canal, 2005.
1 DVD (77 min.) Son, film en noir et blanc.
LIMA JUNIOR, Oswaldo Pereira de. Ética, pós-positivismo e ensino do direito na pósmodernidade. Mneme: Revista de Humanidades, Caicó, nº 11 (28), p. 64, ago/dez,
2010. Disponível em <http://www.periodicos.ufrn.br/ojs/index.php/mneme>. Acesso
em 14 de agosto de 2011.
LYOTARD, Jean François. The Postmodern Condition: A Report On Knowledge.
Translated by Geoff Bennington and Brian Massumi. Manchester: Manchester
University Press, 1984.
MAIA, Alexandre da. Racionalidade e progresso nas teorias jurídicas: o problema do
planejamento do futuro na história do Direito pela legalidade e pelo conceito de direito
subjetivo. In: Adeodato, João Maurício; Brandão, Cláudio; Calvalcanti, Francisco
(Coords.). Princípio da legalidade: Da Dogmática Jurídica à Teoria do Direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2009.
MARMOR, Andrei. Law in the Age of Pluralism. New York: Oxford University
Press, 2007.
_______. Positive Law and Objective Values. Oxford: Oxford University Press, 2001.
MATTEUCCI, Nicola. Liberalismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco (Org.). Dicionário de Política. 1ª edição. Volume 1. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1998.
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito: Introdução à teoria e metódica
estruturantes. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
NERY, Rosa Maria de Andrade. Noções Preliminares de Direito Civil. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.
103
NEVES, Eduardo. Entre a Teoria e a Práxis Jurígenas: por um translegalismo na
criação semântica do direito. 2009. Monografia (graduação) - Curso de Direito,
Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2009.
NEVES, Marcelo. La Fuerza Simbólica de los Derechos Humanos. Doxa: cuadernos de
filosofía del derecho, Alicante, nº 27, p. 153, 2004.
NIETZSCHE. Friedrich. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro.
Tradução, notas e pósfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
_______. Da Retórica. Tradução de Tito Cardoso e Cunha. 1ª edição. Lisboa: Veja,
1995.
_______. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral. In: Obras incompletas.
Coleção Os Pensadores. Seleção de textos de Gérard Lebrun; tradução e notas de
Rubens Rodrigues Torres Filho. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
OLBRECHTS-TYTECA, Lucie; PERELMAN, Chaïm. Tratado de Argumentação: a
nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª edição. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia
contemporânea. 2ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
PADRÓN, José. Tendencias Epistemológicas de la Investigación Científica en el
Siglo XXI. Disponível em: <http://www.moebio.uchile.cl/28/padron/html>. Acesso em
15 de agosto de 2010.
PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico: uma introdução à
interpretação sistemática do direito. 1ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999.
PAULSON, Stanley L. Lon L. Fuller, Gustav Radbruch, and the Positivist Theses. Law
and Philosophy, Netherlands, nº 3, Vol. 13, Special Issue on Lon Fuller, p. 313 e s.,
aug, 1994.
PERELMAN, Chaïm. Logique Juridique: Nouvelle réthorique. Deuxième édition.
Paris: Dalloz, 1979.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PLATO. Gorgias. In: Dialogues of Plato. Great Books of the Western World.
Translated by Benjamin Jowett. Chicago: Encyclopedia Britannica, 1952.
_______. The Republic. In: Dialogues of Plato. Col. Great Books of the Western
World. Translated by Benjamin Jowett. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952.
POPPER, Karl. The Logic of Scientific Discovery. London: Routlegde, 2002.
QUINTILIAN. Institutio Oratoria. Books I-III. The Loeb Classical Library.
Translated by H. E. Butler. London: Harvard University Press, 1996.
RAZ, Joseph. The Authority of Law: Essays on Law and Morality. Oxford: Oxford
University Press, 1979.
REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 2ª
edição. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
104
REGLA, Josep Aguiló. Positivismo y postpositivismo. Dos paradigmas jurídicos en
pocas palabras. Doxa: cuadernos de filosofía del derecho, Alicante, nº 30, p. 665-675,
2007.
