SOB O VÉU DOS VERSOS - Faculdade de Letras

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SOB O VÉU DOS VERSOS - Faculdade de Letras
“SOB O VÉU DOS VERSOS”
O LUGAR DA POESIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção de título de
Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)
Orientador: Professor Doutor Antonio Carlos Secchin.
Co-orientador: Professor Doutor Claudio Murilo Leal
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
―SOB O VÉU DOS VERSOS‖:
O LUGAR DA POESIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Co-orientador: Claudio Murilo Leal
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
_____________________________________________________________________________
Presidente, Professor Doutor Antonio Carlos Secchin
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Sérgio Nazar David
_____________________________________________________________________________
Professora Doutora Helena Parente Cunha
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Sérgio Martagão Gesteira
_____________________________________________________________________________
Professora Doutora Rosa de Carvalho Gens
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Cláudio Murilo Leal (Co-orientador)
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Adriano Espínola (Suplente)
______________________________________________________________________________
Professora Doutora Elódia Xavier (Suplente)
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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Amparo, Flávia Vieira da Silva do.
―Sob o véu dos versos‖: o lugar da poesia na obra de Machado de Assis/ Flávia
Vieira da Silva do Amparo. - Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2008.
xi,346 f; 30cm.
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Área: Literatura Brasileira, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 323-346
1- Subindo a montanha das musas 2- Ocidentais: do seio de Quimera ao reino
de Pandora 3- Machado de Assis: um homem de teatro 4-―Sob o véu dos versos‖. I.
Secchin, Antonio Carlos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Área: Literatura
Brasileira. III. Título.
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RESUMO
―SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA
NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Co-orientador: Claudio Murilo Leal
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Literatura Brasileira.
Cem anos após a morte do escritor Machado de Assis, muito se tem falado sobre o
mestre da prosa, mas ainda existe um imenso preconceito quando o assunto é a poesia do
escritor. Procurando romper o véu que separa o poeta do prosador, esta pesquisa tem como
principal objetivo conhecer e recompor a trajetória de Machado de Assis desde os poemas da
juventude, dispersos nos jornais das décadas de 50 e 60 (séc. XIX), passando pelos
primeiros livros de poesia – Crisálidas e Falenas –, e por algumas comédias compostas em
verso, até chegar a sua única obra poética da maturidade: Ocidentais. Veremos como as
temáticas da poesia prenunciam questões trabalhadas posteriormente na ficção machadiana,
assim como se filiam a um legado poético de especial valor no universo literário.
Sobretudo, procuraremos resgatar o Poeta por excelência, que ultrapassa o sentido
estrito da palavra, como um intérprete da vida e do homem, disposto a elaborar uma poética
– sentido essencial da obra de arte -, independente da maneira usada para revelá-la aos seus
leitores.
Palavras-chave: Machado de Assis, poesia, Crisálidas, Falenas, Ocidentais, ficção,
comédias.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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RESUMEN
―SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA
NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Co-orientador: Claudio Murilo Leal
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Literatura Brasileira.
Cien años después de la muerte de Machado de Assis, mucho se ha hablado sobre el
maestro de la prosa, todavia, existe um gran perjuicio cuando el tema es la poesia del
escritor. Intentando romper el velo que separa el poeta del prosador, esta pesquisa tiene
como principal escopo conocer y recomponer la trayetoria de Machado desde los primeros
poemas de su juventud, dispersos en los periódicos de lãs décadas de 50 y 60 (siglo XIX)
pasando por los primeros libros de poesia – Crisálidas e Falenas – y por algunas comedias
en verso, hasta llegar a su unica obra de madurez: Ocidentais. Estudiaremos como las
tematicas de su poesia prenunciam questiones trabajadas después em la ficción, bien como
se afilian a um legado poetico de especial valor en el universo literario.
Sobre todo, buscaremos resgatar el Poeta em su dimensión mayor, que ultrapassa el
sentido stricto de de la palabra, como interprete de la vida y del hombre, dedicado en
elaborar uma poética – sentido esencial de la obra de arte – independiente de la forma usada
para revelarla a sus lectores.
Palabras-llave: Machado de Assis, poesía, Crisálidas, Falenas, Ocidentais, ficción,
comedias.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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RÉSUMÉ
―SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA
NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Co-orientador: Claudio Murilo Leal
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Literatura Brasileira.
Un siècle après la disparition de Machado de Assis, on parle encore beaucoup du
maître de la prose, mais il y reste toujour un grand prejugé envers la poésie de cet écrivain.
Tout en cherchant rompre le voil qui détache le poète du prosateur, cette recherche envisage
d‘établir et d‘examiner le parcours de Machado de Assis dès ses poèmes de jeunesse, épar
dans les journaux des annés 1850 et 1860, comprennant ses premiers recueils de poèmes –
Crisálidas et Falenas -, et quelques comédies composées en vers, pour aboutir à sa seule
ouevre poétique de maturité : Ocidentais. On verra comment les sujets de sa poésie
anticippent des questions ultérieurement reprises dans sa fiction, ainsi que ces sujets se lient
à un certain patrimoine poétique de valeur espéciale dans l‘univers littéraire.
On va chercher surtout reprende le poète par excellence, en dépassant le sens stricte du
mot: poète, alors, en tant qu‘ interprète de la vie et de l‘homme, prêt à créer une poétique –
comme sens essentiel de l‘oeuvre d‘art -, indépendamment de la manière employée pour la
dévoiler aux lecteurs.
Mots-clé : Machado de Assis; poésie; comédies en vers; Crisálidas; Falenas, fiction,
comédies.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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DEDICATÓRIAS
Para:
Aquele que conhece de perto a natureza humana e,
mesmo assim, é capaz de nos amar: Jesus Cristo –
meu Senhor e Deus, meu Princípio e meu Fim.
e
Os três amores que sustentam minha jornada neste
mundo:
Lara, a que me ensina com sua perspicácia e carinho
as lições do amanhã: minha semente, meu futuro.
Maurício, meu esposo, que comigo caminha lado a
lado, com serenidade e com todo o amor de que
necessito, unindo o que fui ao que sou: meu presente;
Irene, minha mãe, a que administra a vida cultivando
diariamente o bem. Aquela que com toda dedicação
soube adornar de flores meu passado.
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AGRADECIMENTOS:
Agradeço ao meu orientador Antonio Carlos Secchin pela presença marcante em toda
essa difícil trajetória de pesquisa. Pelo apoio sempre solícito, preciso e valioso do amigo, do
crítico e do homem das letras. Aquele que, diante das dificuldades do percurso, me ensinou a
grande arte dos poetas de lapidar as pedras ―in mezzo del camin”.
Ao professor Claudio Murilo Leal pelas importantes fontes de pesquisa sobre o poeta
Machado de Assis, que abriram caminho aos pesquisadores da poesia do mestre.
Agradeço ao Colégio Pedro II e a todos os que prontamente favoreceram o meu
afastamento das atividades do magistério para a dedicação total à pesquisa: ao Professor
Manoel Almeida, chefe de departamento de Língua Portuguesa, e aos Diretores Jorge
Dimuro e Vera Maria Rodrigues.
A Lene Elsie Fernandes de Faria, minha primeira contadora de histórias, reveladora
dos encantos das páginas literárias que me acompanham até hoje.
Àqueles que souberam semear a bondade em tempo de desencanto, crendo na virtude
do amanhã: Sílvio e Odete Simões e General Adalberto Pinheiro da Mota.
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SINOPSE
Leitura da obra poética machadiana, a partir
das poesias dispersas da juventude até a obra
da maturidade. Estudo da poética machadiana
como fio condutor de todo pensamento do
escritor, principalmente, como filosofia da
vida prática e teoria da alma humana.
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“O voi che avete gl'intelletti sani,
mirate la dottrina che s'asconde
sotto il velame delli versi strani”
“Ó vós que tendes o intelecto são,
atentai à doutrina que se esconde
sob o véu dos versos estranhos.”
(Dante Alighieri - Inferno IX, 61-63)
―O estilo está tanto sob as palavras
quanto nas palavras. É tanto a alma
quanto a carne de uma obra.‖
(Gustave Flaubert. Cartas exemplares. p.188)
10
SUMÁRIO
Introdução, p.12
1. SUBINDO A MONTANHA DAS MUSAS – p. 23
2.
3.
1.1-
Nos enlevos de Calíope – p. 31
1.2-
A primeira ponta da vida – p. 40
1.3-
Tributo à musa do passado – p. 62
1.4-
De Corina a Carolina: entre a musa poética e a poética da musa – p. 71
1.5-
Falenas: o sofrimento como tema – p. 86
OCIDENTAIS: DO SEIO DE QUIMERA AO REINO DE PANDORA – p.108
2.1-
―Mundo interior‖: o microcosmo humano – p. 125
2.2-
A metamorfose – p. 135
2.3-
Descendo a montanha das musas – p. 150
MACHADO DE ASSIS: UM HOMEM DO TEATRO – p. 160
3.1-
―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖: breve análise ... – p. 168
3.1.1- Diálogos femininos e pintura social em ―Antes da missa‖ – p. 172
3.1.2- ―O bote de rapé‖: o nariz entra em cena – p. 180
3.24.
Diálogo entre deuses e homens: Os deuses de casaca – p. 193
SOB O VÉU DOS VERSOS: poesia e profecia na construção da obra de arte – p. 212
4.1-
Teste David cum Sybilla: profetas e poetas no desfile dos séculos – p. 221
4.2-
Poesia e profecia: a interpretação figural dos primeiros doutores cristãos – p. 229
4.3-
Do altar para o palco da vida: sibilas e profetas na consolidação... – p. 241
4.4-
Profecia, utopia e interpretação figural na obra de Dante Alighieri – p. 248
4.5-
Entre o civil e o religioso: novas releituras proféticas – p. 260
4.6-
Ut pictura poesis: uma interpretação (...) da obra de Michelangelo – p. 266
4.7-
Sibilas e profetas nos Autos sacramentais da Península Ibérica – p. 279
4.8-
Último - p. 300
5.
CONCLUSÃO
6.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
11
INTRODUÇÃO
Os dois gêneros que marcaram o início da carreira do escritor Machado de Assis – a
poesia e o teatro – encontram-se ainda pouco estudados pela crítica, que, na maior parte das
vezes, insiste em manter o parecer do século XIX. A opinião dos críticos é a de que essas
manifestações literárias não revelam o gênio machadiano presente nos contos e,
principalmente, nos romances escritos a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas.
Considerada obra menor, a poesia de Machado permanece numa espécie de limbo, num
lugar à parte da sua produção consagrada pela crítica.
Opiniões de peso contribuíram muito para que tanto a poesia quanto o teatro do
mestre permanecessem ao largo, como ―filhos enjeitados‖ diante de uma prole ilustre.
Primeiramente o parecer de Quintino Bocaiúva sobre a falta de ação no teatro machadiano,
que se propagou como se fosse uma depreciação da obra do autor. Tanto não possuía valor
depreciativo, que Machado o transcreveu na íntegra em seu volume de teatro publicado em
1863, que incluía as peças ―O protocolo‖ e ―O caminho da porta‖.
O que para o jovem dramaturgo soou como elogio, ao revelar em suas peças certo
refinamento e reflexão, como deviam ser as ―obras de pensamento‖, parece ter sido a marca
negativa que o acompanhou no passado e se lançou à posteridade. Em relação ao seu
tempo, não encontrou acolhida diante da crítica, que preferia as peças traduzidas de
aclamados escritores estrangeiros (sobretudo franceses), nem do público em geral, que
valorizava mais as peças de pouco fundo, repletas de peripécias, burlas, arremedos,
caricaturas, sem falar na predileção da platéia pelo melodrama, encenado com notação e
ênfase românticas. O dramaturgo lutava, portanto, contra dois gigantes: a crítica e o
público, o que de maneira alguma poderia fazê-lo prosperar, ainda mais se tratando de um
jovem estreante no cenário dramático.
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Apesar de estreante, não era desprestigiado como censor e crítico teatral, funções que
desempenharia com louvor, deixando registrada uma série de pareceres que nos fazem
compreender o quanto o público fluminense não era suficientemente maduro para valorizar
o teatro de índole nacional que não fizesse a opção pelo burlesco.
O interesse dessa pesquisa, em relação ao teatro machadiano, volta-se exclusivamente
para as suas comédias escritas em verso, tendo em vista que são as mais minimizadas,
mesmo quando se têm por objeto de estudo os textos teatrais do autor. Outro aspecto
importante é que o fato de serem também composições poéticas permite que tenhamos uma
compreensão mais plena do poeta Machado de Assis, em toda a expansão do seu estro.
Inseridas nesse contexto, encontramos três comédias machadianas: ―Os deuses de
casaca‖, ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖, que ostentam como pano de fundo as
relações sociais e políticas da vida fluminense, embora a primeira delas opte por uma
abordagem menos explícita do imbricado jogo de poder existente na sociedade. Essa
característica de ―Os deuses de casaca‖, em particular, nos interessa ainda mais, na medida
em que o autor utiliza uma mescla de fantasia e realidade para dar conta de situações que
espelham o universal através da leitura do particular, ou ainda, emprega um certo
deslocamento da realidade a fim de retratá-la de forma mais fidedigna.
Quanto à poesia propriamente dita, o cenário é ainda mais desalentador, se
acompanharmos a fortuna crítica sobre o escritor em relação ao gênero. Dos
contemporâneos de Machado aos estudiosos recentes, há muito mais pontos negativos na
apreciação da poética machadiana do que seria razoável supor diante do vasto corpus que
apresenta: só viram o que lhes seria conveniente ver para condenar todo o conjunto.
A maioria dessas vertentes críticas pôs uma coroa imarcescível no Machado
consagrado e canônico, a ponto de considerar tudo o que ele produziu no período anterior
às Memórias póstumas de Brás Cubas como algo ―menor‖. Assim, qualquer pesquisa que
se concentre nas obras que antecedem esse período canônico é considerada negativamente,
como se isso fosse macular a imagem do patrono das nossas letras. Para esses, Ocidentais é
o único livro de poesia que merece a atenção dos leitores, já que foi escrito na maturidade
do escritor.
Tratando exclusivamente da poesia de Machado, Manuel Bandeira afirmaria que a
grande questão seria a concorrência entre o prosador e o poeta, dada a dificuldade deste em
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se impor diante da genialidade daquele. A sombra do Machado prosador se projetaria na
obra poética de tal modo que a obscureceria completamente.
Sílvio Romero, por sua vez, escolheu o poeta como alvo principal de seus ataques,
talvez considerando que era quase impossível diminuir-lhe a imagem, já consagrada à
época, de romancista de talento. Dele e de outros contemporâneos de Machado, ouviríamos
as mais diversas razões para se desprezar o poeta: falta ou excesso de lirismo, pouca
criatividade ou demasiada imaginação, uso repetitivo de vocábulos da língua ou linguagem
erudita e fria, excessivo zelo formal ou emprego de construções pobres com erros de
concordância, estro cosmopolita ou adoção de um nacionalismo epigonal, enfim, pareceres
que, se confrontados, se anulariam mutuamente, tendo em vista que emitem opiniões
divergentes sobre o mesmo objeto de análise: a poesia de Machado de Assis.
Em pesquisa de Mestrado, procuramos traçar um roteiro das críticas antigas e atuais a
respeito do poeta. Em grande parte desse material crítico, verificamos a falta de um critério
ou de um conhecimento mais vasto da sua obra poética, pois a maioria desses estudiosos
procurou analisar em superfície alguns aspectos isolados da poesia do autor, o que
provocou uma imensa distorção na análise e na conclusão de seus pareceres.
Para os que tinham o Romantismo como parâmetro, a falha do poeta estava na falta
de lirismo e imaginação e na frieza da construção dos poemas, enquanto, para os críticos de
índole realista, a fantasia era demasiada, mas a forma deixava a desejar. Forma, métrica,
rima, vocábulos, expressão, tudo isso seria alvo da crítica, exceto o conteúdo da poesia
machadiana.
Esvaziada de sentidos, a poesia seguiu à margem, na sombra ainda mais obscura da
categorização dos críticos, que pretenderam definir o poeta como romântico, na primeira
fase, e parnasiano, na maturidade. Seguindo unicamente por essas sendas, de fato, a poesia
machadiana não apresentaria maior relevo, já que frustra ambas as vertentes, apesar de não
desconsiderá-las, e opta por um diálogo com uma tradição que não se fixa em espaço ou
tempo, mas se processa das mais variadas maneiras, e parte do clássico para construir o
moderno. A obra poética machadiana, erguida sobre o edifício da tradição, acrescentou às
antigas paredes a camada do novo. Não a novidade de vanguarda, mas a releitura e
aprimoramento do antigo, num minucioso trabalho de restauração, de reavivamento do
sentido primordial da poesia.
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Para acompanharmos o princípio construtivo do poeta, assim como para
desvendarmos essa obra tão incompreendida pela crítica - que permanece ainda, após cem
anos do desaparecimento do autor, ―sob o véu dos versos‖ -, é preciso empreender um
longo percurso, a partir do início da carreira do escritor, resgatando os poemas dispersos da
adolescência e verificando o que dessa obra teria sobrevivido na publicação do primeiro
livro de poesia: Crisálidas. É importante também destacarmos que o poeta não realiza
neste livro uma coletânea dos poemas anteriormente publicados: prefere escrever outros
especificamente para esse fim, incluindo apenas dois ou três poemas de um período mais
remoto. Ainda assim, sem retomar os poemas anteriores, recupera a trajetória de influências
que o formou como poeta, como se estampasse sempre o motivo primordial do processo
criativo.
Dos quatro livros de poesia do escritor, Crisálidas, Falenas, Americanas e Ocidentais,
excluímos de nossa análise apenas o penúltimo, não só porque o assunto do livro foi
abordado anteriormente em pesquisa de Mestrado, mas também por nossa proposta de
organização temática. A leitura de Americanas nos conduziria a um outro caminho, distinto
do que nos propusemos a trilhar.
O que nos interessa, de início, é captar as influências clássicas, medievais,
renascentistas, neoclássicas e, também, românticas que formam a base dessa poesia
machadiana dos primeiros livros, a começar pelo topos clássico da subida à montanha das
musas. Também veremos como Machado, sem desprezar completamente o projeto do
jovem poeta, acrescenta um fundamento filosófico à releitura da tradição ocidental em seu
último livro: Ocidentais. Outra vez encontraremos o poeta no cimo do monte, só que, nesse
caso, descendo a encosta, como se efetuasse o último movimento, na forma de uma célebre
despedida.
O movimento de subida e de descida do monte constituirá uma importante vertente na
poesia machadiana, assim como a interpenetração da fantasia e da realidade no processo
criativo aponta para uma íntima relação entre prosa e poesia. A obra machadiana parece se
construir num único bloco, onde o artífice vai esculpindo variações de uma mesma figura,
constituída por um princípio único e indivisível.
Vida e obra, em certos momentos, parecem se fundir, como se uma se conformasse a
outra para dar origem ao grande fiat da criação artística. A arte torna-se o único atributo
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humano capaz de ter um fim em si mesmo (uma convicção declaradamente assumida por
Machado), e que traz a marca do trascendental. Nas palavras de Schelling: ―A arte leva o
homem inteiro, como ele é, até ali, a saber, ao conhecimento do supremo, e nisso reside a
eterna diferença e o milagre da arte‖1.
O que nos motiva: realidade ou ilusão? Em que medida a consciência subjetiva influi
na capacidade de captar a realidade objetiva? Ora envolvido, ora afastado, o poeta sai de si
e a si mesmo retorna como a buscar uma solução no exterior para o constante conflito
interno do homem.
Observando por esse ângulo Machado é essencialmente poeta, visto que, mesmo na
prosa, parte de um ponto de vista da realidade comum a todos os homens, baseada nos
princípios essenciais da vida, para, logo em seguida, abandonar o palco da realidade, como
um espectador da cena, onde tudo é revelado in abstracto, a partir de uma observação
distanciada do narrador. A maioria dos narradores machadianos está ―fora de si‖, por isso
pode captar o subjetivo de maneira objetiva, ao mesmo tempo que, vivendo uma ―segunda
vida‖, pode rir-se daquela primeira sem que se sinta emocionalmente atingido.
Essa atitude do prosador comunga das idéias filosóficas de Arthur Schopenhauer,
quando este trata dos vários sentidos e níveis da realidade, e de como o homem pode
interpretá-la para melhor se conformar ao contexto da vida.
Não será surpreendente, maravilhoso mesmo, ver o homem viver uma
segunda vida in abstracto ao lado da sua vida in concreto? Na primeira,
está entregue a todos os tormentos da realidade, está submetido às
circunstâncias presentes, tem que trabalhar, sofrer e morrer, como os
animais. A vida abstrata, tal como ela se apresenta perante a meditação da
razão, é o reflexo calmo da primeira e do mundo em que ele vive; ela é
esse plano reduzido de que falávamos mais acima. Aí, dessas alturas
serenas da meditação, tudo o que o tinha dominado, tudo o que o tinha
fortemente impressionado embaixo parece-lhe frio, descolorido, estranho
a si mesmo, pelo menos de momento: ele é espectador, ele comtempla.
Quando se retira assim para os cumes da reflexão, assemelha-se ao ator
que acaba de representar uma cena e que, à espera de outra, vai tomar
lugar entre os espectadores, observa com sangue-frio o desenrolar da ação
que continua sem ele, mesmo que sejam os preparativos de sua morte,
depois regressa para agir ou sofrer, como deve.2
1
SCHELLING. Apud: SUZUKI, Márcio. O gênio romântico. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 102.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. (Trad. M. F. Sá Correia). Rio
de Janeiro: Contraponto, 2001. p. 94-95.
2
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Lendo o texto do filósofo, temos a impressão de que estamos diante de uma cena do
Hamlet, de um trecho da obra de Goethe ou de um dos capítulos das Memórias póstumas,
sobretudo porque esses autores não se preocuparam unicamente com a representação de
uma realidade única e incontestável ou da simples criação de tipos esvaziados de sentido,
mas olharam o mundo como espaço de representação, tal como o filósofo concluiu. Não
criaram suas obras como ficção simplificada, ou como espelho de uma realidade, disposta
apenas a distrair leitores/espectadores, mas voltaram a arte sobre si mesma, refletindo sobre
a capacidade criativa do homem, buscando continuamente a idéia primordial de toda a
criação, inclusive, da sua própria origem.
Só que esse ponto de vista do kataskopos, daquele que observa tudo do alto, é um
princípio poético que reincide na obra de vários autores, desde a era clássica até a
atualidade, e constitui-se um legado inegavelmente vasto e plural da literatura. Machado,
portanto, se apropria desta herança literária, enriquecendo-a com seu toque de genialidade.
De início, ainda preso à forma convencional, propaga esse pensamento em sua obra da
juventude, até que rompe definitivamente com a configuração inicial, mas mantém tanto o
princípio poético quanto a temática anteriormente esboçada.
Pretendemos mostrar o fio que une o Machado-poeta ao Machado-prosador, na
medida em que, no seu processo criativo, o escritor nunca abandonou o sentido clássico do
poeta, na verdade Sumo-Poeta, como um intérprete do mundo, como aquele que
continuamente tece a urdidura da vida, juntamente com a teia do texto literário.
Principalmente, parte de uma idéia que avalia o ―estar no mundo‖ como um longo processo
que, em vez de se constituir uma ação evolutiva, é, na verdade, uma constante refiguração
de modelos antigos, aparentemente recobertos pela tinta do novo.
O Poeta, em sua incessante busca pelos sentidos primordiais da existência, ora ―sai de
si‖ para contemplar o mundo exterior – anábase; ora mergulha em si para compreender
outro vasto mundo, que é o seu interior – catábase. Dante executaria esse procedimento na
Commedia, assim como Shakespeare em todo o seu teatro, como Goethe, no Fausto, ou,
ainda, como Michelangelo na pintura da Capela Sistina. Poderíamos citar inúmeros outros
artistas, na escultura, na arte, na pintura, na literatura, no teatro, enfim, a todos esses
poderíamos denominar ―Poetas‖, visto que pretenderam, com sua arte, dar continuidade ao
17
fio de uma dada tradição e interpretar alguns séculos de nossa história a partir de uma
ligação comum a todos os homens, de todos os tempos.
No entanto, a revelação do artista na obra de arte nunca é uma versão pronta e
acabada desse preceito inicial. Pelo contrário, é uma nova formar de (re)velar o essencial.
O leitor precisa apurar o intelecto para seguir os caminhos do autor, tal como Dante guiado
por Virgílio, mas que só pode atingir a plena revelação a partir de uma jornada individual
com a Sabedoria (Beatriz).
Machado, em sua trajetória de escritor, é guiado não apenas por um Virgílio, mas por
uma série de outros mestres de que vai se apropriando e/ou a quem vai deixando pelo
caminho ao revitalizar e desconstruir o pensamento dos antigos e dos modernos, da
tradição e da contemporaneidade, até encontrar uma face própria, a medida de seu talento.
Veremos sua definitiva ascensão ao último círculo literário, o céu do escritor, para de lá
apreciar toda a sua criação poética. Ainda que se tenha a tradição como ponto de partida, há
algo completamente novo e original no texto de Machado de Assis.
Seguindo esse princípio construtivo, Machado não só dialoga com os clássicos e os
grandes mestres da literatura, da filosofia, da história, da religião enfim, de várias áreas de
conhecimento, como também vai dialogar com a própria obra, retomando temas
desenvolvidos na juventude e revitalizando assuntos já expressos em algum outro
momento.
A primeira parte desta Tese se dedicará, portanto, à analise do corpus da obra
machadiana, poemas e comédias em verso, buscando conhecê-lo como objeto de interesse e
de estudo, sem repetir os preconceitos que encontramos nos pareceres do passado e da
contemporaneidade. O interesse principal dessa pesquisa é refazer o percurso literário do
escritor, incluindo alguns aspectos biográficos que incidiram diretamente na sua produção
literária, com ênfase mais no conteúdo de suas produções do que no estudo das técnicas do
verso, exceto quando tiverem uma implicação direta na compreensão do conteúdo.
Com o propósito de buscar o lugar da poesia (e do poético) na obra machadiana,
interesse formulado no título desta Tese, a segunda parte desta pesquisa tem o objetivo de
compreender a poética machadiana, o sentido intrínseco de sua obra, partindo das
produções da juventude e das idéias esboçadas nos seus primeiros escritos, e relacionandoas aos conteúdos das produções da maturidade. A intenção de tal pesquisa nasceu da
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necessidade de olhar a obra de Machado como um todo e não compartimentada em
classificações hierárquicas do que ―deve‖ ou ―não deve‖ ser estudado ou do que ―vale‖ ou
―não vale‖ a pena ser lido.
Seguimos, em certa medida, o conceito que trata das articulações e rearticulações de
estruturas no contexto da obra, partindo da definição de Silviano Santiago, que formulou a
seguinte opinião acerca da obra de Machado de Assis:
Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis
como um todo coerentemente organizado, percebendo que certas
estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob a
forma de estruturas, mais complexas e mais sofisticadas, à medida que
seus textos se sucedem cronologicamente.3
Procuraremos avaliar a obra da juventude de Machado em contraponto aos escritos da
maturidade, a fim de mostrar quanto o escritor foi fiel a si mesmo das primeiras às últimas
manifestações. A produção deste todo não é aleatória, mas funciona, como descreveu
Silviano Santiago, através de desarticulações e rearticulações da forma e da estrutura, o
que não configura uma brusca ruptura estética.
O discurso machadiano é tão bem articulado e tão profundamente dissimulado que
faz jus ao termo ―meias-tintas‖ empregado pelo cronista, e retomado negativamente por
Sílvio Romero, em sua crítica ao estilo do escritor 4. Machado usa meias-tintas para retratar
a sociedade, apropriando-se do recurso impressionista que só pode ser compreendido
unindo o todo às partes. Para entender o procedimento adotado e reconhecer os efeitos da
―pena‖ do escritor, retomamos o trecho de uma de suas crônicas:
Tirei hoje do fundo da gaveta, onde jazia, a minha pena de cronista. A
coitadinha estava com um ar triste, e pareceu-me vê-la articular, por
entre os bicos, uma tímida exploração. (...) O pugilato das idéias é muito
pior que o das ruas; tu és franzina, retrai-te na luta e fecha-te no círculo
dos teus deveres, quando couber a tua vez de escrever crônicas.
3
SANTIAGO, Silviano. ―Retórica da Verossimilhança‖. In: _____. Uma literatura nos trópicos. São Paulo:
Perspectiva, 1978. p. 29.
4
ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro:
Laemmert, 1897.
19
Sê entusiasta para o gênio, cordial para o talento, desdenhosa para a
nulidade, justiceira sempre, tudo com aquelas meias tintas tão
necessárias aos melhores efeitos da pintura.5
Examinando atentamente o quadro delineado na crônica, constatamos que o escritor
parece misturar os recursos da literatura e das artes plásticas para pintar a sociedade. Sem
abusar das cores, vai diluindo as opiniões extremas e assume uma postura ao mesmo tempo
isenta e cética, que anula todas as afirmações. Nada parece categórico, e, sob o efeito de
alguma luz, as cores do quadro vão sendo alteradas, ganham outras nuances, de acordo com
o ângulo de visão do espectador. No dizer machadiano, cada um vai observar conforme a
―sua curta ou longa vista‖. Sobre isso é bom recordarmos um outro trecho de crônica, de A
Semana, em que o escritor diz:
A história é isto. Todos somos fios do tecido que a mão do tecelão vai
compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus vários aspectos
morais e políticos. Assim como os há sólidos e brilhantes, assim também
os há frouxos e desmaiados, não contando a multidão deles que se perde
nas cores de que é feito o fundo do quadro. 6
A obra machadiana nunca nos revela tudo. A leitura suscitará sempre um ato de
indagação, de busca por respostas que o texto sonega, cujas pistas deixa pelo caminho. Por
vezes, a ironia é a única forma de manifestação dentro da complexidade do pensamento
machadiano. O seu desdobrar contínuo, nas camadas de significados do texto, desvenda
sutilmente as máscaras sociais e nos desvela um universo de referências que, ao contrário
de esclarecer, multiplica os enigmas do discurso literário.
Como os tapetes tecidos pelas Parcas da mitologia grega, o escritor assim metaforiza
a história e a História, a um só tempo: os homens são os fios do tecido, no entanto,
dependendo do tecelão, cada quadro será composto de uma maneira, cada aspecto moral e
político, de certa forma, segue a trama do bordado e encontrar-se-á sob o efeito das cores
que compõem o fundo do quadro.
Mas já não se trata da história narrada e ficcional, nem da História propriamente dita.
O quadro machadiano sintetiza passado, presente e futuro através de um recurso
5
ASSIS. Apud: MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. Trad. de Marco Aurélio Matos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p 352.
6
ASSIS. O.C. vol. III. A Semana. 7 de julho de 1895. p. 659
20
prefigurativo, pressupondo que entender o antigo e o atual é forma de prenunciar o futuro,
não no que se refere aos acontecimentos, mas no que sinaliza a reiteração de padrões e
arquétipos.
O mundo é um palco onde mudam os atores, mas a peça é a mesma. Avaliando-se por
este ângulo - ao buscar na religião, nos textos místicos, na História, na Bíblia, enfim, numa
vasta bibliografia, o princípio regulador da vida humana -, Machado incorre no conceito de
―figura‖, que Auerbach constitui a partir do estudo na obra dos antigos, principalmente dos
textos posteriores ao cristianismo, a começar dos primeiros Padres da Igreja.
Considerando os estudos de Auerbach, discordamos da idéia de que as obras
machadianas sejam alegorias do Brasil, ou fábulas criadas a partir das questões locais,
como muitos pesquisadores teimam em afirmar. Acreditamos que Machado realiza uma
prefiguração de eventos que ligam o antigo ao novo, e, também, ao que ainda está por vir,
na linha temporal que contempla toda a história da humanidade.
Para enterdermos um pouco da tradição prefigurativa, partiremos do confrontamento
entre paganismo e cristianismo no interior da obra machadiana, e faremos uma longa
incursão pela literatura, pelo teatro e pelas artes clássicas em busca desse fio da tradição no
qual Machado se insere, desde a Bíblia, passando pela poesia de Virgílio, pelos textos de
Santo Agostinho, Dante, Goethe, Shakespeare, além da obra artística e literária de
Michelangelo, e das peças de Calderón e Gil Vicente. Como o Poeta pode interpretar
profeticamente a História do homem? Quem seria o tecelão de que nos fala a crônica?
Unindo os preceitos clássicos aos cristãos, Davi com Sibila, Machado retoma um
princípio inspirado nos sábios do Renascimento europeu. Só que, pelo viés da ironia, não
pretende extrair dessa fonte nenhuma suma teológica ou lição para gerações futuras.
Apenas constata a repetição contínua do enfadonho teatro da vida, um mundo que ele
procura reinventar através da arte, único espetáculo novo que intenta fornecer aos homens.
Como a teoria de Marcolini esboçada no Dom Casmurro, o texto literário seria a subversão
do libreto de Deus, na verdade, uma ópera cômica, ―divina comédia humana‖, que se opõe
à criação original.
Esse caráter subversivo da obra machadiana lhe renderia o epíteto, criado por
Augusto Meyer, de ―Bruxo do Cosme Velho‖. Por que ―bruxo‖? Decerto porque o escritor
se filia à antiga concepção renascentista do sábio ou do gênio, que no seu quarto de
21
trabalho, entre livros, busca constantemente descobrir a fórmula da vida, o princípio da
existência. Aplicando e unindo conhecimentos pagãos e cristãos, o mago tenta tatear uma
verdade encoberta, procura encontrar um atalho para chegar até Deus, deseja criar para si
um manto de divindade. Se não atinge tais objetivos pelos métodos místicos, tenta obtê-los
pela expansão da Idéia, essência do divino que nele subsiste. Mas o conhecimento
adquirido, como o fruto do Gênesis, gera Bem e Mal, poder criativo e destrutivo, riso e
melancolia.
A melhor síntese do pensamento machadiano, que daria conta desse preceito e, de
certa maneira, explicaria o epíteto que Meyer apenas sugere, consta no poema de Carlos
Drummond de Andrade, ―A um bruxo com amor‖. A sensibilidade do poeta mineiro daria
conta desse Machado essencialmente profético e poético, formulador de enigmas, que
envolvido em sua capa, ―qual novo Ariel‖, desfaz-se no ar sem nos dar mais respostas.
No entanto, continuamente perguntamos: onde reside o poético na obra machadiana?
Qual o lugar da poesia de Machado de Assis? A distância temporal talvez nos ajude a olhar
de forma mais isenta para o dramaturgo e para o poeta, de maneira que, assim como o
escritor fez, deixemos o julgamento para o leitor atento dessas páginas que aqui virão.
22
1- SUBINDO A MONTANHA DAS MUSAS
O primeiro registro que se tem de Machado de Assis no universo literário data de
outubro de 1854, uma publicação no Periódico dos Pobres: na verdade, um modesto poema
intitulado ―Soneto‖ e dedicado a Ilmª Sr. D.P.J.A. Logo nesse começo, podemos registrar
duas impressões: em primeiro plano, a ousadia do rapaz de quinze anos, que já almejava
divulgar suas produções literárias mesmo sem participar de nenhum ambiente acadêmico
propriamente dito; em segundo lugar, a intenção de impressionar uma jovem senhora que
seria o motivo do poema, talvez alguma musa inspiradora que lhe tinha despertado os
sentidos.
Quem pode em um momento descrever
Tantas virtudes de que sois dotada
Que fazem dos viventes ser amada
Que mesmo em vida faz de amor morrer!
O gênio que vos faz enobrecer,
Virtude e graça de que sois c'roada,
Vos fazem do esposo ser amada
(Quanto é doce no mundo tal viver!)
A natureza nessa obra primorosa,
Obra que dentre todas as mais brilha,
Ostenta-se brilhante e majestosa!
Vós sois de vossa mãe a cara filha,
Do esposo feliz a grata esposa,
Todos os dotes tens, ó Petronilha!7
Nos versos finais, Machado revela que a musa se chama Petronilha. Pelo elogio dos
versos, a dama louvada mostra-se um exemplo de filha e esposa, portanto, uma senhora
7
ASSIS, Machado de. Toda poesia de Machado de Assis. (org. Claudio Murilo Leal). Rio de Janeiro; São
Paulo: Editora Record, 2008. p. 601. (A partir desta nota, o livro será identificado pela sigla T.P.)
23
casada que conserva o sobrenome nas iniciais J.A. Indício de amor platônico, vocação
precoce para amar mulheres mais maduras ou simples versos de gratidão? Nota-se no
poema uma espécie de admiração contida e respeitosa, onde se entrevê algum sentimento
forte: ―Que mesmo em vida faz de amor morrer!‖, ao mesmo tempo atenuado pelo respeito
e pelo distanciamento moral: ―O gênio que vos faz enobrecer,/ Virtude e graça de que sois
c'roada.‖. A oscilação de sentimentos do jovem poeta é evidente, pois aparenta estar ao
mesmo tempo envolvido e distanciado do seu foco de atenção, marcando a atitude dúbia de
quem ousa louvar publicamente uma dama, mas oscila entre a aproximação e o afastamento
do seu, hipotético, objeto de desejo.
A biografia da infância e da adolescência do escritor, tão obscura, não nos permite
afirmar com convicção quais teriam sido os primeiros passos do jovem na carreira, no caso,
antes de 1854. Tão somente as produções publicadas nos periódicos da época foram os
testemunhos dos caminhos percorridos por Machado desde sua estréia literária.
O grande prosador de nossa literatura, portanto, nasce poeta. Ainda em tenra idade,
já traçava um objetivo na vida, um plano de futuro que revelava sua maior aspiração:
escrever e, principalmente, ser lido. Encontrou, sobretudo, o terreno ideal para desenvolver
a vocação de escritor, graças ao grande florescimento literário de que gozava a capital do
Império na segunda metade do século XIX.
O Periódico dos Pobres, onde o jovem publicou seu ―Soneto‖, era uma folha de
tiragem trimestral, impressa na tipografia de Antonio Maximiano Morando, situada à Rua
da Assembléia, número 82, segundo os dados que constam no Almanaque Laemmert de
1854.8 É muito comum encontrarmos publicações atuais que, ao tratarem do primeiro
poema de Machado, atribuam erradamente a Paula Brito a edição desse jornal.
De igual modo, o título da publicação de Morando, ao contrário do que muitos
costumam ressaltar, não continha uma intenção depreciativa, nem teria o propósito de se
tornar porta-voz dos menos favorecidos, apesar de ser publicação modesta e barata. Ao que
parece, aproveitava-se da popularidade de jornal homônimo, publicado no Porto, que
gozava de grande prestígio entre os portugueses e que tinha como um dos seus
colaboradores, dentre outros nobres colunistas, o afamado escritor Camilo Castelo Branco.
8
LAEMMERT, Eduardo (org.). Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e Província do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Laemmert, 1854. p. 568.
24
O perfil da publicação de Morando era anunciado logo no subtítulo da folha: ―noticiosa e
recreativa‖.
No mesmo Almanaque Laemmert, tomamos conhecimento das tipografias que
existiam na Corte no ano de 1854: nada mais, nada menos, do que vinte e sete, todas
próximas à região da espinha dorsal da época, a Rua do Ouvidor9. Dentre essas, destacamos
a do próprio Laemmert, a de Maximiano Morando e a de Paula Brito. Por esse ―corredor
literário‖, situado na região central da Corte, Machado andaria desde muito jovem, e o
freqüentaria até o fim da vida.
Não é de se estranhar que o jovem, passado o impacto da primeira investida pública
como escritor, tenha se animado a continuar publicando seus escritos. No ano seguinte, em
1855, aumenta a freqüência das produções no jornal, desta vez na Marmota Fluminense,
de Francisco de Paula Brito. Os poemas dispersos de Machado que datam dessa época,
segundo a compilação de Cláudio Murilo Leal10, perfazem 19 poemas escritos em álbuns
de amigos ou publicados no meio jornalístico. O jovem inicia o ano de 1855 com dois
poemas na Marmota Fluminense, segue publicando nos meses seguintes, e arremata a
participação com chave de ouro no último mês do ano, com um soneto encomiástico ao
Imperador D. Pedro II, estrategicamente no dia ―dois de dezembro‖, aniversário do
monarca, e também, não por coincidência, nome da tipografia de Paula Brito.
Outro ponto que nos chama a atenção é a alternância das assinaturas nos poemas, o
que revela a oscilação do jovem quanto à fixação de um nome artístico marcante. Se no
primeiro poema assinaria ―J. M. M. Assis‖, nos seguintes simplificaria para ―Assis‖,
alternando em seguida para ―J. M. M. d‘ Assis‖, sempre omitindo a preposição ou
apostrofando-a. Pode-se alegar que as abreviaturas eram tendência da época, mas as
constantes mudanças na assinatura autoral denunciam a busca por um sobrenome mais
eufônico ou que soasse mais literário. Por outro lado, também parecia não agradá-lo a
composição do próprio nome, Joaquim Maria, preferindo a redução deste nas iniciais J. M.,
assim como o ―Machado‖, finalizado em ―do‖, não combinava com a preposição ―de‖ que
se seguia. Enfim, vencidas as primeiras resistências, a partir de 1859, já passaria a assinar
com o nome que lhe seria definitivo: Machado de Assis.
9
Idem. p.569.
ASSIS. T.P. Op. cit.
10
25
Nesse início de carreira, o jovem ia facilmente estabelecendo vínculos e começava a
se adaptar ao meio literário, firmando amizade com jovens poetas e convivendo num
ambiente cercado de escritores de renome, além de outros vultos importantes no panorama
das letras nacionais. As dedicatórias dos poemas igualmente revelam as homenagens do
escritor iniciante e o círculo de amizades a que passaria a pertencer.
Francisco Gonçalves Braga, poeta português que chegou ao Brasil em 1854, parece
ter sido um dos primeiros jovens literatos por quem Machado passou a nutrir grande
afinidade. Alguns dos poemas machadianos da Marmota Fluminense, publicados em 1855,
terão alguma relação com o amigo: nas epígrafes, como se nota em ―Ela‖ e ―A saudade‖,
ou nas dedicatórias, como é o caso de ―A palmeira‖ e ―Saudades‖. Neste, motivado pelo
afastamento de Braga em visita à terra natal, Machado assim o saúda:
Recebe, ó Braga, o meu canto,
Que eu cá de longe t‘envio;
São orvalhadas do pranto
Secas flores do estio;
É prova da lealdade
Duma constante amizade,
Recebe, que o pensamento
Tenho em Deus, na pátria, em ti;11
O gosto de Machado pela cultura portuguesa mostrava-se cada vez mais intenso,
tanto motivado pela estirpe materna, quanto pela influência de Braga e de outros poetas
portugueses com quem teria larga convivência.
Numa outra composição no álbum de Braga, Machado saudaria poetas portugueses
e autores clássicos que povoavam o diálogo literário de ambos e seriam a fonte de
inspiração de seus versos. Cita Garret, Elmano Sadino (pseudônimo árcade de Bocage),
Bernardim Ribeiro, Camões, Tasso, Homero e Virgílio. Todos os poetas, salvo o primeiro,
possuem origem ou índole clássica. Machado, no poema, descreveria o gênio poético do
amigo em tom grandiloqüente, coroando-o com os louros apolíneos:
Nessa epopéia, monumento excelso
Que em memória do Vate à pátria ergueste,
Ardente se desliza a etérea chama,
11
Idem. p.606
26
Que de Homero imortal aos sucessores
Na mente ateia o céu com forte sopro!
Euterpe, a branda Euterpe nos teus lábios
Da taça d‘ouro, derramando o néctar
Deu-te a doce com que outr‘ora
Extasiou Virgílio ao mundo inteiro!
―Empunha a lira d‘ouro, e canta altivo
um Tasso em ti se veja – o estro excelso
De Camões imortal, te assoma à mente;
E de verde laurel cingida a fronte
Faz teu nome soar na voz da fama!‖
Foram estas frases com que Apolo
Poeta te fadou quando nasceste,
E em doce gesto te imprimiu na fronte
Um astro de fulgor que sempre brilha!12
Nesse período, o poeta fluminense alternava duas dicções bem marcadas: a
romântica e a clássica; um tom lírico e menos vigoroso, outro épico e eloqüente. Até para
louvar as belezas da paisagem de sua terra, no poema ―O Pão d‘Açúcar‖, percebe-se a
personificação do monte, tal como o episódio do Gigante Adamastor, de Camões: ―Salve,
altivo gigante, mais forte/ Que do tempo o cruel bafejar,/ Que avançado campeia nos
mares,/ Seus rugidos fazendo calar‖13 . A apóstrofe, abundante em seus versos, poderia ser
justificada por uma questão de métrica, quando ocorrida no interior do poema, mas, posta
no título, denuncia a influência lusitana nas escolhas morfológicas.
Machado teria se nutrido ao mesmo tempo, portanto, de feições clássicas,
renascentistas, neoclássicas e românticas em seus poemas. Parecia viver o clima romântico
do tempo, como denuncia a epígrafe de Álvares de Azevedo no poema ―O profeta‖ e de
Teixeira e Sousa em ―O gênio adormecido‖, mas os primeiros acordes da lira, no ano de 55,
tinham uma entonação mais afinada com a musa clássica.
Há ainda outras dedicatórias, direcionadas a pessoas do seu convívio, assim como
vão surgindo trechos de autores brasileiros da época, como os acima citados, ou de poetas
portugueses mais próximos, como Garret, recém-falecido no ano em questão. A nossa
curiosidade se aguça quando nos deparamos com a dedicatória do poema ―A saudade‖, de
título igual ao já citado, embora lhe sendo anterior: ―Ao meu primo, Sr. Henrique José
12
13
Idem. p. 623
Idem. p. 628
27
Moreira‖. Com esse mesmo nome, encontramos o registro de um capitão do 12º Batalhão
de Infantaria da época. Um homônimo, ou de fato o primo de Machado seria um militar de
patente? Trata-se de uma especulação para biógrafos, já que não há indício mais sólido que
ligue um nome ao outro.
Entretanto, o que não se pode negar nos poemas dessa fase - de 55 a 56 - é a
presença do vínculo familiar, seja na dedicatória ao primo, seja nas composições dirigidas à
memória da mãe e da irmã, falecidas em 1849 e 1845, respectivamente.
A familiaridade com o ambiente da Rua do Ouvidor e adjacências nos leva a cogitar
que, de alguma maneira, Machado teve uma freqüência prévia do lugar, pois parecia muito
íntimo e à vontade para ser um recém-chegado que lá se intrometesse e começasse a
publicar poemas. Tudo leva a crer que tenha crescido nesse espaço, talvez levado pelas
mãos do pai, Francisco José de Assis, pintor e dourador, assinante do Almanaque
Laemmert. Se verídico, o fato também explicaria a intimidade de Machado com a língua
francesa, já que o ambiente da Rua do Ouvidor estava impregnado por essa cultura, seja no
linguajar, nos cartazes, nas modas. A rua, enfim, podia ser considerada um pedaço da
França na Corte, e não apenas da França, se considerarmos a índole marcadamente
cosmopolita do lugar.
Como assinante do anuário, certamente o pai de Machado teria circulado por ali.
Talvez Francisco assinasse o catálogo de Laemmert com o propósito de informar-se sobre
possíveis clientes, inteirando-se dos estabelecimentos listados na publicação para oferecer
serviços, além de encontrar ali os principais fornecedores de material para execução do seu
ofício. Alguns biógrafos não descartam um interesse do pintor pela literatura, embora o fato
de ser assinante não o vinculasse a um gosto literário. O conteúdo eclético do Almanaque,
de utilidade pública, caracterizava a publicação como uma espécie de ―listão‖ de produtos e
serviços, como os da atualidade; portanto, atraía uma gama de leitores com os mais
diferentes gostos.
Levando-se em consideração os cinco anos de intervalo entre a morte da mãe de
Machado, em 1849, e as segundas núpcias de Francisco, em 1854, - embora alguns
levantem a hipótese de que ele poderia ter vivido maritalmente com Inês antes da
oficialização do casamento –, o pai teria sozinho de educar o filho, e nada mais natural do
que levá-lo consigo aos lugares onde desempenhava o seu ofício. No anuário de Laemmert
28
havia uma lista de pintores e douradores que ofereciam serviços, voltados principalmente
para a pintura de tabuletas ou restauração e douração de imagens de santos, o que indicaria
a provável clientela de Francisco: os estabelecimentos comerciais e as igrejas.
É uma hipótese bem plausível a de que o jovem houvesse freqüentado esses lugares,
tendo em vista a familiaridade com que se estabeleceu no espaço literário, além da
influência que nele exerceram os costumes, a religião e o ambiente clerical. São inúmeros
os poemas, os contos, romances, crônicas e outros textos em que Machado retrata os
interiores das igrejas, seus rituais e, principalmente, o seu encantamento pelos sinos, como
afirma numa crônica de 1892: ―Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas
igrejas‖14.
Por outro lado, no extremo oposto, seria levado também ao ambiente mais profano e
materialista da Corte: a Rua do Ouvidor, plena de burburinho e de estabelecimentos
comerciais. Seguindo por essas ambíguas vias, teria sido criado entre santos e tabuletas,
entre o espiritual e o material, entre os sinos e os pregões, entre o latim e o francês.
Admitindo-se tal reconstrução biográfica, podemos dizer que Machado soube tirar
proveito do ensinamento de ambos os ambientes, já que, com pouca idade, demonstraria
conhecimento tanto da cultura e da língua francesa, quanto da cultura clássica. Apesar de
não haver freqüentado regularmente uma escola, o seu aprendizado, segundo relatam as
biografias, se completaria com lições de um padre-mestre – referindo-se ao pároco da
Igreja da Quinta, no bairro onde residia –, havendo ainda relatos de que teria aprendido
francês com o ―forneiro‖ de uma padaria francesa, ou seja, num ambiente comercial.
Quem sabe, atando as duas pontas da experiência da infância, pelos próprios
conhecimentos travados, não teria encontrado o caminho para desenvolver a vocação de
escritor, entre a galhofa das ruas agitadas da região central da Corte e a melancolia dos
sinos das catedrais?
O primeiro emprego como aprendiz de tipógrafo pode ter sido obtido mediante a
iniciativa do pai, que possivelmente desejaria ver o filho ocupando um ofício que lhe
garantisse a sobrevivência e que pudesse aumentar a renda da família. A tarefa, no entanto,
14
ASSIS. Obra Completa. Vol.3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. p. 539 (a partir desta nota, o livro será
citado com a sigla O.C.)
29
não se adequava ao perfil do rapaz, já que ele preferia ler o conteúdo das publicações a ter
de imprimi-lo no papel.
Fugindo à vocação do pai, Machadinho teria optado pela atividade intelectual,
talvez à revelia da família, que não poderia vislumbrar futuro num rapaz pobre que
desejava desenvolver uma singular aptidão: ser escritor. Não seria o único, dentro do
contexto familiar dos poetas da nossa literatura, a contrariar os auspícios paternos em favor
do sonho literário: assim aconteceria com Casimiro, Drummond, Bandeira e tantos outros
escritores antes ou depois de Machado, e que negaram a vocação paterna, trocando o
legado familiar, os ―bens e o sangue‖, pela arte e pelo encanto das letras.
Segundo estudos de Ubiratan Machado, a morte de Francisco José de Assis teria
ocorrido em 1864, quando Machado tinha vinte e cinco anos15, portanto, bem após a data
fixada pelos biógrafos, que a delimitaram no começo da adolescência do escritor. Essa
informação também desmentiria a hipótese de o jovem ter abandonado Maria Inês, a
madrasta, após a morte do pai, pois, no período em questão, já não morava mais com a
família e, ao que tudo indica, garantia a própria subsistência através de um incansável
trabalho, como revisor de provas, poeta, crítico, autor teatral, tradutor, dentre outras
atividades literárias e contribuições nos jornais. Aliás, a estréia de Machado no mundo das
letras, em 1854, coincide com o ano em que Francisco se casa com Maria Inês, cerca de
vinte anos mais nova do que ele. Teria sido esse o motivo principal da busca do jovem pela
emancipação financeira?
Não se sabe muito acerca dessa convivência entre madrasta e enteado, mas o fato é
que Machado, muito afetuoso e apegado aos vínculos familiares e de amizade, jamais fez
qualquer referência a Maria Inês. Ao contrário, morrendo Francisco, o escritor
simbolicamente colocaria mãe e pai unidos, na dedicatória de Crisálidas, seu primeiro livro
de poesia, como uma forma de eternizá-los lado a lado.
Em relação ao pai, especificamente, a lembrança e a dedicatória na obra do autor só
aconteceriam após a morte de Francisco José de Assis. Enquanto viveu, o pai nunca surgiu
em sua produção, seja como temática ou, ainda, em dedicatórias de poemas. Tampouco a
palavra ―pai‖ entraria no vocabulário de seus versos, a não ser em referência a Deus.
15
MACHADO, Ubiratan. Dicionário Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL, 2008. p. 28
30
Traçado o percurso dos primeiros passos de Machado de Assis, convém revelar o
conteúdo das produções dispersas que vão da estréia, em 1854, à publicação de Crisálidas,
em 1864. As temáticas seguidas pelo jovem poeta estão centradas na relação afetiva, seja
amorosa, familiar ou de amizade, o que se revela muito natural nas produções de um poeta
adolescente. Não podemos esquecer de que ter 15 anos naquele tempo não correspondia
sequer à juventude, mas ainda aos últimos suspiros da infância, principalmente para o sexo
masculino.
1.1- Nos enlevos de Calíope
―A palmeira‖ foi o segundo poema do escritor, e o primeiro a ser publicado na
Marmota Fluminense, de Paula Brito. A confissão amorosa na composição é revelada num
monólogo direcionado à palmeira, erguida no cimo do monte: ―Como é linda e verdejante/
Esta palmeira gigante/ Que se eleva sobre o monte!‖. Seria, portanto, a primeira subida do
poeta ao clássico refúgio das musas - a montanha - lugar de inspiração e isolamento. A
árvore, alta e inalcançável, ouve as queixas do poeta e guarda os seus segredos: ―Ó
palmeira, eu te saúdo,/ Ó tronco valente e mudo,/ Da natureza expressão!/ Aqui te venho
ofertar/ Triste canto, que soltar/ Vai meu triste coração.‖ 16
No poema ―Ela‖, publicado seis dias depois do precedente, em 12 de janeiro de
1855, o foco principal é, novamente, o louvor a uma dama não nomeada. Entretanto, ao
descrevê-la, o jovem destaca seu gosto por ouvi-la cantar: ―Com sua boca mimosa/ Solta
16
ASSIS, Machado de. ―A palmeira‖. In: SOUSA, J. Galante de. (org). Machado de Assis: Poesia e Prosa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 17- 19.
31
voz harmoniosa/ Que inspira ardente paixão,/ Dos lábios de Querubim/ Eu quisera ouvir
um – sim – /Pr‘a alívio do coração!‖17
Talvez aqui haja um prenúncio do enlevo musical que acompanharia Machado por
toda a vida, tão fortemente marcada pelos espetáculos dramáticos e líricos da juventude e,
principalmente, pelas cantoras e atrizes, suas primeiras musas, que alimentaram as ilusões
amorosas do rapaz. Esses espetáculos casavam tão bem a arte, a beleza feminina e a
música, que desde cedo arrebataram o coração do neófito bardo.
Em 15 de julho do mesmo ano, Machadinho revelaria mais patentemente o gosto
pelas divas do Teatro Lírico em outro poema publicado no jornal de Paula Brito. Mesmo
omitindo o nome da cantora, o poeta manifesta-se mais ousado ao declarar que a
composição ―Teu canto‖ destinava-se ―a uma italiana‖.
Tu és tão sublime
Qual rosa entre as flores
De odores
Suaves;
Teu canto é sonoro
Que excede ao encanto
Do canto
Das aves.
Eu sinto nest‘alma,
Num meigo transporte,
Meu forte
Dulçor;
Se soltas teu canto
Que o peito me abala,
Que fala
De amor.
Se soltas as vozes
Que podem à calma,
Minh‘alma
Volver;
Minh‘alma se enleva
Num gozo expansivo
De vivo
Prazer.
Donzela, esta vida,
Se eu tanto pudera,
17
Idem. p. 22.
32
Quisera
Te dar;
Se um beijo eu pudesse
Ardente e fugace
Na face
Pousar.
A epígrafe do texto - ―É sempre nos teus cantos sonorosos/ Que eu bebo inspiração‖
- refere-se a uma outra composição que seria publicada alguns dias depois, no mesmo
veículo, em 24 de julho. Os versos de ―Meu anjo‖ alternam-se em decassílabos e
hexassílabos, com a franca intenção de variar ritmicamente o canto de amor dirigido à
musa:
És um anjo d‘amor – um livro d‘ouro,
Onde leio meu fado
És estrela brilhante do horizonte
Do bardo enamorado
Foste tu que me deste a doce lira
Onde amores descanto
Foste tu que inspiraste ao pobre vate
D‘amor festivo canto;
É sempre nos teus cantos sonoroso
Que eu bebo inspiração;
Sem procurarmos virtuosismo no bardo de pouca idade, o que podemos inferir da
leitura de seus poemas é que nessas composições há uma intenção clara de variação
rítmica, que revela a índole do poeta de testar as formas do verso, apurar a métrica e
aprimorar a linguagem, ainda que não atingisse plenamente o objetivo e mantivesse a
escolha por rimas banais, em ―ão‖, ―ar‖, ―or‖.
Um outro dado importante para compreendermos a trajetória de Machado no
universo literário e cultural da Corte é a sua opção por uma cantora italiana, o que
comprova que o rapaz de pouca idade já freqüentava os espetáculos líricos, embora não
saibamos exatamente de que forma obtinha acesso a tais eventos. Nada mais natural que
estivesse fascinado pelas beldades que ocupavam o centro das atenções na época, e que
observasse de perto o grande assédio que recebiam do público, principalmente dos homens
influentes e endinheirados que as cobriam de jóias, flores e presentes. Assim, Machado se
animava a galanteá-las com versos através dos jornais, como única manifestação de apreço
de um poeta sem posses.
33
O interesse do vate pelas cantoras líricas prosseguiria em franca ascensão, e, em
1856, não esconderia mais a admiração em metáforas, palavras vagas, dissimuladas ou sem
clara indicação da destinatária dos versos. O título da composição traria nome e sobrenome
da musa inspiradora: ―À madame Arsène Charton Demeur‖.
No poema, o jovem
implorava para que a cantora não se ausentasse do Brasil.
Oh sol que o céu das artes ilumina,
É cedo o ocaso teu na nossa terra!
Um dia mais, um dia mais de enlevos:
Fica, Charton – contigo a luz gozamos;
Sem ti – sombria treva a cena envolve!
Nas estrofes seguintes, mostra a sua ambição literária ao desejar para si o gênio de
Musset, para louvar Arsène com a dignidade merecida e ter o seu nome, junto ao dela,
levado à posteridade:
Quem me dera, Charton, sentir na mente,
De Alfred de Musset, o gênio em chamas
De imenso ardor, para com voz altiva
Levantar-te um padrão, mais duradouro
Que o mármor ou que o bronze, que lembrasse
Junto do nome teu, meu nome obscuro!
Mas não posso obter do austero fado
Glória maior que admirar-te o gênio
Num pobre canto, que o teu canto inspira!
Musa gentil dos versos que ora teço,
(...)
Recorda o canto meu, - recorda o vate
Que mais que todos te admira o canto,
Talento e garbo que ostentas na cena!18
Apesar de declarar sua obscuridade, o ―eu-lírico‖ almeja que a musa recorde o seu
canto, mesmo em outras terras. Se a dama não podia atribuir qualidade à composição, ao
menos a aceitasse como lembrança do mais entusiasta dos seus admiradores. O poeta ainda
arremata os versos com a exaltação da Charton, frente a uma outra cantora da época, com a
qual rivalizava: a Stoltz: ―Grande é Stoltz, mas Stoltzs há muitas;/ Charton só uma que no
mundo impera!‖.
18
ASSIS.T.P. p. 631.
34
O gosto pela diva revela-se também na produção de Gonçalves Braga, que dedicalhe uma série de seis poemas no livro Tentativas poéticas, culminando na composição de
despedida, com data de 16 de março de 1856. Há indicações no livro de que muitos desses
poemas foram escritos no álbum de Charton, o que demonstra certa proximidade entre ela e
o jovem poeta. É provável que Machado e Braga freqüentassem os mesmos espetáculos, os
mesmos salões, e pertencessem à fiel falange dos ―chartonistas‖. Talvez, influenciado pelo
amigo, Machado tenha-se animado a oferecer o poema à dama, por ocasião de sua
despedida dos palcos brasileiros.
O sucesso que as cantoras líricas provocavam naquele tempo também foi tema de
umas das crônicas de José de Alencar, de 17 de setembro de 1854. Em Ao correr da pena,
o escritor fala do assédio a essas damas e de como muitos senhores chegavam a perder a
cabeça, só pelo enleio de presenteá-las. Para exemplificar tal apreço, relata o episódio de
um dos admiradores da Charton, surpreendido pelo cancelamento do espetáculo lírico por
causa de uma indisposição da estrela principal.
Um velho diletante do meu conhecimento, ainda do tempo do magister
dixit, e para quem a palavra da autoridade é um evangelho, teve a infeliz
lembrança de justamente nesta noite encomendar um magnífico buquê
para oferecer à Charton no fim da representação. Apenas se declarou o
relâche par indisposition, o homem perdeu a cabeça, e, o que foi pior,
com os apertos da saída perdeu igualmente a bengala, e lá deixou ficar,
com os ares de novo um chapéu comprado pela Páscoa.19
Em A mão e a luva, há uma descrição detalhada do que eram as falanges de
admiradores, que, segundo afirma no relato, realizavam uma verdadeira ―batalha campal‖
em defesa de suas musas, no caso, cantoras líricas. O episódio faz parte de um dos
capítulos do romance de Machado e é narrado com dicção clássica, parodiando cenas da
Ilíada. O trecho, além de mostrar a rivalidade entre dois ―partidos‖ - o dos seguidores de
Mlle. Lagrua e o dos admiradores de Mlle. Charton –, aponta também para a possibilidade
de Machado ter sido testemunha ocular desses acontecimentos.
A Corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os
que transpuseram a linha dos cinqüenta divertia-se mais do que hoje,
19
ALENCAR, José. Teatro completo. Vol. 1. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, 1977. p. 47.
35
eterno reparo dos que já não dão à vida toda a flor dos seus primeiros
anos. Para os varões maduros, nunca a mocidade folga como no tempo
deles, o que é natural dizer, porque cada homem vê as coisas com os
olhos da sua idade. Os recreios da juventude não são decerto igualmente
nobres, nem igualmente frívolos, em todos os tempos; mas a culpa ou o
merecimento não é dela, — a pobre juventude, — é sim do tempo que lhe
cai em sorte. A Corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do cólera -;
bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro. O Cassino abria os
seus salões, como os abria o Clube, como os abria o Congresso, todos três
fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homéricos do teatro
lírico, a quadra memorável daquelas lutas e rivalidades renovadas em
cada semestre, talvez por um excesso de ardor e entusiasmo, que o tempo
diminuiu, ou transferiu, — Deus lhe perdoe, — a coisas de menor tomo.
Quem se não lembra, — ou quem não ouviu falar das batalhas feridas
naquela clássica platéia do Campo da Aclamação, entre a legião
casalônica e a falange chartônica, mas sobretudo entre esta e o regimento
lagruísta? Eram batalhas campais, com tropas frescas, — e maduras
também, — apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até de
estalinhos. Uma noite a ação travou-se entre o campo lagruísta e o campo
chartonista, com tal violência, que parecia uma página da Ilíada. Desta
vez, a Vênus da situação saiu ferida do combate; um estalo rebentara no
rosto da Charton. O furor, o delírio, a confusão foram indescritíveis; o
aplauso e a pateada deram-se as mãos, — e os pés. A peleja passou aos
jornais. (...)
Os que escaparam daquelas guerras de alecrim e manjerona hão de sentir
hoje, após dezoito anos, que despenderam excessivo entusiasmo em
coisas que pediam repouso de espírito e lição de gosto.20
No contraponto entre os hábitos culturais do tempo de juventude e os do momento
da escrita, constata-se a semelhança entre o contexto narrado no romance e a realidade
vivida pelo escritor em sua época de rapaz. Mistura-se ao relato do narrador a nostalgia do
passado, frente às mudanças de comportamento dos jovens do seu presente. No entanto, o
olhar não é de condenação, porém de constatação: ―... mas a culpa ou o merecimento não é
dela, — a pobre juventude, — é sim do tempo que lhe cai em sorte.‖ O jovem Machado
tirara, portanto, o bilhete premiado, por ter nascido em época tão fecunda de nossas letras e
por encontrar lugar e oportunidade ideais para o pleno desenvolvimento de seu gênio.
Mas a maneira isenta de o escritor tratar a história, principalmente a dos dias idos e
vividos, fez com que pusesse na fala do narrador uma crítica ao passado, mesmo após
recordá-lo com tanto gosto. Declara, com consciência de escritor maduro, que houve
―excessivo entusiasmo‖. Assim resumia os arroubos juvenis, lembrando-se, certamente, das
20
ASSIS, Machado de. A mão e a luva. In:____. O.C. Vol 1. p. 204-205.
36
ações do passado, dos poemas que dedicou com veemência e dos arrebatamentos de
outrora, motivado pelas melodiosas e apaixonantes vozes das musas de seu tempo.
À madame de La Grange dedicaria um poema em 1859, louvando o talento da
cantora com belos versos: ―Talhou-te larga a púrpura do gênio/ A mão severa e pura dos
destinos,/ Imprimiu-te na voz a harpa de um século/ E a alma te encarnou em sons
divinos.‖
Em crônicas posteriores, da década de 70, não negaria ter carregado nos ombros a
célebre Augusta Candiani, como um de seus mais fervorosos admiradores. Certamente
essas foram cenas saudosas que seriam relembradas por Machado, da mesma forma que as
cenas descritas no romance acerca da ―guerra‖ entre lagruístas e chartonistas.
Escreveria algumas dedicatórias particulares, como o poema ―Um nome‖ no álbum
de Luísa Amat, outra cantora lírica, esposa do empresário e fundador da Imperial Academia
de Música, José Amat. Estava o rapaz infiltrado nesse ambiente, passeando pelos salões,
indo aos bailes e saraus onde desfilavam as mais aclamadas atrizes e cantoras da época. A
presença de Machado, desde cedo, no meio lírico e teatral, demarcaria a influência desses
dois ambientes em sua obra.
Ainda nos poemas dispersos, encontramos composições dedicadas a atrizes, como
D. Gabriela da Cunha, amor cultivado em prosa e verso, seja com elogios nos jornais da
época, seja através de poemas fervorosos. A admiração seria alimentada pela diva com
declamações e interpretações especiais que ela realizaria de alguns dos poemas do jovem
Machadinho, além de atuar, posteriormente, como protagonista de ―O caminho da porta‖,
peça machadiana.
Em 1859, o escritor dedicaria à musa do teatro o poema ―A D. Gabriela da Cunha‖,
em que não pouparia elogios à atriz. Assim conclui o texto: ―Faz uma flor de cada espinho
acerbo,/ Tira de cada treva um arrebol;/ Para fazê-la – abre teus lábios, verbo!/ Para tirá-la
– abre os seus raios, sol!‖21.
Em 1861, ofereceria ainda um outro poema à atriz, e à filha desta: Ludovina
Moutinho. A insistência do poeta em ofertar composições a Gabriela da Cunha e concederlhe tantos elogios através dos jornais indicaria, segundo biógrafos, uma paixão recolhida
que culminaria na composição do poema ―Versos a Corina‖, sendo esta um pseudônimo
21
ASSIS.T.P. p. 694.
37
dado pelo autor à célebre artista. Nada comprova a concretização das relações entre
Gabriela e Machado, mas fica muito clara a admiração do poeta, no poema de 1861:
Enfim! Sobre esta cena, a tua e nossa glória,
Onde a musa eloqüente e severa da história
Toma-te a mão, e te abre à fascinada vista
O campo do futuro, ó grande e nobre artista,
Vejo-te, enfim! Ermo, calado e nu,
Esperava a madona e a madona eras tu.
Mercê do mar sereno e do lenho veloz,
A mesma, a mesma sempre, eis-te enfim entre nós!
Eras daqui. Que importa uma ausência? O teu nome
A ausência não descora, o ouvido não consome,
Da lembrança e da luz que ficaram de ti,
Andasses longe, embora, ele vivia aqui.
O que é o mar? Barreira inútil. A lembrança
Tem asas e a transpõe. E depois a esperança
De ver no mesmo céu a mesma estrela dantes
Punha no ânimo a paz. Aos louros verdejantes
De que ornavas a fronte outros inda juntastes.
Bem-vinda sejas tu, tu que por fim voltastes
No brilho e no vigor dos teus dias melhores
Luzente de mais luz, c‘roada de mais flores
E que vens, assentando outras datas gloriosas,
Dar ao palco viúvo a melhor das esposas.
Apesar de não dispormos de dados mais concretos que associem o nome de
Gabriela ao de Corina, há uma correspondência entre o período em que Machado compõe
elogios e versos à artista e a época em que publica as primeiras estrofes do poema das
Crisálidas. Não se restringiria aos versos de admiração à diva: ainda escreveria, em 1862,
um drama intitulado ―Gabriela‖, cujos originais se perderam.
Nas páginas finais do seu primeiro livro de poesia, o autor colocaria uma nota
instigante sobre o poema ―O dilúvio‖. Machado destaca um verso dessa composição- ―E
ao som dos nossos cânticos‖- e faz a seguinte afirmação: ―Estes versos são postos na boca
de uma hebréia. Foram recitados no Ateneu Dramático pela eminente artista D. Gabriela da
Cunha, por ocasião da exibição de um quadro do cenógrafo João Caetano, representando o
dilúvio universal‖.
Na verdade, a hebréia a que se refere Machado é a Sulamita, noiva de Salomão e
personagem dos Cânticos bíblicos. O livro é a exaltação da primeira noite do rei com sua
38
esposa. Através de metáforas, a relação amorosa é descrita em detalhes neste livro bíblico,
interpretado posteriormente como a relação entre Cristo e a Igreja.
Machado teria, portanto, aproveitado a oportunidade para fazer Gabriela da Cunha
declamar o seu poema, colocando-a em situação semelhante a Sulamita, cantando os
poemas de amor compostos pela lira de Salomão. Talvez quisesse fazer dela uma nova
―hebréia‖, papel encenado pela atriz na peça ―O dilúvio universal‖, lendo os versos de
amor de seu ―esposo‖, disfarçados em canto místico.
Um estudo aprofundado das metáforas eróticas do poema ―O dilúvio‖, declamado
por Gabriela da Cunha, foi efetuado em nossa pesquisa anterior, na dissertação de
mestrado22. Atentando para o caráter aparentemente religioso do poema, embora construído
com intenção oposta, ―o dilúvio‖ machadiano é um desaguar de metáforas amorosas que,
apropriadamente, declamadas pela atriz, realizariam uma fusão entre a artista e a esposa de
Salomão, a hebréia. Concretizaria assim os auspícios dos versos aqui transcritos: ―Dar ao
palco viúvo a melhor das esposas‖.
Em 1866, data da partida definitiva da artista para Portugal, Machado inseriria mais
uma vez uma referência a Corina na peça Os deuses de casaca. O personagem Apolo,
figura divina associada aos poetas, sente atração pela mulher do pai, Júpiter, cultivando,
assim, um amor proibido. Cupido tenta convencê-lo a abdicar da divindade para se tornar
humano e unir-se a Juno, que havia decidido ser uma mortal. Assim Cupido a descreve: ―É
bela ainda como outrora,/ Bela, e altiva, e grave, e augusta, e senhora. (...) Oh, vaidade!
Humana embora, Juno é ainda divina.‖ Apolo pergunta então qual o nome que teria na terra
e Cupido responde: ―Um [nome] mais belo: Corina!‖.
Inegavelmente, o poeta nutriu por Gabriela Augusta da Cunha um forte sentimento,
denunciado nos versos da peça ao referir-se a Juno como ―augusta e senhora‖, objeto
proibido no campo dos desejos do jovem Apolo, e tão ―augusta‖ quanto aquela. Assim
como o deus grego Apolo, o poeta fluminense estaria arriscando sua ―divindade‖, sua
vocação poética, para seguir o amor de uma dama mais velha e comprometida?
22
AMPARO, Flávia Vieira da S. do. Um verme em botão de flor. Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira, UFRJ, 2004.
39
No prefácio, por sua vez, o escritor atribuiria à ausência das damas o principal
motivo de fracasso da obra: ―Damas, sem vosso amparo, a obra se acabou!‖ 23 A partir de
então, esqueceria Corina/Gabriela, e buscaria um amor mais realizável, que pudesse ser
correspondido, logo, sem os sobressaltos dos amores proibidos.
1.2 - A primeira ponta da vida
Há alguns parágrafos, destacamos a presença dos poetas clássicos na dicção
machadiana, principalmente por influência de Francisco Braga. Em 1856, percebe-se uma
metamorfose nos versos de Machado, provavelmente sob o influxo de novas leituras e de
autores que entravam no cardápio do poeta aprendiz. O jovem tendia a efetuar leituras de
várias fontes, e seu conhecimento se ampliava para além do campo português, com a
inclusão de autores franceses como Victor Hugo ou espanhóis como Manuel José Quintana.
Neste período também se deixaria marcar pelo sentimento religioso e patriótico de um João
de Lemos, em poemas como ―Consummatum est!‖, e pela religiosidade afetiva e
melancólica de um Cowper, no lamento pela ausência da mãe.
A partir de então, a face romântica apareceria com freqüência bem maior e chegaria
a dominar os versos machadianos. Apesar disso, ainda se perceberia uma alternância entre
o sacro dos hinos religiosos, do sentimento patriótico e da poesia profética, e os temas
amorosos, próprios do estilo romântico, portanto mais profanos, de poemas como
―Cognac‖, inspirado na lírica alvaresiana, principalmente nas ―Idéias íntimas‖.
23
ASSIS. ―Os deuses de casaca‖. In: _____. Machado de Assis: teatro. vol 2. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 2004. p.120
40
Desse período, seguindo a ascensão do bardo à montanha poética, encontramos
―Minha musa‖, mesmo título de uma das composições de Álvares, que define um pouco do
que seria o escritor em 1856, tomado pelos sentimentos místicos e religiosos e, ao mesmo
tempo, pelos amorosos e melancólicos. Dependia, talvez, de como a musa se apresentasse
ao poeta, se na forma de saudade da mãe e da irmã, ou se nas vaporosas imagens femininas.
MINHA MUSA
A Musa que inspira meus tímidos cantos
É doce é risonha, se amor lhe sorri;
É grave e saudosa, se brotam-lhe os prantos,
Saudades carpindo, que sinto por ti.
A Musa que inspira-me os versos nascidos
De mágoas que sinto no peito a pungir,
Sufoca-me os tristes e longos gemidos,
Que as dores que oculto me fazem trair.
A Musa que inspira-me os cantos de prece,
Que nascem-me d‘alma, que envio ao Senhor,
Desperta-me a crença, que à vezes dormece
Ao último arranco de espr‘ranças de amor.
A Musa que o ramo das glórias enlaça,
Da terra gigante – meu berço infantil,
De afetos um nome na idéia me traça,
Que o eco no peito repete: - Brasil!
A Musa que inspira meus cantos é livre,
Detesta os preceitos de vil opressão,
O ardor, a coragem do herói lá no Tibre,
Na lira engrandece, dizendo – Catão!
O aroma da espr‘ança, que n‘alma recende,
É ela que aspira, no cálix da flor;
É ela que o estro na fronte me acende,
A Musa que inspira meus cantos de amor!24
O poeta varia de tema de acordo com o gosto da ―Musa‖. Assim, cada estrofe
delimita uma temática. Enquanto as duas primeiras estrofes dividem-se entre o riso e a
melancolia dos amores perdidos e dos revelados, a terceira trata da religiosidade,
mostrando que a musa é quem alimenta a crença religiosa, não deixando o eu-lírico
24
ASSIS. T.P. 634.
41
esmorecer mesmo diante dos reveses do cotidiano. Na quarta estrofe, a face patriótica é
manifesta através da exaltação da terra que lhe serve de berço, enquanto as duas últimas
exaltam a liberdade do homem e a inspiração criadora, demarcando a democracia política
unida à liberdade de expressão literária. De fato, assim como o poema vai-nos revelando as
nuances da musa, inteiramo-nos das temáticas mais trabalhadas nos primeiros poemas de
Machado de Assis.
De 55 a 56, o escritor teria diversos poemas publicados na Marmota Fluminense, de
Paula Brito. Pelo espaço concedido ao jovem autor, podemos dizer que o editor foi, sem
dúvida, o primeiro a reconhecer o talento de Machado, ainda em formação. Ele permitiu até
mesmo que, sob o pseudônimo de As., o aprendiz trouxesse a público seus primeiros
esboços críticos acerca da literatura em uma série de três artigos intitulados: ―Idéias vagas‖,
onde falava sobre a poesia, o teatro e a religião, respectivamente em junho, julho e
setembro de 1856.25
Através desses textos, conhecemos as concepções do novel escritor acerca da
poesia, como obra da inspiração do Criador. A poesia para o Machado de então era
inspiração divina, o sopro de Deus interpretado pela genialidade do poeta. O articulista
esboçava a sua concepção literária: uma pincelada clássica na imaginação romântica.
Começa o texto falando da Grécia, de Homero, dos louros que coroavam os poetas de
outrora e de como o valor da lírica havia declinado no decorrer dos séculos. Enfatiza os
sofrimentos de Camões e fala de sua rejeição no solo pátrio. Termina por definir o que seria
a missão do poeta e como esse papel era incompreendido em seu tempo:
Ele tem uma missão a cumprir nesse mundo – uma missão santa e nobre,
porque é dada por Deus! – É um pregador incansável – um tradutor fiel
das idéias do Onipotente.
O mundo, porém, não compreende aquela alma tão grande como o
universo – tão divina como a mais bela porção do espírito de Deus.
A visão religiosa do fazer poético machadiano obedecia, portanto, a um conceito
milenar. Para Machado, o poeta, outrora coroado de louros na Grécia, tornar-se-ia um
deslocado no ambiente literário daquele momento. A sina do poeta seria sofrer, apesar de
25
MASSA, Jean-Michel. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC; Instituto Nacional do Livro,
1965. p. 29 a 35.
42
tradutor das palavras de Deus: aquele século faria do intérprete divino um renegado – visão
que se coadunava com o pensamento romântico da segunda geração de poetas.
No último parágrafo do texto, Machado se dirige aos leitores para pedir perdão por
sua incapacidade. Já aqui se estabelece uma relação do escritor com seu público, recurso
que utilizaria por toda a vida. Encerra o texto agradecendo aqueles que lhe abriram espaço
no jornal para expor suas idéias, ainda que ―vagas‖, como as chamaria: ―Aqui terminam as
minhas idéias sobre a poesia, e sobre os poetas. – Perdoai-me, leitores, a minha fraca
linguagem; é de um jovem que estréia nas letras, e que pede proteção e benevolência.
Ainda existem alguns Mecenas piedosos: animai o escritor.‖26 Certamente, o ―Mecenas‖
era Paula Brito, apoiando as iniciativas do jovem Machado. Seria essa a primeira investida
do autor no campo da crítica, com apenas 16 anos.
No artigo seguinte, tratando do teatro, o aprendiz de crítico faria oposição entre
duas grandes nações: França e Inglaterra. Colocaria a primeira como pátria da criação, da
inspiração e da cultura, enquanto condenaria os avanços científicos ingleses, segundo ele
apenas concentrados nas questões materiais do progresso. O tom profético do poeta exalta o
espírito inventivo francês como obra espiritual e divina, declarando: ―Viva Deus!‖. Por
outro lado, usando a dicção bíblica, imitando o discurso de Cristo contra Jerusalém e do
apóstolo João contra a Babilônia, dirige-se, nestes termos, à pátria da Revolução Industrial:
Inglaterra! Inglaterra! Rainha da Indústria! – centro de toda revolução
material! – Eis-te aí desmentindo a distância [invenção das locomotivas]
com teus dourados pensamentos de civilização! Eis-te aí excêntrica e
vaidosa, falando em progressos, mas ocultando debaixo dessas idéias
progressistas os projetos de uma desmedida ambição! Culpado!... Evitai
que no meio de teus banquetes com o último rei da Babilônia alguma mão
invisível trace a tua sentença de morte!
No meio, pois, destes desvarios, de progressos e civilização, é o teatro
olhado como o verdadeiro lugar de distração e ensino; - o verdadeiro meio
de civilizar a sociedade e os povos.27
O episódio do banquete citado no trecho é narrado no livro bíblico de Daniel, onde
o rei de Babilônia, Belsazar, retira os instrumentos sagrados, saqueados pelo pai em
Jerusalém, para serem usados no seu festim. Subitamente uma mão invisível, de que só se
26
27
ASSIS, Machado de. Idéias vagas. Apud: MASSA. Dispersos de Machado de Assis. Op. cit. p. 31.
Idem. p. 31-32
43
avistam os dedos, surge e escreve sentenças na parede contra o reinado de Belsazar. Diante
do pavor do rei, ninguém consegue entender o que ali foi escrito, apenas o profeta Daniel é
capaz de interpretar os dizeres.28
Ainda aqui, a temática é romântica se pensarmos no ―The Vision of Belshazzar‖, de
Byron. No entanto, enquanto no poema do bardo inglês há certa identificação com o festim
de Belsazar, em contraponto com as mãos que vêm ―estragar o prazer‖ da festa, Machado
protesta contra os ingleses e apóia a punição do rei babilônico. Um protesto contra Byron e
sua nação? Talvez não se identificasse com a face maldita dos românticos, embora adotasse
outras vertentes em sua lírica, assim como exaltaria a poesia e o gênio de Álvares de
Azevedo por toda vida, embora lhe rejeitasse a prosa com veemência.
As referências de Machado na sua primeira crítica literária chamam-nos a atenção,
pois expõem alguns pontos interessantes: primeiramente a formação religiosa do rapaz,
que, além de entender a poesia como inspiração divina, assume a posição de profeta para
condenar o progresso inglês, o que denota uma tendência conservadora. Outro ponto é a
afirmação de que a arte, no caso, o teatro, seria um meio civilizador, hipótese que
sustentaria posteriormente nas suas ―Idéias sobre o teatro‖, de 1859.
Encontraremos essa mesma visão - do papel da arte na educação das massas - em
alguns escritos da década de 60, e também nos pareceres do Conservatório Dramático,
prova de que o escritor não a abandonaria tão cedo, se é que a deixou algum dia. Talvez a
arte assumisse definitivamente o papel de redentora do homem, como a única sobrevivente
do ―naufrágio das ilusões‖.
No terceiro artigo das ―Idéias vagas‖, temos, enfim, um retrato, senão do crítico, do
pregador por excelência. Discorrendo sobre grandes oradores como Cícero e Monte
Alverne, Machado traça um perfil da religião através do conceito de bem e mal, evocando
os mártires da Idade Média e relembrando o misticismo de Chateaubriand. Chega a clamar:
―Religião, inspirai-me!‖. Seu objetivo é tratar da eloqüência de Monte Alverne, o que
mostra sua franca adesão, naquele momento, ao catolicismo:
Mont‘Alverne, o homem eloqüente e virtuoso, cuja vida se tem passado
na austeridade e solidão do Claustro, é uma prova da solidez dos nossos
28
O episódio consta no livro de Daniel 5: 1-29.
44
princípios religiosos! Se o seu horizonte acaba na parede sombria de uma
cela humilde, os seus limites intelectuais chegam até Deus, isto é, perdemse no infinito!29
As palavras de Machado denunciam sua formação religiosa, o que confirma a
hipótese de que as lições iniciais do jovem aconteceram em ambiente eclesiástico. Aliás, a
nota sobre o poema ―Monte Alverne‖, dedicado ao padre Silveira Sarmento e que consta
nas Crisálidas, mostra claramente a influência que o ambiente religioso exerceu em sua
formação.
A dedicatória desta poesia ao padre-mestre Silveira Sarmento é um justo
tributo pago ao talento, e à amizade que sempre me votou este digno
sacerdote. Pareceu-me que não podia fazer nada mais próprio do que
falar-lhe de Monte Alverne, que ele admirava, como eu.
Não há nesta poesia só um tributo de amizade e de admiração: há
igualmente a lembrança de um ano de minha vida. O padre-mestre, alguns
anos mais velho do que eu, fazia-se nesse tempo um modesto preceptor e
um agradável companheiro. Circunstâncias da vida nos separaram até
hoje.
Até esse momento, a influência dos clássicos e dos românticos mais místicos e
religiosos seriam a fonte de inspiração de Machado, talvez porque as lições do padre-mestre
ainda estivessem muito vivas em sua memória. Não se restringiria a esse tipo de devoção
mística por muito tempo. A poesia dos ultra-românticos exerceria em seu espírito
determinado impacto e passaria a dissipar essa devoção inicial.
O crescente interesse de Machado pela lírica romântica seria visível nos poemas de
56 e 57, certamente pelo contato que passaria a estabelecer com poetas, seus
contemporâneos, que adotavam a escola romântica como modelo em suas composições.
Pelo relato que nos chegou através do prefácio das Crisálidas, tomamos
conhecimento de que, por volta deste período, Machado fazia parte da sua primeira
―panelinha literária‖, encabeçada pelo advogado e escritor Caetano Filgueiras. O doutor
reunia em seu escritório os poetas Casimiro de Abreu, Machado de Assis, J. Joaquim
Cândido de Macedo Júnior e Francisco Gonçalves Braga, às vezes contando também com a
presença de Augusto Emílio Zaluar.
29
MASSA. Dispersos de Machado de Assis. Op. cit. p. 35
45
Posteriormente, em 1858, chegaria ao Brasil o poeta satírico português Faustino
Xavier de Novaes, irmão de Carolina, a futura esposa de Machado de Assis. Não se sabe ao
certo como os dois poetas foram apresentados, mas é possível que Faustino tenha
participado de algumas das reuniões no escritório de Filgueiras, provavelmente por
intermédio de Casimiro de Abreu, de quem era amigo.
