Thomas Mann e A Montanha Mágica
Transcription
Thomas Mann e A Montanha Mágica
THOMAS MANN EA MONTANHA MÁGICA Carlos João Correia Universidade de Lisboa "What have we given? My friend, blood shaking my heart The awful daring of a moment's surrender Which an age of prudence can never retract By this, and this only, we have existed Which is not to be found in our obituaries" T. S. ELIOT, The Waste Land I Num dos mitos clássicos da nossa cultura encontramos a história de uma jovem que, no momento em que colhia despreocupadamente flores no campo, vê subitamente a terra abrir-se e do seu seio brotar o senhor da Morte que a rapta violentamente conduzindo-a para os abismos. Ela tornar-se-á, a partir daí, a senhora dos Infernos e ciclicamente surgirá na sua forma primaveril à face da Terra. Neste mito sobre Perséfone opera-se a conjugação, à partida, tão paradoxal, entre a beleza e a morte. A obra literária de Thomas Mann e, em particular, o seu romance A Montanha Mágica, podem ser perspectivados como uma meditação permanente sobre esta identidade tão singular que transforma a morte e o sofrimento no reverso da beleza e da perfeição. Nos Buddenbrook (1901) Philosophical 9, Lisboa, 1997, pp. 123-131. Carlos João Correia 124 - o seu primeiro grande romance, quando o escritor ainda só tinha 26 anos - deparamos com a consciência de que a arte é inimiga das preocupações quotidianas da vida, acarretando a decadência e a morte aos seus cultores; em Morte em Veneza (1912), confrontamo-nos com a obsessão trágica do escritor Aschenbach pela beleza e vitalidade do jovem Tadzio, paixão que lhe provocará a morte; no Doutor Fausto (1947) descobrimos o pacto diabólico do músico Adrian Leverkhün que se entrega voluntariamente à loucura, ao sofrimento e à morte como meio de preservar a sua criatividade genial. Será, assim, a partir desta identidade entre beleza e pulsão de morte que procuraremos orientar a nossa leitura da Montanha Mágica, salientando as formas invocadas pelo escritor de superação desta unidade trágica. Pois Thomas Mann tem bem consciência de que, se na raiz da nossa cultura se encontra um instinto fatal - ou, para utilizarmos a significativa definição de cultura no Doutor Fausto -, se a cultura não é mais do que "a incorporação dos demónios da Noite no culto dos Deuses", então, em qualquer momento, a fina película de civilização que cobre a nossa existência pode estalar e no seu lugar emergir o poder da sofrimento, da loucura e da guerra. Diz-nos o autor nas páginas finais da Montanha Mágica: "Onde estamos? Que é isto? Onde nos levou o sonho? Crepúsculo, chuva e lama, rubros clarões de fogo no céu incendiado; um trovão surdo ressoa sem cessar, enche o ar húmido, dilacerado por silvos agudos, por uivos raivosos, infernais, cujo caminho termina em estilhaços, jactos de terra, detonações e labaredas, gemidos e gritos, clarinadas estridentes que ameaçam despedaçar-se num crepitar cada vez mais rápido, mais rápido..." . Terá Goethe razão ao afirmar que todos os nossos sonhos se realizam mas apenas como pesadelos? A Montanha Mágica é, na nossa interpretação, a reflexão trágico-satírica do escritor sobre esta mesma questão. 1 Apesar da redacção do romance A Montanha Mágica ter durado cerca de 12 anos (de 1912 a 1924), a sua narrativa é relativamente simples. Ela baseia-se, aliás, num facto verídico da vida do escritor. No ano de 1912, a sua mulher teve que passar seis meses num sanatório na zona "Wo sind wir? Was ist das? Wohin verschlug uns der Traum? Dämmerung, Regen und Schmutz, Brandröte des trüben Himmels, der unaufhörlich von schweren Donner brüllt, die nassen Lüfte erfüllt, zerissen von scharfem Singen, wütend höllenhundhaft daherfahrendem Heulen, das sein Bahn mit Splittern, Spritzen, Krachen und Lohen beendet, von Stöhnen und Schreien, von Zingeschmettcr, das bersten will, und Trommeltakt, der schleuniger, schleuniger treibt..."