REIS, Marcus Vinicius. Multiculturalismo e Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/sf/senado/spol/pdf/ReisMulticulturalismo.pdf>. Acesso em
13 agosto 2011.
RICOEUR, Paul. The Rule of Metaphor: the creation of meaning in language.
Translated by Robert Czerny with Kathleen McLaughlin and Jonh Costello. London:
Routledgde, 2004.
RUSSELL. Bertrand. A History of Western Philosophy. New York: Touchstone,
1972.
SALDANHA. Nelson. Da Teologia à Metodologia: secularização e crise no
pensamento jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso sobre as Ciências. 7ª edição. Porto:
Edições Afrontamento, 1995.
SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Metodologia Jurídica. Tradução de Heloísa da Graça
Buratti. 1ª Edição. São Paulo: Rideel, 2005.
_______. Sistema del Derecho Romano Actual. Traducción de Jacinto Mesía y
Manuel Poley. Tomo I. Madrid: F. Góngora y Compañía Editores, 1878, (digitalizado).
SCHIERA, Pierangelo. Absolutismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco (Org.). Dicionário de Política. 1ª Edição. Volume 1. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1998.
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Pyrrhonism (Pyrrhoniae Hypotyposes – PH I, II e
III). Translated by R.G. Bury. Cambridge: Harvard University Press, 1976.
SHAPIRO, Scott J. On Hart´s Way Out. In: COLEMAN, Jules (Ed.). Hart´s Postcript:
Essays on the Postscript to the Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005.
SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 3ª edição. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
_______. Unsanctifying human life. Massachusetts: Blackwell Publishers, 2002.
SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange. Sociologia do Direito: uma visão substantiva. 3ª
edição revista e aumentada. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.
TRAN, Peter Hung Manh. How Christians overcame the culture of death. Newsweekly,
Melbourne, September 19, 2006. Disponível em:
<http://www.newsweekly.com.au/articles/2006aug19_b1.html>. Acesso em 9 de agosto
de 2011.
UNGER, Roberto Mangabeira. What should legal analysis become? London: Verso,
1996.
VICENTINO, Cláudio. História Geral. São Paulo: Scipione, 1997.
VICO, Giambattista. Instituciones de Oratoria (selección de los 10 primeros capítulos).
Traducción del latín y notas de Francisco Navarro Gómez. Cuadernos sobre Vico,
Sevilla, nº 15-16, p. 415-430, 2003.
105
VIEHWEG, Theodor. Tópica y Jurisprudencia. Traducción de Luíz Díez-Picazo
Ponce de Léon. Madrid: Taurus, 1964.
WALDRON, Jeremy. Normative (or Ethical) Positivism. In: COLEMAN, Jules (Ed.).
Hart´s Postcript: Essays on the Postscript to the Concept of Law. Oxford: Oxford
University Press, 2005.
_______. Vagueness in Law and Language: Some Philosophical Issues. California
Law Review, Berkeley, nº 03, Vol. 82, p. 509-540, may, 1994.
WALUCHOW, Wilfrid. Inclusive Legal Positivism. Oxford: Oxford University Press,
1994.
_______. Legal positivism, inclusive versus exclusive. Routledge Encyclopedia of
Philosophy. Disponível em < http: //www.rep.routledge.com.libaccess.lib.mcmaster.
ca/article/T064>. Acesso em 3 de dezembro de 2011.
WEBER. Max. Economía y Sociedad: Esbozo de sociología comprensiva. Traducción
de José Medina Echavarría, Juan Roura Parella, Eugenio Ímaz, Eduardo García Máynez
y José Ferrater Mora. 2ª edición. Décimosexta reimpressíon. México D. F.: Fondo de
Cultura Económica, 2005.
WIEACKER, Franz. Historia do direito privado moderno. Tradução de A. M.
Botelho Hespanha. 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Translated by G.E.M.
Anscombe. Third edition. Singapure: Blackwell Publishing, 2001.