Alguns biógrafos definem o ano de 1857 como o do início desses encontros entre
os poetas do grupo de Filgueiras, mas tudo indica que o contato entre os membros do grupo
tenha ocorrido anteriormente, e que eles já se encontravam, desde 1855, na Tipografia de
Paula Brito. A amizade não ficaria circunscrita ao período desses encontros, ultrapassaria
os limites do escritório do advogado e seria mantida por longos anos, até que a vida, ou a
morte, os dispersasse. Prova disso foi a relação afetuosa entre Faustino e Machado, que
seriam parceiros também no periódico ―O futuro‖, fundado pelo primeiro, amizade que
culminaria no enlace matrimonial entre a irmã do poeta e o escritor fluminense, embora
aquele não mais estivesse vivo para testemunhar a união.
Em outras publicações, atestamos novamente a permanência dos vínculos. Não
podemos nos esquecer de que Faustino, Zaluar, Machado e Filgueiras foram colaboradores
do Jornal das Famílias, de Garnier, na década de 60, e que todos escreveram em verso ou
em prosa nessa publicação destinada ao público feminino, sem contar os artigos de crítica e
os prefácios escritos por Machado na ocasião do lançamento dos livros de Zaluar, de
Filgueiras, e nas publicações póstumas da obra de Faustino.
Concentrando-nos especificamente nos anos de estréia, podemos afirmar que a
atmosfera romântica teria predominância nas reuniões do escritório de Filgueiras,
refletindo-se diretamente na produção machadiana de então. Seria também um marco
importante na vida do jovem, já que entraria em contato regularmente com outros poetas,
alguns com formação acadêmica e obras publicadas, e que, certamente, tinham acesso a
livros e leituras que enriqueceriam a experiência e o aprendizado do curioso novato.
O próprio Zaluar foi, entre 1852 e 1854, diretor do educandário de meninos
―Colégio de São Sebastião‖, que depois seria transformado em ―Colégio Zaluar‖. A
instituição garantia preparação para o comércio e para as academias do Império. Talvez sob
o pretexto de receber instrução comercial os jovens ali se reunissem, embora a literatura,
pelos relatos que nos chegaram, acabasse predominando nesse ambiente de estudo.
46
Um ponto importante da lírica machadiana, nas poesias dispersas do início da
carreira, é a série de quatro poemas em que lamenta a morte da mãe: ―O meu viver‖,
―Saudades‖, ―Lágrimas‖ e ―Minha mãe‖, além no poema ―Um anjo‖, em homenagem a
Maria, sua falecida irmã. A insistência do poeta no tema indicaria as tendências absorvidas
nos encontros do escritório de Filgueiras, e, ao mesmo tempo, aponta as leituras que os
poetas deviam trazer para essas reuniões.
No poema ―Um anjo‖, dedicado à irmã, a esperança numa outra vida e a
religiosidade são o porto onde o poeta busca alento para suportar as dores pessoais. Ele
focaliza o motivo de sua tristeza, que, por ser aguda, transborda no papel, mas encontra
também na escrita o refúgio, através de um desabafo sentimental. A morte, sob a ótica do
transcendental, funciona como escape às angústias e à desesperança. O consolo numa outra
vida, num lugar etéreo e perto de Deus, é o bálsamo que acalenta o poeta ao recordar a
morte da menina: ―Foste a rosa desfolhada/ Na urna da eternidade,/ Pr‘a sorrir mais
animada,/ Mais bela, mais perfumada/ Lá na etérea imensidade‖.30
Encontramos nessa composição a epígrafe: ―Se deixou da vida o porto/ Teve outra
vida nos céus‖. O trecho faz parte de um poema de Zaluar incluído no livro Dores e flores,
publicado pela tipografia de Paula Brito em 1851. Nos versos do poeta português,
encontramos uma lamentação pela morte prematura do Príncipe Imperial D. Pedro Afonso,
filho de D. Pedro II, ocorrida no ano de 1850. Num curto espaço de tempo, seria o segundo
príncipe a morrer, ainda nos primeiros anos de vida, para tristeza da família real.
Identificando sua dor com a do monarca, Machado honraria a memória da irmã, também
morta prematuramente, com esses versos de Zaluar dirigidos à realeza.
Ainda no poema ―Um anjo‖, Machado manifestaria, mais patentemente, a
influência da lírica de Álvares de Azevedo, retomando a idéia presente no poema
―Anjinho‖, da Lira dos vinte anos, que trata da morte de uma criança como forma de
libertação da alma pura, que retornaria para o lugar de onde proveio.
Seguindo a lírica alvaresiana, Machado lamentaria mais pungentemente a perda da
mãe em poemas que denotam uma grande amargura, a solidão e o franco desejo de morrer
para unir-se a ela novamente no céu. O poeta maldiz a existência, seguindo a tendência da
geração mal-de-siècle, sentindo a morte rondá-lo em tenra idade.
30
ASSIS. T.P. p. 637.
47
Assim diria em ―O meu viver‖, que poderia muito bem ter o substantivo do título
trocado pelo antônimo: ―Quero despir-me desta vida má,/ Quero ir viver com minha mãe
nos céus,/ Quero ir cantar os meus amores todos,/ Quero depois em ti pensar, meu Deus!‖.
Continuaria o lamento no poema ―Saudades‖, título recorrente na produção do
período, em que dois temas caros aos ultra-românticos - juventude e morte – tornam-se os
pontos centrais para onde convergem os auspícios do poeta. O detalhe que vem enriquecer
a análise dos primeiros passos de Machado é o acréscimo de uma figura feminina, um
amor, ao lado da mãe. Assim, usaria a sua orfandade para intensificar a dor amorosa e, de
certa forma, justificar o desejo de morrer. Trataria a amada por ―meu anjo‖, em contraponto
à expressão ―minha mãe‖, trabalhando dois planos no verso: o da segunda pessoa – ―ti‖ - e
o da terceira pessoa – ―ela‖.
Tenho de ti saudade, só lastimo
Ter cedo minha mãe perdido a vida;
Choro tanto por ela... por ti sofro
Minha vida, mulher, é tão sentida.
Parece que no céu bem negra nuvem
Já marcou meu destino pelo mundo!
Tenho de ti saudade, ó meu anjo.
No meu peito o pesar é tão profundo!
Se perdi minha mãe sendo tão moço,
Se padeço de ti tanta saudade,
Não posso existir no mundo triste;
É melhor eu morrer nesta idade!
É curioso o recurso empregado pelo poeta nas primeiras investidas no campo ultraromântico. Talvez não conseguisse fingir uma dor amorosa tão forte que justificasse o
desejo de morrer. Então, situou a mãe junto à mulher amada como justificativa para tal
desígnio. Entretanto, deixaria marcadas as diferenças existentes entre as duas: ―Choro
tanto por ela... por ti sofro‖ – versos que revelam, pela presença do advérbio de
intensidade, que a perda da mãe produzia uma contrição maior que a ausência do amor de
uma mulher.
Temos a impressão de que o poeta procurava, nesse período, um motivo forte que o
fizesse produzir poemas melancólicos, daí a insistência no tema da morte materna, talvez a
48
maior perda de sua vida, que poderia lamentar com veracidade sem sair da temática ultraromântica.
O poema ―Lágrimas‖, também dirigido à mãe, nos faz lembrar os versos de
―Lembrança de morrer‖, de Álvares de Azevedo, quando o bardo da Lira dos vinte anos
declara o motivo maior de sua saudade: ―Só levo uma saudade — é dessas sombras/ Que eu
sentia velar nas noites minhas... / De ti, ó minha mãe, pobre coitada/ Que por minha tristeza
te definhas!‖. No poema de Álvares, no entanto, o eu-lírico tem a mãe junto ao leito para
ampará-lo no sofrimento e seria essa a boa recordação que deixaria no mundo.
Ao contrário da evocação alvaresiana, mas nela se inspirando, o eu-lírico maldiz a
vida exatamente por estar sozinho no mundo e por ter perdido a mãe, não conseguindo
superar a saudade que dela sente:
Há uma dor que não se apaga d‘alma,
Lágrima triste que pendente existe
Da face do infeliz:
É gemido que mata e não se acalma,
Que torce o coração, e se persiste,
A existência maldiz.
Essa dor eu senti quando vi morta
Minha terna mãe... perdão meu Deus.
Se quero já morrer;
Esta vida de dor, perder que importa?
Quero com minha mãe morar nos céus,
Com os anjos viver.
Eu perdi minha mãe... era uma santa,
Que tinha a minha vida nesse mundo,
Minh‘alma e meu amor!
E foi o meu pesar, minha ânsia tanta,
Que a vida quis deixar num ai profundo,
Morrer também de dor.31
Portanto, para o poeta estreante, não era a tristeza de amor a maior motivação para
maldizer a existência, mas a tragédia real que o marcaria desde menino, das perdas e das
lacunas familiares. Também não conseguia deixar de evidenciar a formação religiosa, que
contrasta com o ambiente lúgubre e maldito dos românticos que intenta seguir. Chega a
31
ASSIS. T.P. p. 640
49
desdizer a pretensão inicial do poema, presente nos versos: ―a existência maldiz‖ e ―se
quero já morrer‖, ao interpô-los com o verso: ―perdão, meu Deus!‖. A insistência na
temática da morte, pelo motivo apontado, é justificada também com palavras que abonam a
figura materna: ―era uma santa‖ –, o que torna autêntico o desejo do filho de morrer por ela,
transformando a blasfêmia e a maldição em adoração mística e benévola.
Seja por influência da leitura de poetas malditos ou por vivenciar acontecimentos
tão trágicos na vida - ou por ambos os motivos -, Machado não tinha anteriomente escrito
versos que tratassem de modo tão pungente da morte e da melancolia como esses dedicados
à mãe. Seria um ensaio para a fase seguinte, a partir de 1857, em que o poeta se deixaria
guiar pelo spleen romântico e pela, embora atenuada, voluptuosidade amorosa.
O outro texto dedicado ao tema é ―Minha mãe‖, que, dessa vez, apresenta uma
suavização da morte pela evocação sentimental da memória, enfatizando também o vetor
religioso, como já se percebia nas outras composições. O eu-lírico reza pela mãe e recebe a
proteção dos clamores que ela do céu lhe envia: canção atenuada e sem os acessos
melancólicos dos outros versos. Machado escreve com delicadeza e lirismo, naquela que é,
sem dúvida, a mais bela composição dedicada à memória da mãe.
O jovem encerra o poema não pedindo a morte como termo à vida, mas cedendo as
possíveis glórias e louros literários do futuro, aquilo que mais almejaria como escritor, para
ter a mãe ao seu lado novamente.
Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também:
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: - minha mãe!
Se devem louros ter meus cantos d‘alma
Oh! do porvir eu trocaria a palma
Para ter minha mãe!32
A pretensão de Machado, neste caso, parece ser a evocação da infância, outro tema
caro aos românticos, só que seguindo a linha de ―Meus oito anos‖ de Casimiro de Abreu.
Novamente, Machado teria dificuldades em trazer cenas da infância que remetessem às
boas lembranças, às saudades, aos felizes tempos de criança. Teria que recorrer à mãe como
única maneira de trazer para o presente uma imagem positiva da infância.
32
ASSIS. T.P. p. 642.
50
Mesmo na maturidade, a fase preliminar da vida não lhe seria tema recorrente: pelo
contrário, há uma quase ausência dela em seus escritos, excetuando-se, talvez, o ―Conto de
escola‖ e o brevíssimo relato das travessuras de Brás quando menino. Seus personagens
parecem começar a vida na adolescência ou na maturidade, fases que povoaram tantas de
suas histórias: o menino já teria nascido homem.
O passado difícil em casa de estranhos - os pais eram agregados na chácara de uma
família rica -, as mortes sucessivas dos familiares, a própria fragilidade física e os
preconceitos sofridos não seriam imagens saudosas, nem ele parecia disposto ao
confessional puro e simples. Teria sempre um perfil mais contido em relação aos poetas
dessa fase, mesmo aos 17 anos. Ainda assim, não deixaria de confirmar, no prólogo das
Crisálidas, o quanto a obra e a vida se fundiriam no começo de carreira literária; mas
falaria também de um ―duelo infausto entre a aspiração e a realidade‖:
Vai longe esse tempo. Guardo a lembrança dele, tão viva como a saudade
que ainda sinto, mas já sem aquelas ilusões que o tornavam tão doce ao
nosso espírito. O tempo não corre em vão para os que desde o berço foram
condenados ao duelo infausto entre a aspiração e a realidade. Cada ano foi
uma lufada que desprendeu da árvore da mocidade, não só uma alma
querida, como uma ilusão consoladora.
Apesar da ênfase – imitação de Cowper –, logo no título do poema machadiano,
parece que há uma inegável influência de um dos contemporâneos do poeta, que, ao lado de
Álvares de Azevedo, seria então a grande inspiração machadiana: Casimiro de Abreu. Já
comentamos a coincidência nas temáticas escolhidas pelos dois autores.
Existia também uma correspondência na idade, nascidos ambos em 1839, além da
forte presença feminina nos poemas, representada principalmente pelas imagens pueris da
mãe e da irmã. Os dois poetas seriam marcados por uma lacuna paterna, pois, apesar de
relembrarem a família, excluíam o pai das boas recordações, das dedicatórias, enfim, a
figura paterna só apareceria em negativo, como uma sombra velada que não pode se
materializar em imagem poética, a não ser obliquamente.
Lendo a biografia de Casimiro, tomamos ciência do empenho do pai em colocá-lo
na carreira do comércio, e de todos os esforços feitos para demover o filho dos objetivos
literários. Assim o poeta escreveria acerca dos anos que passou na atividade comercial que
o pai lhe impusera:
51
(...) lembro-me perfeitamente, foi n‘um dia de setembro. Abafado o grito
de lamento da minha vocação contrariada, fui sentar-me à carteira d‘um
escritório e embrenhei-me no mundo dos algarismos. Abracei a vida
comercial, essa vida prosaica que absorve todas as faculdades n‘um único
pensamento, - o dinheiro, e que se não debilita o corpo, pelo menos
enfraquece e mata a inteligência. Fatal dia! Negra hora.33
Encontraria Machado em Casimiro o eco das suas mais íntimas confissões, que não
ousaria trasladar para o papel? O que não se pode negar é a influência que a leitura das
obras de Casimiro de Abreu e de Álvares de Azevedo passaria a exercer nos poemas de
Machado a partir de 1856, a ponto de fazê-lo abandonar a dicção lusitana de Gonçalves
Braga, para se deixar enlevar pelo ―licor de Granada‖ que lhe turvaria os olhos: o
romantismo com feições mais brasileiras.
A primeira constatação da influência casimiriana verifica-se na escolha temática dos
poemas, e, principalmente, na semelhança entre alguns títulos. Comecemos por ―Minha
mãe‖, já citado. Apesar de Machado afirmar que o poema é uma ―imitação de Cowper‖, a
inspiração revela-se muito mais tributária de Casimiro. Vejamos o poema:
Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empírio vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!
Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonos de criança
Dourou: - É minha mãe!
Quem foi que o entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor – anjo do bem
Minha fronte infantil – encheu de rosas
De mimosos sorrisos? - Minha mãe!
Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
É dela: minha mãe.
Qual o anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora,
33
ABREU, Casimiro de. ―A virgem loura‖. In: ____. As primaveras. 2 ed. Lisboa: Tipografia do Panorama,
1867. p.218.
52
E ensinou a adorá-la? – Minha mãe!
Não devemos nós crer num puro riso
Desse anjo gentil do paraíso
Que chama-se uma mãe?
Um poema homônimo de Casimiro, publicado no livro As primaveras, cantaria a
ausência materna com entonação semelhante ao poema machadiano, apresentando igual
estrutura e, em alguns versos, usando as mesmas imagens e palavras. Apesar de o livro de
Casimiro de Abreu ter sido publicado em 1859, data posterior à publicação do poema de
Machado, a composição do poema é de 1855, ano em que estivera em Lisboa.
É possível que Casimiro tenha lido o poema para os companheiros, ou que
Machado dele tivesse conhecimento através de publicação esparsa ou correspondência
entre amigos, e mostrasse uma imediata identificação com a dor do poeta. Da mesma
forma, pela leitura de versos tão pungentes, talvez encontrasse a motivação para escrever o
lamento pela ausência da própria mãe.
A única diferença é que Machado trata de uma perda irreversível, enquanto
Casimiro fala de uma ausência temporária, já que, como dissemos, o vate compôs os versos
longe de casa, em Portugal. Coincidentemente, para Machado a pátria lusitana também
seria uma evocação materna.
Para fazermos um cotejo entre os dois poetas, transcreveremos a seguir um
fragmento do poema de Casimiro:
Minha mãe
Da pátria formosa distante e saudoso,
Chorando e gemendo meus cantos de dor,
Eu guardo no peito a imagem querida
Do mais verdadeiro, do mais santo amor:
- Minha mãe! –
Nas horas caladas das noites d‘estio
Sentado sozinho co‘a face na mão,
Eu choro e soluço por quem me chamava
- ―Oh filho querido do meu coração!‖
- Minha mãe! –
No berço, pendente dos ramos floridos,
Em que eu pequenino feliz dormitava:
53
Quem é que esse berço com todo o cuidado,
Cantando cantigas, alegre embalava?
- Minha mãe! –
De noite, alta noite, quando eu já dormia
Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Quem é que meus lábios dormentes roçava
Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?
- Minha mãe! –
Feliz o bom filho eu pode contente
Na casa paterna de noite e de dia
Sentir as carícias do anjo de amores,
Da estrela brilhante que a vida nos guia!
- Uma mãe –
(...)
(Lisboa- 1855)34
Independentemente de que ambos possam ter buscado inspiração em Cowper, as
duas composições apresentam muitas semelhanças, além do título: a alternância ―minha
mãe‖ e ―uma mãe‖ nas repetições ao fim de cada estrofe, a imagem da mãe acalentando o
filho no berço, as canções da infância, a comparação da mãe a um anjo – ―anjo gentil do
paraíso‖, no poema de Machado, ou ―anjo de amores‖, neste.
R. Magalhães Jr. destaca a grande admiração de Machado pelo poeta em seu
formidável estudo ―Casimiro de Abreu e Machado de Assis‖, revelando aos leitores que a
deferência de Machado pelo escritor não foi arroubo da juventude ou demonstração de
simples amizade, mas uma grande estima literária. Casimiro seria sempre um modelo de
poeta, ainda que sob os eflúvios românticos.
Segundo Magalhães Jr., Machado lamentaria a morte do amigo publicamente em
1860, no Correio Mercantil, e ainda relembraria o poeta, passado um ano de sua morte, no
Diário do Rio de Janeiro. O nome de Casimiro aparece também no ensaio ―Instinto de
nacionalidade‖ e num trecho do conto ―Questão de vaidade‖, resgatando uma página
memorável, compartilhada entre ambos na juventude:
Conversava eu um dia com um de meus amigos poetas, que a morte
levou, um talento que todos admiravam, um coração que muitos
conheceram.
34
ABREU. Op. cit. p.11-12
54
- Não sei, dizia-me Casimiro de Abreu, como se pôde inventar a
valsa, a melhor de todas as danças, para dançá-la em um salão, diante de
cem olhos. (...)
- Casimiro, objetava eu, para dois corações que se amam, a multidão
não é isolamento? (...)
Casimiro adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das
Primaveras que traz este título.35
O conto foi publicado em 1864, mesmo ano do lançamento das Crisálidas. Do
grupo de Filgueiras, Machado foi o último a publicar seus poemas, quando os três amigos Casimiro, Braga e Macedo - já haviam falecido. Curiosamente, todos partiram no ano de
1860 e, praticamente, pelo mesmo motivo: a tuberculose. Machado retomaria a memória
daqueles dias ao convidar Filgueiras para prefaciar o livro, como um tributo aos amigos e a
uma época muito especial de sua vida. Nas primeiras páginas do livro, ficaria gravado o
depoimento emocionado e efusivo de Caetano, enquanto no prólogo o autor deixaria
registrada sua saudade, embora sem as ilusões e a euforia dos tempos de juventude.
A escolha do nome da obra também se filia ao espírito do grupo, marcado pela
precocidade e pela modéstia, na intenção de mostrar que o livro de estréia se tratava de uma
iniciativa imperfeita, com versos de poeta iniciante. Seguiria a tendência dos títulos das
obras dos amigos, já que Tentativas poéticas, de Braga, denunciava o esforço do autor na
composição, ainda imperfeita; Primaveras, de Casimiro, indicava o começo da vida,
quando as flores da juventude ainda estão desabrochando; portanto, a primeira fase por que
um escritor deveria passar.
O título Crisálidas guardaria o mesmo desígnio dos outros, retratando uma
metamorfose ainda incompleta, um processo de aprimoramento, a promessa de obra melhor
no futuro. Machado viveria para pôr seu objetivo em prática, ainda que a fantasia da
juventude tivesse morrido no caminho: foram-se as ilusões, restou o refinado escritor, o
grande lascivo do nada.
Ainda enfatizando a importância do grupo de Filgueiras no começo da carreira de
Machado, retomando os primeiros passos do poeta antes da publicação deste primeiro livro
de poesia, comprovamos as nuances a que o poeta vai se submeter, e as freqüentes
―metamorfoses‖ de seu engenho poético.
35
ASSIS, Machado de. ―Questão de vaidade‖. Apud: MAGALHÃES JR, R. Ao redor de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958. p. 29
55
Há um certo pudor nos sentimentos amorosos no que se refere aos poemas de 56,
em que retoma a imagem materna ao lado da mulher amada para intensificar o sentimento
de desespero e de morte que, pouco a pouco, vai se alterando e dando espaço a outros
sentimentos mais intensos, sem as reservas de antes.
Freqüentando um grupo de escritores formado por homens de maior experiência,
seria natural que o jovem Machado de Assis encontrasse apoio e incentivo para suas
primeiras incursões afetivas, talvez motivado pelas leituras efetuadas nesses encontros, ou
pelas vivências e confissões dos outros membros do grupo. Um dado que sustenta tal
hipótese é o testemunho de Filgueiras no prefácio das Crisálidas, no que tange ao período
das reuniões em seu escritório:
Éramos, pois, cinco. Líamos e recitávamos. Denunciávamos as novidades:
zurzíamos as profanações: confundíamos nossas lições: -- segredávamos
nossos amores!
O quinto, — o menino, — depunha, como todos nós, sua respectiva
oferenda. Balbuciando apenas a literatura, — ainda novo para os seus
mistérios, ainda fraco para o seu peso, nem por isso lhe faltava ousadia;
antes sobrava-lhe sofreguidão de saber, ambição de louros. Era vivo, era
trêfego, era trabalhador.
Aprazia-me de ler-lhe no olhar móvel e ardente a febre da
imaginação; na constância das produções a avidez do saber, e
combinando no meu espírito estas observações com a naturalidade, o
colorido e a luz de conhecimentos literários que ele, — sem querer sem
dúvida, — derramava em todos os ensaios poéticos que nos lia (...)36
Nota-se que, apesar da pouca diferença entre as idades de Braga, Casimiro,
Macedinho (o mais jovem de todos) e Machado, este era o menos experiente do grupo,
tanto literariamente quanto nas vivências pessoais. Filgueiras chegaria a declarar, nas
primeiras linhas do prefácio, que Machado não tinha ―nome‖, ou seja, era um poeta
desconhecido diante dos outros, que já possuíam livros publicados e, principalmente, fama
de trovadores. Além disso, o jovem não dispunha de recursos financeiros da família para
custear o valor de uma publicação, como Casimiro de Abreu pôde fazer.
36
FILGUEIRAS, Caetano. ―Prefácio de Crisálidas”. In: ASSIS, Machado de. Crisálidas. Rio de Janeiro:
Livraria B.L.Garnier, 1864.
56
Machado também não se valia de título ou de uma boa formação escolar, seus
estudos foram irregulares e informais. Certamente, a amizade com Paula Brito e com os
jovens poetas que circulavam por sua tipografia permitiram o entrosamento desse
desconhecido rapaz na casa do Dr. Filgueiras. O próprio Machado, posteriormente, não
negaria a importância do aprendizado literário absorvido em tais encontros entre poetas e
cultores das letras.
Como afirma Filgueiras, nenhum entrave impediria que a ousadia do jovem e a sua
avidez pelos ensinamentos dos veteranos fossem se revelando a cada momento e que, por
sua vez, Machado começasse a dar mostras de sua capacidade intelectual, embora ainda
sem estilo próprio. Contudo, passaria a aproveitar os ensinamentos dessas reuniões
literárias na sua produção para jornais.
Destaca-se a expressão usada por Filgueiras para definir o jovem poeta em contato
com o conhecimento: ―febre da imaginação‖, o que é bem diferente de um arrebatamento
sentimental. Machado teria, desde cedo, uma tendência à reflexão. Muito mais do que se
entregar ao puro devaneio romântico ou à expansão dos sentimentos, processava tudo nas
cavernas do cérebro.
Os poemas dessa fase, 1857, estão visivelmente marcados pela nova experiência e
passam a conter boas doses de erotismo, mesmo quando o assunto incita a uma disposição
mais religiosa. O poema ―Deus em ti‖ é exemplo disso, pois há, contrariando o título, mais
desejo amoroso do que êxtase espiritual nos seus carmes:
É quando eu sinto embriagar-me o peito
Um místico vapor,
E à luz fecunda desses olhos belos
Da minha alma ter vida e alento – a flor;
É quando as tranças dessa fronte loura
Prendem o meu olhar,
E sinto o coração tremer ardente,
Como uma flor aos zéfiros do mar;
É ao ouvir-te as místicas idéias
Tão cheias de paixão,
Nessa eloqüência lânguida e profunda
Que fala ao coração:
É ao sentir as tuas asas brancas,
Ó meu anjo de amor,
57
Que eu reconheço a mão do rei da terra
E creio no Senhor!-37
A última estrofe chega a ser profana, tendo em vista que é pela beleza da mulher
que o poeta passa a acreditar em Deus, ou seja: por Ele ter criado um ser tão divino, o poeta
manifesta a fé, invertendo o ponto de vista da crença religiosa do ―crer para ver‖. Portanto,
é a criatura que revela o Criador, e não o inverso.
O interessante é a singeleza com que o poeta o diz. Os versos soam tão cândidos
que a questão passa despercebida, envolta numa espécie de petrarquismo, onde a amada é
mais etérea do que carnal. Machado destoava, nesse singelo começo, da forma de evocação
romântica, já que, em vez de falar do corpo da mulher amada, resolvia louvar-lhe: ―as
místicas idéias/ Tão cheias de paixão,/ Nessa eloqüência lânguida e profunda/ Que fala ao
coração‖. A força da idéia, da inteligência, sobrepujava a dos sentidos, traindo, de certa
forma, o poeta que experimentava o molde romântico para tecer versos de amor.
Outras composições de 1857, no entanto, apontam mais claramente a disposição
romântica do poeta, que esqueceria a timidez e a contenção desses primeiros versos de
temática amorosa, mostrando mais livremente o desejo pela mulher. Já aqui não precisaria
aproveitar a memória da mãe para evocação dos amores e das desilusões, nem glorificar o
intelecto da amada no lugar do corpo. Aperfeiçoaria os cânticos de adoração ao feminino e
se dedicaria mais aos sentidos do que aos sentimentos.
Assim se revelaria no poema ―O sofá‖, possivelmente inspirado em leituras mais
licenciosas, como a do livro, homônimo do poema, de Crébillon Fils. Talvez almejasse,
como o protagonista do livro de Fils, ser transmutado em sofá, para ver, ouvir, sentir as
impressões íntimas de maneira privilegiada. Eis o poema:
Oh! Como é suave os olhos
Sentir de gozo cerrar,
Sobre um sofá reclinado
Lindos sonhos a sonhar,
Sentindo de uns lábios d‘anjo
Um medroso murmurar!
Um sofá! Mais belo símbolo
37
ASSIS. T.P. p. 646-647.
58
Da preguiça outro não há...
Ai, que belas entrevistas
Não se dão sobre um sofá,
E que de beijos ardentes
Quanta boca aí não dá!
Um sofá!Estas violetas
Murchas, secas como estão
Sobre o seu sofá mimoso,
Cheirosas, vivas então,
Achei um dia perdidas,
Perdidas: por que razão?
Talvez ardente entrevista
Toda paixão, toda amor
Fizesse ali esquecê-las...
Quem não sabe? sem vigor
Estas flores só recordam
Um passado encantador!
Um sofá! Ameno sítio
Para colher um troféu,
Para cingir duas frontes
De amor num místico véu.38
O apelo erótico do poema é inconteste, mas o autor se vale de metáforas para
suavizar as idéias. Machado revelaria desde então uma tendência à sugestão erótica, com
propósito insinuativo ou provocativo, sem revelar de todo o conteúdo ou a intenção real,
encobertos pelo véu das metáforas. Nunca nos diria tudo, restaria sempre algo dissimulado
no subsolo do texto, deixaria unicamente uma intenção no ar, ou apostaria na
semitransparência das palavras. Não há uma página da obra machadiana, da juventude ou
da maturidade, em que o desejo seja revelado por completo, o que acentua o contexto
erótico nas entrelinhas. Essas lacunas metafóricas dos textos machadianos, só o leitor as
poderá preencher, isso se conseguir mergulhar na intimidade necessária para interagir nesse
jogo de ocultações/revelações que seu texto provoca.
É óbvio que o jovem aprendiz ainda não se valia conscientemente do recurso, como
o mestre faria depois, mas ensaiava as possibilidades do dizer, sem atentar contra a moral
da época. A pior desgraça de um escritor daquele tempo era o juízo moral da sociedade: ser
taxado de imoral significava o banimento das rodas oficiais, dos ambientes de família e a
38
ASSIS. T.P. p.647-648
59
exclusão da obra do círculo literário. Mal saída do invólucro, a poesia quedaria
marginalizada, freqüentada apenas pelos estudantes, como os folhetos e livros proibidos, e
impressa oficiosamente.
Seguindo pelas vias ultra-românticas, Machado dedicaria um belo poema, em 1858,
à memória de Álvares de Azevedo, talvez sua composição mais lírica do período. O refrão
do poema demonstra a habilidade do poeta para com os decassílabos, e, em toda a
composição percebe-se a criatividade do autor: ―Morrer, de vida transbordando ainda,/
Como uma flor que ardente calma abrasa!/ águia sublime das canções eternas:/ Quem no
teu vôo espedaçou-te a asa?‖.
Outra informação importante advém da dedicatória a Manuel Antônio de Almeida,
um dos grandes incentivadores de Machado no início da carreira. Alguns biógrafos chegam
a afirmar que o romancista foi mais um Mecenas na vida do poeta novel, reconhecendo o
talento do jovem e abrindo-lhe muitas portas no meio literário.
Devemos considerar também a brusca mudança de paradigma nesse despontar
literário de Machado de Assis: de uma formação religiosa e eclesiástica para uma
experiência entre poetas boêmios e ultra-românticos, das leituras religiosas de um Monte
Alverne para os êxtases amorosos da lírica de um Álvares de Azevedo.
Outra composição que figura entre os dispersos, e que merece destaque, foi escrita
no álbum de João Dantas de Sousa, autor de Flores incultas e redator do jornal A Saudade.
Machado constrói o poema ―Missão do poeta‖ conversando com a Musa. Em certa medida,
relembra os poemas dialogados de Álvares de Azevedo - como ―Tarde de outono‖ e ―Meu
sonho‖ -, ou ainda os célebres diálogos entre Macário e Penseroso.
No poema de Machado, descrente do seu ofício, o bardo ouve a musa que o anima a
continuar cantando, mesmo quando ele já não crê mais nas ilusões.
POETA
E como crer então? Tenho aqui morta
Uma ilusão de minha primavera...
O sonho é como um feto que se aborta,
Um porvir que se ergueu numa quimera!
A realidade é fria. Erga-se embora
60
A flor do coração a um céu dourado,
Vem a turba maldita em negra hora,
E as flores mata de um porvir sonhado!
MUSA
Por que descrer assim? – É dura a estrada,
Mas há no termo muito amor celeste,
A glória, poeta, é uma flor dourada,
Que só nasce da rama do cipreste.
POETA
De um cipreste!... É bem triste esse conforto!
Quem sabe? uma esperança mal cabida.
Essa luz que se vaza sobre o morto
Paga-lhe a dor que o sufocaria em vida?
MUSA
Mas é tua missão... Do pesadelo
Hás de acordar radiante de alegria!
Deus pôs na lira do infortúnio o selo,
Mas há de dar-lhe muita glória, um dia!
É forçoso sofrer... Deus no futuro
Guarda-te a c‘roa de uma glória santa,
Vem sonhar, este céu é calmo e puro!
Vem, é tua missão!... Ergue-te e canta!39
O escritor não dialoga apenas com a Musa, mas com a visão defendida nas ―Idéias
vagas‖, escritas anteriormente. O poeta destina-se a uma missão irrevogável, mesmo
quando a crença inicial já se encontra abalada em suas frágeis concepções. Há duas
instâncias no interior do poeta: a que questiona – a razão prática - e a que consola e inspira
– o sentimento. Essa dialética apela para o poder criativo, para a centelha divina, que tanto
produz a obra, quanto a designa para ―uma glória santa‖.
A Musa ainda seria revisitada muitas vezes, e cada incursão à montanha poética
traria uma feição diferente. Ainda nos seus últimos versos, nas Ocidentais, Machado de
39
ASSIS. T.P. p. 661.
61
Assis buscaria inspiração ―No alto‖, mesmo que o bem e o mal já estivessem tão
confundidos, e a utopia não mais achasse lugar na colina do poeta.
1.3- Tributo à musa do passado
Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.”
(Machado de Assis) 40
Crisálidas é um tributo de Machado ao grupo de amigos que se reunia no escritório
de Filgueiras, seja pelas homenagens, pelo prefácio ou pelas dedicatórias. O escritor lança
às experiências literárias do passado o olhar mais maduro do jovem de 25 anos, que analisa
e, de certa forma, corrige as impressões de outrora, dos seus dezessete verdes anos.
Apesar da lembrança saudosa, Machado não compilaria os seus dispersos. O livro
contaria, quase exclusivamente, com poemas recentes do autor, na década de 60, ao que
tudo indica escritos expressamente para compor o livro. Há, entretanto, algumas exceções
que desejamos destacar mais atentamente para justificar o perfil dessa publicação como
tributo aos seus primeiros mestres de poesia.
Ao contrário dos outros autores, a obra de Machado não foi publicada de imediato,
talvez por falta de recursos, ou por certo pudor do poeta. Também não seria uma obra
40
ASSIS. ―Os dois horizontes‖. In: ASSIS. T.P. p. 65
62
publicada por uma editora pequena, mas contaria com o apoio de uma grande chancela:
B.L. Garnier. No entanto, encontraria um ambiente literário distinto daquele dos amigos,
não mais dominado pela lira dos ultra-românticos. Outros gêneros tomaram a cena, o
romance e o folhetim vinham conquistando o gosto do público, estavam em grande
ascensão. Eram tempos de prosa, e Machado rendia louvores à musa poética.
Embora ainda sob influências românticas, o primeiro livro de poesia traz consigo
mais memória do que convicção. Basta lermos a carta do posfácio para verificarmos que a
feição do escritor era outra, sua face religiosa não exibia a mesma devoção que detectamos
nas primeiras composições. Machado, em 1864, era um homem de letras mais experiente,
já respeitado no meio literário, caminhando entre grandes escritores. Ocupava o lugar de
crítico teatral talentoso, havia publicado traduções, como ―Queda que as mulheres tem para
os tolos‖, e textos dramáticos de sua autoria , como ―Desencantos‖, singelo texto teatral,
assim como um volume de teatro, de 1863, com as duas peças: ―O protocolo‖ e ―O
caminho da porta‖.
Apesar da mudança em algumas concepções, na abertura do livro encontramos
aquele ilustre diálogo entre a Musa e o Poeta, como voz que tenta alimentar o fogo da
inspiração de antigamente, acendendo a faísca de inspiração que aparentava estar perdida.
Assim, o vate deseja retomar a coroa de louros da velha Grécia para colocá-la na ―fronte do
mancebo‖. Embora reconheça que foi desfolhada pelo tempo pretérito, ainda a emprega
para relembrar os cânticos do ontem com o vigor do talento e da experiência do agora. É
isso o que deixa transparecer na construção do poema ―Musa consolatrix‖:
Musa consoladora,
Quando da minha fronte de mancebo
A última ilusão cair, bem como
Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me, — e terá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!
Comparando o poema de abertura, ―Musa consolatrix‖ – condizente com as
concepções do poeta que até agora pudemos identificar - ao posfácio do livro, vemos que
não há um consórcio amigável entre o poeta e o crítico. Há um abismo entre o que a carta
63
de Machado diz e o que sua poesia contém. O crítico de si mesmo contraria a ―missão do
poeta‖, contesta tudo que se refere à inspiração, ao sopro divino como sustentação criativa
do autor. Um pretende cantar a inspiração, enquanto o outro declara que ela inexiste. Não
há conciliação. O crítico refuta as produções do passado, mas não rompe completamente
com a memória ao invocar antigos companheiros e o tempo que o coroou escritor.
Essa marca de indefinição e o pudor do crítico parecem ter sido os maiores
empecilhos para que a obra do poeta conseguisse se firmar diante de um ambiente pouco
propício. Estava preso ao passado, mas com a convicção dos tempos mais modernos, e sob
um impiedoso olhar autocrítico. Não podia usar o mesmo artifício dos poetas de sua
geração, marcados pelo ar de juventude, com o pretexto da idade para justificar a
imperfeição dos versos, nem podia cantar sem culpa os excessos juvenis. Deixaria para
Filgueiras a missão de abrir o livro e sairia pela tangente no posfácio.
Não, o meu livro não vai aparecer como o resultado de uma vocação
superior. Confesso o que me falta que é para ter direito de reclamar o
pouco que possuo. O meu livro é esse pouco que tu caracterizaste tão bem
atribuindo os meus versos a um desejo secreto de expansão; não curo de
escolas ou teorias; no culto das musas não sou um sacerdote, sou um fiel
obscuro da vasta multidão dos fiéis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o
meu livro; nem mais, nem menos.
Foi assim que eu cultivei a poesia. Se cometi um erro, tenho
cúmplices, tu e tantos outros, mortos, e ainda vivos. Animaram-me, e bem
sabes o que vale uma animação para os infantes da poesia. Muitas vezes é
a sua perdição. Sê-lo-ia para mim? O público que responda.
Não incluí neste volume todos os meus versos. Faltou-me o tempo
para coligir e corrigir muitos deles, filhos das primeiras incertezas. Vão
porém todos, ou quase todos os versos de recente data. Se um escrúpulo
de não acumular muita coisa sem valor me não detivesse, este primeiro
volume sairia menos magro do que é; entre os dois inconvenientes preferi
o segundo.
Na carta estava contida a negação de seu primeiro parecer crítico sobre a poesia: a
vocação superior do poeta. No entanto, declarava-se um seguidor fiel das musas, embora
fosse um poeta obscuro. Há embutido o desejo de ser um sacerdote? Então, pode-se dizer
que continuava acreditando no antigo parecer, embora não achasse que esse dom existisse
em si. Por que não usou a experiência crítica para reformular os antigos poemas? A falta de
tempo é apresentada como desculpa, mas o que parece pesar é o desinteresse pela obra da
juventude. De fato, o autor não teve a preocupação de difundir os primeiros escritos. Sua
64
obra poética seria recuperada na atualidade, colhida por pesquisadores em álbuns e em
edições antigas dos jornais.
A abundância de pseudônimos é outra indicação do rigor do crítico. Machado se
valeria do artifício com freqüência, recolhendo posteriormente em livro apenas as obras
que houvessem obtido boa acolhida do público. Teria mais liberdade nas escolhas e estaria
atento às críticas feitas, sem que denunciasse sua autoria. Veria a si mesmo de fora, com o
olhar distanciado, e ainda garantiria a isenção das opiniões, podendo colhê-las ao vivo, sem
se sentir ferido pelas críticas.
A poesia suscita a eterna dúvida: missão ou perdição do escritor? Tal parecer
incomodava o escritor, pois não conseguia se desvencilhar da feição clássica do poeta como
intérprete divino, nem tinha como negar a genialidade e a subjetividade românticas.
No livro, optaria pela tradução de poemas de autores consagrados, principalmente
franceses, recolheria outras composições que escrevera sob pseudônimo e selecionaria
poemas recentes, muitos deles declamados publicamente nos saraus, em datas especiais, ou
no teatro. Por essas escolhas, percebe-se que o autor elegeu os poemas que contavam com o
aval prévio do público e que, por isso, antecipavam a recepção crítica posterior que
alcançariam.
Os poemas não-datados ou anteriores a 1860 que nos interessam em particular são
―As rosas‖, ―Monte Alverne‖, ―Maria Duplessis‖ e ―Última folha‖, todos ligados à
experiência poética da juventude. Destacamos também a homenagem a Faustino Xavier de
Novais através da publicação da sátira ―Embirração‖, como paródia da poesia machadiana
―Aspiração‖.
―As rosas‖, dedicado ao prefaciador Filgueiras, é poema sem data. Tudo indica que
tenha sido composto no período das reuniões literárias. Machado se valeria outra vez de
nota explicativa no fim das Crisálidas para esclarecer a origem da composição. Diria que a
escolha era uma homenagem ao título de um livro de poesia do amigo: ―O Dr. Caetano
Filgueiras trabalha há tempos num livro de que são as rosas o título e o objeto‖. 41 Talvez
funcionasse como uma espécie de incentivo ao advogado, que havia publicado o primeiro
livro aos 16 anos, e só tornaria a publicar os Idílios, em 1872, portanto, oito anos depois de
41
ASSIS. T.P. p.89
65
prefaciar a obra machadiana. Parece que, após tanto tempo, até o título anunciado por
Machado acabou sofrendo modificação.
Como já analisamos, o poema ―Monte Alverne‖, dirigia-se ao padre-mestre Silveira
Sarmento, e também foi digno de nota no fim do livro, como se o jovem quisesse relembrar
daqueles que tiveram um papel determinante na sua formação. Apesar do título de ―padremestre‖, Machado destaca a pouca idade do sacerdote, ―alguns anos mais velho do que eu‖,
e reforça a idéia de ―modesto preceptor‖, indicando que a ―formação‖ seria mais uma troca
de experiências do que um ensino formal, tanto que o chama de ―agradável companheiro‖.
Machado refere-se à companhia desse jovem, e, por duas vezes, fala de ―tributo e
admiração‖, e que essa amizade teria marcado um determinado ano de sua existência.
Acrescenta também que ―circunstâncias da vida‖ haviam separado os dois. É uma
afirmação interessante, pois faz suscitar muitas questões, inclusive a de que Machado possa
ter exercido alguma função dentro da Igreja, ainda muito jovem, antes dos seus 15 anos.
Quem sabe um aspirante à carreira eclesiástica?
―Maria Duplessis‖ é uma rememoração da amizade por G. Braga, que publicou
poema com mesmo título, em Tentativas poéticas. Machado explicaria, em nota final, que
as traduções foram feitas na mesma época, como um desafio para ambos, um exercício a
partir do original francês de Dumas Filho.
Em 1858, eu e meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer
uma tradução livre ou paráfrase de Alexandre Dumas Filho. No dia
aprazado, apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele
foi publicada, não me lembro em que jornal.42
Machado, provavelmente, enganou-se na data, pois a composição de Braga foi
publicada em livro em 1856, dois anos antes, portanto, da indicação que consta na nota das
Crisálidas. Talvez o poeta fluminense tenha reformulado a tradução em 1864, quando seu
conhecimento de francês estava mais avançado, advindo daí o engano nas datas.
Tendo em vista que a amizade entre ambos os escritores pode ser comprovada
desde 1855, é muito provável que o episódio da tradução tenha ocorrido nesse ano. Não
tendo publicado o poema na ocasião, Machado teria como reformular e rever sua tradução
42
Idem. ibidem.
66
no lançamento das Crisálidas, já que, como tradutor, era muito respeitado pelos seus
confrades.
Cotejando as traduções, nota-se que Machado foi mais feliz na transposição que o
amigo, o que só reforça a hipótese da reescrita. Para compará-las, escolhemos a estrofe
mais conhecida do poema de Dumas Filho para, em seguida, observarmos as traduções de
Braga (A) e de Machado (B), respectivamente.
Pauvre fille! On m'a dit qu'à votre heure dernière,
Un seul homme était là pour vous fermer les yeux,
Et que, sur le chemin qui mène au cimetière,
Vos amis d'autre fois étaient réduits à deux!
A)
Pobre mulher! Na extrema hora da vida
Um homem viu teu último momento,
Dois amigos d‘amigos teus d‘outr‘ora
Conduziram teu fúnebre saimento!
B)
Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dois amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.
Além de mais fiéis ao original, os versos machadianos foram bem mais
significativos que os de Braga, evitando as repetições de palavras e o excesso de preposição
do penúltimo verso. Braga, além dessas escolhas, abusa das apóstrofes para manter a
métrica.
Por fim, temos o poema ―Última folha‖, que nos interessa particularmente por ser
uma homenagem, embora velada, a Casimiro de Abreu. Machado usaria o mesmo recurso
do autor das Primaveras ao nomear o poema que encerra o livro de ―Última folha‖, a
derradeira chamada à musa do passado, o reconhecimento de que as ilusões tinham
murchado, juntamente com a vida dos seus estimados companheiros de outros tempos.
A epígrafe de Victor Hugo, presente no poema machadiano, assinala a efemeridade
da vida: ―Tout passe, tout fuit‖, assim como mostra a evasão dos anseios e planos de futuro,
certamente confessados nos encontros literários no escritório de Filgueiras. Do mesmo
67
modo, a musa dos primeiros poemas e as ilusões de rapaz parecem ceder espaço a um novo
tempo, em que não se podia simplesmente dedilhar a lira romântica e acreditar que a musa
favorecia o vate, embora constantemente ela surgisse em seus poemas.
O poema que finaliza as Crisálidas, na verdade, é um lamento desiludido, último
sopro de uma Musa alquebrada. O diálogo entre ambos os poemas, o das Primaveras e o
das Crisálidas, funciona como resposta ao poeta morto, que, mesmo partindo tão cedo,
havia alcançado um lugar na galeria dos grandes escritores da literatura brasileira. A
composição marcaria a descida da montanha das musas, reduto do romantismo da geração
casimiriana, e a definitiva despedida de Machado do estilo que marcou uma fase de grande
importância na sua carreira.
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.
Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.
Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.
Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.
Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.
Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã, — e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos,
Irás, musa celeste!
Então, nas horas solenes
68
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;
Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalou;
E o rio, a árvore e o campo,
A areia, a face do mar,
Parecem, como um concerto,
Palpitar, sorrir, orar;
Então sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A glória da natureza,
A ventura, o amor e a paz!
Ah! mas então será mais alto ainda;
Lá onde a alma do vate
Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;
Lá onde, abrindo as asas ambiciosas,
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro,
Fartar-se do infinito!
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia!43
A ―alma do poeta‖ de que nos fala Machado identifica-se com as aspirações do
passado. Também pode se referir ao bardo Casimiro de Abreu, um diálogo com o canto do
poeta, em seu último livro, que, com a morte do corpo, pôde enfim ―fartar-se do infinito‖
sem padecer as dores e as angústias da vida terrena. Basta lermos o poema de Casimiro no
fecho das Primaveras, para notarmos como acontece o diálogo entre ambos os textos.
Última folha
Meu Deus! Meu Pai! Se o filho da desgraça
43
ASSIS. T.P. p.85
69
Tem jus um dia ao galardão remoto,
Ouve estas preces e me cumpre o voto
- A mim que bebo do absinto a taça!
- ―Feliz serás se como eu sofreres,
Dar-te-ei o céu em recompensa ao pranto‖ –
Vós o disseste – E eu padeço tanto!...
Que novos transes preparar-me queres?
Tudo me roubam meus cruéis tiranos:
Amor, família, felicidade, tudo!...
Palmas da glória, meus lauréis do estudo,
Fogo do gênio, aspiração dos anos!...
Mas teu filho já não se rebela
Por tal castigo, pelas mágoas duras;
- Minh‘alma of‘reço às provações futuras...
Venha o martírio... mas – perdão p‘ra ela!...
A doce virgem se assemelha às flores...
O vento quebra no seu verde ninho.
- Velai ao menos pelo pobre anjinho,
- Pagai-lhe em gozo o que me dais em dores!44
A ―doce virgem‖ é, na verdade, a personificação da poesia, como o próprio
Casimiro a definiria num texto em prosa chamado ―A virgem loura‖. Descreve-a, nesse
texto, como uma mulher por quem se apaixonou ainda na infância, mas a vida teria feito de
tudo para afastá-la de si. No fim do texto, confessa: ―- Mas quem era a Virgem Loura? (...)
– Pois não adivinharam?!... Era a – poesia.‖45
Pela indicação do poeta, pode-se afirmar que a virgem que deseja ver preservada
após a sua morte é sua obra poética. Assim, a oração devotada do poeta ao ―Pai‖, que tanto
representa Deus quanto a autoritária figura paterna, é para que se cumpra o voto de
conceder alegria após tantas provações e dores a que foi submetido em vida, recompensa de
quem se submeteu às imposições paternas sem se rebelar, aceitando tudo, e sacrificando a
vocação de poeta. A única felicidade possível é o gozo do reconhecimento literário, ainda
que póstumo.
Machado, apegado à vocação clássica, utiliza a Musa como símbolo da poesia ou
da inspiração poética. Tinha preferência por essa representação, no lugar da ―virgem loura‖
44
45
ABREU. Op.cit. p.159
Idem. p. 218.
70
casimiriana, de feição mais pura, embora exista uma afirmação indireta no verso
machadiano ―seus cabelos de ouro‖, em relação à figura. Nota-se que a evocação é a
mesma de Casimiro: que se mantenha o vigor da poesia, que se preserve o gozo, a ―última
harmonia‖ como eco do desejo da ―alma do poeta‖.
Além de dialogar com Casimiro, Machado construiu o livro realizando a ligação
entre o primeiro e o último poema. Havia clamado pela ―Musa Consolatrix‖ na abertura do
livro, aquela que conforta o poeta e lhe garante a tranqüilidade, a paz e o ―último bem,
último e puro‖. Encerra, com outra musa, a da memória, única capaz de guardar a ―última
harmonia‖ do poeta, o eco do passado, já que o presente não mais alimentava as ilusões de
outrora.
1.4- De Corina a Carolina: entre a musa poética e a poética da musa
Acompanhando a subida do poeta à montanha das musas e a sua ascensão no ambiente
literário, notamos a interpenetração de elementos que se filiam à vida e à obra do autor. A
musa machadiana tanto pode ser inspiração dos mestres do passado quanto transfiguração
das experiências pessoais da juventude. Entre realidade e ficção, percebem-se fronteiras
tênues que ora negam a experiência, ora reafirmam suas convicções. Como tradutor da
própria realidade, o escritor filtra os dados do cotidiano e os expõe sob o rigor de sua
consciência estética. Seja na afirmação ou na negação da realidade, ainda é sobre o mesmo
palco que luzes e sombras aparecem diante do público, cabendo ao espectador confiar ou
não na acuidade de sua visão e na presteza de suas percepções.
71
Nas Crisálidas, identificamos as influências do escritor e vimos as homenagens ao
grupo que o formou. Ainda que se tenha observado uma feição romântica no livro, ele
também comporta uma concepção contrária a essa estética, denunciada no prefácio e
confirmada no posfácio pelo próprio escritor. A rememoração do passado parece dar um
tom romântico aos versos, mas o exame incisivo do crítico parece concluir que as ilusões
não dispõem mais de espaço em sua poética.
A partir do tema da metamorfose, o poeta recolhe da tradição clássica o mote para
seus versos. Declinando do ultra-romantismo cultivado nos poemas dispersos, Machado
renega os sentimentos de outrora, mas vale-se da memória como inspiração. O passado é,
sem dúvida, fonte que não transborda em sentimentos, mas em evocações. A musa ostenta,
portanto, ares épicos, no que se tange à evocação do passado para eternizar os antigos
feitos, embora a ―batalha‖ do poeta seja pela conquista do amor.
Se pensarmos numa Ilíada, por exemplo, pode-se dizer que há um conflito amoroso
que influi no campo de guerra: o rapto de Helena, que desencadeia o conflito, e a disputa
por Briseis, que provoca a ira de Aquiles, e, conseqüentemente, sua retirada do combate.
O poema do livro que mais revela essa característica é, sem dúvida, ―Versos a
Corina‖. De início, percebe-se que a própria concepção do poema se fundamenta numa
retomada clássica, com seus seis cantos destinados a fazer o elogio da musa. O verso ―É o
amor que une Ovídio à formosa Corina‖ é uma referência direta ao livro Amores, de
Ovídio, de feição erótica, cuja musa apresenta o mesmo pseudônimo escolhido por
Machado para nomear a amada.
Os Amores seriam muito difundidos e lidos pelos jovens brasileiros, graças à tradução
de José Feliciano de Castilho, que verteu o poema do latim para o português. Poeta da
admiração de Machado, o tradutor português foi citado num dos prefácios machadianos
(mais precisamente, Os deuses de casaca) como um dos grandes cultores do verso
alexandrino em língua vernácula.
O teor erótico dos versos de Ovídio é francamente revelado na ―Advertência‖ no
frontispício do volume traduzido por Castilho, que, ao que parece, em vez de aconselhar os
jovens a desistirem da leitura, conforme a suposta pretensão do tradutor, parece atraí-los
ainda mais pela curiosidade:
72
ADVERTÊNCIA IMPORTANTE.
Adolescentes de um e outro sexo!
Sob um título que vos poderá atrair, este livro contém mistérios de
iniqüidade. Se o abrísseis, depois desse pregão, só de vós mesmos vos
podereis queixar. Não é para vós que foi escrito. Quem o apresentasse, ou
o permitisse à inocência, só esse seria o seu envenenador.46
Apesar da advertência, os versos traduzidos por Castilho não chegam a expor
explicitamente o intercurso amoroso, sublimado em metáforas enviesadas que apenas o
sugerem. Inspirando-se na lírica ovidiana, na tradução de Castilho, Machado mantém a
sublimação do erotismo nos poemas de Crisálidas, associando o corpo feminino à flor, à
brisa, à areia, enfim, metamorfoseando a mulher em elementos vários da natureza, para que,
como a chuva de ouro de Dânae, pudesse fecundar o território do desejo sob o disfarce da
metáfora erótica. A sugestão, nesse caso, é sempre mais convincente do que a ação
propriamente dita.
Mesmo com a retomada da temática ovidiana, a vertente pagã do amor não seria
exclusiva na lírica de Machado. A faceta religiosa, tendência do autor, desponta quando o
poeta une o Cântico dos cânticos bíblico, em que o rei Salomão saúda a esposa, aos versos
de Ovídio, embora neste o propósito fosse o de exaltar a amante.
É interessante essa ligação entre o amor permitido e o interditado, entre a inspiração
pagã e a cristã, entre a união conjugal e o desejo proibido. Sulamita ou Corina, a musa
oscila entre a eternidade dos sentimentos e a efemeridade das paixões. Encetemos a leitura
do poema, que tornou Machado conhecido, à época, como ―o vate de Corina‖.
De imediato, na primeira estrofe, ocorre a ―gênese‖ de Corina, que tanto pode ser Eva,
criada pelas mãos de Deus, quanto Vênus, nascida da espuma do mar. Trabalhando o
conceito clássico do amor, que divide a índole feminina em ativa ou contemplativa,
operando a distinção entre a Vênus pura e a sensual, Machado busca reunir ambas as
naturezas numa única mulher. Assim, há resquícios de amor cortês, o ―amor de alma‖
puramente contemplativo de um Dante ou de Petrarca, fundidos ao amor concreto e sensual
de um Ovídio. O poeta diz que Corina nasceu ―de um beijo e de um olhar‖, da volúpia e da
pureza; portanto, simultaneamente ativa e contemplativa.
46
CASTILHO, José Feliciano de. ―Advertência‖. In: OVÍDIO. Amores. (tradução parafrástica de Antonio
Feliciano de Castilho). Rio de Janeiro: Bernardo Xavier Pinto de Sousa, 1858. p. 5.
73
Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo
Numa hora de amor, de ternura e desejo,
Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;
Depois, depois vestindo a forma peregrina,
Aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!
De um júbilo divino os cantos entoava
A natureza mãe, e tudo palpitava,
A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude,
De uma vida melhor e nova juventude.
Minh‘alma adivinhou a origem do teu ser;
Quis cantar e sentir; quis amar e viver;
A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,
Palpitou, reviveu a pobre criatura;
Do amor grande elevado abriram-se-lhe as fontes;
Fulgiram novos sóis, rasgaram-se horizontes;
Surgiu, abrindo em flor, uma nova região;
Era o dia marcado à minha redenção
Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim:
Corpo de fascinar, alma de querubim;
A união de elementos que se relacionam ao masculino e ao feminino, força e
delicadeza, é representada respectivamente pela pedra e pela flor. Também se percebe a
composição da imagem feminina partindo de conceitos clássicos e medievais: corpo/alma,
beleza exterior (formas perfeitas) e alma pura. Assim, o poeta determina que a mulher
amada tenha: ―Corpo de fascinar, alma de querubim‖.
Duas figuras gregas são evocadas para compor a imagem sonhada: ―grave como Juno,
e bela como Helena!‖. A deusa mitológica, como se sabe, é símbolo do amor conjugal,
enquanto Helena é o exemplo típico de infidelidade, de amor proibido, provocador de
conflitos e destruição. Só que o poeta idealiza essa mulher de maneira que não seja leviana
como Helena, nem rancorosa como Juno, mas que retenha no caráter o que cada uma dessas
figuras possui de melhor: fidelidade e beleza.
O amor platônico e o sexual se casariam na criação poética de Corina, instituindo o
ideal a partir das exigências do real, e vice-versa. O desejo procura a forma física, enquanto
a alma busca a pureza das idéias, a castidade do coração. Não por acaso, os versos reforçam
a idéia ao contraporem ―a fusão do ser‖ à ―efusão de amor‖: a contenção – que estreita os
amantes num beijo -, e a expansão - no derramamento lírico e amoroso, que resulta na plena
satisfação do desejo.
74
Neste fundo sentir, nesta fascinação,
Que pede do poeta o amante coração?
Viver como nasceste, ó beleza, ó primor,
De uma fusão do ser, de uma efusão de amor.
Viver, - fundir a existência
Em um ósculo de amor,
Fazer de ambas – uma essência.47
A construção da imagem da musa, entre o beijo e o olhar, segue elementos pagãos, ―a
união do céu e da terra‖, embora também evoque o ―olhar de vida do Senhor‖, que marca a
presença do elemento cristão. Essa disposição entre temperamentos - ativo/contemplativo e a fusão de elementos pagãos/cristãos são atitudes amplamente apregoadas pelos
neoplatônicos do Renascimento, embora ambas as concepções já estivessem presentes no
contexto filosófico, artístico e literário de períodos anteriores.
Tomando como base a lírica de Dante, podemos dizer que no poema machadiano há o
contraste entre ambas as disposições: ―vedere‖ e ―ovrare‖. No ―Purgatório‖ da Commédia
(canto XXVII), duas figuras bíblicas - Raquel e Lia - representam uma dessas tendências.
A disposição ativa de Lia determina que sua beleza apenas seja manifesta pela ação de se
adornar, enquanto a formosura de Raquel reside no rosto ao natural. Assim, em Lia o
artifício é que gera o encanto, ao passo que a arte pura, obra da natureza, é que coroa
Raquel.
Sappia qualunque il mio nome dimanda
ch‘i‘mi son Lia, e vo movendo intorno
le belle mani a farmi uma ghirlanda.
Per piacermi a lo specchio, qui m‘addorno;
ma mia suora Rachel mai non si smaga
dal suo miraglio, e siede tutto giorno.
Ell‘è d‘i suoi belli occhi veder vaga
com‘io de l‘addornarmi con le mani;
lei lo vedere, e me l‘ovrare appaga.48
47
ASSIS. T.P. p. 72.
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. (Trad. Ítalo Eugênio Mauro). São Paulo: Ed. 34, 1998. p.180
(―Purgatório‖, canto XXVII, verso: 100 ao 108). ―Saiba quem quer que de mim perguntar:/ com minhas belas
mãos, meu nome é Lia,/ uma grinalda aqui vou arrumar,/pra no espelho me ver com alegria;// mas minha irmã
48
75
A fala de Lia mostra um contraste entre a sua índole e a da irmã, evidenciado pelos
verbos ―vedere‖ e ―ovrare‖ do último verso. Na tradução literal, temos: ―para ela, o ver,
para mim o fazer satisfaz‖. É a clássica distinção entre aparência exterior – obtida pelo
adorno: ovrare; e essência, atributo natural e intransferível. Na tradição medieval, o amor
platônico é o mais sublime dos sentimentos, pois prevê a satisfação da alma, sentimento
que não se deteriora e, por isso, eterno. Opõe-se a ele o amor sexual, instintivo e profano,
ligado unicamente ao desejo, que se extingue após a satisfação da volúpia do corpo. Assim
o ―ver‖ é como uma devoção religiosa: a mulher é tanto mais amada quanto mais intocável
for; enquanto o ―fazer‖ - o amor ativo - é mera execução do impulso humano.
Na tradição grega, ―ver‖ está relacionado diretamente a ―saber‖. Advém dessa
concepção a idéia de que o amor platônico revela a verdadeira sabedoria, o encontro
perfeito, tal como o cantado por Dante, que alcança o mais alto conhecimento através do
amor que sente por Beatriz.
Num dos últimos cantos do ―Paraíso‖ (XXIX), o poeta contrapõe o saber ao amar,
dando ênfase ao primeiro, pois, sem ele, o verdadeiro amor jamais seria manifesto. O ―ver‖
seria a condição necessária para a manifestação da sabedoria:
E dei saper che tutti hanno diletto
quanto la sua veduta si profonda
nel vero in che si queta ogni intelletto.
Quinci si può veder come si fonda
l‘esser beato ne l‘atto che vede,
non in quel ch‘ama, che poscia seconda;
e del vedere è misura mercede,
Che grazia partorisce e buona voglia:
Cosi di grado in grado si procede.49
Observando a obra de outros autores, verificamos exemplos de oposição do ativo e do
contemplativo. Por exemplo, nas Artes, destacamos a construção do túmulo do Papa Júlio
Raquel nunca se afasta/ do espelho seu, sentada todo dia,/ a olhar seus belos olhos ela gasta;/ e eu a com
minhas mãos me embelecer;/ para ela: olhar; para mim só o fazer basta.‖
49
Idem. canto XXIX , versos 106 a 114. p. 199 . Trad: ―Que todos têm deleite, hás de saber/ conforme a sua
visão mais se aprofunda/ na Verdade que aquieta o seu querer.// Daí verás que a ventura se funda/ no ato de
ver, isto é, na conhecença,/ e não no amor , que só após secunda;// e desse ver mede-se a recompensa/ que
vem da Graça – de quem bem a acolha -/ que grau a grau o seu favor dispensa.‖
76
II, em que Michelangelo Buonarroti, inspirado na lírica dantesca e no pensamento então
vigente, concebe duas estátuas – uma de Lia, outra de Raquel – para comporem os nichos
laterais do seu conhecido ―Moisés‖ (embora apenas esta última imagem tenha sido
esculpida por ele), assim como ambos os temperamentos (ativo e contemplativo) seriam
referências constantes na sua concepção artística.
De tal maneira o amor contemplativo era valorizado no período do Renascimento que
Michelangelo, em sua lírica, escreve um dos poemas mais concretos e perfeitos em relação
à tônica amorosa. A imagem criada pelo artista mostra o dilema do amor transcendental, de
alma, frente à atração física, do corpo. Como negação do desejo sexual e para alcance
máximo da realização contemplativa, o poeta, não podendo ascender até a mulher amada
(como Dante faz), deseja que todo seu corpo se transforme num olho, para que dela possa
desfrutar inteiramente:
Os olhos meus, que perto ou longe vão,
podem ver onde está teu belo rosto
mas onde vêem, senhora, é-nos imposto
não hi chegar co os braços, ou co a mão.
A alma, como engenho inteiro e são,
mais livre nos meus olhos sobe o posto
de tua beleza, mas o ardor desposto
não dá ao corpo, aqui tal distinção.
Mortal, sem asas, como seguiria
de um anjo o vôo, e entre aflições terrenas?
Vê-lo, tão só, não me há de alevantar.
Oh! Se és no céu, por mim, de igual valia,
faz de meu corpo todo um olho apenas
e seja eu todo, em mim, te desfruitar.50
Camões também aborda num de seus sonetos a oposição Raquel/ Lia para enfocar o
amor que ultrapassa os limites da vida e se estende para a eternidade. Trata-se de ―Sete
anos de pastor‖, em que a serenidade de Jacó ganha destaque, apesar da força do
sentimento que nutre por Raquel, principalmente porque o ―ver‖ suplanta a possibilidade do
50
BUONARROTI, Michelangelo. Cinqüenta poemas. (Trad. Mauro Gama). Cotia; SP: Ateliê Editorial, 2007.
p. 69.
77
―ter‖, como se o servir fosse a condição essencial para estar próximo do objeto de
contemplação: ―Os dias na esperança de um só dia/ Passava, contentando-se com vê-la.‖
Camões exalta mais a atitude servil do patriarca bíblico do que a disposição para
tomar posse do objeto amado: o contemplativo Jacó, por amar sua ―pastora‖, dedica-lhe
uma vida de trabalho, e, por ela, seria servo até o fim dos seus dias: ― - Mais servira se não
fora/ Pera tão longo amor tão curta a vida.‖51
A retomada do tema é importante para entendermos a intenção de Machado, que
parece ser a fusão do ativo (beijo) e do contemplativo (olhar) numa única imagem
feminina. A idealização estaria na complementação entre ambos os caracteres, desfazendo
a antiga separação entre corpo e alma. Corina seria a mulher completa, recriada pelo poeta
com traços mitológicos e cristãos; uma Eva, enfim, que não se corrompe, uma Helena que
não trai, mas que não deixa de ser desejável aos olhos e agradável também aos outros
sentidos do corpo.
Há nos ―Versos a Corina‖ uma das mais belas estrofes machadianas, sumariamente
podada na edição de 1901 de suas Poesias completas. O trecho evoca as musas dos grandes
autores universais, e dele provém também a divisa adotada pela Academia Brasileira de
Letras, como símbolo da imortalidade literária: ―Esta a glória que fica, eleva, honra e
consola‖. Retirado do contexto, o verso original do lema parece tratar das glórias literárias;
no entanto, sua verdadeira intenção era exaltar a glória amorosa, já que o poema eterniza a
musa, celebrando o amor acima de todos os bens do mundo, até mesmo da obra que
inspirou.
És tu a maior glória de minha alma,
Se o meu amor profundo não te alcança,
De que me servirá outra esperança?
Que glória tirarei de alheia palma?
Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória,
É esta que nos orna a poesia da história;
É a glória do céu, é a glória do amor.
É Tasso eternizando a princesa Leonor;
É Lídia ornando a lira ao venusino Horácio;
É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,
Seguindo além da vida as viagens do Dante;
É do cantor do Gama o hino triste e amante
51
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões. São Paulo: Ed. Saraiva, 1968. p. 11.
78
Levando à eternidade o amor de Catarina;
É o amor que une Ovídio à formosa Corina;
O de Cíntia a Propércio, o de Lésbia a Catulo;
O da divina Délia ao divino Tibulo.
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;
Outra não há melhor, se faltar esta esmola,
Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,
Com que se alenta e vive o amante coração,
Deixar-lhe um dia o céu azul, tão tranqüilo,
Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.
Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,
Viver na solidão a vida de outros seres,
Vegetar como o arbusto, e murchar, como a flor,
Como um corpo sem alma ou alma sem amor.
A ênfase no final da estrofe reitera o que abordamos acerca de Corina: ela reúne terra
e céu. A ilusão, nesse caso, parece ser necessária para a plena satisfação do corpo e da
alma, é a ―esmola‖ do coração, aquilo de que não se pode abdicar, sob o risco de viver:
―como um corpo sem alma ou alma sem amor‖.
Antes de encontrar Corina, o poeta buscava o ideal ora numa instância, ora noutra:
―Desci ao chão do vale que se abria/ Subi ao cume da montanha alpestre‖. A catábase e a
anábase, movimentos de Dante na Commedia e de Orfeu no mito grego, não podem
satisfazer o anseio de união que reside no poeta. A inspiração é buscada no alto, reduto das
musas e da poesia, mas nenhuma resposta se obtém. Assim, pronunciando uma blasfêmia
atroz, o poeta acaba por unir-se definitivamente à terra, elemento prosaico por natureza:
―Se a blasfêmia o meu lábio poluíra,/ Quando depois de tempo e de cansaço,/ Beijei a terra
no mortal abraço/ E espedacei desanimado a lira.‖
A descida do monte, movimento antipoético, expõe a queda do poeta no terreno do
prosaico, o despedaçamento da lira, assim como ocorreu com Orfeu: sua música pode até
interferir no mundo dos mortos, mas Eurídice não tem corpo, não consegue ascender ao
mundo dos vivos. Só Corina é capaz de intermediar ―um desejo da terra e um toque do
Senhor‖, toque de materialidade na etérea poesia.
O esboço dos dois caracteres femininos – ativo e contemplativo – aparece no poema
das Crisálidas, mas torna-se um dos traços marcantes da escrita machadiana, ainda quando
tratamos da sua obra em prosa. Basta lembrarmos dos romances da chamada ―primeira
fase‖, todos com oposições entre as personagens femininas: em Ressurreição, entre Lívia e
79
Raquel; em Helena, entre a protagonista e Eugênia, e em Iaiá Garcia, entre Lina (Iaiá) e
Estela. No prefácio de Ressurreição, o próprio autor revelaria: ―tentei o esboço de uma
situação e o contraste de dois caracteres‖.52 Desde a coincidência ou similitude dos nomes
das personagens, até a criação de seus perfis, existe uma correspondência quase exata com
o conceito feminino esboçado na lírica de Dante e no neoplatonismo, quando se trata da
oposição entre Lia e Raquel.
Um olhar mais atento para essas figuras machadianas é o suficiente para notarmos o
contraste intrínseco entre elas. Por um lado temos a representação dos caprichos femininos,
seja pela educação ou pela índole das moças, como se nota em Iaiá e Eugênia. Elas
representam mais instinto e vontade do que sabedoria e ponderação. Por outro lado,
personagens como Helena e Estela são capazes de renunciar ao desejo para manterem a
dignidade pessoal. Por isso não há conciliação em nenhum desses romances, tudo termina
em dissolução. É impossível tomar posse do objeto amado: caso isso ocorresse, o
sentimento estaria fadado ao desgaste.
Como no ritual do amor cortês, a impossibilidade da união é que sustenta a trama
amorosa. No momento em que a união se mostra possível – com a viuvez de Estela, por
exemplo – o afastamento espacial, e definitivo, se faz necessário.
Em relação a Dante, a epígrafe de ―Versos a Corina‖ é indício da sintonia de Machado
para com a obra e o pensamento do florentino: ―Tacendo il nome di questa gentilissima‖- o
véu do pseudônimo calaria, portanto, o nome verdadeiro da ―dama gentil‖. Assim como
Dante, Machado teria se inspirado numa mulher real para compor os ―Versos a Corina‖,
ainda que não se possa afirmar com exatidão se a musa foi, de fato, a atriz Gabriela da
Cunha.
A epígrafe do poema de Machado faz parte de Vita Nuova, obra em verso e prosa,
onde Dante narra sua experiência afetiva desde o momento em que conheceu Beatriz - aos
nove anos -, até a morte da amada. Entremeado ao relato, há poemas detalhadamente
explicados pelo autor, todos voltados para a temática amorosa. O trecho selecionado integra
o capítulo XXIII do livro, onde Dante relata o delírio que teve num período de grave
enfermidade, quando pressente e presencia a morte de Beatriz, e, diante do fato, deseja
morrer juntamente com ela.
52
ASSIS. Ressurreição. In:____. O.C. vol 1. p. 116.
80
A visão que se lhe revela é terrível, aparecem mulheres desgrenhadas que o condenam,
há lamentos e maldições e os elementos do céu são abalados. Tudo prenuncia o fim do
mundo, o derradeiro esfacelamento da Terra. Podemos até afirmar que o capítulo do delírio
de Vida Nova é o embrião da Commedia, já que a imagem de Beatriz vai trazer o poeta de
volta à realidade, estando ele numa espécie de delírio de morte. A dama, nesse caso, o faz
voltar à vida, assim como, na obra-prima de Dante, o conduziria ao Paraíso.
―Não durma mais‖ e ―não se torture‖. Ante essas vozes, a minha fantasia
teve fim, justamente no ponto em que eu estava para pronunciar ―Ó
Beatriz, bendita seja‖; já havia começado a falar ―Ó Beatriz‖, quando
despertando, abri os olhos e vi que estava enganado. (...) mais
reconfortado e dando-me conta da enganosa imaginação, respondi: ―Vou
dizer o que aconteceu comigo‖. Então, do começo ao fim, eu lhes contei o
que havia visto, calando o nome da mais que gentil. Depois, já curado
da doença, dispus-me a dizer palavras a respeito do que me havia
sucedido, julgando que fosse coisa agradável de ouvir. Compus então a
canção que começa com Mulher piedosa e de bem pouca idade. (grifo
nosso) 53
A cena de Dante, apreciada por Machado e evocada na epígrafe, traz muitas
informações importantes, não só em relação aos ―Versos a Corina‖, mas também quanto à
obra machadiana da maturidade. As Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo,
retomam o tema do delírio e da morte, com a ressalva de que Vírgília, a amada de Brás, não
é nenhuma Beatriz. Como o Virgílio de Dante, a personagem só poderá conduzir seu par ao
Inferno e ao Purgatório, sem fazê-lo, portanto, atingir o Paraíso sonhado, e tampouco a
plena realização amorosa.
No delírio de Brás, é Pandora que o recebe na terra dos gelos eternos, lugar tão frio
quanto os círculos mais malditos do Inferno dantesco. Acometido por uma enfermidade, tal
como o personagem de Vida Nova, nem mesmo a presença de Virgília, ―ao pé do leito
derradeiro‖, impede que Brás seja mortalmente vitimado pela idéia fixa que o enfermou. A
busca pelo utópico emplastro aliviador das dores da humanidade resume o desejo fáustico
da glória mundana: fama e riqueza, quando, na verdade, o imenso vazio existencial clama,
ainda que obliquamente, pelo fim das angústias pessoais. Na obra de Dante, a máxima cura,
53
ALIGHIERI, Dante. Vida Nova. In: ____ (et al.). Retrato do amor quando jovem. (Trad. Décio Pignatari).
São Paulo: Cia das Letras, 2006. p.52.
81
a utopia dantesca, é Beatriz, que resume o conhecimento e o ideal, sendo, portanto, o
caminho para a remissão e para a definitiva ascensão do poeta.
Se na prosa o contraste entre caracteres é absoluto e indissolúvel, no poema das
Crisálidas, o jovem Machado segue a utopia dantesca com toda a convicção, formulando a
imagem de uma musa ideal que deve ser eternizada em versos, ao contrário do que faria na
maturidade. Nas Memórias, embora pelo mesmo viés, o escritor renegaria a versão otimista
da morte como libertação e acrescentaria à sinfonia melancólica do mundo o coro
descompassado do riso cômico.
Comparando o delírio dantesco ao machadiano, encontramos pontos em comum ou
inversamente proporcionais: Pandora leva Brás para o alto da montanha, mas está longe de
ser uma musa: é mãe e inimiga; portanto, mostrará flagelos e delícias. Em vez de revelar as
glórias futuras, essa ―antimusa‖ desnuda as vãs ambições do homem, mostrando ―a
necessidade da vida e a melancolia do desamparo‖.
O teor do diálogo entre a Natureza e Brás, em que se discute o valor da vida humana,
se assemelha ao discurso ouvido por Dante em seu delírio: ―Em seguida, ressoa / uma voz
sem verdade e sem razão,/ uma voz de mulher ou de mil cobras:/ ―- Você, da Morte é só
uma das obras‖54.
Brás, por sua vez, sente-se devorado pela impiedade de Pandora,
chamando-a de ―absurda‖, por destruir o que criou. Pandora, entretanto, replica que não
precisa mais de Brás, por isso o consumia impiedosamente, do mesmo modo que fez com
outros antes dele, e que faria com os que se seguiriam depois. Chega a chamá-lo de
―verme‖ apegado às inúteis migalhas de vida.
Há um contraponto interessante entre Pandora e Beatriz. Brás, dirigindo-se à primeira,
mostra o desejo de continuar vivo, mesmo diante de sua inutilidade, e de tantos flagelos
impostos pelo viver: ―Quem me pôs este amor à vida senão tu?‖. Contrariamente, no poema
do capítulo XXIII de Vida Nova, Dante assim dialoga com Beatriz: ―Quem me trouxe/ esta
vontade de morrer? Você!‖. Embora o poeta sinta uma grande desilusão diante do
falecimento da amada, e chegue a desejar a própria morte, é esta mesma dama que lhe
permite retornar à realidade, ao suspender as alucinações no leito de morte do poeta,
operando uma espécie de ―ressurreição‖.
54
Idem. p.54.
82
No romance machadiano, Pandora ri-se do desejo de Brás, síntese dos anseios
humanos: para que viver se a vida não passa de uma busca desenfreada pela Quimera da
felicidade, que jamais pode ser alcançada sem que se desfaça como uma visão do
impalpável?
No entanto, veremos mais adiante, que, embora a filosofia da obra machadiana da
maturidade desacreditasse o ideal, há vestígios, no final da vida do autor, de uma
reincorporação de certa vertente libertadora do amor, principalmente com o retorno de
temas biográficos, como no Memorial de Aires. Na última cena desse livro, parece que
ouvimos o eco, embora com laivos de solidão, dos ―Versos a Corina‖: ―Esta a glória que
fica, eleva, honra e consola‖. Enfim, Carmo e Aguiar encontrariam consolo frente às
angústias da vida, ainda que sem glória e elevação: achariam, na convivência mútua, o
emplastro para aliviar suas dores, mesmo diante do legado indiscutível das misérias
humanas.
Como ocorre na Vita Nuova, de Dante, onde o próprio autor revela o motivo da
inspiração dos versos, Machado também deixaria registrado, em uma carta enviada à noiva
Carolina, que o poema das Crisálidas havia se baseado em dados da realidade.
Curiosamente, o escritor fala em dois amores, um correspondido (ativo) e outro nãocorrespondido (contemplativo); e de um terceiro – Carolina – que reuniria razão e emoção,
perfeita fusão do sentimento e do intelecto: a mulher ideal.
Pelo teor da resposta de Machado, o discurso procurava abrandar os ciúmes da futura
esposa em relação à musa das Crisálidas.
―És tão dócil como eu; a razão fala em nós ambos. Pedes-me cousas tão
justas, que eu nem teria pretexto de te recusar se quisesse recusar-te
alguma cousa, e não quero./.../
Acusas-me de pouco confiante em ti? Tens e não tens razão; confiante
sou; mas se não contei nada é porque não valia a pena contar. A minha
história passada do coração resume-se em dous capítulos: um amor
correspondido; outro, não-correspondido. Do primeiro nada tenho que
dizer; do outro não me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo. Não me
acuses por isso; há situações que se não prolongam sem sofrimento.(...) A
tua pergunta natural é esta: Qual destes dous capítulos era o de Corina?
Curiosa! era o primeiro. O que te afirmo é que dos dois o mais amado foi
o segundo./ Mas nem o primeiro nem o segundo se parecem nada com o
terceiro e último capítulo do meu coração. Diz a Staël que os primeiros
amores não são os mais fortes porque nascem simplesmente da
necessidade de amar. Assim é comigo; mas, além dessas, há uma razão
83
capital, e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho
conhecido. Espírito e coração como os teus são prendas raras; alma tão
boa e elevada, sensibilidade tão melindrosa, razão tão reta não são bens
que a natureza espalhasse às mãos cheias pelo teu sexo. Tu pertences ao
pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar. 55
Diante de versos tão inspirados e reveladores como os do poema das Crisálidas,
Carolina tinha muitas razões para sentir ciúmes da musa que os havia inspirado. Talvez por
esse mesmo motivo o escritor teve o pudor de cortar a estrofe ao reeditar a obra poética na
maturidade. Afinal, o ―eterno‖, cantado no poema, fora corroído pela traça do minuto, e
nada mais restava da glória de Corina depois daquele momento, a não ser a sombra do
ciúme.
A sexta parte dos ―Versos a Corina‖ é um canto de lamento, pois a musa tomou o
―caminho do mar‖ e se distanciou do poeta. Há a quebra da ilusão inicial: o ideal sonhado
não se concretiza, a mulher que reunia amor e desejo, enfim, se restringe a uma lembrança nem beijo, nem olhar. O poeta retoma a dupla concepção de amor por ele idealizado, mas
admite que tudo não passou de um sentimento quimérico:
Eu só quis, numa ventura calma,
Sentir e ver o amor através de uma alma;
De outras vãs não valeu o esplendor,
A beleza eras tu: - tinhas a alma e o amor.
Pelicano do amor, dilacerei meu peito,
E com meu próprio sangue os filhos meus aleito;
Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;
Por eles reparti minh‘alma. Na provança
Ele não fraqueou, antes surgiu mais forte;
É que eu pus neste amor, neste último transporte,
Tudo que vivifica a minha juventude:
O culto da verdade e o culto da virtude,
A vênia do passado e a ambição do futuro,
O que há de grande e belo, o que há de nobre e puro. (grifo nosso)
Se o amor a Corina é ―o último transporte‖, o distanciamento da amada é a definitiva
perda, o corte derradeiro da ilusão, ainda que, como fênix, o sentimento surja ainda mais
55
ASSIS. O.C. Vol.3. p. 1.029.
84
forte e seja a motivação para compor o poema. A poesia seria o espaço de realização do
impossível, de celebração do quimérico, mesmo que sob a égide de uma esperança
corroída, passível de esfacelamento ao mais leve sopro da desilusão.
Outro elemento do poema é o pelicano, símbolo medieval relacionado ao sacrifício.
Como se percebe em alguns hinos sacros, a Igreja comparava o desvelo dessa ave a Cristo,
pois, no passado, julgava-se que esse animal, por trazer alimento dentro do bico, alimentava
suas crias com a própria carne. Por causa disso, associaram a figura ao sacrifício do pai
pelos filhos e, conseqüentemente, ao martírio do Salvador.
A imagem do pelicano foi também usada por Dante na Commedia56. Embora tratada
como símbolo católico, tem implicações várias na maçonaria e na alquimia, e todas as
concepções, cristãs ou pagãs, a relacionam à dedicação, ao esforço humano ou divino para
se atingir um ideal à custa da própria vida.
No poema machadiano, o sacrifício advém da busca pela imortalidade dos versos,
único meio de eternizar a musa e de uni-la ao nome do poeta para sempre, como acontece
aos clássicos. Para tal, o poeta precisa doar seus sentimentos, sua própria essência, para
revivê-los em seguida, ainda mais fortes que antes. Os seus ―filhos‖ – o desejo, a quimera e
a esperança - mesmo efêmeros, trazem em si o vigor da juventude, que é integralmente
depositado nesse ―último transporte‖: o canto derradeiro, o acorde final da lira de Orfeu.
56
―Paraíso‖. Canto XXV, verso 112 a 114.
85
1.5- Falenas: o sofrimento como tema
Se Corina marcou a trajetória poética de Machado em seu primeiro livro do gênero,
Carolina seria a inspiração para muitos dos poemas de Falenas. Lançado em 1870, no ano
seguinte ao casamento do poeta, o livro traz várias composições que se relacionam ao
período do noivado.
A borboleta (falena), após um período de reclusão no casulo, havia enfim vindo à luz.
Apesar das asas negras e do vôo crepuscular, o inseto machadiano nascia com a promessa
de fundir os três gêneros: o lírico, o épico e o dramático. Assim, o livro comportaria desde
poemas curtos até os longos e narrativos, e o escritor se enveredaria por vias profusas, ora
esboçando um gosto por temas dramáticos e trágicos, ora explorando o viés herói-cômico,
inspirado num Cruz e Silva e num Boileau, como nas estrofes de ―Pálida Elvira‖.
O lirismo de Falenas é, visivelmente, mais contido, mas ocorre um grande salto de
qualidade na lírica machadiana. O livro exibe uma poesia consistente tanto nas temáticas
quanto nos modelos adotados. Apesar da insistência no tema da musa, não existe uma
feição única no livro. A estética romântica estava diluída, enquanto a atmosfera clássica, as
paisagens exóticas, os temas universais passavam a ocupar a atenção do poeta.
O poema de abertura já indica a continuidade do diálogo com a musa e a fidelidade ao
tema clássico. ―Prelúdio‖ foi escrito inicialmente no álbum de Carolina57, e tudo indica que
Machado tenha retomado o tema de Octave Feuillet para render homenagem à amada, ainda
no período do prelúdio amoroso do casal.
O álbum de Carolina, por sua vez, já tinha sido alvo de outros versos: os do irmão
Faustino Xavier de Novaes, que abriam o volume e falavam satiricamente da existência dos
álbuns como veículo de sedução dos poetas. De maneira irônica, Faustino escreve um
poema para alertar à irmã dos perigos que corria ao apegar-se a tal objeto.
57
MACHADO, Ubiratan. Dicionário Machado de Assis. Op. cit. p. 276.
86
Um álbum já tens! E eu creio
Que dás valor à Poesia;
Mas que não saibas receio
Quanto a moda deprecia
Esse tão puro recreio!
Julgas com ele – inocente! –
Mostrar que essa arte divina
Dos sábios não é somente?
- Que a luz que o gênio ilumina,
De fogo te inunda a mente? –
Mas...n‘estas folhas mimosas
Poderás tu, algum dia,
Verter lágrimas piedosas,
Sobre a sentida poesia
D‘essas Musas caprichosas?