(Thomas MANN, Der Zauberberg, Berlim, Fischer Verlag, 1926 ). 2 Thomas Mann e A Montanha M á g i c a 125 de Davos na Suíça . Thomas Mann foi visitá-la durante três semanas e são os acontecimentos aí ocorridos que constituirão o ponto de partida biográfico para o romance. Na Montanha Mágica, um jovem órfão de 23 anos, simples, despretensioso e empreendedor, engenheiro naval de profissão, de nome Hans Castorp, decide visitar o seu primo militar Joachim que se encontra internado há cerca de seis meses, por causa de uma tuberculose, no sanatório de Berghof, situado na zona de Davos na Suíça. O seu projecto inicial era permanecer apenas três semanas, mas o médico e director do sanatório, o sinistro Doutor Behrens, comunica-lhe que também ele está doente. E as três semanas transformam-se em 7 anos, até à declaração da guerra em 1914. Na verdade, todos os habitantes daquele sanatório estão doentes, até mesmo o médico. Durante a permanência em Berghof, Hans Castorp apaixona-se pela sensual russa afrancesada Madame Chauchat, a quem o herói do romance se declara na cena intitulada "Noite de Valpúrgia". Mme. Chauchat partirá bruscamente no dia seguinte e só retornará muito mais tarde acompanhada de um holandês, oriundo de Java, Peeperkorn, personagem carismática mas enigmática que acaba por se suicidar. Para lá da partida e retorno para morrer do seu primo Joachim, Hans Castorp passa os dias em grandes conversações filosóficas com duas personagens típicas daquele sanatório: Settembrini, italiano de convicções iluministas e humanistas, defensor da ciência e do poder da razão, adepto do ideário de Voltaire; Nafta, judeu e jesuíta, crítico dos ideais iluministas e defensor niilista de um catolicismo simultaneamente reaccionário e marxista. Ambos procurarão influenciar a formação filosófica de Hans Castorp, mas as profundas desavenças entre ambos terminam num duelo em que Settembrini acaba por disparar para o ar e Nafta se suicida. Por fim, iremos encontrar, nas páginas finais do romance, Hans Castorp combatendo na guerra. 2 Como se pode verificar estamos em face de uma intriga bastante simples, em que o decisivo não está tanto no retrato realista dos acontecimentos, mas antes no significado simbólico que tanto as personagens como as situações representam. A Montanha Mágica é um romance simbólico através de um aparente realismo. II A primeira questão que devemos colocar prende-se com o significado do próprio símbolo da Montanha Mágica. A expressão provém de O Nascimento da Tragédia de Nietzsche onde se fala das "raízes" de uma 2 BRADBURY, The Modem World. Ten Great Writers, Londres, Penguin, 1989, pp. 104-105. Carlos João Correia 126 "Montanha Mágica Olímpica". "Agora abre-se-nos por assim dizer a montanha mágica olímpica e mostra-nos as suas raízes. O Grego conhecia e sentia os horrores e as coisas tremendas da existência: aliás, para poder viver, tinha de contrapor-lhe o fulgurante nascimento onírico dos seres olímpicos" . No romance de Thomas Mann, a "Montanha Mágica" (Zauberberg) pode ter vários sentidos e eles não são de forma alguma indiferentes em relação a uma compreensão da obra. Em todos os sentidos possíveis deste símbolo encontra-se, no entanto, um ponto comum: a Montanha Mágica é o mundo "cá de cima", do sanatório de Berghof, a que se opõe o "mundo lá de baixo", do vale - a que poderíamos chamar o Vale desencantado mas em que esta oposição, mais do que traduzir uma antinomia espacial, promove uma alteração substancial, não só nos valores, mas na própria forma de viver dos seus habitantes. Thomas Mann quis, deste modo, realizar uma ficção laboratorial, construindo um universo distinto das preocupações pragmáticas e quotidianas de forma a poder ressaltar alguns traços essenciais da condição humana. 