Ai!...talvez...que n‘essa idade,
Em que abrasa o peito o ardor,
Olha tudo a mocidade
Por um prisma encantador,
Que a face muda a verdade!
A poesia – sempre bela –
Quase nunca é proveitosa
Para a candidata donzela:
Que – mesmo se é venenosa –
Doçuras só lhe revela.
Mas se um álbum tens – embora!
É mister dar-lhe valor:
Começas a ouvir agora
Mentidas frases d‘amor,
Lamentos de quem não chora...
Se um – beldade – te chamar,
E te disser que enlouquece,
Que nasceu para te amar,
Indaga se te conhece,
Ou se ouviu de ti falar.
Se outro bradar que ama em vão,
Que, ao ver-te, ficou perdido,
Não lhe preste atenção!
- Talvez cumpra o teu pedido
Tendo d‘outra a inspiração...
Nem por mais que o cauto exprima,
Creias, aqui consagrados,
Ardentes votos d‘estima:
87
Faço versos, por pecados,
Sei a quanto obriga a rima...
Atenta bem n‘este espelho!
E da fraterna amizade
Aceita o justo conselho:
- Se velho não sou, na idade,
Já, n‘estas coisas, sou velho.58
Pela descrição de Faustino, Carolina apreciava poesia, e, ao que tudo indica,
acompanhava com interesse a movimentação de poetas e os saraus literários na casa dos
Novaes. Ambiente igualmente favorável encontraria no Brasil, freqüentando os concertos
promovidos por um amigo da família, Artur Napoleão.
No Porto, Faustino foi colaborador assíduo do jornal A Grinalda, de propriedade de
João Marques Nogueira Lima, que reunia a nata dos poetas da cidade. Faustino abriria o
primeiro número do jornal, em 1855, com um poema satírico, bem como publicaria muitas
composições no jornal. A relevância desse veículo se deve ao fato de que alguns poemas do
álbum de Carolina viriam a público, assinados por três diferentes poetas.
Um estudo de Jean-Michel Massa sobre Carolina59, ainda pouco comentado pelos
estudiosos brasileiros, levanta questões sobre sua vida antes da chegada ao Brasil. O
pesquisador francês destaca alguns poetas do Porto que teriam dedicado versos à moça,
dentre os quais Augusto de Morais, João Marques Nogueira Lima (o proprietário de A
Grinalda) e, especialmente, J. Candido Furtado, todos pertencentes ao círculo de amizade
de Faustino.
Sobre Candido Furtado, Massa fala de uma maneira enfática, tendo em vista que esse
escritor dedicou à Carolina um poema de amor muito efusivo, intitulado ―Sorrisos‖,
sugerindo certa intimidade com a irmã de Faustino. A composição foi publicada em A
Grinalda em 1860. Como Massa não transcreve inteiramente a composição, optamos pela
edição original onde consta a íntegra do poema.
58
NOVAES, Faustino Xavier de. Poesias. 2ed. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1856. P.150151
59
MASSA, Jean-Michel. "Caroline: quelques documents retrouvés‖. In: Bulletin de la Faculté des Lettres de
Strasbourg. n 42. Strasbourg: Faculté de Lettres, 1964. p. 566.
88
SORRISOS
(No álbum da Exª Snrª D. Carolina Augusta Xavier de Novaes).
- IMITAÇÃO DE VICTOR HUGO -
Já que eu rocei com meus lábios
O teu cálix d‘amor, anjo do céu...
Já que aspirei teu hálito fragrante;
Quando um beijo me deste – deliranteE teu seio arquejou, junto do meu; ...
Já que vejo brilhar sobre esta fronte
Um raio do teu astro divinal; ...
Já que no lago ameno d‘esta vida
Bóia a folha de um lírio – desprendida
D‘essa tua existência virginal; ...
Já que te ouvi falar essa linguagem
Em que a alma transpõe seus castos véus; ...
Já que vi, na expansão de um gozo infindo,
E teus olhos chorando sobre os meus...
Eu posso dizer hoje aos anos tristes:
―Passai! Gelo e velhice a mim não vem!
Impeli! vossa lúgubre corrente;
Tenho n‘alma uma flor sempre virente,
Quem m‘a pode roubar? ... louco! ... ninguém! –
Ela encerra o meu néctar de ventura,
E nunca há de pender, murcha ao tufão:
Se em vós há pó e cinza e esquecimento...
N‘esta alma há luz eterna! Há mais alento
E ainda mais amor no coração!‖ (Porto – Abril de 1860)60
Realidade ou fantasia do poeta, o que merece destaque é o sentimento que Carolina
nele despertou. Talvez fossem apenas ―mentidos versos de amor‖, como replicara Faustino,
apenas com a finalidade de imitar Hugo ou de fornecer belos versos à dama. Toda essa
efusão amorosa já estava prevista na advertência do irmão, na abertura do álbum de
Carolina. O tom, no entanto, é realmente diferente dos outros dois poemas de amor,
genéricos por assim dizer, publicados em edições anteriores de A Grinalda por Nogueira
Lima e Augusto de Morais. Também são transcrições do álbum de Carolina, conforme
indicam as dedicatórias.
60
FURTADO, J. Candido. ―Sorrisos‖. In: A Grinalda. Ano III. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira,
1860. p.28-29.
89
Todas essas informações só vêm confirmar que a futura esposa de Machado teria
convivido num ambiente favorável à literatura, cercado de escritores, principalmente de
poetas. Não teria, portanto, se furtado dos galanteios, nem, talvez, deixado de vivenciar
algum amor concreto. A publicação do poema de J. Candido Furtado, com sua franca
dedicatória à dama, mostra-nos que, se isso realmente aconteceu, não se tratava de um amor
secreto.
Dando continuidade ao estudo de Falenas, em ―Prelúdio‖, Machado retorna à terra da
poesia, da qual se despedira na ―Última folha‖ das Crisálidas. Vale lembrar que, nesse
poema, Machado pedia à musa que descesse do alto da montanha, como um canto de
despedida: ―Musa, desce do alto da montanha/ Onde aspiraste o aroma da poesia,/ E deixa
ao eco dos sagrados ermos/ A última harmonia!‖.
Com o distanciamento da musa Corina, talvez quisesse enveredar por outras vias, ou
pensasse que não mais restava inspiração para compor novos versos. O que fica patente é o
etorno da poética da musa, ainda que as ilusões de outrora tivessem se dispersado da
―fronte do mancebo‖.
Machado, ao escrever ―Prelúdio‖, toma como mote uma das cenas da peça Dalila, de
Octave Feiullet, em que Amélia Sertorius pede que a levem numa jornada à Alemanha para
curar-se de sua loucura, provocada por uma mágoa de amor.
Lembra-te a ingênua moça, imagem da poesia,
Que a André Roswein amou, e que implorava um dia,
Como infalível cura à sua mágoa estranha,
Uma simples jornada às terras da Alemanha?
O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio,
Um refúgio tranqüilo, um suave remédio:
És tu, casta poesia, ó terra pura e santa!
Quando a alma padece, a lira exorta e canta;
E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte,
Cada lágrima nossa em pérola converte.61
A dor e o sofrimento cercam a montanha do poeta, mas o clássico refúgio das musas –
a terra da poesia - ainda parecia ser o melhor lugar para converter lágrimas em pérolas: o
canto alivia a angústia da alma, é ―suave remédio‖, como diz o poema. A presença do
61
ASSIS. T.P. p. 93.
90
―nossa‖, no último verso, é uma mostra de que o poeta se solidariza com a dor da moça e
compartilha das mesmas aflições.
Amor e loucura seriam assuntos muito próximos tanto de Carolina quanto de
Machado; afinal, a vinda da moça para o Brasil, terra estranha, foi motivada pela doença
mental que acometeu o irmão Faustino Xavier. A doença do poeta demandava muitos
cuidados, mas também serviu de ponte para que Machado e Carolina, reunidos à volta do
enfermo, se conhecessem e se aproximassem. Alguns biógrafos alegam também uma
desilusão amorosa de Carolina em Portugal. Portanto, ambos os pretextos teriam a cura
como objetivo, seja física (do irmão), ou sentimental (da própria Carolina). Assim, o poeta
parece querer consolá-la:
A outra terra era má, o meu país é este;
Este o meu céu azul,
Se um dia padeceste
Aquela dor profunda, aquele ansiar sem termo
Que leva o tédio e a morte ao coração enfermo;
Se queres mão que enxugue as lágrimas austeras,
Se te apraz ir viver de eternas primaveras,
Ó alma de poeta, ó alma de harmonia,
Volve às terras da musa, às terras da poesia!
Tens, para atravessar a azul imensidade,
Duas asas do céu: a esperança e a saudade.
Uma vem do passado, outra cai do futuro;
Com elas voa a alma e paira no éter puro,
Com elas vai curar a sua mágoa estranha.
A terra da poesia é a nossa Alemanha.
Enfim, o Brasil seria o ponto de união do amor e da dor, e o casal encontraria, um no
outro, o consolo para os dramas pessoais. Machado ainda diria em carta que o fato de a
noiva ter sofrido era um dote que sobrepujava os demais, demarcando uma perspectiva
interessante em relação à vida, colocando o sofrimento como condição intrínseca para a
formação do caráter.
Além disso tens para mim um dote que realça os demais: sofreste. É
minha ambição dizer à tua grande alma desanimada: ―levanta-te, crê e
ama; aqui está uma alma que te compreende e te ama também‖./ A
91
responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a
com alegria, e estou que saberei desempenhar este agradável encargo./
Olha, Querida, também eu tenho pressentimento acerca da nossa
felicidade; mas que é isto senão o justo receio de quem não foi ainda
completamente feliz? Obrigado pela flor que me mandaste; dei-lhe dous
beijos como se fosse em ti mesma, pois que apesar de seca e sem perfume,
trouxe-me ela um pouco de tua alma. (Machadinho). 62
O epíteto de ―Querida‖, que aparece na carta, também marca a presença de Carolina
na obra de Machado, principalmente na poesia, como veremos adiante. A flor citada na
missiva, ―apesar de seca e sem perfume‖, traz um pouco da alma de ―Carola‖, por isso é
beijada. Como o episódio da Pedra de Bolonha, do Werther de Goethe, em que o
protagonista se alegra ao ver o criado só pelo fato de ter estado junto a Carlota (e precisa
refrear sua vontade de abraçá-lo), na carta de Machado, a amada é capaz de transmitir o
fulgor da sua presença para a flor, de maneira que aquilo que era inútil e sem valor passa a
ter uma importância extrema.
Assim como o autor se inspirou em Vida nova, de Dante, para tratar de Corina, as
cartas de amor de Machado ganham um tom próximo das cartas do Werther, de Goethe,
obra também baseada numa musa real: Charlotte Buff. A evocação da Alemanha em
―Prelúdio‖ traz um pouco da pátria de Goethe não apenas na referência, mas também
quando trata do sofrimento como tema. A poesia e o amor parecem oferecer a cura, o alívio
da alma de todas as ―mágoas estranhas‖.
Os poemas subseqüentes vão abordar o tema da dor e das decepções, em muitos
aspectos. Desde os títulos, já se percebe a atmosfera de tristeza dos versos de Falenas, seja
porque essas borboletas têm um ar soturno, ou porque a musa de Machado está envolvida
por uma atmosfera de mortes e de perdas familiares, muito semelhante ao que o poeta havia
vivenciado desde a infância.
Por outro lado, alguns poemas do livro apresentavam também o humor e o riso, como
―Cegonhas e rodovalhos‖ e ―Uma ode de Anacreonte‖, e, ainda, outras composições
explorariam o perfil tragicômico, como ―Pálida Elvira‖ e ―No espaço‖. Contudo, ainda
quando o poeta trata de ―Ruínas‖ e de ―Sombras‖, há uma mensagem de consolo em cada
62
ASSIS. O.C. Op.cit. p. 1.030.
92
verso, como se a pena do autor assumisse a responsabilidade de falar da dor, mas também
de oferecer a cura, como havia proposto no início.
Podemos dividir o livro em três partes: Lírica – formada pelo núcleo de poemas e
traduções, iniciado com ―Prelúdio‖ e encerrado com ―Lira chinesa‖; Dramática – com o
longo poema ―Uma ode de Anacreonte‖, e ―Épica‖ - com a narrativa em versos de ―Pálida
Elvira‖, que recebe, na página de rosto, o nome de ―conto‖, suprimido pelo autor na edição
de 1901.
A primeira parte – lírica - interessa-nos em especial, uma vez que ―Pálida Elvira‖ já
recebeu um extenso estudo em nossa dissertação de mestrado63, e ―Uma ode de
Anacreonte‖, apesar de ser um poema dramático, não se enquadra no gênero ―comédia‖ que
será tratado, em especial, no capítulo sobre o teatro de Machado de Assis, incluindo as
peças ―Os deuses de casaca‖, ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖.
Na leitura de Falenas, nos interessa prosseguir o estudo sobre o processo criativo do
escritor, entremeando vida e obra. O artista segue compondo a partir de experiências
vividas ou lidas, e acrescenta a tudo isso o toque da autoria, as pinceladas de estilo da pena
de escritor. Assim, tamisa a matéria da vida com a sensibilidade necessária, e recolhe
apenas aquilo que de fato tem relevância em seu projeto estético.
Dentre a parte lírica do livro, dedicamos especial atenção àquelas composições
relacionadas à temática do sofrimento, e que possuem alguma ligação com Carolina.
―Ruínas‖, por exemplo, o segundo poema de Falenas, mostra o encontro do vate com
―austera moça‖, ambos com um histórico de melancolias e de mágoas, e que se solidarizam
para transporem, juntos, o cerco das ruínas.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranças soltas
Por sobre as roxas vestes;
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos,
- Dor que à face não vem, - medrosa e casta,
Íntima e funda; - e dos cerrados cílios
Se uma discreta e muda
63
AMPARO. Op.cit. p. 91-110.
93
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. (...)64
Ao clima triste da paisagem, acrescem-se duas figuras, o vate e a moça, que percorrem
os sítios do ontem e do agora, e se detêm em cada trecho, como se dividissem entre si o
peso dos desgostos sentidos. No entanto, não se trata de uma melancolia exasperada, que
produz desespero e desconsolo, mas ―tácita e serena‖, dor refletida, transmutada em
experiência. O monólogo do poeta mostra a identificação entre ele e a moça e, o que é mais
relevante, há uma espécie de reconhecimento, como se o rosto dela fosse um eco do
passado, uma imagem que retornava ao raso da memória.
―Quem és? Pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
(...)
Conhecem-te estas pedras; das ruínas
Alma errante pareces condenada
A contemplar teus insepultos ossos.
Conhecem-te estas árvores. E eu mesmo
Sinto não sei que vaga e amortecida
Lembrança de teu rosto.‖
A lembrança ―vaga e amortecida‖ parece-se com uma recordação da infância, uma
identificação materna. O mais provável, no entanto, é a retomada da questão das almas que
se reencontram e se reconhecem, como as metades perdidas que vagam em busca do par
perfeito. O rosto, como em espelho, reflete a sombra do outro, onde há uma
correspondência plena, e que faz tudo soar com familiaridade.
Sem se desvencilhar da poética da musa, o poeta continua o diálogo, desta vez com a
―Musa dos olhos verdes‖, a que traz a aurora da esperança e faz renascer um novo dia,
rompendo as sombras existentes em seu íntimo.
64
ASSIS. T.P. p. 94.
94
Casta filha do céu, virgem formosa
Do eterno devaneio,
Sê minha amante, os beijos meus recebe,
Acolhe-me em teu seio!
Já cansada de encher lânguidas flores
Com as lágrimas frias,
A noite vê surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.
Asas batendo à luz que as trevas rompe,
Piam noturnas aves,
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silêncios graves.
Dentro de mim, a noite escura e fria
Melancólica chora;
Rompe estas sombras que o meu ser povoam;
Musa, sê tu a aurora!65
A musa que surge em meio às ruínas, aos vermes e às sombras do livro é a imagem do
ideal, como a ―aurora‖ que rompe a escuridão da noite, além de ser definida como ―consolo
do ancião‖ e ―sonho de criança‖, satisfazendo os anseios das duas pontas da existência.
Nesse caso, o poeta contrariava a tradicional concepção lírica dos olhos verdes como
―enganadores‖, baseada na cantiga camoniana, retomada, aliás, por Gonçalves Dias em seu
belo poema ―Olhos verdes‖. A musa de Machado, assim como no poema ―Musa
consolatrix‖, serve unicamente como alento e consolo à alma do poeta, na verdade, ainda
não tinha assumido os ares de Pandora: aquela que trazia, juntamente com a esperança,
todos os males da vida humana.
A atmosfera de mistério, os ecos do passado, as perdas pessoais são os temas de
―Sombras‖, poema que retoma o clima melancólico. Temos novamente o diálogo entre o
poeta e a dama, só que, dessa vez, não nomeada, nem marcada com vocativos. O ambiente
agora é o de um templo cristão, povoado de sombras e espectros do passado, e o poeta
aconselha a moça que fixe o olhar na cruz do Senhor, único lugar iluminado da igreja.
65
ASSIS.T.P. p. 96.
95
Essa cruz simboliza o martírio divino e a morte, mas também a redenção, que anula o
passado a partir de uma aliança futura - talvez apontando o casamento como uma
possibilidade libertadora: ―Pejam sombras, bem vês, a escuridão do templo;/ Volve os
olhos à luz, imita aquele exemplo;/ Corre sobre o passado impenetrável véu;/ Olha para o
futuro e vem lançar-te ao céu."
O ―véu‖, que aparece em outros momentos e tem profunda relação com o casamento tanto na acepção da cerimônia em si, dos paramentos da noiva, quanto na acepção da
virgindade que conota – aqui significa a separação entre o passado e o futuro, o
rompimento com um compromisso ou estado anterior. O ―impenetrável véu‖ era a proteção
necessária, o divisor dos tempos, o marco de um reinício.
A religiosidade, antiga característica da lírica de Machado, transfere-se inteiramente
para o âmbito da relação amorosa. A comparação entre o cerimonial sagrado e a união do
casal é um recurso empregado pelo poeta, tomando como modelo o livro dos Cânticos, que
serve como parâmetro lírico, assim como o Eclesiastes seria inspiração filosófica na prosa.
Nota-se, porém, o rompimento do poeta com a religião, com o institucional, com a crença
católica. A partir de então, toda a relação com o sagrado se dará unicamente no uso de
determinadas imagens, ou como metáfora de algo relacionado à vida.
Para Machado, assim como revela o poeta nas suas composições, o ideal presente na
instituição ―família‖ assume o papel do sagrado. O lar seria o reino da bem-aventurança,
justa expectativa de quem nunca pôde gozar plenamente do acolhimento de um ambiente
doméstico propriamente dito.
Minha Carola,
Dizes que, quando lês algum livro, ouves unicamente as minhas palavras,
e que eu ocupo o teu pensamento e a tua vida? Já mo disseste tanta vez, e
eu sempre a perguntar-te a mesma cousa, tamanha me parece esta
felicidade. Pois, olha; eu queria que lesses um livro que eu acabei de
ler há dias, intitula-se: “A Família”. Hei de comprar um exemplar
para lermos em nossa casa como uma espécie de Bíblia Sagrada. É um
livro sério, elevado e profundo; a simples leitura dele dá vontade de
casar./ Faltam quatro dias; daqui a quatro dias terás lá a melhor carta que
eu te poderei mandar, que é minha própria pessoa, e ao mesmo tempo
lerei o melhor. (grifo nosso)66
66
ASSIS. O.C. Op.cit. p. 1.031.
96
O amor é, portanto, o único altar em que o escritor queima o incenso literário, e a esse
sentimento oferece total devoção. ―A família‖ assume a esfera das coisas santificadas, a
ponto de um livro com esse título passar a ser comparado à Bíblia Sagrada.
O universo da escrita, por sua vez, serve como parâmetro para estabelecer
determinadas significações, tanto que o escritor equipara a sua pessoa a uma carta que pode
ser lida pela amada, assim como lerá também o melhor texto na pessoa de Carolina.
Exprimindo essa aproximação entre o ler e o amar, temos o poema ―Livros e flores‖,
que une ambos os objetos da devoção do escritor - a literatura e a musa que o inspira: ―Teus
olhos são meus livros./ Que livro há aí melhor,/ Em que melhor se leia/ A página do
amor?‖.
A ligação do poeta a esse amor ―divino‖, como o de uma Beatriz, aparece em outros
poemas. Em ―Quando ela fala‖, chega a afirmar: ―Minh‘alma, já semimorta,/ Conseguira ao
céu alçá-la/ porque o céu abre uma porta/ Quando ela fala.‖ A amada seria aquela criatura
angélica que o conduziria ao ―céu‖, metáfora da felicidade e ápice da realização pessoal. A
mesma concepção é adotada em ―Pássaros‖, onde o amor transcendental mais claramente se
afigura.
Porque o céu é também aquela estância
Onde respira a doce criatura,
Filha do nosso amor, sonho da infância,
Pensamento dos dias juvenis.
Lá, como esquiva flor, formosa e pura,
Vives tu escondida entre a folhagem,
Ó rainha do ermo, ó fresca imagem
Dos meus sonhos de amor calmo e feliz!
(...)
Da tua imagem vaporosa e linda,
Único alento que me prende aqui.
E dirão mais que estrelas de esperança
Enchem a escuridão das noites minhas.
Como sobem ao monte as andorinhas,
Meus pensamentos voam para ti.
A erotização dos poemas das Crisálidas, seguindo a lírica ovidiana, é atenuada ao
máximo, restando a faceta do amor mais etéreo e espiritual. Parece que existe ainda um eco
de Dante na escrita machadiana, basta lermos o trecho transcrito para encontrarmos
97
elementos que seguem a sublimação do amor e da amada, que incidindo na questão de um
―sentimento superior‖ que eleva a alma a outras estâncias. Por outro lado, mesmo que a
ênfase espiritual se destaque, há o esfacelamento da convicção religiosa estrito senso.
Isso fica nitidamente exemplificado no poema ―Ite, missa est‖, expressão latina que
anuncia o fim da missa. Se em ―Monte Alverne‖ a admiração motiva o canto do poeta, em
―Ite, missa est‖ só existe a celebração do fim. Cada estrofe finalizada é uma ilusão
religiosa que se esvai, enquanto o eu-lírico se admite como ―servo do altar de um deus
esquivo‖. A cruz, único lugar iluminado do templo no poema ―Sombras‖, neste é beijada
pelo ―servo‖, antes que sua luz, por completo, se esmaeça.
Pobre servo do altar de um deus esquivo,
É tarde; beija a cruz;
Na lâmpada em que ardia o fogo ativo,
Vê, já se extingue a luz.
Cubra-te agora o rosto macilento
O véu do esquecimento.
Ite, missa est.67
Do ―impenetrável véu‖ ao ―véu do esquecimento‖, tudo parece apontar para o
definitivo aniquilamento do passado, tanto ―dele‖, quanto ―dela‖: do eu-lírico e da musa. O
―véu‖ que aparece em ―Sombras‖ e em ―Ite, missa est‖ indica a ―separação‖, a barreira
posta entre o ontem e o amanhã. É manto que cobre os olhos para que não vejam mais os
fantasmas, as mágoas, os desacertos, as dores, as ilusões, tudo em nome do ―amor
tranqüilo‖, que veremos num outro poema: ―Noivado‖.
Nessa composição, visivelmente dirigida a Carolina (noiva do poeta à época),
Machado busca a grande celebração: a sacralização do amor, único sentimento capaz de
transcender a vida, e de se lançar à eternidade. É interessante como o poema ficou
esquecido pelos estudiosos de Machado, sendo essa a mais bela composição machadiana
relacionada à esposa, juntamente com o soneto ―A Carolina‖, publicado após a morte da
companheira. Podemos dizer que ambos os poemas se complementam ao exaltar o amor, a
um só tempo, de maneira intensa e serena, apontando para a hipótese da nova união após a
67
ASSIS.T.P. p.105.
98
morte. Também o epíteto ―querida‖, usado nas cartas dirigidas a Carolina, reaparece nos
dois poemas, logo nos primeiros versos.
Em ―Noivado‖, temos a imagem do altar que se remete à cerimônia matrimonial. O
pôr-do-sol anuncia o término do dia, enquanto a tarde traz o véu como de noiva, marcando
a definitiva separação entre o diurno e o noturno. É a noite que vai abrigar os noivos sob a
luz da lua, enquanto a ―flor querida‖ ajeita o cálix para receber o ―orvalho‖.
Os elementos apontam, metaforicamente, para a união amorosa do casal, destacandose a ―flor‖ como a representação do feminino, enquanto o ―orvalho‖ adquire as conotações
do masculino. Toda a natureza é reflexo dos anseios dos noivos, e cada movimento indica
um sentimento da alma de cada um, ou uma ação desejada por ambos. As manifestações
naturais são encadeadas aos pares, sempre evocando o masculino e o feminino: sol/terra,
vento/ folhas, flor/orvalho.
Vês, Querida, o horizonte ardendo em chamas?
Além destes outeiros
Vai descambando o sol, e à terra envia
Os derradeiros raios;
A tarde, como noiva que enrubesce,
Traz no rosto um véu mole e transparente;
No fundo azul a estrela do poente
Já tímida aparece.
Como um bafo suavíssimo da noite,
Vem sussurrando o vento,
As árvores agita e imprime às folhas
O beijo sonolento.
A flor ajeita o cálix: cedo espera
O orvalho, e entanto exala o doce aroma;
Do leito do oriente a noite assoma;
Como uma sombra austera.
Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos,
Vem, minha flor querida;
Vem contemplar o céu, página santa
Que amor a ler convida;
Da tua solidão rompe as cadeias;
Desce do teu sombrio e mudo asilo;
Encontrarás aqui o amor tranqüilo...
Que esperas que receias?68
68
ASSIS. O.C. Vol. III. p. 45
99
O último verso parece uma resposta às inquietações esboçadas na carta dirigida à
noiva: ―A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a com
alegria, e estou que saberei desempenhar este agradável encargo. Olha, querida, também eu
tenho pressentimento acerca da mª felicidade; mas o que é isto senão o justo receio de quem
não foi ainda completamente feliz?69
O poeta complementa a pergunta, afirmando que a noiva não precisava temer o futuro,
pois o casamento eternizaria o amor, fazendo-os passar ―do sol da terra‖ ao ―sol da
eternidade‖. Observa-se também o uso das metáforas religiosas para esboçar a união
amorosa, e não para demonstrar uma devoção, no sentido mais estrito.
Olha o templo de Deus, pomposo e grande;
Lá no horizonte oposto
A lua, como lâmpada, já surge
A alumiar teu rosto;
Os círios vão arder no altar sagrado,
Estrelinhas do céu que um anjo ascende;
Olha como de bálsamo recende
A c‘roa do noivado.
Irão buscar-te em meio do caminho
As minhas esperanças;
E voltarão contigo, entrelaçadas
Nas tuas longas tranças;
No entanto eu preparei teu leito à sombra
Do limoeiro em flor; colhi contente
Folhas com que alastrei o solo ardente
De verde e mole alfombra.
Pelas sombras do tempo arrebatados,
Até a morte iremos,
Soltos ao longo do baixel da vida
Os esquecidos remos.
Firmes, entre o fragor da tempestade,
Gozaremos o bem que amor encerra,
Passaremos assim do sol da terra
Ao sol da eternidade...70
O epílogo do poema lembra, em muitos aspectos, mais um trecho da correspondência
dos noivos: ―Depois... depois, querida, ganharemos o mundo, porque só é verdadeiramente
69
70
Idem. p. 1.029.
Idem. p. 48.
100
senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das ambições estéreis. Estamos
ambos neste caso; amamo-nos; e eu vivo e morro por ti71‖. O ―ganharemos o mundo‖, não
se aplica à conquista material, mas tem a mesma conotação do ―soltar os remos do baixel
da vida‖ diante da maior das tempestades. Que importam as ambições mundanas ou o
naufrágio, se dentro do barco, ou um num recanto da terra, ―cabe o mundo inteiro‖? O amor
tranqüilo se alojaria nesse espaço – restrito e imenso – onde tudo o que é essencial se
multiplica por dois.
A sombra do ―limoeiro em flor‖ parece remeter à ―sombra da macieira‖, presente nos
Cânticos: ―Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os jovens;
desejo muito a sua sombra, e debaixo dela me assento. O seu fruto é muitíssimo doce ao
meu paladar.‖ (Cânticos 2:3). Só que o dulçor de um fruto não se coaduna ao azedume do
outro. Qual seria, portanto, o motivo da escolha do poeta, nessa composição, ao remeter-se
à ―sombra do limoeiro em flor‖?
Pode-se dizer que a imagem de um limoeiro em flor é belíssima, ainda mais porque,
sendo a árvore tão singela e com frutos desprovidos de doçura, o espetáculo da floração
resume todo o encanto que essa árvore pode reunir.
Por outro lado, a temática do poema se assemelha, em muitos aspectos, à de um poeta
português chamado Joaquim Pinto Ribeiro Júnior, importante escritor do Porto, cidade da
noiva de Machado. A composição de Ribeiro Júnior a que nos referimos intitula-se ―A
noiva‖, e faz parte do livro Lágrimas e flores, publicado em Portugal em 1856, no mesmo
ano e na mesma tipografia em que Faustino Xavier publicara suas Poesias. É muito
provável que o poeta fizesse parte do círculo de literatos que freqüentava a casa dos
Novaes, no Porto, já que também era um dos colaboradores de A Grinalda.
A noiva
A festa é finda: alonga-se
Das turbas o rumor,
Expira em cada sírio
Um instante d‘amor;
Ficou só virgem tímida
71
Em recente pesquisa do acadêmico Sérgio Paulo Rouanet dos originais das cartas machadianas, descobriuse um equívoco na transcrição: no lugar de ―queimaremos o mundo‖, como consta na edição da Nova
Aguilar, o escritor havia escrito: ―ganharemos o mundo‖.
101
Que, envolta em branco véu,
Tinha a beleza mágica
D‘essas visões do céu;
(...)
E bela inocência
Ouvindo a extrema voz,
A noiva sobre o tálamo
Grinalda e véu depôs;
Tira os pingentes lúcidos,
E, entre tanto esplendor,
Só viu nos seios úmida
Da laranjeira a flor;
―Porque, diz, entre o júbilo
Que hoje me doa o céu,
Um pensamento lúgubre
No coração nasceu?
No alvor eu disse as mágoas:
―Ide, feliz serei!‖
Mal cobre inda os tugúrios
A noite, e já chorei!
Ai, qual grinalda fúnebre,
A c‘roa nupcial
Faz nossa imagem súbito
Morrer no chão natal;
Esquece-a o lago límpido,
Qual da andorinha azul
A sombra vã se prófuga
Passou, buscando o sul!
Ó maternas carícias,
Risos, fala d‘amor
À sombra odora e plácida
Do limoeiro em flor:
Saudosas noites límpidas
D‘ inocente folgar,
Cumpria pois tão rápidas
Ver-vos assim voar?
Faz da ventura a árvore
Uma só flor abrir
E um astro cai no túmulo
Quando o outro vai surgir!‖
Dizia e o alto pórtico,
Rico d‘áureo lavor,
Já vacilante e pálida
Vê o esposo transpor. 72
72
RIBEIRO JR , Joaquim Pinto. Lágrimas e flores. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1856. p.
166-169
102
O poeta portuense trata do desencontro do Sol e da Lua: quando um deles desponta, o
outro descamba no horizonte, e vice-versa. A união, portanto, é impossível, e resulta numa
eterna insatisfação. A noiva fica obrigada a depor a grinalda no altar, já que o noivo a
abandona. Entretanto, o suplício não finda, pois, pálida e vacilante, vê o amado retornar,
mas já então é chegada sua hora de partir.
Desconstruindo essa imagem de desencontro, Machado homenageia Carolina com o
poema ―Noivado‖, como se mostrasse uma nova versão da ―Noiva‖; apenas nesse caso, o
encontro do casal é completo e não se realiza unicamente no plano terreno, mas também no
celestial, ultrapassando a questão limítrofe do tempo. Contudo, a bela imagem de Ribeiro
Júnior, a ―sombra do limoeiro em flor‖, é mantida, assim como a imagem da noite, em que
se tem o ―inocente folgar‖.
Arte e vida seguem numa harmoniosa confluência na obra machadiana do período. É
difícil separá-las sem dano para a compreensão do todo de sua poética, e decerto torna-se
necessário muito cuidado para não esvaziá-la de sentido, conduzindo-a somente pela
vertente biográfica. Há certa reserva por parte da crítica quando se fala dos aspectos
pessoais na obra de um autor. Onde acabaria o homem e começaria o escritor?
Ao contrário de diminuir o valor de uma obra, o perfil intimista desse Machado jovem
o particulariza, principalmente porque ele não expõe abertamente o contexto biográfico,
mas o dissimula sob o véu das metáforas. Vivendo no período intimista por excelência,
época do romantismo mais exacerbado, não havia motivo para o poeta encobrir as marcas
pessoais do seu texto. No entanto, há sempre um recato em exteriorizar-se, uma contenção
nos sentimentos. São as referências de leitura e o confronto entre textos que nos permitem
estabelecer conexões entre arte e vida na obra machadiana, partindo da leitura e da
interpretação dos poetas clássicos que também usaram a realidade como inspiração da obra:
Dante, Ovídio e Goethe, para citar alguns exemplos aqui analisados.
Apesar de o alvo de nosso estudo ser o poeta, principalmente em início de carreira,
não se pode desprezar a matéria biográfica que serve de objeto para a composição de textos
da maturidade. A idéia de ―eternidade‖, de um amor além da existência terrena, permanece
em outros momentos em que Machado se refere à presença de Carolina em sua vida e, por
que não dizer, também em sua obra.
103
O poema dedicado à esposa em 1904, após sua morte, é um canto de lamento que
relembra os versos de ―Alma minha gentil que te partiste‖ de Camões. ―A Carolina‖ é um
dos mais conhecidos poemas de Machado e refaz a trajetória dos dias idos e vividos do
casal do Cosme Velho.
Novamente, quando se trata da separação entre ambos, tudo não passa de um estágio
provisório: ―Trago-te flores, restos arrancados/ da terra que nos viu passar unidos/ e ora
mortos nos deixa e separados‖. Portanto, a terra é o único empecilho para a união. Tão logo
o vínculo material se rompa, os dois poderão se reencontrar em outro plano, pois, se a
morte dela é fato consumado, o poeta também jaz sem vida diante dessa ausência (no verso
―ora mortos, nos deixa...‖ o uso do plural indica a morte de ambos, uma real, e outra
metafórica). Essa atitude reforça a idéia das ―almas gêmeas‖ de que tratamos anteriormente,
ou seja, ―mortos e separados‖, como no mito do andrógino platônico.
Ao contrário do que se afirma sobre a distância entre o escritor da juventude e o da
maturidade, há muito mais coisas entre o menino e o homem do que até agora se notou. O
estilo se apurou com o tempo, o rigor crítico se intensificou, os conhecimentos tornaram-se
mais consistentes, não há dúvida em relação a tudo isso. No entanto, muitas temáticas
seriam trabalhadas por toda a vida, incluindo a questão sobre a eternidade do amor, não
aquele ilustrado em livros, mas o que passava pela experiência pessoal.
Se um dos motivos do livro Falenas é a presença de Carolina, no fim da vida de
Machado a grande inspiração será sua ausência, ou seja, o canto de tristeza pela morte da
esposa. Nesse caso, o Memorial de Aires se configura como obra biográfica, algo
ficcionalizada, como não poderia deixar de ser, dissimulada no discurso autoral. No
entanto, vida e obra se fundem quando comparamos trechos de uma carta de Machado com
falas de Aires no Memorial. Em carta ao amigo Joaquim Nabuco, em 20 de novembro de
1904, assim Machado relataria o falecimento da esposa:
Foi-se a melhor parte de minha vida, e aqui estou só. Note que a solidão
não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com
ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de
casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília
aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer
antes dela, o que seria um grande favor. Aqui me fico, por ora na mesma
casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me
104
lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento,
não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.73
Ainda que acusem Machado de cético, a carta revela uma crença no amor, numa
existência além do plano material. Talvez, pelo viés literário, Machado tenha construído
uma idéia de eternidade, um Paraíso como o que Dante alcança pelas mãos de Beatriz. O
Machado de cabelos brancos não desmentia os versos do jovem de outrora, mas reafirmava
o pensamento contido nos ―Versos a Corina‖: ―Essa é a glória que fica, eleva, honra e
consola‖, a glória do amor, que redime o homem, é o que o eleva para além da fama
literária. Também daria continuidade às idéias poetizadas em ―Noivado‖ ou esboçada nas
cartas anteriores ao casamento.
O Memorial de Aires, último romance de Machado, apesar de alguns críticos
resistirem à idéia de autobiografia, incontestavelmente, mostra indícios de que o escritor
desejava prestar à esposa a última homenagem. O próprio Mário de Alencar revelaria a
confidência do amigo de que Carmo era a representação de Carolina74, o que também
podemos comprovar pela leitura de cartas do período. Mario chegaria a declarar que ―a
alma religiosa de Machado de Assis achara, enfim, na dor da saudade a forma de uma
religião.(...) Vivia no seu coração a imagem da companheira morta e era natural que ela
vivesse também na sua obra literária‖.75
Há um trecho do Memorial em que Aires faz à irmã uma declaração de teor
semelhante à confissão feita pelo escritor na carta a Nabuco, acima transcrita, e traz
novamente o pensamento que aqui referimos sobre a transcendência do amor.
(12 de janeiro)
Na conversa de anteontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a
minha mulher, que lá está enterrada em Viena. Pela segunda vez faloume em transportá-la para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que
estimaria muito estar perto dela, mas que, em minha opinião, os mortos
ficam bem onde caem; redargüiu-me que estão muito melhor com os
seus.
- Quando eu morrer, irei para onde ela estiver, no outro mundo, e ela virá
ao meu encontro, disse eu.76
73
ASSIS. O.C. Op. cit. p. 1.071.
ALENCAR, Mario de. Alguns escritos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa; MEC, 1995. p. 40.
75
Idem. p. 38.
76
ASSIS. O.C. vol.1. p. 1.099.
74
105
Todo o diário de Aires gira em torno da viuvez, do casamento, da fidelidade e da
vida conjugal. Há duas pontas da vida representadas pelo antes e depois de Machado: tanto
Aguiar quanto Aires são seus auter egos, o primeiro representando o homem casado que
suporta as dores e perdas da vida ao lado da esposa fiel e dedicada; o outro é o viúvo que
realiza a leitura dos dias idos e vividos, buscando resgatar o teor da existência em cada uma
das ações e dos sentimentos humanos.
Atando as duas pontas, o casal Tristão e Fidélia são representações perfeitas da
união que rompe com todos os obstáculos terrenos - ao contrário de Félix e Lívia, ou de
Bento e Capitu, onde há o desconcerto da união, já que o ciúme faz destoar a sinfonia dos
apaixonados.
Tristão, até no nome, é o contrário de Félix de Ressurreição. Nem mesmo a
memória do marido de Fidélia, ou de qualquer outro homem, pôde interromper seu
propósito de desposar a jovem viúva. Fidélia, por sua vez, ao contrário de Lívia, não teme
ser feliz pela segunda vez, quebrando os votos antigos ao contrair novo matrimônio.
Também Machado e Carolina precisaram romper as decepções amorosas do passado,
apostando que ambos poderiam ser felizes juntos.
Até a irmã de Aires, Rita, encontra correspondência real na pessoa de D. Rita
Calazans, senhora que abrigou os Novaes no Brasil e que serviu de intermediadora para
convencer a família de Carolina, que se opunha ao casamento da moça.
Se no Dom Casmurro a ópera não é eufônica, em Memorial a música vai com o
texto, como uma ópera de Wagner. Isso porque o músico alemão rompeu com o tradicional
conflito entre músicos e libretistas, ao escrever os próprios libretos, de maneira que se
casassem perfeitamente à música que compunha.
Sem os empecilhos e disputas, comuns nas narrativas machadianas, o ―amor
conjugal‖ finalmente é tema concretizado, fazendo com que o espaço da casa, das alegrias
particulares, se sobreponha aos acontecimentos externos. O universo de Carmo e Aguiar se
restringe ao espaço íntimo da família, ao ―recanto‖ onde o mundo inteiro cabe. Alegrias ou
dores, tudo é submetido à partilha diária dos afetos mútuos.
À solidão daqueles, se contrapõe a juventude de Fidélia e de Tristão. O casal, na
verdade, reproduz o contexto de duas óperas: o Fidélio de Beethoven, e o Tristão e Isolda
106
de Wagner. Enquanto a primeira peça clássica possui como subtítulo o ―Amor conjugal‖,
mostrando a luta da jovem Leonore pela liberdade do esposo Florestan, preso injustamente;
Tristão e Isolda revela o amor que resiste aos empecilhos terrenos, sendo plenamente
realizável apenas num outro plano. A morte de ambos é a única forma de estarem juntos
para sempre. Louvor ao amor conjugal e superação dos obstáculos existenciais são duas
temáticas inspiradas na situação de vida de Machado antes e depois daquele momento.
O último romance machadiano retomaria alguns dos aspectos tratados na obra da
juventude, e o sofrimento como tema permaneceria, só que atenuado pelo amor que
transcende e que eleva a obra. Memorial de Aires seria um novo retorno à terra da
Alemanha em busca da cura, só que, desta vez, pelas mãos de Wagner e Beethoven, como
se Machado compusesse sua última sinfonia, assim como o ―Prelúdio‖ havia sido a canção
inicial.
107
2- OCIDENTAIS: DO SEIO DE QUIMERA AO REINO DE PANDORA
“Dois horizontes fecham nossa vida...”
(Machado de Assis)
“Que sonhas, poeta? do alto, a quem acenas?
(Goethe – “Fausto”)
Única obra poética da maturidade, Ocidentais merece nossa particular atenção não
apenas por ser valorizada pela crítica, mas por se tratar da continuação do diálogo que
acompanhamos desde os primeiros versos - de um Machado ainda desconhecido no
ambiente literário -, passando por Crisálidas e Falenas, seus dois primeiros livros de
poesia.
A exclusão de Americanas desse estudo pode gerar alguma estranheza, mas se
justifica pelo fato de seus poemas, em particular, seguirem uma temática distinta da dos
outros três aqui estudados. Em nossa pesquisa de mestrado, a obra foi analisada em
contraponto com os textos de dois grandes escritores indianistas: Gonçalves Dias e José de
Alencar, assim como de outros autores que elegeram o índio como tema, incluindo Basílio
da Gama, autor de O Uraguai.
Basicamente, interessa-nos o diálogo de Machado com seus mestres e o percurso da
musa em sua obra, assim com a presença da evocação clássica na configuração do poético.
Se, por um lado, o poeta rompia com o padrão anterior, mais sensorial e emotivo, por outro,
mantinha a fidelidade aos autores que o inspiraram na juventude, assim como buscava
retomar certas imagens de temática mitológica.
Embora a musa não apareça nomeada, o poeta abre espaço a personagens clássicos
como Prometeu e Pandora - Homem e Natureza –, só que não abordará a relação entre
ambos de maneira amistosa ou equilibrada. A tensão entre os dois será o principal foco da
poesia de Ocidentais.
108
A montanha, lugar de evocação da musa, comparece, agora, tanto no começo do
livro, com ―O desfecho‖, onde o autor retoma o mito de Prometeu atado ao Cáucaso;
quanto no último poema, ―No alto‖, quando, enfim, chega ao topo da montanha. Sem poder
contar com a musa, nem com o celeste Ariel, resta-lhe a ―figura má‖ que o fará descer pela
outra vertente da montanha. O ―terreno‖, neste caso, contrapõe-se ao ―etéreo‖ e torna-se a
derradeira morada do poeta, junto aos homens e à realidade prosaica. Perdidas as ilusões,
espedaçada a lira, restava-lhe a prosa chã do cotidiano.
Comecemos pelo título do livro, que, segundo Eugênio Gomes, seria um
contraponto à obra As orientais, de Victor Hugo. Decerto não se trata de imitação, mas de
referência, tendo em vista a fama da obra hugoana, que certamente não teria passado
despercebida pela crítica contemporânea a Machado. Publicada em 1829, As orientais
influenciaram uma vasta geração de poetas, com paisagens exóticas e poemas marcados
pela cultura oriental, principalmente árabe, como uma espécie de reinvenção das aventuras
e do cenário das Mil e uma noites.
Machado de Assis, antes da publicação de Ocidentais, faria referência à obra de
Hugo em algumas crônicas, que são importantes fontes para entendermos a escolha do
título da obra machadiana. Antes, porém, convém relembrar que a epígrafe de um dos
poemas das Crisálidas já havia sido retirada de Hugo: ―Tout passe, tout fuit‖. Esses versos
hugoanos fazem parte do poema ―Les Djinns‖, de As orientais.
On doute
La nuit
L‘ écoute: Tout fuit,
Tout passe;
L‘ espace
Efface
Le bruit.77
O poema de Hugo traz como citação um trecho do Canto V do ―Inferno‖, de Dante,
episódio que conta a história de Paolo e Francesca, amantes que, punidos pelo adultério,
seguem unidos para o eterno suplício. Os ―djins‖ orientais também seriam criaturas duplas:
sempre aos pares, inspirariam o homem ao bem e ao mal.
77
HUGO, Victor. Les orientales.Paris: Librarie de L. Hachette, 1859. p.107
109
Sobre esses versos de Hugo, que aparecem na última estrofe de ―Les Djinns‖,
Machado falaria em uma crônica do Diário do Rio de Janeiro, mais precisamente em
março de 1865; portanto, no ano seguinte à publicação das Crisálidas. Tanto na epígrafe de
―Última folha‖, quanto na crônica, Machado inverteria os versos do poeta francês,
originariamente: ―Tout fuit, tout passe‖. Talvez o equívoco machadiano aponte para o fato
de o escritor tê-los citado apenas de memória, reconstituindo-os a partir das leituras da
mocidade.
Na crônica, o escritor ressalta alguns detalhes do poema de Hugo, como, por
exemplo, a metrificação. O escritor francês aplica um curioso recurso em ―Les Djinns‖, de
gradual acréscimo de sílabas métricas, chegando ao clímax do poema com os decassílabos.
Partindo desse ápice, o poeta, até o final do poema, adotaria um processo de decréscimo de
sílabas. A visão dos ―djins‖ finalmente se esvai com os versos dissílabos, compostos por
palavras curtas da língua francesa.
(...) lembramos daquela formosa oriental de Victor Hugo, ―Os djins‖.
Apostamos que os leitores, não só se estão recordando do assunto da
poesia, como até da forma métrica, que varia conforme se aproximam os
―djins‖, e cresce desde o verso de duas sílabas
Murs , ville
Et port,
Até o verso de dez sílabas, indo depois a decrescer, a decrescer, até
chegar à última estrofe. Hoje pode-se dizer do convênio [da paz] , como
dos djins orientais:
Tout passe
Tout fuit; 78
O texto de Machado é revelador, pois demonstra que, na escrita das Crisálidas, o
poeta já não tomava unicamente como modelo o romantismo hugoano, apesar de empregar
algumas temáticas comuns ao Romantismo. De certa forma, o escritor foi moldado pela
escola romântica, sentia-se inclinado a seus modelos, porém tinha consciência de que essa
estética estava relacionada ao campo das ilusões, que não lhe servia mais. Havia o apelo da
realidade, sempre adversa, principalmente após a perda das fantasias de juventude, que
cederam espaço às reflexões mais sólidas e consistentes da idade madura. O ―oriente‖, tal
78
ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. 2º vol. Rio de Janeiro; São Paulo: Livro do Mês S.A, 1962.
p. 332.
110
como o cantado por Hugo, já havia se esfacelado. Ficara, no entanto, a paisagem dos
versos, as imagens caras ao poeta, a engenhosidade da imaginação criativa, enfim, um
pouco do gênio romântico.
É essencial relembrarmos da terceira parte de ―Versos a Corina‖, em que o eu-lírico
se despede de sua ―infância poética‖, quando havia sido aleitado pela ―Quimera‖
romântica. A debandada das ilusões seria motivo suficiente para ceder espaço às agonias e
dores da humanidade, semeadas pela vida afora pelas mãos de uma Natureza contraditória,
e ceifadas no devido tempo com um definitivo golpe de misericórdia.
Na leitura do poema ―Versos a Corina‖, observamos que, de certa forma, as
―nuvens flamejantes‖ já pareciam cobrir o horizonte do poeta, como indício da mudança de
paradigma: no lugar da bondosa e amável mãe-Quimera, surgia uma outra Natureza - mãe e
inimiga.
Quando voarem minhas esperanças
Como um bando de pombas fugitivas;
E destas ilusões doces e vivas
Só me restarem pálidas lembranças;
E abandonar-me a minha mãe Quimera,
Que me aleitou aos seios abundantes;
E vierem as nuvens flamejantes
Encher o céu de minha primavera;
No poema das Crisálidas o escritor ainda definiria o Romantismo como a ―mãe
Quimera,/ Que me aleitou aos seios abundantes‖, do mesmo modo que trataria, numa
crônica de 1892, a tendência que o acompanhara na juventude de ―leite romântico, licor de
Granada‖. Granada, aliás, era a cidade de Juana, a amada do ―Sultão Achmet‖, a quem
Hugo dirigiu os famosos versos:
A Juana La Grenadine,
Qui toujours chante et badine,
Sultan Achmet dit un jour :
- Je donnerais sans retour
Mon royaume pour Médine,
Médine pour ton amour.79
79
HUGO. Op.cit. p. 108.
111
A crônica machadiana de que tratamos faz parte de um conjunto de reflexões de A
Semana, em que Machado se vale de alguns poemas de As orientais para refletir sobre os
assuntos de seu tempo. Destacava, assim, determinadas questões que envolviam as
reformas no mundo oriental sob os influxos do Ocidente. Em 25 de dezembro de 1892,
tendo como assunto o assassinato de cinco odaliscas em Constantinopla, o cronista abriria
sua coluna com a seguinte afirmação:
É desenganar. Gente que mamou leite romântico pode meter o dente no
rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o
melhor pedaço de carne para correr à bebida da infância. Oh! Meu leite
romântico! Meu licor de Granada! Como ao velho Goethe, aparecem
novamente as figuras aéreas que outrora vi ante meus olhos turvos.(...)
Cinco odaliscas! Murmura esse nome, leitor: faze escorrer da boca essas
quatro sílabas de mel, e lambe depois os beiços, ladrão. Pela minha parte,
achei-me, em espírito, diante de cinco lindas mulheres, com o véu
transparente no rosto, as calças largas e os pés metidos nas chinelas de
marroquim amarelo, - babuchas, que é o próprio nome. Todas as orientais
de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro e de sândalo.80
Apesar do tom jocoso da crônica, se usarmos como base de nossas reflexões o
poema de Crisálidas, veremos que estão muito próximas as imagens da Quimera que aleita
o poeta em seus seios, e a do ―leite romântico‖, ou ―licor de Granada‖, de que fala o
cronista.
A referência a Goethe, em especial, parece ser uma retomada das ―inquietas
sombras‖ da Dedicatória do Fausto, que o narrador machadiano também evocaria no Dom
Casmurro: ―Tornai, vós, trêmulas visões, que outrora/ Surgiram já à lânguida retina./ Tenta
reter-vos minha musa agora?/ Inda minha alma a essa ilusão se inclina?‖.81 Assim como as
visões surgiam diante dos olhos do ―velho Goethe‖, tematizando o retorno das ilusões, de
semelhante modo Machado retomaria muitas das questões do Romantismo em sua lírica,
ainda que em Ocidentais apresentasse um ―eu‖ cindido e contraditório.
Outra referência a Goethe vem embutida na imagem da ―mãe Quimera‖ que aleita o
poeta em seus ―seios abundantes‖, presente no poema, e que, indiretamente, seria retomada
no trecho da crônica de 1892.
80
81
ASSIS. O.C. Op. cit. Vol III. p. 563-564
GOETHE. J.W. Fausto: uma tragédia. 1ª parte. (Trad. Jenny Klabin Segall). São Paulo: Ed. 34, 2004. p.29.
112
Há uma parte do Fausto em que percebemos certa similitude com a imagem
machadiana: trata-se da fala de Mefistófeles no ―Quarto de trabalho‖, tentando convencer
Fausto a fazer o pacto. O personagem emprega a expressão: ―seio da sapiência‖, para
designar a fonte onde Fausto deve buscar alimento, comparando-a ao ―mátrio leite‖,
rejeitado pela criança de início, mas que o hábito a faz apreciar: ―Com o hábito é que vem o
apreço;/ Assim recusa o mátrio leite/ a criancinha no começo/ Mas chupa-o em breve com
deleite./Eis como ao seio da sapiência, se aguçará vossa apetência‖82. A Sapiência,
portanto, sustentaria Fausto com o leite do seu seio, assim como a Quimera machadiana
estava pronta a lhe oferecer, outrora, ―o leite romântico‖.
O ―licor de Granada‖, por sua vez, é uma alusão clara a Hugo e à sua obra, repleta
de paisagens orientais, incluindo um poema intitulado ―Granada‖ em homenagem à bela
cidade espanhola de fortes traços árabes. O escritor, como se pode perceber, admitiria as
influências românticas do início de sua carreira, mas não as abandonaria de todo na
maturidade. Continuamente dialogaria com os grandes escritores do Romantismo, ainda
que atenuasse muitas de suas convicções.
Em 26 de fevereiro de 1893, alguns meses depois da crônica acima transcrita,
Machado torna a convocar os versos de As orientais numa crônica para provar que todo o
alvoroço de uma época se esvaía, bem como o furor das batalhas do passado, as lutas
religiosas entre turcos e cristãos, deixando espaço unicamente para o que ele chama
ironicamente de ―conflito das lealdades‖.
Alá cumprimentou o Senhor, Maomé a Cristo. Tudo o que era contraste,
fez-se harmonia, o oposto ajustou-se ao oposto. Ondas e ondas de sangue
custou o conflito de dous livros. A cruz e o crescente levaram atrás de si
milhares e milhares de homens. Houve cóleras grandes. Houve também
grandes e pequenos poetas que cantaram os feitos e os sentimentos
evangélicos, ora pela nota marcial, ora pela nota desdenhosa. Um deles
dedilhou no alaúde romântico a história daquele sultão que requestava
uma cantarina de Granada, e lhe prometia tudo:
Je donnerais sans retour
Mon royaume pour Médine
Médine pour ton amour.
- Rei sublime, faze-te primeiramente cristão, respondeu a bela Juana;
danado é o prazer que uma mulher pode achar nos braços de um
incrédulo.
82
Idem. p. 185.
113
Tempos de Granada! Já não é preciso que os sultões se cristianizem.
Agora é a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas circulares
diplomáticas, os seus gestos ocidentais, que desaprendeu o crê ou morre
para celebrar a festa de um grande incrédulo do Corão. Onde vão as
guerras de outrora? Onde param os alfanges tintos de sangue cristão?
Naturalmente estão com as espadas tintas de sangue muçulmano. Vivam
os vivos!83
Nesse caso, o cronista relacionaria Granada especificamente ao poema ―Sultão
Achmet‖ de As orientais, como contraponto ao pensamento cristão do Ocidente. Citando
os versos de Hugo, Machado trataria ironicamente de uma nova tendência, não mais fixada
no furor das lutas, das grandes paixões, do matar ou morrer pelo ideal. Substituindo esse
mundo oriental, emergia a fusão diplomática do Ocidente, que assimilaria as oposições de
modo pacífico, com o único objetivo de sobrepor-se às vontades, tornando-se uma verdade
hegemônica, universal.
Enfim, o que é igual não se combate, nem é objeto da oposição, apenas se solidifica
no poder. À aparente uniformidade do mundo Ocidental, contrapõe-se a diversidade do
Oriental. Ocorre que a eliminação da parte oposta não se impõe através dos conflitos
armados, mas pela assimilação das idéias, pelo sincretismo, que a tudo reúne ao redor de si,
apenas para garantir a sua permanência. Seria uma eliminação silenciosa, na verdade, e
dissimulada sob aparência de um discurso de pacificação. No lugar de guerras, quando os
inimigos põem-se frente a frente sem maquiar as reais intenções, os acordos diplomáticos
seriam uma cruel máscara que, sob o signo da lealdade, embutiam interesses materiais.
Machado voltaria a falar da obra hugoana em 21 de fevereiro de 1897, novamente
nas páginas de A semana, tratando do livro como um todo e analisando-lhe as temáticas.
Merece destaque o trecho em que o escritor fala da recepção crítica de As orientais,
principalmente pelos poetas da sua geração: apesar de ser uma obra publicada trinta anos
antes, continuavam fiéis à proposta hugoana.
Assim como os versos de Hugo iam decrescendo na métrica até chegarem a duas
sílabas, na epígrafe de ―Última folha‖ o poeta parece se despedir das influências românticas
ao resumir o sentimento de outrora na epígrafe: ―tudo passa, tudo foge‖. De igual modo, na
trilha dessa observação, a paixão pelo ―leite romântico‖ também vai declinando no
83
ASSIS. O.C. vol. 3. Op. cit. p. 576.
114
percurso poético de Machado, até sobrarem apenas os dois versos hugoanos, resumo desse
processo: ―Tout fuit, tout passe‖.
Lembras-te, não? Se és do meu tempo não esqueceste que tu e eu, quando
expeitorávamos os primeiros versos que os rapazes trazem consigo, as
Orientais contavam já trinta anos e mais. Mas era por elas que ainda
aprendíamos poesia. Trazíamos de cor as páginas contemporâneas da
revolução helênica, e do bravo Canáris, queimador de navios, e da batalha
de Navarino, e da marcha turca, e de toda aquela ressurreição de um país
antigo, meio cristão. En Grece! cantava o poeta, pedindo que lhe selassem
o cavalo e lhe dessem a espada, que queria partir já, já, contra os turcos;
mas a lira mudava subitamente de tom, e o poeta perguntava a si mesmo
quem era ele. Confessava então não ser mais que uma folha que o vento
leva, nem amar outra cousa mais que as estrelas e a lua. Tão pouca cousa
não era nos demais versos em que cantava os heróis gregos, mas Hugo
lembrava-se de Byron... 84
Machado apreende a contradição poética do livro de Hugo ao mostrar que há um
desejo de captar o grandioso, o exótico, ao mesmo tempo em que se quer recorrer à
simplicidade, à paisagem comum a todos os poetas, apegando-se à própria realidade. A
lembrança de Byron seria um alerta para todos aqueles que desejavam viver o ideal no
plano real, extrapolando a mera inspiração poética para enfrentar, de fato, o campo de
batalha, como fizera o poeta inglês. Portanto, estava erguido o muro entre vida e realidade,
entre realização estética e idealização prática. Para tratar das questões subjetivas da alma
humana, o escritor precisaria partir de um plano objetivo, demandando um distanciamento
crítico.
Ainda sobre a questão oriental, discorrendo sobre o desmembramento da Turquia, o
cronista prosseguiria em suas reflexões acerca do Oriente, tecendo um retrato irônico das
relações de ―paz‖ impostas pelas alianças políticas, em detrimento da cultura e da soberania
do país: ―Os alfaiates levarão muito tempo a medir e cortar a bela fazenda turca para
compor o terno que a civilização ocidental tem de vestir: e, porque as medidas políticas
diferem das comuns, vê-lo-emos talvez brigar por dous centímetros‖.85
O mundo Ocidental, portanto, era a chave de tudo, a síntese da civilização:
assimilaria a cultura dos outros povos, dominaria os territórios, absorveria as diferenças e
os contrastes, em nome de uma paz destrutiva. O delírio de Brás é uma espécie de síntese
84
85
ASSIS. O.C. Op. cit, vol 3. p.766
Idem. p.734
115
do pensamento humano, principalmente da utopia ocidental, que, buscando dominar uma
Natureza múltipla e imprevisível (capaz de gerar no seu âmago o bem e o mal), fomenta a
ilusão de que caminhamos para a evolução da espécie, para a unificação das diferenças e
para o tão desejado ―progresso‖ do pensamento humano e do homem em si.
De acordo com o discurso do defunto-autor no delírio, o mal maior que Pandora
nos legou, de todos os que sua lendária caixa pôde espalhar pelo universo, foi, sem dúvida,
a esperança, que sustenta a crença numa felicidade quimérica e aumenta a intensidade das
outras dores humanas.
Pensamos, nesse aspecto em especial, na afinidade entre a obra machadiana e a
filosofia de Schopenhauer. Em O mundo como vontade e representação, o filósofo
formularia a seguinte teoria: ―O desejo extingue-se, e torna-se incapaz de produzir a dor, se
não existe nenhuma esperança para lhe fornecer alimento‖. E se aprofundaria na questão,
estabelecendo a noção de que o sábio deve ter sangue-frio, para não se submeter às ilusões
da vida.
(...) toda alegria intensa é um erro, uma ilusão, porque o prazer do desejo
satisfeito não é de longa duração, e também porque todo o nosso bem, ou
toda a nossa felicidade, só nos é dado por um tempo, e como por acaso, e
pode, por conseguinte, ser-nos arrebatado num momento. Todas as nossas
dores vêm da perda de uma ilusão semelhante; deste modo os nossos bens
e os nossos males vêm todos de um conhecimento incompleto.‖86
A única certeza desse universo complexo e contraditório é a de que todas as coisas
estão fadadas à corrosão do tempo. A ―Quimera‖ machadiana, cantada na juventude,
assumia outros ares. Todo o ideal já estava consumido pela dura constatação da realidade, o
reinado era definitivamente de Pandora. No entanto, o saber filosófico não produziria uma
imunidade às dores humanas, ao contrário, o conforto que Brás busca na ciência, com a
invenção do emplastro, parece ser uma contestação do pensamento de Schopenhauer:
nenhum emplastro, nenhum saber pode isentar o homem das suas dores, nem fazê-lo atingir
um conhecimento completo de si mesmo ou dominar suas ilusões.
Essa é a tônica das Ocidentais: a civilização do Ocidente sob uma ótica literária, a
partir de uma filosofia pautada numa realidade em que o sofrimento assume o centro das
86
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Op. cit. p. 98.
116
discussões, assim como reflete a condição humana, as ilusões da vida, a destruição pela
morte. Definitivamente a imagem que se tem da civilização ocidental é a de uma
humanidade cindida, entre razão e sentimento, entre interior e exterior, entre pensamento e
ação, entre forma e fundo.
Não há mais espaço para a utopia ou para o ideal, mas, contraditoriamente, ambos
constituem o princípio básico da existência humana. De certa forma, a imagem de Pandora
é uma contra-resposta às antigas aspirações poéticas do escritor delimitadas nos ―Versos a
Corina‖ a partir da concepção do poeta como ―pelicano do amor‖ que a si mesmo dilacera
em nome dos ideais. O que se constata é que o homem não tem domínio algum sobre sua
vontade, pelo contrário, há um poder que o domina e do qual não pode fugir, que aflige
tanto o corpo quanto o intelecto.
Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o
pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em
derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à
indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor
bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade
das cousas, atrás de uma figura nebulosa, esquiva, feita de retalhos, um
retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos
todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada
menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou
deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela
ria, com um escárnio, e sumia-se como uma ilusão.87
Partindo do conhecido trecho das Memórias póstumas, podemos confrontar duas
figuras: Quimera e Pandora. A primeira seria o ideal perseguido em vida, enquanto a
segunda representaria a terrível realidade, ainda que advinda de um delírio. Apesar de
Pandora conduzir Brás à montanha para admirar os séculos, como a ninfa no episódio da
―máquina do mundo‖ de Os lusíadas, a Natureza machadiana não é nenhuma Tétis a fazer
o Gama contemplar a grandeza dos feitos futuros, está antes para Satanás a conduzir Cristo
ao monte para oferecer-lhe as delícias do mundo, mediante uma total submissão: ―Tudo
isso te darei se, prostrado, me adorares‖.
No entanto, o que Brás observa no ―desfile dos séculos‖ é que a glória prometida
dos reinos do mundo não passa de fantasia: render-se a seus encantos é padecer por uma
87
ASSIS. O.C. vol.1. p. 523.
117
glória inútil, por um bem que mão alguma pode reter para sempre, e que segue produzindo
misérias, reproduzindo fracassos, trocando continuamente de dono. A Pandora machadiana
vai além ao mostrar que rendição ou rebelião não fazem a mínima diferença. O suplício é
intrínseco ao homem, toda moeda que lhe vem à mão tem duas faces: bem e mal, flagelos e
delícias.
A Natureza na obra machadiana segue a mesma premissa apregoada pelo poeta
italiano Giacomo Leopardi, em seu poema ―La ginestra‖: ―È madre in parto ed in voler
matrigna./ Costei chiama inimica;‖88 O poeta italiano, um dos mestres de Machado,
endossaria também a Pandora machadiana – mãe e inimiga –, partidário de uma espécie de
filosofia poética que justificaria o sofrimento humano, assim como a constante luta pela
sobrevivência e a busca pela felicidade, através do eterno confronto entre homem e
natureza.
Idéia
muito
semelhante
veríamos
reproduzida
no
Romantismo
alemão,
principalmente na obra de Goethe. A própria angústia de Werther não se resume no
sentimento que nutre por Carlota, mas ressoa no conflito que o sentimento produz em seu
interior. A mesma natureza que o havia inspirado a amar aparece revolta e o incita a
destruir a si mesmo. Uma das reflexões do romance-diário de Goethe muito se aproxima da
descrição da Pandora das Memórias póstumas, e da Natureza representada na obra de
Leopardi.
O que me consome o coração é essa força dominadora que se oculta na
totalidade da Natureza, e que nada produz que não destrua o que a rodeia,
e por fim a si mesma... E assim vagueio atormentado por aí. Céu, terra e
suas forças ativas em volta de mim! Nada vejo senão um monstro que
engole eternamente e eternamente volta a mastigar e engolir.89
Tudo leva a crer que Leopardi tenha se inspirado na obra goethiana para compor
―La ginestra‖, cujo título designa uma planta de belas flores douradas que cresce em
lugares desérticos ou arenosos. Seria o símbolo da beleza florescendo no ambiente mais
desfavorável, tanto que o poema de Leopardi receberia o subtítulo de ―Il fiore del deserto‖,
como um epíteto de resistência para definir a bela ―ginestra‖.
88
LEOPARDI, Giacomo. Poesie di Giacomo Leopardi. Torino: Società Editrice Italiana di M. Guigoni, 1857.
p. 170.
89
GOETHE. J.W. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2003. p. 80
118
Além da idéia de Natureza adversa presente no Werther, temos a mesma imagem da
―ginestra‖ de Leopardi (giesta, em português), descrita no livro do escritor alemão como
símbolo da força da Natureza, manifesta na resistência de determinadas espécies, mesmo
diante das piores adversidades. Esse instinto de sobrevivência provoca grande impacto no
intelecto humano, ao mesmo tempo em que revela ao homem a sua fragilidade perante a
natureza que o cerca.
Quando o estridor e o bulício ao meu redor me faziam fixar a vista na
terra e no musgo que arranca o seu sustento da dura rocha e na giesta que
cresce ao longo da árida duna de areia... Ah! aí então a vida interior e
misteriosa que anima a Natureza, sempre ativa e potente, se desvelava
inteira para mim.90
No original alemão, Goethe usaria a palavra ―geniste‖ para designar a planta, o que,
certamente, pode ter influenciado a escrita de Leopardi, tanto na escolha do tema quanto na
do título de sua composição. A imagem da flor, cercada de fragilidade e beleza, resistindo
no terreno árido, resumiria a tônica da sobrevivência dos seres e mostraria a extensão do
poder da natureza, desafiando a compreensão humana. Até porque a frágil flor surge com
maior capacidade de resistir às oposições da natureza do que o próprio homem em sua
enganosa idéia de superioridade.
Na lírica machadiana encontraríamos dilema semelhante em ―Uma criatura‖. Poema
que fala de uma Natureza que devora inclusive aquilo que cria, que é a extensão de si
mesma, como vimos no trecho do Werther aqui transcrito.
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E o mar, que se rasga à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
O que temos diante dos olhos é uma natureza convulsa e abismal, que reúne terra e
céu (vales e montanhas), indistintamente funde as antíteses, e devora a si mesma com uma
―fome insaciável‖. Goethe, no Werther, também falaria desse instinto destruidor: ―Um
90
Idem. p. 78.
119
monstro que engole eternamente e, eternamente, volta a mastigar e engolir‖. Ao contrário
de eliminar-se, a destruição a faz reviver ainda mais intensa, como a fênix pronta a se
incendiar, para retornar inteiramente revigorada.
Encontramos esse princípio contraditório da Natureza também no Fausto de
Goethe. Como a Pandora machadiana que traz em sua bolsa os bens e os males,
Mefistófeles se autodefine como parte de uma Energia criadora que possui um objetivo
dúbio: ―Sou parte da Energia/ Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.‖ 91 A
mesma concepção ambígua encontraríamos no poema machadiano.
Pois essa criatura está em toda obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.
Ama de igual modo o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
Esse ―divino estatuto‖ - ou ―estatuto universal‖, como o designaria Machado no
delírio de Brás -, é observável a partir de um ponto de vista privilegiado: o alto da
montanha. Werther também subiria até a colina para admirar o espetáculo da natureza. A
subida ao monte, anábase poética, funciona como uma espécie de síntese do tempo e do
espaço, reunião do céu e da terra, onde o universo se reduz à expressão mínima, ao mesmo
tempo em que a visão se amplia ao máximo para lhe contemplar a grandeza. É o instante
supremo da revelação profética, como se o poeta pudesse compreender passado, presente e
futuro. No entanto, em vez de ser unicamente uma retomada do platonismo, que aponta o
alto como lugar de manifestação divina, o poeta se sente atordoado pela revelação.
O personagem goetheano seria inundado por dois sentimentos: atração, devido à
grandiosidade da revelação diante de seus olhos, que produz um momentâneo efeito de
poder; e retração, sentimento de impotência, que tanto o impede de interferir no fluxo da
natureza, quanto lhe dá a consciência de que esse fluxo também o domina e o arrasta
incondicionalmente com sua força destruidora.
91
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 139.
120
Como eu abraçava tudo aquilo no meu cálido coração e me sentia
deificado por aquela torrente que me trespassava, enquanto as majestosas
formas do mundo viviam e moviam-se em minha alma! Montanhas
ingentes me rodeavam, abismos profundos estendiam-se a meus pés, as
torrentes despenhavam-se para baixo, os rios fluíam sob meus olhos, mata
e montanha troavam; eu as via, todas essas forças inescrutáveis, atuarem e
criarem-se mutuamente, uma dentro da outra, nas profundezas da terra; e
logo por cima da terra e debaixo do céu, formigavam as inumeráveis raças
dos seres vivos; tudo, tudo povoado de mil formas diferentes; e depois os
homens, recolhidos em suas casinholas, confortando-se e iludindo-se uns
aos outros, reinando segundo seus princípios sobre o vasto universo!92
Ao contrário da clássica subida à montanha das musas para buscar inspiração, o
poeta moderno tem o dom visionário com que consegue englobar todos os tempos num
único espaço/tempo, espécie de ―redução dos séculos‖. A revelação, porém, ao acrescentar
um conhecimento sublime do sentido da vida, traz também a consciência da falibilidade do
homem: não há como equilibrar o exterior, muito menos o interior. Ainda que suba ao
monte ou dele desça, que adquira saberes e ciência, ou conheça toda a grandeza dos
sentimentos, o homem não consegue dominar, ou sequer conhecer, sua própria natureza.
Novamente, encontramos em Schopenhauer a definição de sujeito que se aproxima
desse ponto de vista, existente na obra machadiana e no pensamento de outros poetas:
Mas o próprio sujeito, o princípio que conhece sem ser conhecido, não cai
sob estas condições visto que é sempre pressuposto por elas
implicitamente. Não se lhe pode aplicar nem a pluralidade, nem a
categoria oposta, a unidade. Portanto, nós não conhecemos nunca o
sujeito; é ele que conhece em toda parte em que há conhecimento.93
Há alguns princípios filosóficos na obra de Schopenhauer adquiridos através das
leituras do Rig-Veda, segundo ele mesmo afirma. Por exemplo, no que concerne à idéia de
mundo, o filósofo parte de um pensamento oriental (da sabedoria hindu), segundo o qual
―Maya‖ seria o véu da ilusão ―que ao cobrir os olhos dos mortais, lhes faz ver um mundo
que não se pode dizer se existe ou não existe, um mundo que se assemelha ao sonho‖.94
92
Idem. Ibidem.
SCHOPENHAUER. Op.cit. p. 11.
94
Idem. p.14.
93
121
Também no ―Prólogo do Teatro‖ do Fausto, de Goethe, a fala do ―Poeta‖
demonstra uma nostalgia da juventude, quando as ilusões ainda eram possíveis,
descrevendo um mundo de sonhos, como o de ―Maya‖, só que o Véu, neste caso, oculta
todos os males.
Pois restitui-me os tempos santos,
Em que me formava eu, ainda,
Em que um tesouro de áureos cantos
Da alma me fluía em fronte infinda,
Do mundo um véu cobria os males,
Milagres a alva prometia,
Em que mil flores eu colhia
Que enchiam com abundância os vales.
Nada tinha e o bastante me era,
O anelo da verdade e o gosto da quimera.
Sim! Restitui-me o flâmeo ardor,
O imo êxtase, pungente e rude,
A força do ódio, o afã do amor,
Oh! restitui-me a juventude!(grifos nossos)95
O trecho relembra, em muitos aspectos ―Última folha‖ ou ―Musa consolatrix‖, em
que o poeta apela à musa antes que as ilusões voem como ―pombas fugitivas‖, ou que o
tempo as desfolhe da ―fronte do mancebo‖. No entanto, o apreço à temática goethiana não
se restringiria aos poemas de Crisálidas e de Falenas: seria retomado em Ocidentais sob
um ponto de vista crítico e filosófico.
Nesse livro, percebemos a mesma tônica das ilusões e desilusões, marcando as
forças de atração e repulsão da alma humana frente às questões do ―Eu‖ e do universo.
Assim como Fausto hesita, durante toda a tragédia, entre Deus e Mefisto, também o eulírico machadiano oscilará entre sua própria natureza – microcosmo humano -, e a Natureza
que o cerca – macrocosmo divino.
O conhecimento filosófico, entretanto, viria romper com esse véu da ilusão, frente
ao mundo que nos rodeia, embora o conhecimento que o sujeito tem de si mesmo
permanecesse encoberto. Na poesia, a subida ao monte pode ser vista como um descortino,
o rompimento do véu, permitindo uma visão clara do mundo como representação. Por outro
lado, o sujeito poético, adquirindo esse saber, ao contrário do que desejaria a filosofia de
95
Idem. p. 41.
122
Schopenhauer, não consegue dominar a vontade ou compreender suas próprias
contradições. O mundo interior comporta, portanto, véus indevassáveis.
Partindo dessas observações, podemos penetrar no ponto central da lírica de
Ocidentais, percebendo a obra como uma releitura dos grandes clássicos da civilização
ocidental, passando por Dante, Shakespeare, Camões, Goethe, Hugo, dentre outros, e
fazendo, inclusive, uma revisão de certas tendências do pensamento filosófico.
Prometeu seria, nesse caso, símbolo máximo do poeta que luta contra a própria
realidade, atado ao ofício de escritor, o seu Cáucaso. No cimo do monte, tem visão
privilegiada da vida e dos homens sem, contudo, poder se desvencilhar da ave que lhe
corrói o fígado. Na obra machadiana, podemos chamar esse pássaro impiedoso, tal como o
corvo de Poe, de consciência estético-filosófica.
Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.
Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilhão,
Uns cingidos de luz, outros ensangüentados...
A rendição de Prometeu no poema de Machado não se dá pelo suplício em si - a dor
de estar preso ou de ter o fígado eternamente consumido -, mas por não suportar mais a
visão do enfadonho espetáculo dos homens, o constante ―desfilar dos séculos‖, como Brás
pôde ver no cimo do monte. Essa seria a eterna mesmice dos homens, entre flagelos e
delícias, seguindo a procissão dos séculos, ora cheios de luz, ora cobertos de sangue,
conforme o tempo de rir ou de chorar.
Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.
Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.96
96
ASSIS. T.P. p. 299.
123
Consoante a conhecida afirmação de Brás (―não transmiti a ninguém o legado da
nossa miséria‖), interromper o fluxo da existência humana é o único recurso eficiente para
pôr fim ao sofrimento: ―Acabara o suplício e acabara o homem‖. Prometeu, figura mítica
que rouba o fogo divino para dá-lo à humanidade, não divisa bem algum no homem pelo
qual se sacrificou, nem pode contemplar qualquer feito que possa advir da doação feita por
ele: não há centelha que brilhe, dentro ou fora, nessa criatura vã e vil. Os séculos passam
―lentamente como dobre de finados‖, eterna monotonia secular de iras e ganâncias
humanas, em desenfreada busca pela quimera da felicidade.
É necessário, portanto, decretar o fim do sofrimento, lançando-se definitivamente
ao abismo: ―E caddi come corpo morto cade‖, parece que ouvimos o eco desses versos de
Dante (final do Canto V, do ―Inferno‖) no poema machadiano, quando o poeta diz ―ao
abismo um corpo morto rui‖. O deprimente espetáculo humano só se encerra a partir da
quebra da corrente da existência, o que justifica o ―saldo positivo‖ de Brás: ―Não transmiti
a ninguém o legado da nossa miséria‖.
2.1- Mundo interior: o microcosmo humano.
O diálogo entre Fausto e Mefistófeles, que antecede o pacto, nos revela o maior
desejo do homem: ―a aspiração suprema‖, ou seja, atingir a totalidade do universo e, assim,
gozar de todos os prazeres sem temer dor alguma. Resume o antigo desejo de Adão e Eva
no Gênesis: adquirir o conhecimento do bem e do mal e igualar-se a Deus.
124
Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo
Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso.
Meu peito, da ânsia do saber curado,
A dor nenhuma fugirá do mundo,
É o que a toda a humanidade é doado,
Quero gozar no próprio Eu, a fundo,
Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,
Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito,
E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,
E, com ela, afinal, também eu perecer.97
Mefistófeles, porém, desfaz as ilusões do Doutor, ao afirmar que essa totalidade
desejada é impossível de ser atingida pelo homem, pois é reservada apenas ao Ser Divino.
Ainda que as criaturas acumulem virtudes, adquiram saberes supremos e desvendem os
grandes mistérios, ainda assim, afirma Mefistófeles: ―nomearia um cavalheiro como esse/
Dom Microcosmo – se o conhecesse.‖(grifo nosso) - e, mais adiante, conclui ―No fim
sereis sempre o que sois/ Por mais que os pés sobre altas solas coloqueis,/ E useis perucas
de milhões de anéis,/ Haveis de ser sempre o que sois‖.98
Seguindo essa ótica, nenhum conhecimento, portanto, pode conferir ao homem a
capacidade totalizadora que ele almeja. Sempre haverá de ser o mesmo, diante do bem ou
do mal, indistintamente; seria apenas Dom Microcosmo, senhor de um ―pequeno mundo‖.
Machado parece refletir profundamente acerca dessas questões, do Macrocosmo e
do Microcosmo. Assim, faria a oposição entre o mundo exterior e o interior, só que, ao
contrário, esse ―mundo interior‖ parece ainda mais complexo e abismal; portanto,
indevassável ao olhar do próprio ser.
Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à ínfima luzerna.
Ouço que a natureza, - a natureza externa, Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida,
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.
97
98
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 175.
Idem. p.177.
125
O poeta, logo de início, apontaria duas visões sobre a Natureza, o Macrocosmo,
identificadas pela expressão ―ouço que‖, ou seja, não é o julgamento pessoal que está sendo
expresso pelo eu-lírico, mas os conceitos formulados pela opinião geral. Na primeira
estrofe, apresenta uma visão idealista da natureza, que seria uma definição harmoniosa de
que tudo se encaixa no universo, e de que tudo nele está construído para equilibrar os seres,
do mínimo ao máximo: ―do sol à ínfima luzerna‖. Na segunda estrofe, porém, verifica-se
uma visão com laivos de pessimismo, que muito se assemelha à idéia da Natureza-Pandora,
que reúne bem e mal, tanto namora quanto intimida. Como no poema ―Uma criatura‖, ela
pode cingir em seu âmago o ―belo e o monstruoso‖, ou ainda, uma hidra de Lerna junto às
flores mais sublimes.
Partindo dessas duas concepções, o poeta passa a refletir sobre a principal questão
do poema: o mundo interior. A partir de então, os versos vão revelar a experiência do Eu,
envolvido num mergulho em sua mais profunda consciência, até declarar o completo
desnorteamento frente ao abismo que descobre em si.
E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro de mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,
Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia, - e dorme.
Inversamente proporcional, o vasto Macrocosmo estaria refletido no interior do
homem; portanto, não se consegue chegar a nenhuma convicção sobre o exterior e o
interior, ambos são abismos, onde o segredo, como véu, encobre o discernimento. Nem a
mais sábia intuição consegue adentrar esse mundo, embora, como esfinge, ele atraia,
desafie, permanecendo inviolável. É como no mito de Maya, que vimos anteriormente: o
véu da ilusão continuamente encobre os olhos dos mortais e lhes ―faz ver um mundo que
não se pode dizer se existe ou não existe, um mundo que se assemelha ao sonho‖.
Nada é palpável no poema. O ―ouço que‖, não passa de mera hipótese. No entanto,
o ―eu‖ sente, vê, intui, todo um universo interior, de ―vida imortal‖ e ―eterno cataclismo‖ –
criação permanente e permanente destruição. A imagem do íntimo assemelha-se a um
126
grande espelho invertido, que reflete no interior do homem a grandeza e o mistério da
natureza externa: no seu âmbito enorme, revela, todavia, um abismo ainda mais insondável.
O que Machado parece trazer à tona é a subjetividade do homem que domina todo o
universo e o submete à sua própria vontade. Nesse ponto, podemos considerar que na
acepção machadiana o Macrocosmo é uma invenção humana, projetada pela sua própria
ilusão. Toda realidade está submetida a essa concepção individual, à idéia que cada um traz
de si em relação ao mundo.
É interessante observar que nas Memórias, o relato do delírio não se apresenta, de
fato, como uma experiência de morte de Brás, ou um relato de definitiva passagem de um a
outro plano. Lembremo-nos de que ele apenas ―delira‖, e, em seguida, retorna ao leito de
agonia. Resta a dúvida: realidade ou sonho? Quando morre ―em definitivo‖, Brás
simplesmente não descreve, não fala quase nada desse outro universo, pelo contrário, vai
tratar apenas das experiências que teve no mundo dos vivos.
De igual modo, em muitas narrativas, Machado ilustra os enganos do homem em
relação ao ambiente que o cerca, empregando diversos elementos para demonstrar essa
hipótese. Em ―idéias de canário‖, por exemplo, usa o pequeno pássaro para ilustrar que o
ponto de vista e a opinião diversificam-se de acordo com o ambiente em que cada um se
encontra.
Como o axioma do Dr. Pangloss, de Voltaire, ―O nariz foi feito para o uso dos
óculos‖, o homem crê que tudo ao seu redor foi feito para si e que todo o Universo a ele
está submetido. Assim, existem várias verdades que se adaptam de acordo com a situação
que se pretende configurar. Tudo está submetido à subjetividade humana, ao ―Dom
Microcosmo‖.
A dúvida, por sua vez, é um sentimento intrínseco ao homem, que oscila entre razão
e vontade, entre o bem e o mal, sem chegar a uma concepção exata do seu próprio Eu. Essa
oscilação configura uma marca das personagens machadianas, sempre indecisas em relação
à realidade que as cerca. Do mesmo modo, a poesia de Ocidentais demarca esse território
das vacilações humanas que geram eternos suplícios, a principal delas: a ambigüidade da
natureza humana.
Entre Deus e o diabo, oscila o homem - como Mefisto parece concluir diante da
contínua insatisfação de Fausto, que ora se entrega e ora se lamenta pelos resultados:
127
Tornamos aos confins do vosso entendimento, lá, onde a vós mortais, o
juízo se alucina. Por que é que entraste em comunhão conosco, se és
incapaz de sustentá-la? Almejas voar e não te sentes livres da vertigem?
Pois fomos nós que a ti nos impusemos, ou foste tu que te impusestes a
nós?99
Usando a forma ―nós‖, Mefisto situa o homem como centro da oposição Deus x
diabo, continuamente alternando de crença, mas seguindo unicamente suas próprias
convicções ou ilusões. De igual modo, Machado configuraria esse dualismo do homem no
conto ―A igreja do diabo‖, onde se conclui que dificilmente a natureza humana pode optar
por um único lado.
O princípio da dubiedade e da contradição será expresso nos poemas de Ocidentais
tanto nas composições do autor quanto nas traduções dos clássicos. Em ―Perguntas sem
resposta‖, por exemplo, Machado trabalha com o princípio da harmonia e do equilíbrio
clássicos, representado por Vênus (configurada como estrela), em oposição aos discursos
da fé e da esperança - que no poema parecem gerar dor e sofrimento -, na pessoa de Maria.
Vênus formosa, Vênus fulgurava
No azul do céu da tarde que morria,
Quando à janela os braços encostava
Pálida Maria.
(...)
E o coração, que de prazer lhe bate,
Acha no astro a fraterna melodia
Que à natureza inteira dá rebate...
Pálida Maria.
Maria pensa: ―Também tu, decerto,
Esperas ver, neste final do dia,
Um noivo amado que cavalga perto,
Pálida Maria?‖
Maria enxerga no astro, assaz distante, um reflexo dos próprios anseios, e chega a
chamar Vênus pelo seu nome: ―Pálida Maria‖. Porém, ao contrário de ―pálida‖, sabemos,
logo na primeira estrofe, que Vênus ―fulgura‖. Além do distanciamento espacial, há uma
oposição marcada entre a palidez de Maria e o brilho de Vênus. Por outro lado, enquanto a
99
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p.493.
128
primeira preocupa-se com o noivo e com a felicidade, a outra parece indiferente ao destino
dos homens. As perguntas da moça ficam sem resposta, embora sua ilusão tente submeter
as coisas ao redor à sua subjetividade, ou seja, o ―microcosmo humano‖ percebe o
macrocosmo como espelho de sua alma, e, assim, tenta impor-se ao divino.
O noivo de Maria, entretanto, morre, e toda a expressão de júbilo que a tomava
anteriormente transforma-se em tristeza e angústia. Se outrora notou em Vênus o reflexo de
seus anseios pelo noivo, outra vez percebe, através do filtro da subjetividade, uma
expressão melancólica no astro fulgurante, como se ele fosse solidário aos seus
sentimentos.
Quando três sóis passados, rutilava
A mesma Vénus, no morrer do dia,
Tristes olhos ao alto levantava
Pálida Maria.
E murmurou: ―Tens a expressão do goivo,
Tens a mesma roaz melancolia;
Certamente perdeste o amor e o noivo,
Pálida Maria?‖
Vênus, porém, Vênus brilhante e bela,
Que nada ouvia, nada respondia,
Deixa rir ou chorar numa janela
Pálida Maria.100
O poema ―Perguntas sem resposta‖ nos remete ao episódio que encerra o romance
Quincas Borba, que, por sua vez, é um contraponto à cena inicial em que Rubião admira a
enseada de Botafogo e acredita ser possuidor de tudo o que o cerca, incluindo a paisagem:
―Olha para si, para as chinelas (...), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os
morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de
propriedade‖. 101
A ―sensação de propriedade‖, do ponto de vista material de Rubião na leitura de si e
do mundo, equivale à interpretação equivocada de ―Pálida Maria‖ em relação à estrela, que
a sua curta visão tende a interpretar como solidária a seus sentimentos. Ambas as situações
100
101
ASSIS. T.P. p. 312.
ASSIS. O.C. vol 1. p. 643.
129
apontam para a interpretação subjetiva do homem, que submete o Macrocosmo à sua ilusão
de ―propriedade‖ ou de ‗espelhamento‖.
Na primeira situação, o indivíduo assume o papel totalizador, ―o mundo pertence a
mim‖, enquanto, na outra situação, crê no espelhamento humano/divino: ―o mundo
representa a minha vontade‖. No Quincas Borba, a cena seguinte é marcada pela afirmação
do narrador: ―Que abismo há entre espírito e coração!‖, frase que se coaduna plenamente
com as idéias presentes em ―Mundo interior‖. O narrador mergulha na alma de Rubião para
colher todas as contradições que nela encontra. Eis o abismo do homem.
O último capítulo de Quincas Borba apresenta a completa insanidade do
personagem que acreditou que tudo poderia possuir, das chinelas ao céu, incluindo a bela
Sofia. A mesma conclusão do poema ―Perguntas sem resposta‖ surge nesse trecho final do
romance, quando o narrador assim arremata a cena da demência e da pobreza de Rubião:
―Eia! Chora os dous recentes mortos, se tens lágrima. Se só tens riso, ri-te! É a mesma
cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto
para não discernir os risos e as lágrimas dos homens‖. 102
Como o Cruzeiro diante das dores e alegrias humanas, Vênus, fulgurante, deixa rir
ou chorar Maria, indiferente ao que o destino lhe reserva. Chegamos à mesma conclusão de
Mefisto: o homem será sempre o que é - Dom Microcosmo-, independente de sua condição
material ou de sua ciência. Nenhuma criatura humana pode controlar plenamente a razão
ou o sentimento, nem pode definir o seu destino.
Também a filosofia de Quincas estaria, nessa página final do romance, desmentida,
juntamente com a idéia de que ―Humanitas‖ era o universo, atribuindo ao homem uma
essência divina que se distribuía e se espelhava em todas as coisas que o cercam, regendoas segundo um princípio subjetivo de sobrevivência.
Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas certa substância recôndita e
idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e
indestrutível, - ou, para usar linguagem do grande Camões:
Uma verdade que nas cousas anda,
Que mora no visíbil e invisíbil
102
Idem. p. 806.
130
Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que
Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o
homem.103
Seguindo a filosofia de Quincas, esse papel divino dado ao homem subverte o
princípio cristão, ao atribuir a Humanitas um perfil messiânico, de sacrificar um
determinado ser pelo bem da coletividade. A equiparação de Humanitas ao Salvador é feita
de maneira oblíqua através da citação de versos camonianos. O trecho integra a Elegia XI,
do bardo português, em louvor a Cristo: ―Um saber infinito, incompreensível/ Uma verdade
que nas cousas anda/ Que mora no visíbil e invisíbil./ Esta potência, enfim, que tudo
manda,/ Esta Causa das causas revestida,/ Foi desta nossa carne miseranda.‖104
Portanto, segundo a filosofia de Quincas, não é a centelha divina que se espalha em
todo o universo, visível e invisível, mas sim a vontade humana que se projeta em cada
indivíduo para garantir a sobrevivência da espécie. Não importa, pois, que uma criatura
esteja se extinguindo, e sim que outro ser leve adiante o princípio de resistência e
permanência da humanidade.
A ilusão de Quincas Borba é a mesma de Rubião, supor que todo o Universo está
submetido ao homem. O que Machado pretende mostrar é a indiferença desse Cosmo
diante dos anseios humanos. Ambos os personagens são destruídos por sua filosofia, ou
melhor, seguindo a etimologia da palavra: FILO-SOFIA. O primeiro, abraçando uma teoria
científica, de aparente enriquecimento do espírito - ―paixão pelo saber‖; Rubião, na sua
busca pela satisfação do corpo, seguindo o desejo que mostrara desde o início - ―paixão por
Sofia‖. Conclui-se que nem a ciência, nem os desejos materiais podem elevar o homem a
essa posição superior, ao almejado céu do Ideal.
Nem corpo, nem espírito encontram a plenitude almejada, como podemos também
verificar no Fausto: nem ciência, nem Margarida, nem poder algum podem redimir o
homem, calar a dor ou suprir esse desejo de totalidade que tenta alcançar em seu ―Mundo
interior‖.
A desilusão humana aparece também em outros poemas de Ocidentais,
principalmente nas traduções de ―O corvo‖, de Poe, e do monólogo ―To be or not to be‖, de
103
104
Idem. Cap. VI. p. 648.
CAMÕES, Luís de. Obras de Luís de Camões. Vol. III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1861.
131
Shakespeare. Ao que parece, Machado não só formulava sua filosofia na escrita da poesia,
mas traçava o roteiro da tradição literária acerca dos temas universais.
No poema de Poe, observamos a mesma configuração fáustica: um homem que
busca no saber ou no misticismo sua verdadeira face ou o desvendar dos segredos da vida.
Assim, no interior do quarto, onde o busto da Sabedoria (Palas) orna a parede, o homem
interroga o pássaro negro, mas suas indagações resultam em uma resposta repetitiva, cada
vez mais vazia e angustiante: ―nunca mais‖.
O ―eu-lírico‖ de Poe assemelha-se ao Fausto de Goethe, cercado pelos livros
―laudas antigas‖, refletindo sobre ―velhas doutrinas‖, no seu quarto de trabalho.
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho.
(...)
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso, em vão, à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.
(...)
Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: ―um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.105
A resposta do corvo, ao contrário do que o poeta deseja, não vem trazer alento ao
coração, apenas resulta num eco que ressoa na consciência, anulando toda a sabedoria ou
esperança depositada no homem: ―Nunca mais‖. De início, tenta crer que é a providência
divina que o procura para aliviar-lhe as dores, mas, diante da resposta, suplica ainda mais
aflito: ―Ave ou demônio que negreja,/ Profeta ou o que quer que sejas!‖. Deus ou um ente
105
ASSIS. T.P. p. 304-308.
132
maligno, não importa, o homem apenas deseja uma resposta para suas incertezas, mas,
como no poema machadiano, não pode desvendar ―um segredo que atrai, que desafia – e
dorme‖.
Já o conhecido solilóquio de Hamlet, ―ser ou não ser‖, dá continuidade à questão
existencial. O personagem é símbolo da impotência humana diante do vasto universo, que
ora conspira, ora se mostra indiferente. Mais do que isso, Hamlet representa a consciência
plena de que o riso ou o choro são a mesma coisa, vingar-se ou não da morte do pai não
resulta em proveito ou perda. O personagem, portanto, se recusa a seguir o plano da
existência, rejeita o papel de homem e vaga pelas margens da vida, tal como o defuntoautor.
Nietzsche, em O nascimento da tragédia, compararia a personalidade de Hamlet ao
indivíduo dionisíaco, mostrando que, nas duas situações, teríamos um sujeito que
reconhece a inutilidade de se ajustar, ou de compreender um mundo ―fora do eixo‖, a
começar pela natureza contraditória do indivíduo.
Nesse sentido, o indivíduo dionisíaco assemelha-se a Hamlet: ambos têm
visão profunda, que lhes permite enxergar a verdadeira essência das
coisas; ambos adquiriram conhecimento, e a náusea decorrente inibe-lhes
a ação; e qualquer ação da parte deles seria incapaz de alterar a eterna
natureza das coisas; consideram ridículo ou humilhante, o fato de serem
chamados a corrigir um mundo que está fora de eixo. O conhecimento
aniquila a ação; a ação depende dos véus da ilusão: eis a doutrina de
Hamlet.106
Hamlet, portanto, é um dos personagens que atingem o âmago da problemática
existencial do homem; assim, ele mesmo assume o perfil da indiferença, recusando-se a
encenar o papel que o ―grande teatro da vida‖ lhe impõe, arrancando definitivamente o véu
das ilusões. Distancia-se, pois, da cena e só retorna para dar fim ao tedioso espetáculo
humano, como faz Prometeu no poema de Machado: ―acabara o suplício e acabara o
homem‖. No caso do personagem shakespeariano, era preciso cerrar o pano para o
definitivo aniquilamento do ato.
106
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Apud: BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do
humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 491.
133
Shakespeare foi um dos primeiros autores a problematizar a realidade partindo de
um filtro de consciência individual, revelando que a natureza dupla (ou múltipla) do
homem o leva irreversivelmente à contradição. Assim lemos, na tradução de Machado, a
síntese da condição humana delineada pelo personagem de Shakespeare:
(...) Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde,
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor de decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.107
O mundo interior do homem abriga o maior dos abismos. A questão principal da
natureza humana envolve o sentido primordial do ser e do não ser. Segundo o pensamento
shakespeariano, sem conhecermos o curso da existência e o que nos espera no devir,
estamos sujeitos ao poder subversivo e persuasivo da nossa consciência, que nos induz a
sobreviver e a resistir. O homem luta por quimeras e, enfim, percebe que seu objeto de
desejo não passa de nulidade, que ele, ainda assim, abraça com a avidez de ―grande lascivo
do nada‖.
2.2- A Metamorfose
107
ASSIS. T.P. p. 313.
134
“O mais feliz dos homens é aquele que
consegue ligar o fim de sua vida ao início”
(Goethe)
Acompanhando a trajetória do poeta Machado de Assis, constatamos expressiva
freqüência, no gosto do autor, pelo tema da metamorfose. Já nos títulos de seus primeiros
livros de poesia – Crisálidas e Falenas – notamos a referência à transição do verme em
borboleta, como um anseio de transcendência do sujeito. De início, parecia buscar
inspiração no sublime, partindo das Metamorfoses ovidianas; no entanto, em Falenas¸ vêse que o prenúncio dessa transfiguração não implicava uma possibilidade evolutiva
satisfatória, como seria de se esperar de uma metamorfose, ou um estágio superior da
condição humana: as borboletas crepusculares (falenas) traziam em si a metáfora do
sofrimento, insetos de hábitos noturnos atraídos pela luz da chama que, enfim, os
incendeia.
Na peça ―Os deuses de casaca‖, mais uma vez, a metamorfose ocupa o centro da
ação, numa maneira enviesada de o escritor falar da realidade controversa do universo
humano e de suas relações de poder, a partir da esfera fantástica (mitológica) dos deuses do
Olimpo. O deslocamento da realidade espacial e/ou temporal era um dos principais
recursos machadianos para tratar de referenciais concretos sem se dirigir abertamente aos
entes e às instituições do seu tempo.
Ainda sobre o tema da metamorfose, uma das cenas fantásticas que mais
encantavam Machado na obra de Dante, além do episódio de Paolo e Francesca, consta no
Canto XXV do ―Inferno‖, em que ladrões, figuras históricas da época de Dante, eram
atacados por serpentes. Certamente, oferecendo aos leitores uma amostra dos grandes
poetas que o inspiraram, Machado escolhe o Canto XXV para figurar entre as traduções de
Ocidentais, tratando especificamente do tema em questão.
No trecho traduzido por Machado, observamos a construção da cena, ambientada
num dos círculos do Inferno dantesco, onde quatro ladrões são punidos. O primeiro, Cianfa,
135
abre o Canto blasfemando contra Deus, fazendo-lhe um gesto de ofensa: ―Acabara o ladrão,
e, ao ar erguendo/ As mãos em figas, deste modo brada:/ Olha Deus, para ti o estou
fazendo!‖. Dante (personagem), vendo alma tão rebelada, se alegra quando uma serpente se
enrola no homem e lhe veda a boca e as mãos para que não fale, nem faça mais gesto
algum, a não ser fugir com o réptil envolto no corpo.
Então, entra Caco, o centauro guardião daquele círculo do Inferno, coberto de várias
serpentes e buscando a ―alma danada‖ que havia bradado tantas ofensas. Em seguida
aparecem em cena outras três figuras, que procuram saber para onde foi Cianfa.
Posteriormente, tomamos conhecimento de que os três homens são almas condenadas:
Agnel, Puccio Sciancato e Buoso Donati.
O primeiro logo seria agarrado por uma serpente de seis pernas, que a ele se
fundiria de modo a se tornarem uma forma única, embora indefinida. Tudo indica que essa
criatura de seis pernas seja Cianfa, que retorna metamorfoseado ao lugar de onde fugiu. Na
tradução de Machado temos:
Leitor, não maravilha que aceitá-lo
Ora te custe o que vás ter presente,
Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo.
Eu contemplava-os, quando uma serpente
De seis pés temerosa se lhe atira
A um dos três e o colhe de repente.
(...)
Como se fossem derretida cera,
Um só vulto, uma cor iam tomando,
Quais tinham sido nenhum deles era.
(...)
Os outros dois bradavam: ―Ora pois
Agnel, ai triste, que mudança é essa?
Olha que já não és nem um nem dois!‖
Há, nesse caso, uma transformação incompleta, onde Agnel se torna parte da
serpente, sem, contudo, ser completamente assimilado por ela. É interessante também o
diálogo do poeta, na primeira estrofe transcrita, com a intenção de interpelar o leitor, como
se o público fosse duvidar da cena ali exposta, a que o autor, prontamente, se antecipa. Esse
recurso antecipatório, que pressupõe uma opinião do leitor, é amplamente utilizado na
Commedia, assim como seria muito bem aproveitado na obra machadiana.
136
Tão logo Agnel sai, Buoso Donati, o terceiro ladrão, sofre uma completa
transformação após ser picado no umbigo por uma víbora da ―cor de um bago de pimenta‖.
Toda ênfase do Canto recai na figura de Buoso, tanto que Dante admite ser essa a mais
completa e fantástica das metamorfoses descritas em livro: estando a víbora diante do
ladrão, este vai assumir a forma daquela, enquanto a serpente se transforma em homem.
Frente a frente, um ao outro contemplava,
E à chaga de um, e à boca de outro, forte
Fumo saía e no ar se misturava.
Cale agora Lucano a triste morte
De Sabelo e Nasídio, e atento esteja
Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.
Cale-se Ovídio e neste quadro veja
Que se Aretusa em fonte nos há posto
E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.
Pois duas naturezas rosto a rosto
Não transmudou, com que elas de repente
Trocassem a matéria e o ser oposto.108
O que mais chama a atenção na cena, além do fato de que os três homens eram
desafetos de Dante na esfera real, é que o poeta florentino opera sua transformação
evocando outros autores clássicos – Lucano e Ovídio -, afirmando que a cena supera as
metamorfoses mais conhecidas da literatura. Essa ―ousadia‖ do autor da Commedia parece
agradar sobremaneira a Machado. Até porque mescla a esfera do real e a do ficcional,
assim como estabelece um diálogo literário através da apropriação de uma temática
clássica, com a finalidade de atualizar o fio da tradição, e, principalmente, com a intenção
de superar as versões canônicas.
Antes do lançamento das Ocidentais, em 1901, Machado já havia mostrado
interesse no episódio da obra dantesca, o que fortalece a hipótese de que o escritor revelava
um gosto especial pela cena da metamorfose de Buoso Donati. Trata-se de uma referência
que surge num conto das Histórias sem data, de 1884, intitulado ―As academias de Sião‖.
O conto narra os eventos na cidade de Bangkok, em Sião, onde duas Academias
discutem a seguinte questão: por que há homens femininos e mulheres másculas? Uma das
108
ASSIS. T.P. p. 330
137
Academias formula a teoria da ―alma sexual‖, ou seja, é a alma que determina a índole
sexual do sujeito, enquanto a outra crê na ―alma neutra‖. Diante da controvérsia das teorias,
os filósofos entram em grande discussão, até que um dos grupos resolve eliminar o outro
para legitimar-se como único detentor da verdade.
Nota-se que a legitimação não ocorre por elementos que comprovem a teoria ou por
estudos sérios sobre o assunto. Para atingir a irrefragável superioridade, uma das
Academias parte para a eliminação física dos integrantes do outro grupo, o que se dá
através de um grande massacre nas ruas de Bangkok. A teoria da alma sexual tornava-se,
desse modo, a única verdade científica admissível, através da anulação completa da
oposição.
Toda essa altercação entre os sábios se origina da observação do comportamento do
rei Kalaphangko, que possui modos delicados e femininos. No entanto, uma de suas
concubinas, Kinnara, de gestos másculos e firmes, resolve verificar a teoria dos filósofos
testando em si mesma determinada fórmula mística. Convida o rei para a experiência e
realiza uma cerimônia de transmigração de almas pelo método ―Mukunda‖ (aprendido de
um velho bonzo). Ela e o rei invocam secretamente a fórmula mística e trocam de corpos.
O que nos interessa é a forma como o narrador machadiano, trabalhando sempre
com a ironia, vai conduzir o evento da metamorfose do rei e da concubina, relembrando o
episódio do Canto XXV de Dante.
Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e
ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra
no tapete. (...)
Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu
vaso físico e penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se
apoderava do despojo real. Ambos os corpos ergueram-se e olharam um
para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da
cobra, segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a minha audácia. O
poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose
vale mais que a deles dous. Eu mando-os calar a todos os três. Buoso e a
cobra não se encontraram mais, ao passo que os meus dous heróis, uma
vez trocados continuam a falar e a viver juntos – cousa evidentemente
mais dantesca, em que me pese a modéstia.109
109
ASSIS. O.C. vol II. p. 470.
138
Machado inspira-se nas histórias fantásticas do ―Inferno‖ dantesco para compor sua
narrativa e, repetindo ironicamente o procedimento de Dante no Canto XXV, manda calar
os três escritores, afirmando que a sua metamorfose seria ainda mais perfeita que a deles.
Mesmo deslocando a cena para um lugar distante no tempo e no espaço, Machado traz à
tona questões que lhe são contemporâneas. A luta entre os sábios, por exemplo, reencena o
episódio das duas tribos que disputam um campo de batatas, no Humanitismo de Quincas
Borba. Ambas as situações ilustram a eterna luta por poder, no campo das realizações
humanas, estejam elas na esfera científica ou na da simples sobrevivência. Não existe
acordo entre dois pensamentos diferentes, principalmente no mundo Ocidental. Para que
uma vontade se imponha e domine, é preciso eliminar o que lhe é adverso.
Em Machado, percebe-se o gosto pela parábola, pela fábula, pelas histórias, enfim,
exóticas ou fantásticas, que se deslocam de um determinado contexto para tratar, com certo
distanciamento, das questões da realidade. Já no prefácio das Histórias sem data, coletânea
que inclui contos como ―As academias de Sião‖ e ―A igreja do diabo‖, o escritor explicaria
o motivo do título. No caso, não se tratava de uma simples questão de ―falta de data‖, mas
da reunião de textos que versavam sobre a ―substância‖ das coisas: ―... este título histórias
sem data parecerá a alguns ininteligível, ou vago. Supondo, porém, que o meu fim é definir
estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são especificamente do dia,
ou de um certo dia, penso que o título está explicado‖110. A ―metamorfose‖, portanto,
operada no contexto, trazia oculto, no fundo das cenas representadas, um determinado
retrato da realidade.
O procedimento não seria utilizado unicamente na prosa de Machado, mas em todas
as formas de sua escrita, em todos os gêneros que trabalhou, incluindo a poesia. O escritor
se incluía numa tradição literária que concebia o texto com diferentes níveis de leitura,
sempre oferecendo ao público determinada matéria, de que apenas um seleto leitor, ou os
leitores mais atentos, poderiam extrair uma camada mais substancial.
Tanto Dante quanto Shakespeare e Goethe, para citar alguns exemplos, se valeriam
de uma escrita em dois planos, um explícito e outro implícito, com a finalidade de alcançar
um leitor especial dentre os seus leitores comuns. Em carta a Carl Iken, em 27 de setembro
110
Idem. p. 368.
139
de 1827, Goethe revelaria o seu método criativo, a forma por ele utilizada para compor o
texto literário.
Como muita coisa de nossa experiência não pode ser pronunciada de
forma acabada e nem comunicada diretamente, há muito tempo elegi o
procedimento de revelar o sentido mais profundo ao leitor atento por meio
de configurações que se contrapõem umas às outras e ao mesmo tempo se
espelham umas nas outras.111
O texto literário é concebido como uma construção de sentidos, não como um
significado pronto e acabado. O verdadeiro fundamento da grande obra de arte está no ―vir
a ser‖, não do dito ou revelado. Portanto, todo escritor genial, escrevendo em prosa ou em
verso, desencadeia uma relação poética com o texto, aguardando sempre novos
desvendamentos por parte de leitores ideais.
Tratando especificamente do uso da escrita poética para compor a maior parte das
cenas de sua tragédia, Goethe explicaria de que maneira o verso conseguia amenizar as
imagens mais fortes do Fausto.
Algumas cenas trágicas estavam escritas em prosa; em virtude de sua
naturalidade e força elas tornaram-se agora, comparadas com o material
restante, inteiramente insuportáveis. Por isso procuro atualmente transpôlas para versos, pois assim a idéia irá transluzir como que através de um
véu, mas o efeito imediato do assunto monstruoso será abafado.112
O uso do verso, como a própria palavra diz, pressupõe existência de dois lados de
uma mesma questão: o aparente – anverso – que se mostra ao primeiro olhar; e o
subentendido – verso – a face velada. O recurso do velamento poético subentende um
leitor-intérprete da obra de arte, enquanto o poeta revela-se como uma espécie de profeta
que traz uma mensagem de vital importância para a obra, mas tão densa que não pode ser
oferecida ―às almas sensíveis‖. Estaria reservada, neste caso, aos ―leitores ruminantes‖,
capazes de digerir adequadamente o pensamento do autor.
111
GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto: uma tragédia. 2ª parte. (Trad. Jenny Klabin Segall). São Paulo: Ed.
34, 2007. p. 7.
112
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 489. (Carta de Goethe a Schiller, em 5 de maio de 1798).
140
De modo semelhante, segundo estudos de Northrop Frye, a obra de Shakespeare
apresenta ao leitor dois diferentes níveis de leitura, principalmente as comédias escritas em
verso.
O fato de as peças serem geralmente em verso demonstra, entre outras
coisas, que havia dois níveis de significação: uma significação
apresentada ou evidente e uma significação subjacente, dada pelas
metáforas e imagens utilizadas, ou por certos acontecimentos ou discursos
subordinados e subliminares. Estes foram denominados ―nível explícito‖
e ―nível implícito‖. Às vezes, os dois níveis nos oferecem diferentes
versões do que está acontecendo.113
Goethe, confessadamente, considerava-se discípulo de Shakespeare. Quando o autor
alemão fala em espelhamento e contraposição de imagens, não podemos deixar de perceber
certas semelhanças entre a atitude do poeta e o pensamento shakespeariano, principalmente
se avaliarmos alguns recursos presentes nas comédias escritas em verso, como destaca
Frye, e em vários outros momentos da obra.
Antecedendo os dois escritores, Dante já tratava da relação autor/ texto/leitor como
o ponto essencial de diálogo, dirigindo-se a uma classe especial de leitores, os de ―intelecto
são‖, que podem ultrapassar o sentido usual e penetrar nas águas mais profundas dos seus
versos. Seriam aqueles que atentam para determinada doutrina que se esconde ―sotto il
velame delli versi strani‖. Chega a advertir o público descompromissado, ou de pouco
intelecto, a abandonar a leitura de sua obra para não se extraviar do rumo pretendido pelo
autor.
Ó vós que em pequenina barca estais,
E o lenho meu que canta e vai, ansiados
De podê-lo escutar, acompanhais,
Voltai aos vossos portos costumados,
Não vos meteis no mar em que, presumo,
Perdendo-me estaríeis extraviados.
Ninguém singrou esta água que eu assumo;
Conduz-me Apolo e Minerva me inspira,
E nove Musas indicam-me o rumo.114
113
114
FRYE, Northrop.
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Op. cit. p.19.
141
Dante é ousado na sua escrita. Assim como pediu para dois grandes autores se
calarem diante da metamorfose que ele opera num dos seus personagens, aqui dispensa os
leitores menos capazes, revelando que sua inspiração, divina por sinal, ultrapassa os
sentidos usuais e abre um caminho nunca antes explorado no universo literário.
Metamorfoses, máscaras, véus e espelhos: um constante jogo de ocultações e
revelações, visando sempre um leitor ideal. Essa atitude resume o instinto poético desses
autores, que guardam suas revelações apenas para o leitor experimentado.
Como vimos nas ―Idéias vagas‖, texto crítico da juventude, o temperamento
romântico de Machado admitia o poeta como um ser escolhido, um profeta que traz aos
homens um pouco da centelha divina, a revelação sublime da obra de arte. No entanto,
sobrevivendo ao ―naufrágio das ilusões‖, a visão do poeta como ―ser sublime‖ não mais se
coadunava com o espírito do prosador da maturidade, embora a arte, para Machado, jamais
tenha perdido o papel de libertadora do homem, nem o poeta deixado de existir, mesmo
quando nos fala através do prosador.
A literatura restaria como única ponte entre o real e o transcendental, resquício do
Romantismo que sobreviveu no âmago da obra machadiana. Essa atitude subjetiva para
interpretar dados de uma realidade objetiva se revela na prosa através do desdobramento do
narrador – ora envolvido, ora distanciado -, assim como na poesia, especificamente nas
Ocidentais, verificamos quase sempre o embate entre planos opostos, que se evidenciam
pelo contraste: quase sempre, o aniquilamento de um precede a extinção do outro.
O escritor marca a oposição entre o que se foi, o que se é, e o que se deseja ser: os
três eixos temporais. Contudo, não é possível chegar a uma conclusão definitiva de qual
seria o tempo ideal, mais perfeito e acabado, nem se conseguem reverter as sucessivas
metamorfoses de cada fase da existência. A natureza humana estaria fundada nesse ―vir a
ser‖, sempre mutável e incompleta, conhecendo tudo, como na filosofia schopenhaueriana,
sem jamais conhecer-se plenamente.
Seguindo a tradição dos grandes autores aqui citados, mas renovando certos
conceitos através de uma refinada ironia – um dos ―véus‖ mais empregados pelo escritor -,
142
Machado concebe um pacto entre autor e leitor similar ao que observamos nos textos de
Goethe, de Shakespeare, e, principalmente, de Dante.
Vale lembrar o capítulo curto do Esaú e Jacó em que o narrador machadiano fala da
provável epígrafe do livro, extraída do Canto V, da Commedia: ―Dico, che quando l‘anima
mal nata...‖. A explicação subseqüente está de acordo com a idéia de que o leitor precisa
entrar no jogo de revelações e ocultações proposto pelo autor, assim como os personagens
(como as peças de um tabuleiro de xadrez) também colaboram na escrita do livro. Para tal,
seria preciso acompanhar os lances de ambos para penetrar nos sentidos mais ou menos
obscuros da narrativa.
Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma,
e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as
pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de
lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou
totalmente escuro.
Por outro lado, há proveito em irem as pessoas da minha história
colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie
de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos. (...) Talvez
conviesse pôr aqui, e quando em quando, um diagrama das posições belas
ou difíceis. (...) pode ser que tenhas visão bastante para reproduzir na
memória as situações diversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo
irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoas e pessoa, ou
mais claramente, entre Deus e o Diabo.115
O uso dos diagramas seria uma maneira de o autor esclarecer determinados
―lances‖, deixando pistas no caminho, mas, logo de início, opta por oferecer um par de
lunetas ao leitor para que ele se encarregue de compreender os aspectos menos explícitos
da história. Assim como na obra de Dante, o narrador/eu-lírico confessa que nem tudo no
livro está às claras, e que se torna necessária a interferência do leitor.
O que fica subentendido é o pacto que desde já autor e leitor efetuam diante das
‗vidas‖, das ―animas mal natas‖ que vão se apresentar no livro. Como no Canto V, onde
Minós avalia as almas condenadas e as lança num dos círculos do Inferno, também o
julgamento final de cada personagem dependerá da exposição que delas fará o autor e da
interpretação conclusiva do leitor.
115
ASSIS. O.C. Vol I. p. 966.
143
O que se percebe na obra machadiana, da juventude à maturidade, é que o
pensamento de determinados autores, as citações e as referências estarão presentes tanto na
prosa quanto na poesia. Embora exista uma metamorfose, uma aparente mudança do
romântico para o parnasiano ou para o realista, como se convencionou classificar (ainda
que relativizemos esses rótulos), Machado mantém uma linha que o acompanha por toda a
trajetória, seguindo o percurso de uma tradição poética que põe a obra no centro da cena,
tendo como fim último a sua própria concepção, recurso metapoético.
Além desse diálogo com seus antecessores, retomando ou reformulando o legado
dos mestres, há também uma fidelidade do escritor a si mesmo, que vai além da escolha das
temáticas, tendo em vista que continuamente estabelece vínculos entre o novo e o antigo,
entre os modelos do passado e os do seu presente.
Sílvio Romero, com o propósito de ―desclassificar‖ o desafeto da vida inteira,
critica a fidelidade de Machado a determinados temas e modelos, desde o início da carreira
até a publicação das Poesias completas, de 1901. Porém, discordamos do caráter negativo
das afirmações de Romero, que considera o fato de se manter fiel a um pensamento como
indício de ausência de criatividade do autor.
É por isso que o Sr. Machado de Assis, tendo começado, por certo, os
seus primeiros ensaios poéticos aos quinze ou dezesseis anos, já nos
aparece em 1864, aos vinte e cinco um poeta feito, com um volume
publicado, contendo produções das épocas diversas do fundamental
decênio de sua formação, de posse de um estilo, que ele polirá durante
cinqüenta anos, mas nunca lhe mudará o colorido e a essência, porque o
metal que o constitui é sempre o mesmo. É por isso que ele nunca
escreveu versos superiores aos dedicados a ―Corina‖, publicados nas
Crisálidas. É por isso que a última folha das Ocidentais – batizada ―No
alto‖ – poderia ocupar o lugar da derradeira página, chamada ―Última
folha‖, das aludidas Crisálidas – escrita quarenta anos antes, ou viceversa.116
Um outro crítico, Frota Pessoa, diria que Machado era um poeta ―correto e frio, sem
vibrações, vestindo idéias românticas com forma parnasiana‖.117 Há uma grande ocorrência
de análises formais da poesia machadiana por parte dos leitores contemporâneos do autor.
A maioria deles se preocupa excessivamente com a forma, fazendo um levantamento
116
ROMERO, Sílvio. ―Poesias Completas‖. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro da
consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 256
117
Idem. p. 258.
144
exaustivo das rimas, do ritmo dos versos, da métrica. Outros chegaram a fazer
levantamento estatístico da ocorrência e da repetição de determinadas palavras, tudo isso
com o propósito de se desfazer da imagem de um ―perfeito poeta‖.
O que os contemporâneos esperavam da poesia de Machado? Primeiramente, a
escolha dos ―Versos a Corina‖ como o poema mais bem realizado do escritor patenteia a
índole dos críticos de então, ainda muito presos a determinados estilos, do mesmo modo
que demonstra o tipo de poesia cultuado no Brasil: versos passionais, arrebatados, emotivos
e sentimentais. Em contrapartida, o poeta também sentiu o rigor da crítica dos cultores do
Parnasianismo, que discutiam apenas sobre os aspectos formais de sua poesia. Esses
últimos se davam conta de que os versos soltos, o uso de palavras correntes na língua (no
lugar de preciosismos lexicais), não condiziam com o apuro formal da geração de poetas do
final do século XIX.
De 1889 para cá os nossos poetas deixaram de cultivar o verso solto, que
em profusão abunda neste último livro do Sr, Machado de Assis. Ele
sempre usou e abusou desse verso (...) Mas não é tão fácil como quer o
Sr. Machado de Assis, pois, desde que não obedece à disciplina das
consoantes, é subordinado a outras exigências do compêndio de
metrificação, não podendo terminar em palavra aguda, nem esdrúxula,
além de não lhe ser permitido emparelhar os assonantes.118
O que fica patente é a dificuldade dos críticos em enquadrarem Machado numa
tendência, partindo dos padrões comuns à época, principalmente se atentarmos para o
conteúdo de sua poesia, muito mais voltado para as questões universais do homem - filiado
ao espírito da Weltliteratur -, do que para uma tendência nacionalista/localista como a da
maioria dos poetas de seu tempo. Machado também não se coadunava à poética dos
―compêndios de metrificação‖ dos parnasianos, apesar de ser um poeta de elevada correção
formal.
Sem dúvida, manteria um gosto clássico, como também aproveitaria muitas das
temáticas românticas ao enfocar o subjetivismo do homem na sua leitura de mundo. Essa
poesia filosófica de Machado não tinha precedentes no Brasil, daí sua desfiliação, e o
estranhamento que causou em seus contemporâneos.
118
TEIXEIRA, Múcio. ―Poesias Completas‖. In: MACHADO, Ubiratan. Roteiro da Consagração. Op. cit. p.
239
145
À época, o mais competente leitor da poesia machadiana, que soube enxergar o
estro do poeta, sem elogios demasiados, nem infundados preconceitos, foi José Veríssimo.
Seu artigo sobre as Poesias completas, de Machado, até hoje, é o mais avalizado acerca do
poeta, principalmente por percebê-lo como um caso à parte no seu tempo.
Como é um escritor à parte em nossa literatura contemporânea, assim é o
Sr. Machado de Assis também um poeta à parte na nossa poesia. E quer
como prosador, quer como poeta, não o é por nenhuma extravagância de
pensamento ou de estilo, mas somente pela originalidade do seu engenho,
pela singularidade de seu temperamento.119
Não se pode negar que em Ocidentais, além de prestar homenagens aos mestres,
Machado dialoga também com o poeta que foi e continuava sendo. A configuração das
Poesias completas sustenta essa hipótese, na medida em que, entre publicar um livro com
as poesias da juventude e publicar um livro novo, o escritor optou pela união dos dois,
como uma tentativa de reaver o fio poético, esgarçado em determinados pontos da vida.
Dois poemas, em especial, tratam dessa metamorfose do poeta, dos primeiros livros
ao último: ―A uma senhora que me pediu versos‖ e ―Soneto de Natal‖. Naquele, o eu-lírico
recomenda à senhora que busque em si mesma a poesia que pensa encontrar nos versos que
lhe pediu, enquanto no soneto natalino reflete sobre o Natal e sobre a falta de inspiração
para falar do tema. Em ambos os casos, o poeta admite que não é capaz de executar a tarefa
da maneira desejada, seja porque a alma está ―ressequida‖, seja porque algo dentro de si
mudou, a ponto de sustar a inspiração.
Em ―A uma senhora que me pediu versos‖ fica patente a comparação entre o poeta
da juventude e o da maturidade:
Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.
Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.
119
VERÍSSIMO, José. ―O Sr. Machado de Assis, poeta‖. In: MACHADO, Ubiratan. Roteiro da
Consagração. Op. cit. p. 242.
146
Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas ressequidas.
Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.120
A confissão do poeta resumiria sua metamorfose: as flores que oferece são outras,
trazem a melancolia das ―almas ressequidas‖. Nenhum resquício de ilusão restou no
coração do poeta, entretanto não deixa de ofertar suas flores, ainda que já não sejam as
mesmas.
A estrofe final guarda uma contradição irreconciliável acerca da crença do poeta.
Apesar de falar de Deus e dos ―sóis‖ e ―luas‖ (lugares comuns da poesia?), usa a expressão
―Creio bem que Deus os fez‖ para, em seguida, acrescentar: ―para outras vidas‖, ou seja,
para outras pessoas. A afirmação inicial é negada no último verso, confirmando
obliquamente a sua descrença, quase a justificá-la como sendo uma questão de parcialidade
divina: não é ele que deixa de crer, mas é Deus que o exclui de seus planos.
No ―Soneto de Natal‖, além de retornar ao assunto divino, retratando a atitude de
um homem diante de um evento religioso - ―Noite cristã, berço do Nazareno‖ – trata
também da dificuldade de compor um soneto motivado pela circunstância. Esse homem,
que identificaremos mais adiante com o poeta, parece aguardar um milagre natalino, um
renascimento das atitudes do passado, uma retomada dos instantes de alegria que marcaram
sua infância.
Um homem – era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
120
ASSIS. T.P. p. 334
147
Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
―Mudaria o Natal ou mudei eu?‖121
A rememoração do passado retorna nesse poema, comparando o estado anterior ao
atual, porém suas palavras afirmam que não é possível encontrar um meio de reviver o
antigo modo de sentir. O passado e o presente, segundo afirma, não podem se reconciliar; o
poeta de Ocidentais rasura o bardo da juventude, sem, contudo, poder se desvencilhar
completamente dele.
As Poesias completas teriam esse perfil de reafirmação e de negação, refutando os
sentimentos daquele que um dia cantou ―A morte no Calvário‖ e ―Redenção‖ - poemas de
índole religiosa -, mas relembrando saudosamente das ―lépidas cantigas‖ de outra idade. Há
uma aparente tentativa de transpor as velhas sensações da infância para o tempo da
maturidade, porém o ―metro adverso‖ se opõe ao ―verso doce e ameno‖ que o poeta tenta
em vão recuperar.
Para ilustrarmos a oposição de sentimentos, veremos como os versos machadianos
passam por uma transformação na forma e no conteúdo. O poema ―Redenção‖, publicado
em 1859, trataria do nascimento de Cristo com efusão e êxtase religiosos, apontando o
Natal como momento de resgate do homem, como instante de purificação e de
manifestação dos sonhos. Toda a atmosfera natalina favoreceria a imaginação e a
inspiração.
Tu foste – Belém provecta
- Berço de um maior profeta
Sacrificado na cruz!
Batera a hora na ampulheta eterna,
E esse fato de um Deus que se agitava
No seio da fecunda humanidade
Surgira à luz. A natureza toda
Estremeceu e se arraigou mais bela!
Mas linda a flor dos campos nessa noite
121
Idem. p. 324.
148
O seio abrira. – No seu leito o homem
Nessa noite sentiu mais puros sonhos
Por sua mente revoar... E as almas
Que esta terra de abrolhos maculará
Sentirão todas – um chuveiro de ouro122
Comparando o ―Soneto de Natal‖ ao poema ―Redenção‖, fica evidente a distância
entre as duas visões que neles se apresentam. A metamorfose havia se completado,
irreversível, como o próprio poeta conclui, apesar de optar pelo questionamento no fim do
soneto: ―Mudaria o Natal ou mudei eu?‖.
Como na transformação de Agnel, na Commedia, o poeta admirava-se da mudança,
mas não podia se desvincular completamente do outro, nem tornar-se totalmente novo:
―Olha que já não és nem um nem dois!‖. Ainda assim, mesmo sem o ―chuveiro de ouro‖ da
inspiração de Natal, o poeta constrói o soneto através do recurso metapoético: tratando da
própria dificuldade de escrever, conclui os quatorze versos necessários à composição.
Machado poria os dois poetas frente a frente: o aspirante à montanha das musas e o
poeta veterano que chegara ao alto do monte. Como a contemplar o próprio rosto, ainda
que não reconhecesse mais nos traços daquele a feição mais recente, talvez desejasse ver
cumprida a teoria goethiana: ―O mais feliz dos homens é aquele que consegue ligar o fim
de sua vida ao início‖, ou talvez, nas próprias palavras machadianas reformuladas a partir
da idéia de Goethe, pensasse ainda em ―atar as duas pontas da vida‖.
2.3- Descendo a montanha das musas
“Chegou já o tempo justo de minha vida,
com tempestuoso mar, qual frágil barca,
num porto comum, onde se submetem
motivo e razão de toda obra triste e pia.
E de onde a afetuosa fantasia,
de que a arte me faz ídolo e monarca,
conheço bem agora o tamanho do erro que abarca
e quanto mal a seu pesar todo homem deseja.”
(Michelangelo Buonarroti)
122
ASSIS. T.P. p. 675.
149
―O poeta chegara ao alto da montanha‖ - com esse verso Machado iniciaria o último
poema de Ocidentais: ―No alto‖. Certamente, o escritor tinha consciência de sua despedida
do gênero lírico ao conceber o projeto das suas Poesias completas, em 1901. Assim, além
de retomar um topos poético da lírica clássica também encontraria uma forma de dialogar
com o poeta do passado, articulando no alto da montanha a definitiva síntese entre ―o que
se foi‖ e ―o que se é‖, apesar de não existir uma resposta definitiva para ―o que será‖,
pergunta que surge no poema.
Há uma inversão do curso natural da poesia e, em vez de subir, o poeta resolve
descer a encosta. Como em ―Última folha‖, deixa ―ao eco dos sagrados ermos/ A última
harmonia‖. Toda visão etérea se desfaz, restando apenas o elemento prosaico por natureza.
O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma coisa estranha,
Uma figura má.
Então, volvendo os olhos ao sutil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.
Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,
Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro lhe deu a mão.123
Em relação ao poema, a associação mais freqüentemente feita pela crítica, assim
como pelos estudiosos da poesia de Machado, é à peça de Shakespeare, A tempestade.
Obviamente, a citação de Ariel permite a relação imediata com a obra do dramaturgo
inglês, assim como a ―figura má‖ é logo assimilada à representação de Caliban, outro
123
ASSIS. p.347
150
personagem da peça shakespeariana.
Menos comum, quiçá inexistente, é a explicação acerca da introdução de Ariel no
contexto da poesia, ou seja, qual seria a relevância do personagem shakespeariano para a
compreensão do poema de Machado? Outro ponto importante é que, afora a observação de
Romero, até o momento nenhum crítico estabeleceu uma ligação entre os poemas de
Crisálidas e os de Ocidentais e, mais especificamente, entre as composições que encerram
os dois livros.
Não se pode negar que, na proposta do autor em reunir os livros anteriores
acrescentando a eles um mais recente, há uma tentativa de confrontar o antigo e o novo, o
poeta do passado e o do presente. Ocidentais, além de ser uma homenagem aos mestres de
Machado, viria a ser uma retrospectiva de sua obra poética da juventude, uma síntese das
duas pontas da vida do poeta.
Partindo dessa perspectiva, podemos estabelecer o primeiro vínculo entre ―A
tempestade‖ e ―No alto‖, considerando que tanto a peça quanto o poema tratam da
despedida de seus autores de um determinado gênero, comportando ambos uma natureza
metatextual: o dramaturgo analisa e avalia sua carreira, assim como o poeta tece reflexões
acerca da própria obra poética (stricto senso) que ali se encerra.
No caso de A tempestade, é senso comum entre os críticos a afirmação de que o
personagem principal, Próspero, age como uma espécie de auter ego do dramaturgo, tendo
em vista que, durante toda a peça, discorre sobre o ato de representar. Além disso, chamanos a atenção que essa obra, de 1611, tenha sido a última produção integralmente escrita
por Shakespeare, marcando, assim, o encerramento de sua carreira como escritor de teatro.
(...) a personagem central, Próspero, tem características que podem sugerir
uma auto-identificação com Shakespeare. Então ela poderia ser peça de
Shakespeare, num sentido bastante especial, a despedida de sua arte, se
quisermos, especialmente se considerarmos o discurso de Próspero, em
que ele promete jogar seu livro ao mar.124
Como a ilha de Próspero, a montanha machadiana é um lugar especial, assinalado
por duas vertentes: uma ascendente, tendo a companhia de Ariel (espírito de ar e de fogo), e
outra descendente, por onde a ―figura má‖ o conduzirá: o outro lado da encosta.
124
FRYE, Northrop. Sobre Shakespeare. p. 211.
151
Além de resumir o passado (ascendência) e o futuro (descendência), se associarmos
essa ―figura má‖ a Caliban (ser ligado à terra e à água), chegamos ao contraponto entre o
etéreo e o terreno. Não apenas isso: no poema machadiano, especificamente, percebe-se
que a montanha é o lugar da fantasia, das imagens etéreas e sublimes do poético –
pertencente ao gênero alto -, enquanto o mundo terreno se associa à realidade prosaica - ao
gênero baixo.
Tanto em Shakespeare quanto em Machado, a questão principal envolve o conflito
de dois caracteres, o contraste entre duas figuras. Fantasia e realidade estariam sendo
confrontadas num lugar especial, um locus amoenus representado pela ilha ou pela
montanha, ambos os ambientes sendo uma espécie de isolamento ―mágico‖ da realidade.
A peça finaliza-se com Próspero libertando Ariel após a execução de vários
serviços. O espírito passa toda a peça transformando-se continuamente, assumindo diversos
papéis, mas sempre invisível aos olhos dos outros: articulando esta e aquela cena, incitando
a movimentação dos personagens que habitam a ilha, interferindo em cada ação, enfim,
surge como um ator em cena, que busca cumprir o script traçado pelo autor. Numa das
seqüências, Ariel dirige-se a Próspero, após cumprir mais uma tarefa, e lhe pergunta: ―Foi
bem feito?‖ - como se tudo ali fosse representação.
O protagonista shakespeariano decide abandonar definitivamente a magia com que
rege aquela ilha, lançando o seu livro de encantamentos ao mar. Resolve também
abandonar o local. Porém, mesmo contrariado, precisa levar Caliban consigo, como se ele
fizesse parte de toda a realidade, dura e cruel, que o aguardava no reino de Milão. Próspero
desiste de um reino de sonhos para tomar posse de um reino verdadeiro na Itália.
A despedida do personagem inicia-se na cena do casamento de Miranda e
Ferdinando e se completa quando o dramaturgo encerra a representação, como se o
abandono da ilha fosse metáfora do abandono do palco, pedindo que a platéia o liberte com
as suas palmas. Vejamos primeiramente a cena do casamento:
(...) criai ânimo,
senhor; nossos festejos terminaram.
Como vos preveni, eram espíritos
todos esses atores; dissiparam-se
no ar, sim, no ar impalpável. E tal como
o grosseiro substrato desta vista,
as torres que se elevam para as nuvens,
152
os palácios altivos, as igrejas
majestosas, o próprio globo imenso,
com tudo o que nele contém, hão de sumir-se,
como se deu com essa visão tênue,
sem deixarem vestígio. Somos feitos
da matéria dos sonhos; nossa vida
pequenina é cercada pelo sono.
A ilha de Próspero, assim como a figura de Ariel, é tecida de sonhos; desfeita a
fantasia, desfaz-se também o pequenino cerco da vida. O microcosmo de Próspero se
rompe para dar lugar ao mundo – o macrocosmo - que ele não domina. Caliban faz parte
desse mundo fora do homem, universo material que ele não compreende inteiramente,
apesar de tentar submetê-lo ao domínio racional. O epílogo da peça só confirma o caráter
metatextual da peça shakespeariana, a partir do momento que Próspero só pode abandonar a
Ilha, lugar que domina plenamente, após a aprovação do público: ―Libertem-me de minha
atroz prisão ainda agora,/ Com palmas, com aplauso, com mãos tão generosas/ E as cálidas
palavras que das bocas vão soprar e/ Meus planos vão frustar ou minhas velas enfurnar‖.125
No poema de Machado, é o poeta que faz o questionamento, ―O que será?‖, sem
obter a resposta de Ariel. Inverte-se o panorama representado na peça de Shakespeare. A
fantasia parece causar receio ao poeta, dando-lhe um ―tom medroso e agreste‖, enquanto a
realidade apresenta-se muito mais segura, na medida em que, diante do desnorteio da cena
inicial, a figura má apresenta-lhe um novo caminho, de descida, apoiado em sua mão.
Esse guia malévolo, por assim dizer, subverte o panorama anterior, atraindo o poeta
para baixo. Ao contrário de Próspero, o poeta de ―No alto‖ não domina o bem ou o mal,
mas necessita da orientação de ambos. Esse ponto de distanciamento entre Machado e
Shakespeare nos faz pensar numa outra possibilidade de interpretação do poema, partindo,
desta vez, de um outro autor, mas sem nos distanciarmos do nosso foco de atenção, que é a
questão da dualidade.
Goethe retomaria em seu Fausto alguns personagens de Shakespeare, incluindo
Ariel, que aparece em dois momentos cruciais da peça: na subida do monte no ―Sonho da
Noite de Valpúrgis‖, na primeira parte, assim como logo na abertura da segunda parte,
escrita na maturidade do poeta, quando Fausto se encontra na ―Região amena‖, ou locus
125
SHAKESPEARE, William. A tempestade. (Tradução de Beatriz Viégas-Faria). Porto Alegre: LP&M,
2007. p. 114.
153
amoenus, como anteriormente havíamos nomeado o espaço da ilha e da montanha.
Os estudos sobre a tragédia goethiana a aproximam da peça de Shakespeare, bem
como o dramaturgo inglês parece ter se inspirado no Doutor Fausto, de Marlowe, para
compor A tempestade. Próspero e Fausto, dois sábios ou magos, dominam a ciência e o
saber dos livros, e, também senhores de artes mágicas, dominam a alquimia e as forças
místicas. Até o nome de ambos seriam sinônimos, segundo nos relata Harold Bloom.
O nome de Próspero, o mago criado por Shakespeare, é a tradução italiana
de Faustus (―o favorecido‖), pseudônimo latino adotado em Roma por
Simão Mago, o Gnóstico. Tendo Ariel, um espírito ou anjo (o nome em
hebraico significa ―leão de Deus‖) a seu serviço, em contraste com
Mefistófeles de Marlowe. Próspero é um anti-Fausto shakespeariano, a
incontestável superação de Marlowe.126
Seguindo esse diálogo entre autores, enquanto Shakespeare parece querer negar o
Fausto de Marlowe com a criação de Ariel, Goethe reúne ambos, Próspero e Fausto,
retomando tanto o Ariel de Shakespeare quanto o Mefistófeles de Marlowe. Talvez por
isso, em muitas ocasiões o Fausto goethiano apareça submisso e arrependido, enquanto,
noutras, surge autoritário e decidido, quase impondo a Mefistófeles suas vontades.
O diálogo de Machado no alto da montanha também retoma a tradição tanto de
Shakespeare quanto de Goethe, na medida em que não cita o nome da ―figura má‖,
mantendo a ambigüidade que aponta ao mesmo tempo para Caliban e Mefistófeles. A
própria natureza dúbia de Mefisto o faz parecer ambíguo, já que se diz parte de uma energia
capaz de criar Mal e Bem, assim como, no poema machadiano, o Mal é que oferece auxílio,
enquanto o Bem se desfaz.
Machado, no poema, aproxima-se muito da mentalidade goethiana ao desmentir a
fantasia, veículo das ilusões e incertezas da vida. Seguindo a filosofia de Schopenhauer,
como já havíamos comentado, também renegaria o mais torvo dos males: a esperança,
representada pelo ―O que será?‖, lançado a Ariel, como uma pergunta sem resposta que
ecoa pelos ares e se esvai juntamente com a figura aérea e vaga.
No ato da peça de Goethe denominado ―Noite de Valpúrgis‖, assim como no poema
de Machado, temos uma subida ao monte. No caso do Fausto, trata-se do Blocksberg,
famosa montanha das bruxas e dos seres maléficos, para onde, inicialmente, Mefisto
126
BLOOM. Op.cit. p 803.
154
conduz o protagonista. No entanto, o propósito da figura má não é levar Fausto ao cimo,
mas afastá-lo da subida, talvez como se quisesse impedir a visão ampla do personagem, e
desviar sua atenção da figura de Margarida que aparece para ele como um espectro.
Diante da proposta de desistir da subida, Fausto e Mefisto dialogam:
FAUSTO:
Gênio da oposição! Bem hei de acompanhar-te!
Mas a esperteza admiro; aos cimos
Do Brocken, nesta noite, os passos dirigimos,
Para ficarmos cá, de parte.
MEFISTÓFELES:
Pois vê que flamejar garrido!
É um clube alegre reunido.
Nunca estás só com o povo miúdo.
FAUSTO:
Quisera no alto estar, contudo!
Vejo fogo e espirais de escuma.
Para o demônio a massa ruma.
Mais de um enigma, lá se solve.
MEFISTÓFELES:
E mais de um lá, também se envolve.
Fiquemos cá, onde é quieto, e desande
A bel-prazer o mundo grande!
É praxe antiga e de ótimos efeitos
Serem, no grande mundo, os pequeninos feitos.127
Fausto deseja rumar para o alto, para o lugar, segundo afirma, onde os enigmas são
resolvidos. Mefisto desmente essa concepção ao asseverar que outros enigmas maiores
poderiam envolvê-lo ―no alto‖. A figura maléfica o aconselha a ficar no meio da jornada,
aproveitando os prazeres do ―povo miúdo‖, ou a tranqüilidade do pequeno mundo, em vez
de desvendar os mistérios do ―grande mundo‖. Há um convite para que Fausto retroceda:
―Fiquemos cá, onde é quieto, e desande/ A bel-prazer o mundo grande!‖
No ato seguinte, ―Sonho da noite de Valpúrgis‖, ao contrário de Mefistófeles, Ariel
127
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op.cit. p. 453.
155
incita os personagens a subirem a montanha: ―Deu-te o empíreo, amante e vasto,/ Deu-te o
gênio asas viçosas,/ Segue teu ligeiro rasto/ para o morro, lá, das rosas‖ 128 Ariel é o último
personagem a falar no Brocken; segue-se um coro, a anunciar que toda visão está se
esvaindo: ―Nuvrejão, véu de neblina,/ Dissolvem-se na aurora./ Vento na haste, ar na
campina,/ E tudo se evapora.‖
O retorno ao monte, dessa vez não nomeado, ocorre na segunda parte da tragédia de
Goethe, escrita na velhice. Como na peça de Shakespeare, A Tempestade, essa também
seria a derradeira despedida do poeta do mundo das letras. Em sua biografia, Goethe admite
que, desde a infância, quando assiste a um teatro de marionetes encenando o tema, o
Doutor Fausto havia lhe provocado grande impressão.
Na juventude, esboça os primeiros escritos do seu Fausto (Urfaust), que chegou até
nós pela transcrição de uma senhora a partir do original do poeta alemão (destruído por ele
mesmo). Por toda vida Goethe se dedicará à tragédia, sendo essa, portanto, uma obra que
reúne escritos da juventude e da velhice.
Se, de início, Goethe encontra inspiração na peça de Marlowe, já na primeira parte
oficial da tragédia, publicada em 1808, se deixa também guiar pelo Próspero de
Shakespeare. A última parte, Fausto II (1832), mescla uma série de influências, medievais
e clássicas, desde os autos calderonianos aos mitos milenaristas, e demais ideologias que
formaram o mundo ocidental.
O elemento que une a primeira à segunda parte do Fausto parece ser Ariel, que
fecha a cena do ―Sonho da Noite de Valpúrgis‖ incitando a subida à montanha (antes que
toda a cena se evapore), e abre o primeiro ato do Fausto II, em que o protagonista desperta
no alto do monte, lugar identificado apenas como locus amoenus (região amena).
Ariel, seguido de uma ronda de gênios, canta diante de Fausto:
Sílfides, vós, que o envolveis em cerco aéreo,
Lidai agora a vosso modo etéreo!
Da alma extraí-lhe o dardo da amargura;
Do remorso abafai a voz tenaz;
Livrai-lhe o ser da visões de negrura!
São quatro as pausas da noturna paz,
Desde já, preenchei-as com brandura.
(...)
128
Idem. p. 487.
156
Das sílfides cumpri o anseio pio,
À luz sagrada restituí-o.
O alvorecer é a hora do dia que dissipa as dores antigas, os males da noite. Ariel
evoca o dia e pede que Fausto beba do rio Letes para esquecer os sofrimentos anteriores.
Todas as criaturas etéreas anunciam a vinda do sol, como alívio às dores sofridas pelo
protagonista da tragédia. A fala de Fausto, porém, contradiz o etéreo e o fantasioso
conclamado por Ariel, e o personagem admite que se sente atraído para baixo, para os
vínculos materiais e terrenos que Mefistófeles lhe oferece. Não há nele espaço para o
sonho, o devaneio ou a ilusão. A realidade soa mais real que toda a região amena anunciada
por Ariel.
Aqui encontramos o ponto de contato com o poema de Machado: reconhecendo, por
fim, que não é possível retomar o caminho inicial, que sempre aparece impalpável e
utópico, opta por descer a montanha, deixando-se conduzir para o outro lado da encosta.
Não o lugar do nascer do sol, como no mito platônico, mas a vertente do oeste (onde a
figura má surge, associada ao ocaso, no declinar das ilusões).
Como na abertura da segunda parte da tragédia de Goethe, em que Fausto dá as
costas ao sol, o poeta de ―No alto‖ desconsidera o ponto de partida e aceita o derradeiro
destino. Entre um mundo vasto e irreal (que se desfaz sem deixar resposta) e outro restrito
e tangível (que lhe estende a mão), o poeta escolhe o último, aquele que lhe garante mais
segurança: o universo prosaico e terreno.
Na tragédia de Goethe, a fala do protagonista contempla muitos aspectos da lírica
machadiana, principalmente da obra poética da maturidade em diálogo com a da juventude.
Olha para o alto! – Os cumes da montanha
Da soleníssima hora dão o aviso;
O pico cedo a luz eterna ganha,
Que mais abaixo se aproxima lenta.
Dos Alpes já viçosos prados banha,
Cujo verdor com nitidez salienta;
Gradualmente ilumina a extensa pista.
Surge o astro! – e eu me desvio, ah não o agüenta,
Já deslumbrada, a dolorida vista.
É assim, pois, quando a férvida esperança,
Do anelo máximo que na alma exista,
Se abrem portais da bem-aventurança.
157
Mas jorra então, de páramos extremos,
Um mar de chamas que em temor nos lança.
Da vida o facho incandescer quisemos,
E nos envolve um fogo que nos traga.
É ódio, é amor, em cuja chama ardemos,
Do prazer e da dor mutuando, a vaga?
Retoma à terra o olhar, que em suave manto
De infância nos envolve, e o peito afaga.
Que fique atrás de mim, o sol, portanto!
A catarata que entre pedras ruma,
Contemplo agora com crescente encanto.
De queda em queda se despenha e escuma
Mil turbilhões espúmeos derramando,
Enche o ar de nuvens de escumosa bruma.
Que esplêndido, do turbilhão brotando,
Surge , magnífico, o arco multicor!
Nítido ora, ora no éter se espalhando,
Imbuindo-o de aromático frescor.
Vês a ânsia humana nele refletida;
Medita, e hás de perceber-lhe o teor:
Temos, no espelho colorido, a vida.129
A conclusão lograda por Fausto, no ―lugar ameno‖, casa-se ao pensamento
esboçado no poema machadiano: a esperança apenas conduz o homem ao medo e à mais
voraz das ilusões (o ar ―medroso e agreste‖, de que nos fala o poema de Machado). O
terreno é, pois, o espaço seguro que vela os olhos do homem ao seu inútil desejo de
expansão (que a subida ao monte sempre incita), de maneira que ele não ultrapasse os
limites além do que os seus sentidos poderiam suportar.
Seguem-se, desse modo, os conselhos de Mefistófeles, que anteriormente afirmara
que, se os enigmas no alto se solucionam, outros mais lá haveriam de surgir. A vida do
homem, como o arco-íris que surge diante do olhar de Fausto, mostra-se variada e profusa,
alternando-se nas certezas e nas incertezas (―Nítido ora, ora no éter se espalhando‖). Se a
verdade suprema não pode ser nitidamente contemplada (o sol), é na alma do homem (arcoíris) que Fausto vê todos os espectros refletidos, de um a outro ponto, onde o pequeno
mundo, espelhando indiretamente a luz, a vincula ao fluido intenso da vida.
Se pensarmos na bela síntese poética de Machado realizada por Drummond, em seu
poema ―A um bruxo com amor‖, podemos arrematar o capítulo casando o pensamento de
129
GOETHE. 2ª parte . Op.cit. p. 45-47
158
Shakespeare, Goethe e Machado, assim como de seus personagens, na escrita poética: ―Dás
volta a chave,/ envolves-te na capa,/ e qual novo Ariel, sem mais resposta,/ sais pela janela,
dissolves-te no ar.‖
Entre o Bruxo do Cosme Velho (epíteto conferido a Machado por Augusto Meyer),
e os auter egos Fausto e Próspero, há uma confluência de três magos que revisitam o
nascimento de seus enigmas para conceder ao leitor a visão mais plena, embora velada, de
suas principais indagações acerca do homem, da vida e da obra de arte.
3- MACHADO DE ASSIS: UM HOMEM DO TEATRO.
A falta de lirismo na poesia e a de ação no teatro foram duas sentenças proferidas
pela crítica que assumiram o caráter de verdades absolutas. O interessante é que nem na
159
época de Machado, nem na atualidade, os críticos que mantiveram essa visão negativa
procuraram ler, com o aprofundamento devido, a poesia e o teatro machadiano.
Recentemente, no entanto, temos observado um aumento do interesse de editoras em
trazer a público os textos teatrais de Machado de Assis. As publicações relacionadas ao
teatro reúnem, além do teatro completo do autor, alguns poemas dramáticos publicados
nos livros de poesia e de crônicas, que nunca antes haviam sido classificados como peças
teatrais.
Dentre os textos publicados, podemos destacar a coleção Clássicos do teatro
brasileiro, organizada pela FUNARTE, que dedica o terceiro volume ao estudo dos textos
teatrais de Machado de Assis, Qorpo-Santo e Coelho Neto (FUNARTE, 2002); o livro
Teatro de Machado de Assis organizado por João Roberto Faria (Nova Fronteira, 2003) e
os dois volumes Machado de Assis: teatro (Cia. Editora Nacional, 2004). Dos três livros,
apenas o de João Roberto Faria traz uma boa introdução, ambientando o teatro de
Machado no cenário da época e procurando emitir algum juízo sobre as peças.
Quanto aos estudos sobre o teatro, há críticos que se têm debruçado sobre o assunto.
Merecem destaque algumas obras: Panorama do teatro brasileiro, de Sábato Magaldi;
Minoridade crítica, de Luís Antonio Giron, Machado de Assis e o teatro das convenções,
de Cecília Loyola e As novidades velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia
francesa, de Helena Tornquist. Enquanto os dois primeiros dedicam um capítulo a
Machado, os dois últimos livros oferecem um estudo detalhado de vários textos teatrais
do autor.
Cecília Loyola, procura desfazer a imagem preconceituosa dos críticos do passado,
mostrando que a ironia é um ponto determinante para a compreensão do teatro
machadiano:
Entretanto, se a cada ano vemos crescer o manancial crítico referente à
obra dita maior do autor, tal não é a sorte da dramaturgia. Os textos
estão aí numa espécie de limbo, eventualmente iluminados por sua
prática teatral inconstante. Talvez a estranheza provocada pela
modernidade radical desta cena seja ainda, de algum modo, a mesma
sentida por alguns contemporâneos de Machado, por exemplo, aquela
que selou, precocemente, o destino crítico da dramaturgia. Quintino
Bocaiúva escreveu a propósito das duas primeiras comédias,
sentenciando, para o futuro, o conjunto da obra. Assim é que a solução
160
analítica, meio adjetiva, meio substantiva, tornou-se a associação aos
provérbios de Musset.
O estranhamento contemporâneo, que vê ali frieza e não ironia,
artificialidade e não opção dramática, faz-nos pensar o quanto do
passado está em nossos dias, o quanto de nós se pode perceber no
século XIX. (...) o texto machadiano obriga o estudioso (...) a
compreender a teia de relações que a proferiu e aquela que a tem
perpetuado.130
A autora escolhe algumas peças teatrais do escritor para desenvolver sua análise, mas,
mesmo se preocupando em reavaliar as produções machadianas, não seleciona nenhuma
comédia em verso, o que acentua a exclusão do poeta dramático da cena crítica.
O texto de Helena Tornquist é o único dos aqui apontados a lançar uma reflexão
acerca da classificação dos gêneros na obra dramática de Machado, por vezes mostrando os
frágeis limites entre o narrativo, o lírico e o dramático em seus textos. Sobre o teatro em
verso de Machado, a autora anota que é recente o reconhecimento das peças Antes da
missa, O bote de rapé e Uma ode de Anacreonte, anteriormente agrupadas em volumes de
crônica ou poesia.
A inclusão de diálogos como Antes da missa e O bote de rapé em
volumes de crônicas (lembremos que somente com a edição organizada
pelo Instituto Nacional do Livro esses textos foram incorporados à
dramaturgia de Machado) e a permanência de Uma ode de Anacreonte
no volume Poesias, em sucessivas edições, são exemplos eloqüentes da
precariedade das classificações de gênero.131
Partindo das observações de Tornquist, chegamos a uma questão central: a que gênero
pertence o teatro em verso de Machado? Convém destacar a constante mescla que Machado
promove dos gêneros, tanto na prosa quanto na poesia. Basta lermos um poema como
―Pálida Elvira‖, para notar como o escritor opera uma verdadeira fusão do lírico, do épico e
do dramático em sua obra, além de reaproximar a poesia do sentido original do termo
―lírico‖, retomando a relação deste termo com a música.
Na prosa, por exemplo, quando nos deparamos com certas palavras do narrador Brás
Cubas, temos a nítida impressão de estarmos diante da melhor definição da atitude do poeta
e do dramaturgo ao realizar a mistura de gêneros em sua obra:
130
LOYOLA, Cecília. Machado de Assis e o teatro das convenções. Rio de Janeiro, UAPÊ, 1997. p. 17.
TORNQUIST, Helena. As novidades velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia francesa. São
Leopoldo: UNISINOS, 2002. p. 299.
131
161
Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi
um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o
austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos as
bufonerias, um pandemonium, alma sensível, uma barafunda de cousas e
pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do
teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia
em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de
vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do
beija-flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a expressão,
alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, que isso às vezes é dos
óculos.132
O trecho das Memórias póstumas nos remete ao processo criativo dos livros
machadianos, onde o sublime e o grotesco estão ironicamente unidos para provar que tudo
pode ser matéria-prima da obra de arte. O artista deve testar as formas e, principalmente,
reformulá-las.
A maioria dos críticos prefere fazer recortes de gênero no estudo das obras de
Machado de Assis ou, então, enfatiza o suposto ―recorte‖ temporal de sua produção. Assim,
temos pesquisas sobre a prosa machadiana dedicadas aos contos, romances e crônicas, ou
estudos da poesia ora voltados para o todo de sua produção, ora para a análise específica de
alguns poemas. Também se verifica uma separação nítida entre as obras produzidas na
juventude e na maturidade do escritor, na maioria das vezes, menosprezando a primeira
fase, ou só aproveitando os dados biográficos desta para reforçar a genialidade da segunda.
Da mesma forma, observa-se que os estudos sobre os textos dramáticos de Machado
ainda estão muito concentrados na definição do que seja ou não texto teatral, ou em
análises que buscam saber se as peças do autor possuem qualidade ou merecem maior
atenção por parte da crítica. Assim, a organização de antologias sobre o teatro machadiano
esbarra na questão do que pode ou não ser considerado intrinsecamente teatral, o que pode
justificar a ausência do teatro em versos nessas coletâneas.
Interessa-nos principalmente conhecer mais a fundo o poeta, sob vários ângulos,
tanto como produtor, quanto como leitor de poesia. Veremos de que maneira a poesia
machadiana se constrói no contexto dramático, através de algumas de suas comédias.
Destacamos três peças: Os deuses de casaca, Antes da missa e O bote de rapé.
132
ASSIS. O.C. Vol I. p 555.
162
A partir de tudo que pudemos perceber na poesia de Machado de Assis, por
exemplo, suas muitas aproximações com obras de cunho dramático (de Goethe e de
Shakespeare), procuraremos agora avaliar outras formas de manifestação do verso
machadiano, principalmente no que se refere à sua inserção dramática.
Machado, certamente, iniciou seu gosto pela observação e pelo desvendamento da
―alma humana‖ no interior dos teatros, aonde ia freqüentemente. Acompanhando o
percurso do escritor, comprovamos a presença de Machado nos espetáculos da Corte desde
os 16 anos, seja no Teatro Lírico ou no Ginásio Dramático, em companhia do amigo
Francisco Gonçalves Braga. Sua formação inicial seria marcadamente influenciada pela
música, assim como pela cena teatral, seja na escolha das temáticas, seja na forma peculiar
de ambientar as cenas das suas narrativas.
A primeira obra publicada em livro por Machado foi Queda que as mulheres têm
para os tolos, em 1861, que alguns classificam como peça teatral e outros, mais
acertadamente, a consideram ―ensaio satírico‖, tratando-se de tradução de texto, em
francês, do escritor belga Victor Hénaux.133
De sua própria autoria, no mesmo ano, viria a público a ―fantasia dramática‖
Desencantos, também editada pela tipografia de Paula Brito. Machado intensifica sua
produção no gênero, publicando, em 1863, o volume Teatro, contendo duas peças: ―O
protocolo‖ e ―Caminho da porta‖.
Há um número considerável de textos dramáticos cujos originais se perderam, como
―O pomo da discórdia‖, peça escrita em versos, e ―Gabriela‖, ao que tudo indica inspirada
na atriz Gabriela da Cunha. Devemos considerar também, como vimos anteriormente, que
vários poemas machadianos foram especificamente criados para declamação no palco,
como uma espécie de prólogo das peças, como é o caso de ―O dilúvio‖.
Ainda no mundo do teatro, o escritor refinaria o seu aparato crítico e a capacidade
de observação quando assume a função de crítico, desempenhada por um bom tempo na
juventude, bem como viria a ser um dos censores do Conservatório Dramático, graças à sua
reconhecida atuação no meio teatral, tanto como autor, quanto como apreciador do
espetáculo cênico.
133
Massa foi o primeiro pesquisador a desmentir que esse texto era da autoria de Machado, conforme Lucia
Miguel Pereira pretendeu. Em recente edição da Universidade de Campinas (HÉNAUX, 2008), há o cotejo
entre o texto original de Hénaux e a tradução de Machado.
163
Jean-Michel Massa fala-nos um pouco sobre o papel de crítico teatral,
desempenhado por Machado, nos folhetins da Corte:
Escrever sobre o teatro novo era um ato através do qual o escritor se
engajava.
Machado de Assis ficou orgulhoso de ser o escolhido para assumir tais
responsabilidades. Sentia-se no lugar de honra (...) ―Lá estive no posto
oficial que me confere o cargo de cronista: e pude embeber-me, como
todos, em um mare magnum de emoções novas.‖134
Nessas crônicas sobre o teatro, Machado dava o braço à leitora e a convidava a
apreciar o espetáculo através de suas observações, do olhar crítico que gentilmente deitava
ao papel. Pelas descrições, a leitora, principal alvo dos folhetins, podia projetar-se nos
salões e reviver as cenas narradas. O escritor fluminense, por sua vez, começava a
desenvolver um talento especial para interpretar os gestos das senhoras nos teatros,
ocupando-se não apenas em observar a representação teatral, como também em analisar o
comportamento das damas que iam assistir ao espetáculo.
Cortesmente, fazia de sua leitora o árbitro de suas preferências estéticas,
delimitando as fronteiras que ela não podia ultrapassar. Atribui-se, desta
maneira, um profundo conhecimento do coração feminino. Por exemplo:
o jogo das coquettes espectadoras das sessões de teatro quando
manejavam o leque: ―Também é uma arte o estudo de abrir e fechar este
semicírculo dos salões e dos teatros. Um bom fisiologista conhece o
caráter mais impenetrável pelo modo de agitar o leque‖.135
Não é de admirar que Machado tenha comparado este ato de interpretar as ações
com o caráter de fisiologista, que hoje corresponderia ao de psicólogo. Demonstrava, com
essa afirmação, uma tendência semelhante ao de Garcia, do conto ―A causa secreta‖, um
anatomista da alma, embebendo as emoções que se podia absorver das duas cenas: a teatral
e a social. O jogo das máscaras sociais aparecia no tablado e na platéia, e o observador por
excelência desenvolve um olhar com que procura ver como os outros estão vendo, da
mesma maneira que relata o que este ato provoca no outro e em si. Vida e arte se
confundem, ficção e realidade se unem no movimento da catarse.
134
MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. [trad. Marco Aurélio de M. Matos]. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.p.254.
135
Idem. p. 255.
164
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e
remorsos; mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances
dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um
personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça
reminiscências pessoais do vizinho.136
No trecho acima, retirado do conto ―A causa secreta‖, percebe-se que enquanto um
dos personagens aprecia a cena teatral, o outro aprecia a cena social, buscando pontos de
contato entre ficção e realidade, entre o que é representado e o que é vivido. A mesma
posição de observador que interpreta uma cena dramática, partindo de uma experiência
pessoal, surgiria no Dom Casmurro, quando Bento faz uma releitura de Otelo, após assistir
à peça, partindo da idéia da culpabilidade da protagonista, não da peça de Shakespeare, mas
de sua encenação em particular.
A emoção que Machado de Assis absorveu como um espectador diante do tablado o
influenciou em suas produções literárias. Ao falar de influência, não podemos esquecer da
expressão usada por Machado em sua crítica teatral: mare magnum; um imenso mar que
flui para o seu interior, ou seja, influi. O olhar, no entanto, não permanece isento nesta
apropriação. Tal como o vivisseccionista em favor da sua ciência, ele começa a
desmembrar a tradição e a retirar dela o conteúdo das experiências literárias, ainda que
termine por matá-la ou regenerá-la, conforme o mito de Prometeu, só para poder consumirlhe as entranhas novamente.
A arte tem por uma de suas funções a busca de novos caminhos para
interpretar/representar a alma humana. Na visão de Ronaldo Lima Lins, ―a primeira palavra
foi, sem sombra de dúvida, uma chave nova que se conquistou para se abrir um
caminho‖137. Seguindo esta premissa, podemos dizer que o texto machadiano está
encharcado dessas reflexões. Podemos acrescentar que o caminho pode ser um labirinto de
significações quando o que está em jogo é o interior conflitante do homem. Prosseguindo
na conjectura de Lins, temos:
136
ASSIS. O.C. vol. II. p. 512.
LINS, Ronaldo Lima. Os gêneros: conflito e significação. In: _____. Violência e Literatura. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
137
165
Num mundo regido pelo medo da morte, tudo deve ser estar
necessariamente em função do conflito principal. (...) A questão do
conflito primordial nos interessa na medida em que, refletindo as
angústias da alma humana, a arte representa, digamos assim, um pólo
catalisador para onde convergem os principais vetores da problemática
da existência e de onde partem, no terreno da emoção e da reflexão, as
esperanças e frustrações do homem.138
Baseado no que o texto de Lins afirma, podemos dizer que Machado fazia de sua
arte um pólo catalisador da grande problemática que é a existência humana. Talvez pelo
fato de o escritor dar ênfase a tais questões conflitantes, os críticos o classificaram como
um incurável pessimista. Afinal, essa afirmação pode ser considerada uma verdade? A
resposta é sim e não, pois o pessimismo machadiano não se desvincula da galhofa, uma
espécie de riso catártico usado para duelar com a melancolia. Definitivamente, para ventilar
a consciência, há sempre a janela do riso sendo aberta diante das portas que o pessimismo
fechou.
Como bem pôde observar Bilac, em um artigo de A Cigarra de 24 de outubro de
1895, o tão falado ―pessimismo‖ machadiano era apenas um olhar sincero à volta de si, ou
melhor, um dissecar de si mesmo.
(...) há aquele mesmo amor da psicologia e aquela fina ironia que fazem
Machado de Assis ser, sobre um artista, um pensador para quem a alma
humana não tem segredos. Dirão que o pensador é pessimista; que a sua
análise, fria e cruel, deixa uma dolorosa impressão de desconsolo; que a
sua ironia dói como uma punhalada; dirão que... Ah! meus irmãos! a vida
é aquilo mesmo! Machado escreve, torturando a si mesmo, rasgando as
suas próprias entranhas, pondo a nu os seus nervos. Que importa?
Abençoadas dores humanas, essas que criam tão belas páginas.
O vivisseccionista é sempre a representação da imagem do leitor crítico, que leva o
texto às últimas conseqüências, que o analisa fibra a fibra, como um bom ―leitor
ruminante‖. Esse leitor maquina sobre a matéria lida, passando e repassando seu conteúdo
nas ―cavernas do cérebro‖. A partir da citação de Bilac, é possível estabelecer uma
aproximação entre Machado e Gustave Flaubert, que, em algumas cartas, disse aniquilar
todo o sentimentalismo para compor seus personagens. Por trás do cético, do pessimista,
138
Idem. p.180
166
havia uma alma mutilada no ato da escrita. Madame Bovary, para Flaubert, era o grande
desafio de sua vida, por vezes, uma luta contra a própria subjetividade.
Ao escrever esse livro [Madame Bovary], eu sou como um homem que
tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada falange. Mas quando eu
souber mais meu dedilhado, se me cair nas mãos uma ária de meu gosto
e que eu possa tocar com os braços soltos, vai ser talvez muito bom. Eu
acredito, de resto, que nisso eu estou certo. O que você faz não é para
você, mas para os outros. A arte não tem nada a esclarecer para o artista.
Tanto pior se ele não gosta de vermelho, do verde ou do amarelo; todas
as cores são belas, trata-se de pintá-las.139
Novamente temos uma imagem que remete ao mito de Prometeu: para trazer o fogo
divino aos homens, aquilo que sua escrita produz, o escritor abdica de si mesmo, doa as
próprias entranhas, muitas vezes sem o devido reconhecimento.
O que, então, se busca reconhecer nas peças machadianas? Não entraremos na
questão levantada a partir do parecer de Quintino Bocaíuva, se as peças servem para ser
lidas ou para ser representadas, mas buscaremos localizar a quê se filia a idéia primordial
da obra, suas influências, e em que medida a escolha do verso colabora na construção do
sentido.
Desobedecendo ao critério cronológico, começaremos a leitura pelas peças de 1878,
―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖, deixando Os deuses de casaca, apesar de sua escrita
em 1866, para o fim, exatamente porque muitos princípios dessa peça foram retomados no
decorrer da obra, podendo ser também considerada o embrião de um dos romances do final
da vida do escritor.
3.1 - “Antes da missa” e “O bote de rapé” – uma breve análise da sociedade
fluminense do século XIX
139
FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p.79
167
No ano de 1878, Machado publica cinco textos no jornal O Cruzeiro: ―O bote de
rapé‖, ―Um cão de lata ao rabo‖, ―Filosofia de um par de botas‖, ―Antes da missa‖ e
―Elogio da vaidade‖, que fogem de uma classificação tradicional e da matéria que se podia
esperar que figurasse no meio jornalístico. O que aí notamos é uma mistura de gêneros, que
vai da escrita teatral ao diálogo filosófico e, talvez, pela dificuldade em definir a que
gênero pertencem, figurem na seção ―Miscelânea‖ da edição Obra completa da Nova
Aguilar.
Há ainda outro curioso texto, e pouco referido, da autoria de Machado publicado no
mesmo veículo. Trata-se de ―A sonâmbula‖, ópera cômica bem curta, que, apesar do nome,
segue uma concepção distinta da ópera de Bellini, embora também trate da infidelidade
conjugal. O texto machadiano consta dos Dispersos coligidos por Jean-Michel Massa, e
retoma uma temática apreciada por Machado: o charlatanismo dos adivinhos e
prestidigitadores.
Nessas produções publicadas em O Cruzeiro, Machado pratica um exercício de
estilo, combinando gêneros diferentes, experimentando formas e modelos, enfim, buscando
uma nova expressão literária que culminaria na publicação das Memórias póstumas de Brás
Cubas, rompendo definitivamente com a estrutura tradicional das narrativas até então
veiculadas no Brasil.
O jornal O Cruzeiro começou a circular no início de 1878 e, ao que tudo indica,
Machado foi um de seus principais organizadores, um mentor intelectual, digamos assim.
Essa função desempenhada por ele no periódico foi registrada em uma de suas cartas. Em
correspondência destinada a Salvador de Mendonça em 8 de outubro de 1877, havia um
convite ao amigo para colaborar no jornal:
Meu caro Salvador. / Escrevo-te à pressa, à última hora, e por isso me
dispensarás se te não digo uma série de cousas que há sempre que dizer
entre bons amigos que se não falam há muito. / Antes de tudo, estimo a
tua saúde e a de tua senhora e filhos. / Vai aparecer no 1.º do ano de 78
um novo jornal, O Cruzeiro fundado com capitais de alguns
comerciantes, uns brasileiros e outros portugueses. O diretor será o Dr.
Henrique Correia Moreira, teu colega, que deves conhecer. / Incumbiu-
168
me este de te propor o seguinte: / 1.º Escreveres duas correspondências
mensais. / 2.º Remeteres cotações dos gêneros que interessem ao Brasil,
principalmente banha, farinha de trigo, querosene e café, e mais, notícias
do câmbio sobre Londres, Paris etc., e ágio do ouro. / 3.º Obteres
anúncios de casas industriais e outras. / Como remuneração: / Pelas
correspondências, 50 dólares mensais./ Pelos anúncios, uma porcentagem
de 20%./ Podes aceitar isso? No caso afirmativo, convém remeter a
primeira carta de maneira que possa ser publicada em janeiro. Caso não
te convenha, o Dr. Moreira pede que vejas se nosso amigo, Rodrigues,
do Novo Mundo, pode aceitar o encargo, e em falta deste algum outro
brasileiro idôneo./ Os industriais que quiserem mandar os anúncios
poderão também remeter se lhes convier, os clichês e gravuras. Quanto
ao preço dos anúncios, não está ainda marcado, mas regulará o do Jornal
do Comércio, ou ainda alguma coisa menos./ Esta carta vai por via de
Europa. No primeiro paquete escreverei outra, para remediar o extravio
desta, se houver./
Desculpa-me a pressa, e escreve ao/ Teu do coração./ MACHADO DE
ASSIS.140
Nessa missiva, há informações acerca do mês e do ano do lançamento do jornal,
mas não só isso. Pelo detalhamento feito por Machado na carta, ficamos sabendo também
como se estruturaria o jornal, qual o seu público, que assuntos seriam abordados, quais os
patrocinadores, e, o mais interessante, nos inteiramos de que Machado seria o principal
responsável pelo plantel de O Cruzeiro, selecionando aqueles que se incumbiriam de
prover-lhe artigos e textos, isto é, os intelectuais de talento que colaborariam na publicação.
Neste período, Machado já desfrutava de reconhecimento pela sua capacidade
intelectual, tendo lançado livros de poesia e de teatro, assim como traduções, mas suas
contribuições nos jornais recebiam maior destaque. Assim como no decênio de 60, deu seus
primeiros passos como cronista, no de 70, faria suas incursões pelo romance, estreando
com Ressurreição, em edição de Garnier, e prosseguindo na escrita de outros três livros do
gênero - A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia -, trabalhados inicialmente sob a forma de
folhetim.
Naquele período, final dos anos 70, o escritor consolidava uma fase de consagração
como prosador de narrativas mais longas, é o que deixa transparecer em outra carta, escrita
um ano antes, dirigida ao mesmo Salvador de Mendonça. Na missiva, Machado elogia o
artigo publicado por Salvador na revista Novo Mundo sobre seu livro de poesia,
Americanas, e fala do lançamento do romance Helena: ―Vai com este vapor um exemplar
140
ASSIS. O.C. vol. III. p. 1.035.
169
da Helena, romance que publiquei no Globo. Dizem aqui que dos meus livros é o menos
mau; não sei; lá verás. Faço o que posso e quando posso.‖ (13 de novembro de 1876).
Obviamente há uma grande carga de modéstia nas palavras do escritor, mas,
segundo consta na carta, Machado dá importância ao fato de Helena ter recebido elogios da
crítica, no sentido de ser uma produção melhor que as anteriores. Talvez o escritor
estivesse se referindo ao artigo, sem assinatura, publicado em A Reforma, em 19 de outubro
de 1876.
Helena é um trabalho que pode competir com os mais bem acabados do
gênero.
Já antes nos havia dado o Sr. Machado de Assis um outro romance, que,
pela finura das observações, desenho dos caracteres, estudo psicológico e
amenidade dos episódios, anunciava a posição eminente que teria de
ocupar entre os romancistas nacionais, o vigoroso autor de Ressurreição.
Helena, que lhe seguiu, é um grande progresso.141
Uma outra crítica a Helena, posterior à escrita da carta de Machado, também
destaca o romance como uma das melhores produções machadianas. Todavia o que nos
interessa é a ressalva que o autor do artigo, A. C. Almeida, faz à figura do poeta: ―Nota-se,
contudo, uma coisa: que o estamos considerando como romancista (grifo nosso). Do
Machado poeta já não diríamos o mesmo, se bem que ande-lhe (sic) aureolado o nome por
apoteose balofa e louvaminheira.‖142
Definitivamente, o prosador começava a ocupar o vasto terreno literário de onde o
poeta, a princípio, era banido. Como um autor que respeitava o julgamento do outro sobre
seus escritos, Machado parecia avaliar atentamente o que se afirmava sobre sua obra e
buscava a justa medida de sua vocação.