3 São possíveis várias interpretações, com alguma consistência, do símbolo em questão. A mais óbvia, mas que não a transforma, por isso, em menos correcta, consistiria em ver a "Montanha Mágica" como símbolo da situação do homem em face da morte. Estamos num sanatório em que a questão da morte se encontra directa ou indirectamente sempre presente. Os seus "habitantes" têm que lidar diariamente com a morte e, deste modo, são levados a analisar ou a recalcar o sentido das suas vidas. Hans Castorp tem a percepção nítida de que é mortal quando um dia vê directamente o esqueleto da sua mão num aparelho de Raios X. "E Hans Castorp viu o que devia ter esperado, mas que, na realidade, não foi feito para o homem ver e que jamais teria pensado poder ver: lançou um olhar para dentro do seu próprio túmulo. Viu, prefigurado pela força da luz, o futuro processo da decomposição" . 4 A questão da morte vai minar todas as formas de relacionamento humano: desde o amor e paixão envoltos numa atracção macabra e patética, bem expresso pelo desejo de Hans Castorp conhecer as "fotografias 3 "Jetzt öffnet sich uns gleichsam der olympische Zauberberg und zeigt uns sein Wurzeln. Der Grieche kannte und empfand sie Schrecken und Entsetzlichkeiten des Daseins: um überhaupt leben zu können, musste er vor sie hin die glänzende Traumgeburt der Olympischen stellen." (NIETZSCHE, Die Geburt der Tragödie § 3). 4 "Und Hans Castorp sah, was zu sehen er hatte erwarten müssen, was aber eigentlich dem Menschen zu sehen nicht bestimmt ist und wovon auch er niemals gedacht hatte, dass ihm bestimmt sein könnte, es zu sehen: er sah in sein eigenes Grab. Das spätere Geschäft der Verwesung sah er vorweggenommen durch die Kraft des Lichtes" (Thomas MANN, Der Zauberberg, 289). Thomas Mann e A Montanha M á g i c a 127 interiores" de Mme.Chauchat, passando pela consciência cada vez mais nítida de que o fundamento em que se alicerça o que há de mais sublime é a experiência da morte. Isso torna-se claro numa passagem muito bela do romance em que o "herói" se interroga sobre o que é a vida, essa mistura de "água e albumina" que dá corpo à nossa existência: "O que era a vida? Não se sabia. Ela tinha consciência de si mesma, indubitavelmente, desde que era vida, mas ignorava o que era [...]. O que era a vida? Ninguém sabia. Ninguém conhecia o ponto da natureza donde ela brotava e no qual se inflamava. [...] O que era então a vida? Era calor, calor produzido por um fenómeno sem substância própria que conservava a forma; era uma febre de matéria [...] não era matéria nem era espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenómeno sustentado pela matéria, como o arco-íris sobre a queda de água." A vida, enquanto "frémito secreto que irrompe na castidade gelada do universo" transforma-se para Hans Castorp num sonho, numa imagem onírica de um corpo feminino que progressivamente o envolve e o beija. O encantamento da montanha mágica é a magia da relação entre o amor e a morte como se existisse uma fusão doentia entre a atracção sensual e o fascínio pela decomposição e pela morte. Em que o erotismo, mais do que "aprovação da vida até na própria morte" se transforma na "aprovação da morte até na própria vida". 