A vida literária de Machado girava em torno dos jornais e foi esse o veículo que lhe
serviu de escola e oficina, que lhe apurou o estro. Além de O Cruzeiro e O Globo, citados
aqui, Machado já havia colaborado em outros periódicos, como A Marmota Fluminense,
(transformada posteriormente em A Marmota), O Futuro, O Espelho, Gazeta de Notícias,
Jornal das Famílias, Jornal da Tarde e Diário do Rio de Janeiro.
141
MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p.
107.
142
Idem. p. 108.
170
Quando destacamos os seis textos de O Cruzeiro, foi especialmente pelo fato de o
periódico trazer a público textos de natureza distinta da que a maioria dos jornais tinha por
hábito veicular. Normalmente, o que se lia nas diversas seções jornalísticas, além das
notícias e anúncios, eram traduções, romances em capítulos, novelas, contos, crônicas e
poemas. O anedotário também era bem farto, assim como as ilustrações, charges e
caricaturas. É curioso como O Cruzeiro rompe com esse padrão ao também oferecer aos
leitores textos teatrais e reflexões filosóficas.
Dois textos de Machado em O Cruzeiro nos interessam particularmente, por serem
peças teatrais escritas em verso: ―O bote de rapé‖ e ―Antes da missa‖. Ambas as comédias
apresentam um aspecto singular: o papel da mulher na sociedade fluminense do século
XIX. O interesse de Machado pela questão feminina é muito natural se observarmos que,
por muitos anos, ele foi um dos principais colaboradores do Jornal das Famílias, e sua
vasta publicação neste periódico se estende de 1863 a 1878, o que comprova sua constância
na publicação de textos particularmente voltados para o público feminino. A publicação
oferecia às leitoras páginas de romance, contos, histórias morais, lições religiosas,
anedotas, receitas de economia doméstica, culinária, partituras musicais, modas e trabalhos
manuais - de artesanato a lições de corte e costura.
Desse universo tipicamente feminino, Machado retirou muitos perfis que viria a
desenvolver em sua obra. Da mesma forma, a convivência com tal meio ofereceu-lhe um
vasto conhecimento da ―alma sensível‖, em confronto com o universo masculino, dos
leitores, aparentemente, ―sisudos‖, mas que, da mesma forma, representavam a frágil
intelectualidade da capital do Império, com seus ―medalhões‖, francamente favorecidos
pelo patriarcalismo.
Assim, procuraremos fazer um estudo mais atento dessas duas peças, ―Antes da
Missa‖ e ―O bote de rapé‖, que, aliás, ainda não mereceram um estudo acurado dos críticos
da obra machadiana, assim como de Os deuses de casaca. A índole da sua comédia em
verso parece ser, sobretudo, a de apresentar a face caricata e burlesca da sociedade
fluminense, principalmente da elite, mas quase sempre de uma maneira enviesada, como
seu estro de escritor exigia: na aparência, apenas rindo da superficialidade dos tipos sociais,
mas guardando, nas entrelinhas, críticas mordazes.
171
3.1.1- Diálogos femininos e pintura social em “Antes da Missa”
Em ―Antes da missa‖, observa-se o ―diálogo entre duas damas‖ – subtítulo que
acompanha a peça de Machado. Uma delas, Laura, se encaminha para a prática religiosa, a
ida à missa, mas, antes de cumprir o ritual ―sagrado‖, vai visitar uma amiga, Beatriz. Lá
chegando, ambas entregam-se a falatórios do dia-a-dia, ao sublime ―falar da vida dos
outros‖ e, nesse âmbito, revelam igual ―religiosidade‖. O curto espaço de tempo da peça,
que se reduziria aos poucos minutos entre o encontro das amigas e o início da missa, não
impede que o desenrolar das falas dê conta de uma sucessão de acontecimentos da vida de
várias pessoas da convivência de ambas.
Aqui, um simples diálogo desvela uma maliciosa contradição existente no perfil da
capital do Império: ações ingênuas, à primeira vista, escondem pretextos e intertextos
menos inocentes, intrigas e falatórios. Há toda uma convenção social e religiosa sendo
cumprida e, ao mesmo tempo, um universo de outras questões sendo transgredido.
A comédia é o espaço de desequilíbrio da ordem para a introdução de uma
desordem ou de uma nova ordem, antagônica à primeira. Antes do compromisso sagrado da
―missa‖, as duas damas fazem todas as coisas condenáveis nas premissas cristãs. O
discurso das senhoras favorece a vaidade, a intriga, a mentira, as dissensões e outros
aspectos e sentimentos nada nobres e até contrários ao caráter apregoado na religião.
Para elas, há um novo mandamento: em vez do ―amai-vos uns aos outros‖, do
discurso cristão, passa-se ao ―falai-vos uns dos outros‖, impulsionado pelas novas ―modas‖
sociais. Fica bem nítido, em determinado momento da peça, que essa nova versão bíblica
passa a vigorar: Laura, ao ser questionada por Beatriz por manter amizade com pessoas de
172
caráter duvidoso, afirma que não há outra forma de agir, já que ―Enfim, é nossa obrigação/
Aturarmo-nos, uns aos outros.‖143 Há uma subversão do mandamento divino, que acaba
por se tornar uma obrigação e passa a vigorar como uma das regras sociais de autotolerância, já que os membros da sociedade têm seus defeitos expostos, mas se relacionam
mutuamente com cordialidade, pelo menos quando estão à vista de todos.
Há um dado importante que Machado insere na peça e que nos permite enxergar um
novo panorama no Rio de Janeiro. Referimo-nos à abertura maior da sociedade, que
culmina na saída das mulheres do ambiente recluso, do interior da casa, para o espaço das
ruas, onde podiam conferir as modas, as casas de comércio, onde examinavam e
compravam artigos de luxo vindos da Europa e começavam a externar a vaidade, a
ostentação, a assimilar outras regras sociais e a adquirir, afora o culto religioso herdado do
período colonial, uma nova doutrina: o culto da beleza. O principal desígnio feminino
parece ser, então, o alardear de aparatos e dotes nos saraus e bailes da capital.
A crítica machadiana atinge em cheio a futilidade das mulheres, a valorização dos
atributos físicos, o culto da riqueza e o franco desejo de ascensão social, que, em
contrapartida, casavam-se perfeitamente com as frivolidades masculinas, no plano do
―trabalho‖, como o apego a cargos políticos, diplomas, condecorações e títulos de nobreza.
Antes de avançarmos, registremos que as personagens da peça, curiosamente,
chamam-se Laura e Beatriz. As duas figuras podem ser logo associadas a Beatrice, de
Dante, e a Laura, de Petrarca, musas idealizadas por seus poetas, colocadas no pedestal
mais alto da adoração e, por assim dizer, divinizadas por seus cultores. No entanto, a dupla
é parodiada na comédia machadiana: Laura, que em Petrarca é exemplo de pureza e
virtude, passa a ser a informante de Beatriz acerca dos assuntos e intrigas do baile a que a
amiga não pôde comparecer.
De igual modo, Beatriz, a que conduz Dante ao Paraíso na Divina Comédia, é quem
vai desviar Laura do caminho da missa, das obrigações sagradas e, por pouco, não a
impede de cumprir seu propósito religioso. Literalmente desvirtuadas, as duas ―heroínas‖
vão conduzindo os espectadores/leitores da peça pelas vielas e becos da maledicência.
143
ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis, Qorpo- Santo e Coelho Neto. Rio de Janeiro: Funarte,
2002. p. 263.
173
Cada freqüentador do baile terá a vida devassada pelas duas damas. Cada qual terá
evidenciado seu maior defeito, sua principal falha de caráter. Por este aspecto, até podemos
estabelecer uma outra comparação com a obra de Dante, além do nome de Beatriz, já que é
possível localizar nos personagens citados na peça todos os sete pecados capitais apontados
pelo poeta florentino em sua obra. No caso machadiano, há um desfilar dos sete pecados da
Capital do Império através das pessoas que freqüentam o baile de D. Laura. A
representação dos tipos sociais mostra-nos uma sociedade caricata e burlesca - para usar
aqui os mesmos adjetivos empregados por Machado na definição do perfil oficial da
sociedade brasileira numa de suas crônicas:
O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial,
esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens,
cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política nada temos a invejar
ao reino de Lilliput.144
Como não se inveja o reino de Lilliput, a sociedade pintada por Beatriz na peça se
apresenta como uma versão caricata da Commedia de Dante e, nesta medida, nada deixaria
a desejar ao ―Inferno‖ dantesco, retocado, porém, com as tintas da galhofa. Conduzidos
pela personagem, ou melhor, induzidos por ela, visitamos a ―vida dos outros‖ e ficamos
frente a frente com as indiscrições sociais e os pecados amplamente praticados pelos
personagens: ira, preguiça, avareza, gula, luxúria, inveja e vaidade - com destaque especial
para este último.
Logo no início do diálogo, as damas tratam-se de maneira ofensiva. Beatriz evoca a
preguiça como um aspecto do caráter da outra, enquanto Laura a trata de ―caloteira‖, por
não ter ido ao baile em sua casa. A preguiça, então, um dos pecados dantescos, abre o
discurso da peça:
Beatriz: Ora esta! Pois tu, que és a mãe da preguiça,
já tão cedo à rua! Onde vais?
Laura:
144
Vou à missa;
A das onze, na Cruz. Pouco passa das dez;
Subi para puxar-te às orelhas. Tu és
A maior caloteira...
ASSIS, Machado de. "Comentários da Semana", Diário do Rio de Janeiro, 29/12/1861.
174
Nota-se que elas não vão poupar nem a si mesmas, e que a língua das damas está
mesmo afiada e pronta para o exercício da maledicência. Mas o que confere nota especial à
peça é que tudo acontece ―Antes da missa‖, o que satiricamente esboça a hipocrisia social,
o desprezo dos sentidos religiosos, a corrosão dos valores éticos e dos padrões morais.
Apesar de tudo, o propósito machadiano, mais explícito, é simplesmente fazer rir. No
entanto, se seguirmos os conselhos dados por Machado em determinada crônica da
maturidade, é preciso ―raspar a casca do riso‖ para ver o que há em seu interior. Então,
dentro da comédia, encontraremos uma crítica mordaz, um retrato social eivado de
contradições.
O encadeamento do texto em verso torna o diálogo fluido e ainda mais cômico. A
fala de Laura emenda-se no discurso de Beatriz, mostrando uma parceria perfeita entre as
damas, um dueto afinado quando o assunto são as mazelas alheias.
A justificativa de Beatriz para ter faltado ao baile de Laura é completamente fútil, o
que nos remete a outro pecado capital: a vaidade. Beatriz se indispôs com o marido porque
não queria repetir o vestido com que fora, naquele mesmo mês, a outro baile. A sua vaidade
está acima da vontade do marido, que não consegue fazê-la atender ao seu apelo:
Vou, não vou; e a teimar deste modo, perdemos
Duas horas. Chorei! Que eu, em certos extremos,
Fico que não sei mais o que fazer de mim.
Chorei de raiva. (...)
Os excessos de Beatriz se sucedem: a recusa, a raiva, o choro, a briga com o marido
- tudo por causa de um simples vestido. Então, pode-se dizer que temos aqui um diálogo
entre a ―Mãe da preguiça‖ e a ―Rainha da vaidade‖. Nenhum desses epítetos, no entanto,
combina com uma pessoa que está se preparando para ir à missa. Aliás, num outro texto de
Machado de Assis, o conto ―Missa do galo‖, ocorre algo semelhante, pois a conversa entre
o jovem Nogueira e a madura Conceição, a ―santa‖, tem lugar minutos antes da missa do
galo, e tampouco parece configurar um momento religioso; pelo contrário, a cena vem
cercada de erotismo, embora velado, e de duplas interpretações.
175
A conversa entre as damas da peça de Machado, por sua vez, não apresenta dupla
interpretação. O diálogo entre ambas é franco e aberto, pelo menos quando não estão
tratando de si mesmas. Neste último caso, o teor da conversa muda e passam a vigorar as
meias-verdades. Então, no jogo de dissimulações, entra em cena mais um dos pecados
capitais: a inveja. Em dois momentos distintos, as personagens acham, cada qual, que a
outra é mais feliz. Na primeira parte, é Beatriz que lamenta sua sorte e exalta a vida de
Laura, mais precisamente pelo fato de a amiga ter conseguido um livro melhor e mais
barato que o seu:
Beatriz: Deixa ver. Tão bonito! e tão mimoso! Gosto
De um livro assim; o teu é muito lindo; aposto
Que custou alguns cem...
Laura:
Foi comprado em Paris;
Cinqüenta francos.
Beatriz:
Sim? Barato. És mais feliz
De que eu. Mandei vir um, há tempos, de Bruxelas;
Custou caro, e trazia as folhas amarelas,
Umas letras sem graça, e uma tinta sem cor.
Para essas senhoras o livro é apenas mais um acessório. O conteúdo de suas páginas
não interessa, apenas a aparência e o valor financeiro são importantes. Machado mostra que
o público leitor da época, principalmente o feminino, não estava apto para julgar o
conteúdo de uma obra, ainda estava afeito à aparência. Ou seja, bastava ao volume ter uma
bela embalagem e ser produzido na Europa para o público considerá-lo de alta qualidade.
O diálogo das damas prossegue, e é informado ao leitor que o fornecedor do livro
de Laura é o mesmo que lhe abastece de sapatos, tecidos e chapéus. Concluiu-se que a
moda feminina não se restringia às vestimentas, mas se ampliava ao hábito de adquirir
livros como parte da composição do traje social. São essas as entrelinhas machadianas. A
leitura inexiste, o livro é apenas mais um objeto decorativo.
Ainda seguindo o discurso da inveja, Laura também repete a frase da amiga,
achando-a mais feliz que outras mulheres em relação ao casamento, já que, mesmo se
desentendendo com o marido por causa do vestido do baile, consegue rapidamente fazer as
pazes.
Laura: (...) Ah! feliz, tu, feliz,
176
Como os anjos do céu! tu sim, minha Beatriz!
Brigas por um vestido azul; mas chega o urso
Do teu tio, desfaz o mal com um discurso,
E restauras o amor com dois goles de chá!
Começam, então, a tratar dos maridos e da vida de casada. Enquanto Laura declara
que são uns ―aborrecidos‖, esperando que a outra confirme a versão, obtém de Beatriz,
contrariamente, a afirmação de que o marido é um bom homem. Laura, então, desconversa
e muda de opinião, mas continua tentando achar no esposo da amiga alguma falha de
caráter. Passa a interrogá-la com perguntas indiscretas, como: ―O teu que tal?‖, ―Ama-te?‖,
―O teu costuma andar tarde na rua?‖, ―Não costuma ir ao teatro?‖, ―Não sai para ir jogar o
voltarete?‖.
E, não se sentindo vencida, finaliza com certo descrédito quanto às
afirmações de Beatriz:
Laura: Pois olha, eu suspeitava, eu tremia de crer
Que houvesse entre vocês qualquer coisa... Há de haver
Lá um arrufo, um dito, alguma coisa... Nada?
Nada mais? É assim a vida de casada
(...)
Como no começo, as damas não poupam a si mesmas das indiscrições e tentam
saber de algum segredo uma da outra para, talvez, passarem-no adiante. A inveja fica
explícita no diálogo na mesma medida em que a hipocrisia encobre as verdades acerca da
própria intimidade. O anseio que têm em revelar a vida dos outros, também possuem para
resguardar as próprias. Só as duas personagens parecem ser felizes e, mesmo assim, uma
lamenta a sorte da outra.
Preguiça, vaidade e inveja, portanto, já foram reveladas no discurso de ―Antes da
Missa‖, mas, na descrição que as amigas fazem da sociedade, encontramos mostras de
outros ―desvios‖ que compõem os sete pecados descritos em Dante.
A gula está personificada na figura da moça Farias, que demonstra um apetite
extraordinário e passa o baile inteiro comendo e valsando:
Beatriz: A Farias foi lá à tua casa?
Laura:
Foi;
Valsou como um pião, e comeu como um boi.
Beatriz: Come muito, então?
177
Laura:
Muito, enormemente; come
Que só vê-la comer; tira aos outros a fome.
Sentou-se ao pé de mim. Olha, imagina tu
Que varreu, num minuto, um prato de peru,
Quatro croquettes, dois pastéis de ostras, fiambre;
O cônsul espanhol dizia: ―Ah, Dios, que hambre!‖
Já a luxúria vem representada por dois personagens: doutor Soares e Carmozina
Vaz. Enquanto este não pode ver uma moça que já promete casamento, aquela ―devora‖ os
olhos de um outro rapaz, Antonico. Cercado de duplo sentido, o diálogo acerca de
Carmozina talvez encerre o comentário mais maldoso de toda a peça.
Beatriz: A Carmozina. Foi leviana; andou mal,
Lá porque ela não come ou só come o ideal...
Laura: O ideal são talvez os olhos do Antonico?
Beatriz: Má língua!
Em seguida, Laura e Beatriz ilustram a avareza através dos personagens Mateus
Aguiar e o sogro. Ao que tudo indica, o sogro aplica um golpe no próprio genro para
conseguir dinheiro. Outros dizem que foi um plano articulado pelos dois para lograr os
credores. Tanto numa acepção quanto na outra, há o apego aos bens materiais, e uma
preocupação em burlar as leis para acumular riquezas.
Laura: Alguma gente. Vai o Mateus Aguiar.
Sabes que perdeu tudo? O pelintra do sogro
Meteu-o no negócio e pespegou-lhe um logro.
Beatriz: Perdeu tudo?
Laura:
Não tudo; há umas casas, seis,
Que ele pôs, por cautela, a coberto das leis.
Beatriz: Em nome da mulher, naturalmente?
Laura:
Boas!
Em nome de um compadre; e inda há certas pessoas
Que dizem, mas não sei, que esse logro fatal
Foi tramado entre o sogro e o genro; e natural.
A ira já havia dado mostras de sua presença logo no início da peça, com o choro de
raiva de Beatriz, ao contrariar o marido e se recusar a pôr o vestido. Mas a discussão é
passageira e logo apaziguada pelo tio da moça. O mesmo não acontece com a mulher do
Mesquita, que teima com o marido, querendo ir à Europa, e torna-se alvo de sua fúria.
178
Laura: Cuido que ela quer ir à Europa; ele disse
Que antes de um ano mais, ou dois, era tolice.
Teimaram, e parece (ouviu-o o Nicolau),
Que o Mesquita passou da língua para o pau,
E lhe fez um discurso hiperbólico e cheio
De imagens. A verdade é que ela tem no seio
Um sinal roxo; enfim vão desquitar-se.
Aproveitando-se da agudeza da língua das senhoras, Machado extrai da cena
imagens de fina ironia, cercada de comicidade. Ao afirmar que Mesquita fez ―um discurso
hiperbólico e cheio de imagens‖, notamos o contraste desta frase refinada com o verso
anterior em que Laura fala abertamente ―passou da língua para o pau‖. Temos aqui o misto
de comicidade e ironia sutil, já que há duas traduções para o ato de Mesquita surrar a
esposa: a primeira, franca e aberta, seria a tradução literal, enquanto a segunda, formal e
metafórica, a tradução irônica. A distância entre ambas evoca a comicidade da cena e
aponta para uma questão muito arraigada naquela sociedade: a dissimulação presente no
discurso oficial e cerimonioso e a irreverência do discurso mal-intencionado e, portanto,
extra-oficial.
Assim reunidas, as mazelas sociais compõem o pano de fundo da peça ―Antes da
missa‖ e ninguém escapa dessa rede de intrigas, nem mesmo as protagonistas, apesar da
afirmação de que são felizes. Com em ―Missa do galo‖, em que a ―ida ao teatro‖ do marido
de D. Conceição é metáfora do adultério, as duas personagens admitem que os maridos
saem para jogar o voltarete. Talvez, nessa afirmação, estejam escondidas outras metáforas,
essenciais para o jogo social, para a manutenção das aparências, principalmente no âmbito
matrimonial.
3.1.2- “O bote de rapé”: o nariz entra em cena
179
A outra comédia, objeto de nosso estudo, denomina-se: ―O bote de rapé‖. A
introdução da palavra ―rapé‖ logo no título desta obra parece um indício de que o universo
masculino será o núcleo da peça. No decorrer da leitura, entretanto, percebemos que
também há uma reflexão em torno do universo feminino, de onde vão surgir algumas
indagações e, novamente, se dará ênfase à saída das mulheres do ambiente familiar para as
ruas, para o mundo das compras, do comércio e da vaidade da Rua do Ouvidor.
O que, a princípio, é um dado novo em ―O bote de rapé‖, e que causa estranheza ao
leitor, é o fato de o nariz do personagem Tomé ganhar vida e assumir um papel que lhe
permite dialogar e expressar sua vontade, fazer reflexões ―profundas‖ sobre a sua natureza,
e governar as vontades do dono. Aliás, não se pode dizer que Tomé é dono do próprio
nariz, visto que se dobra facilmente às vontades deste. O fato de estar sem rapé faz do
personagem um completo inútil, que não consegue esboçar qualquer reação e só pensa em
dar uma pitada, já que, sem isto, não consegue tornar-se senhor de suas ações.
O tema é, de fato, provocador, diante da simplicidade da cena e da curta duração da
peça. A comédia é compõe-se de poucos personagens: o casal Tomé e Elisa, afora um
caixeiro que pouco participa da cena. Mas o que nos chama a atenção é o outro personagem
- o nariz intruso, que, apesar de constituir uma pequena parte do corpo de um dos
personagens, torna-se o alvo principal da ação de ―O bote de rapé‖. Tudo girará em torno
do nariz de Tomé, partindo da constatação de sua própria fragilidade diante da abstinência
do tabaco. Apesar de serem dois - o personagem e seu nariz - a vontade parece residir no
segundo, que é uma espécie de metáfora da alma ou do amor-próprio do primeiro.
Aqui, abriremos um grande parêntese para tratar desse estranho personagem da
peça machadiana. E, para completarmos a tarefa, faremos uma pequena ―viagem à roda do
nariz‖, à maneira de Maistre, para darmos conta da importância deste terceiro personagem,
que intermedia a ação dos outros dois - Elisa e Tomé.
Há uma especial predileção de Machado pelo tema, que também comparece em
outros momentos de sua escrita. De início, o nariz parece ser o centro da vaidade, o cume
do amor-próprio, o lugar onde residem as vontades humanas. Para exemplificar, basta uma
180
leitura de uma narrativa machadiana de 1872, anterior, portanto, à peça em análise. Trata-se
do conto ―Uma loureira‖, publicado no Jornal das Famílias, sob o pseudônimo de ―Lara‖,
em que o narrador analisa a figura do Comendador Nunes, protagonista da história, da
seguinte forma:
Era um homem de 45 anos, um tanto calvo, bem apessoado, nariz não
vulgar, se atendermos no tamanho, mas vulgaríssimo se lhes estudarmos
a expressão. O nariz é um livro, até hoje, pouco estudado pelos
romancistas, que alíás se presumem grandes analistas da pessoa humana.
Eu, quando vejo alguém pela primeira vez, não lhe estudo a boca, nem os
olhos, nem as mãos, estudo-lhes o nariz. Mostra-me o nariz, e eu te direi
quem és. 145
O nariz, segundo o que se pode depreender da leitura, torna-se o resumo da própria
personalidade do indivíduo. De uma forma irônica, Machado descreve obliquamente o
caráter do Comendador, definindo-o como uma pessoa de expressões vulgares. A questão
da vaidade, do amor-próprio, fica patente, já que a importância dada ao cargo e ao
posicionamento social é sempre levada em conta quando Machado coloca o nariz em
evidência, ou seja, quando o utiliza como tema de destaque num determinado contexto.
No conto em questão, há um outro trecho que confirma definitivamente essa
propriedade do nariz na vida do Comendador, que se torna a fonte do seu orgulho, a
―nobreza‖ de seu caráter, apesar de representar externamente, para os outros, a revelação de
sua verdadeira face, de sua franca vulgaridade.
O nariz do comendador Nunes era a coisa mais vulgar deste mundo; não
exprimia coisa nenhuma de jeito, nem de elevação. Era um promontório,
nada mais. E todavia, o comendador Nunes tirava grande vaidade do
nariz, por lhe haver dito um sobrinho que era nariz romano. Havia, é
verdade, uma corcova no meio da extensa linha nasal do comendador
Nunes, e naturalmente, foi por zombaria que o sobrinho chamou àquilo
romano.
Tratando a parte do corpo como relevo, no sentido estritamente topográfico,
Machado nos apresenta questões de relevo social. Como uma descrição territorial, a face do
comendador servia a dois estados, divisados pela ―cordilheira nasal‖, que, neste caso, além
145
ASSIS, Machado de. ―Uma loureira‖. In: Jornal das Famílias: maio de 1872, pág. 140-141. (Exemplar da
Biblioteca Pública do Rio de Janeiro)
181
da questão de espaço, se estende à questão dos estados do homem, da face social que cada
qual apresenta ou representa. Há, sobretudo, um conflito entre o exterior e o interior do
personagem, entre o que ele é no plano social e o que mostra ser em relação à própria
personalidade. Nunes, ao mesmo tempo em que possui destaque social como comendador,
não consegue deixar de mostrar traços de personalidade vazia e de excessos de vaidade. O
nariz parece ser o ponto de união entre o pessoal e o social, o lugar onde os dois planos se
deixam ver e são vistos.
Por outro lado, é interessante o fato de Machado usar a expressão ―nariz romano‖
no conto. Se pegarmos o sentido de ―nariz‖ empregado pelos romanos, do latim nasus,
veremos que está intimamente ligado a alguns outros sentidos, além de designar a parte do
corpo humano. ―Nariz‖ para os romanos podia tanto ser um indício de cólera, no sentido
real, ou mofa, zombaria, no sentido figurado. A natureza do nasus romano é, por assim
dizer, antitética, pois conjuga sentidos contrários a um só tempo: cólera e escárnio, fúria e
riso, o princípio trágico e o cômico. Machado parece se inteirar desta dicotomia que, na
verdade, reafirma o princípio do equilíbrio humano, a complementaridade dos contrários.
No conto ―Uma loureira‖, essa complementaridade é exposta no momento em que o
comendador contempla o próprio nariz e só enxerga o que a própria imaginação deseja ver.
Incapaz de discernir a zombaria do sobrinho, o nariz passa a ser o motivo de seu orgulho,
quando, ironicamente, é de fato a sua vergonha, a sua nudez diante da sociedade.
Posteriormente, em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado dedica um
capítulo ao assunto, com o mesmo objetivo de enfatizar a vaidade humana. O capítulo
XLIX do romance, denominado ―A ponta do nariz‖, retrata o momento posterior ao que
Brás Cubas perde a noiva, Virgília, para outro homem mais rico e de melhor posição social.
Para se consolar de sua inferioridade diante do rival, Brás passa a olhar para a ponta do
nariz, chegando à conclusão da importância de tal ato: ―Nariz, consciência sem remorsos,
tu me valeste muito na vida...‖ e monologa com o nariz, com uma espécie de consciência
saudosa de defunto ao relembrar as questões de outrora, sempre sob a ótica irônica, como
um exercício necessário para a sobrevivência do ego humano.
Em seguida, o narrador desenvolve longas reflexões sobre o exercício da vaidade: o
de mirar a ponta do nariz e esquecer-se do mundo exterior para acalentar o amor-próprio.
182
Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar a ponta do nariz,
com o fim único de ver a luz celeste. Quando finca os olhos na ponta do
nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível,
apreende o impalpável, desvincula-se da Terra, dissolve-se, eteriza-se.
Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso
do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é
universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu
próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo
efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o
equilíbrio da sociedade. 146
E, novamente, vemos a questão do equilíbrio humano, sob as tintas da galhofa e da
melancolia do defunto-autor. Sobrepondo o nariz às questões de foro íntimo e social, faz
dele o lugar da reunião dessas dicotomias. Olhar para si é esquecer-se dos outros, admirarse é submeter ao olvido as comparações com o mundo exterior. Diante de tudo isso, o
narrador conclui: ―Há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que
a subordina ao indivíduo‖. Poderia ter dito ―pecados capitais‖ para a sobrevivência do ser
humano naquela sociedade, pois os sentimentos que movem o personagem Brás Cubas,
neste capítulo, são a inveja e a vaidade; esta, representada pelo nariz, permite que o amorpróprio sobreviva diante das humilhações e das limitações sociais a que o personagem está
sujeito ou permite que ele sujeite os outros às suas próprias vontades.
Em 1882, um ano depois da publicação das Memórias póstumas, Machado traria a
público, nas páginas da Gazeta de Notícia, outro conto que desenvolvia a temática do nariz,
radicalizando ainda mais o conceito de vaidade e amor-próprio, tratado nos outros textos.
Em ―O segredo do Bonzo‖, inspirado nas narrativas fantásticas de Fernão Mendes Pinto,
Machado formula um conceito interessante sobre ilusão e realidade. Diogo Meireles, típico
charlatão, consegue provar que, se algo existe na imaginação, mas não existe na realidade,
de fato passa a existir, mas, quando ocorre o inverso, inexiste.
As nuances entre ilusão e realidade parecem ser dos temas preferidos de Machado,
mas, ao destacarmos esse conto, o fazemos pelo fato específico de o autor usar como
ilustração da teoria de Meireles o caso dos narizes da cidade de Fuchéu. Em resumo,
estando as pessoas dessa localidade acometidas de rara enfermidade que deformava os
narizes, o Sr. Diogo decide desnarigá-las e, no lugar, pôr um nariz imaginário,
146
ASSIS. O.C. Op. cit. vol. I. pág. 565.
183
convencendo a todos de que o órgão invisível de fato existia, apesar de ninguém conseguir
vê-lo na realidade.
Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia
delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes
substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim
curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no
lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o
órgão substituto, e que esse era inacessível aos sentidos humanos, não se
davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra
prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o
fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuavam a
prover-se dos mesmos lenços de assoar.147
Embora logrados, os habitantes da cidade continuavam cultivando a vaidade, pois
era melhor ater-se a um nariz ideal do que ter de suportar a deformidade do real. Assim, a
sublimação do indivíduo permanece e ele passa a acreditar naquilo que lhe é mais
proveitoso, desde que mantenha o seu amor-próprio. Logo, o real não importa à
humanidade, e sim a ilusão, ainda que absurda e impalpável.
O absurdo também é tema de um famoso escritor russo, Nikolai Gogol, em seu
conhecidíssimo conto ―O nariz‖. Assim como o comendador Nunes, personagem de
Machado, o major Kovalyov, do conto de Gogol, tem particular apreço por seu cargo e
posição na sociedade, mas tudo fica ameaçado quando o major acorda sem o nariz.
Caminhando pela estética do absurdo, a ironia de Gogol não poupa críticas à sociedade
russa do século XIX. A história torna-se mais inverossímil na medida em que Kovalyov sai
em busca do seu próprio nariz e o encontra, para seu espanto, trajando um uniforme de alto
funcionário do governo.
Ao se deparar com o improvável, Kovalyov tenta dialogar com o próprio nariz, que
se nega a reconhecê-lo e foge. Se é inconcebível que um nariz possa falar, como acontece
também em ―O bote de rapé‖, é ainda mais incrível imaginá-lo vestindo um uniforme,
descrito da seguinte maneira: ―usava um uniforme bordado em ouro, com uma gola alta,
147
ASSIS. O.C. vol. II. p. 328.
184
calças de camurça e uma espada do lado. Pelo chapéu de plumas podia-se concluir que ele
se considerava um conselheiro de Estado.‖148
O major Kovalyov passa toda a narrativa tentando reaver o que perdeu, e sempre há
um lamento por parte dele quando pensa nos privilégios sociais que deixará de ter por estar
deformado. Viver ―desnarigado‖, sem encontrar algo que substitua o nariz subtraído, é
como perder valor na sociedade, ser colocado à margem. No diálogo com o nariz, o major
faz a seguinte afirmação para tentar convencê-lo da importância de sua figura e da sua
necessidade de tê-lo no lugar adequado:
Claro que eu... aliás, eu sou major. O senhor vai admitir que não é
adequado, para mim, andar sem nariz. Uma velha que venda laranjas
descascadas na ponte Voskresensky pode se sentar lá sem nariz. Mas,
tendo a possibilidade de obter... e, além disso, conhecendo muitas damas
na família do conselheiro civil Tchehtarev e em outras... o senhor pode
concluir... Não sei, senhor... (...) Desculpe-me... se examinar a questão de
acordo com os princípios do dever e da honra...o senhor vai entender...149
Percebe-se que o major se preocupa unicamente com o seu papel na sociedade,
afinal ele não é qualquer um, como a pobre velha da ponte Voskresensky. O dever e a
honra de que fala no trecho são, na verdade, vaidade e status. Num determinado momento,
chega a desejar que houvesse alguma outra coisa no rosto substituindo o nariz, desde que
não permanecesse com aquele vazio entre os olhos e a boca. Como acontece com o alferes
Jacobina, personagem machadiano de ―O espelho‖, a farda e a ocupação parecem ser o
fulcro da vida do major Kovalyov. Com muita ironia, o narrador do conto de Gogol
insinua: ―É preciso dizer que Kovalyov se ofendia com facilidade. Perdoava tudo o que
dissessem a respeito dele mesmo, mas não perdoava insulto à sua categoria ou à sua
ocupação.‖
O papel social excede o moral, a ele se sobrepõe. O grande conflito não é perder o
nariz, mas o prestígio, o valor naquela sociedade. Poder-se-ia aplicar ao conto de Gogol a
mesma filosofia defendida em ―O espelho‖: ―Cada criatura humana traz duas almas
consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro‖.150 O nariz
148
GOGOL, Nikolai. ―O nariz‖. In: _____. O nariz e A terrível vingança. (Trad. Arlete Cavaliere). São Paulo:
EdUSP, 1990. p. 17-18.
149
Idem. p.18-19.
150
ASSIS. O.C. Op.cit. p. 346
185
de Kovalyov almejava um cargo superior ao que exercia no corpo do major, a alma exterior
estava cindida. Ao se reunirem novamente no final do conto, eis que a imagem exterior e
interior se reconciliam e retornam aos contornos de outrora. Assim, ao mirar-se no espelho,
Kovalyov encontra a mesma sensação de Jacobina, reconhece-se e tem de volta a posição e
o cargo. Novamente há estabilidade no retorno a si mesmo, ou melhor, no retorno, embora
paradoxal, ao ―eu exterior‖ perdido.
Embora o conto de Gogol desdobre uma abordagem fantástica, há uma advertência
nas linhas finais, com algumas impressões sobre a matéria narrada. Inicialmente, como o
corifeu do teatro grego, o narrador comenta os absurdos da história, critica todo o conteúdo
narrado, mas, no fim, conclui ironicamente:
E no entanto, apesar de tudo isso, embora, claro, se possa admitir o
primeiro ponto, o segundo e o terceiro... se possa até... mas não há
inconseqüências em toda parte? E no entanto, quando se reflete sobre
isso, há realmente alguma coisa nisso. Não importa o que se diga, essas
coisas acontecem – não com freqüência, mas acontecem.
Após esta pequena ―viagem à roda do nariz‖, fechando o grande parêntese que
abrimos, podemos dar início à leitura da peça ―O bote de rapé‖, mas voltaremos sempre
que necessário aos textos aqui descritos, assim como poderemos recorrer a alguns outros
para o esclarecimento de determinadas questões da peça machadiana.
O subtítulo da peça, ―comédia em sete colunas‖, já desperta a curiosidade à
primeira leitura. O termo ―sete colunas‖ parece ser uma indicação da formatação do texto
na página do jornal, no caso referindo-se à sua largura máxima. Infelizmente inexiste a
edição de O Cruzeiro na Biblioteca Nacional, devido a sua ausência nos arquivos, o que
nos impediu de verificar o formato em que o texto da peça foi publicado em 1878.
―O bote de rapé‖ começa com a entrada de Elisa em cena. No texto, há a indicação
de que ela entra já entra ―vestida‖, pronta para sair às ruas. Obviamente, é uma prova de
que há uma premeditação em suas ações, mas o marido parece não atentar para o detalhe.
Na verdade, a única preocupação de Tomé é com o seu nariz. Literalmente, o personagem
não enxerga ―um palmo adiante do nariz‖. Então, ele enceta o diálogo com a esposa,
afirmando que vai enviar um criado à rua para comprar o bote de rapé. Elisa prontamente
186
se oferece para cumprir a tarefa, como se encontrasse mais um pretexto para sair às
compras, sem encontrar qualquer resistência de Tomé.
Há um conflito na personagem, já que, ao mesmo tempo em que é solícita ao
marido para comprar o que ele deseja, profere uma crítica ao vício que ele possui, ainda
que em tom de riso. Como pode pôr-se a serviço de algo que ela mesma condena? Quando
Tomé reclama que a caixa de rapé está vazia, responde Elisa:
Elisa (Rindo): Oh! se pudesse estar
Vazia para sempre, e acabar, acabar
Esse vício tão feio! Antes fumasse, antes.
Há vícios jarretões e vícios elegantes.
O charuto é bom tom, aromatiza, influi
Na digestão, e até dizem que restitui
A paz ao coração e dá risonho aspecto.
Elisa tenta convencer o marido de que o rapé é ultrapassado, ―fora de moda‖. O
―bom tom‖ do charuto é indicador de classe social e, por conotar um status maior do que o
rapé, vício já em desuso, ganha propriedades medicinais que justificam seu emprego entre
as pessoas mais cultas.
Por outro lado, contrariando o discurso científico, veiculado na fala de Elisa, vem o
discurso religioso de Tomé, por sinal sacrílego, já que eleva o rapé ao plano espiritual e
divino. Assim, há a oposição ciência versus religiosidade, sempre muito presente nas obras
machadianas, marcando os dois pólos dessa discussão aparentemente ―ingênua‖. Eis o
discurso de Tomé:
Tomé: O vício do rapé é vício circunspecto.
Indica desde logo um homem de razão,
Tem entrada no paço, e reina no salão,
Governa a sacristia e penetra na igreja.
Uma boa pitada, as idéias areja;
Dissipa o mau humor. Quantas vezes estou
Capaz de pôr abaixo a casa toda! Vou
Ao meu santo rapé; abro a boceta, e tiro
Uma grossa pitada e sem demora a aspiro;
Com o lenço sacudo algum resto de pó
E ganho só com isso a mansidão de Jó.
187
A placidez de Tomé é outro ponto que merece atenção, pois é com ironia que a
esposa tratará da incapacidade do marido, de seu estado de inércia frente ao ambiente que o
cerca. Tudo indica que ele chegou a um estágio tal que não pode assumir o seu papel de
homem da casa e ocorre até um trocadilho no texto a respeito do assunto. Sutilmente à
leitura, mas com clareza na representação, vemos Elisa deixar alguns indícios de que algo
não vai bem no relacionamento do casal e que isso se deve ao comportamento passivo do
marido. Tomé afirma, no entanto, que o rapé pode até aumentar o amor entre ambos:
Tomé: Inda mais: até o amor aumenta
Com a porção de pó que recebe uma venta.
Elisa: Talvez tenhas razão; acho-te mais amor
Agora; mais ternura; acho-te...
Tomé:
Minha flor,
Se queres reviver aquele amor antigo,
Vai depressa.
Dois aspectos desta cena chamam-nos a atenção. Inicialmente, a frase de Elisa
―acho-te...‖ não se completa, mas, para efeito de diálogo, introduz-se a fala de Tomé que se
inicia com ―Minha flor‖. Como se trata de uma comédia em verso, pode-se dizer que o
autor lançou mão do recurso devido à métrica e à rima. Mas, para o efeito cômico, o
trocadilho é bem apropriado, ou seja, sugeriria que a ―flor‖ é Tomé. O outro aspecto é que
Tomé envia a mulher à rua com o seguinte conselho: ―Se queres reviver aquele amor
antigo,/ Vai depressa.‖. Para Tomé significa, obviamente, o amor que o rapé vai despertar
nele, mas fica subentendida a incitação para que a esposa parta em busca de ―reviver o
amor antigo‖, talvez, nos braços de outrem.
A cena II introduz novo diálogo, desta vez entre Tomé e o Nariz. Antes, há um
monólogo do personagem, questionando as constantes saídas da mulher. Agora temos o
retorno daquela mesma preocupação de Beatriz de ―Antes da Missa‖: conseguir roupa
adequada para ―desfilar‖ nos salões da Capital, nos bailes e nos saraus. A vaidade das
mulheres e a importância dos eventos sociais voltam a ser alvos da cena machadiana.
Tomé: Que zelo! Que lidar! Que correr! Que ir e vir!
Quase lhe falta o tempo de dormir.
188
Verdade é que o sarau com que o dr. Coutinho
Quer festejar os anos do padrinho,
É de primo-cartello, é um sarau de truz.
Vai o Guedes, o Paca, o Rubirão, o Cruz,
A viúva do Silva, a família do Mata,
Um banqueiro, um barão, creio que um diplomata.
Dizem que há de gastar quatro contos de réis.
Não duvido; uma ceia, os bolos, os pastéis,
Gelados, chá... A coisa há de custar-lhe caro.
O mau é que eu também desde já me preparo
A desprender com isto algum cobrinho...
O marido tenta justificar os excessos da mulher mostrando a relevância desses
eventos sociais e também observa, com certo orgulho, o nível e os títulos das pessoas que
os freqüentavam e os valores gastos com o banquete. Isso obrigaria Tomé a despender
algum dinheiro, um mal necessário, segundo afirma, para poder participar do seleto círculo
da alta sociedade.
Em suas produções literárias, Machado quase sempre nos apresenta o ambiente da
alta sociedade fluminense e destaca o vazio das relações, permeadas principalmente pelo
dinheiro e pelos títulos honoríficos. Os aspectos simples do viver são esquecidos para ceder
lugar às extravagâncias. O autor prefere dar ênfase à corrosão das relações pessoais,
aparentemente sólidas, mas baseadas na mentira e na hipocrisia. A crítica machadiana,
porém, nunca soa de maneira veemente, pois é suavizada pelo efeito cômico. O riso, no
entanto, se, por um lado, suspende a crítica explícita, por outro, deixa que ela fique
subentendida nos versos bem-humorados.
Depois do monólogo de Tomé, fala o Nariz, suplicando ao dono o bálsamo do
tabaco. O homem se surpreende ao vê-lo falar, mas, por fim, repara que também ele
necessita de um conforto. Num paralelo interessante, o Nariz replica: ―O nariz sem rapé é
alma sem amor‖. Ou seja, o nariz é a metáfora da alma do personagem, um é o outro.
Assim, a alma de Tomé está vazia, sem amor.
Além da necessidade de amor apontada pelo Nariz em relação à alma do dono, a
peça sugere, como já havíamos destacado linhas atrás, que a imagem de Tomé se associa
com a da ―flor‖. O Nariz mostra sua filosofia a Tomé, como a exigir dele mais ação e mais
atitude, quando este sugere que troque o cheiro do rapé pelo odor agradável da flor. O rapé
seria o elemento necessário para trazer de volta o vigor de Tomé e do Nariz, sua privação
189
faz ambos padecerem. Estranha-se o fato de o personagem querer substituir o rapé por
elemento em geral dissociado da personalidade masculina, como o perfume de flor. Como
o próprio Nariz afirma, esse tipo de cheiro está mais afeito aos narizes dos meninos e das
mulheres:
Tomé: Olha podes cheirar esta pequena flor.
O Nariz: Flores; nunca! jamais! Dizem que há pelo mundo
Quem goste de cheirar esse produto imundo.
Um nariz que se preza odeia aromas tais.
Outros os gozos são das cavernas nasais.
Quem primeiro aspirou aquele pó divino,
Deixa as rosas e o mais às ventas do menino.
Tomé
(Consigo): Acho neste nariz bastante elevação,
Dignidade, critério, empenho e reflexão.
Na cena descrita, o Nariz se recusa a cheirar o que Tomé lhe oferece e trata o rapé
como ―pó divino‖, portador de aroma superior a qualquer outro. A natureza divina do
espirro (provocado pelo rapé) remonta à mitologia. Prometeu, querendo dar vida a uma
estátua que construiu, subtraiu um raio de Sol e escondeu-o em sua tabaqueira, para que
Zeus não descobrisse. Tempos depois, esquecido do furto, aspirou o conteúdo da tabaqueira
e gerou, sem querer, o primeiro estrondo de um espirro. Os gregos consideravam o espirro
um augúrio, uma revelação.
Molière, por sua vez, abre a comédia Don Juan referindo-se a Aristóteles e ao uso
do rapé. Segundo os estudiosos de Molière, a peça é o primeiro texto literário a falar sobre
o uso do rapé na sociedade e da sua importância social. A cena de abertura de Don Juan,
protagonizada por Leporello, é muito significativa para que entendamos um pouco do que
Machado quis representar em ―O bote de rapé‖ e possui muitas semelhanças com as falas
de Tomé e do Nariz destacadas neste estudo:
Leporello (Com uma tabaqueira na mão): Diga o que diga Aristóteles e
toda a Filosofia, não há nada igual ao rapé. É a paixão dos nobres. Quem
vive sem rapé não é digno de viver. O rapé não apenas alegra e purifica
os cérebros humanos, mas conduz a alma à virtude. Com o rapé aprendese a ser um homem refinado. Não se dão conta, enquanto o consumimos,
de que maneira elegante nos comportamos com todos e com que graça o
oferecemos à esquerda e à direita, ali, onde nos encontramos? Antes
190
mesmo que nos solicitem, antecipemos o desejo alheio – tanto é assim
que o rapé inspira sentimentos de honra e virtude a todos os que usam.151
A ênfase concedida a esse emprego do tabaco se justifica se tomarmos como base o
ano em que a peça de Molière estreou: 1665. Na peça machadiana, o uso do rapé, pelo que
notamos no discurso de Elisa, já não possui o mesmo status e privilégio, embora o
protagonista ainda insista em manter um costume do século XVII.
Encontramos muitos pontos em comum entre o discurso de Tomé, na primeira cena
em que descreve os benefícios do tabaco, e a fala de Leporello. O personagem de Molière
define o rapé como ―a paixão dos nobres‖ que ―alegra e purifica os cérebros‖ e ―conduz a
alma à virtude‖, assim como ensina a ―ser um homem refinado‖. Tomé afirma que o vício
―areja as idéias‖, ―dissipa o mau humor‖, indica os ―homens de razão‖ e concede franca
entrada aos ambientes mais refinados e influentes da sociedade.
Considerando as aproximações que pudemos traçar entre o tema desenvolvido por
Machado e a abertura do Don Juan, não seria inviável a hipótese de Machado, como grande
admirador de Molière, conhecer o texto do dramaturgo francês e, através da leitura da peça
ou de sua representação, ter-se animado a desenvolver uma comédia inteira tendo como
mote a abertura do Don Juan. Especulações à parte, prossigamos no estudo da peça
machadiana.
Tomé considera os conselhos dados pelo Nariz e continua aguardando passivamente
a esposa retornar de sua ―missão‖. Se repararmos na atitude de Tomé, veremos que o
personagem está em conflito com a própria alma. Há duas naturezas contraditórias em
Tomé: uma que questiona e discorda (representada pelo Nariz), outra que cede e apazigua.
O rapé parece ser o único elemento que pode fazer o personagem retornar à univocidade.
A cena III, a do tão aguardado retorno de Elisa, inicia-se. A esposa de Tomé,
porém, só está preocupada consigo mesma e com os artigos que adquiriu para cultivar a
vaidade. Passa a apresentar ao marido todas as compras, sem deixar quase espaço para que
ele se manifeste. Elisa emenda uma fala na outra, revelando os itens adquiridos. Discorre
sobre vestidos, chapéus, botinas, tecidos, enfim, sobre os diversos artigos femininos
comprados nas casas de comércio fluminenses. A ansiedade de Tomé se eleva a ponto de o
Nariz reclamar com o dono e fazê-lo interromper a fala de Elisa, para saber de sua
151
MOLIÈRE. Don Juan. (Tradução de Celina Diaféria). São Paulo: Hedra, 2006. p. 19.
191
encomenda específica. Elisa, tão preocupada consigo mesma, esqueceu o simples pedido
do marido. A peça termina com a expressão aflita da esposa: ―Ai, Jesus! esqueceu-me o
bote de rapé!‖.
A conclusão a que se chega é que as modas e exigências sociais substituem aos
poucos a convivência familiar. Também se origina uma nova ordem na sociedade
patriarcal, em que o homem assume uma posição submissa, enquanto a mulher ganha as
ruas e passa horas longe de casa, e, muitas vezes, esquecendo-se de seus deveres de esposa.
Nota-se que em ambas as peças - ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖ – o tema se
fixa na mudança de hábitos das mulheres. Preocupação de moralista ou uma maneira de
castigar os maus costumes através do riso? Nos pareceres do Conservatório Dramático e
nas ―Idéias sobre o teatro‖, Machado aponta o caráter moralizador do teatro. Nesses
escritos, o escritor destacava como principal objetivo da cena brasileira a educação das
massas e a formação de um público crítico e refinado.
Do grande palco do mundo e das cenas da vida fluminense Machado extraiu
importantes lições que deram à sua obra uma face bem humorada, mas também
extremamente crítica em relação aos costumes sociais do século XIX.
3.2- Diálogo entre deuses e homens: Os deuses de casaca
No intervalo entre seus dois primeiros livros de poesia, Crisálidas e Falenas,
Machado publica uma comédia em verso que recebeu o título de Os deuses de casaca.
Escrita em 1864, foi representada pela primeira vez, segundo informação do próprio
Machado, no sarau da Arcádia Fluminense, em 28 de dezembro de 1865, e seria publicada
em janeiro de 1866.
A temática que serve de fundamento ao ideário da peça aborda as questões políticas
e econômicas da sociedade fluminense. O autor procura também salientar a militância do
192
meio jornalístico como principal veículo de manipulação da opinião pública.
Para
entendermos melhor o contexto da escrita de Os deuses de casaca, precisamos
contextualizar essa fase da vida de Machado de Assis.
Consideramos o período que vai de 1860 a 1867 o de consolidação da carreira do
jovem escritor, que publicaria os primeiros livros a partir de 61. Não se trata apenas de uma
questão de idade, de uma transição do adolescente para o homem adulto, mas de formação
profissional, de experiência no mundo das letras e, principalmente, do nascimento de um
perfil mais crítico e muito mais consciente em relação à vida social, política e literária do
Rio de Janeiro de seu tempo.
Até a década de 1850, Machado apreciava o ambiente literário com o olhar do rapaz
encantado pelo mundo dos ―deuses‖ da literatura. Todo aquele universo fascinante da
região central da cidade, os espetáculos e saraus, as livrarias e tipografias, o desfile de
sedas e casacas na Rua do Ouvidor, enfim, faziam parte de um mundo que, certamente,
deixavam qualquer jovem extasiado.
Em 1860, o jovem cultor das musas aceita o convite de Quintino Bocaíuva para se
tornar um dos redatores do Diário do Rio de Janeiro, veículo de muito relevo na capital do
Império, e que contava com a participação de grandes nomes do meio literário. Nessa
publicação de índole liberal, Machado iria moldar sua feição de jornalista, de redator e de
cronista, além de ter a oportunidade de vivenciar de perto as demandas sociais, políticas,
econômicas, religiosas e literárias de seu tempo. Permaneceria nesta função por sete anos e
assistiria à partida de muitos dos seus companheiros de pena, que abandonavam as musas
para alçarem vôos políticos, como Alencar e o próprio Bocaiúva. Testemunharia também a
decadência do jornal, entregue a mãos menos hábeis e mais comprometidas com outros
interesses, aquém dos literários.
Em nenhum outro momento da carreira encontramos um Machado tão francamente
militante quanto o do Diário do Rio de Janeiro, debatendo com políticos, defendendo
opiniões explícitas, entrando em litígio com a Igreja Católica, questionando dogmas e
atitudes de pessoas influentes e, finalmente, abandonando aquele perfil ingênuo e religioso
a que demonstrava estar filiado na adolescência.
No debate político, tentando demonstrar a união de Estado e Igreja na manutenção
de dogmas e utopias que favoreciam a dominação política e econômica da sociedade
193
brasileira, recorria muitas vezes ao sarcasmo, usando principalmente o viés religioso para
falar dos ―ilustres‖ membros do senado e da câmara, ou para comentar o último discurso
deste ou daquele homem público.
Quanto ao folhetinista, adotando um perfil irônico por natureza, Machado lhe
conferiria um papel profético, como a voz que porta as verdades e as anuncia às massas.
Chega a admitir numa das crônicas que a função que desempenha é uma espécie de
apostolado, pois, através de um discurso convincente, poder-se-ia converter as almas mais
crédulas, no caso, as dos leitores.
Não seria o primeiro a retratar desse modo a atividade do cronista. Especificamente
no período em questão, em que Machado busca consolidar a carreira de cronista, há muitos
pontos de contato entre a sua abordagem e a de Paranhos, o Visconde do Rio Branco, de
quem seria grande admirador. Nas Cartas ao Amigo Ausente, crônicas publicadas no Jornal
do Commercio na década de 50, o então jovem Paranhos apresentava-se como um profeta a
vaticinar o desfecho de determinados assuntos, desta ou daquela maneira, a partir da
observação da cena pública. De igual modo, concentrando a sua atenção nos homens
elegantes e nos políticos que se sentavam nas cadeiras da loja de Desmarais, célebre
perfumaria da cidade, para discutirem as questões mais recentes do cenário político,
comparava-os aos ―deuses do Olimpo‖, que ali se reuniam para decidirem o destino da
sociedade brasileira.
Nelas [nas cadeiras da loja de Desmarais] se repimpam os nossos
elegantes e políticos, e, como as divindades do Olimpo, cercados de
límpidas nuvens que se desprendem dos seus vaporosos havanas, ali
analisam o passado, predizem o futuro, dissertam em comissão geral
sobre o baile e a política, aguçam o apetite e dilatam o espírito.152
Merece um estudo mais detido a influência de Paranhos na escrita das crônicas
machadianas do decênio de 60, principalmente pelo tom de crítica aos parlamentares e a
constante alusão à decadência da Igreja, num discurso que se aproxima muito dos textos de
Dante, principalmente De Monarchia, onde o monarca ainda é reconhecido como a figura
mais coerente para reger um país, graças ao seu perfil unificador. O Visconde declararia
152
PARANHOS, José Maria da Silva. Cartas ao Amigo Ausente. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras, 2008. p. 373.
194
abertamente sua crença religiosa e política no Monarca de maneira mais contundente que
Machado, embora este tenha sempre demonstrado uma profunda admiração pelo
Imperador, em sua dimensão humana, e não divina, como Paranhos (e também Dante)
pretendia.
Entretanto, para não nos estendermos além da questão aqui objetivada, nos
deteremos especificamente nas crônicas publicadas no Diário, deixando o caminho
sugerido para os futuros pesquisadores da obra machadiana.
Em crônica de 12 de junho de 1864, usando o discurso religioso como pretexto,
Machado fala sobre um determinado discurso do Barão de São Lourenço, em réplica a
algumas críticas anteriormente feitas por Machado no Diário:
Também o folhetim tem cargo de almas. É apóstolo e converte. Fácil
apostolado, é certo. Não há terras inóspitas ou áridos desertos, aonde levar
a palavra da verdade; nem corre o risco de ser decapitado, como São
Paulo, ou crucificado como São Pedro. (...). É cômodo, e nem por isso
deixa de ser glorioso.
Deste modo o folhetim faz de ânimo alegre o seu apostolado. Entra em
todo lugar, por mais grave e sério que seja. Entra no Senado, como S.
Paulo entrava no Areópago, e aí levanta a voz em nome da verdade, fala
em tom ameno e fácil, em frase ligeira e chistosa, e no fim do discurso
tem conseguido, também como S. Paulo, uma conversão.
O Sr. Barão de São Lourenço foi o meu Dionísio. S. Ex. veio reconciliarse com as musas. Foi para isso que ocupou a tribuna terça-feira passada
(...)153
Misturando elementos pagãos e cristãos, o cronista aborda a questão política, tanto
da tribuna quanto do jornal, como uma batalha entre campos opostos. Como se houvesse
um retorno à Antiguidade, cristãos e pagãos disputam terreno diante de suas crenças e
opiniões. Entre os apóstolos cristãos e o ―Dionísio‖ do parlamento, o cronista diz que o
último teria se reconciliado com as musas. Machado desenvolve a ironia, dirigindo-se ao
parlamentar como se fosse porta-voz da provável reprimenda da musa. Despe-se das vestes
apostólicas para vestir o manto dos clássicos adivinhos:
A musa, ignorando se S. Ex. está ou não sinceramente convertido, hesitou
se devia escrever em prosa ou em verso. Uma terceira forma, que não
153
ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. Vol 2. Rio de Janeiro; São Paulo: Livro do Mês S.A, 1962.
P. 7-8
195
fosse nem verso nem prosa, resolvia a questão; mas essa só o ilustre barão
ou Mr. Jourdain no-la poderia indicar. Achei um meio-termo. Descosi os
versos da referida musa, e arranjei a obra, de modo que pode ser
indistintamente verso ou prosa. Hei de publicá-la depois.154
Se considerarmos o teor do prólogo de Os deuses de casaca, podemos nele
reconhecer alguns traços dessa promessa machadiana, a saber, a de publicar uma obra que
fundisse prosa e poesia. Entretanto, a intenção da peça não se restringe a uma resposta
específica a este ou aquele parlamentar: sintetiza todos os discursos políticos, assim como o
pensamento que predomina nas chamadas ―democracias‖ do mundo ocidental. A aparente
―alegoria‖ dos deuses da peça seria uma demostração paródica do discurso utópico da
política e da religião com a finalidade de manipular a opinião pública a seu favor.
Um outro alvo de Machado, além da tribuna política, era a folha católica A Cruz,
contra qual se dirigiu muitas vezes para refutar condenações feitas a obras como, por
exemplo, as de Ernest Renan. Para o cronista, era inadmissível a vigilância ideológica
exercida pela Igreja, principalmente ao emitir pareceres condenatórios acerca desta ou
daquela obra de arte, ou ao cercear a leitura de algum escritor clássico ou contemporâneo.
Sobre a natureza dessa publicação católica chega a afirmar:
A Cruz é realmente cruz: serve para experimentar a fé dos católicos; se no
fim de um mês de leitura, o católico não tem perdido a fé em que vive, está livre de tornar-se herege. Isto é o que acontece nas outras partes, com
outros jornais do mesmo gênero, quer se chamem o Universo, a Nação ou
155
a Cruz.
O cronista se insurgia contra a religião e contra a política, sempre se valendo de
metáforas cristãs ou pagãs para efetuar as críticas. Em 22 de agosto do mesmo ano,
formularia um pequeno diálogo entre dois deuses da mitologia, Palas e Mercúrio, para
ridicularizar a afirmação de certo deputado, que via a urgente necessidade de ―uma forte
organização militar‖ para o Brasil se fazer respeitar frente às demais nações.
Despovoado o céu dos pagãos, tenho para mim que lá ficaram dois
deuses, aceitos pelo tempo, Mercúrio e Palas; esta, armada em guerra.
Assim, quando em janeiro de 1863 se deu no nosso porto o fato das
154
155
Idem. p. 10.
Idem. p.66.
196
represálias britânicas, imagino que houve entre as duas divindades o
seguinte diálogo:
PALAS - Ah! O império resistia, armava-se do direito contra as minhas
fragatas! respondia com altivez! levantava a cabeça diante de meu
canhões! – Pois agora sofra as conseqüências do erro.
MERCÚRIO – Longe de mim, ó Palas, contrariar o teu justo
ressentimento; mas lembro-te que, na desforra legítima que tomaste, fui
eu quem sofri... (...)156
A feição anticlerical do Diário encontrava apoio na pessoa do diretor Saldanha
Marinho, que, segundo pesquisa de Ubiratan Machado, era ―liberal, maçon, republicano,
gostando de assumir posições avançadas‖157. A amizade entre o jornalista e o escritor se
consolidou nos anos em que ambos trabalharam na redação do jornal, e se estendeu além
do vínculo estritamente profissional, pois Machado foi um dos seus amigos pessoais. No
Diário, Machado teria a liberdade de exprimir as opiniões, de comentar a cena política, de
descrever cenas da vida cultural, dos espetáculos teatrais; enfim, a pena do cronista seria
franca e direta na exposição de suas idéias.
Em 1865, recordando-se de Monte Alverne, a quem dedicou um poema de
juventude, em oposição aos pregadores do seu tempo, intensificaria as críticas à Igreja
discorrendo acerca da decadência do clero e da mediocridade de seus principais oradores. É
impressionante o conhecimento que Machado demonstra dos textos morais, filosóficos e
catequéticos da Igreja, como o Flos sanctorum, assim como, posteriormente, revelaria
interesse em outras leituras do gênero, como a Súmula de São Tomás, os textos
agostinianos, episódios da vida de santos etc. Portanto, pode-se afirmar que as leituras de
Machado não se restringiam ao campo literário, mas se ampliavam para diversas áreas de
conhecimento e revelavam os interesses distintos e múltiplos do autor.
Surpreende-nos também a veemência dos textos do Diário, principalmente porque
temos arraigada a figura do Machado dissimulado e oblíquo da maturidade, atrás de seu
pince-nez, cortesmente protegido das opiniões categóricas, ou, ainda, a imagem de um
homem sem convicções religiosas. O que aparece nas linhas do jornal é um homem
preocupado com o declínio das instituições, principalmente da Igreja, e que assiste ao novo
cenário com um olhar de lamento.
156
157
Idem. p. 109.
MACHADO, Ubiratan. Dicionário de Machado de Assis. Op.cit. p. 214.
197
O cronista não comenta apenas os espetáculos teatrais e líricos a que assiste, mas
trata também dos discursos do púlpito, dos sermões eclesiásticos que presencia. Em 15 de
março de 1865, ao descrever detalhadamente uma das missas que assistiu, temos delineadas
as impressões que constam no poema ―Ite missa est‖, de Falenas, como uma espécie de
canto de cisne: o gradual desengano religioso do jovem cultor das pregações de Monte
Alverne. Ao comentar o sermão mais recentemente assistido, reclama, principalmente, de
que o pregador se prende mais à descrição detalhada dos horrores do inferno do que à
evocação do Calvário como lugar de redenção e de arrependimento.
De há muito tempo que a palavra sagrada serve de instrumento aos
incapazes e aos medíocres. Há, sem dúvida, exceções, mas raras; há
alguns talentos mais ou menos provados, mais ou menos legítimos; mas o
púlpito vive, sobretudo, da sombra luminosa dos Sampaios e
Mont‘Alvernes. Fecharam-se as bocas de ouro e abriram-se as bocas de
latão.(...)
Fomos ouvir o pregador. O verbo ouvir é de rigorosa verdade. A igreja
estava às escuras, era sexta-feira santa (...) O pregador começou, como
todos os outros, por um tom lamentoso, de efeito puramente teatral. (...)
Estamos certos de que o clero, se estas linhas lhe chegam aos olhos,
perdoarão ao pecador que assim fala, mesmo em tempo de penitência.
O tempo de penitência não impede também que se fale em teatros. Ambas
as coisas podem existir sem prejuízo para a religião. Prejuízo havia no
tempo em que o gênero sacro estava em voga, e escolhia-se cada ano uma
página do Flos Sanctorum para divertir o público pagante das platéias. 158
Machado veria o altar como um palco de encenação e de máscaras, onde um
pregador, velado pelas sombras da sacra nave, retoma as práticas medievais da Igreja,
recorrendo à representação dramática das cenas do inferno para impor ao público o medo
do Juízo Final. Isso seria um retrocesso na medida em que, no lugar de se apelar para a
razão dos ouvintes, cedia-se ao antigo método da imposição das idéias através do horror.
Em 1865, com a saída de Saldanha Marinho da direção do Diário do Rio de
Janeiro, assim como a de César Muzzio, um de seus principais redatores 159, para ocuparem
cargos políticos em Minas Gerais, Machado assumiria sozinho grande parte das atribuições
da folha. O trabalho excessivo na redação, o distanciamento dos amigos, a mudança de
direção do jornal foram fatores determinantes para o escritor entrar num período de
158
159
ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. Op. cit. p. 327- 329.
Idem. p. 109-111.
198
extrema insatisfação para com sua atividade nesse veículo. Sentia-se menos à vontade para
opinar e já não podia falar abertamente de temas que provocassem maior polêmica.
De 1865 a 1866, Machado passaria por momentos de turbulência na vida
profissional, já que buscava outra ocupação para se desvencilhar definitivamente do Diário.
Esse período também seria marcado pela decepção amorosa, tendo em vista que a musa
―Corina‖ partia do Brasil, rompendo os laços que a prendiam ao jovem escritor. Sua Corina
abandonava a cena brasileira, assim como os amigos do teatro e do jornal resolveram
abdicar das Letras em favor da carreira política.
Talvez com a intenção de acompanhar os amigos, e/ou de romper definitivamente
com o Diário, Machado tenha cogitado da hipótese de se fazer deputado por Minas Gerais,
província onde Marinho e Muzzio exerciam mandatos políticos. Contudo, seu
temperamento o fez desistir do pleito antes de oficializar a candidatura.
Tecido o pano de fundo, podemos finalmente constatar o que teria influenciado o
autor na escrita de Os deuses de casaca, peça em que retrata a incursão dos deuses no
cenário político do Rio de Janeiro da época. Sugere uma espécie de lamento pelo fato de
grandes homens das Letras estarem declinado do Parnaso em nome da carreira política. Ao
mesmo tempo, o poeta dramático retratava o jogo de disfarces na cena pública, da tribuna à
imprensa, que visava unicamente a servir às causas pessoais, em vez de pleitear o bem
comum da sociedade.
O prólogo revelaria uma proposta de se criar um nível intermediário entre prosa e
poesia, assim como se pretende mesclar a fantasia à realidade. Tratando da fábula de outros
tempos, Machado prefiguraria as questões do seu tempo, como se a peça servisse de molde
para retratar a política e a religião como os principais instrumentos de manutenção e
legitimação do poder.
Partindo de um contexto primordialmente alegórico, dos deuses mitológicos, a peça
retrata as relações de poder existentes na sociedade fluminense, mas não se limita ao
particular e ao local. O pequeno mundo fluminense reflete o contexto universal, o cenário
político e ideológico da sociedade humana, prefiguração de todos os tempos e espaços
regidos pelo pensamento e pela disposição do homem.
199
Mudem-se, embora, os contextos, sempre é exibido o mesmo espetáculo humano, o
desfile dos séculos, a inesgotável repetição de idênticas cenas, como já havíamos verificado
no poema ―O desfecho‖.
O poeta, um tanto audaz, quis pôr o engenho à prova
Em vez de caminhar pela estrada real,
Quis tomar um atalho. Creio que não há mal
Em caminhar no atalho e de nova maneira.
Muita gente na estrada ergue muita poeira,
E morrer sufocado é morte de mau gosto.
Foi de ânimo tranqüilo e de tranqüilo rosto,
À nova inspiração buscar caminho azado,
E trazer para a cena um assunto acabado.
Para atingir o alvo em tão árdua porfia,
Tinha a realidade e tinha a fantasia
Dois campos! Qual dos dois? Seria duvidosa
A escolha do poeta? Um é de terra e prosa,
Outro de alva poesia e murta delicada.
Há tanta vida, e luz, e alegria elevada
Neste, como há naquele aborrimento (sic) e tédio.
O poeta o que fez? Tomou um termo médio,
E deu para fazer uma dualidade,
A destra à fantasia, a sestra à realidade,
Com esta viajou pelo éter transparente
Para infundir-lhe um tom mais nobre... e mais decente.
Com aquela, vencendo o invencível pudor,
Foi passear à noite à rua do Ouvidor.
Mal que as consorciou com o oposto elemento,
Transformou-se uma e outra. Era o melhor momento
Para levar ao cabo a obra desejada.160
Nos versos da comédia, Machado retoma os dois gêneros - alto, da poesia, e baixo, da
prosa - transpondo-os para o terreno oposto. As suas naturezas permanecem as mesmas,
apenas transplantadas para outro plano. Fantasia e poesia saem do plano etéreo, espaço
reservado a ambas, e passam a freqüentar a terra firme, o áspero terreno da realidade. De
igual modo, a prosa e o real vão para as regiões celestes e aéreas da imaginação. O escritor
torna relativas as concepções cristalizadas em ambos os discursos. Por isso opta pelo termo
médio e, assim, passa a ter uma visão plena dos extremos sem privilegiar nenhum dos
lados.
160
ASSIS. Os deuses de casaca. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1866. p.5.
200
Adotando uma terceira via, como havia proposto ao Barão de São Lourenço, o poeta
escolhe uma ―terceira margem‖, onde o objeto literário se indefine, se generaliza, ao perder
suas características próprias e, ao mesmo tempo, se particulariza, no momento em que
assimila o termo oposto, sem se transformar naquele. Da fusão entre ambos, surge uma
forma original que traz a marca do autor.
O que muitos definiriam como ―alegoria‖ na obra machadiana, na verdade, é uma
síntese prefigurativa, que parte de um contexto inicialmente alegórico, fantasioso, para
atingir outro alvo, a realidade. Não uma dada realidade, fixada no tempo e no espaço, mas
o núcleo do real existente no passado, que se prolonga no presente e se lança ao futuro.
Primeiramente, o prólogo apresenta a ―estrada real‖, mas logo se envereda por um
atalho. Esse outro caminho, por sua vez, é duplo: de um lado a fantasia, de outro a
realidade, dois campos opostos. Ao efetuar a oposição ―destra‖ e ―sestra‖, tomando como
exemplo uma das ruas fluminenses, não há como deixar de lado a contextualização espacial
do Centro do Rio, à época, composta pelo cruzamento da Rua Direita (atual Primeiro de
Março) com a Rua do Ouvidor, citada nominalmente no prólogo.
Joaquim Manuel de Macedo, em Memórias da Rua do Ouvidor, nos fornece um
pouco da história e das lendas que circulavam na época acerca do surgimento dessa via.
Embora obra posterior à peça machadiana, o texto de Macedo é esclarecedor, visto que nos
concede uma imagem concreta daquilo que Machado esboça no prólogo de Os deuses.
Mas em ano que correu entre o de 1568 a 1572 alguns colonos abriram à
pouca distância do começo da rua que se denominou Direita uma estrada
em ângulo reto com ela, e cada qual foi improvisando grosseiro ubi para
si e para a família (...).
E, curiosa, interessante, notável, notabilíssima idéia ou inspiração
daqueles colonos portugueses tão bisonhos e tão sem malícia!... como
aquela aberta ainda não era rua, e eles precisavam designá-la por um
nome, chamaram-na Desvio do Mar. Desvio!... Eis o berço da bonita,
vaidosa e pimpona atual Rua do Ouvidor! Fica, pois, historiado que ela
nasceu de um desvio, e desvio da Rua Direita, ou do caminho direito, o
que, a falar a verdade, não era de bom agouro. 161
Essa acepção da Rua do Ouvidor como lugar de ―desvio‖ era consenso naquele
tempo, já que, sendo uma via movimentada, era freqüentada por homens e mulheres que se
161
MACEDO, Joaquim Manuel de. Memórias da Rua do Ouvidor. Brasília: Ed. UnB, 1988. p. 8.
201
expunham à vista de todos, assim como ficavam expostos ao apelo de toda sorte de
produtos, guloseimas, artigos de luxo, jóias, enfim, uma variedade de produtos agradáveis
ao desejo humano. A rua estava fadada a apresentar aos transeuntes as ―tentações‖, tanto no
campo amoroso, quanto no financeiro. Não é à toa que, em ―O bote de rapé‖, Machado
tenha colocado Elisa circulando sem o marido por esta rua. Insinua que, assim como a
personagem se expôs ao frenesi das compras, também poderia deixar-se cortejar por outro
homem, a ponto de se esquecer da incumbência dada pelo marido.
Uma inegável filiação, ainda mais relevante nesse prólogo machadiano, aponta para
o tópico já desenvolvido acerca da dupla natureza do verso, do valor implícito e do
explícito que revela/oculta seus sentidos aos leitores. As duas vertentes, ou concepções,
nele presentes remeteriam ao conflito goethiano apresentado no Fausto: ―Oh, duas almas
no meu seio moram!‖, expressão também usada para definir a personagem Flora, do Esaú e
Jacó. O mesmo procedimento de Machado na introdução da peça já se encontrava
delineado na tragédia de Goethe, que, de certa forma, serve de mote para a concepção de
Os deuses. Basta compararmos o prólogo de machadiano à referida fala de Fausto:
Vivem-me duas almas, ah! no seio,
Querem trilhar em tudo opostas sendas;
Uma se agarra com sensual enleio
E órgãos de ferro, ao mundo da matéria;
A outra, soltando à força o térreo freio,
De nobres manes busca a plaga etérea.
Ah, se no espaço existem numes,
Que tecem entre céu e terra o seu regime,
Descei dos fluidos de ouro, dos etéreos cumes,
E a nova, intensa vida conduzi-me!
Sim! fosse meu um manto de magia,
Que a estranhos climas me levasse prestes,
Pelas mais deslumbrantes vestes,
Por mantos reais eu não os trocaria.162
Fausto fala de duas almas que desejam planos diferentes: uma busca a fantasia e o
espaço etéreo, enquanto a outra se apega ao plano da matéria. Machado, a partir dessa
oposição, decide inverter a proposta goethiana, ou seja, em vez de se deixar guiar pelas
duas naturezas, conduz uma e outra para opostas sendas. Do mesmo modo, enquanto o
162
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 119.
202
personagem de Goethe almeja o manto de magia dos deuses, que não trocaria nem mesmo
pelos mantos reais desse mundo, Machado põe os numes descendo do Olimpo e se
despindo de suas magias e poderes, unicamente para se apoderarem das ―casacas‖ dos
homens elegantes e dos políticos do seu tempo.
Em crônica já referida, Paranhos havia comparado os homens influentes aos deuses
do Olimpo. Em Os deuses, o dramaturgo daria ―engenho à prova‖, invertendo a questão e
fazendo os próprios deuses cobiçarem as funções da tribuna e da imprensa na sociedade
humana, assim como Júpiter assume o topo da pirâmide social: a posição de banqueiro.
Uma das primeiras falas de Júpiter realça a natureza insondável dos homens, que,
devido à eterna inconstância de seus corações, não mais crêem nos deuses. Ao contrário,
porém, do que se imagina, o desejo do homem muda na forma, mas não no fundo. Se o
indivíduo deixa para trás os deuses antigos, é porque sua crença não se fundamenta na
tradição, mas na constante substituição dos valores por outros de maior proveito.
De acordo com a ideologia de uma época, alternam-se determinados modelos, para
garantir o anseio humano pela novidade. No entanto, o fundamento primordial permanece
inalterado.
[Júpiter]: Bem me dizias, Momo, o coração humano
Devia ter aberta uma porta, por onde
Lêssemos, como em livro, o que lá dentro esconde.
Demais dando juízo ao homem, esqueci-me
De completar a obra e fazê-la sublime
Que vale esse juízo? Inquieto e vacilante,
Como perdida nau sobre um mar inconstante,
O homem sem razão cede nos movimentos
A todas as paixões, como a todos os ventos.
(...)
Corres hoje a Paris, como a Atenas outrora;
A sombria Cartago é a Londres de agora.
Ah! pudesses tornar ao teu estado antigo!
Aos poucos, porém, Júpiter percebe que o mundo dos homens tem atraído também
os deuses que cedem aos encantos da sociedade. As deusas, assim como Eva, são as
primeiras a se renderem aos encantos da vida elegante da Corte. Vênus, por exemplo,
outrora nua (como na sua acepção clássica), opta pelos elegantes trajes das damas da
sociedade. Fazendo um trocadilho entre a origem da deusa e as suas vestes atuais, o
203
comediógrafo faz um jogo de palavras na fala de Vulcano: ―Foi nua, agora não. A beleza
profana/ Busca apurar-se a favor da arte humana./ Enfim a mãe de Amor era da escuma
filha,/ Hoje Vênus, meu pai, nasce... mas da escumilha*.‖163
Marte, por sua vez, lamenta-se da diplomacia, que impede o espetáculo das guerras,
dando lugar aos conflitos dissimulados, que matam mais pela astúcia do que pela força
bélica. Estende sua queixa, mostrando como se processa o efetivo conflito da atual
sociedade, a qual chama de Babel (lugar de confusão, como a torre bíblica da cidade de
Babilônia).
Que acontece daqui? É que nesta Babel
Reina em todos e em tudo uma coisa – o papel.
É esta a base, o meio e o fim. O grande rei
É o papel. Não há outra força, outra lei.
A fortuna o que é? Papel ao portador;
A honra é de papel; é de papel o amor.
O valor não é já aquele ardor aceso;
Tem duas divisões – é de almaço ou de peso*.
Enfim, por completar esta horrível Babel,
A moral de papel, faz guerra de papel.164
O papel, principalmente o papel-moeda, assume o lugar de supremo monarca.
Todas as relações serão permeadas pelo valor pecuniário, assim como os grandes embates
surgirão na imprensa, onde a escrita torna-se efetiva ―guerra de papel‖.
Paranhos também empregaria o termo ―Babel‖ para designar a sociedade brasileira,
embora Machado tenha usado a expressão de maneira mais genérica, para nomear a
sociedade criada pelo homem sob a égide da democracia. Assim discursaria Paranhos: ―(...)
só como historiador de fatos tocarei em matéria que se refira à bifaceira política do belo,
fértil, mas infeliz Brasil. A crônica que nesta Babel se passar de mais notável e divertido, e
que puder ser tirada à luz (...), é assunto sobre que versarão as minhas missivas.‖165
* Tecido fino e transparente de seda usado nos vestidos da época, ou como uma espécie de xale para
complementar o traje.
163
ASSIS. ―Os deuses de casaca‖. Vol 2. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 2004. p. 124.
* Dois tipos de papel usados no período. O ―almaço‖ servia para a escrita em si e o ―de peso‖ era usado para
cópia de moldes, como hoje se faz com o papel vegetal. Sugere uma oposição entre o opaco e o translúcido.
164
Idem. p. 125.
165
PARANHOS. Op. cit. p. 3.
204
Tratando ainda da questão do papel-moeda, na cena do ―Palatinado Imperial‖ do
Fausto, de Goethe, Mefisto introduz a sugestão do papel-moeda para dar fim aos conflitos
e a escassez do Império, e incita o Astrólogo a profetizar uma nova era de abundância, em
que os deuses seriam os primeiros a escolherem o caminho da Fortuna. Soprada pela boca
de Mefistófeles, o adivinho declara:
O próprio Sol é de ouro verdadeiro;
Mercúrio é dele servo interesseiro,
A dama Vênus é quem vos seduz:
A vosso olhar cedo e tarde reluz
Caprichos são da casta Luna e arte;
Guerreia e ameaça o belicoso Marte.
Júpiter é o astro máximo noturno,
(...)
Mas quando ao Sol se junta a argêntea Luna,
Prata com ouro, o mundo é de fortuna!166
Embora alguns pesquisadores interpretem o trecho como uma sugestão alquímica
para a fusão de metais, com o propósito de transformar cobre em ouro, o que fica patente é
que Mefisto intenta substituir a crença mística nos deuses pelo apego aos bens materiais.
Essa mesma impressão o Marte machadiano tenta transmitir ao público, mostrando que a
sociedade trocou o ―valor antigo‖ por uma ―moral de papel‖, já que o dinheiro torna-se a lei
vigente e o único rei daquele tempo.
Na peça machadiana, Cupido é o sedutor dos outros deuses, conseguindo encontrar
na sociedade humana uma nova função para cada um deles, de maneira que recuperem o
prestígio de outros tempos e adaptem-se às novas ocupações. Fazendo uso da sedução
retórica, ou, mesmo, da sedução amorosa (sendo as deusas humanizadas, Juno, Diana e
Vênus, suas iscas) convence-os um a um e, por fim, ao próprio Júpiter.
Apolo, deus da poesia, lamenta o declínio da Letras, uma vez que os poetas não lhe
pedem mais inspiração. Deixam-se levar por outros engenhos, e até apelam para o coice de
Pégasus, como se o cavalo passasse a ser a nova fonte de inspiração daquele tempo. Os
álbuns das moças, por sua vez, aprisionavam os versos, fazendo do poema um objeto
166
GOETHE. Fausto. 2ª parte. Op. cit. p. 75.
205
particular, completamente distante do ideal da poesia clássica, cujo propósito era apregoar
o canto aos quatro ventos, e imortalizá-lo através das vozes dos aedos.
Não resistindo aos apelos de Cupido, Apolo decide largar o ofício de poeta para
tornar-se crítico: ―Quero um cargo distinto, alto acatado e sério./ Com a pena da verdade e
a tinta do critério/ Darei as leis do belo e do gosto. Serei/ O supremo juiz, o crítico.‖167
Também Marte rende-se às leis humanas e elege a imprensa como o lugar ideal para
continuar a sua antiga função de ―deus da guerra‖: ―Em vez de usar broquel, vou fundar
uma folha./ Dividirei a espada em leves estiletes/ Com eles abrirei campanhas aos
gabinetes./ Moral, religião, política, poesia,/ De tudo falarei com alma e bizarria.‖
Vulcano, ao ver Marte na lida jornalística, decide usar a forja para fazer penas de
ferro e, assim, fornecer o instrumento adequado aos combates daquele tempo. Também
Mercúrio passa a servir ao deus da guerra, promovendo as intrigas políticas como
mensageiro das mentiras e boatos da ocasião. Como prêmio, fará jus a uma candidatura:
―Da rua ao gabinete, e do paço ao tugúrio/ Farás o teu papel, o papel de Mercúrio;/ O
segredo ouvirás sem guardar segredo./ A escola mais rendosa é a escola do enredo‖.
Júpiter, como supremo deus do Olimpo, convence-se de que a posição que lhe cabe
é a de banqueiro. Se associarmos a imagem de Júpiter a um dos seus nomes antigos,
―Pecúnia‖, a função escolhida é bastante pertinente. Mas o principal argumento é fornecido
por Mercúrio, ao sublinhar que os bens financeiros e o prestígio social permitiriam ao
supremo deus do Olimpo que permanecesse como o exímio namorador que sempre foi.
Mais do que nunca a ―moral de papel‖ se renderia ao ―papel-moeda‖ de Jove namorador.
Trocaria, assim, o manto divino pela casaca de ―Raunier‖, muito mais apropriada para
seduzir do que as constantes metamorfoses de Júpiter.
Sim, o mundo caminha, o mundo é progressista:
Mas não muda uma coisa: é sempre sensualista.
Não serás, por formar teu nobre senhorio,
Nem cisne ou chuva de ouro, e nem touro bravio.
Uma te encanta, e logo à tua voz divina
Sem mudar de feições, podes ser... crinolina.
De outra soube-te encher o namorado olhar:
Usa do teu poder, e manda-lhe um colar.
A Constança uma luva, Ermelinda um colete,
Adelaide um chapéu, Luísa um bracelete.
167
Idem. p. 138.
206
E assim, sempre curvado à influência do amor,
Como outrora, serás Jove namorador!
As artimanhas de Jove cedem espaço ao poder material, muito mais atraente que os
recursos mágicos. Ao contrário do que inicialmente deseja Fausto - um manto de magia - o
mundo real exige meios mais consistentes, talvez por isso o personagem goethiano
abandone a idéia inicial, assim como seu pequeno quarto de trabalho, para tomar assento no
vasto mundo que Mefistófeles lhe oferece.
O Júpiter machadiano também se despe, no final da peça, das vestes divinais, e
abandona os recursos mágicos unicamente para assumir um reino humano, governado pelas
relações materiais. Seguiria o mesmo percurso de Próspero, que lança fora a magia e
abandona a ilha mística, para ocupar o ducado de Milão.
Dentre os deuses da peça, o que mais nos chama a atenção é Proteu, o deus que
pode mudar constantemente de forma. A este é reservada a carreira política onde,
alterando-se conforme o gosto, revela sempre a face mais conveniente. Passa deste para
aquele lado, agradando à situação e à oposição, indistintamente. Serve a Sancho ou a
Martinho, nomes usados na política para designar partidos opostos; elogia a Pedro ou a
Paulo, os dois apóstolos que seguiram a doutrina cristã por meios distintos. Estado ou
Igreja servem-lhe com suas ideologias, consolidando o desejo de se manter no comando.
Proteu resume o sentido utópico da soberania nacional como instrumento
habilmente manipulado pelas estratégias de poder.
[Proteu]: O dom de transformar-me, à vontade, a meu gosto
Torna-me neste mundo um singular composto.
Vou ter segura a vida e o futuro. O talento
Está em não mostrar a mesma cara ao vento.
Vermelho de manhã, sou de tarde amarelo;
Se convier, sou bigorna, e se não, sou martelo.
Já se vê, sem mudar de nome. Neste mundo
A forma é essencial, vale de pouco o fundo.
(...)
Quem subiu? Pedro e Paulo. Ah! que grandes talentos!
Que glórias nacionais! Que famosos portentos!
O país ia à garra e por triste caminho,
Se inda fosse o poder de Sancho ou de Martinho.
Mas se cena mudar, tão contente e tão ancho,
Dou vivas a Martinho e dou vivas a Sancho!
207
Esse tema singular da peça machadiana, do decênio de 60, não seria completamente
abandonado pelo escritor. A atitude de Proteu, mudando de opinião, de forma ou de
partido, seria encenada mais uma vez através do personagem Batista, do romance Esaú e
Jacó, que troca de partido para se adequar à situação. Pedro e Paulo, os gêmeos da
narrativa, também se opõem um ao outro como os apóstolos cristãos, enquanto a utópica
Flora tenta unificá-los num plano ideal.
Outro ponto de aproximação entre a peça de 1866 e o romance de 1904 consta do
epílogo, quando o poeta se despede do público. Reafirma seu propósito de unificar duas
tradições distintas: ―David olhando em face a sibila de Cumas‖.
Pede ainda o poeta um reparo. O poeta
Não comunga por si na palavra indiscreta
De Marte ou de Proteu, de Apolo ou de Cupido.
Cada qual fala aqui como um deus demitido;
É natural da inveja; e a idéia do autor
Não conformar-se a tão fundo rancor.
Sim, não pode; e, contudo, ama aos deuses, adora
Essas lindas fixões do bom tempo de outrora.
Inda os crê presidindo aos mistérios sombrios,
No recesso e no altar dos bosques e dos rios.
(...)
A crença é que o arrasta, a crença é que o ilude
Neste reverdecer da eterna juventude.
Se o tempo sepultou Eros, Minerva, e Marte,
Uma coisa os revive e os santifica: a arte.
Se a história os dispersou, se o calvário os banil,
A arte, no mesmo amplexo, a todos reuniu.
De duas traduções a musa fez só uma:
David olhando em face a sibila de Cuma.
Se vos não desagrada o que se disse aqui,
Sexo amável, e tu, sexo forte, aplaudi.
O poeta, sutilmente, se alheia das afirmações contidas na peça. Também como
cronista, a partir desse período, seria muito mais ponderado em suas afirmações contra o
poder instituído, político ou religioso.
No Fausto II, assim como a Corte alemã, representada na cena do ―Palatinado
Imperial‖ de Maximiliano I, torna-se uma prefiguração dos governos do mundo, também
208
essa Babel machadiana é mais do que uma simples alegoria da política brasileira. É, na
verdade, síntese do poder em todos os tempos, passado e futuro, como podem ser do
presente. Ambientar a cena entre as Ruas Direita e do Ouvidor, ou usar como alegoria os
deuses mitológicos, não necessariamente isolaria o real do fantasioso, mas, ao optar pela
―terceira via‖, o faz exatamente com a intenção de unir o contexto ―local‖ ao ―universal‖.
Partiria do ―pequeno mundo‖, para chegar ao ―grande mundo‖, que de tempos em tempos
se repete, muda de forma, para exibir sempre o mesmo desfile contínuo das ambições
humanas.
A união das figuras de ―David e da sibila‖, que a arte machadiana busca reunir no
mesmo amplexo, seria um outro elemento que aproximaria a peça do romance Esaú e Jacó.
Teríamos a repetição do mesmo preceito esboçado no capítulo ―Teste David cum Sibylla‖,
em que o pai dos gêmeos, Agostinho Santos, confronta o oráculo da cabloca Bárbara com
as predições do espírita Plácido acerca do futuro dos gêmeos. O espaço de 38 anos que
separa as duas obras, a da juventude e a da maturidade, não impede que o escritor delineie
nesta e naquela o seu parecer sobre a política e a religião como as duas principais instâncias
que regem o universo humano.
Afirmar que as obras são meras fábulas do Brasil Imperial, ou alegoria da passagem
do Império para a República, é não enxergar o sentido maior que o escritor pretende dar à
obra, fundindo o plano real ao ficcional, unindo fantasia à realidade, para tecer uma terceira
via, reflexo do ―mundo interior‖ do homem. Tudo passa pela subjetividade humana
oscilante entre dois desejos - como Fausto, como Proteu e como Flora: ―Ah! duas almas no
meu seio moram!‖
Puxando o primeiro fio, que une o poeta ao prosador, encerramos essa primeira
investida no universo machadiano, pequena mostra do seu vasto gênio. Convém
desenrolarmos o novelo inteiro, ou, pelo menos, indicar que outros fios contribuem nesse
tecido imbricado de uma tradição que vem de longa data, mas que se constrói pela mão de
vários artistas. O que é a história ou a História do homem?
A história é isso. Todos somos fios do tecido que a mão do tecelão vai
compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus vários aspectos
morais e políticos. Assim como os há sólidos e brilhantes, assim também
209
os há frouxos e desmaiados, não contando a multidão deles que se perde
nas cores de que é feito o fundo do quadro.168
Qual seria o quadro completo dessa pintura que Machado intenta nos mostrar? Que
figuras estão em cena, o que se perde no fundo? Há, enfim, uma mão movendo esse fio, um
tecelão que o compõe?
Mesmo quando escreve em prosa, é o velho poeta Machado de Assis que nos fala,
ora descendo à terra dos gelos eternos de Brás Cubas, em sua catábase de Orfeu, ora
ascendendo ao cimo do monte, como no capítulo LXXXV das Memórias. Oferece-nos uma
síntese melancólica de uma Beatriz que não pode entrar no Paraíso, simplesmente porque
não é uma mulher divina e pura como a guia de Dante, mas uma Virgília, que ascende com
Brás, mas que com ele também declina.
Ainda seria o poeta a criar intertextos em sua escrita, em que cada janela aponta
uma outra, e assim sucessivamente, como uma teia de referências por trás do enredo
aparentemente simples. Cada ponto obscuro ou lacuna surge como uma ―piscadela‖ ao
leitor ruminante, como um convite para que ele possa se aventurar em outras águas.
O segundo momento dessa pesquisa tem por objetivo uma abordagem mais ampla
do poeta e do conceito de poesia, ligando o Microcosmo da obra machadiana ao
Macrocosmo literário. Em que tradição Machado está inserido e de que maneira a sua obra
da maturidade funde poesia e prosa? Analisando os discursos religiosos, políticos,
históricos e, principalmente, literários que formaram o mundo ocidental, faremos uma nova
incursão, desta vez, pela ―máquina do mundo‖, seguindo os passos de grandes mestres do
passado, para em seguida, concluirmos qual o definitivo lugar da poesia na obra
machadiana.
168
Ver referência na nota nº 5 (Introdução).
210
4- SOB O VÉU DOS VERSOS: poesia e profecia na construção da obra de arte
“O poeta adivinha. A inspiração não
serve só para compor versos, mas
também para ler na alma dos outros.”
(Machado de Assis)
211
Em seu ensaio A Defense of Poetry, Shelley procura resgatar o sentido original da
palavra ―poeta‖, assim como define a poesia como o ponto de partida para todos os
conhecimentos acerca do homem e do mundo. Assim, segundo afirma, os poetas seriam os
mestres que introduziriam ―aquela apreensão especial das intermediações do mundo
invisível que se chama religião‖169. Entretanto, o termo empregado - ―religião‖ - não se
traduz no sentido mais comum, de superstição, mas de um poder especial que o poeta
possui de interpretar a vida, tornando-se uma espécie de mediador entre o humano e o
divino.
Os Poetas, segundo as circunstâncias da época e da nação nas quais
surgiram, foram chamados, nos primórdios do mundo, legisladores ou
profetas: um poeta essencialmente engloba e unifica ambos esses
personagens. Ele não somente contempla intensamente o presente como
ele é e descobre as leis segundo as quais as coisas presentes deveriam ser
ordenadas, mas também o futuro no presente, e seus pensamentos
constituem as sementes da flor e o fruto da época mais longínqua. (...) Um
poeta participa do eterno, do infinito e do uno; no que diz respeito a suas
concepções, tempo, lugar e quantidade não existem.170
No que se refere à concepção artística de Machado de Assis, pudemos acompanhar
a trajetória de seu pensamento sobre a poesia desde as ―Idéias vagas‖, de 1856, seu
primeiro esboço acerca da função da poesia e do papel do poeta na sociedade, passando
pelas produções da juventude até chegar à maturidade.
Embora as primeiras concepções, moldadas pela ingenuidade do adolescente,
tenham passado por profundas modificações, a obra machadiana, como um todo, guarda no
íntimo as relações e sentidos aplicáveis ao papel primordial do poeta como o sumointérprete do pensamento humano.
169
SHELLEY, Percy Bysshe. ―Uma defesa da poesia‖. In: ______ & SIDNEY, Philip. Defesas da poesia.
São Paulo, Iluminuras, 2002. p. 173.
170
Idem. Ibidem.
212
A epígrafe do presente capítulo, retirada de um conto machadiano171, apesar da
ironia expressa no contexto original, traz um pouco do que seria o poeta stricto senso - o
que compõe versos -, e o poeta que resgata o sentido primordial – o profeta, ou seja, aquele
que consegue ―ler na alma dos outros‖. Machado utiliza a segunda acepção, seja no perfil
de seus personagens, de Brás Cubas a Aires; na crítica teatral, quando procura ler as
impressões do palco e da platéia; na ironia de suas crônicas, com que disseca as cenas da
sociedade fluminense, enfim, há inúmeros exemplos que poderiam servir para ilustrar esse
papel profético que o escritor assume, seja ironicamente, ou, de fato, buscando atribuir
algum sentido na releitura do mundo.
Nessa releitura, principalmente em relação às contradições humanas, o escritor opta
por um dos seus temas mais profícuos que é o de atar pensamentos contrários, com a
finalidade de, a partir dessa junção, achar uma síntese conciladora que melhor retrate o
fundamento das dicotomias. Em toda a obra, Machado ilustra a tensão entre os contrários,
e, na maioria das vezes, assume-se como uma espécie de mediador, ou de intérprete de uma
dada situação, buscando o ponto exato em que ambos os lados se tangenciam e se
harmonizam.
Partindo desse princípio e da leitura dos clássicos, o escritor fundamenta sua criação
na base dessa dicotomia que é prenunciada pela oposição/união entre paganismo e
cristianismo. Comecemos esse longo percurso em torno do tema, com a finalidade de
mostrar como a arte em si busca conciliar a tensão entre os contrários, algo inerente ao
espírito do homem.
Novamente nos colocamos no alto, diante de uma ―Visão‖ do poeta, para isso,
seguimos a leitura de um dos poemas de Falenas, em que se verifica a oposição entre o
paganismo e o cristianismo, mas também se observa certos traços em comum entre ambas
as religiões. A composição intitula-se ―Visão‖ e nela percebe-se mais uma vez as duas
vertentes distintas da montanha:
Vi de um lado o Calvário, e do outro lado
O Capitólio, o templo-cidadela.
E torvo mar entre ambos agitado,
Como se agita o mar numa procela.
171
Trata-se de ―Vênus, divina Vênus‖.
213
Pousou no Capitólio uma águia; vinha
Cansada de voar.
Cheia de sangue as longas asas tinha;
Pousou; quis descansar.
Era a águia romana, a águia de Quirino;
A mesma que, arrancando as chaves ao destino,
As portas do futuro abriu de par em par.
A mesma que, deixando o ninho áspero e rude,
Fez do templo da força o templo da virtude,
E lançou, como emblema, a espada sobre o altar.
Então, como se um deus lhe habitasse as entranhas,
A vitória empolgou, venceu raças estranhas,
Fez de várias nações um só domínio seu.
Era-lhe o grito agudo um tremendo rebate.
Se caía, perdendo acaso um só combate,
Punha as asas no chão e remontava Anteu.
Vezes três, respirando a morte, o sangue, o estrago,
Saiu, lutou, caiu, ergueu-se... e jaz Cartago;
É ruína; é memória; é túmulo. Transpõe,
Impetuosa e audaz, os vales e as montanhas.
Lança a férrea cadeia ao colo das Espanhas.
Gália vence; e o grilhão a toda Itália põe.
Terras da Ásia invadiu, águas bebeu do Eufrates,
Nem tu mesma fugiste à sorte dos combates,
Grécia, mãe do saber. Mas que pode o opressor,
Quando o gênio sorriu no berço de uma serva?
Palas despe a couraça e veste de Minerva;
Faz-se mestra a cativa; abre escola ao senhor.
Agora, já cansada e respirando a custo,
Desce; vem repousar no monumento augusto.
Gotejam-lhe inda sangue as asas colossais.
A sombra do terror assoma-lhe à pupila.
Vem tocada das mãos de César e de Sila.
Vê quebrar-se-lhe a força aos vínculos mortais.
Dum lado e de outro lado, azulam-se
Os vastos horizontes;
Vida ressurge esplêndida
Por toda a criação.
Luz nova, luz magnífica
Os vales enche e os montes...
E além, sobre o Calvário,
Que assombro! que visão!
Fitei o olhar. Do píncaro
Da colossal montanha
214
Surge uma pomba, e plácida
Asas no espaço abriu.
Os ares rompe, embebe-se
No éter de luz estranha:
Olha-a minha alma atônita
Dos céus a que subiu.
Emblema audaz e lúgubre
Da força e do combate,
A águia no Capitólio
As asas abateu.
Mas voa a pomba, símbolo
Do amor e do resgate,
Santo e apertado vínculo
Que a terra prende ao céu.
Depois... Às mãos de bárbaros,
Na terra em que nascera,
Após sangrentos séculos,
A águia expirou; e então
Desceu a pomba cândida
Que marca a nova era,
Pousou no Capitólio,
Já berço, já cristão.172
A imagem do Capitólio associa-se tanto à face sagrada – templo - quanto à do
combate - cidadela. A reunião dessas duas vertentes é tema recorrente na escrita
machadiana. Através desse texto vemos de que forma ele representa Roma como berço de
duas tradições tão contraditórias entre si.
A águia, símbolo do espírito belicoso dos romanos, cede lugar à pomba do
cristianismo, que pousa no Capitólio e substitui a cultura de guerra pela de paz. Num tom
profético, como o título do poema sugere, os versos machadianos vão contrapondo imagens
da Roma Antiga às da Roma cristianizada. A cidade seria o ponto de união entre elementos
díspares, de duas tradições que têm o mesmo berço, e, no entanto, apresentam contornos
distintos.
Outra maneira encontrada pelo poeta de marcar o contraponto entre as duas culturas
localiza-se na parte formal do poema, onde as estrofes alternam-se entre versos
dodecassílabos, decassílabos e hexassílabos. A construção é bem engenhosa, pois os
172
ASSIS. O.C. Vol. III. p. 208
15 ASSIS. Machado de Assis: teatro. 2 vol. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2004. p.144.
215
alexandrinos marcam o ritmo mais tradicional da Roma antiga. Assim, quando os versos
cantam a águia romana, passam a ter doze sílabas métricas. Quando há o contraponto entre
a águia e a pomba, os versos tornam-se decassílabos, metrificação mais difundida após o
período clássico. E, finalmente, os hexassílabos demarcam o novo território, dedicado à
pomba do cristianismo. A construção métrica de ―Visão‖ procura acompanhar os
movimentos distintos do paganismo e do cristianismo, privilegiando a simbologia mítica
dos dois movimentos e usando o discurso histórico para validar o declínio e a ascensão,
respectivamente, dessas culturas.
Pela vertente histórica do tema, há ainda uma relação interessante a ser estabelecida
entre o Império Romano – pagão – e a Nova Roma – cristianizada. O tom profético do
poema machadiano nos remete a um pensamento de Dante, esboçado em Banquete (Il
Convívio): a de que o Império Romano, com seu espírito heróico, ao conquistar tantas
terras e nações e submetê-las a um mesmo jugo e a um único governo, tenha preparado
terreno para a vinda de Cristo e, desta forma, servido para uma melhor divulgação do
cristianismo.
O poeta italiano ainda se aprofunda na questão ao nivelar as duas progênies: a de
Enéias, que teria gerado o povo romano, e a de Davi, que gerou Cristo através de Maria.
Como, porém, em sua vinda ao mundo [do Filho de Deus] era necessário
que não somente o céu, mas também a terra estivesse em ótima
disposição e que a ótima disposição da terra se verifica quando está sob a
monarquia, isto é, toda ela sob um único príncipe, como foi dito antes, a
divina providência estabeleceu aquele povo e aquela cidade que devia
realizar isso, ou seja, a gloriosa Roma.
Uma vez que também a hospedagem em que o rei celestial devia entrar
era necessário que fosse extremamente limpa e pura, foi preparada uma
santíssima progênie, da qual, depois de muitas ações meritórias, nascesse
uma mulher mais perfeita que todas as outras para que ela acolhesse no
próprio seio o Filho de Deus. Essa progênie foi a de Davi, do qual
descendeu a ousadia e a honra do gênero humano, isto é, Maria. Por isso
está escrito em Isaías: ‗Nascerá uma vergôntea da raiz de Jessé e de sua
raiz brotará uma flor‘. Jessé foi o pai de Davi. Tudo isso aconteceu ao
mesmo tempo, nascendo Davi e surgindo Roma, ou seja, quando Enéias
partiu de Tróia para a Itália, dando origem à cidade de Roma, como
testemunharam os escritos. Por esta razão é manifesta a escolha divina do
império romano, uma vez que o surgimento da cidade santa foi
contemporâneo da origem da progênie de Maria.173
173
ALIGHIERI, Dante. O banquete. Tratado IV, cap. V. (Trad. Ciro Mioranza). São Paulo: Escala Editorial,
s/d. p.148
216
Dante, com sua retórica, consegue estabelecer a união entre duas nações distintas,
entre duas progênies que, aparentemente, não teriam nenhuma relação de proximidade.
Pelo contrário, historicamente, os romanos colaboraram para a crucificação de Cristo e
foram responsáveis pela perseguição dos primeiros cristãos, enquanto estes se opuseram
duramente ao paganismo romano ao compararem Roma à antiga Babilônia, berço da
corrupção e da incredulidade no tempo dos hebreus, cujo símbolo mais conhecido é a torre
de Babel.
A lupa romana, para os primitivos cristãos, não era a famosa loba que teria
amamentado os fundadores Rômulo e Remo, mas a lupa174 - cortesã -, seguindo a leitura do
Apocalipse de João acerca da meretriz assentada sobre sete montes. Trata-se de
representação simbólica e depreciativa não apenas da lupa, mas da fundação de Roma
sobre os sete montes: Caelio, Aventino, Viminal, Quirinal, Palatino, Capitolino e Esquilino.
Dante, portanto, prefere desconsiderar a origem mítica da cidade, o da loba
amamentando os gêmeos, para adotar o contexto histórico e literário, principalmente o
delineado nas páginas da Eneida de Virgílio. Através do poeta latino, segundo Dante, a
origem heróica de Roma adquire a mesma validade da profecia contida num dos livros do
Antigo Testamento: o do profeta Isaías, que prenuncia a estirpe de Cristo.
Há portanto dois grandes nomes que validam o surgimento dessas duas estirpes: por
um lado, um poeta como Virgílio e, por outro, um profeta como Isaías. Encontram-se,
assim, equiparadas as figuras do poeta e do profeta, que Dante passa igualmente a assumir
ao reler as tradições romana e judaica e uni-las num só desígnio: preparar a terra para o
advento do cristianismo. Não por acaso, Virgílio será o escolhido por Dante para a missão
de guiá-lo pelo Inferno e pelo Purgatório em sua Commedia.
Talvez, à primeira vista, o leitor encontre alguma dificuldade em perceber no poema
machadiano alguma prova mais clara desta união entre as duas culturas. Em ―Visão‖,
Machado aproveita, sobretudo, o lastro histórico, mas dá determinada ênfase à criação de
duas culturas num único berço: Roma. Também podemos notar como a ―águia‖ do poema,
assim como no texto de Dante, prepara o caminho para a ―pomba‖ governar. Machado,
174
No latim, o vocábulo lupa tinha dois significados: loba (animal) e meretriz. O segundo significado deu
origem à palavra lupanar – prostíbulo - na língua portuguesa. Quanto à comparação de Roma com Babilônia
e com a Meretriz, está presente em 1 Pedro 5:13 e Apocalipse 17: 1 e 9.
217
porém, não afirma categoricamente a união entre as duas culturas da mesma forma que
Dante.
Apesar de ambos explorarem o tema do paganismo e do cristianismo pela vertente
histórica, tendo Roma como centro de convergência das duas culturas, Machado enfatiza a
diferença entre elas através da oposição águia/pomba. Dante, pelo contrário, quer
aproximar as estirpes e provar que a Roma gloriosa de Virgílio tem continuidade através do
Sacro-Império Romano. Assim a águia não fora substituída, mas preservada pelos novos
heróis, no caso, reis cristãos. Para ilustrar melhor o pensamento de Dante e mostrar, talvez,
a fonte da inspiração de Machado, destacaremos um trecho do Canto VI do ―Paraíso‖ que
estampa uma concepção muito semelhante à do poema machadiano.
Depois que Constantino a águia voltou
contra o curso do céu que, aos templos seus,
seguira quem Lavínia conquistou;
cem e cem mais, a ave de Deus
lá junto aos montes que deixou primeiro,
permaneceu, nos confins europeus:
e, na sombra do seu vôo altaneiro,
o poder, ao passar de mão em mão,
para a minha chegou, do mundo inteiro.
Sou Justiniano, e César fui então;
que, por querer do Deus que eu acalento,
o supérfluo das leis tirei, e o vão.
E antes de estar nesse trabalho intento,
só uma Natura ter Cristo, não mais
supondo, me encontrava a meu contento.
Mas o santo Agapito, que às papais
honras subiu, conduziu-me à severa
fé com argumentos magistrais.
(...)
Até ao rúbido mar voou com esse;
com esse pôs o mundo em tanta paz
que fez que a ara de Jano emudecesse.
Mas, o que o signo que falar me faz
fizera, e a que ordenou obra futura,
pelo reino mortal que lhe subjaz.
218
(...)
E quando o dente Lombardo mordeu
a santa Igreja, sob suas sacras penas
Carlo Magno, vencendo, a socorreu.
(―Paraíso‖- Canto VI: 1-96)175
Nos versos de Dante, a águia não é substituída; é antes mantida como símbolo de
vigor daqueles tempos antigos, demonstrando uma continuidade no universo cristão.
Observa-se também o grande valor dos reis como defensores da Igreja. Deste modo, temos
a fala de Justiniano que relembra os feitos dos imperadores Constantino e Carlo Magno,
além dos seus próprios atos. O poeta florentino, assim como aproxima as estirpes de Enéias
e de Davi, vai fundir a imagem da águia – a ave de Jove – à da ―ave de Deus‖.
Machado vai-se afastar de Dante nessa questão, já que, simbolicamente, mesmo não
sendo a pomba a causa da destruição da águia, percebe-se que os conflitos internos do
Império Romano fizeram-no fraquejar e ceder espaço para outra cultura governar
pacificamente.
Podemos dizer que o poema ―Visão‖ é a porta de entrada de Machado num universo
de aproximação de culturas distintas, mesmo que nele ainda não se configure a união de
ambas. Em obras posteriores, o escritor desenvolveu com mais profundidade essa figuração
pagã/cristã, aproximando-se do argumento explorado no texto de Dante, não como
afirmação categórica, mas como interpretação do pensamento humano no que tange à
representação artística da realidade. Assim, num vasto exame da obra machadiana,
podemos dizer que a atitude do escritor não se reduz a uma busca histórica ou à apreciação
de uma idéia num determinado tempo, mas intenta o mapeamento da relação do homem, de
todos os tempos, com a História, a Literatura, a Religião e com as demais formas de
conhecimento.
Seguindo a linha das idéias machadianas, observando a sua obra num contexto mais
abrangente, percebemos a persistência do escritor no tema - a união de elementos
contrários - através de diferentes manifestações de gênero. A tensão entre os opostos
ilustrou muitas de suas produções, continuamente tratada pelo viés crítico. O escritor
175
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. (Trad. Italo Eugenio Mauro). São Paulo: Editora 34, 1998. p. 43
219
sublinha a natureza equivocada dos pensamentos unilaterais e maniqueístas e,
especialmente, realça o valor do artista como mediador das oposições ou das opiniões. Seja
tratando de temas alegóricos, como as duas tribos que disputam um campo de batatas, ou
de temas históricos, como a contraposição paganismo-cristianismo, Machado adota a
mesma atitude, sobretudo irônica, de filósofo das antíteses, pondo-se no meio delas para
melhor apreciar os dois lados da questão e, se possível, para unificá-las, provando que são
complementares.
Este capítulo tem como proposta acompanhar o longo fio que tanto une Machado a
uma tradição milenar, quanto mostra que sua obra é um sistema complexo, mas bastante
coeso do início ao fim. Desde suas produções poéticas, passando por composições teatrais
até as obras da maturidade, persistem temas que o escritor jamais abandonou. O mais
importante é perceber como os escritos da juventude elucidam questões que surgem,
dissimuladas ou intricadas, nas produções da maturidade.
Em Os deuses de casaca, mais nitidamente, Machado demonstra interesse pela
fusão das tradições pagã e cristã, englobando as duas vertentes para mostrar que a arte é o
melhor veículo para reuni-las. No complexo palco da imaginação literária, ou do tablado
machadiano, cabem todas as peças, sejam elas sacras ou profanas, cristãs ou pagãs, e tanto
melhor se as antíteses passarem a se tangenciar.
Como foi visto anteriormente, Machado de Assis, na peça em questão, inverte a
temática das grandes epopéias: não são mais os heróis que desejam a imortalidade ou a
deificação, tampouco há espaço para representação dos deuses antropomorfizados, que
competem com os homens. O que se nota na peça machadiana é a destituição dos deuses de
suas funções. Num mundo onde não há mais espaço para o mito nem para a religião, ou
melhor, num sistema em que há outro deus sendo reverenciado, seja ele o capital, a
influência ou o poder, é preciso que o antigo sistema se adapte ao novo código, se sintonize
e, por fim, se transforme numa terceira via. A fusão resta como única saída, resulta numa
maneira cínica de inclusão, sem conflitos, seja para manter os mesmos privilégios ou para
adquirir outros mais vantajosos.
Depois de acompanharmos o fio que une as obras da juventude aos escritos da
maturidade de Machado, faz-se necessário desfiar o novelo da tradição, que atrela o escritor
aos seus mestres. Estreitando as relações de tempo e de espaço, como uma espécie de
220
hipertexto, a obra machadiana vai interligando elementos distintos numa intrincada teia de
relações que vão do explícito ao subentendido, do real ao fantasioso, do sublime ao
grotesco. O escritor focaliza o local e contemporâneo, pelo viés, contudo, do intemporal e
do universal, acolhendo a concepção de que a natureza humana, mesmo contraditória e
ambígua, propaga infinitamente determinados arquétipos.
4.1- Teste David cum Sybilla: profetas e sibilas no desfile dos séculos.
Como vimos, no epílogo da peça Os deuses de casaca, o autor apresenta a arte
como ponto de convergência de culturas e tradições distintas:
Se o tempo sepultou Eros, Minerva, e Marte,
Uma coisa os revive e os santifica: a arte.
Se a história os dispersou, se o Calvário os baniu,
A arte, no mesmo amplexo, a todos reuniu.
De duas tradições a musa fez só uma:
David olhando em face a sibila de Cuma.
Se vos não desagrada o que se disse aqui,
Sexo amável, e tu, sexo forte, aplaudi. (grifo nosso)
Mesmo que aqui não tenhamos a imagem da pomba que suplanta e substitui a águia,
como no poema ―Visão‖, o Calvário surge mais uma vez, historicamente, superando o
Capitólio e banindo as representações pagãs, os deuses mitológicos, da cultura romana.
Porém, há um dado novo nos versos da comédia Os deuses de casaca, pois o poeta diz que
aquilo que a História e a Religião separaram definitivamente a Arte pode reunir. O
elemento agregador, então, será a Literatura, incorporando em seu âmago elementos
antitéticos, sem que estejam necessariamente em conflito.
221
Tornamos ao mesmo ponto de antes, ao texto de Dante, que elege dois povos como
escolhidos para uma missão especial, divina, por assim dizer. Enquanto Dante escolhe
Virgílio e Isaías para representar as duas culturas, nos versos da comédia de Machado, as
duas figuras destacadas são a Sibila de Cumas e Davi, personagens que representam,
respectivamente, a profetisa pagã e o profeta judaico-cristão. O próprio Dante, explorando
a profecia contida no livro de Isaías, mostra que a progênie de Cristo advém da ―raiz de
Jessé‖, ou seja, de Davi, também citado no verso machadiano. Qual seria, então, a
importância da Sibila de Cumas nesse contexto?
O que nos interessa, primeiramente, é a representação literária dessa figura.
Encontramos uma referência à Sibila de Cumas no livro VI da Eneida, de Virgílio. A
personagem é uma adivinha, ou profetisa, que conduz o herói Enéias em sua descida ao
Inferno. O herói encontra-a numa gruta e busca respostas para saber o seu destino na nova
pátria, a Itália. Era costume do povo grego e, posteriormente, do romano a consulta aos
oráculos sempre que uma importante decisão precisava ser tomada. As sibilas, por isso,
eram figuras muito respeitadas pelo povo, mas não apenas pelas pessoas simples, como
também pelas de posição mais elevada, incluindo reis e imperadores.
A tradição nos mostra que as predições eram escritas em versos hexâmetros e
entregues aos consulentes em folhas de palmeira. Os oráculos sibilinos possuíam
significado ambíguo, que demandava certa decifração para extrair-se alguma verdade de
seus carmes. Sobre a ambigüidade dessas predições, tornou-se lendária a história de Creso,
soberano riquíssimo da Lídia, que havia procurado a sibila de Delfos para saber se deveria
guerrear contra Ciro, o rei persa. Obteve dela a resposta de que, se fosse para a batalha, um
império seria destruído. Acreditando na previsão, Creso empreendeu uma guerra e acabou
derrotado, pois não havia considerado a questão sob ótica inversa, a de que o seu próprio
império poderia ser destruído.
Não apenas na lenda de Creso encontramos a dupla natureza dos oráculos, mas
quase sempre, em outros episódios clássicos, notamos um oráculo que anuncia o futuro
grandioso e/ou trágico de algum personagem histórico ou fictício. Inevitavelmente, seja
porque interpretou mal a predição ou porque tentou fugir do cumprimento dessas profecias,
o indivíduo acabava indo ao encontro do seu destino.
222
A obliqüidade dos oráculos sibilinos também é relatada por Virgílio. Isso pode ser
observado pela leitura de uma das estrofes da Eneida, que descreve a consulta feita por
Enéias à Sibila de Cumas:
A Cuméia Sibila assim da interna
Parte da gruta está profetizando
Circunlóquios horrendos, e a caverna
Os ouvidos espanta retumbando:
Com as coisas escuras mete, e alterna
As verdadeiras, todas embrulhando.
Apolo como quer a rege, e enfreia,
E punge o coração de fúria cheia.176
Com isso, constatamos que a sibila de Cumas torna-se uma referência importante a
partir dos textos de Virgílio e que, portanto, Machado estabelece uma relação entre
paganismo e cristianismo pelas mesmas vias de Dante, buscando personagens do livro de
Virgílio e do Velho Testamento.
Já não podemos tratar, aqui, apenas de uma vertente histórica sem considerarmos os
influxos da Arte na formação da mentalidade de uma época e na compreensão de algumas
contradições inerentes ao homem. Apesar de a História registrar a ascensão e a queda de
um povo ou de uma cultura em favor de outra, a Arte consegue reunir os contrários,
reinterpretando as ações humanas e atribuindo-lhes um significado. É a Arte que vai
encontrar em elementos tão contraditórios o ponto de união, de consenso.
Nesse caso, se estamos tratando de Virgílio, de que maneira Dante teria encontrado
num escritor pagão, vivendo antes do advento do cristianismo, algum elemento que
apontasse para a interpretação exposta em Il Convivio? Machado teria absorvido esse
pensamento da obra de Dante?
Pode-se afirmar que tal idéia é anterior aos dois escritores e que teve origem no
início da era cristã. O primeiro indício que temos disso é uma pequena nota de Machado,
presente na edição consultada de Os deuses de casaca. O escritor afirma que o
antepenúltimo verso da peça pertence a um soneto do Marquês de Belloy. Diz a nota:
176
VIRGÍLIO. Eneida. (Trad. João Franco Barreto). Lisboa: Typographia Rollandiana, 1808. p. 293.
223
―O antepenúltimo verso que o Epílogo recita: ‗David olhando em face a
sibila de Cuma‘, é tradução de um verso, com que o marquês de Belloy
fecha um dos seus belos sonetos: ‗En regard de David la sibylle de
Cume‘, o qual é paráfrase daquele hino da Igreja: ‗Teste David cum
sibylla‘.‖
O poema de Auguste de Belloy (1766-1847), poeta e teatrólogo francês, consta da
edição de Légendes fleuries e utiliza como epígrafe um verso do hino religioso:
―Teste David cum sibylla”
Héritiers des débris de l‘édifice antique,
Élevons, s‘il se peut, mais ne détruisons rien;
Et relions d‘ un coeur filial et chrétien,
La grâce ionienne à la grandeur biblique.
Contre les vains assauts d‘une école hérétique,
De la tradition que l‘art soit le gardien;
Par d‘aimables détours le beau conduit au bien,
Platon déjà pressent le dogme catholique.
Em dépit de Calvin, l‘austère factieux,
Gardons le feu sacré que Léon X rallume,
Ne jetons pas au vent la cendre des aïeux,
Et sous les voûtes d‘or que notre encens parfume,
Fils de la Renaissance, offrons à tous les yeux,
Em regard de David, la sibylle de Cume.177
Belloy conclama os ―Filhos da Renascença‖ a, através da arte, reunir duas culturas :
―Et relions d‘ un coeur filial et chrétien,/La grâce ionienne à la grandeur biblique.‖ Seria
um elogio à tradição renascentista que retoma a cultura clássica e faz dela matéria-prima de
suas criações, o que, necessariamente, não exige um abandono das crenças. Os
renascentistas beberam das fontes clássicas com o objetivo de reinterpretar os eventos de
seu tempo através dos sábios da Antiguidade.
177
BELLOY, Marquis de. In: PORTMARTIN, Armand. Dernières causeries littéraires par(...). Paris: Michel
Lévy Frères Libraires-Éditeurs, 1862. p. 339. Tradução: "Herdeiros das ruínas do edifício antigo,/ Construamos, se
possível, mas não destruamos nada;/ E unamos com um coração filial e cristão/ A bênção jônica à grandeza bíblica. //
Contra as vãs investidas de uma escola herética,/ da tradição que a arte seja a guardiã;/ Por amáveis sendas o belo conduz
ao bem,/ Platão já intui o dogma católico.// Apesar de Calvino, o austero faccioso,/ Conservemos o fogo sagrado que Leão
X acende,/Não joguemos ao vento a cinza dos antepassados/ E sobre a abóbada de ouro que nosso incenso perfuma/
Filhos da Renascença, ofertemos a todos os olhares/ Defronte a Davi, a sibila de Cumes." (Trad. Antonio Carlos Secchin)
224
Partindo do fundamento deixado pelos autores do passado, a arte deveria construir
suas bases. O artista, portanto, deve beber da tradição, na herança dos antigos mestres, para
construir algo novo, ou melhor, para estabelecer conexões entre passado e presente, a fim
de projetar o futuro. Os escritores, essencialmente os poetas (que incluem os pensadores e
os criadores de conhecimento), seriam esses ―Héritiers des débris de l‘édifice antique,‖, que
sobre tal fundamento erguem a obra da contemporaneidade.
Baseando-se no conteúdo do poema e na epígrafe nele presente, Machado acata a
idéia e a sintetiza nos três versos da peça aqui estudada: ―A arte, num mesmo amplexo, a
todos reuniu./ De duas tradições a musa fez só uma:/ David olhando em face a sibila de
Cuma‖. Portanto, ele finaliza a peça com este argumento, que também pode ter servido de
base para a escolha do tema de Os deuses de casaca. Ocorre que, no contexto da peça
machadiana, há uma inversão, pois o mundo clássico é que busca se adaptar ao novo
edifício do mundo contemporâneo. São as antigas tradições, os deuses mitológicos, que
procuram espaço na sociedade burguesa do século XIX, assumindo os papéis que nela são
representados.
O poema de Belloy foi extraído de um livro de autoria do crítico Armand de
Pontmartin, que emite alguns comentários sobre o poeta francês, mais especificamente
sobre o conteúdo de Légends fleuries. Notando o tema desenvolvido pelo autor acerca da
união do paganismo e do cristianismo através da arte, Pontmartin diferencia a idéia contida
no poema em relação ao argumento da epígrafe, contestando a validade do discurso
artístico frente ao conteúdo religioso do Teste David cum sibylla. Assim, faz a seguinte
observação:
L‘ hymne de l‘Église, auquel M. de Belloy a emprunté son épigraphe,
n‘a pás prétendu, dans son laconisme um peu obscur, résumer et
formuler d‘avance l‘alliance du christianisme et du paganisme dans l‘art.
L‘auteur de cet hymne sublime a voulu seulement rappeler aux fidèles
que le dogme terrible du jugement dernier palpitait déjà dans le coeur de
l‘humanité tout entière, avant d‘être confusément prédit par l‘oracle de la
sibylle et clairement annoncé par la prophétie de David.‖178
O ―hino de igreja‖, a que tanto Pontmartin quanto Machado se referem, é, na
verdade, o réquiem Dies irae, executado nos templos por ocasião de funerais. A letra foi
178
Idem. p. 340.
225
escrita na Idade Média, por volta de 1250, provavelmente por um religioso chamado Tomas
de Celano. O texto trata do Juízo Final, ou seja, da segunda vinda de Cristo para julgar as
ações dos homens, vivos ou mortos, e para destruir o mundo presente.
Ao que parece, Celano tomou por base de sua composição algumas profecias
bíblicas, como o livro de Sofonias, que profetiza sobre o dia do juízo: ―Aquele dia é dia de
ira, dia de angústia, dia de alvoroço e desolação, dia de escuridade e negrume, dia de
nuvens e densas trevas, dia de trombeta e de rebate contra as cidades fortes, contra as torres
altas.‖ 179 Não apenas este livro trata do tema do ―dia da ira‖, como também os Salmos 2 e
110 de Davi, o evangelho de Mateus e o livro do Apocalipse, dentre outros, o fazem.
Igualmente no Fausto de Goethe, no curto episódio denominado ―Catedral‖, o hino
de Celano abre a cena, se interpondo às vozes de Gretchen e do ―Espírito Mau‖ que a
atormenta, e a acusa pela morte da mãe. A moça aparece no pátio de uma igreja, onde
celebram a missa fúnebre. Aos poucos sente o peso do julgamento da sociedade,
primeiramente pelo fato de ter se deixado seduzir por Fausto antes do casamento e depois,
ainda que não tenha sido intencional, pelo envenenamento da mãe.
GRETCHEN: Ai de mim! ai!
Como fugir dos pensamentos,
Que me andam, contra mim,
De cá, de lá!
CORO: Dies irae, dies illa,
Solvet saeclum in favilla.
ESPÍRITO MAU: Furor te agarra!
Troa a trombeta!
Sepulcros tremem!
E das dormentes cinzas,
Para infernais tormentos
Já ressurgido,
Teu coração
Palpita, freme!180
O episódio da tragédia de Goethe é bem sugestivo, pois Gretchen (Margarida) está
sendo julgada pela sua consciência religiosa no pátio da Catedral. A música de fundo, o
179
A BÍBLIA ANOTADA. (Trad. João Ferreira de Almeida). São Paulo: Mundo Cristão, 1994. (Sofonias, cap
1, vers. 14-16. p.1148). p 802.
180
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 429.
226
réquiem de Celano, prenuncia a morte dos injustos e pecadores, como acontecerá no
capítulo final, em que a moça é decapitada após ser julgada infanticida (por ter assassinado
o filho que teve com Fausto). Vale lembrar também que, antes da cena da Catedral, há o
episódio ―Na fonte‖, em que Luisinha, uma outra personagem, anuncia a fala de certa
―Sibila‖ acerca da gravidez de uma das moças da região (nomeada Bárbara), como uma
espécie de profecia acerca do futuro de Margarida.
O que é interessante para nossa pesquisa sobre o réquiem de Celano é a introdução
das figuras controversas do rei Davi e da Sibila de Cumas no mesmo plano. O que a letra
do réquiem nos adverte é que tanto a profecia pagã quanto a judaico-cristã predizem a
morte e a destruição dos homens no ―Dia da ira‖, com destaque para o seguinte trecho do
réquiem:
Dies irae, dies illae
Solvet saeculum in favilla;
Teste David cum Sibilla.
Quantus tremor est futuros,
Quando judex est venturus,
Cuncta stricte discussurus.181
Portmartin também chama a nossa atenção ao mostrar que a referência do hino às
duas figuras – Davi e a Sibila de Cumas – se justifica, pois ambos profetizaram sobre este
dia que seria o do ―juízo final‖ da humanidade. Por outro lado, Machado parece dar mais
ênfase à questão proposta pela arte de reunir paganismo e cristianismo, intenção presente
no poema de Belloy.
Temos, portanto, textos de épocas distintas que utilizaram o mesmo referencial
pagão/judaico-cristão das profecias de Davi e da Sibila. Isso indica uma referência ainda
mais remota que teria dado origem à comparação entre as duas figuras.
Durante séculos, a história, a filosofia, o homem (e as demais criações do
pensamento humano) foram interpretados pela tensão entre as duas culturas ou pela fusão
de ambas. Antes de voltarmos os olhos para a concepção estritamente artística dessa união
181
CULLEN, Thomas Lynch. Música sacra: subsídios para uma interpretação musical. Brasília: Musimed,
1983. Tradução: ―Dia de ira, aquele dia/ Tudo será cinza fria/ Diz Davi, diz a Sibila/ Quanto tremor há de
haver/ Quando o juiz aparecer/ Para tudo examinar.‖
227
entre culturas distintas que encontramos na obra machadiana, discorreremos sobre a
penetração do cristianismo na cultura pagã e, posteriormente, de um movimento inverso, de
introdução de elementos pagãos no culto cristão e, principalmente, sobre a influência
dessas duas vertentes no universo literário.
Com o propósito de buscarmos uma fundamentação teórica para concluirmos essa
pesquisa, em que, por fim, analisaremos a prosa de Machado de Assis sob uma perspectiva
poética, trabalharemos com o conceito de ―Figura‖, formulado por Erich Auerbach, na
releitura de textos clássicos, com ênfase na Idade Média e no Renascimento.
As páginas que se seguirão saem do âmbito estrito da obra machadiana, procurando
compreender o sentido do poético e do profético na construção das ideologias no mundo
real e no universo artístico. Teremos como objeto de estudo textos de autores que
exerceram forte influência na cultura universal e na gênese do pensamento do Ocidente e
que, sob muitos aspectos, serviram de fonte para a formação do escritor Machado de Assis.
4.2- Poesia e profecia: a interpretação figural dos primeiros doutores cristãos.
As estratégias usadas pelo cristianismo para evangelização dos povos sempre
articularam passado, presente e futuro, partindo de um só princípio: a vinda de Cristo como
Salvador da humanidade. Em primeiro lugar, temos a legitimação do fato - a vinda de
Cristo - através da leitura e interpretação das profecias do passado; em segundo lugar, o
228
cumprimento desta profecia e suas implicações no mundo presente, e, por fim, o
estabelecimento de uma nova profecia que envolve a redenção ou a destruição total do
homem no Juízo Final, ou seja, num evento futuro.
Após a ascensão de Cristo, a igreja primitiva tomou dois rumos distintos,
representados pelos apóstolos Pedro e Paulo: um, pregador do povo judeu; o outro,
pregador dos gentios, ou seja, dos povos pagãos. Essas distintas estratégias dos apóstolos
levaram ambos a contrastarem opiniões e a se desentenderem acerca de determinadas
práticas judaicas propagadas no ambiente cristão. As discussões sobre o assunto
culminaram no Concílio de Jerusalém, descrito no capítulo 15 do livro de Atos. O que se
percebeu, a partir disso, é que não seria possível impor costumes judaicos aos outros povos
que estavam se voltando para o cristianismo, tendo em vista que não eram judeus e não
estavam sob o jugo das leis do Antigo Testamento.
O influxo das pregações de Paulo, apóstolo extremamente culto e versado nos
principais pensadores do mundo greco-romano, serviu de base para muitas das posteriores
estratégias de evangelização dos gentios. O discurso de Paulo no Areópago (Atos 17: 1833), em Atenas, é um exemplo de como o apóstolo, usando como pretexto os elementos da
cultura grega e do culto ateniense, construiu sua pregação sobre Cristo. Ao se deparar com
os diversos deuses cultuados em Atenas e ver suas imagens espalhadas pela cidade, Paulo
se impressiona com um altar, vazio, dedicado ―ao deus desconhecido‖. Aproveitando-se
desse culto peculiar dos atenienses, discursando diante de filósofos estóicos e epicureus,
Paulo afirma que era exatamente esse Deus que ele estava anunciando: aquele que não
possuía imagem feita por mãos humanas. Para reforçar o argumento, utilizou o próprio
discurso dos poetas daquele povo para legitimar seu discurso:
(...) pois nele [em Cristo] vivemos, e nos movemos, e existimos, como
alguns de vossos poetas têm dito: Porque dele somos também
geração (grifo nosso). Sendo pois, geração de Deus, não devemos pensar
que a divindade é semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, trabalhados
pela arte e pela imaginação dos homens.
Paulo, portanto, é o primeiro homem de que temos notícia a introduzir o discurso de
poetas para legitimar um pensamento apregoado pelo cristianismo. Como a arte, pelos
outros discursos aqui estudados, foi apontada como o ponto de partida para tal conúbio
229
entre rudimentos pagãos e cristãos, tornemos aos textos mais antigos que se referem
especificamente às figuras de Davi e da Sibila.
Dante teria destacado duas fontes que tomou por base para articular essas culturas: o
Velho Testamento e a obra de Virgílio. Tratando-se do poeta latino, já tão citado aqui, é de
extrema importância que nos voltemos para a análise de seus escritos. Além do trecho da
Eneida, já comentado, em que Virgílio cita a Sibila de Cumas, há outra obra que também
faz alusão a essa mesma personagem. Trata-se das Bucólicas, poemas de inspiração
pastoril, onde o poeta apresenta, em sua quarta Écloga, a profecia da Sibila Cuméia
anunciando a vinda de uma ―Idade de Ouro‖ através do nascimento de um menino.
Ultima Cumaei venit jam carminis aetas:
magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.
Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna;
iam noua progenies caelo demittitur alto.
Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum
desinet ac toto surget gens aurea mundo,
casta, faue, Lucina: tuus iam regnat Apollo.
Teque adeo decus hoc aeui ,te consule, inibit,
Pollio, et incipient magni procedere menses
te duce.
Eis a última era anunciada em Cumas
a grande série de séculos recomeça.
Já também retorna a Virgem, voltam os reinos de Saturno;
do alto céu já é enviada uma nova geração.
Tu somente, casta Lucina, favorece ao menino que nasce,
sob o qual primeiramente desaparecerá a raça de ferro
e surgirá no mundo inteiro a raça de ouro, já reina o teu Apolo.
E esta honra do tempo começará e os grandes meses começarão
a suceder-se primeiramente sob o teu consulado, ó Polião,
sob o teu comando.182
Os primeiros Padres da Igreja encontraram nesses versos virgilianos o paralelo
necessário para mostrar aos povos pagãos que a vinda de Cristo havia sido predita até
mesmo pela Sibila de Cumas. A proximidade do texto de Virgílio com a profecia, contida
em Isaías 7:14, ―Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho‖, foi uma das estratégias
mais eficazes de evangelização nos primeiros séculos da Era Cristã, propagando-se ainda
182
VIRGÍLIO. Bucólicas. (Trad. Raimundo Carvalho/ Odorico Mendes). Belo Horizonte: Crisálida, 2005.
p.41. (Écloga IV, versos 4-12).
230
mais após a consolidação do cristianismo como religião oficial e da Igreja, portadora da
verdade de Cristo na terra.
Segundo os historiadores, Lactâncio Firmiano (séc. IV d.C), apesar de hoje não ser
bem aceito como um dos Padres da Igreja, teria sido o primeiro teólogo cristão a elevar
Virgílio à posição de ―profeta‖. Professor de Retórica, Lactâncio possuía vasta leitura dos
clássicos gregos e latinos, assim como de textos de outra natureza: filosóficos, religiosos e
históricos, incluindo textos de sábios egípcios de épocas remotas.
Após sua conversão ao cristianismo, o estudioso pretendeu mostrar aos pagãos,
principalmente aos homens cultos de seu tempo, a validade do discurso do cristianismo e,
para isso, usou como prova substancial de seus argumentos desde obras literárias até
transcrições de profecias sibilinas sobre a vinda de Cristo. Em seu livro, Divinas
instituições (Divinae institutiones), o teólogo faz uma releitura dos antigos à luz da religião
a que se convertera. Tudo indica que ele tenha se inspirado na obra Ad Autolycum, de
Teófilo de Antioquia (séc. II d.C.), para tratar as profecias sibilinas como prenúncios do
cristianismo.
Lactâncio, através de sua erudição, teria influenciado, inclusive, o imperador
Constantino, que o nomeou preceptor de seu filho mais velho. Alguns estudiosos chegam a
afirmar que muitas decisões de Constantino foram inspiradas em suas idéias. De fato, o
sincretismo religioso promovido pelo Imperador, após sua conversão ao cristianismo, teria
sido uma das principais estratégias de unificação do Império, buscando agradar tanto aos
cristãos, em franco crescimento mesmo após as duras perseguições anteriores, quanto aos
pagãos, insatisfeitos com a conversão do Imperador.
Ao conciliar alguns elementos das religiões pagã e cristã, Constantino favoreceu o
estabelecimento posterior do cristianismo como religião oficial do Império, principalmente
após ter a ele acrescido algumas práticas do mitraísmo e de outros cultos da época, fazendo
coincidir datas que poderiam ser comemoradas por cristãos e por pagãos. Um desses
exemplos é a instituição do dia 25 de dezembro, data das festas dedicadas ao deus Mitra – o
Sol Invictus do povo romano - como dia do nascimento de Cristo. Por ser o culto desse
deus muito difundido e apreciado em Roma, dadas as semelhanças de determinadas
celebrações, tornou-se uma data muito propícia para unificar festejos pagãos e cristãos.
231
Outra adaptação foi a transformação do Dies Solis, dia da semana dedicado ao deus Sol,
para o ―Domingo‖ (Dominicus), ou seja, dia ―do Senhor‖.
Posteriormente, tanto a conversão de Constantino sofreu contestação por parte dos
historiadores, quanto a validade dos ensinamentos de Lactâncio foi questionada pelos
religiosos. Talvez pelo fato de mostrar mais erudição nos conteúdos pagãos que cristãos o
teólogo tenha sido taxado de herético pela Igreja, mas, passados alguns séculos, acabou
redescoberto e valorizado pelos humanistas a partir do séc. XV. A variada natureza dos
textos trabalhados por Lactâncio na doutrinação cristã tornou-se alvo de muitos estudos
históricos e teológicos. Assim o descreve Campenhausen em sua análise dos ―Padres da
Igreja‖:
Entretanto, o material com que ele [Lactâncio] trabalhou não é
majoritariamente cristão, mas pagão. Isso salta à vista, de maneira
especial na comprovação da profecia, a qual ele mesmo dá um extremo
valor. Está construída quase por completo sobre testemunhos reais ou
supostamente pagãos; de modo especial sobre os oráculos sibilinos (com
interpolações judias ou cristãs), sobre as revelações de Hermes
[Trismegistus] e sobre oráculos e poemas das mais variadas
proveniências. Mais tarde, Lactâncio tratou como profeta inclusive
Virgílio, que havia previsto e profetizado as últimas perseguições dos
cristãos. Inicia-se, assim, o começo das interpretações cristãs de Virgílio.
(...) Sucede que Lactâncio escreve, então, para convencer um público
pagão.183
Os escritos herméticos de que nos fala o texto também influenciaram sobremaneira
o pensamento de Lactâncio. O Corpus hermeticum, espécie de bíblia dos alquimistas, era
uma compilação de textos de (suposta) autoria de Hermes Trismegistus, figura lendária
identificada com o deus egípcio Tot. Sábio ou deus, histórico ou lendário, Hermes foi
considerado um contemporâneo de Moisés. Por isso mesmo, tornou-se o representante
perfeito para, como fez Dante, equiparar a sabedoria pagã ao texto judaico, usando como
validação a antiguidade de ambos os discursos. Ficavam, pois, emparelhados o patriarca
judaico e o sábio do paganismo.
Os textos originais do sábio egípcio não chegaram à posteridade, mas seu nome e
sabedoria eram tão apreciados pelos antigos como as filosofias de Aristóteles e Platão. Essa
183
CAMPENHAUSEN, Hans Von. Padres de la Iglesia II: padres latinos. Madrid: Ediciones Cristiandad,
2001, p. 104. (traduzido do original espanhol)
232
fama permitiu que, nos primeiros séculos da era cristã, viessem à luz algumas reproduções
dos pensamentos de Hermes, que, assim como os oráculos sibilinos, também traziam
presságios acerca da vinda do Messias. Esses pseudo-escritos de Hermes muito se
assemelham aos diálogos filosóficos ou às interpolações entre Deus e os profetas do mundo
judaico, e usam, alternadamente, um e outro modelo.
Partindo desse legado de Lactâncio, o que de fato nos interessa é a incorporação que
ele fez das duas culturas, valendo-se da utilização de elementos do paganismo para
reafirmação do cristianismo. Em especial, trata-se aqui da inclusão do objeto de nosso
interesse: a citação das sibilas como prova cabal da veracidade do discurso cristão.
As primeiras predições das antigas sibilas gregas, como a de Delfos, haviam sido
preservadas nos Livros sibilinos, que ficavam guardados no templo de Júpiter, no Capitólio,
e eram consultados pelos governantes em épocas de conflito. Tirava-se um trecho do livro,
aleatoriamente, e dele se extraía um acróstico contendo a previsão acerca do assunto
desejado. Como o Corpus Hermeticum, esses Livros sibilinos também não chegaram à
posteridade, apesar de o conteúdo deles ter sido matéria de muita especulação. Ao que
parece, os Livros foram definitivamente destruídos num grande incêndio no templo
romano.
Já os Oráculos sibilinos (Oracula Sibyllina), citados por Lactâncio, surgiram entre
os séculos II a.C e III d.C., gerando muitas controvérsias a seu respeito. No entanto, alguns
historiadores indicam que, antes do nascimento de Cristo, a influência judaica já se fazia
sentir no Império Romano, e que tais oráculos teriam sido manipulados por sábios judeus
que queriam infiltrar as suas doutrinas através de um veículo de ampla aceitação do povo
romano, como eram, à época, os oráculos sibilinos. Para alcançar tal objetivo, foram
forjadas algumas cópias desses textos perdidos, que funcionariam de maneira tão eficaz
quanto nos tempos mais remotos do Império. São, todavia, apenas hipóteses, pois ninguém,
até hoje, conseguiu descobrir seus verdadeiros autores.
De qualquer forma, ao aproveitar esses oráculos no contexto cristão, Lactâncio deu
o primeiro passo para a definitiva introdução das figuras das sibilas, ao lado dos profetas
hebreus da Antiguidade, no imaginário cristão medieval do século seguinte. Sobre as
sibilas, nos fala Buitenwerf, ao analisar a propagação de tais oráculos na Idade Média:
233
There was also great interest in the older Greek Sibyl, who was believed
to have foretold the coming of Christ. This belief was based on the
knowledge of early Christian writings, such as Theophilus‘ Ad
Autolycum, Lactantius‘ Divinae institutiones was of especial importance,
because this work contains Varro‘s list of various Sibyls. This list of
Sibyls an an account of their literary activity.184
Uma outra sibila que também passou a ser muito divulgada, a partir do século IV,
foi a Tiburtina, ou Romana. Conta a lenda que ela foi procurada pelo Imperador Augusto,
que desejava saber quem era o deus que o ajudava a obter tantas vitórias. A sibila, pois, lhe
anuncia um deus que viria encarnado, nascido de uma virgem, e que seria o imperador de
todos os tempos, unificando Ocidente e Oriente. Augusto teria crido na previsão e mandado
construir, no antigo templo de Juno, a igreja de Ara-Coeli. Segundo dados históricos, o
episódio lendário foi difundido após o advento de Cristo, já que a referida igreja teve sua
construção iniciada bem depois da época de Augusto.
Ainda assim, o oráculo da Sibila Tiburtina obteve grande alcance, principalmente na
Idade Medieval. Além de ser adicionada ao coro das testemunhas da vinda de Cristo, sua
profecia revelada a Augusto serviu de mote a muitos poetas. Como não tivemos acesso ao
conteúdo original da profecia, do século IV, citaremos um trecho de um poema de Juan de
la Cueva (1587) que nos revela o teor da lenda, divulgada até então:
La Sibila tiburtina
Habiéndole el Rey contado
Toda la duda em que estaba
Le respondió: - Octaviano,
No atribuyas à tu nombre
Lo que al Imperio Romano
Has dado, poniendo à Espana
Em el yugo italiano,
E pacificar el mundo
Teniéndolo todo llano;
(...)
Que un solo Dios es la causa
Y este es quien te ha ayudado,
El cual nacerá muy presto
Siendo Dios hecho hombre humano,
E nacerá de uma virgen
Reservada de pecado.
184
BUITENWERF, Rieuwerd. Book III of the Sibylline Oracles and its Social Setting. Leiden: BRILL, 2003.
p. 5.
234
Viene à libertar el mundo
De la fuerza del tirano:
Desterrará al falso Jove,
A Mercúrio, a Febo y Jano,
Pacificando la tierra,
Cual dél es profetizado.-185
Tanto o oráculo da Sibila Cuméia, da Écloga virgiliana, quanto o da Sibila
Tiburtina, apontam para o retorno da Idade de Ouro, tempo em que Saturno retomaria o seu
reino, usurpado por Jove (Júpiter), e o restabeleceria como no início das eras. A releitura do
oráculo feita pelos cristãos medievais concebe a Idade de Ouro como um novo tempo, onde
Deus Pai reassumiria sua autoridade no mundo, outorgando ao Filho um reinado de paz.
Uma leitura do mito aparece na obra de Ovídio. Nas Metamorfoses, o poeta
descreve as quatro idades do mundo: as de ouro, prata, bronze e ferro. A primeira seria um
tempo de paz e harmonia, o reinado de Saturno: ―sem nenhum vingador, sem lei nenhuma/
culto à fé, e à justiça então se dava,/ Ignoravam-se então castigo, e medo;/ Ameaças
terríveis se não liam/ No bronze abertas; súplice caterva/ à face do juiz não palpitava:/
todos viviam sem juiz sem dano‖186.
Sucedendo-se as eras, viria finalmente a última e a mais terrível: a Idade de Ferro.
Na obra de Ovídio, Júpiter aparece como um juiz que se ira diante das calamidades da
terra, que, na Idade do Ferro, estava tomada pela guerra e pelos crimes.
Eis-me um tempo agora em que me é forçoso
Fazer tremenda, universal justiça,
Perder a humana estirpe em tudo, em tudo
Quanto abraça Nereu circunsonante.
Subterrâneas, tristíssimas correntes,
Correntes que lambeis o estígio bosque,
Até juro por vós que ao mal infando
Mil remédios em vão tentei primeiro!
Mas incurável chaga exige o ferro,
Cortada cumpre ser porque não lavre,
Porque não fique o são também corrupto.187
185
CUEVA, Juan de la. ―Profetiza la sibila a Augusto, la venida de Cristo.‖ In: DURAN, Don Agustín. (org).
Romancero General. Madrid: Imprenta de la Publicidad, 1849. p. 392.
186
OVÍDIO. Metamorfoses. (Trad. de Bocage). São Paulo: Martin Claret, 2003. p.19
187
Idem. p.23.
235
Para os intérpretes cristãos, assim como a Idade de Ouro poderia ser representada
pela primeira vinda de Cristo, que veio perdoar os pecados da humanidade e restabelecer
seu reino na terra, a Idade de Ferro se encaixaria plenamente na descrição do ―Dia da ira‖,
quando o retorno do juiz marcaria uma nova era, de punição ou absolvição, de acordo com
as ações de cada um, como no texto ovidiano, ―para que não fique o são também corrupto‖.
Um dado importante sobre o tema aparece na Bíblia, numa passagem em que o
profeta Daniel interpreta um sonho de Nabucodonosor, rei da Babilônia. No sonho, uma
antevisão de outros tempos, esses mesmos metais aparecem, na ordem exata do texto de
Ovídio, e também representam, segundo a interpretação de Daniel, quatro tempos distintos.
O rei babilônico teria visto uma grande estátua composta pelos quatro elementos: cabeça de
ouro, peito e braços de prata, ventre e quadris de bronze e pernas de ferro (acresce-se, no
entanto, que nos pés aparecem uma mistura de ferro e de barro).
Daniel interpreta a imagem como a representação de quatro reinos distintos e revela
que o de ouro representa o reinado de Nabucodonosor, que seria substituído por outros
inferiores, de prata, de bronze e de ferro. Assim ele descreve o último: ―O quarto reino será
forte como ferro; pois, o ferro a tudo quebra e esmiúça; como ferro quebra todas as cousas,
assim ele fará em pedaços e esmiuçará‖ (Daniel 2: 40). Como no texto ovidiano, esse
tempo seria marcado pela violência e pela guerra. Daniel, no entanto, acrescenta um outro
reino àqueles quatro, relatando que uma pedra, tirada do monte, formaria um quinto reino
que suplantaria todos os quatro, ―esmiuçará e consumirá todos estes reinos, mas ele mesmo
subsistirá para sempre.‖ (Daniel 2:45).
Há diferenças na concepção final de ambas as culturas com relação a estas
representações hierárquicas, já que no livro judaico não existe o retorno àquela primeira
idade, mas a vinda de um quinto elemento, de fora, que desagregaria os outros reinos. No
entanto, os pontos de contato entre as representações favoreceram a fusão entre um e outro
princípio, na medida em que abordavam questões muito similares. Além disso, notamos
que nos três textos a figura do profeta é de suma importância, pois, diante dos reis, ele
anuncia/ interpreta os dados da realidade vindoura: neste texto, Daniel, naqueles, a Sibila
Tiburtina e Cuméia. E, mais uma vez, temos sibilas e profetas emparelhados no percurso
mítico/histórico da tradição pagã e judaico-cristã.
236
Além do oráculo da Sibila de Cumas, presente nos versos de Virgílio, e o da Sibila
Tiburtina, uma outra predição, muito utilizada e citada por autores cristãos, originou-se do
livro VIII do Oracula Sibyllina. Trata-se de uma profecia atribuída à Sibila Eritréia. O
primeiro a mencionar o oráculo foi Eusébio de Cesaréia (Eusebii Pamphili Caesariensis)
em seu Oratio Constantini ad Sanctorum Coetum, um panegírico ao imperador
Constantino. Eusébio atribuiu ao Imperador a revelação de um acróstico, retirado do
oráculo da Sibila Eritréia, que predizia a vinda do Messias, ao formar, em grego, os
seguintes dizeres: ―Iesoús Khreistós Theoú Hyiós Sotér” (Jesus Cristo, filho de Deus, o
Salvador).188
O oráculo, entretanto, só alcançaria a notoriedade após a sua tradução para o latim,
feita por Santo Agostinho. Não apenas a tradução de Agostinho de Hipona, mas a
eloqüência dos seus escritos e a influência desses na cristandade, deram à profecia da sibila
a legitimidade necessária. Em De Civitate Dei, o religioso, apesar de fazer plena distinção
entre a Cidade de Deus e a Cidade terrena (dos pagãos), cita Lactâncio e utiliza-se das
mesmas vias para convencer/converter seus interlocutores. Ao transcrever o oráculo,
Agostinho diz ser a Sibila Eritréia a mesma que profetizava em Cumas, embora,
posteriormente, as duas sibilas tenham sido representadas, por outros autores, como figuras
distintas.
Eis o conteúdo do oráculo que, no latim, inicia-se com o verso: ―Iudicii signum
tellus sudore madescet”.
Ι A terra cobrir-se-á de suor frio. Será o sinal do juízo.
Η O Rei imortal dos séculos baixará do céu
Σ e apresentar-se-á em carne para julgar a terra.
Ο E, quando o mundo decline para o seu ocaso, o fiel e o infiel
Υ verão Deus , acompanhado de seus santos.
Σ As almas apresentar-se-ão ao juiz com os respectivos corpos
Φ e na Terra já não haverá beleza nem verdura.
Ρ Os homens deixarão os ídolos e as riquezas.
Ε O fogo abrasará a terra e, ganhando terra e mar,
Ι quebrará as portas do sombrio Averno.
Σ Já libertos da carne, os corpos dos santos gozarão da luz
Ί e os pecadores serão abrasados por eterna chama.
Ο Então, revelando seus atos ocultos, cada qual descobrirá
Σ os próprios segredos e Deus fará luz nos corações
188
PAMPHILI, Eusebii. De Vita Constantini et Panegyricus atque Constantini ad Sanctorum Coetum.
Lipsiae: Guilelmum Nauckium, 1830. p. 383-384
237
Θ Tudo então será choro e ranger de dentes.
Ε O sol escurecerá e o coro dos astros perderá o tom.
Ο Girará o céu e a Lua apagar-se-á como lâmpada;
Υ abater-se-ão as colinas, altear-se-ão os vales;
Υ e nas coisas humanas não haverá culminâncias nem alturas.
Ι Os montes nivelarão com os campos e o mar será inavegável.
Ο Tudo acabará, a Terra far-se-á em pedaços,
Σ as fontes e os rios serão torrados ao fogo.
Σ Mas no alto soará então o triste som da trombeta
Ω e tudo se cobrirá de gritos e de prantos.
Τ Abrir-se-á a Terra e deixará ver seu profundo e caótico abismo.
Η Perante o tribunal do Senhor comparecerão os rei
P E os céus verterão torrentes de fogo e enxofre.189
Agostinho teria suprimido os quatro versos finais do original grego, com o
propósito de manter 27 versos para enfatizar a perfeição da composição triádica, sendo esse
número o resultado de três elevado ao cubo. Buscando novas significações, o bispo de
Hipona ainda consegue extrair outra mensagem do acróstico grego. As primeiras letras de
―Iesoús Khreistós Theoú Hyiós Sotér‖ formariam a palavra Ikhthys, ―peixe‖, pois, segundo
ele, Cristo teria sido o único capaz de se manter vivo, sem pecado, nas profundezas do mar
da nossa mortalidade190. Iniciava-se, assim, a imagem do peixe como símbolo do
cristianismo.
Ao tecer tais aproximações, ainda que o propósito do livro fosse refutar as crenças
pagãs, Agostinho colaborava ainda mais com a fusão entre paganismo e cristianismo, já
que ―Ichtys‖ era também o nome do filho da deusa síria Atargatis (Astartéia, Astarote ou
Astarte em outras culturas). Tanto mãe quanto filho tinham o peixe e o mar como símbolos.
Os caldeus e babilônicos assimilariam o culto ao deus-peixe, dando a ele o nome de Ea ou
Ioannes, conhecido posteriormente como Dagom (do hebraico, dag, que significa
―peixe‖).191
Não há dúvida de que Agostinho usou tanto os procedimentos de Lactâncio, para
estabelecer conexões entre paganismo e cristianismo, quanto os do apóstolo Paulo para
189
SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus (contra os pagãos). Parte II. (Trad. Oscar Paes Leme).
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. p. 336. (Livro 18, cap. XXIII).
190
Idem. p.337.
191
KUHN, Alvin Boyd. The Red Sea. Pomeroy: Health Research, 1996. p.43. ―Os antigos sumérios,
ancestrais dos babilônicos, haviam falado do peixe reencarnação de Vishnu, e o antigo epônimo do herói da
Caldéia deve ter vindo de Ioannes, o Peixe Avatar sob o nome de Dagom. E dag é a palavra hebraica para
―peixe‖.
238
reler o Antigo Testamento como prefiguração do Novo. Mesmo que não seja
necessariamente uma profecia, cada parte da história dos hebreus remete a um episódio dos
Evangelhos ou a um determinado evento cristão. Haveria, assim, plena correspondência
entre judaísmo e cristianismo. Exemplo disso é a leitura que Santo Agostinho faz dos
gêmeos Esaú e Jacó, do Antigo Testamento, ao se referir à profecia que Deus havia dado a
Rebeca, mãe de ambos, quando ela sentiu que as crianças brigavam em seu ventre.
Quando Rebeca concebeu, os gêmeos, ainda no ventre materno, lutavam.
Angustiada pelo conseqüente mal-estar, dirigiu-se ao Senhor e recebeu
esta resposta: Há duas nações em teu seio e de teu ventre sairão dois
povos. Um povo subjugará o outro e o maior servirá o menor. (...)
E, embora seja verdade que isso parece haver-se cumprido no povo
idumeu, descendente do maior, que tinha dois nomes (chamava-se Esaú e
Edom, por isso, idumeus), pois o dominou o povo nascido do menor
[Jacó/Israel], o povo israelita, ao qual ficou submetido, é mais razoável
acreditar que a intenção da profecia: Um povo subjugará o outro e o
maior servirá o menor, vai além, a algo superior. E que é isso, senão o
que com toda a clareza vemos cumprir-se nos judeus e nos cristãos? 192
Portanto, um episódio anterior passa a ser prenúncio de um evento futuro. Assim,
Esaú e Jacó são, respectivamente, prefigurações do judaísmo e do cristianismo; o povo
antigo torna-se servo do mais novo, opinião que vai ser acolhida na época de Agostinho e
disseminada em períodos subseqüentes.
Dos oráculos sibilinos às prefigurações judaicas, todos os caminhos levam à
verdade apregoada pelo teólogo católico. As articulações do texto agostiniano revelam que
sua pregação destinava-se tanto aos povos pagãos quanto ao povo judeu e que sua retórica
estendia-se, como a cruz cristã, vertical e lateralmente, englobando uma tradição e
incluindo outros povos num só paradigma, a fim de revelar que o sacrifício de Cristo
fundou uma crença universal, destinada a todos os povos. Afora a utopia da unidade através
da reunião de crenças distintas, em A cidade de Deus o teólogo cria uma nova dicotomia,
desta feita entre os indivíduos da ―cidade celestial‖ e os da ―cidade terrena‖, sobre os quais
falaremos em outra ocasião.
A interpenetração dos discursos pagãos/judaicos/cristãos pode ser notada nos dois
níveis: tanto se percebem influxos cristãos nos textos pagãos, quanto destes naqueles.
192
AGOSTINHO, Santo. Op. cit. p. 260.
239
Como nos sugere o poema de Belloy, sobre o edifício ancestral vão sendo construídas
novas conjecturas, mas que não se desligam totalmente dos antigos padrões. A sibila seria
esta figura retirada da gruta da Antiguidade para profetizar o advento do Messias nos
altares da Idade Média. Sua função clássica, de predizer o futuro de heróis e de reis nas
grandes obras greco-romanas, é substituída pela de profetisa do mundo cristão. Interessanos, sobretudo, acompanhar essa transição da Sibila – que surge nos discursos agostinianos
e de outros padres da Igreja - da Antiguidade para a Idade Média, assim como,
posteriormente, veremos sua representação na obra machadiana.
Quodvultdeus, o bispo de Cartago, contemporâneo de Agostinho, escreveu um
sermão denominado Contra Iudaeos, Paganos e Arianos, e que ficou mais conhecido pelo
nome de Sermo de Symbolo. Nesse sermão, espécie de texto dialogado, compareciam
vários profetas do Antigo Testamento – Isaías, Jeremias, Daniel, Davi, Habacuque –
seguidos de outras figuras e profetas do Novo Testamento – Zacarias, João Batista e Isabel.
Junto a esses personagens bíblicos, surgiam também Virgílio e Nabucodonosor, como
representantes do universo pagão que confirmavam a validade das palavras ali
pronunciadas sobre a vinda de Cristo e o Juízo Final. No término do sermão, surgia a fala
da Sibila Eritréia pronunciando, ipsis litteris, o oráculo traduzido por Agostinho em De
Civitate Dei.
Por muito tempo, esse sermão se fez passar por texto agostiniano, o que favoreceu
ainda mais sua divulgação nos anos subseqüentes, permitindo a maior popularização do
oráculo e a definitiva fusão entre profetas e sibilas no imaginário medieval.
Um dos aspectos que ampliaram o alcance do sermão foi a maneira dialogada do
texto de Quodvultdeus, que passou a ser incluído na liturgia, principalmente nas festas
religiosas do calendário da Igreja, e servia como um instrumento eficaz de evangelização
das massas. O impacto da profecia era muitas vezes mais valorizado que a leitura do
sermão, já que, na parte referente ao oráculo, entrava um indivíduo, representando a Sibila,
que pronunciava o texto num tom dramático. Além de atrair a atenção das massas, a sibila
ali representada infundia-lhes terror, principalmente por enunciar o dia da ira de Deus
como uma ameaça a todos aqueles que não acreditassem na veracidade do que estava sendo
representado.
240
O sermão com ênfase dramática, portanto, passava a ser um importante instrumento
de divulgação do cristianismo. A união entre elementos cristãos e pagãos tinha o oráculo da
sibila Eritréia como mote principal do argumento eclesiástico. Veremos, pois, como esse
tipo de dramatização foi eficaz tanto na evangelização dos povos quanto na consolidação
dos regimes políticos.
4.3- Do altar para o palco da vida: sibilas e profetas na consolidação do Estado
e da Igreja
Nos séculos posteriores, o sermão difundiu-se pela Europa e, em algumas versões, o
trecho do oráculo da Sibila foi musicado para melhor assimilação do seu conteúdo pela
platéia. A ênfase dramática, por fim, permitiu que o sermão se transformasse em peça mais
elaborada, com caracterização de todos os personagens e grande impacto no público. Assim
originaram-se os dramas litúrgicos como o Ordo Prophetarum, Ordo Sibyllarum e o Canto
de la sibila.
Tanto en Francia como en Espana el sermón del Pseudo-Agústin, más
conocido por Sermo de symbolo,uso ocupar la Lección 6ª o la 9ª de los
maitines de Navidad. Em ambos países los versos del sermón que
corresponden a la Sibila, ―Judicii signum‖ etcétera, se cantaban desde
antiguo, pero se ignora donde y cuándo se les puso música. En el caso
particular da Cataluña el documento más antiguo em el que figuran es
una miscelánea del siglo X del monastério de Ripoll; el inicio de los
versos de la Sibila que lleva notación.193
193
MUNTANÉ, Maricarmen Gómez. La musica medieval en Espana. Kassel: Edition Reichenberger, 2001. p. 71.
241
Analisando a letra de algumas dessas composições musicais, pode-se perceber de
onde Tomas de Celano teria conseguido inspiração para compor o seu ―Dies irae‖, além, é
claro, da grande popularidade que essa temática deveria ter à época. Estudos de distintas
áreas de conhecimento, principalmente no campo das Artes Plásticas e da Música,
pesquisaram a penetração dos dramas litúrgicos na Europa e constataram, com surpresa,
que havia resquícios da representação do Ordo Prophetarum em diversas partes do
território europeu, incluindo regiões como Zagreb, na Croácia.
Em sentido estrito, isto é, como drama litúrgico independente, só se
conservam três ordines medievais procedentes de Limoges (finais do
XI), Leon (século XIII) e Rouen (século XIV). Há, entretanto, notícias de
outros perdidos e de textos afins como os de Einsiedeln, Benediktbeuren
e Salerno ou a lectio de Arles, e há uma década descobriu-se um
fragmento de Ordo croata procedente de Zagreb (fins do XII).
Conservam-se, portanto, desde datas muito distantes, testemunhos nas
línguas vernáculas tanto românicas como germânicas, servindo
geralmente como prólogo de mistérios do Natal.194
A influência do Ordo se espalhou pelo território europeu e incidiu também na
iconografia do período e na arte esculpida nas catedrais. Na catedral de Santiago de
Compostela, por exemplo, Mestre Mateo, entre os anos de 1168 e 1188, entalhou as
imagens do ―Pórtico da Glória‖, trabalho inspirado na representação do Ordo, reunindo
esculturas de sibilas e profetas, imprimindo-lhes determinados movimentos e expressões
faciais. Cercadas por outras esculturas de instrumentistas e do coro (elementos que
costumavam acompanhar a representação dramática), as esculturas de Mestre Mateo
parecem dar vida aos diálogos do Ordo, além de muitas delas apresentarem máscaras,
artefatos usados especificamente nas representações teatrais.
Para dar maior ênfase à obra, o artista esculpiu também os horrores do Inferno, a
subida ao Purgatório e as glórias do Paraíso, temáticas obsessivamente reproduzidas no
cenário medieval, e que teriam sua definitiva coroação na Commedia de Dante Alighieri.
Sofrendo contínuas modificações, os dramas litúrgicos ganharam outras figuras
bíblicas e pagãs que passaram a aumentar o coro dos profetas na difusão do temido ―Dia do
194
MONTAÑÉS, Julio I. Gonzáles. ―Drama e iconografia na Idade Média‖. In: ANUÁRIO GALEGO DE
ESTUDIOS TEATRAIS. Conselho da Cultura Galega. Sección de Música e Artes Escénicas. Santiago de
Compostela: Comisión Tecnica de Teatro, 2002. p. 25. (Tradução do galego)
242
Juízo‖. Em algumas representações do Ordo Prophetarum, por exemplo, além das
personagens já citadas, pode-se observar o acréscimo das figuras de Salomão, o sábio rei
judeu e dos doutores da Igreja, sábios cristãos, como Santo Agostinho, que, até então,
acreditavam ser o autor do Sermo do Symbolo.
A vitalidade do tema das sibilas se verifica pelo próprio caráter da profecia aqui
exemplificado. Por terem uma leitura ambígua, esses oráculos vão sobreviver por muitos
séculos, sendo usados das mais diversas formas e pelos mais diferentes segmentos da
sociedade e, o mais interessante, servindo a propósitos distintos, até mesmo contraditórios.
Enquanto a Igreja necessitava do fortalecimento de sua doutrina, esses oráculos
foram usados para convencer o povo da validade do discurso cristão, mas não só para isso:
também para infundir uma crença inveterada no final dos tempos. Até o ano mil da era
cristã, muitas foram as profecias que apareceram no cenário medieval anunciando o
iminente fim do mundo, quando aumentavam os sacrifícios, as peregrinações à Terra Santa,
as mortificações e o medo do dia do Juízo. Acrescia-se a tudo isso a constante ameaça das
invasões bárbaras e, principalmente, de muçulmanos que se espalhavam por toda a Europa.
A figura do Anticristo era convocada em todos os discursos e ora via-se representada num
rei tirano, ora num seguidor de Maomé, enfim, naquele que fosse o opositor de
determinada, pessoa, instituição ou reino.
A partir dos séculos finais do primeiro milênio, principalmente após a ascensão de
Carlo Magno, primeiro Imperador do Sacro-Império, as sibilas, que antes anunciavam o
nascimento de Cristo e o dia do Juízo Final, passaram a prever também que um rei, em
carne e osso, instauraria um reinado terrestre. Inicia-se assim uma outra releitura histórica
das interpretações da Oracula Sibyllina, em especial, do oráculo da Sibila Tiburtina. Essa
profecia, que anunciava a reunificação do Império do Ocidente e do Oriente, seria
obsessivamente perseguida pela Igreja como uma maneira de preparar a terra para o
advento, mas também como forma de consolidar sua autoridade diante dos povos.
Assim, a crença num Imperador Divino passaria a ser a tônica dessa nova fase
medieval, partindo do mesmo esquema profético de antes. Apoiando-se no oráculo da
Tiburtina, apregoava-se o retorno do rei, que tanto poderia ser um novo Augusto quanto um
segundo Carlo Magno, para reassumir a missão de Imperador do Sacro Império. Porém, ao
contrário do que se pretendia, a união do Sacro Império parecia cada vez utópica, já que as
243
discordâncias - ideológicas, religiosas e políticas - faziam a Igreja do Ocidente distanciar-se
cada vez mais da Igreja do Oriente, favorecendo a cisão entre ambas.
A definitiva consignação da Igreja do Ocidente, sobrepujando a do Oriente,
aconteceria por meio de um recurso muito eficaz: a carta da ―Doação de Constantino‖, que
concedia à sede romana poderes ilimitados e privilégios reais, fazendo com que se
apoderasse da autoridade divina, poder espiritual, e da Imperial, poder temporal. Sob dois
alicerces, submeteria os reis, os nobres e toda a humanidade ao julgamento e à autoridade
papal, tantos nos assuntos terrenos quanto nos divinos.
Com o crescimento do poder papal, muitos religiosos passaram a discordar da
atitude da Igreja, o que contribuiu para a multiplicação de Ordens Eclesiásticas que
pregavam a humildade, o voto de pobreza, principalmente de algumas Ordens Mendicantes
que se opunham à opulência e à riqueza que os papas passaram exibir a partir de então.
Além do voto de pobreza, os religiosos se isolavam em ermidas ou em conventos
distantes. Sobretudo o eremitismo, recurso utilizado desde épocas remotas, ganha força,
pois a crença popular conferia a esses indivíduos, isolados dos males da civilização, a
posição de ―seres escolhidos por Deus‖, portadores de mensagens divinas.
Pode-se dizer que essa imagem do eremita é uma outra variação da figura dos
profetas e da sibila, que, segundo os antigos relatos, também habitavam em grutas ou em
lugares isolados, sem nos esquecermos dos homens santos que peregrinavam em regiões
desérticas, passando privações e jejuns, a fim de viverem sob a inspiração de Deus.
Nesse cenário medieval, destaca-se o abade Joaquim de Flora (1145-1202) Gioacchino da Fiore - fundador do Convento de Císter. Inspirado nas idéias de Santo
Agostinho, o abade retoma as prefigurações agostinianas acerca dos dois Testamentos
bíblicos numa nova leitura, principalmente nas obras: Livro da concordância do Novo e do
Velho Testamento, Livro das figuras e O Evangelho eterno. Recebendo uma revelação
divina após peregrinar na Terra Santa, o abade passa a acreditar que o mundo segue um
padrão trinitário. Assim como o Antigo Testamento (a Idade do Pai) era prefiguração do
Novo, o Novo Testamento (a Idade do Filho) seria uma prefiguração de uma terceira fase
que estava por vir. Flora anunciava essa última Era como a Idade do Espírito, em que a
integridade da Igreja seria restabelecida por um Imperador do reino terreno, reunificando
Ocidente e Oriente e inaugurando uma fase de paz, união e equilíbrio no mundo.
244
Porém, segundo os cálculos do abade calabrês, assim como a Idade do Pai se
configurou a partir da vinda do Filho, a Era do Espírito só aconteceria após a grande
batalha contra o Anticristo, falso profeta que surgiria por volta do ano de 1260. Antes desse
conflito final, todavia, seria necessária a purificação da Igreja, até então corrompida pelo
poder e pelas riquezas, por intermédio de um grande Imperador. Ele tomaria o poder
temporal do papado, reassumindo o papel de chefe político, e designaria um Papa Angélico
para restaurar a missão divina e espiritual da Igreja. Esse Papa, juntamente com os
elementos do povo e com o apoio dos eremitas, venceria o Anticristo, dando início a um
reinado de paz na terra, o reino milenar, onde não haveria mais espaço para as divisões,
para as diferenças de classes etc.
A crença milenarista, que institui um reinado divino na terra, baseia-se na premissa
de uma sociedade voltada para a união dos povos, na adoção de ideais igualitários, na
Unidade através da eliminação das diferenças, com um só Governo e uma só crença. O
Estado e a Igreja, restaurada, estariam unidos em torno do Bem comum da humanidade. O
pensamento utópico do abade Joaquim de Flora teve grande alcance na época e em
períodos subseqüentes, instituindo a crença messiânica, voltada, porém, para a esfera
política. Basicamente, as revoluções populares, os regimes utópicos e nacionalistas vão se
fundamentar nessa crença na Igualdade, no estabelecimento de uma sociedade justa e num
governo do povo, tendo como exemplo mais cabal dessa influência o sebastianismo
português.
Em The Pursuit of the Millennium, Norman Cohn, após analisar toda a influência da
crença milenarista nos movimentos revolucionários, mostra que ela não se reduziu ao
século XI, mas se estendeu até o século XVI, apoiando-se nos mais diversos textos
proféticos, da Bíblia, nos oráculos sibilinos e, também, nos escritos do abade Joaquim de
Flora.
They occurred in a world where peasant revolts and urban insurrections
were very common and moreover were often successful. It frequently
happened that the tough, shrewd rebelliousness of the common people
stood them in excellent stead, compelling concessions, bringing solid
gains in prosperity and privilege. In the age-old laborious struggle
against oppression and exploitation the peasants and artisans of medieval
Europe played no ignoble part. But the movements described in this book
are in no way typical of the efforts which the poor made improve their
245
lot. Prophetae would construct their apocalyptic lore out most varied
materials – the Book of Daniel, the Book of Revelation, the Sibylline
Oracles, the speculations of Joachim of Fiore, the doctrine of the
Egalitarian State of Nature – all of them elaborated and reinterpreted and
vulgarized. That lore would be purveyed to the poor – and the result
would de something which was at once a revolutionary movement and na
outburst of quasi-religious Salvationism.195
Outro ponto importante, esboçado há algumas linhas atrás, é o retorno à Idade de
Ouro. Não se pode negar a semelhança das idéias de Joaquim de Flora com as prenunciadas
no ideário clássico e nos escritos hebraicos, de que vários reinos se sucederiam até que
fosse retomado o reinado de paz e equilíbrio de outrora. Como no Livro de Daniel,
acreditava-se na vinda de um ―Quinto Império‖, que destruiria os anteriores, ou de um rei
que restabeleceria a paz, como no mito de Saturno, que faria retornar os tempos de glória.
Paralelamente, o segundo milênio trazia uma nova reunião de elementos pagãos e
cristãos que convergiriam para a figura do rei com uma missão divina: o ciclo das novelas
de cavalaria, baseado em lendas pagãs celtas e ibéricas, fundidas ao ideário cristão. Na
literatura de cavalaria, o cálice dos druidas, o Santo Graal, passaria a cálice de Cristo, a
sibila ganharia ares de fada, enquanto o profeta se recobriria das vestes de mago. Morgana
ou Merlim, essas seriam as novas representações medievais, baseadas no sincretismo
pagão-cristão que os artistas do período passariam a representar em suas histórias.
Um forte misticismo seria a principal característica desses primeiros séculos do
segundo milênio. Além da interpenetração de discursos pagãos e cristãos, havia a
alternância de ideais políticos e religiosos no meio eclesiástico. As interpretações dos
textos do abade, todavia, não traziam nenhum benefício para a Igreja, que se sentiu
ameaçada com a idéia de um terceiro evento que pretendia restabelecer uma Nova Ordem,
prenúncio de outro cisma no meio eclesiástico.