5 6 Uma segunda interpretação do símbolo da "Montanha Mágica" sublinharia o papel privilegiado do tempo na construção deste romance. Aquele local seria "mágico", "encantado" pois promoveria a progressiva dissolução das formas quotidianas e cronológicas da vivência do tempo, possibilitando uma nova compreensão deste. Da mesma forma que a alteração espacial, - como, por exemplo, uma viagem - , suscita uma modificação e provoca o esquecimento, também a nossa experiência temporal pode ser minada por dentro. O primeiro sentimento estranho que envolve Hans Castorp, na sua digressão no Berghof, diz respeito à perda de referências temporais, de tal modo que ele já não consegue ter uma noção nítida dos dias e começa a manifestar dificuldades em responder a questões tão simples como seja a da sua própria idade. A reorganização da 5 "Was war das Leben? Man wusste es nicht. Es war sich seiner bewusst, unzweifelhaft, sobald es Leben war, aber es wusste nicht, was es sei. [ . . . ] Was war das Leben? Niemand wusste es, Niemand kannte den natürlichen Punkt, an dem es entsprang und sich entzündete. [...] Was war also das Leben? Es war Wärme, das Wärmeprodukt formcrhaltender Bestandlosigkeit, ein Fieber der Materie [...] es war nicht materiell, und es war nicht Geist. Es war etwas zwischen bidem, ein Phänomen, getragen von Materie,gleich dem Regenbogen auf dem Wasserfall" (Thomas MANN, Der Zauberberg, 361-363). 6 BATAILLE, L'erotisme, Paris, Minuit, 1957, p. 17. Carlos João Correia 128 experiência interior do tempo constitui, assim, um dos temas centrais da Montanha Mágica, sendo este romance uma exploração meticulosa de todos os meandros da nossa vivência temporal. A explícita questão sobre a natureza do tempo é colocada em dois momentos distintos do romance. No começo do capítulo seis, na cena "Transformações", que começa com a questão directa: "O que é o tempo?" e no capítulo sete, na cena "Passeio pela Praia", que começa com outra interrogação: "Pode narrar-se o tempo, o tempo em si mesmo, como tal e em si? Não, na verdade seria uma empresa louca. [...] O tempo é o elemento da narração, assim como é o elemento da vida." A narrativa não tem pois o tempo como objecto mas é, em si mesma, a experiência do tempo no interior da linguagem. O que significa que não temos acesso ao tempo - o da vivência mais do que o da sua medição - a não ser através da narrativa. 7 8 9 O próprio romance de Thomas Mann é a expressão exemplificada desta mesma tese. Como se o narrar da história promovesse uma distorção da vivência temporal: assim, por exemplo, o primeiro capítulo trata da chegada, enquanto o quarto trata das 3 primeiras semanas, o quinto dos 7 primeiros meses e o sétimo de todos os anos restantes' . No próprio prólogo, a voz narrativa anuncia enigmaticamente que a história que se vai ler se passa num passado muito distante", o que não deixa de ser estranho, pois os acontecimentos parecem estar "datados" dado que se referem aos sete anos que antecedem a primeira guerra. É pois uma história mítica que lemos, mais do que um relato histórico circunstancial, em que o que está em causa é essa busca de si através da vivência do tempo. Por sua vez, o romance poderia ser visto como uma meditação sobre as diferentes formas da eternidade num mundo em que a mais "pequena unidade de tempo é o mês": desde o eterno retorno do mesmo simbolizado pela "sopa eterna" , passando pela eternidade do sonho, em particular aquele que lhe é revelado pela paixão por Mme Chauchat até 0 12 13 7 Esta hipótese é sustentada por Paul Ricoeur na sua análise da Montanha Mágica: cf. Temps et rieft ff. Paris, Seuil, 1984, pp. 168-194. 8 "Was is die Zeit?" (Thomas MANN, Der Zauberberg, p. 452). 9 "Kann man die Zeit erzählen, diese selbst, als solche, an und für sich? Wahrhaftig, nein, das wäre ein närrisches Unterfangen! [...] Die Zeit ist das Element der Erzählung, wie sie das Element des Lebens ist" (Thomas MANN, Der Zauberberg, p. 706). 1 0 Cf. RICOEUR, Temps et rieft //, 169-170. 11 Thomas MANN, Der Zauberberg, p. 9. 1 2 "Ewigkeitssuppe und plötzliche Klarheit", Thomas MANN, Der Zauberberg, p. 243. 