Essa ameaça parecia cada vez mais real a partir do momento em que muitos
religiosos radicais passaram a usar essas idéias para fortalecer discursos de oposição à
Santa Sé. Por outro lado, os franciscanos valeram-se amplamente das profecias do abade
para reafirmar a grandeza de São Francisco, declarando que a fundação da Ordem dos
Franciscanos seria o evento, profetizado por Flora, que promoveria a purificação da Igreja.
195
COHN, Norman. The Pursuit of the Millennium. New York: Oxford University Press, 1970. p.281.
246
Para acentuar o misticismo religioso, uma série de textos pseudo-joaquimitas
passariam a circular, trazendo ―verdades escondidas‖, revelações sobre novos
acontecimentos do plano espiritual, textos, enfim, forjados por dominicanos e franciscanos
ortodoxos, com objetivos religiosos e, muitas vezes, políticos, incluindo a divulgação de
profecias pseudo-joaquimitas acerca do rei Frederico II, taxado de Anticristo. 196
Outros textos foram escritos por nobres e sábios cristãos que pretendiam ver o Papa
assemelhado a esta figura maligna; enfim, de um e de outro lado, as profecias sibilinas e
joaquimitas serviriam para associar a ascensão de reis tiranos ou papas a eventos
apocalípticos, para o bem ou para o mal.
Dentre os escritos pseudo-joaquimitas mais divulgados constam: o Oráculo de
Cirilo (Oracullum Cyrilli cum Expositione Abbatis Joachim), o Libellus e o Expositio
Sybillae et Merlini, os dois últimos trazendo profecias da Sibila Tiburtina e do próprio
Merlim para reinterpretar as idéias de Joaquim de Flora. Nota-se nessas obras a mescla das
profecias sibilinas, das previsões do abade e, o mais notável, a afirmação de Merlim como
profeta desse novo tempo, enfim, todos eles anunciando a vinda de um rei, um Salvador,
que restabeleceria a antiga ordem ou criaria uma nova.
Especificamente no Libellus, existe um certo Telésforo de Cosenza, com um perfil
muito próximo do abade, falando sobre sua visão e validando o discurso através das mais
variadas fontes cristãs e pagãs. Há também a fusão de elementos do ciclo da cavalaria nessa
nova leitura das profecias sibilinas, neste caso, à luz das idéias de Joaquim de Flora.
Telésforo, em jeito de introdução, conta que, na manhã do dia de Páscoa
do ano de 1386, tivera uma visão de um anjo que lhe disse que Deus
tinha atendido as suas orações, e, por isso, lhe comunicava que as
respostas as suas dúvidas – sobre a divisão da Igreja e o seu verdadeiro
pontífice... – estavam infusas nas profecias de muitos servos de Deus que
tinham profetizado por graça do Espírito Santo, como Cirilo, Joaquim de
Flora, Merlim, a Sibila Tiburtina entre outros. Portanto, deveria ler e
estudar o conteúdo dessas obras com o propósito de desvendar as causas
e o fim da cisão. A mesma coisa seria dizer que a solução estava no vasto
corpus da literatura joaquimita e pseudo-joaquimita.197
196
SANGERMANO, Luciano. ―Il Gioachimismo di Salimbene‖. In: ITALIA FRANCESCANA. Revista di
cultura francescana. Ano LXXXIII.nº 3 –set.-dic. Roma: 1998. 13-36.
197
SERAFIM, João Carlos. ―Eremitismo, Profecia e Poder: o caso do Libellus do pseudo-eremita Telésforo de
Cosenza‖. In: REVISTA VIA SPIRITUS. nº 9. Eremitismo na Época Moderna: modos e lugares. Porto:
FLUP, 2002. p. 67.
247
A releitura política, espiritual e estética de todo desse ideário medieval que,
posteriormente inauguraria uma nova fase - o Renascimento -, foi plenamente realizada por
Dante Alighieri em sua Commedia. Apesar de não citar diretamente as profecias sibilinas,
Dante vai utilizar os discursos proféticos do abade Joaquim de Flora para fazer uma
interpretação figural da História de Roma e de toda política do seu tempo.
4.4- Profecia, utopia e interpretação figural na obra de Dante Alighieri
Influenciado pelas idéias de Joaquim de Flora, Dante aguardava o restabelecimento
da Igreja e a vinda do Veltro, o Imperador da profecia joaquimita, que unificaria o Império
do Ocidente e do Oriente para o segundo advento do retorno do Messias. Por esta
influência, justifica-se também a idéia ilustrada em Il Convívio de equiparar o surgimento
do Império Romano ao nascimento de David, como um acontecimento necessário para
unificar o mundo na primeira vinda de Cristo, favorecendo a plena aceitação dos
ensinamentos cristãos.
Também em Dante, como bem observa Auerbach, verifica-se a reinterpretação de
dados históricos, bíblicos e literários como forma de revelação de acontecimentos futuros.
É pela prefiguração que o escritor interpreta a realidade presente e antevê as realizações
vindouras. Logo, a narrativa dantesca não é puramente alegórica.
Por tudo que foi exposto nesse capítulo, percebe-se que a interpretação figural será
um método amplamente utilizado por escritores e religiosos de diferentes épocas para
analisar aspectos da realidade de seu próprio tempo e, de igual modo, para prever eventos
futuros. Contudo, haverá uma divisão marcante entre a visão profético-religiosa, mística
248
por excelência, e a antevisão intelectual - em que o sábio, aquele que é capaz de analisar os
eventos do passado e do presente, consegue trazer à tona as verdades encobertas.
Encontramos, na primeira vertente, o ideário medieval e, na segunda, o
renascentista. A primeira prenunciaria eventos com fins religiosos e estaria a serviço da
Igreja, enquanto a outra teria a prefiguração como objetivo científico e estético, a serviço
dos homens cultos da Renascença.
A compreensão do caráter figural da Commedia não se constitui num
método universal que nos permite interpretar cada uma de suas passagens
controvertidas; mas é possível derivar dele certos princípios de
interpretação. Podemos ter certeza de que cada uma das personagens
históricas ou míticas existentes no poema deve significar algo
intimamente ligado ao que Dante sabia acerca de sua existência histórica
ou mítica, e que esta relação é entre preenchimento e figura; devemos ter
sempre o cuidado de não negar também sua existência histórico terrena,
de não confinarmos a uma interpretação abstrata, alegórica. Isto aplica-se
particularmente em relação a Beatriz. O realismo romântico do século
XIX enfatizou ao máximo a Beatriz humana, com sua tendência a fazer
da Vita nuova uma espécie de novela sentimental. Depois veio a reação;
a nova tendência é eliminá-la completamente, dissolvê-la num
aglomerado de conceitos teológicos cada vez mais sutis. (...) Para Dante,
o significado literal ou a realidade histórica de uma figura não apresenta
nenhuma contradição com seu significado mais profundo, pois representa
necessariamente a sua ―figuração‖; a realidade histórica não é anulada,
mas confirmada e preenchida pelo significado mais profundo.198
A leitura que Dante faz em Il Convívio também não pode ser tratada como uma
simples alegoria ou como a construção de uma lenda sobre a similaridade das estirpes
judaica e romana. A obra de Virgílio e a Bíblia são analisadas pelo poeta como verdades
históricas, não como mitos e fábulas de um povo.
Quanto à configuração da obra dantesca, principalmente da Commedia, é óbvio que
não se pode negar o seu hermetismo, e aqui se usa o termo no sentido original, o de obra
voltada para ―iniciados‖. Mas, conhecendo o contexto histórico em que Dante se insere e
analisando o universo literário a que se filia, prontamente pode-se perceber que a mesma
prefiguração histórica usada por Agostinho e Flora se faz presente em seus escritos.
Assim como Agostinho realiza a divisão entre a Cidade Divina e a Cidade Terrena,
Dante, na Commedia, vai distinguir duas Romas: a celestial e a terreal. O poeta florentino,
todavia, vai inverter o panorama da interpretação cristã, colocando a Roma divina como
198
AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997. p. 62
249
aquela cantada por Virgílio, e a Roma terrena como a cidade corrupta de seu tempo. Sabese que, por conflitos políticos e religiosos, Dante se encontrava fora de Florença, exilado da
terra natal, e não via com bons olhos a dominação política da Igreja e sua associação com o
rei Felipe IV.
Em vários trechos da Commedia, o escritor condenará a Igreja por ter concentrado
nas mãos os poderes político e religioso, atribuindo à ―Carta de Doação de Constantino‖,
de que falamos, a origem da corrupção papal. Na época de Dante, o documento era
considerado original e garantiu à Igreja poderes absolutos; por isso, apesar da intenção
legítima de Constantino, a doação seria, segundo o poeta, uma maldição no seio
eclesiástico.
Dante expõe o assunto na sua obra e vai diferenciar prontamente a Roma celestial
da terrena, através de duas figuras: a águia e a loba. Sempre que se dirige à Igreja de Roma,
a representa como lupa. Ao falar do Império Romano ou do Sacro-Império, utilizará a
simbologia das duas águias, já aqui analisadas. Como um inveterado defensor da
Monarquia Universal, seria inconcebível para ele que o Papa, sacerdote espiritual,
concentrasse nas mãos o poder do Imperador. Ao tomar para si um e outro domínio, teria
perdido ambos os propósitos.
Roma, que seu Império fez jucundo,
tinha dois sóis, que uma e outra estrada
mostravam, a de Deus e a do mundo.
Um e outro apagou; juntou-se a espada
ao báculo, e por certo não adianta
a nenhuma a outra força acrescentada,
porque agora uma a outra não espanta;
se não me crês, considera essa espiga:
que pelo fruto se conhece a planta.
(...)
Pois a Igreja de Roma que planeia
ter em si dois poderes confundidos,
cai na lama e conspurca a si e à sua preia.199
(―Purgatório‖ – Canto XVI : 106-129)
199
ALIGHIERI. D.C. Op. cit. p.109
250
Na Commedia, Dante faz uma releitura de toda a situação política de seu tempo
através das prefigurações presentes nos eventos da Bíblia, na História de Roma e na obra
de Virgílio, incluindo o trecho da profecia da Sibila Cuméia, das Bucólicas. Em especial,
Dante vai eleger Virgílio o Sumo Poeta, um Guia tanto nas questões relacionadas ao
literário e ao estético, quanto nos assuntos espirituais, um revelador de verdades cristãs.
Conforme Lactâncio havia feito, mas servindo a outro propósito, Dante trata o poeta latino
como profeta, pondo nos lábios de Estácio, um dos redimidos do ―Purgatório‖ e autor do
poema épico Tebaide, a constatação da importância de Virgílio na condição de anunciador
do cristianismo. O trecho é um dos mais belos do Purgatório:
E ele: ―Tu primeiro me enviaste
ao Parnaso, em suas grutas a beber;
e primeiro pra Deus me iluminaste.
Foste o viandante que ao anoitecer
leva o seu lume às costas, que não presta
pra si, mas sim pra quem atrás vier,
ao dizeres: ‗Nova era é manifesta,
volta a Justiça e a primeira feição;
nova progênie a vir do Céu se apresta‘.
Por ti poeta fui, por ti cristão;
mas, pra o desenho meu veres melhor,
a colori-lo vou estender-lhe a mão‖.
(Purgatório – Canto XXII: 64-75)200
A missão de Virgílio é aqui sobrelevada, pois ele concentra duas naturezas: a
profética e a poética. Tanto conduz Estácio ao Parnaso, ao culto das Musas e da Poesia,
quanto é o anunciador de Cristo, ou seja, é aquele que atesta a legitimidade do culto cristão.
Tornamos, então, à questão inicial de nossa pesquisa: a Arte como ponto de fusão das
culturas pagãs e cristãs, uma terza via, entre o antigo e o novo, entre a crença religiosa e a
inspiração intelectual.
Parnaso e Paraíso tornam-se, portanto, representações de uma verdade única, a de
que o artista deve ser o intérprete do mundo, trazendo aos homens, através da inspiração
poética, a revelação divina. O poeta é a sibila – que oculta a revelação divina em versos
200
ALIGHIERI. D.C. Op,cit. p. 145.
251
ambivalentes -, e o profeta – que diminui a distância entre Deus e os homens. A obra de
arte é, desse modo, uma saber oculto/revelado, que esconde a verdade divina sob o véu dos
versos. O leitor que deseja se aventurar nessas águas caudalosas não pode estar em
piccioleta barca, como Dante adverte nos primeiros versos do ―Paraíso‖.
O poeta de Eneida, da forma como é pintado por Dante, resume o perfil do Sábio
renascentista, aquele que traz a verdade clássica e acrescenta a ela a revelação cristã. O
―Sábio‖, fundindo platonismo e cristianismo, busca a excelência da Sabedoria, através da
revelação de Deus. Primeiramente Virgílio conduz Estácio à gruta do Parnaso, para beber
das águas inspiradoras, e, depois, o leva para a iluminação divina. Essa é uma configuração
muito semelhante ao mito da caverna de Platão.
O oráculo da Sibila de Cumas, por sua vez, é transcrito nos versos, mas atribuído ao
próprio Virgílio, tornando a profetisa apenas uma personagem a quem ele empresta a voz:
―Nova era é manifesta,/ volta a Justiça e a primeira feição;/ nova progênie a vir do Céu se
apresta‖. Essa nova progênie também já aponta um outro sentido: a geração do Sábio, do
artista, intérprete das ações humanas através da grande teia histórica, filosófica, literária,
política e social a que estão submetidas: “O voi che avete gl'intelletti sani,/ mirate la
dottrina che s'asconde/ sotto il velame delli versi strani” (Inferno - IX, 61-63)
No capítulo XXIV da Commedia, por exemplo, Dante anuncia uma grande ceia, que
podemos associar tanto à ―Santa Ceia‖, de Cristo, quanto ao banquete da sabedoria,
descrito em Il Convívio e que, por sua vez, remete ao Banquete de Platão. Ainda que
banidos do universo platônico – como na República - ou presos ao Limbo – como na obra
dantesca, os poetas da Antiguidade, principalmente Virgílio, são as luzes que preparam o
caminho daqueles que vêm após si. Aos novos poetas, héritiers des débris de l’édifice
antique, cabe reunir as duas grandezas, pagãs e cristãs, numa só concepção. Nesse mesmo
canto, Dante escreve o seu ―Credo‖, mostrando em que se fundamentava a sua fé:
(...) Num Deus eu creio
eterno e só, que o Céu inteiro move
imoto sempre, em amoroso anseio.
Minha crença, não só hei que ma prove
Física e Metafísica e as celestes
visões, mas a Verdade que nos chove
252
sempre daqui, e o entendimento destes
Profetas, e dos Salmos, de Moisés,
e do Evangelho que vós escrevestes.
Creio em Eternas três Pessoas, e as três
numa só Essência tão uma e tão trina
que admite o trato de sois e de és.
(―Paraíso‖- Canto XXIV:130-141)
A Commedia, assim como a interpretação de Joaquim de Flora, tem a construção
pautada num esquema triádico: são três partes, Inferno, Purgatório, Paraíso; três guias:
Virgílio, Beatriz e São Bernardo, trinta e três cantos em cada livro, todos em terza rima. O
poeta florentino, por sua vez, reconhece a importância do pensamento de Flora: ―e lucemi
da lato/ il calavrese abate Giovacchino/ di spirito profético dotato.”(Paraíso– Canto XII:
139-141).201
As três partes da Commedia podem ser lidas como as Idades descritas na obra de
Flora: A Idade do Pai, época da Lei, quando o pecador é duramente punido pelos erros que
cometeu (Inferno); Idade do Filho, época da Graça, quando o arrependimento redime o
pecador (Purgatório) e a Idade do Espírito, quando se rompe definitivamente o vínculo
material/corporal, e a alma, o Amor puro, está em evidência (Paraíso). O poeta-profeta
também aguarda um reino terreno onde a justiça possa ser restaurada na figura de um
Imperador, e a Fé possa retornar ao primeiro caminho através de um Papa Angélico.
Destaca-se também na obra dantesca uma questão de muita importância: a leitura
que o poeta faz de Cristo, que, tal como Virgílio (poeta e profeta, ao mesmo tempo), é
também concebido em sua dupla natureza. Poderíamos, numa abordagem superficial,
concluir que se trata da índole humana e divina de Cristo, mas o poeta ultrapassa essa
interpretação, construindo um Messias híbrido, pagão-cristão por excelência. Para ele,
Cristo é o Grifo (grifon), figura mitológica que possui cabeça e asas de águia unidas ao
corpo de leão. Não porque Dante quisesse reduzi-lo a um elemento mítico, mas por
acreditar que Cristo representava simultaneamente as duas estirpes: a romana (águia) e a
judaica (leão).
Dante constitui a Commedia como uma obra que serve de ponte entre a ―águia de
Jove‖ e a ―águia de Deus‖. Observe-se que não é a ―águia de Quirino‖ (de Rômulo),
201
ALIGHIERI. D.C. Op. cit. p. 90
253
cantada no poema de Machado, que Dante quer reaver, mas a Roma gloriosa dos tempos de
Augusto, de César, de Catão e de outros grandes romanos. Por esta ótica, tanto aquele que
traiu Cristo – Judas -, quanto os que traíram César - Bruto e Cássio - devem sofrer a pior
das condenações, o castigo eterno da boca de Dite no ―Inferno‖. Até nessa representação o
esquema triádico permanece, pois são três traidores sendo mastigados pelas três bocas de
Dite.
De maneira semelhante à profecia do Quinto Império, do Livro de Daniel, em De
Monarchia, Dante sobrepõe o Império Romano aos quatro grandes reinos que tentaram
colocar o mundo sob um único governo: Assíria, com Nino; Egito, com Vesoges; Pérsia,
com Ciro e Xerxes; Macedônia, com Alexandre. Portanto, Roma foi o único império a
realizar plenamente tal propósito, o que, segundo o poeta florentino, demonstra uma
escolha divina: ―Portanto o povo que superou todos os mais povos na disputa do império do
mundo, superou-os a mercê da vontade divina; eis que Deus cuida preferentemente de um
litígio universal sobre outro, particular. (Livro Segundo - Cap. VIII).202 Como os demais
intérpretes da realidade cristã, ele acreditava que as questões de cunho universal podiam
conter sentidos específicos.
Assim como os Evangelhos falam da ―Jerusalém celestial‖, terra santa dos cristãos,
Dante concebe a sua ―Roma celestial‖, pátria espiritual do seu povo. Por esse motivo, o
poeta tenta reafirmar de todas as maneiras a legitimidade do Império, usando como
argumentos os relatos bíblicos e apontando uma ―deliberação celestial‖ como causa da
condenação de Cristo. O parecer de Pilatos seria, neste caso, uma predestinação divina para
consumar a profecia bíblica:
Herodes não era representante de Tibério César sob o signo da águia,
nem o era do Senado e sim era de um reino singular, por ele ordenado e
singularmente governado.
Calem, portanto, suas injúrias contra o Império Romano aqueles que
fingem ser filhos da Igreja. Atentem para o fato de que Cristo, esposo da
Igreja, confirmou o Império nos dois extremos da sua existência
terrena.203
202
ALIGHIERI, Dante. Monarquia. (Trad. Hernani Donato). São Paulo: Ícone, 2006. p.83. (A partir desta
nota a obra será designada pela sigla M.Q.)
203
ALIGHIERI. M.Q. Op.cit. p.95.
254
O fragmento acima explica claramente a concepção de Dante, principalmente em
relação ao trecho da Commedia transcrito linhas atrás, acerca dos dois extremos da
existência terrena do Império, duas águias, que foram confirmados por Cristo. Roma é,
portanto, meio e fim do cumprimento da profecia, e Cristo é o mediador, entre o Império
Romano e o Sacro-Império.
O poeta também fez uma nova leitura do Apocalipse de João. A descrição da
Babilônia presente no Livro, como a meretriz que está assentada sobre os sete montes, de
que falamos no início, não será para ele uma referência à fundação de Roma, nem uma
condenação ao Império Romano, mas uma profecia sobre a futura corrupção da Igreja de
Roma, que no seu tempo havia se associado à França para legitimar o reinado de Felipe IV,
representado por ele como o Anticristo. Essas associações serão traçadas no Canto XIX do
―Inferno‖:
Vós pastores lembrava o Evangelista
quando a que sobre as águas tem assento
por ele fornicar co‘s reis foi vista,
sete cabeças desde o nascimento
teve, e dez cornos guardaram-na outrora,
enquanto ao bem foi seu esposo intento.
De ouro e de prata é o vosso Deus agora,
quem de vós, que o idolatra, é mais genuíno,
se vós um cento, e ele um só adora?
De quanto mal foi mãe, ó Constantino,
não a tua conversão, mas tua oferenda
que tornou rico o trono papalino!204
Nesse círculo do Inferno são punidos os papas que incidiram no pecado da simonia
e lá estão dependurados, tendo as plantas dos pés constantemente queimadas. Percebe-se,
nas duas primeiras estrofes transcritas, a referência ao Livro do Apocalipse, através de uma
releitura profética deste, já que, pela interpretação de Dante, a meretriz passava a
simbolizar a Igreja do seu tempo. O poeta também se lamenta pelo mal que a ―Doação de
Constantino‖ teria trazido ao meio eclesiástico. Por sua vez, essa nova concepção da
204
ALIGHIERI. D.C. Op.cit. p. 136-137. v. 106 ao 117.
255
profecia bíblica rompia o vínculo das interpretações anteriores que associavam a meretriz
ao Império Romano, que tanto perseguiu os primitivos cristãos. Desvincula-se também a
lupa romana como símbolo da fundação histórica de Roma, preterida em favor da ―águia de
Jove‖, que Virgílio associa ao herói Enéias (o Piedoso).
A mesma comparação da meretriz com a Igreja é retomada no Canto XXXII do
Purgatório, cercada de simbologias e acompanhada pelo Anticristo, Felipe IV. Toda cena é
presenciada por Dante diante de Beatriz, como uma espécie de visão que revela um Carro
puxado pelo Grifo, simbolizando Cristo a conduzir a nova Fé. Este Canto é o que melhor
resume as concepções de Dante. Seria a súmula do pensamento dantesco acerca de todas as
questões aqui tratadas: a missão divina do Império Romano, a dupla natureza de Cristo, a
Igreja de seu tempo e, por fim, o reinado de Felipe IV.
O Canto inicia-se com o Grifo conduzindo o Carro, até que ele pára diante de uma
árvore seca (que representa Adão e, ao mesmo tempo, o madeiro de Cristo). Alguns
advertem o Grifo para que não chegue até a árvore adâmica, mas ele se aproxima e se liga à
planta: ―Assim, menos em rosa que violeta/ cores se abrindo, renovou-se a planta/ que tinha
a rama antes tão seca e preta.‖205
Há uma associação entre as figuras de Adão e Cristo: o primeiro, pela
desobediência, trouxe a maldição para os homens e o outro, pelo sacrifício e pela
obediência ao Pai, trouxe a salvação. Um fere a humanidade, e o outro a cura. Aquele
representa a Lei, o castigo; este é símbolo da Graça, a redenção. Adão adormeceu para que
de suas costelas fosse criada a mulher; Cristo dorme (morre) para que dele a Igreja (a
Noiva) fosse gerada. Todas essas prefigurações foram construídas por teólogos e doutores
que antecederam Dante, incluindo Santo Agostinho. Também Paulo já havia traçado um
paralelo entre ambos, mas para diferenciá-los, não para aproximá-los.
Chama a nossa atenção o fato de Dante adormecer profundamente no momento em
que Cristo (O Grifo) se liga à arvore adâmica. Perante tamanha maravilha, qualquer outro
teria ficado de olhos bem abertos.
Qual pintor, com modelo, retratar
poderia como então adormeci,
mas deixo-o a quem melhor saiba pintar.
205
ALIGHIERI. Op.cit. D.C. p. 209.
256
E passo a quando assustado me ergui
por um fulgor a me rasgar o véu
do sono, e a me chamar:‖Levanta, aí!‖
Como, a ver a macieira em seu apogeu
de florir, que há os, dos anjos, preferidos
frutos, e ternas núpcias faz no Céu.206
Dentro desta representação, Dante se coloca como um terceiro Adão, mas, ao
contrário do que acontece no Gênesis, encontra uma mulher sábia, Beatriz, que o conduz ao
bom caminho. Por outro lado, como aquele foi exilado do Paraíso, Dante também é banido
de sua terra natal por questões que envolveriam um outro Grifo, formado pelas insígnias
dos dois partidos de Florença: os guelfos, que tinham a águia por símbolo, e os guibelinos,
que portavam o leão no escudo. Assim sua visão abrange o passado, através do Antigo
Testamento, e a Promessa, do Novo Testamento, - partindo de ambos para fazer uma leitura
do presente: da história que Dante vivenciava na sua cidade e no seu tempo. Articulando
sempre os três eixos, como fez Agostinho, o poeta apreende a matriz histórica que
interpreta o seu estar no mundo.
Em seguida, após despertar, o poeta procura Beatriz, que revela a ascensão do Grifo
aos Céus, falando-lhe da seguinte forma: ―Por pouco tempo aqui serás silvano,/ depois, sem
fim, comigo cidadão/ daquela Roma onde Cristo é romano.‖ Logo, Cristo não ascendeu
para a Jerusalém celestial, como na leitura judaico-cristã, mas, segundo a releitura de
Dante, para a Roma Divina.
O propósito de Dante, na Commedia, é criar uma epopéia cristã do povo romano,
como Virgílio havia criado a pagã. Se os judeus representavam esse reino divino tomando
por base a Cidade Santa, o poeta, sendo italiano, pretendia fazer uma interpretação divina
da linhagem de Enéias, colocando Cristo como consolidador de ambas as linhagens.
No final desse Canto, Dante vê uma meretriz e um gigante se apossarem do Carro e
partirem com ele para outro lugar, episódio que os estudiosos compreenderam como a
Igreja corrompida, estabelecendo aliança com o rei Felipe IV e mudando a sua sede para
Avignon. Novamente, o escritor vai utilizar as profecias do Apocalipse para reler os
206
Idem.Ibidem.
257
eventos de seu tempo, fixando-se na imagem da meretriz, mas acrescentando ao quadro a
figura do gigante, que é o Anticristo.
Interessa-nos particularmente a leitura que Dante faz de si mesmo como um terceiro
Adão. No trecho, o único elemento que o relaciona ao personagem bíblico é o sono que cai
sobre ele no exato momento em que Cristo se liga à árvore adâmica, mas há uma passagem
do ―Paraíso‖ que deixa essa interpretação mais firmemente expressa. Trata-se do Canto
XXVI, quando Dante dialoga com Adão e, desta forma a ele se dirige: ―Ó pomo que
maduro/ já criado foste, e tens, ó pai antigo,/ em cada esposa, filha e nora; eu, puro/ e
devoto/ que me fales; tu vês o meu querer/ e, por que logo acates, nem o digo.‖207
Em seguida, pela fala de Adão, ficamos sabendo quais seriam as perguntas que
Dante lhe teria dirigido. Como no ―Paraíso‖ todos os desejos do coração estão evidentes,
não é necessário que Dante diga nada, pois tudo está plenamente manifesto.
E disse: ―Sem uma admissão aberta
de tua vontade, a conheço melhor
do que tu entendas qualquer coisa certa;
porque a vejo no espelho refletor
que faz de si exata imagem dos
fatos reais, sem de si nada expor.
Há quanto tempo – indagas – Deus me pôs
no supremo jardim pra o qual Beatriz
tão longa escada para ti dispôs,
e quanto tempo lá eu fui feliz,
e da Grande Ira a razão; e que eu cite
o idioma que lá usei e eu mesmo fiz.
Ó filho, não do fruto o apetite
foi, por si só, a razão de tanto exílio,
mas, tão-só, o exceder do seu limite.
A última estrofe revela o motivo da ―Grande Ira de Deus‖ contra Adão.
Curiosamente a resposta do personagem bíblico engloba, ao mesmo tempo, a sua própria
situação e a condição de Dante como exilado. O trecho original não apresenta nenhum
207
Idem. ―Paraíso‖. v. 91-96. p. 184.
258
pronome que identifique a resposta com o eu do discurso: Or, figluol mio, non il gustar del
legno/ fu per sé la cagion di tanto essilio,/ ma solamente il trapassar del segno.
Adão, portanto, ultrapassou o limite: a fronteira entre o humano e o divino, que
podemos identificar como o métron da mitologia. A hybris do herói teria motivado a
transgressão (hamartía), fazendo com que sofresse a punição divina. Esse desviar das
regras também cabe a Dante, que ousou questionar os poderes instituídos em Florença e
desafiar as ordens instituídas pelos ―deuses‖ de seu tempo. Outro ponto que chama a nossa
atenção é o olhar de Dante para o personagem bíblico, já que o relê sob o signo do herói
trágico: aquele que excede o limite, e não o que desobedece a Deus.
Muitos pensamentos esboçados por Dante, seguindo o pensamento de Joaquim de
Flora, revelam a crença na Utopia, na Monarquia Universal, na constituição de um só
governo para todos os povos. E essa crença se manifesta por uma absoluta certeza na
eqüidade e na sabedoria desse futuro Monarca, fundamentada numa promessa profética que
atravessa os séculos e tem por fim último a liberdade do homem e a união entre as nações,
ou seja, o Bem Comum da humanidade. São anseios firmados numa crença milenarista que
resiste a todos os tempos e se manifesta nas mais diferentes civilizações humanas: a eterna
busca pela união mundial no governo do Justo. Esse pensamento dantesco fica mais patente
na obra De Monarchia, onde afirma:
Considere-se que apenas o homem, entre todas as criaturas, situa-se a
meio entre o corruptível e o incorruptível, razão pela qual foi com
propriedade que filósofos o compararam ao horizonte que medeia os
hemisférios. (...) Portanto, se o homem medeia o corruptível e o
incorruptível; e se o meio participa da natureza dos extremos, impõe-se
que o homem possua de uma e outra natureza. E porque toda natureza
tende para um fim último, conclui-se existir o homem para um fim duplo.
(...) A Providência, que jamais erra, deu ao homem dois fins: a beatitude
na vida presente, que consiste no exercitar as próprias virtudes e é
figurada pelo paraíso terrestre. O outro fim é a beatitude na vida eterna,
que consiste na fruição do divino, a cuja presença (o homem) não pode
ascender se a sua virtude não for socorrida pela luz celestial, e isto se
entende que seja o paraíso celestial. (...)
Ao homem, portanto, em atenção ao seu fim duplo resultou necessário
um poder duplo: o do Soberano Pontífice, o qual, conforme a revelação,
orienta o gênero humano para a felicidade espiritual; e o do Imperador
que, segundo os ensinamentos dos filósofos conduz os homens para a
felicidade temporal.208
208
ALIGHIERI. M.Q. Op, cit. p. 134-135.
259
Compreender essa exposição de Dante é sumamente importante para entendermos
um pouco da dialética da obra machadiana, principalmente com relação à adoção do meio
para melhor retratar os extremos do homem. A humanidade, por sua vez, pretendendo
buscar esta felicidade utópica, a qualquer custo, não abre mão de alcançar a unidade
desejada pela eliminação da outra parte: ―Ao vencedor, as batatas‖.
O que em Dante é utopia Machado digere em seu ―cérebro de leitor ruminante‖ e
põe, como pano de fundo de suas criações, o pensamento universal e milenarista, que o
escritor acaba por desconstruir através de um olhar irônico e, muitas vezes, satírico.
Deixemos, por enquanto, as considerações sobre a obra machadiana para tratarmos desse
assunto na parte final dessa pesquisa, intitulada ―Último‖, em que analisaremos a obra
machadiana como um todo, articulando prosa e poesia.
4.5- Entre o civil e o religioso: novas releituras proféticas
Seguindo a linha da tradição, localizamos um texto do século XIV que também cita
a sibila e trata do paganismo e do cristianismo, mas por um outro viés. Apesar de não ser
um livro do cânone, a novela de cavalaria Guerino, il Meschino, de Andrea da Barberino
(1371-1431), retoma a figura da Sibila num contexto bem singular.
O herói da novela parte em busca de respostas sobre os seus parentes. Passa por
diversas terras e tem contato com povos de outras religiões. Visitando a Índia, consulta as
árvores do Sol e da Lua, mas obtém, de cada uma, respostas distintas para a questão.
Confuso, resolve viajar em busca da Sibila que anunciou o nascimento do Salvador.
Chega à Calábria (curiosamente é a terra natal do Abade Joaquim de Flora), onde encontra
a sibila numa gruta, isolada da humanidade por castigo. Ela teria cometido a ousadia de
260
acreditar que a Virgem da sua profecia era ela mesma. O engano se fundamenta na idéia de
que, assim como a Virgem teria concebido Cristo através de uma intervenção divina, a
sacerdotisa de Apolo, sendo virgem, estava apta a de ser possuída tanto pelo deus Apolo
quanto pelo Deus cristão.209
Contrariando as expectativas de Guerino, a Sibila da história, mais preocupada em
falar de questões pessoais, nada responde sobre a família do cavaleiro. Além disso, tenta
seduzir o herói, que, advertido de antemão por um eremita sobre os perigos dos seus
feitiços e protegido por uma relíquia cristã, percebe todo o ardil e não permite que a
sedução seja consumada. Saindo dali, faz a viagem de volta e, para evitar a excomunhão
por ter consultado a sibila e as árvores pagãs, pede perdão à Igreja pelos erros e recebe
como penitência uma peregrinação, como forma de se redimir diante de Deus .
O engano da sibila, apesar de explicável, resulta em grave ofensa ao cristianismo e,
por isso mesmo, foi um pretexto usado pela Igreja para bani-la do meio eclesiástico. Mas
como teriam surgido essas cogitações sobre a Sibila? Talvez a aproximação entre ela e
Maria tenha ocorrido dentro da própria liturgia da Igreja, já que com o crescimento do culto
à Virgem, neste mesmo período da novela de Barberino, passaram a surgir algumas
Cantigas de Santa Maria que seguiam o mesmo modelo do Canto de la Sibila, onde a
Virgem alertava sobre o Juízo Final. O papel antes atribuído à Sibila foi lentamente
substituído por essa outra figura feminina, mais intimamente ligada à imagem de Cristo e
que aparecia não mais sob o signo do terror, mas como mediadora, neste ―Dia da Ira‖, para
abrandar a cólera do Juiz.
Essa versão [do Canto de la Sibila] conta com um curioso precedente de
uma das Cantigas de Santa Maria de Alfonso, o Sábio, intitulada: ―De
como Santa Maria roga por nós a seu filho no dia do juízo‖,
contrafactum ao galego-português do Canto de la Sibila que serve de
remate à coleção de cem cantigas que constituem o corpus central do
Códice de Toledo. Esta versão consta de dezoito estrofes com refrão,
cuja música atende ao mesmo princípio do Judicii signum que a do
catálogo da catedral de Barcelona.210
209
CASTETS, Ferdinand. I dodici Canti. In: REVUE DES LANGUES ROMANES. Montpelier: Sociétè pour
l‘étude des langues romanes, 1970.
210
MUNTANÉ. Op. cit. p. 79. (Tradução do espanhol)
261
Enquanto, no meio eclesiástico, as sibilas progressivamente passariam a ser
substituídas pela Virgem Maria, os pensadores do Renascimento, a partir do século XV,
seriam os principais responsáveis pela retomada da sibila num contexto estético e artístico.
Com a difusão do Renascimento pela Europa e, principalmente, com a colaboração dos
humanistas na revalorização de autores cristãos do final da Antiguidade, como Lactâncio e
Agostinho, há uma intensa atividade intelectual em andamento, que retoma muitas das
reflexões esboçadas, até então, acerca das sibilas e dos profetas.
Os humanistas, seguindo a tendência de reunir crenças pagãs e cristãs, encontram
nessa temática e nos autores da tarda Antiguidade o pretexto ideal para provar que os temas
clássicos casavam-se bem com a modernidade, e que tudo se complementava na história
humana. Com isso, trilharam um caminho inverso ao da Igreja: os preceitos que, no
passado, serviram ao propósito de converter as massas infiéis ao cristianismo, passaram a
justificar a retomada dos ideais clássicos e pagãos, já que, baseado nos autores do passado,
podia-se afirmar que havia uma estreita relação entre as tradições pagãs e o pensamento
cristão.
Todo espetáculo religioso, como todo espetáculo civil, tem a ver com a
capacidade de sugestão da imagem, um poder suscetível de manipulação.
A separação de esferas civil e religiosa só depende da necessidade de
mantê-las diferenciadas com algum objetivo, A Sibila caminhou
comumente na Idade Média, quando não ia sozinha, pelas mãos de outro
profeta, quase sempre Salomão (...), mas o pensamento recorrente sobre
o fim dos tempos fez com que, em algumas ocasiões, esse profeta fosse o
próprio Merlim. Uma vez unidos na profecia, e latentes as idéias
messiânicas sobre a reconquista de Jerusalém e a constituição de uma
monarquia universal por um rei hispânico, ia ser tão produtivo juntar e
tão normal confundir, como incômodo e inútil separar, na ficção, as
funções de Sibila e Merlim, ou de Sibila e Morgana.211
O pensamento científico da época, sobretudo, se interporia na transição das esferas
civil e religiosa, preferindo, antes, fazer o casamento da crença pagã com a cristã através da
tradução dos mais variados textos, incluindo as fórmulas místicas, desde Hermes até a
Bíblia, desde textos de doutores da Igreja até as profecias sibilinas. O instinto do homem da
211
BELTRAN, Rafael. ―Urganda, Morgana y Sibila: el espectáculo de la nave profética em la literatura de
caballerías‖. In: MACPHERSON, Jan. (edit). The medieval mind. Rochester: Tamesis, 1997. p. 41.
262
Renascença é lançar-se em todas as direções, pois cada saber adquirido elevaria sua
consciência para Deus e para a Verdade.
Contendo o núcleo do pensamento renascentista, O Corpus hermeticum seria um
dos livros mais apreciados no período, já que tratava da sabedoria do universo ao alcance
da compreensão humana, partindo da concepção de que o homem deveria mergulhar no
mais profundo abismo e ascender às mais altas esferas para compreender sua existência.
Essa experiência de catábase (descida) e anábase (ascensão) remetia também ao ritual
órfico, referente ao mito de Orfeu e Eurídice, mas significava a busca pelo Amor
transcendental, como em Dante, Amor que simboliza a atração pelo Intelecto, e que conduz
ao Divino. Esses textos, tanto clássicos quanto científicos e místicos, seriam vertidos do
latim e do grego para as línguas modernas.
A intensa mistificação científica de autores como Marcílio Ficino, Giordano Bruno,
Pico Della Mirandola, Cornélio Agripa, Leão Hebreu e Giulio Camilo Delmínio,
especialmente inspirados na obra dantesca, vai povoar os tratados literários e científicos da
Renascença, muitas vezes adotando aquela posição do profeta-poeta ou do Sábio (ou o
mago) por excelência. Assim, os segredos do universo, a força do pensamento humano, os
saberes místicos, ou o segredo mais íntimo das relações entre o ser e o objeto de desejo,
passam a ser os temas de estudo desses homens dos séculos XV e XVI.
A principal intenção de tais pensadores era fazer uma leitura do universo a partir
das mais diversas fontes de conhecimento: teologia, filosofia, física, matemática, artes,
literatura, astronomia, além de buscar sabedorias alternativas como a Cabala judaica, a
alquimia, a astrologia e a profecia. Quando possível, procuravam extrair uma verdade da
confluência de todas essas ciências. O Sábio, portanto, estaria entre o visionário e o
vidente, entre o que crê na força da sabedoria humana para interpretar o universo e
transformá-lo num lugar melhor, e o que busca fórmulas secretas que possam viabilizar
essas experiências.
No mesmo período, há intensa mistificação na Igreja, que se intensificou na ContraReforma. Para contrapor-se à racionalidade da doutrina luterana e ao materialismo dos
preceitos calvinistas, criou-se uma tendência de enfatizar o espiritual e o transcendental,
valorizando a experiência extática através das mais variadas formas de contato direto entre
Deus e os homens: visões celestiais, audição de vozes divinas, mensagens santas, sonhos
263
reveladores, aparições de anjos, arrebatamentos e outras manifestações do gênero. Os
religiosos não mais se valiam dos textos proféticos de sibilas ou de figuras do Velho
Testamento, que lhes anunciam indiretamente os eventos do futuro, mas cada qual passa a
ter sua experiência particular com o sagrado.
Era preciso mostrar a relação direta que os beatos possuíam com a divindade, no
papel de mensageiros e de interventores vivos naquele espaço e naquele tempo, não numa
época longínqua de que só restavam relatos escritos. Seguindo esta tendência estão as obras
de autores como Ignácio de Loyola, Teresa de Ávila e Felipe Néri.
A ênfase na experiência, portanto, estava baseada nos símbolos visuais como forma
de induzir ao transe místico. Grandes obras de arte, de afrescos a imagens de devoção,
passaram a enfeitar as catedrais e igrejas, mostrando a experiência transcendente de cada
um desses homens e mulheres que receberam uma mensagem divina. Não apenas a
arquitetura ganha novas formas, como também a iconografia revela as imagens com intenso
realismo, enriquecendo-as de detalhes que vão torná-las perfeitas réplicas do corpo
humano.
Na arte, como no drama, os símbolos verbais são transformados em
realidades visuais que o espectador assume e integra nas suas vivências
mediante um processo psicológico com múltiplos níveis simbólicos. É
bem conhecido o papel que as imagens de devoção desempenharam
como indutoras das visões místicas tão abundantes nos séculos baixomedievais; no teatro desempenharam um papel similar. (...)
Paulino de Nola dizia, justificando os afrescos que decoravam a sua
igreja: Los hombres sencillos que no saben leer, acostumbrados, por otra
parte, a venerar a los ídolos se convierten más fácilmente al Cristo
hecho hombre cuando pueden contemplar los hechos de los santos.212
Há uma estreita relação entre elementos dramáticos e pictóricos, e tanto os temas
teatrais vão incidir nas pinturas e esculturas, quanto essas naquele. Além do que, como
pudemos observar, o teatro do período seguia o modelo dos Ordos, que procuraram
enriquecer as representações através dos diálogos, da música e da caracterização dos
personagens. O drama sacro vai buscar nas artes plásticas e na música o apoio necessário
para tornar a representação tão real quanto envolvente. O teatro assumiria, no meio
eclesiástico, função especificamente didática, de educação religiosa das massas.
212
MONTAÑÉS. Op. cit. p.13. (Tradução do galego)
264
Por outro lado, a ênfase no recurso visual permitiria que as representações
passassem a ter, no processo de elaboração do cenário, a colaboração de pintores famosos
como Rafael, Donatello, Bramante e Da Vinci. Além disso, havia a contribuição de
maquinários e engenhocas que permitiam até mesmo alguns ―efeitos especiais‖ em cena.
Na Itália temos documentada a atividade de Masaccio e Donatello na
preparação da Saccra Rappresentazione da Ascensão de Cristo na igreja
de Santa Maria del Carmine, de Florença (1425). Da sua cenografia
encarregaram-se, mais tarde, Brunelleschi e Francesco d‘Angelo. O
mesmo Brunelleschi desenhou em 1430 a maquinaria que permitiria
descer o anjo, na representação da Anunciação que teve lugar em São
Felício, em Piazza, e no ano de 1439 a da igreja da Anunziata, ambas em
Florença. No século seguinte, os exemplos multiplicam-se: Bramante,
Leonardo, Rafael, Parmagianino, Palladio, Rosso, Buontalenti e Vasari
participaram na elaboração de representações teatrais, uma tradição que
se manteve no barroco com Bernini, della Bella, Servandoni e Tiépolo,
entre outros.213
Como já havíamos notado o influxo do teatro nas esculturas de Mestre Mateo, no
Pórtico da Glória, os Ordos e os Autos sacramentais vão partilhar os mesmos personagens
que os pintores do período renascentista evocavam em suas obras. Servindo de apelo aos
fiéis, as imagens apresentadas/representadas nos dramas ou nos Autos, esculpidas na pedra
ou pintadas nos afrescos, remetiam sempre para o derradeiro destino do homem, uma
chamada do pecador ao arrependimento e à devoção.
Através da influência teatral, a sibila permaneceria em cena, enriquecida
plasticamente pelas mãos de artistas, dentre os quais podemos citar: Giovanni Pisano, com
a escultura da Catedral de Siena; Perugino e sua Luneta com sibilas e profetas, no Palazzo
dei Priori; Rafael Sanzio, com seus afrescos das ―Sibilas‖, na igreja de Santa Maria Della
Pace; e Michelangelo, com as belas pinturas da Capela Sistina.
Michelangelo, em especial, merece nossa atenção por muitos motivos, não só por
realizar com maestria a união entre sibilas e profetas na iconografia sacra, mas por
representar, no universo pictórico, aquilo que o poeta-profeta realizaria com as palavras.
213
MONTAÑÉS. Op. cit. p. 20. (Tradução do galego).
265
4.6- Ut pictura poesis: uma interpretação profética e poética da obra de
Michelangelo
Quem, confiante em sua própria habilidade,
Há de, com régua e risco,
Marcar a fronteira divisória entre
Humano e divino?214
(Longfellow – ―Hermes Trismegistus‖, 1882.)
O termo ut pictura poiesis (poesia é como pintura) foi usado pela primeira vez por
Horácio na sua obra intitulada Arte poética. Portanto, vêm de longa data os estudos que
comparam a poesia à pintura e que defendem a construção imagética como a essência da
poesia; afinal, a palavra poética tem o grande poder de criar imagens através de sua
figuração ou da fulguração de seus signos lingüísticos. Vejamos, por outro lado, como é
possível fazer o caminho inverso, revelando a poesia que emana de uma obra pictórica.
Podemos dizer que Michelangelo - como um grande leitor de Dante, Bocaccio e
Petrarca, assim como de outros grandes escritores -, serve-nos de perfeito exemplo para
revelar que a leitura figural, através dos seus diversos níveis de compreensão, também pode
se encaixar num outro contexto.
Tratemos primeiramente, então, dos afrescos na Capela Sistina, começando pela
parte superior. No centro do teto estão dispostas as principais cenas do Gênesis: a
separação da luz e das trevas, a criação do sol e da lua, a separação da terra e da água, a
criação de Adão, a criação de Eva, o pecado original, o sacrifício de Noé, o dilúvio
universal e a embriaguez de Noé.
Em volta desses quadros genesíacos, Michelangelo alterna as figuras de profetas e
sibilas, de maneira que, na disposição final dos afrescos do teto, estejam sempre frente a
214
LONGFELLOW, Henry W. The Complete Poetical Works. Boston: Houghton, Mifflin and Company,
1903. p. 357. (No original: ―Who, in his own skill confinding,/ Shall with rule and line/ Mark the border-land
divinding/ Human and divine?‖)
266
frente e alternados nos flancos. Nas duas extremidades, situam-se Jonas e Zacarias; o
primeiro, representando o único profeta dos gentios de que fala o Antigo Testamento; o
outro, como último profeta dos judeus a anunciar a vinda de Cristo. Na lateral direita,
seguem-se (do altar para a entrada): Sibila Délfica, Profeta Isaías, Sibila Cuméia, Profeta
Daniel e Sibila Líbica. Na lateral esquerda, temos: Profeta Joel, Sibila Eritréia, Profeta
Ezequiel, Sibila Pérsica e Profeta Jeremias. Entremeados a eles, nos oito triângulos laterais,
estão representados os reis e líderes do povo de Israel. Para finalizar, os quatro triângulos
das arestas do teto apresentam alguns feitos memoráveis do Antigo Testamento.
A pintura michelangelesca não se trata apenas de uma realização ímpar no campo
das Artes Plásticas, e sim de uma obra completa. Michelangelo, através de imagens, nos
oferece uma grande poesia narrativa que conta a história da humanidade, explorando vários
campos do conhecimento e com interpretações que seguem por níveis diversos, do mais
superficial ao mais profundo. O artista vai articular os três eixos – passado, presente e
futuro - concretizando a leitura bíblica como prefiguração do Antigo para o Novo
Testamento, este último como ponto de partida para prever eventos futuros, tanto numa
configuração universal quanto num contexto particular.
A narrativa engloba primeiramente a ―Gênese‖ do homem, cercada de eventos de
nascimento, morte e ressurreição. Depois, surge a promessa de um Novo Advento com as
pinturas de profetas e sibilas, que anunciam o nascimento de Cristo aos reis da época em
que viveram; até chegar ao desfecho, com a imensa pintura do Juízo Final, na parede do
altar (completada em data posterior à do teto). Michelangelo ilustra desta forma o começo e
o fim da história do homem baseado nos eventos bíblicos, mas também influenciado pela
leitura de grandes poetas e, muito provavelmente, pelas representações teatrais e
iconográficas de artistas que o antecederam.
Em todas as imagens que figuram na Capela Sistina, é possível perceber que há
uma série de simbologias presentes e que cada uma se comunica de determinada forma
com a que está diante de si. Uma única representação pode apontar para inúmeras leituras
que dependem do grau de conhecimento de cada leitor. Assim, o pintor renascentista
estabelece com seu interlocutor um diálogo ora franco, ora dissimulado, entre brados e
sussurros, como os augúrios sibilinos.
267
O sábio renascentista aguarda o olhar atento do exegeta, pois há sempre um véu
sobre a obra (como nas parábolas cristãs) que tanto vela quanto revela. O artista desvenda e
cria enigmas. Entre a sombra e a luz, costura sentidos, normalmente articulando diferentes
feixes de significados. Sua obra, como espetáculo visual, está aberta a todos os homens,
mas guarda a profundidade da reflexão apenas para os sábios, para aqueles que buscarem
esse sentido oculto e lutarem para desvendá-lo.
Como as prefigurações de Agostinho, de Flora e de Dante, também temos três
maneiras de compreender os sentidos investidos na obra de Michelangelo: duas
interpretações que seus apreciadores e críticos são unânimes em afirmar e uma terceira que
revela uma visão mais particular, levando em consideração o espírito renascentista que nela
percebemos.
A primeira leitura é de natureza denotativa, como apontamos inicialmente, com a
apresentação de quadros bíblicos do Antigo Testamento - do Gênesis aos profetas - e dos
quadros assimilados pela cultura medieval, como é o caso das sibilas. As pinturas têm
como objetivo primordial narrar esses eventos de forma eloqüente para revelar a fé dos
homens e mulheres da história judaico-cristã.
Por exemplo, nos quatro triângulos pendentes das arestas do teto, Michelangelo
evoca a punição dos fortes e o livramento do povo hebreu, pela súplica ou pela inteligência
de seus heróis. Neles Michelangelo representa não apenas os homens, mas também as
mulheres que tiveram um papel fundamental em situações decisivas a fim de fazer cessar
algum conflito ou evitar o massacre de seu povo. Temos Judite e Davi, que, mesmo tão
frágeis na aparência, usaram a fé no lugar da força e venceram generais poderosos como
Golias e Holofornes, inimigos do povo hebreu. No outro extremo, há outras duas
representações: a serpente de bronze, símbolo da libertação do povo pela súplica de
Moisés, e a punição de Hamã, que dá fim à conspiração que eliminaria todos os judeus do
reinado de Assuero: graças à petição de Ester, os planos são descobertos e o conspirador é
aniquilado.
Porém, estes mesmos quadros são prefigurações de histórias do Novo Testamento,
eventos que revelam profeticamente a era cristã. Dessa forma, olhando para o quadro de
Judite, acompanhada por sua ama, verifica-se que não é no cesto que ela carrega a cabeça
de Holofornes, mas numa bandeja, referindo-se à história de João Batista e Salomé, do
268
Novo Testamento (Mateus 14). Judite passaria de heroína judia à vilã romana. De igual
modo, o Hamã de Michelangelo não está enforcado, mas crucificado como Cristo, e as duas
mulheres que o assistem, em vez de Ester e sua serva, passam a ser as duas Marias ao pé da
cruz. Davi golpeando Golias remete-nos também ao episódio de Pedro cortando a orelha do
soldado no Getsêmani, assim como a serpente de bronze pendente de uma cruz associa-se
com Cristo carregando as maldições da humanidade no madeiro.
Como essas, todas as outras figuras da Capela Sistina possuem uma leitura literal,
baseada nos eventos antigos, e outra figurativa, que mescla judaísmo e cristianismo. O
terceiro eixo, justamente, vai ser o mais implícito, pois revela a união desses dois outros
eixos com o paganismo. A leitura hermética, portanto, nos aponta um significado implícito
(hermetismo), mas também uma iniciação gnóstica seguindo as leituras de Hermes
Trismegistus e de outros textos místicos apreciados na Renascença.
Esse terceiro eixo, portanto, segue os princípios alquímicos e herméticos da
complementaridade dos contrários, ou seja, os opostos se associam, mas não se confundem.
Os princípios de Hermes afirmam que tudo tem seu oposto, toda natureza é dupla e que o
masculino e o feminino estão manifestos na gênese do Universo. O Todo se relaciona às
partes e as partes ao Todo, e o que está no plano superior corresponde ao inferior,
construindo pontes entre as antíteses que vão do absoluto ao particular, do visível ao
invisível.
O símbolo máximo das duas forças e do equilíbrio entre elas é o caduceu de
Hermes, onde duas serpentes estão entrelaçadas num bastão, simbolizando as duas pontas
opostas da vida: a que constrói e a que destrói, a corruptível e a incorruptível, mediadas
pelo bastão do equilíbrio. Também estão associadas aos dois gênios do homem: um bom e
o outro mau, um masculino e outro feminino.
A partir dessa leitura de Hermes, os humanistas passaram a usar como exemplo de
perfeição intelectual a figura do Andrógino, tal como revelada no Banquete de Platão, e
associam-no à sede pelo conhecimento, que, no caso, se manifesta pela intensa procura
pelo Amor, ou seja, pela cara-metade perdida. A dialética amorosa num plano espiritual,
amor platônico, corresponderia à relação do sábio com a sabedoria, como o próprio Dante
revelou ser Beatriz a ―Filosofia‖, ou seja, o Amor pelo saber.
269
O arquétipo do andrógino serviu de referência, durante o século XVI,
para expressar uma imagem ideal do homem, reintegrado em sua plena
natureza. Ele tanto alimentou a inspiração lírica amorosa quanto os
projetos intelectuais de organização social. (...)
O sentido místico do andrógino se encontra na Cabala, em que há a
figura de Adam Kadmon, e no cristianismo, na figura do Cristo de dupla
natureza. O valor mítico deste mito se deve a três idéias simbólicas.
Primeiramente, a idéia de completude original, representada pela união
de contrários. (...) Em seguida, a idéia de uma ruptura, pelo qual as partes
do andrógino se encontram separadas. Esta idéia pode aplicar-se à fratura
social, a uma cisão política etc. Por fim, o nascimento de um desejo de
reintegração, em que cada parte antes amputada procura seu duplo, para
reconstituir sua unidade perdida.215
Adam Kadmon, da cabala hebraica, significa o ―Homem da Terra‖, ou ―Homem
Arquetípico‖, um protótipo humano que seria, na verdade, formado por um duplo – Adão e
Eva –, uma inteligência que, desmembrada, segundo os gnósticos, teria sobrevivido em
essência, fracionada em cada ser humano. Essa partícula teria formado o ―inconsciente
coletivo‖ de que nos fala Carl Jung.
Nos primeiros quadros genesíacos de Michelangelo há uma remissão ao mito do
Andrógino, presente em Platão, que revela a natureza dupla dessas criaturas, formadas por
dois sexos, possuidoras de extremo poder e sabedoria. Porém, ao desafiarem os deuses,
teriam sido separadas por Zeus, como forma de castigo. Assim vagavam em busca da
metade perdida. A busca por esse Amor não necessariamente abrangia a esfera do desejo,
mas a retomada da complementaridade perdida, forma de readquirir o poder existente no
equilíbrio entre os gêneros.
Basta um olhar mais atento para o teto da Capela para percebermos a releitura
hermética e cabalística das Sagradas Escrituras. Todos apontam para o duplo, para o
princípio do masculino e do feminino na criação divina: luz e sombras, terra e água, sol e
lua, homem e mulher, profetas e sibilas, heróis e heroínas.
Seguindo esta leitura, na ―Separação entre as sombras e a luz‖, a figura divina
pintada por Michelangelo se encontra entre as antíteses: a luz, à direita, e a sombra, à
esquerda. Quatro Ignudi (figuras de nus) cercam o quadro, mostrando o antes e o depois
dessa separação; antes, eram Andróginos – rosto de mulher e corpo masculino; depois
aparecem contorcidos. Percebe-se, de maneira muito sutil, a divisão de seus corpos em
215
RIBEIRO, Ana Cláudia Romano. A ilha dos hermafroditas. In: SÍNTESES: Revista dos cursos de PósGraduação. Vol. 11. 2006. p.457.
270
dois. Um deles revela um tórax bem alargado, com seio de um lado e peitoral masculino de
outro; já a imagem seguinte tem a cabeça levemente desviada do corpo, revelando nas
dobras do tecido uma silhueta feminina atrás do corpo masculino.
Também no quadro ―A criação do homem‖, Adão possui perfil andrógino, pois,
apesar de rosto e corpo masculinos, tem um inexpressivo órgão sexual que se biparte,
dando margem a uma dupla interpretação. Essa tese ganha força no quadro seguinte, bem
ao centro, ―A criação da mulher‖, onde Deus não retira uma costela de Adão para criar Eva,
mas retira a mulher inteira de sua lateral, como se estivesse extraindo do Andrógino uma de
suas personas.
O Profeta Jonas, por sua vez, em frente aos Ignudi descritos, também aparece
contorcido e, como em Adão, vê-se uma figura feminina saindo da lateral de seu corpo.
Todos são associados a Cristo gerando, de si, a Igreja, mas também, numa interpretação
gnóstica, simbolizam o Sábio buscando na Ciência a força geradora da obra de arte,
revelação divina do saber primordial existente no homem.
Outra sutileza de Michelangelo comparece no ―Pecado original‖. Adão e Eva são
representados, cada um, duas vezes. Como uma narração, vemos o antes e o depois da
queda, tendo a árvore do conhecimento do bem e do mal como eixo central da pintura.
Nela, a serpente com rosto feminino está enrolada. Do lado oposto à serpente aparece um
anjo, de feições masculinas, que pune os dois personagens e os expulsa do Paraíso. O corpo
do anjo está esfumaçado e escondido atrás da árvore. Se observamos com atenção os
contornos da serpente, notamos que existem, na verdade, duas voltas em torno do tronco e
duas pontas de cauda na base. A árvore, neste caso, passa a ter a mesma configuração do
caduceu de Hermes: bem e mal - como o fruto proibido -, masculino e feminino como
Adão e Eva. Tanto há a sedução do ―antes‖, na oferta de conhecimento, quanto punição e
exílio do ―depois‖, no desfecho da cena. O homem é seduzido pelo conhecimento e punido
pela intenção de querer igualar-se ao divino.
Na ―criação de Adão‖, Deus e homem aparecem no mesmo plano. Deus ocupa o
espaço celestial e Adão, no alto de um monte, ocupa o terreno. Adão estampa o apogeu de
sua juventude, enquanto Deus mostra-se idoso, como se estivesse amparado pelas criaturas
celestiais que o acompanham. Quase se tocam, mas há aquele pequeníssimo espaço que
separa seus dedos indicadores e mostra o limite entre ambos. O dedo de Adão aponta
271
levemente para baixo, o de Deus, um pouco para cima, representação da equivalência entre
o inferior e o superior. Praticamente em todos os quadros, ocorre essa oposição
representada pela oposição de dedos, de mãos, de braços ou de pés, que ora apontam para
baixo, ora para cima, como uma alusão ao princípio hermético da correspondência.
Na representação de profetas e sibilas temos a mesma complementaridade de
gênero, só que, dessa vez, representada pelos gênios que acompanham cada um dos
adivinhos. Sempre em pares, muitas vezes de sexos opostos, esses seres dividem a cena
com as figuras centrais de cada nicho e sussurram revelações proféticas no ouvido de
alguns deles. Possuem muitas semelhanças com os djinis do povo árabe, que, se dominados
pelos homens, ofertavam-lhes o dom da profecia.
Alguns desses gênios imitam a mesma expressão da face de profetas, como os
gênios de Jeremias e Daniel, outros se ocultam na cena, talvez para apontar qual dos dois
exercia a predominância sobre aquele indivíduo. Eles quase sempre estão separados nos
nichos dos profetas, exceto em Zacarias e Isaías, mas encontram-se todos emparelhados ou
abraçados nos antros das sibilas.
Os djinis, segundo conta a lenda árabe, eram formados pelo ar e pelo fogo e, unidos
ao ―barro humano‖, formavam o equilíbrio dos três elementos primordiais: terra, fogo e ar.
Essa representação dos gênios bom e mau, homem e mulher, também está presente em
Shakespeare (Soneto CXLIV):
Dois amores – de paz e desespero –
Eu tenho que me inspiram noite e dia:
Meu anjo bom é um homem puro e vero;
o mau, uma mulher de tez sombria.
Para levar a tentação a cabo,
O feminino atrai meu anjo e vive
A querer transformá-lo num diabo,
Tentando-lhe a pureza com lascívia.
Se há de meu anjo corromper-se em demo
Suspeito apenas, sem dizer que seja;
Mas sendo ambos tão meus, e amigos, temo
Que o anjo no fogo já do outro esteja.
Nunca sabê-lo, embora desconfie,
Até que o mau meu anjo contagie.216
216
SHAKESPEARE, William. 30 sonetos. (Trad. Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p.107.
272
Há uma cristianização dessas imagens, pois, no lugar de gênios, Shakespeare
escreve anjos, além de associar o mal ao demo e contrastar pureza e lascívia. O poeta
inglês já apontava para uma determinada fusão dos gênios, indicando, inversamente à
lenda, que o humano já passava a interferir na composição dos gênios, e, estando um e
outro já tão confundidos, era difícil discerni-los no interior do homem.
Assim como no poema de Shakespeare, as oposições e uniões entre gênios
prosseguem em todos os afrescos de Michelangelo, e, afora as representações de profetas e
sibilas, outros personagens também vão compor essa tríade, formada pela figura central
acompanhada de duas outras que a aconselham: uma mostrando sedução e a outra
oposição, como se o destino do homem dependesse do equilíbrio entre os dois conselhos e
a verdadeira sabedoria consistisse em manter o domínio dessa natureza dupla, a fim de
mediar as oposições. Pender para um dos lados é estar passível de punição: pelo bem, por
querer se igualar a Deus (arrogância); pelo mal, por renegar os princípios que fazem a sua
natureza superior a dos outros seres (pusilanimidade).
Os afrescos do Juízo Final, no altar, também revelam leituras de vários níveis e
cada apóstolo, além da leitura bíblica ou litúrgica, pode ser retomado numa configuração
mitológica. Um desses exemplos é a representação de São Bartolomeu segurando a própria
pele. A figura tanto pode ser vista como o do santo católico martirizado por sua fé, como o
do sátiro Mársias, que sofreu o mesmo castigo por querer desafiar Apolo num duelo
musical. Ao perder o desafio, foi amarrado num tronco pelo deus da música e esfolado
vivo.
Por outro lado, pode-se ainda extrair, como nas pinturas do teto, uma terceira leitura
do São Bartolomeu de Michelangelo, seguindo a interpretação figural de Agostinho e
Dante. A imagem seria um reflexo da situação do artista naquele momento, como um
incompreendido em seu tempo, tendo que seguir as duras exigências de Papas (como Julio
II, primeiramente, e Paulo III depois) para executar a pintura da Capela Sistina.
Alguns analistas da obra do florentino teriam percebido a grande diferença entre a
pele esfolada nas mãos de São Bartolomeu e o rosto íntegro. Por outro lado, perceberam a
semelhança do rosto deformado da pele com o semblante de Michelangelo, tornando-se
273
uma espécie de auto-retrato do artista, mostrando seu desgaste físico para compor toda
aquela obra, do início ao fim.217
De que maneira essa leitura do São Bartolomeu de Michelangelo pode ser entendida
como um auto-retrato do artista e o que isso representaria na compreensão de sua obra?
Assim como Dante retoma o Adão bíblico como representação de si mesmo, exilado da
pátria, Michelangelo também poderia ter encontrado inspiração para sua pintura numa das
passagens da Commedia em que Dante faz referência ao desafio de Mársias a Apolo.
O episódio retrata, mais uma vez, um mortal desafiando um deus, atitude motivada
pela hybris do artista que o impele a ultrapassar os limites do humano e, assim, ficar sujeito
às punições da instância divina. Vale lembrar que ―A criação de Adão‖, um dos quadros de
Michelangelo, também se inclui nesse caso, partindo da mesma concepção dantesca, de
unir-se ao Criador e, por fim, querer igualar-se a Ele. Esse padrão é aplicável em todas as
leituras, seja ele Adão ou o Andrógino do mito platônico: em ambos existe a hamartia, a
ofensa a Deus ou a Zeus.
O episódio de Mársias é ilustrado no Canto I do ―Paraíso‖, onde Dante revela que,
até aquele momento, pôde elevar-se ao cume do Parnaso pelas Musas, mas que, daí em
diante, precisava elevar-se até outro monte, que tanto podia ser Cirra (um dos picos
dedicado a Apolo), quanto o cume do Paraíso. O Poeta necessita de inspiração e, para tal,
invoca Apolo para que penetre em seu coração e arranque do seu peito a obra, assim como
arrancou de Mársias a pele. O sacrifício do artista, portanto, é necessário para dar à luz a
grande obra de Arte, ainda que em detrimento da própria existência. Nesse aspecto, ele se
equipara ao Criador, que doa a sua vida para aperfeiçoar a obra.
Ó grande Apolo, pra labor vindouro,
de tua virtude faz de mim tal vaso
como exiges pra dar o amado louro.
Até aqui um só dos cumes do Parnaso
bastou, mas ora co‘os dois apogeus
devo na nova arena achar meu azo.
Entra em meu peito e exala os cantos teus,
tal como, quando vivo, recolheste
da bainha Mársias dos membros seus.
217
FALLETI, Franca & NELSON, Jonathan Katz. Venere e Amore. Firenze: Giunti, 2002. p.79.
274
Tanto do teu poder deixa que eu empreste,
pra que uma sombra do teu reino beato,
marcado em minha mente eu manifeste;
e chegar possa ao lenho que te é grato
pra poder coroar-me de sua folha,
granjeada por teu canto e meu relato.
Tão raro, pois, advém que ela se colha
pra de César ou poeta alçar talento
- culpa e opróbrio de humana errônea escolha -,
que só alegrar deveria o opulento
délfico deus quem peça que lhe legue
penéias folhas de que está sedento.218
Literalmente, o poeta deseja ser possuído por esta inspiração. No entanto, as
―penéias folhas‖, os louros que coroam os vitoriosos e os grandes homens, são também o
objeto do desejo de Apolo, pois a ninfa de seu apreço, Dafne, antes quis ver-se
metamorfoseada na árvore do que tornar-se sua amante. Tanto o deus quanto o artista
padecem da mesma sede. Vale lembrar que Dafne também é o nome da Sibila Délfica, que
doa sua liberdade ao deus Apolo para ser uma profetisa. Ela recebe do deus as mensagens
ocultas a fim de transmiti-las aos homens comuns, mas seu corpo deve, para isso,
permanecer virgem. Assim como a Sibila é possuída por Apolo e, cheia do deus, revela
seus hexâmetros aos homens, o poeta deseja que, através de Apolo, possa também trazer
seus versos a público, como uma manifestação da centelha divina.
Apesar da inspiração apolínea, a obra do artista nunca é perfeita, torna-se apenas um
simulacro da verdade, tendo em vista que é executada por mãos humanas. Do mesmo
modo, a flauta divina de Atena só pôde dar a Mársias uma temporária impressão de
igualdade com o deus da música, não conseguiu livrá-lo do castigo. A consciência da
verdade fica manifesta a partir do momento em que o artista se vê apenas homem, inerte
diante do fluxo da vida enquanto lhe retiram a pele. Ironicamente, também Apolo não
alcança seu maior anseio, a ninfa que se transforma em árvore, e tudo o que pode ter dela é
apenas a sombra. A obra artística, de igual modo, será sempre, como afirma Dante: ―uma
sombra do teu [de Apolo] reino beato‖.
218
ALIGHIERI. D.C. Op. cit. p. 13-14.
275
Mais adiante neste mesmo Canto, o poeta concluirá: Vero è che come forma non
s’accorda/ molte fïate a l’intenzion de l’arte,/ perch’a risponder la matera è sorda”. Sem
dúvida, essa impressão dantesca marca a obra de Michelangelo, que sempre busca a
perfeição no trabalho artístico, tendo consciência de suas limitações, mas tentando
ultrapassá-las obstinadamente. Essa luta do artista pela inspiração e a insatisfação com seus
próprios limites nos são revelados não apenas na obra plástica do florentino ou na relação
dele com a vida, no seu tempo, mas também em sua obra poética,
Podemos ver em seus versos [Michelangelo] a herança medieval
reelaborada na obra de Dante e a partir da qual se estende sobre a
literatura italiana do Renascimento uma visão de mundo essencialmente
marcada pela escolástica. Em grande parte, ora mais, ora menos, este
conflito, ou equiparável, acha-se presente em todo o estupendo
desenvolvimento das artes no período, em que a redescoberta do próprio
homem como corpo e vida material tende a realizar-se, quase sempre,
sobre um fundo de cena religioso. Michelangelo é o maior dos mestres
dessa fecunda ambivalência. (...) Na verdade, sua introspecção, sua
consciência de si mesmo e da sociedade dos homens, sua angústia entre
as promessas do cristianismo e a miséria da nossa condição são de tal
ordem, e tão agudas para o seu tempo, que ele, aparentemente desde
cedo, encontra um pensamento mediador, com que concilia seus
contrastes: é o que verificamos no neoplatonismo de tantas das suas
sínteses artísticas e poéticas.219
Ainda que pouco conhecido como poeta, Michelangelo possui uma considerável
coleção de poemas, que, em grande parte, refletem sobre a condição do artista como
intérprete do universo. Seja ele um escultor, um escritor, um cientista, enfim, um sábio que
perscruta os sentidos captados pela sensibilidade, existe sempre um limite diante de si, e
conhecer a total capacidade do seu intelecto é a intenção última de sua existência, nem que
para isso o corpo sofra as flagelações advindas dos excessos. É importante destacar que,
diante dos extremos, o artista opta por um termo mediador: Dante, através da utopia
joaquimita, Michelangelo através do neoplatonismo ou do hermetismo, mas ambos pela
crença na obra de arte como síntese ou convergência de todas as contradições.
Si come per levar, Donna, si pone
In pietra alpestra e dura
219
GAMA, Mauro. ―Conflito e inovação no texto de Michelangelo‖. In: ___. Michelangelo: 50 poemas.
(Trad. Mauro Gama). Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. p. 15-16
276
Una viva figura,
Che là più cresce, u’più la pietra scema:
Tal alcun’opre buone,
Per l’alma, che pur trema,
Cela il soverchio della propia carne
Com l’inculta sua cruda e dura scorza.
Tu pur dalle mie streme
Parti puo’sol levarne,
Ch’in me non è di me voler nè forza.
Assim como ao retirar, Senhora, surge
De uma pedra alpestre e dura
Uma viva figura,
Que cresce mais lá onde a pedra diminui:
Assim certas boas obras,
Para a alma que estremece,
Ocultam a massa da própria carne
Com sua casca inculta e bruta.
Mas apenas tu de minhas partes
Extremas podes me livrar,
Pois em mim não há força nem vontade.220
Essa Donna, sublime como uma Beatriz ou uma Laura, muitas vezes é a imagem da
própria Inteligência, a Sabedoria divina que instrui a obra do artista, aquela outra parte que
dele foi retirada, como no Andrógino, e retorna a ele em forma de Musa, de inspiração. O
seu esculpir, por sua vez, não é um talhar na pedra, mas a revelação daquilo que a pedra
esconde no interior, suprimindo a casca que a recobre/esconde. A obra de arte é, portanto,
revelação divina que precisa eclodir através das mãos do artista. De forma semelhante, se
faz mister retirar a dura casca que encobre as verdades da alma a fim de que o que está
dentro seja amplamente manifesto.
Como Bartolomeu e Mársias, o poeta-profeta cede a própria pele em favor de uma
causa mais nobre. O que dele é retirado, ainda que de maneira dolorosa, é apenas a casca
rude e dura de seu exterior. O corpo/casca, seja da vida ou da obra, limita essa grande
liberdade do espírito, possível apenas na concretização da obra-prima ou na morte terrena.
Assim, livres da carne que o recobrem, podem aparecer para Deus como ―vivas figuras‖,
relembrando o penúltimo verso de Dante, antes de subir ao Paraíso: ―come piante novelle/
220
MICHELANGELO. In: PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de Belo. São Paulo: Martins
Fontes, 1994. p.113.
277
rinovellate de novella fronda‖. (Como de folhas novas, de sua ramagem, se renova a
planta).221
Cercado de simbologias, os afrescos de Michelangelo constituem uma verdadeira
fusão de temas pagãos e cristãos. A arte de Michelangelo consegue abarcar, num mesmo
amplexo, deuses, heróis, patriarcas bíblicos, enfim, figuras diversas. Se por um lado havia a
evocação do clássico, como ponto de partida de suas criações, por outro há a denúncia de
um universo em constante conflito entre a força e a inteligência, entre o autoritarismo e a
liberdade criativa, entre a fragilidade do homem e a voracidade da Natureza.
Esse grande quadro, transposto da parede para a tela do mundo, revela o artista em
contínua luta para desenvolver sua arte, para trazer ao homem um pouco do saber ou da
música destinados apenas aos deuses. Adão ou Andrógino, Bartolomeu ou Mársias, o
artista desafia os limites, beirando o céu e o abismo. Transcende os significados aparentes
sob o manto da religiosidade, e, muitas vezes ignorando as limitações físicas, procura trazer
alguma revelação aos homens.
Os poetas-profetas resistem ao conhecimento superficial do mundo. Rompendo com
os padrões de sua própria época, antevêem questões que se propagarão no futuro. Esta
antevisão de futuro, no entanto, provém de uma acurada análise do passado, a partir da
leitura dos clássicos, de obras que atravessaram os tempos e permaneceram na posteridade.
Apesar desse mergulho no passado, o presente continua sendo o eixo essencial de suas
obras, o espaço e o tempo onde observam in loco as interferências do homem no seu tempo
e espaço e analisam criticamente esse ―estar no mundo‖. Assim, só é possível penetrar no
sentido mais íntimo da obra desses grandes homens do Renascimento se penetrarmos o
espírito, o que há de mais substancial sotto il velame delli versi, ou sob a dura scorza.
4.7- Sibilas e profetas nos Autos sacramentais da Península Ibérica:
221
ALIGHIERI. D.C. Canto XXXIII. v. 143-144. p. 220
278
O Canto de la sibila, assim como as representações dos Ordos, se prolongaram até
o século XVI, quando foram retiradas das liturgias pelo Concílio de Trento, em 1563.
Ainda assim, por estarem tão arraigadas no imaginário popular, muitas igrejas
desconsideraram a proibição e continuaram a incluí-las nas liturgias natalinas e,
incrivelmente, algumas levaram-nas adiante até meados do século XVIII.
Porém, os Autos Sacramentais de autores Ibéricos mostraram certas modificações
nas sibilas e nos profetas, até porque havia um pensamento de intolerância religiosa que
elegia como principal alvo os judeus e alguns humanistas que, segundo a Igreja, eram os
principais divulgadores de heresias, através de práticas condenáveis, desviando a fé cristã
do verdadeiro caminho.
O poder de convencimento da arte e, principalmente, da imagem e dos símbolos
também foi amplamente utilizado pela Igreja, principalmente no interior das catedrais e nas
representações dramáticas. Na Contra-Reforma seria um dos recursos mais bem
empregados nas escolas jesuíticas, para fortalecer a crença católica e para inspirar os fiéis a
seguirem os mandamentos divinos. Assim, o teatro se tornaria um dos principais veículos
dos jesuítas para a catequese dos povos, tanto da Europa quanto de outros continentes,
principalmente na América, para a conversão dos indígenas.
Gradativamente, as novas leituras da Sibila vão desvinculá-la do contexto cristão, e
o principal motivo desse litígio seria pela ousadia de ter-se comparado à mãe do Salvador,
como já vimos. Deste modo, sibilas e profetas seriam representados no século XVI e XVII,
no teatro de Gil Vicente e de Calderón de la Barca, de uma outra maneira, uma vez que o
judaísmo e o paganismo, pelos motivos expostos, não eram mais bem-vindos no seio
católico, principalmente na Península Ibérica.
Outro aspecto interessante em relação à figura de Salomão e da Sibila é que ambos
passam a simbolizar a excelência da sabedoria, tanto científica quanto espiritual. O rei
sábio do Antigo Testamento, por outro lado, também representava a união da fé judaica à
sabedoria divina e ao misticismo, já que Salomão abandonou o monoteísmo, no final da
vida, para seguir as crenças pagãs de suas mulheres estrangeiras (1 Reis 11:1-8).
279
Há ainda a constante relação de Salomão com os cavaleiros da ―Ordem do Templo‖,
ou ―Templários‖, que tinham o rei judeu como um símbolo a ser seguido. Tanto que os
cavaleiros da Ordem tornaram-se um terceiro poder naquele tempo, acumulando
conhecimentos científicos e riquezas incalculáveis como o rei bíblico, sendo, por isso
mesmo excomungados pela Igreja.
Em Tomar, num dos castelos da Ordem em Portugal, para onde muitos cavaleiros
foram depois de excomungados pela Igreja em 1307, há esculturas no portal que se
identificam com os personagens do Ordo. Particularmente destacam-se, uma próxima da
outra, as imagens da Sibila e do rei Salomão. Essa proximidade entre as duas figuras foi
alvo de uma nova leitura, que afirmava ser a Sibila uma das esposas do rei hebreu.
Sendo o rei bíblico descendente direto de Davi, a especulação da Sibila, na obra de
Barberino, ser mãe do Messias constitui-se numa probabilidade, no sentido de ambos
quererem formar um descendente híbrido, judaico-pagão, que seria um falso Cristo. Na
mesma medida que as duas figuras serviam de referência e exemplo para os sábios,
passaram a ser encaradas pela Igreja como personagens reprováveis e que precisariam
render-se à verdadeira fé.
Mesmo sob nova configuração, os Autos sacramentais de Gil Vicente e de Calderón
de la Barca receberam uma grande influência dos dramas litúrgicos medievais e do Ordos.
Os personagens de um e de outro retomaram essas antigas concepções como base de
criação dos novos textos. O ar amedrontador de um Judicii Signum, por sua vez, será
atenuado pelos recursos cômicos ou diluídos em temas religiosos de maior importância
como a ―Paixão‖ e a ―Adoração do menino‖ (Culto à Natividade), que produziam uma
comoção muito maior nos fiéis do que o Juízo Final.
Também os recursos mais utilizados seriam a comoção e o êxtase espiritual, a partir
do encanto e do enlevo da imagem e da música, abandonando-se o amedrontamento e a
punição como estratégias de convencimento. No lugar de profecias sobre tempos de ira,
teremos personagens como ―Júbilo‖, ―Regozijo‖, ―Fé‖, que personificam sentimentos a
serem buscados pelos cristãos em sua vida pessoal.
Até mesmo o Inferno exigiria uma releitura no final do século XV e início do XVI.
Em Gil Vicente, por exemplo, no Auto da barca do Inferno, observamos a existência da
antiga concepção medieval, mas sob um novo olhar: no lugar de papas simoníacos ou de
280
políticos corruptos, como em Dante, temos judeus rejeitados pelo próprio diabo, e, em vez
do terror das imagens do ―Inferno‖ dantesco, o humor do ―Louco‖, único personagem
vicentino a alcançar o Céu, com um estoque de hilariantes loucuras e injúrias.
Gil Vicente também possui um Auto menos conhecido, em castelhano, que aborda o
tema das sibilas e dos profetas. Trata-se do Auto da Sibila Cassandra, de 1513. De início,
antes de analisarmos a peça vicentina, já é digna de nota a escolha da personagem, pelo
fato de Cassandra ser uma sibila de pouca credibilidade, pois, amaldiçoada por Apolo, não
conseguia ser ouvida nem mesmo pelo seu povo.
É memorável a cena da Ilíada em que a profetisa alerta os seus compatriotas sobre
os perigos do Cavalo de Tróia, sem conseguir convencê-los. Aliás, Tróia parece ser a
cidade que não crê nas profecias nem nos profetas, pois, além de abrigar Páris,
considerado um ―archote‖ que destruiria a cidade, não dá atenção aos conselhos sábios e
aos augúrios nem de Laocoonte, nem de Cassandra, que inutilmente discorreram sobre os
perigos do ―presente‖ grego. Há, portanto uma maldição a encobri-los, são profetas
desfavorecidos pelos deuses e tornam-se objetos de escárnio e descrença.
De igual modo, na peça de Gil Vicente, Cassandra não consegue ganhar
credibilidade, pois acredita que a profecia da Virgem há de se concretizar através dela
mesma. A Sibila não logra entender as próprias profecias e se confunde. Para
complementar a nova concepção religiosa dos Autos, surge Salomão querendo seduzi-la e
tentando convencê-la a casar-se com ele.
A recusa de Cassandra ao casamento se consolida em cada diálogo, pois crê que a
virgindade é a condição necessária para que o oráculo se cumpra através dela. O rei, apesar
de sábio bíblico, surge na peça com um discurso pouco convincente e uma fala bem
popular e cômica. Quem se sobressai na argumentação é, sem dúvida, Cassandra.
CASSANDRA: Qual é a dama polida
que sua vida
joga, pois perde casando,
sua liberdade encerrando,
outorgando
que seja sempre vencida,
desterrada em mãos alheias,
sempre em peias,
abatida subjugada?
E pensam que ser casada
281
é algua boa estrela!
(...)
SALOMÃO:
Anda, vem,
que por teu bem
mandam-te chamar tuas tias,
e logo, daqui a três dias,
alegrias
terás tu, e eu também.
CASSANDRA: O que querem?
SALOMÃO: Que me vejas
e me creias
para tratos de casar.
CASSANDRA: Isso me leva a pensar
que ela ou tu devaneias.
SALOMÃO: Somos acaso parentes?
Bem se vê
que sou eu de tal valor
que juro, por meu poder,
que, se não for,
vai ser ―dá cá aquela palha‖.
Eu sou bem aparentado
e abastado
valente zagal polido,
e estou meio envergonhado
de haver aqui chegado...
andas se tu queres vir.
CASSANDRA: Sem mentir,
222
tu estás fora de si...
Como se pode notar, Cassandra afirma que Salomão perdeu o senso, ou seja,
deixou de ser sábio para tornar-se um tolo. O personagem demonstra-se envergonhado,
afinal não apresenta argumentos sólidos, como seria esperado, para convencer a Sibila,
valendo-se unicamente da aparência exterior e dos próprios bens materiais para validar seu
discurso. Cassandra, por sua vez, denuncia todas as práticas injustas do casamento e
assinala como as mulheres tornavam-se escravas de seus esposos (que significa algemas,
em latim). Salomão oferece-lhe flores, ao que ela refuta com um discurso bem convincente:
222
VICENTE, Gil. Auto da Sibila Cassandra. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 66-69.
282
CASSANDRA: E com florinhas
pensas que me iludirei?
Não quero ver-me perdida,
entristecida
por ciúmes ter ou causar.
Deixa disso! Põe-te a andar!
Antes não fosse nascida!
Ter ciúmes é o pior,
que é uma dor
que não se pode evitar.
Transforma os ventos em mar;
faz afirmar
que o branco é de outra cor;
das boas damas faz más,
com suas falas,
e dos santos faz ladrões.
O Auto vicentino, portanto, além de questões religiosas, traz algumas reflexões
sobre a vida social e do cotidiano na Corte. A peça, na verdade, se divide em duas partes, a
primeira como uma comédia de costumes, que se prolonga com a chegada das três sibilas
(as tias de Cassandra), enquanto a protagonista discursa fervorosamente contra o
casamento. A segunda parte funciona como um ―Auto sacramental‖ propriamente dito, a
partir da entrada dos três tios de Salomão, os profetas, que evocam a importância do
matrimônio como um dos sacramentos e, por outro lado, retomam as concepções proféticas
acerca da vinda do Messias. Ao lado das sibilas, anunciam o nascimento do Salvador, que
de fato ocorre no final da peça. A adoração à Sagrada Família transforma o último ato em
―Auto de Natal‖, destacando-se a importância de Maria como símbolo da castidade
feminina, exemplo de mulher virtuosa e mediadora dos pecadores.
As três tias da Sibila Cassandra, de que fala o texto, são três sibilas: Ciméria (ou
Cuméia), Peresica (ou Pérsica) e Erutéia (ou Eritréia), que tentam convencê-la do bom
casamento que faria com Salomão. O rei, por sua vez, continua a falar como um bufo,
interrompendo a fala das sibilas com um discurso cômico e de pouca profundidade.
ERUTÉIA: Escuta sobrinha minha,
ainda:
não podes senão casar
e este deve tomar
sem porfiar,
que é bom em demasia.
283
CASSANDRA: Como assim?
ERUTÉIA: É generoso
e virtuoso,
sensato e afortunado;
tem terras e muito gado
e é louvado
músico mui gracioso.
SALOMÃO: Tenho pomares e vinhas,
e pilhas
de rosas, para folgares;
tenho vilas e lugares,
mais trinta e duas galinhas.
Percebemos como o autor procura afirmar a comicidade de Salomão, despido das
vestes da sabedoria, ao usar o argumento irrisório das ―trinta e duas galinhas‖ diante de
tamanha riqueza do rei. Para compensar o frágil discurso do personagem, apela-se aos três
―tios‖ de Salomão, na verdade profetas do Velho Testamento: Isaías, Moisés e Abraão.
Como se fossem os três reis magos, cada um traz um presente para Cassandra e,
novamente, Salomão interrompe o discurso da seriedade com sua fala cômica:
ABRAÃO: Digo que estejais em boa hora.
Como presente,
toma estas presilhas [pulseiras].
MOISÉS: E eu te dou estes anéis
de minhas filhas.
ISAÍAS: Eu te dou este colar.