1 3 Cf. a declaração em francês de Hans Caslorp à Mme Chauchat no capítulo 129 Thomas Mann e A Montanha M á g i c a à eternidade do instante que se realiza na cena crucial do romance, "A Neve" . A terceira interpretação do símbolo da "Montanha Mágica" sublinharia a reflexão permanente do autor sobre o destino da cultura europeia. E o "encantamento" seria a subtracção momentânea da cultura ao próprio ritmo da história. Esta interpretação tem a seu favor o conflito estéril entre o humanista tagarela Settembrini e Nafta, o crítico niilista da ideologia burguesa do progresso. Como se Thomas Mann nos quisesse mostrar o conflito ideológico que animava a cultura europeia naquela época e, como esse conflito, entre os ideais das Luzes e da Kultur romântica, nos anuncia a expressão de um outro conflito de proporções bem maiores. 14 III Estamos assim em face de um romance de aprendizagem. Embora nos possamos interrogar sobre o que é que de positivo Hans Castorp aprendeu dos seus diferentes preceptores, dificilmente a sua visão do mundo permaneceria a mesma sem a intervenção de Settembrini, de Nafta, de Peeperkorn e de Mme Chauchat. Esta última, por exemplo, ensina-lhe, com um certo sabor gnóstico, que se "deve procurar a moral não tanto na virtude, isto é, na razão, na disciplina, nos bons costumes, na honestidade, mas antes no contrário, no pecado, abandonando-se ao perigo, ao que nos é prejudicial, no que nos consome. Penso que é mais moral perder-se e mesmo deixar-se perecer do que conservar-se." E, neste romance de aprendizagem sobre a morte, sobre o tempo e a cultura surgem duas visões distintas na relação entre a beleza e a morte, a perfeição e o sofrimento. 15 A primeira é-nos apresentada na cena em que Hans Castorp ouve extasiado uma canção de Schubert, A Tília. O mundo da canção era singelo, mas, ao mesmo tempo, sublime, em que se canta o amor e a serenidade. E, de repente, Hans Castorp, apercebe-se de que é a "morte" que se encontra por detrás daquela canção. "Que mundo era esse que se Walpurgisnacht "Je t'aime," lallte er, "je t'ai aimée de tout temps", (Thomas MANN, Der Zauberberg, p. 449). 4 "Sollte er glauben, dass sein Herumirren kaum eine Viertelstunde gedauert hatte?" (Thomas MANN, Der Zauberberg, p. 636) 5 "Qu'il faudrait chercher La morale non dans la vertu, c'est-ä-dirc dans la raison, la discipline, les bonnes moeurs, l'honnéteté, - mais plutöt dans le contraire, je veux dire: dans le peché, en s'abandonnant au danger, ä ce qui est nuisible, ä ce qui nous consume. II nous semble qu'il est plus moral de se perdre et mémc de se laisser dépérir que de se conserver." (Thomas MANN, Der Zauberberg, 446-447). 130 Carlos João Correia abria atrás dela [da canção] e que, segundo o pressentimento da sua consciência, devia ser o mundo de um amor proibido? Era a morte." Nesta súbita iluminação Hans Castorp descobre que, como Nietzsche tinha defendido no Nascimento da Tragédia, na base de toda a forma pura e apolínea revela-se um fundamento caótico, mortal e dionisíaco, fundamento que não é mais do que a "vontade de viver" cega de Schope¬ nhauer. Uma vez mais se confirmava a tese sobre a beleza como o reverso da própria morte. E, no entanto, possível discernir, na Montanha Mágica, uma alternativa a esta visão niilista da vida. Encontramo-la, pelo menos, em dois momentos: na cena da "Neve" e no final do romance. Na primeira cena, deparamos inicialmente com a visão nietzschiana de um fundo abissal que atravessa toda a beleza formal. Quando Hans Castorp se perde numa tempestade de neve, tem primeiramente uma visão onírica da verdura dos campos e do azul dos mares, recordando-lhe um Mediterrâneo que ele nunca visitou. Mas, como diz o protagonista, "não se sonha unicamente com a nossa própria alma" . Só que depois desta percepção idílica, tem a visão arrepiante de duas velhas que, com as suas próprias mãos, dilaceram e esquartejam o corpo de uma criança. Por um lado, Castorp sabe, à maneira nietzschiana, que a morte é parte intrínseca da vida, pois, se assim não fosse, nunca se poderia falar de vida; sabe, numa palavra, que na raiz da experiência mais sublime se encontra o eterno retorno de criação e destruição. "Aquela aspiração para o infinito, o bater das asas da ânsia nostálgica no momento em que apreendemos com um prazer suprerrtrj a realidade nitidamente apreendida, lembram que devemos reconhecer [...] um fenómeno dionisíaco que nos revela sempre de novo a construção e destruição lúdicas do mundo individual, decorrendo de um prazer primordial, de modo análogo à comparação, pelo obscuro Heraclito, da força criadora do universo a uma criança que, ao brincar, coloca pedras aqui e acolá, construindo e derrubando montes de areia." Mas Castorp sabe também, à maneira schopenhaueriana, que uma consciência 16 17 18 1 6 "Welches war diese dahinter stehende Welt, die seiner Gewissensahnung zufolge eine Welt verbotener Liebe sein sollte? Es war der Tod." (Thomas MANN, Der Zauberberg, p. 854). 1 7 "Man träumt nicht nur aus eigener Seele" (Thomas MANN, Der Zauberberg, p. 645). f S "Jenes Streben ins Unendliche, der Flügelschlag der Sehnsucht, bei der höchsten Lust an der deutlich perzipierten Wirklichkeit, erinnern daran, f . . . ] ein dionysische Phänomen zu erkennen haben, das uns immer von neuern wieder das spielende Aufbauern und Zertrümmern der Individualwelt als den Ausfluss einer Urlust offenbart, in einer ähnlichen Weise, wie wenn von Heraclit dem Dunkeln die weltbildende Kraft einem Kinde verglichen wird, das spielend Steine hin und her setz und Sandhaufen aufbaut und wieder einwirft." (NIETZSCHE, Die Geburt der Tragödie § 24). Thomas Mann e A Montanha Mágica 131 integral da própria "vontade de viver" lhe permite uma compaixão com todos os seres que são vítimas dessa mesma identidade trágica entre a vida e a morte. "Este homem que, em cada ser, se reconhece a si mesmo, no mais íntimo e verdadeiro de si próprio, considera também as dores infinitas de tudo o que vive como sendo as suas próprias dores e, assim, faz seu o sofrimento de todo o mundo. A partir daqui, nenhuma dor lhe é estranha." É, por isso, que Hans Castorp, no final da sua visão na neve, nos dirá: ""O homem não deve deixar a morte reinar sobre os seus pensamentos em nome da bondade e do amor. E com isto vou acordar... Pois segui o meu sonho até ao fim e alcancei o meu objectivo" . Ou então ainda, no final do romance: "Momentos houve em que nos sonhos que tu "governavas" viste brotar da morte e da luxúria do corpo um sonho de amor. Será que dessa festa da morte, dessa perniciosa febre que incendeia à nossa volta o céu desta noite chuvosa, também o amor surgirá um dia?" . 19 20 21 ABSTRACT THOMAS MANN AND THE MAGIC MOUNTAIN In this article, we analyse the symbolic meaning of the Thomas Mann's novel, The Magic Mountain. We try to see the scope of the interpretations that consider the metaphors of death, time and culture as the main subject of the novel. Finally, we sustain the idea that Thomas Mann wants to tell us that beauty and perfection are the reverse of death and suffering. " [ . . . ] dass ein solcher Mensch, der in allen Wesen sich, sein innerstes und wahres Selbst erkennt, auch die endlosen Leiden alles Lebenden als die seinen betrachten und so den Schmerz der ganzen Welt sich zueignen muss. Ihm ist kein Leiden mehr fremd." (SCHOPENHAUER, Die Welt als Wille und Vorstellung, § 68). "Der Mensch soll um der Güte und Liebe willen dem Tode keine Herrschaft einräumen über seine Gadanken. Und damit wach'ich auf... Denn damit hab'ich zu Ende geträumt und recht zum Ziele." (Thomas MANN, Der Zauberberg, 648). "Augenblick kamen, wo dir aus Tod und Körperunzucht ahnungsvoll und regierungsweise ein Traum von Liebe erwuchs. Wird auch aus diesem Weltfest des Todes, auch aus der schlimmen Fieberbrunst, die rings den regnerischen Abendhimmel, einmal die Liebe steigen?" (Thomas MANN, Der Zauberberg, 938).