SALOMÃO: Dar-te-ia bem sei o que,
mas não sei
quanto pode aproveitar.
ERUTRÉIA: Muitas coisas faz o dar,
como todo dia se vê.
A mescla entre o sagrado e o profano também se faz sentir no discurso vicentino,
com a intenção de enfatizar o cômico-profano para conquistar a platéia. A identificação
com o conteúdo representado prepara o espectador para a verdade sagrada a ser revelada ao
final da peça.
284
A sibila era uma figura muito popular e admirada como exemplo de sabedoria de
elucidação e, obliquamente, de fé. Talvez por isso, primeiramente, busca-se uma
identificação do público para com a figura da sibila Cassandra, como uma voz sincera que
fala as verdades que os outros personagens parecem não reconhecer. Essas verdades
deviam identificar-se plenamente com as situações vividas na sociedade da época. A
aproximação, por sua vez, prepara o espectador para o choque da descoberta, quando
Cassandra passa de sábia a louca e evidencia seus enganos, constituindo-se, dessa forma,
numa chamada à conversão.
Moisés contesta o discurso de Cassandra acerca do casamento, mostrando a lei e
expondo a gênese dos princípios matrimoniais. A partir desse ponto, a dramatização ganha
outro viés e os discursos dos sábios profetas e das sibilas passam a revelar algumas
observâncias quanto ao casamento, narrando, por sua vez, o nascimento do Messias. Então,
Cassandra opõe a perfeição de Deus à imperfeição humana, revelando que deseja manter-se
virgem porque quer ser a mãe do Salvador.
CASSANDRA: Pois só Deus é perfeição
sem razão,
se quereis ouvir verdade:
que o homem todo é mutável
e variável
por humana compleição.
Porém eu quero dizer
e descobrir
por que virgem quero estar:
sei que Deus há de encarnar,
sem duvidar,
e a virgem há de parir.
(...)
e juraria
que de mim há de nascer,
que outra do meu merecer
não pode haver
em bondade e fidalguia.223
Diante de tal pensamento, todos contestam a conclusão de Cassandra e ela, que
sustentava um discurso sábio e com argumentos convincentes, começa a ocupar a margem
da cena. Sua declaração enfatiza não apenas o engano, mas também a soberba de se
223
VICENTE. Op. cit. p. 103
285
considerar mais fidalga e bondosa do que qualquer outra mulher. O próprio Salomão parece
recuperar a consciência diante de tal blasfêmia e retorna à razão: ―Tu, louca, e eu,
Salomão‖, declinando do desejo de desposá-la.
O centro da cena passa a ser a exaltação de Maria através dos discursos dos
profetas. De igual modo, através da prefiguração, o Cânticos dos cânticos torna-se um livro
profético que narra o casamento entre o rei – Deus, e a Virgem – Maria. Nota-se que a
interpretação anterior dos Cânticos de Salomão, anunciando o amor de Cristo pela Igreja,
vai ser substituída por essa nova visão do livro. Salomão, por sua vez, deixa as bufonerias
de lado e consolida um perfil de profeta e de sábio.
MOISÉS: E tu também, Salomão
bom rapaz,
os cantares que fazias,
todos eram profecias
que dizias
dela [Maria] e de sua perfeição:
―fermosa mea, columba mea,
quem te veja
de vista ou em sentido
goze-se por ser nascido,
por forte zagal que seja.‖ 224
Na parte final do Auto surge a Virgem com o menino. Todos os personagens se
rendem àquela visão, mas há uma curiosa maneira de Gil Vicente organizar o ato de
adoração. Os profetas do povo judeu louvam o menino e ajoelham-se diante Dele, enquanto
as sibilas adoram Maria e declaram-na a única virgem digna de gerar o Salvador e de rogar
e interceder pelos pecadores. Até Cassandra se rende a ela e reconhece-lhe a superioridade.
Só que, achando-se indigna por tamanho pecado cometido, não tem coragem de
pedir perdão ao Senhor, e rende-se à Mãe para que rogue ao Filho: ―Senhor: eu de já
perdida/ nesta vida,/ não ouso pedir-te nada,/ porque nunca dei um passo acertado/ nem
devia ter nascido/ É à Virgem mãe de Deus/ a Vós, a Vós/ a coroa das mulheres,/ por
vossos sete prazeres, eu peço rogar por nós.‖
A mensagem final do Auto de Gil Vicente parece ser a da conversão dos gentios,
representados pelas figuras das sibilas; e a dos judeus, na figura dos profetas. O dom da
224
Idem. p. 109.
286
profecia não podia mais garantir a interpretação adequada do cumprimento da promessa,
advindo daí a leitura equivocada de Cassandra. Era preciso vê-la render-se à verdade
encarnada: o culto da Natividade.
As sibilas e os profetas, que estiveram tão arraigados no pensamento cristão
medieval, precisavam ceder espaço para uma representação que não fosse fruto da leitura
de textos pagãos ou judaicos, mas que contextualizasse uma nova era cristã e, diante das
outras igrejas que se formavam após a Reforma, definisse um perfil exclusivamente
católico. Maria, seria, portanto, a intercessora no dia do Juízo, para abrandar a cólera divina
que tanto amedrontara os homens nos séculos anteriores.
Leo Spitzer faz uma consideração sobre o papel de Cassandra na peça de Gil
Vicente, destacando seu perfil trágico e mostrando a reconstrução dessa personagem num
contexto cristão:
A ―não-sibilina‖ sibila Cassandra, uma espécie de anti-Maria ou contraMaria, tinha presciência sem caridade, era irremidiavelmente pagã em
seu desejo de elevar-se acima da humanidade comum até o nível dos
imortais, ocupando o seu lugar entre outras figuras lendárias da
Antiguidade e rivalizando com os deuses; no entanto, a única voz
discordante no concerto das profecias cristãs devia sintonizar-se com a
harmonia que surgia no mundo glorioso da Natividade.225
A peça de Gil Vicente, numa leitura superficial, mostra-se um ―drama
incongruente‖, como a definiu Thomas Hart, leitura a que Leo Spitzer se opõe com muita
propriedade. Afinal, como justificar, sem uma análise do espírito da época, um drama que
mistura princípios cristãos e pagãos e personagens dos mais variados dentro de uma
temática de conversão que não faz o menor sentido em nosso tempo? Como compreender
que uma sibila, retirada de uma epopéia grega, passe a se considerar a Virgem Maria? O
devido esclarecimento só é possível a partir de uma releitura histórica da época. Avaliando
esse contexto, vemos que a partir do século XIV as sibilas começam a mudar seu papel de
evangelização dos povos, até porque já revelavam um caráter ambíguo que servia aos mais
diversos discursos, incluindo os oráculos de natureza política e outros científicos, místicos
ou anti-eclesiásticos.
225
SPITZER, Leo. ―A unidade artística do Auto da Sibila Cassandra‖. In: VICENTE, Gil. Auto da Sibila
Cassandra. Op. cit. p.31.
287
Outro ponto que convém destacar é que o Auto vicentino foi representado para a
rainha Dona Leonor de Portugal. A peça, neste caso, assumia um contexto encomiástico, na
medida em que o ―Auto de Natal‖ passava também a exaltar o nascimento do futuro
Monarca, D. Manuel I. Assim, a ―Sagrada Família‖ servia como uma outra forma de
exaltar a ―Família Real‖. O político e o religioso, portanto, andavam de mãos dadas como
Salomão e a Sibila.
(...) pastores homenageiam uma criança em cujo advento são depositadas
esperanças coletivas de natureza moral. A transposição de um plano a
outro – do político ao litúrgico e vice-versa – era perfeitamente
adequada, e toda a discussão sobre a figura do monarca aponta então
para seu caráter religioso, seu papel de vicarius Dei na Terra, com a
conseqüente sacralização do espaço da corte. Estamos no centro da
convergência de expectativas políticas, dinásticas e religiosas.226
Partindo dessa concepção, o Teste David cum Sibylla ganha novas conotações,
principalmente porque passa a corroborar a aliança entre o Estado e a Igreja, o laico e o
confessional, o político e o religioso. A ambigüidade sibilina valia mais ao discurso da
época do que a sua própria imagem. Aproveitavam-se portanto as profecias das sibilas e
profetas, mas apontava-se para a necessidade de render louvores e culto ao alvo desses
oráculos: o Rei (Cristo/ Monarca) e a Rainha (Virgem/Igreja).
Tratando-se ainda da representação da Sibila aliada a Salomão, há um curioso
acréscimo no panteão sibilino a que, até aqui, não tínhamos dado o devido destaque. Tratase da Rainha de Sabá, famosa governante do Sul, que veio de longe para conhecer a
sabedoria e ver as riquezas do rei Salomão e, muito impressionada, teria admitido, por tudo
que viu e ouviu, a grandeza do Deus de Israel. Sua presença dentre as esculturas do
―Pórtico da Glória‖, da Catedral de Compostela, mostra que essa associação é de data bem
remota (séc. XII), prova cabal de seu papel no âmbito das representações do Ordo
Prophetarum, fortalecendo o coro das sibilas e tornando-se a única representante do Antigo
Testamento a se equiparar às antigas profetisas gregas.
O papel da Rainha de Sabá no Ordo se justifica também na medida em que foi
através do próprio testemunho de Jesus, no Novo Testamento, que ela passou a servir como
226
CARNEIRO, Alexandre Soares. ―Poesia e doutrina em Gil Vicente‖. In: VICENTE, Gil. Auto da Sibila
Cassandra. Op. cit. p.15.
288
parâmetro de credulidade para julgar a descrença dos judeus no dia do Juízo Final, já que
muitos, mesmo vendo Jesus face a face, não creram em sua pregação.
O trecho a que nos referimos, do Evangelho de Mateus, serve também para revelar a
fonte de que se serviram os doutos cristãos do passado para tomar o testemunho de
determinadas figuras pagãs como exemplos de fé, ainda que, segundo eles, não tivessem o
conhecimento da verdade da Salvação. Interrogado por fariseus e saduceus, que pediam um
sinal dos céus, Jesus fez a seguinte afirmação: ―uma geração má e adúltera pede um sinal;
mas nenhum sinal lhe será dado (...). A rainha do Sul se levantará no juízo com esta
geração, e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a Sabedoria de
Salomão. E eis aqui quem é maior do que Salomão.‖ (Mat. 12: 39 e 42).
A definitiva prova da equiparação entre a Rainha de Sabá e as sibilas é uma
comédia de Calderón de la Barca intitulada: ―La Sibila del Oriente y grand Reina de Sabá‖.
Tanto o título quanto o conteúdo revelam a fusão das figuras. Na peça, num primeiro
momento, a rainha e Salomão encenam uma admiração mútua que se transforma em
atração amorosa, como já havia proposto Gil Vicente ao fazer o rei cortejar Cassandra.
Calderón insinua que Salomão teria criado os versos do livro de Cântico dos
cânticos para a Rainha de Sabá. Já observamos que, numa leitura anterior, esses Cânticos
prefiguravam o relacionamento de Jesus e de sua Igreja e que esta, por sua vez, na época do
dramaturgo, passaria a representar a figura da Virgem, Esposa de Deus, que concebe o
Salvador do mundo. Então, Salomão passa a se comparar a Deus, e a sibila acaba
identificando-se com a Virgem Maria: aquela que, através da descendência de Davi, geraria
Cristo. O diálogo entre os dois personagens revela a adoração entre ambos e a música do
coro é uma paráfrase de um trecho dos Cântico dos cânticos:
MÚSICA: Morena soy, pero hermosa;
hijas de Jerusalém,
bien podeis venirme a ver.
SABÁ:
Príncipe soberano
del gran povo escogido
de Dios, que em ti ha excedido
las obras de su mano,
pues eres peregrino,
un casi humano Dios, hombre divino.
289
SALOMÓN:
Deidad alta y suprema,
de la zona abrasada,
donde a luz bañada
el sol las alas quema
y los rayos envia,
hermosa noche, emperatriz del día.227
No ato final da peça, Salomão adormece e tem uma visão que o adverte duramente
acerca de seu desvio da verdade e da sabedoria divina, ao se exaltar como Deus e dar
ouvidos a uma mulher estrangeira que de modo algum poderia ser a mãe do Salvador. O
episódio remete à história bíblica, ao mostrar a idolatria de Salomão nos últimos dias de
vida, graças à influência das suas esposas:
VISIÓN: Quién tan sabio, se ve tan ignorante?
Porque el mayor agravio
de la ciencia es errar el hombre sabio
Teme, teme el castigo
si extranjeras mujeres
de otra ley, de otro Dios, amas y quieres,
que esgrima la cuchilla,
que relámpagos luce y rayos brilla,
y esguace del segundo
diluvio, que ha de sepultar al mundo.
É natural que na peça de Calderón, encenada na época da Contra-Reforma, exista
uma ―Visão‖ divina repreendendo Salomão, que representava, a um só tempo, a Ciência e o
Império, como uma advertência para que essas duas instituições não se desviassem dos
preceitos cristãos apregoados pela Igreja. Também na peça, um personagem, designado
apenas como ―Hebreu‖, derrubará sem nenhuma piedade a árvore que simbolizava Cristo,
acentuando o caráter maléfico do judeu, um dos principais alvos da Inquisição.
Na última cena da comédia, rei e rainha reconhecem seus enganos e se rendem ao
verdadeiro Deus. Como a Sibila Tiburtina, diante do rei Augusto, a Sibila do Oriente/
Rainha de Sabá adverte sobre o perigo de Salomão considerar-se divino, para, em seguida,
anunciar a vinda de Cristo:
227
CALDERON DE LA BARCA, Pedro. La Sibila del Oriente e gran Reina de Saba. Charleston:
Bibliobazaar, 2007. p. 59
290
Vês esse sagrado lenho,
Que a ignorância não estima,
Ou que o descuido deprecia?
É soberana relíquia
Da serpente de metal,
Que ao povo defende e livra.
E assim não admires, que sobre
Hoje à tua obra rica,
Senão para templo melhor
Lhe aguarda o céu, e destina;
Pois já parece que vejo,
Que sobre seu topo se apóia
outra obra mais bela,
Que há de ser obra viva.
Não vês um formoso jovem,
Que ao sol os Impérios quita
Da luz, cujo diadema
É de junco e de espinhos?
(...)
Pois este homem ou este Deus,
Que pende dessas duas linhas,
É Filho de Deus eterno,
É verdadeiro Messias,
Ao anunciá-lo agora
Parece que o sol se eclipsa,
Que a lua se obscurece,
Que as estrelas não brilham;
E, por fim, todo Universo
Já caduca, já delira,
Já falece, já desmaia,
Já desvanece, já expira,
Prevendo as tragédias
De tão estupendo dia.228
Desde o início da peça, a personagem faz previsões, escrevendo-as, em versos
hexâmetros, nas folhas que seus criados tentam em vão interpretar. Nessa previsão final,
especificamente, como nos outros textos sibilinos aqui comentados, a Rainha de Sabá fala
da primeira vinda e da crucificação do Messias, mas também anuncia o Juízo Final, a
segunda vinda de Cristo, como Juiz da humanidade.
Como se pode perceber, apesar das advertências à Ciência e ao Império diante da
Religião a que se deve seguir, a arte de Calderón perpetua a tradição medieval de reunir
elementos pagãos e cristãos. Também a releitura do Velho Testamento como prefiguração
228
Idem. p. 52.
291
do novo será recurso muito bem aproveitado em sua obra, com o acréscimo da releitura
clássica dos episódios bíblicos.
Um outro texto de Calderón que claramente realiza essa junção entre o clássico e o
bíblico é o auto O sacro Pernaso. De título híbrido, como o da outra peça analisada, esse
Auto vai definitivamente chamar de ―fábulas mescladas à realidade‖ tanto as narrativas
hebraicas do Antigo Testamento quanto os textos clássicos da Antiguidade. Além disso, o
dramaturgo espanhol, através do personagem ―Fé‖, equipara o Gênesis à Teogonia pagã,
afirmando que a verdade deve ser extraída de ambos, observando-se atentamente as
alegorias presentes nesses livros.
Os personagens ―Gentilidade‖ e ―Judaísmo‖ vão lendo para a ―Fé‖, de acordo com
o que ela vai indicando, trechos das narrativas de seu povo e que vão se revelando muito
próximas umas das outras. Assim, tanto no Gênesis mosaico como nas Metamorfoses
ovidianas, a criação do mundo segue padrões bem semelhantes.
FÉ:
(Al JUDAISMO)
Lee de que su Génesis trate
Abre el libro y lee
JUDAÍSMO:
―En el princípio crio
Dios cielo y tierra
(...)
La tierra estaba vacia
entre las obscuridades
de las tinieblas, y sobre
la faz del abismo el grande
Spíritu de Dios era
llevado de los embates
de las aguas y...‖
FE:
A mi intento
ese periodo baste.
(A la GENTILIDADE)
Cómo los Metamorfosis
de tus mentidos anales
empiezan?
292
Lee la GENTILIDADE
GENTILIDADE: ―En el principio
la nada y el todo iguales,
un globo y masa confusa
eran sin que a ser llegasen
aire, fuego, tierra, agua
agua, tierra, fuego ni aire.‖
FE: Bien veis cuánto en sus principios
hebreo y latino frase
convienen simbolizadas
fábulas y realidades.229
Outras comparações são realizadas pela ―Gentilidade‖ e pelo ―Judaísmo‖, unindo
lendas da mitologia greco-romana às narrativas bíblicas. O fruto proibido será comparado
ao pomo da discórdia, Deus a salvar Noé da tempestade se assemelha a Júpiter Tonante
protegendo Deucalião e Pirra de um outro dilúvio, a Virgem concebendo pelo Espírito se
reproduz em Dânae, que gera uma criança através de uma chuva de ouro.
Um aspecto que nos desperta o interesse é a nova leitura que a ―Fé‖ realiza ao
interpretar um dos episódios do Antigo Testamento. Trata-se da passagem bíblica em que
aparece um coro de mulheres saudando Davi em seu retorno vitorioso ao reino de Israel,
ainda sob o governo do rei Saul. Cantando e tocando tímpanos, essas mulheres exaltam o
jovem guerreiro e o louvam como um rei: ―Saul feriu os seus milhares, porém Davi os seus
dez milhares.‖ (1 Samuel 18:7).
Na peça de Calderón, tais timpanistas passam a ser vistas como sibilas que
anunciam o futuro reinado de Davi e sua superioridade em relação ao de Saul.
FE: (...) Aquellas vírgenes bellas,
que al ver cuán sonoras cantem
los dísticos que componen
com los tímpanos que tañen,
David llamó timpanistrias,
entendien algunos padres
y doctores de la Iglesia
ser las sibilas, que en partes
varias, en las varias regiones,
bien como en varias edades
229
CALDERON DE LA BARCA. El Sacro Pernaso. (estúdio introductorio de Antonio Cortijo). Pamplona:
Universidad de Navarra; Kassel: Edition Reichenberger, 2006. p. 150.
293
del Espiritu inflamadas
de Dios, escribieron antes
de la humanidad de Cristo
la venida, en elegantes
epigramas, no tan solo
desde que el Verbo hecho carne
fue en Virgen claustro, hasta que
murió em afrentoso ultraje,
pero hasta que al fin del mundo
por fuego vuelva a juzgarle.
A este fin, pues, componiendo
un todo de dos mitades,
ese imaginado monte
hoy a dos visos, dos haces
- ya que Paraíso no,
ni Eliseo, como pensastis –
es Pernaso y es Sion.230
A mudança de paradigma é clara quando se refuta a imagem dos dois montes que
estão no imaginário pagão e cristão, Elísio e Paraíso, substituídos por outros, Parnaso e
Sião. Estes, ao contrário, não são mais os lugares onde repousam os mortos, mas onde os
vivos se regozijam e neles vão compor versos. O monte é híbrido, possui duas faces, uma
correspondendo ao judaísmo (Sião) e outra ao paganismo (Parnaso). Davi é o poeta do
monte Sião, enquanto os poetas gregos são aqueles que buscam inspiração nas musas do
Parnaso.
As timpanistas/ sibilas passam a ser musas judaicas, enquanto as ninfas, musas da
gentilidade. Portanto, o monte duplo abriga sibilas-musas que vão coroar os ganhadores de
um concurso de versos, promovido em nome da ―Fé‖, com todos os personagens da peça
como participantes. Essa é a condição necessária para ascender ao monte onde reina o
―Regozijo‖, personagem que também aparece na representação.
Dentro do Auto há um outro desdobramento, como na peça de Gil Vicente, pois
primeiramente temos o confronto entre ―Judaísmo‖ e ―Gentilidade‖, representados pelos
dois personagens, e, na parte central da peça, temos um Auto de conversão, baseado na vida
de um santo católico. Os profetas judaicos, nessa peça, são substituídos pelos doutores da
Igreja: Santo Ambrósio, São Jerônimo, São Gregório e São Tomás de Aquino, que
possuem a missão de converter o jovem Agostinho (ainda maniqueu).
230
Idem. p.160.
294
As cenas que se seguem mostram a resistência de Agostinho aos ensinamentos dos
padres da Igreja, com uma apurada retórica (tentando mostrar que a ―Fé‖ não existe), a
lembrar, em muitos aspectos, a obstinada argumentação de Cassandra, na peça de Gil
Vicente, quando tenta vencer os argumentos dos profetas bíblicos. Como aquela
personagem, também Santo Agostinho se rende à ―Fé‖ e se converte ao cristianismo no ato
final.
Quatro sibilas também participam da encenação de O sacro Pernaso. Elas descem
do monte não para anunciar o Juízo Final – tendo em vista que ocupam agora a missão de
musas -, mas para dar início a um concurso de versos: a Pérsica propõe um soneto sobre a
metáfora do pão eucarístico; a Délfica sugere três oitavas acerca do triunfo da cruz; a
Cumana escolhe uma composição em três décimas sobre a paz e a abundância do reino
divino; e a Tiburtina, por sua vez, pede que componham um hino e uma copla glorificando
o Novo Testamento.
Observa-se, nessa última proposta, um banimento do Livro Antigo (judaico),
mostrando que as suas leis foram suplantadas pelo Novo Testamento, o que enfatiza a
importância da graça, do júbilo e da harmonia. É desta forma que se finaliza o discurso da
Sibila Tiburtina: ―A tão alto Sacramento/ venere o mundo rendido/ e o antigo documento/
ceda ao ―Novo Testamento‖,/ suprindo a Fé ao Sentido.‖
No final da peça, assim como o Velho Testamento é banido, os profetas antigos são
substituídos pelos doutores católicos, e o ―Judaísmo‖, único personagem que não participa
do concurso, não ascende ao monte, pois não crê na alegria da celebração e considera o
―Regozijo‖ um sentimento de tolos. São Gregório refuta o sentimento judaico, afirmando:
―É verdade que o regozijo/ é hoje principal afeto/ do católico, e assim/ de ti e contigo
pretendo/ levar estes assuntos.‖.
Após os louvores de todos, o Sol do ―Sacro Parnaso‖ aparece, e abre-se o globo
diante de todos. Os personagens louvam o menino que está em seu interior, enquanto o
judeu lamenta sua sorte, pois foi o único que não acreditou na pregação da ―Fé‖ e na dos
doutores da Igreja. Os elementos pagãos, assim como o personagem ―Gentilidade‖,
permanecem e são aceitos na formação do ―Sacro Parnaso‖, uma nova configuração híbrida
(cristã e pagã), que não será mais o monte ―Sião‖ dos judeus.
295
A fusão de paganismo e cristianismo também aparece claramente na fala do ―Nino‖
que surge dentro do globo solar: ―Eu do verdadeiro Apolo/ luz de luz, no eminente/ cume
daquele monte, agora/ triunfante me vejo neste/ porque passo ao cruento ocaso/ do eclipse
de minha morte,/ e assim no ‗Pão da Fé‘/ claro céu que mantém/ tantos doutíssimos pólos,/
nunca morro e vivo sempre.‖. A identificação do ―Niño‖ com o Sol e, conseqüentemente,
com Apolo, demonstra a nova configuração do ―Sacro Pernaso‖, que, assim como o Cristo
de Dante, passa a ter duas naturezas.
Conforme já havíamos observado na peça de Gil Vicente, também no Auto de
Calderón de la Barca estão relacionados o eixo religioso e o político, pois a afirmação do
―Nino‖, ―nunca morro e sempre vivo‖, retoma a idéia de uma profecia sibilina, surgida
após a morte do rei Frederico II, da Germânia (morto em 1250), que muitos acreditavam
ser o Monarca da profecia do abade Flora. O texto profético foi assaz divulgado na Europa
e inspirou muitas outras lendas, incluindo a do rei ―Encoberto‖, relacionada ao
sebastianismo português.
O oráculo foi atribuído à Sibila Eritréia e anunciava a morte e a ressurreição do
Monarca, afirmando que ele fecharia os olhos, mas, após cruenta morte, ressurgiria para o
povo: ―Vivit, non vivit‖, como um novo rebento ou uma espécie de fênix renascida.231
Dessa forma, o povo acreditava que Frederico ressurgiria para restabelecer seu reino e que
estava escondido na Sicília, esperando o momento certo para retornar.
A Sibila Eritréia, colocada mais uma vez em cena, mantém sua analogia com Santo
Agostinho; possivelmente o autor da profecia inspirou-se em um dos sermões do doutor da
Igreja para compor o oráculo. Consultando o sermão 231 de Agostinho, que fala sobre a
Páscoa e a Eucaristia, notamos a incidência das mesmas expressões (palavras) da profecia,
associadas à celebração da morte e da ressurreição de Cristo. Infelizmente só encontramos
o texto em latim, mas serviu para traçarmos a gênese da profecia dentro e fora do âmbito
religioso.
Si bene vivimus, mortui sumus et resurreximus; qui autem nondum
mortuus est nec resurrexit, male adhuc vivit; si male vivit non vivit;
moriatur ne moriatur (grifo nosso). Quid est: moriatur ne moriatur?
231
DONNE, Roberto Delle. ―La saga dell‘imperatore Federico nella cultura tedesca‖. In: Arquivio di Storia
Della Cultura. Napoli: Liguori Editore, 2006. p. 235. (231-250) ―Oculus eius morte claudet abscondita
supervivetque; sonabit et in populis; Vivit, non vivit, uno ex pullis pullisque pullorum supérstite.‖
296
Mutetur ne damnetur. Si resurrexistis cum Christo, verba repeto
Apostoli, quae sursum sunt sapite, ubi Christus est in dextera Dei
sedens; quae sursum sunt quaerite, non quae super terram. Mortui enim
estis et vita vestra abscondita est cum Christo in Deo. Cum Christus
apparuerit vita vestra tunc et vos cum illo apparebitis in gloria.232
A ênfase da cerimônia eucarística envolve dois principais eventos: a Natividade
(nascimento) e a Paixão (morte). Representam, por sua vez, a comunhão do divino com o
humano: o ―Pão vivo‖ que desceu dos céus (menino) e o sangue vertido na cruz
(crucificação). Seguindo esta concepção, o pão da eucaristia simbolizaria a ressurreição de
Cristo, da qual todos os fiéis participam.
Confrontando a profecia sibilina e o texto religioso, o ―Pão‖ eucarístico passaria a
representar esse Cristo que ―Vivit, non vivit‖, e também apontaria para a utopia do rei
Unificador, do grande Monarca, presente também na profecia do abade Joaquim de Flora e
no ideal de Dante. O ―Niño‖ da peça de Calderón tem essa dupla concepção, como já
havíamos notado em Gil Vicente: uma ênfase religiosa e política, sacra e profana, a serviço
tanto da Igreja quanto do Estado/ Império.
Todo arcabouço profético-milenarista-utópico não se restringiria a uma época ou a
um espaço definidos. A descoberta do Novo Mundo, por exemplo, (a partir da viagem de
Colombo) traria à tona outras configurações proféticas, que ora viam o Continente como o
Paraíso Terreal, um Novo Éden, ora viam-no como um mundo bestializado que necessitava
urgentemente da pregação do Evangelho e da civilização. Esse mundo ―sem fé, sem lei,
sem rei‖ deveria ser dominado em nome da ―Fé e do Império‖, os dois pilares da
civilização.
O embate dos Vícios e das Virtudes ganha nova conotação. Apoiando-se no recurso
profético surgem teorias, constroem-se tratados, explora-se a nova terra, disputa-se o poder.
Mudam-se os regimes, mesclam-se as crenças, mas o íntimo desejo da Unidade permanece,
como a maior de todas as utopias humanas. A própria Ciência estará a serviço das
ideologias, com a finalidade de manter as diferenças entre os homens e, também, como
estratégia de dominação pelo saber.
A grande subversão da obra machadiana será a negação do Estado, da Igreja e da
Ciência como meios inequívocos para garantir o ―Bem Comum‖ da humanidade. Essa
232
MIGNE, Jean-Paul. Patrologiae: cursus completus. Tomo XLVI. Paris: Petit-Montrouge, 1845. p. 667
297
negação por parte do autor produziu em muitos dos seus leitores a impressão de que
Machado fosse um niilista, um ateu ou um homem desligado das questões políticas de seu
país. Pelo contrário, o escritor, ao estudar detidamente os grandes tratados literários,
históricos e religiosos do passado, entrevia muitas semelhanças com as questões de seu
tempo, como se o homem reproduzisse sempre as mesmas estruturas e estratégias que
garantiriam seu estar no mundo.
Com olhar acurado e refinada percepção, Machado concluiria que, embora os
regimes, os ideais e as crenças buscassem a tão sonhada Unidade ou a universalidade dos
direitos dos homens, a ideologia só conseguiria se impor através do princípio da exclusão:
―Ao vencedor, as batatas‖, lei primordial do Humanitismo do personagem Quincas Borba,
teoria que resumiria as contradições humanas em sua busca desenfreada pela
sobrevivência.
O princípio do filósofo machadiano, além de ser uma leitura irônica de
determinados princípios científicos (como o determinismo e o darwinismo), também seria
retomada irônica de todas as premissas e promessas bíblicas, presentes nas cartas às sete
Igrejas do Apocalipse, de João: ―Ao vencedor, dar-lhe-ei que se alimente da árvore da
vida‖ (Éfeso); ―O vencedor não sofrerá o dano da segunda morte‖ (Esmirna); ―Ao vencedor
dar-lhe-ei do maná escondido‖ (Pérgamo); ―Ao vencedor (...) darei autoridade sobre as
nações e com cetro de ferro as regerá, e as reduzirá a pedaços‖ (Tiatira); ―O vencedor será
assim vestido de vestiduras brancas.‖ (Sardes); ―Ao vencedor, fa-lo-ei coluna no santuário
do meu Deus.‖ (Filadélfia) e, por fim, ―Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu
trono.‖ (Laodicéia).
Nas cartas, as dádivas prometidas correspondem às maiores buscas do homem no
plano terreno, só que concedidas num plano espiritual. Quincas inverteria o procedimento,
fazendo dessa busca uma realização terrena, material e imprescindível à sobrevivência
neste mundo. Em nome dessa permanência material, a qualquer custo, o homem seria capaz
de tudo ainda que sua conquista provocasse o infortúnio de outrem.
O princípio da contradição humana, sem dúvida, seria esboçado também no
conhecido soneto inacabado de Bentinho. O homem, em busca da Utopia – ―Oh, Flor do
Céu, cândida e pura‖ – metáfora que se encaixa em qualquer tipo de Ideal: religioso,
político, amoroso, científico, ideológico – inevitavelmente estaria reduzido às duas
298
encruzilhadas existenciais: ―Ganha-se a vida, perde-se a batalha‖ ou ―Perde-se a vida,
ganha-se a batalha‖.
O primeiro verso do soneto de Bento resume um anseio transcendental do homem
(espiritual), e reproduz o topos poético da subida à montanha (anábase), como Dante, em
busca de uma sabedoria pura, de uma elevação plena da alma através da ―Flor do céu‖:
Beatriz. O final é duplo como o falar dos oráculos: condiz com o juízo final, daquilo que
seria o incerto destino do humano (ganhar ou perder?) no último saldo da vida. O soneto,
neste ponto, saía do campo espiritual e celeste (céu) do primeiro verso, para enfocar o
terreno, o mundo material, a descida do monte. Se pensarmos que Bento é um personagem
fora da vida (habitante da sub-urbem – a cidade subterrânea, ou mundo dos mortos), temos
uma catábase nesse último verso, em que o personagem, como o defunto Brás, tenta avaliar
os ganhos e as perdas diante do ideal sonhado.
O que Bento não logra alcançar é a união das duas estâncias do soneto, já que existe
uma imensa distância entre a primeira intenção e a última, entre o que se foi, e o que se é.
A grande questão é que o ganhar e o perder hão de estar sempre acompanhando as
aquisições humanas, como se fossem as faces da mesma moeda.
Na obra machadiana, a moeda da vida (destrutiva e construtiva ao mesmo tempo)
expõe o preço de cada conquista humana, mas a efígie que a acompanha revela a face
irônica de Pandora, pronta a cobrar o custo existencial com o peso da vida ou com o lucro
da morte. Pequeno lucro, na verdade, como o irônico saldo positivo de Brás Cubas, que
rompe um dos elos da cadeia da existência, deixando de transmitir a outrem o legado da
miséria da existência.
A atitude do personagem é a última rebeldia do homem após a expulsão do Éden:
recusar-se a cumprir o mandado de Deus: ―Crescei-vos e multiplicai-vos‖. Como no dilema
de Prometeu, presente em ―O desfecho‖, acabando-se o suplício, acaba-se também o
homem -, sendo o inverso da sentença outra probabilidade de redenção.
299
4.8- “Último”
Augusto Meyer, apesar de ter-se deixado influenciar por uma época em que a crítica
procurava ver o homem Machado de Assis, pejorativamente, refletido na índole de seus
personagens, teve lampejos geniais acerca do processo de concepção da obra machadiana.
Tivesse ele se despido dos preconceitos do tempo, seria hoje uma referência muito mais
citada e reconhecida nessa área de estudos. Ao contrário do que ele mesmo fez,
procuraremos avaliar sua crítica naquilo que possui de mais substancial acerca do escritor.
Meyer observou que o renascimento poético de Machado, com a publicação dos
primeiros poemas de Ocidentais, ocorre exatamente no período em que compõe as
Memórias póstumas de Brás Cubas:
Nada mais comovente que esse despertar de forças adormecidas,
manifestado de súbito, em verso e prosa, naqueles primeiros meses de
1880. Em 15 de janeiro, publica na Revista Brasileira os poemas: ―Uma
criatura‖, ―A mosca azul‖, ―O desfecho‖, Spinoza‖, ―Suave, mari
magno...‖ e ―No alto‖. Todo o espírito das Memórias póstumas já se
configura nesse punhado de poemas. ―Uma criatura‖ parece ser uma
versão metrificada e sem dúvida muito menos poética, do tema de
Natureza ou Pandora, no capítulo ―O delírio‖; em ―O desfecho‖, revela-se
a mesma visão trágica e o mesmo desfilar dos séculos que aparecerão em
―O delírio‖.233
Diante da descoberta, Meyer acrescenta: ―Mas o documento em que fixou a
transposição literária de um provável estado de crise também comporta, além da pura
interpretação estética, uma leitura em profundidade, a soletração das entrelinhas humanas
do texto, pauta de silêncio onde o que não se diz também fala por omissão.‖234
Fica, portanto, claramente esboçada a idéia de que Machado, no processo de criação
que culminou com a escrita das Memórias póstumas, colocou em prática o seu projeto de
233
MEYER, Augusto. Machado de Assis (1935-1958). 4 ed. Rio de Janeiro: José Olympio; ABL, 2008. p.
163.
234
Idem. p.165.
300
fusão de prosa e poesia, cuja realização foi concebida a partir de uma escrita híbrida, em
que, aparentemente oferecendo aos leitores um ―romance‖, na verdade, expunha ao público
o espetáculo do mundo. O escritor iniciou, em janeiro de 1880, a publicação dos poemas
citados por Meyer, como um prólogo às Memórias, que seriam lançadas, em março daquele
ano, no mesmo veículo, ou seja, na Revista Brasileira. Há, portanto, uma perfeita
confluência do prosador e do poeta, em que a poesia abandondonava a região etérea da
fantasia, assim como a prosa desvinculava-se da linearidade narrativa e da realidade pura e
simples.
O delírio de Brás, como se pode perceber, serve de chave interpretativa do romance,
mas não se restringe a esse papel, já que se torna uma espécie de releitura poética da
história humana, bem como da tradição literária. No capítulo do ―Delírio‖, Machado
retomava o Dante de Vita Nuova, como já foi analisado, e, por sua vez, faria a inversão da
jornada do florentino, esboçada na Commedia. Iniciaria sua caminhada poética ―No alto‖
(anábase), poema publicado em janeiro daquele ano. Seduzido pelo terreno prosaico, deixase conduzir pela ―figura má‖ (que encontra no alto do monte), para enfim mergulhar no
Inferno, no mundo inferior de Brás (catábase).
Poesia e prosa, assim, se complementam. Machado abraçaria Terra e Céu como uma
reformulação estética, que, ao contrário do que afirmam muitos estudiosos da obra, não é
rompimento com a fase anterior, mas a definitiva fusão, o encontro da forma ideal para a
plena realização poética da obra. Prova disso é a intensa subjetividade dos narradores dessa
―nova prosa‖ machadiana, que sempre partem de um olhar particular para tratarem de um
contexto geral. Iniciam a jornada no mundo interior, e passam a interpretar o exterior
segundo uma visão pessoal, o que caracteriza um dos recursos do gênero lírico.
Em nenhum momento, entretanto, Machado revela plenamente sua intenção ao
leitor. A leitura do romance não comportará apenas uma leitura explícita da relação entre
personagens fictícios num ambiente criado pelo autor, ou uma simples narração de fatos
criados para divertir o público. Implicitamente, haveria uma tentativa de apreender o
homem ―em essência‖, em seu estar no mundo: tanto na leitura de um contexto em
particular, o Rio de Janeiro da época, quanto na interpretação de uma realidade mais
abrangente.
301
A arte machadiana reuniria num ―mesmo amplexo‖ tradição e modernidade.
Retomaria o preceito clássico, presente em Virgílio e Dante, mas inverteria o percurso: o
poeta, que chegara ao alto da montanha, desce ao abismo de Brás, para, de acordo com o
projeto de Os deuses, estabelecer uma dualidade: ―O poeta o que fez? Tomou um termo
médio;/ E deu, para fazer uma dualidade,/ A destra à fantasia, a sestra à realidade.‖
A relação entre poeta e prosador continuaria, na medida em que o diálogo que
Meyer percebe em 1880 não se reduz ao período apontado. O poema ―Perguntas sem
respostas‖, que comparamos a Quincas Borba, seria publicado em 19 de junho de 1886,
quatro dias depois de Machado iniciar a divulgação desse romance em A Estação. Portanto,
os preceitos expressos na obra em prosa passariam a ter uma correspondência na poesia, e o
homem (no caso, o personagem) continuaria sua busca pela Quimera, seja essa ―Flor do
céu‖ uma filosofia (o Humanitismo de Quincas), ou uma mulher (a Sofia de Rubião).
Meyer, no ensaio ―O delírio de Brás Cubas‖, daria prosseguimento à observação
sobre o prosador da maturidade, relembrando alguns estudos de Alcides Maya acerca do
―delírio‖ de Brás, no qual o crítico reconhece alguns traços em comum entre a Natureza e o
Hilarion, da Tentation de Saint Antoine (de Flaubert). A partir da análise de Alcides, Meyer
revela seu pensamento acerca do episódio, em relação à obra machadiana, sob o ponto de
vista das idéias universais.
Aliás, podemos afirmar que a Tentation, de Flaubert também se insere no contexto
analisado no capítulo anterior, na medida em que, além de reproduzir o ―desfile dos
séculos‖, retoma a imagem da Rainha de Sabá (Sibila) como tentadora, conforme o que
vimos nas peças calderoniana e vicentina, onde a Sibila deseja corromper a santidade do
profeta divino, seja ele Salomão ou Santo Antônio.
Já em 1912 observa Alcides Maya: ―Da natureza parece ter a concepção
formulada na Tentation de Saint Antoine, quando, ao intérmino desfile
dos seres, dos mitos, dos mundos, das nebulosas, remonta, guiado pelo
espírito revel, o pensamento do asceta. – O fim de tudo isso? Pergunta o
eremita. – Não tem fim... – responde Hilarion.‖
A visão do eremita [Santo Antonio] parece-nos vazia de sentido, como a
de Brás Cubas, ao passo que a do poeta, pletória e ardente, na qual a
própria imagem-madre (mur paroi, façade) é uma revelação de
verticalidade, anuncia os temas de suas ―pequenas epopéias‖ num
grandioso prólogo tratado com uma técnica de mural michelangelesco.
Machado certamente misturou as águas, para matar a sede de
originalidade, e foi além da encomenda, como sempre, pois introduziu a
302
variante de um desfile dos séculos contra a correnteza do tempo, como
quem desenrola um novelo de linha.235
Pode-se afirmar que Machado, como Flaubert, também pinta um quadro
michelangelesco em sua obra, assim como desfia o imenso novelo da história e da
memória. As muitas fontes de leitura seriam a sua base criativa, partindo sempre do
―edifício antigo da tradição‖ para compor uma obra universal e singular, tendo em vista que
subverte muitos sentidos e, outras vezes, manda calar os próprios mestres.
Há um Quatuor machadiano se pensarmos nos romances que surgem a partir desse
período: Memórias Póstumas, Quincas Borba, Dom Casmurro e Esaú e Jacó; ou um
―Quinteto‖ se acrescentarmos a esses o Memorial de Aires, que seria, como afirmam os
críticos, o ―testamento estético‖ de Machado de Assis.
Da mesma maneira que reconhecemos o fio que une a obra machadiana da
juventude à da maturidade, podemos afirmar que os cinco romances estão interligados,
sendo os quatro primeiros uma releitura da alma do homem, enquanto o Memorial seria
uma prefiguração da biografia machadiana. Neste último, compreendemos que os três
personagens masculinos da história – Tristão, Aguiar e Aires – interpretam três fases
distintas: o jovem apaixonado, o homem casado e o viúvo, como analisamos anteriormente.
Porém, concentremo-nos principalmente nos quatro outros romances machadianos.
Todos os quatro personagens dos romances – Brás, Quincas, Bento e Aires – se colocam
como sábios ou intérpretes de uma dada realidade. Em muitos momentos, reproduzem o
desejo fáustico de atar contrários ou de encontrar um conhecimento superior, uma suprema
revelação através do estudo de livros antigos ou da leitura das ações do cotidiano.
Brás consulta velhos livros a fim de adquirir o conhecimento necessário para
concretizar a ―idéia fixa‖ do emplastro. A invenção teria o poder de curar o maior mal da
humanidade, a melancolia, assim como concederia notoriedade ao inventor. Mas essa busca
frustrada o leva para o túmulo, onde melancolicamente conclui que nem mesmo a morte
põe termo às tristezas.
Quincas, com sua filosofia, se dispõe a justificar o sofrimento humano e a apregoar
a supremacia de Humanitas frente ao divino. Segundo sua leitura filosófica, o homem seria
ponto de chegada e de partida para todas as relações do universo, e ainda quando sofre é
235
Idem. p. 153.
303
para glorificar um outro ser de sua espécie. Assim a herança muda continuamente de mão,
até que surja o próximo a desfrutar desse patrimônio humano. O personagem chega a se
comparar a Santo Agostinho, assumindo, em carta a Rubião, que seria a reencarnação do
santo.
Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho. Sei que há de sorrir, porque
você é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permitia-me dizer palavra
mais crua, mas faço-lhe esta concessão, que é a última. Ignaro!
Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho; descobri isto anteontem: ouça e calese. Tudo coincide nas nossas vidas. O santo e eu passamos uma parte do
tempo nos deleites e na heresia (...) ambos furtamos, ele, em pequeno,
umas pêras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio de meu amigo Brás
Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele pensava, como
eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI, livro
VII das Confissões, com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da
vontade, ilusão própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que
o mal nem mesmo existe, e só a primeira afirmação é verdadeira...236
O filósofo machadiano queria tomar para si a missão de Agostinho, de intérprete e
filósofo da vontade divina, para reafirmar, no entanto, um princípio único: o da vontade
humana. Quincas, ao negar a existência do Mal, anularia também toda a idéia de Deus,
conferindo ao homem o papel primordial da sobrevivência e da transmissão do legado às
gerações futuras. Assim, as dores e os dissabores da vida deviam ser compreendidos como
uma vitória, a partir do momento que alguém, no campo oposto, desfrutava dos benefícios
oriundos dessa dor.
Quincas continuava, como Brás, a renegar os males da humanidade, substituindo a
melancolia humana pela conformação filosófica. Temos aqui reafirmado o axioma de
Pangloss, personagem de Voltaire: ―Esse é o melhor dos mundos‖ ou, no dizer agostiniano,
―Tudo que existe é bom‖, emplastros filosóficos usados para confortar o homem de suas
desgraças.
Como a idéia fixa de Brás, a utopia agostiniana absorvida por Quincas gera
unicamente a doença da desesperança, ou da excessiva esperança, que, por fim, leva-o à
loucura e à morte. Observe-se que Quincas tenta reler a sua história como prefiguração da
vida de um outro filósofo, como se pudesse alcançar uma espécie de revelação profética
236
ASSIS. OC. Vol. I. p. 651/652
304
capaz de de lhe dar a capacidade de reler a essência da humanidade, de compreender que
tudo faz parte do instinto de sobrevivência e permanência do homem no mundo. Sobre a
natureza da ―idéia fixa‖, assim diria Brás: ―Viva pois a história, a volúvel história que dá
para tudo; e, tornando à idéia fixa, direi que é ela que faz os varões fortes e os doudos.‖237
Diante da ―redução dos séculos e o desfilar de todos eles‖, como nos revela Brás,
há uma íntima necessidade de o homem assistir ao ―último‖, ao que seria o derradeiro
século. A atitude reflete o eterno desejo da humanidade de decifrar a existência,
conhecendo o juízo final de cada ser: ―Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e
passará também o último, que me dará a decifração da eternidade (...) Redobrei de atenção;
fitei a vista; ia enfim ver o último, - o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal,
que escapava a toda a compreensão.‖
Esse mesmo princípio encontraríamos no Esaú e Jacó, que, dentro dessa proposta
machadiana, é o mais perfeito e acabado dos ―romances poéticos‖, visto que já se inicia
com a consulta à cabocla do Castelo, para prenunciar os acontecimentos futuros acerca da
vida dos gêmeos Pedro e Paulo.
O romance, seguindo um percurso clássico, retoma a jornada dos heróis gregos,
desde a consulta aos oráculos até o ―combate‖ histórico entre índoles distintas: força
(Aquiles) e inteligência (Ulisses). Constitui-se também como epopéia bíblica, partindo da
promessa de uma posteridade grandiosa, conforme o juramento feito ao patriarca Abrão
(―Será Pai de uma grande nação‖), até o conflito dos descendentes Isaque e Ismael, e,
posteriormente, Esaú e Jacó, prefigurações do judaísmo e do cristianismo.
Associando o Antigo ao Novo Testamento, temos a discussão entre os apóstolos
Pedro e Paulo acerca dos rumos do cristianismo, que Machado reproduz no enredo do
livro, atribuindo esses nomes aos gêmeos a partir de uma revelação de Perpétua no meio de
uma oração, e confirmando-os através dos augúrios e explicações de Plácido. Por sua vez,
vincula o confronto dos gêmeos a evento mais recente da realidade local: a transição da
Monarquia para a República, - elementos que configuram o romance como uma espécie de
poema épico, uma epopéia híbrida do mundo contemporâneo.
Aires analisaria a questão da briga através de um interessante pensamento, partindo
do princípio de Empédocles de que a guerra seria a mãe de todas as coisas, e resumiria o
237
Idem. p.516.
305
caso com as seguintes palavras: ―... a briga podia ser prenúncio de graves conflitos na terra;
mas logo temperou esse conceito com este outro: - Não importa; não nos esqueçamos o
que dizia um antigo, que ‗a guerra é a mãe de todas as cousas‘. ‖ 238
Já no prefácio temos a noção de que o escritor procurou retomar o princípio
existente no delírio, o da redução dos séculos, que reúne a visão do início da existência
humana – Ab ovo, assim como pretende representar o século derradeiro, anunciado nas
Memórias póstumas - Último. Buscaria, assim, aquele ―Último‖ fio da história humana, o
mesmo que Brás gostaria de admirar com os próprios olhos, mas que absolutamente não
consegue. Essa intenção viria no nome que Machado pretendia dar ao romance Esaú e
Jacó (Último), conforme se verifica no primeiro contrato dos direitos da obra assinado por
ele junto a B.L. Garnier.
Concentrar-nos-emos especificamente nos dois romances menos analisados até
agora, Dom Casmurro e Esaú e Jacó, onde mais solidamente se patenteia a prefiguração, a
união de elementos pagãos e cristãos, assim como se percebe a utilização dos recursos
subjetivos e poéticos, que até o momento estudamos, na prosa machadiana.
No Dom Casmurro, a poesia viria dentro do próprio livro, como já havíamos
analisado: o soneto inacabado seria uma retomada poética do mesmo conflito, desta vez
inserido no contexto da união entre paganismo e cristianismo, entre o material e o
espiritual. Podemos relembrar aqui o poema ―Visão‖ analisado no começo do quarto
capítulo desse trabalho. Na composição transcrita, temos, de um lado, o templo, e, de
outro, o Capitólio. O ―Dom‖ (―catedral‖, na língua alemã) se oporia ao ―Capitólio‖,
símbolo áureo da antiga Roma.
Machado apreciava o uso de metáforas relacionadas aos símbolos da Antiguidade,
principalmente, ao Capitólio romano. Numa de suas críticas teatrais, faria o seguinte
comentário acerca da ―reabilitação da mulher perdida‖, tratando do tema a partir da
imagem dúbia do ―Monte Capitolino‖, lugar onde havia tanto a vertente da Gemônia
quanto a do Capitólio.
A reabilitação da mulher perdida foi durante muito tempo a questão
formulada e debatida no romance e no teatro. Negavam uns, afirmavam
outros, dividiam-se os ânimos, traçavam-se campos opostos; durante uma
238
ASSIS. O.C. Vol. I. p. 967. (Cap. XIV)
306
larga porção de tempo a heroína do dia oscilou entre as gemônias e o
Capitólio.239
Machado analisa a sociedade e critica a atitude da arte de seu tempo (romance e teatro)
diante do quadro social. Acaba por afirmar que o maior dos inconvenientes era a monotonia
do tema da traição, já tão desgastado: ―Era o menor, porque o maior [dos inconvenientes]
estava na coisa em si (...) na pintura da sociedade que se transladava para a cena. Que a
conclusão fosse afirmativa ou negativa, pouco importa em matéria de arte‖.240
A antítese criada por Machado entre gemônia e capitólio mostra as duas faces de uma
mesma montanha - o monte Capitolino, uma das sete colinas que circundam Roma. Se de
um lado havia o Capitólio, lugar de glórias, de outro havia os degraus da Gemônia, onde
eram depositados os corpos dos supliciados. Capitolina não seria esse lugar de salvação e
perdição, de alegria e tristeza, de amor e de ódio, segundo as palavras do narrador?
No romance Dom Casmurro, Machado emprega amplamente o recurso da
prefiguração, quando põe Bento tentando interpretar dados do presente e do futuro a partir
de elementos do passado. Por exemplo, os quatro bustos na parede - César, Massinissa, Nero
e Augusto - são uma retomada de eventos históricos para reler a realidade, representando
episódios de traição, de ascensão ou de declínio de determinada ordem, poder ou regime.
Os quatro medalhões fazem parte da história de Roma: Augusto e Nero foram
imperadores; César foi um general, e, o último, um rei númida que lutou ao lado dos
romanos na conquista da África. Que relações podem ser tecidas a partir dessas
representações da Antiguidade? Que relevância na narrativa essas pinturas na parede podem
ter?
Como as pinturas de Michelangelo na Capela Sistina, essa reprodução pictórica de
figuras da casa antiga de Matacavalos (passado), e na casa recente do Engenho Novo
(presente), refaz a correspondência prefigurativa que analisamos anteriormente, em que um
determinado quadro histórico remete a um episódio recente, como um eco profético.
Primeiramente, o narrador indica que esses bustos servem de inspiração para iniciar as
suas memórias. Então evoca as ―sombras‖ de Goethe e os quatro retratos logo na introdução
do capítulo. Por outro lado, vemos que tais figuras não apenas inspiram o narrador, mas
239
240
Idem.p.216
Idem.Ibidem.
307
influenciam determinadas atitudes do personagem. Há uma tendência em Bento de
reproduzir certos comportamentos de pessoas ilustres do passado, assim como se nota uma
disposição do narrador para plagiar idéias e pensamentos de historiadores, filósofos e outros
pensadores antigos.
Em princípio, o narrador destaca a curiosidade de Capitu, suscitada pela figura de
César. Ela admira o imperador romano pela grandiosidade, diz que ele era um ―homem que
podia tudo‖. De fato, César possuía plenos poderes, embora também apresentasse, em certos
momentos, atitudes controversas.
Em Vidas paralelas, livro de Plutarco citado por Bento no capítulo em que tenta se
envenenar, verificamos um trecho interessante da biografia de César. Por ocasião de uma
festa, a Bona Dea, onde só podiam participar mulheres, um rapaz chamado Clódio tentou
aproximar-se de Pompéia, esposa de César, entrando furtivamente na celebração com roupas
femininas. O rapaz foi descoberto por uma criada e a notícia espalhou-se pela cidade.
César, sabendo do fato, em vez de punir o jovem, divorciou-se da esposa, pois,
segundo suas próprias palavras: ―a mulher de César não basta ser honesta, deve parecer
honesta‖. Assim como no Otelo shakespeariano, a simples suspeição gera o resultado final:
morte para Desdêmona, divórcio para Pompéia. Outro aspecto que nos chama a atenção na
história de César foi o fato de ele ter sido assassinado pelo filho adotivo, Brutus,
configurando, para Bento, um indício da má índole de Ezequiel, que poderia fazer o mesmo
com o ―pai adotivo‖.
Um outro busto, observado por Ezequiel adulto, também estampa um grande
guerreiro. Trata-se de Massinissa, rei da Numídia, que, por ocasião da Terceira Guerra
Púnica, invade o castelo de Sifax, após matá-lo em combate. A rainha Sofonisba, ao saber
da morte do marido, suplica por sua vida pedindo a ele que não a entregue aos romanos.
Massinissa apieda-se da mulher e não só lhe promete a liberdade como a aceita por esposa.
Mas Cipião, chefe romano, temendo que Sofonisba colocasse Massinissa contra o Império
Romano, como já havia feito com o primeiro marido, ordena que lhe seja entregue a
rainha. Não podendo desobedecer Cipião nem descumprir a promessa feita à esposa, o rei
númida dá a ela uma taça de veneno para que acabe com a própria vida e, assim, escape do
jugo romano.
308
A atitude de Massinissa pode levar a duas interpretações: ato de traição, por não
enfrentar o chefe romano e por descumprir a promessa feita a Sofonisba, ou ato de extremo
amor, para não vê-la desonrada, já que o suicídio era uma estratégia corrente para fugir da
rendição ao inimigo. De igual modo podemos interpretar a atitude de Bento para com a
xícara de veneno: de maneira inversamente proporcional, ele abre caminho para uma
―reparação‖ futura, ao desistir da atitude decisiva e irrevogável do envenenamento, seu ou
o do filho. O que seria pior: exílio ou morte? Estamos diante de uma escolha tão difícil
quanto a de Massinissa. Bento preferiu o exílio de ambos, ―filho‖ e esposa.
O narrador utiliza duas tragédias como pano de fundo, Otelo e Sofonisba241, que
encenam a morte da protagonista pelas mãos do marido. Ambos matam pela honra, mas há
certas diferenças nas ações dos dois guerreiros negros, pois um concede à esposa o golpe
de misericórdia e o outro apenas segue o impulso de seu temperamento belicoso. Apesar de
apresentarem a vontade de absolver as mulheres, ambos são guiados pelo código de honra
do guerreiro, pelo espírito de valentia inerente ao caráter de cada um, espírito que escapa
totalmente à índole de Bento.
Se os dois medalhões analisados estão ligados a episódios da vida de Capitu e de
Ezequiel em relação a Bento, os dois imperadores poderiam ser associados às duas pontas
da vida de Bento/ Casmurro (antes e depois da separação de Capitu), da mesma forma que
Augusto e Nero representam momentos distintos do Império Romano: o anterior e o
posterior ao Cristianismo, que correspondem, respectivamente, ao auge e ao declínio de
Roma.
Relembremos, aqui, a profecia da Sibila Tiburtina, da época de Augusto, que prevê o
reinado glorioso de um futuro rei, logo interpretado como Cristo. Semelhante à evocação
das profecias das bruxas de Macbeth, no começo de sua vida com Capitu, Bento ouviria
augúrio semelhante: ―Tu serás feliz, Bentinho!‖.
Contudo, o que antes fora áureo e glorioso na era de Augusto esfacela-se, após o
cumprimento de tal profecia. O governo de Nero, por sua vez, vê-se ameaçado pelo
advento do cristianismo, e a estratégia do imperador romano seria provocar o incêndio, e
culpabilizar terceiros, no caso, os cristãos. Bento, diante do ciúme, também sente vontade
241
Sofonisba é o título de algumas tragédias, dentre as mais conhecidas são a de Trissino, de Petrarca e a peça
incompleta de Garret. Também há uma ópera de Tommaso Traetta.
309
de extinguir Capitu com um fogo intenso, que a faça virar cinzas. Porém, assim como o
incêndio de Roma é um prenúncio da destruição do juízo final, predito pelos profetas
cristãos, e sinal da definitiva queda do Império Romano, o desejo de consumir Capitu com
as chamas do ciúme anuncia a definitiva separação do casal, que ocorre logo em seguida.
Sibilas e profetas também compõem o enredo de Dom Casmurro, e a ele se misturam
episódios da ―vida de santos‖ (como nos Mistérios), seguindo o mesmo princípio dos Autos
medievais. Primeiramente temos episódios da vida de São Bento e de Santo Agostinho
entremeados à história e reformulados pelo narrador do romance (como palimpsestos).
Bento também se assemelha a um eremita, em sua ―caverna do Engenho Novo‖ (os amigos
nomeiam desse modo a nova residência), esperando desvendar segredos divinos, da mesma
forma que os antigos abades e monges da era medieval.
Quanto à encenação do Auto proposta no romance, temos primeiramente a
representação familiar, sendo Bento filho de D. Maria da Glória, ―uma santa‖, e de um pai
ausente (que só aparece em retrato), mas que possui um preceptor chamado José Dias.
Tanto a mãe quanto o agregado forjariam um plano para a vocação ―divina‖ do rapaz:
casá-lo com a Igreja. Como num Auto de Natal, Machado refaria ironicamente essa
―sagrada família‖: Maria e José, pais de Bento Santiago - sendo José Dias o ―pai‖ que
assume a responsabilidade de um filho que não é seu, assim como ocorre ao personagem
bíblico.
Aos poucos, Bento se torna um falso profeta, aquele que renega sua primeira missão,
para executar uma outra: a reclusão monástica, que lhe concede o ―dom‖ profético de
interpretar passado e presente, embora seja incapaz de prever o futuro. Vidente e cego,
Bento não consegue iluminar o próprio caminho, apenas é capaz de manipular os passos de
outras, distantes no tempo e no espaço. Mas, num sentido peculiar, o personagem
machadiano torna-se o supremo manipulador das verdades, como única testemunha viva do
passado.
Advertindo sobre a falsa capacidade profética, há um trecho do livro de Ezequiel
13:3: ―Ai dos profetas loucos, que seguem o seu próprio espírito sem nada ter visto!‖. Ao
invés de servir de prova de inocência de Capitu, o mesmo livro bíblico faz condenações à
mulher adúltera, àquela que se esquece da ―aliança da mocidade‖ (Ez 16:59), assim como
310
denuncia a infidelidade, mostrando a meretriz atraída pelos vizinhos e por ―todos os jovens
montados a cavalo‖(Ez 23:12), como no episódio dos ―peraltas da vizinhança‖.
Ezequiel Escobar parece ser o verdadeiro profeta do livro, quando se dirige a Bento,
ao ver este se lamentar pela falta de filhos (cap. CIV): ― – Homem, deixa lá. Deus os dará
quando quiser, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor será que fiquem no
céu.‖
Capitu, como prevê José Dias, é ―cigana oblíqua e dissimulada‖, ou seja, assume o
papel da Sibila que planeja, como a Cassandra vicentina, frustrar os planos divinos. E o
profeta, por sua vez, se multiplica entre os dois Ezequiéis da história: Pai e Filho (segundo
a afirmação do narrador).
Sibila e Profetas se unem nesse Ordo machadiano para anunciarem a derrota de
Bento, invertendo o panorama tradicional que vimos na arte e na literatura, a saber, a
exaltação da vida de um santo num Auto de conversão. Pelo contrário, há uma conversão
às avessas, de um Bento num Dom Casmurro e, ao contrário do desfecho da peça
calderoniana em que Salomão desiste de sua união com a Rainha de Sabá, para o narrador
da história, a Sibila Capitu e o Profeta Ezequiel se unem em favor da sua queda, ou
colaboram na destituição de seu ―reinado‖.
Assim como, no Sacro Pernaso, vemos o Auto de conversão de Santo Agostinho,
recompondo episódios da vida do santo católico, Machado, retomando a comparação da
carta de Quincas, efetua uma correspondência ainda mais completa entre a vida de
Agostinho e a de Bentinho. Seriam necessárias muitas páginas para demonstrarmos todas
as similitudes entre ambos. Para efeito comparativo, escolhemos um trecho expressivo das
Confissões, em que o santo relata de que maneira foi seduzido, na juventude, pela mulher
que se tornaria sua esposa, e como se deixou levar por seus encantos, embora viesse a
abandoná-la depois. O relato apresenta pontos de contato com o episódio ―O penteado‖, de
Dom Casmurro.
Encontrei aquela mulher audaz e desprovida de prudência, enigma de
Salomão, assentada à porta numa cadeira, dizendo: ―Comei à vontade o
pão tomado às escondidas e bebei a doçura da água roubada‖. Ela me
311
seduziu, porque me encontrou fora de mim, habitando nos olhos de minha
carne e ruminando o que por eles tinha devorado.242
O ―enigma de Salomão‖, certamente, residia nos olhos de Capitu, que tanto a
tornavam uma ―cigana oblíqua‖ (sibila), quanto um ―mar em ressaca‖ (sedutora). Em
ambos os casos, a Sibila Capitu usava de seus artifícios para desviar Bento da noiva
prometida, no caso, a Igreja.
Diante dessa união híbrida, Ezequiel não podia ser considerado o filho da promessa,
mas o da perdição. Sua entrada na ―ópera‖ machadiana prenuncia a tragédia do fim. Desde
a descoberta da semelhança entre a criança e o finado Escobar, Bento passa a rejeitá-lo e
faz de tudo para afastá-lo de si. Segundo o ponto de vista do narrador, Ezequiel é quem
acaba separando Capitu e Bento: ―Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a
líamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, sempre que Ezequiel vinha para
nós não fazia mais que separar-nos‖. Adiante afirma: ―porque o demo do pequeno cada vez
morria mais por mim. Eu, a falar a verdade, sentia agora uma aversão que mal podia
disfarçar...‖ 243.
A associação da figura de Ezequiel a algo maléfico é apenas sugerida no trecho
acima, através da palavra ―demo‖. Poderia ser um simples modo de tratamento ou força de
expressão, se não percebêssemos outras comparações semelhantes, nem tão explícitas,
porém bem incisivas, no decorrer do discurso de Dom Casmurro.
No capítulo CXLVI, ―Não houve lepra‖, Bento recebe a notícia da morte do filho e
demonstra satisfação ao saber do fato. Então, cita a inscrição colocada no túmulo do rapaz,
na verdade um versículo do livro bíblico de Ezequiel: ―Tu eras perfeito nos teus
caminhos...‖. Não satisfeito, o personagem vai buscar na Vulgata o complemento da
palavra do profeta: ―...desde o dia da tua criação‖.
O narrador usa o versículo para refletir sobre o dia da criação do menino, que
corresponderia ao momento da traição de Capitu, mas a passagem bíblica fica
descontextualizada com o recorte feito pelo autor. Convém saber a quem se referia o
profeta Ezequiel no versículo pinçado pelo narrador de Dom Casmurro:
242
AGOSTINHO, Santo. Confissões. (Trad. J. Oliveira Santos e Ambrósio de Pina). 20ª ed. Bragança
Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2005. p. 66
243
ASSIS. O.C. p. 933.
312
Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabeleci; permanecias no
monte santo de Deus, no brilho das pedras andavas.
Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da sua criação, até que se
achou iniqüidade em ti.
Na multiplicação do teu comércio se encheu o teu interior de violência, e
pecaste; pelo que te lançarei profanado fora do monte de Deus, e te farei
perecer, ó querubim da guarda, em meio ao brilho das pedras (...) eu,
pois, fiz sair do meio de ti um fogo, que te consumiu, e te reduzi a cinzas
sobre a terra, aos olhos de todos os que te contemplam. ‖244
O texto bíblico, na verdade, relata a ―queda de Lúcifer‖, que passa de anjo a
demônio. É evidente a comparação que o narrador intenta fazer entre Ezequiel e tal figura.
Assim como o profeta bíblico mostra que o Bem resultou em Mal, Bento conclui que, se o
filho veio para dar fim ao seu ―Paraíso‖, tanto melhor que a febre (o fogo interior) o tenha
consumido. Ainda aqui, existe a mesma configuração do episódio bíblico da ―Queda‖, já
que Lúcifer, criado por Deus como sua imagem e semelhança, é rejeitado pelo Pai a partir
do momento que nele se reconhece uma outra índole e aparência. Por outro lado, se a união
entre a Virgem e o Ungido daria origem a uma progênie santa, a união da meretriz com o
falso profeta geraria o Anticristo, como prenuncia o Apocalipse.
Além dessas referências, encontramos em Dom Casmurro um protagonista
preocupado em estabelecer relações entre as culturas pagã e cristã. De início, Bento nota
um preceito importante numa frase citada pelo padre Cabral - ―ele fere e cura!‖-, de que se
podia extrair tanto uma lição de Homero quanto uma verdade bíblica.
As palavras de Elifaz ao afligido Jó sobre as provações divinas – ―ele fere, e as suas
mãos curam‖245 -, e o poder da lança de Aquiles, de ferir e curar, são os pontos de
convergência entre os oráculos pagão e cristão. Mas Bento não consegue finalizar o estudo
porque ―os vermes‖ roeram os livros antigos e ele não pôde extrair toda a verdade de que
necessitava para comparar os dois textos:
―Ele fere e cura!‖ Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de
Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades
de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros
velhos, mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o
244
245
Ezequiel, cap. 28, vers. 14- 16.
Jó. 5:18
313
texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do
pensamento israelita.
Fica bem clara a comparação entre o clássico profano e o texto sagrado, ou melhor,
entre o ―oráculo pagão‖ e o ―pensamento israelita‖, que o protagonista tenta estabelecer na
escrita do livro e que nos remete imediatamente ao verso destacado do réquiem de Celano:
―Teste David cum Sibila‖. O texto também evoca a tradição renascentista, em que os
sábios procuravam pesquisar diversos textos para descobrir algum vínculo capaz de unir as
antíteses pagãs e cristãs num princípio comum.
Essa recorrência a textos antigos parece ser algo corriqueiro na vida de Bento.
Como uma espécie de ―Fausto‖ machadiano, o personagem acaba recriando o ―desfile dos
séculos‖, movendo-se no interior de uma narrativa lacunar repleta de palimpsestos e
prefigurações. Embora o narrador afirme que não conseguiu extrair a verdade de nenhuma
das afirmações, de Homero e da Bíblia, o autor do romance realiza a fusão com maestria, a
ponto de não deixá-la transparecer na estrutura mais explícita do texto.
Há também um capítulo de Esaú e Jacó que tem por título o verso tão citado do
réquiem de Celano, e que tenta fazer a mesma aproximação entre o pensamento pagão e
cristão. O trecho do livro fala de uma consulta espírita feita pelo personagem Santos acerca
do futuro dos filhos. O médium Plácido afirma que os gêmeos são a reencarnação dos
apóstolos Pedro e Paulo e procura unir a sua predição à da cabocla do Castelo246. Adiante,
deparamo-nos com uma interpretação literária, em relação à personalidade dos gêmeos,
dada pelo Conselheiro Aires, que os compara aos heróis homéricos Ulisses e Aquiles247.
Para determinar a individualidade dos rapazes, o romance machadiano explora os
oráculos de ambas as filosofias, desde os augúrios da pítia, simbolizada pela cabocla
Bárbara, passando pelo espiritismo-cristão de Plácido, até a moderação de Aires. Para
explicar a reunião de elementos tão contraditórios, o narrador se justifica no capítulo
XLVI, mostrando que Aires conseguiu reunir as duas pontas das previsões, tanto a pagã
quanto a cristã:
246
247
ASSIS. O.C. p. 967
ASSIS. O.C. p. 1002.
314
Aqueles almoços repetiram-se, os meses passaram, vieram férias,
acabaram-se férias, e Aires penetrava bem os gêmeos. Escrevia-os no
Memorial, onde se lê que a consulta ao velho Plácido dizia respeito
aos dois, e mais a ida à cabocla do Castelo e a briga antes de nascer,
casos velhos e obscuros que ele relembrou, ligou e decifrou.
Aires alcança a profundidade que Bento não conseguiu atingir e representa, em
certa medida, a intenção machadiana de dar a sua leitura do tema acerca da união de
elementos contrários, a partir da decifração de obras literárias, ou de outras áreas do
conhecimento. Decerto Machado absorveu muitas lições relendo Virgílio, Agostinho,
Dante, Calderón, Goethe, Flaubert e outros, autores que compuseram o ―fio secreto‖ da
tradição.
Esaú e Jacó, esse ―Último‖ machadiano, inicia-se com a subida de duas irmãs ao
Morro do Castelo, ambiente de pessoas humildes. As senhoras, Natividade e Perpétua,
denunciam já pelo nome o principal anseio de ambas: nascimento e perpetuação da
existência. Se por um lado sobem o Morro, por outro precisam humildemente descer do
topo da ―pirâmide social‖, tendo em vista que vão em busca da cabocla pobre para ouvir
sobre o futuro de dois novos membros da alta sociedade. A contradição é evidente.
Quanto ao emprego dos nomes dos personagens, como bem observou Antonio
Carlos Secchin em artigo248, ele segue a mesma concepção da ―sagrada família‖:
primeiramente há Maria (da Natividade) casada com José (Agostinho Santos), que
anunciam um nascimento, embora de duplos. Já aqui quebra-se o princípio unificador da
profecia antiga, tendo em vista que o principal papel desse ―menino‖ seria a unificação, e
não a dualidade. Surgindo, portanto, dois meninos, a promessa utópica do ―reino divino‖,
estaria comprometida.
A sagrada família tem como principal amigo o casal ―Batista‖, nome atribuído ao
João bíblico, primo de Cristo, que preparou caminho para o seu ministério apregoando o
batismo aos novos convertidos. Os gêmeos, por sua vez, chamam-se Pedro e Paulo, dois
apóstolos cristãos, que, como estes, seguem rumos divergentes, mesmo quando irmanados
na mesma proposta de ―serem grandes‖. Já que todo princípio de poder limita-se ao
248
SECCHIN, Antonio Carlos. ―Irmãos e inimigos‖. In: O Globo. Suplemento Prosa e Verso; 24 de fevereiro
de 2004.
315
conceito do um, do absoluto, não pode existir um governo paritário que admita ―dois
senhores‖.
Assim, formava-se o Auto e a ―vida de santos‖ no romance machadiano, acrescido à
cena o juízo, ou predição, da Sibila (Bárbara) e do Profeta (Plácido), arrematando todo o
quadro com as pinceladas clássicas de Aires acerca dos dois heróis homéricos.
Outra figura sugerida na composição do nome do pai dos gêmeos é Santo
Agostinho, invertido em Agostinho Santos. O que ninguém havia notado antes é que, de
fato, podemos dizer que Santo Agostinho é o pai da teoria esboçada no Esaú e Jacó, isto é,
foi o filósofo quem formulou a idéia contida no romance de Machado.
No livro VII, capítulo 6 das Confissões, Agostinho trata dos ―vaticínios dos
astrólogos‖, dizendo ser impossível predizer o futuro através dos astros. Usa como
justificativa um caso contado por um amigo, em que duas crianças nasceram no mesmo
momento, na mesma casa, sendo uma delas a filha do patrão, e a outra, a do empregado.
Logicamente cada uma teve o destino regido não pelas estrelas, mas pela classe social de
seus pais.
Como esse testemunho podia ser considerado falso, o filósofo católico usa à guisa
de exemplo o caso de uma mulher que viesse a ter filhos gêmeos. Como algum adivinho
poderia dizer, com exatidão, se teriam iguais destinos, mesmo nascidos da mesma mãe e
no mesmo dia? Assim Agostinho expõe sua idéia:
Desviei o fio do raciocínio para os que nascem gêmeos. A maioria destes
saem do ventre materno, um após o outro, com tão pequeno intervalo de
tempo, que a este – por mais que haja luta entre os gêmeos para
possuírem na ordem natural a primazia – é impossível registrá-lo pela
observação humana e tomar notas dele, de molde a que os astrólogos,
examinando-as, se possam pronunciar exatamente. Os prognósticos não
serão exatos porque, vendo o astrólogo os mesmos documentos, deveria
dizer a mesma coisa de Esaú e Jacó. Mas os sucessos na vida de um e de
outro não foram os mesmos. Portanto, ou o astrólogo anunciava
falsidades ou, no caso de falar certo, não deveria dizer a mesma coisa de
ambos, ainda que visse os mesmos documentos. Neste caso não era por
arte, mas por acaso é que dizia a verdade.249
249
AGOSTINHO. Confissões. p. 149.
316
Sem dúvida, Machado dá corpo à idéia agostiniana no romance Esaú e Jacó,
mostrando as previsões acerca do futuro dos gêmeos e de como os dois divergiriam de
caráter e opinião. Contrariando os vaticínios da cabocla do Castelo e do espírita Plácido, os
dois rapazes não conseguiram ser grandes homens, pois passaram a vida inteira brigando.
Tivessem os pais atentando para as verdades históricas de cada episódio bíblico, poderiam
predizer o futuro com mais precisão, concluindo que, para concretizar o projeto de
grandeza que tinham em mente, um devia ser menor do que o outro, e a disputa deveria
apontar um vitorioso: ―Ao vencedor, as batatas‖.
Nas Confissões, Agostinho completa a idéia do engano dos astrólogos ao afirmar
que só Deus conhece o destino dos homens: ―...por meio de um secreto instinto,
desconhecido dos consulentes e dos astrólogos, fazeis que cada qual, enquanto consulta,
ouça o que lhe convém ouvir, segundo os merecimentos ocultos da sua alma e segundo os
abismos dos vossos incorruptíveis juízos.‖ Não é exatamente isso que Santos e Natividade
fazem ao ouvirem as previsões? Ironicamente, não é o fato da briga dos gêmeos o detalhe
que pai e mãe desprezam nos dois oráculos? Machado mostra que a capacidade de
observação de Aires é a única medida justa para avaliar a personalidade dos gêmeos e a
conclusão se dá por uma constatação, jamais por meio de adivinhações.
Esse princípio também está contido em ―A cartomante‖, onde o personagem
Camilo deixa de observar as evidências da realidade para dar ouvidos à voz de uma
adivinha. A intuição, que interpreta dados reais, poderia tê-lo livrado da morte, mas foi
descartada pela interpretação de uma estranha que dizia saber o futuro de pessoas
desconhecidas apenas pela leitura de cartas.
No entanto, através da observação de dados reais, da História do próprio homem -,
ou seja, através da prefiguração agostiniana - podia-se prever o destino dos dois rapazes.
De início, os apóstolos Pedro e Paulo protagonizaram a primeira ruptura na Igreja
primitiva, assim como Esaú e Jacó, no Antigo Testamento, promoveriam a separação entre
os dois povos, idumeu e hebreu, que sempre disputaram o poder em Israel.
Machado relê também a realidade através da história portuguesa, com o embate dos
irmãos Pedro e Miguel pelo reino de Portugal, assim como ilustraria a mudança de regime
no Brasil, de Monarquia para República. Em vez de enfocar apenas uma realidade
brasileira, como simples alegoria, Machado ilustra a eterna briga por poder que existirá em
317
toda a sociedade humana, enquanto Flora, a utopia, agoniza sem poder pertencer
plenamente a nenhum dos campos.
Só a Arte congraça ambas as realidades, e as reúne num mesmo abraço: Aires,
relendo as epopéias de Homero, consegue extrair o princípio definitivamente aceito para
interpretar os dois irmãos: Aquiles, a força, e Ulisses, a inteligência, duas formas distintas
de se alcançar certo domínio político, ainda que provisório, nesse mundo de contradições
aparentes ou veladas.
O próprio Machado, em crônica de 1877 já havia feito uma leitura da História
através dos heróis de cada tempo, ao comparar Aquiles, Enéias, Dom Quixote e
Rocambole a cada uma das idades do nosso mundo: ―Estes quatro heróis, por menos que o
leitor os ligue, ligam-se naturalmente como os elos de uma cadeia. Cada tempo tem a sua
Ilíada; as várias Ilíadas formam a epopéia do espírito humano‖ (grifo nosso)250
Outro fato interessante é a escolha do pseudônimo para assinar as crônicas
publicadas na Ilustração Brasileira: Manassés. O personagem bíblico, escolhido para
nomear o cronista, era irmão gêmeo de Efraim, ambos filhos do patriarca José (do Egito).
Os gêmeos protagonizaram mais uma história de disputa entre irmãos, como já havia
acontecido com Esaú e Jacó, respectivamente tio e avô dos gêmeos, e, anteriormente, entre
o bisavô Isaque, pleiteando com Ismael o legado de Abraão. Apenas um deles pôde
conquistar a ―promessa‖, e o mais velho acabou servindo ao mais novo.
No romance, não há nenhum indício de que Pedro ou Paulo tenha uma prevalência
sobre o outro. Machado encaminha o livro para a fusão das duas figuras, missão de Flora.
A lição, portanto, seguia outra premissa machadiana: ―Findou a idade heróica, mas os
heróis não foram todos na voragem do tempo. Como fachos esparsos no vasto oceano da
história atraem os olhos da humanidade, e inspiram os arrojos da musa moderna. Casar a
lição antiga ao caráter do tempo, eis a missão do poeta épico.‖251 Seria essa a realização de
Flora, no leito de morte, quando reafirma: ―Ambos, quais?‖, não distinguindo mais os
gêmeos.
Flora é a corporificação da imagem daquela Musa cantada pelo poeta desde os
primeiros versos, aquela imagem pagã recuperada pela memória. Essa ―Mãe Quimera‖
250
251
ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. Op.cit. p. 179. (15 de janeiro de 1877)
Diário do Rio de Janeiro. ―Semana literária‖. 05/06/1866.
318
sucumbe diante do mundo que não a decifra: alma pura e perfeita, ilusão perpétua, eco da
―sagradas harmonias‖, ninfa de alguma ―Ilha dos Amores‖. Nela, o mito do andrógino
platônico se presentifica. Comprovamos isso através do desenho que a moça apresenta a
Aires, onde mostra, na figura com ―duas cabeças‖, a representação da ―unidade
primordial‖ que reuniria definitivamente os contrários, tornando-os iguais. Como não se
pode ter uma ―Beatriz‖ para dois entes separados, o desejo de Flora é reunir os gêmeos
num único ser, tarefa que, no leito derradeiro, parece cumprir.
Ainda no capítulo sobre as pinturas mostradas a Aires, Flora esboça toda a teoria
delineada no poema do Marquês de Belloy, onde se diz que, sobre o ―antigo edifício‖,
constrói-se uma nova casa, ou ainda, nas palavras de Machado, ―casando a lição antiga ao
caráter do tempo‖. A leitura do capítulo 100 do romance é uma prefiguração completa,
onde o pintor Machado de Assis, tal um Michelangelo, pinta divinamente seu ideal, ou seu
―Princípio‖, com a tinta da sutileza:
Flora mostrou os desenhos que fizera, paisagens, figuras, um pedaço da
estrada da Tijuca, um chafariz antigo, um Princípio de casa. (grifo do
autor). Era uma dessas casas, que alguém começou muitos anos antes, e
ninguém acabou, ficando só duas ou três paredes, ruína sem história.
Flora, então, entrega o desenho ambíguo dos gêmeos para Aires, que o rasga e
guarda no bolso. O narrador afirma: ―As duas cabeças estavam ligadas por um veículo
escondido‖. Sim, a Arte seria o veículo escondido que reúne as dicotomias a partir de um
Princípio comum, de uma continuidade da ―casa‖ da tradição. O desfecho do capítulo
continua a nos revelar este ―veículo escondido‖:
Demais era o único desenho a que ela não pôs assinatura. Deu-lho como
se fora um pendão de arrependimento. Em seguida, atou novamente as
fitas da pasta, enquanto Aires rasgava calado o desenho e os metia os
pedaços no bolso. Flora ficou por um instante parada, boca entreaberta,
mas logo lhe apertou a mão, agradecida. Não pôde evitar que lhe caíssem
duas pequeninas lágrimas, - como outras tantas fitas que lhe atavam para
sempre a pasta do passado.
A imagem não é boa, nem verdadeira; foi a que acudiu ao conselheiro (...)
Chegou a escrevê-la no Memorial depois riscou-a, e escreveu uma
reflexão menos definitiva: ―Talvez seja uma lágrima para cada gêmeo.‖
Pode acabar com o tempo, pensou ele indo para a barca de Petrópolis.
Não importa; é um caso embrulhado‖.
319
Machado saberia embrulhar a herança literária, a pasta do passado, com muitos fios
e fitas, num intricado jogo de referências antigas que se reeditam em novas. Ao final dos
três capítulos - ―Duas cabeças‖, ―O caso embrulhado‖ e ―Visão pede meia sombra‖ – o
narrador diz (cap. CIII): ―Sei, sei, TRÊS VEZES sei que há muitas dessas visões nas
páginas que lá ficam‖ (grifo do autor). Há numerosas referências veladas no discurso
machadiano que esperam outros olhares que as interpretem, tarefa que, diante de tão vasta
matéria, exigiria de nós a escrita de uma outra Tese, talvez ainda maior do que esta.
Para que, finalmente, possamos cerrar o pano desse imenso palco machadiano,
concluímos que, na construção da personagem Flora, o escritor tenta reviver a Musa do
passado, a fim de travar um novo diálogo, como aquele da ―Missão do poeta‖, poema da
juventude. Ainda que Flora tenha sucumbido diante das demandas irreconciliáveis da vida,
deixa, porém, cumprida uma suprema missão: a de reunir os contrastes da realidade.
Se o poeta conclui ―Oh, duas almas no meu seio moram!‖, a Musa machadiana (a
arte, a literatura, a poesia) há de reunir em seu âmago todas as contradições do homem:
―De duas tradições a musa fez só uma: David olhando em face a Sibila de Cuma.‖
320
5- CONCLUSÃO
Qualquer pesquisador, debruçando-se sobre a obra de Machado, poderá extrair-lhe
um compartimento, um dito, uma vertente, uma leitura, e fazer desse saber tratado
filosófico, lição de economia, análise literária, apreciação histórica, alegoria, estudo de
caso, análise do discurso etc. Diante dessa infinidade de perspectivas, os discursos críticos
pretendem dar conta de classificar o escritor desta ou daquela forma. Chegarão,
porventura, a uma conclusão interessante, mas talvez não consigam compreender que
Machado, mesmo não crendo na Unidade utópica do mundo, constrói uma obra que traz
em seu bojo uma unidade impressionante, ainda que aponte para a multiplicidade.
Na releitura que Drummond faz de Machado, temos a expressão exata do que
Machado representa, um homem de seu tempo, mas também um escritor universal, ou, na
expressão renascentista, uomo universale: ―Muitos leram da vida um capítulo/ Tu leste o
livro inteiro‖. Temos um Machado enciclopédico, que lê tudo que passa diante dos seus
olhos: da imensa e variada biblioteca aos homens e ações que consegue interpretar. Olhos
que examinam o passado e testemunham o presente, com vistas a construir uma obra para o
futuro.
Pode-se dizer que, na acepção dos escritores da Renascença, Machado é o ―Sábio‖,
ou, como preferimos, resgatando o sentido clássico, seria o ―Poeta‖, aquele que tenta
encontrar o sentido do Universo e entender o grande enigma da existência, principalmente
das contradições humanas.
A dupla natureza do homem, corruptível e incorruptível, remonta sempre ao antigo
embate entre vícios e virtudes, entre Bem e Mal. Nossa vida está sujeita a essas escolhas, e,
muitas vezes, determinados desígnios acabam se alternando conforme a necessidade de um
dado momento. Porém, como no delírio de Brás Cubas, Machado reafirma o princípio de
que a humanidade é sempre a mesma, não importa o tempo e o espaço reservados à sua
existência. Os desejos e ambições se repetem, o homem está sempre em busca de um ideal
321
quimérico. Seu destino é correr atrás da Esperança, afligido constantemente por todos os
outros males, até que a Natureza, ou Pandora, encerre a caixa da existência.
Perdida a esperança, Machado deposita toda sua crença no legado estético. A obra
de arte é, portanto, a única possibilidade de redenção do homem. Acreditando nisso, o autor
dedica toda a vida ao ofício da escrita, sem jamais abandonar o legado clássico, rendendo à
Musa um louvor eterno, do primeiro ao último de seus escritos. É certo que soube casar
perfeitamente a ―lição antiga ao caráter do tempo‖, reavivando as cores do quadro e
reedificando as ruínas do antigo edifício.
Ao tentarmos descobrir o lugar da poesia na obra machadiana, concluímos, após a
abertura do véu, que ela jamais deixou de ocupar a posição central na produção literária do
autor. O fio dela parte e a ela retorna, tantas vezes tecido conforme as hábeis mãos do
artista. Se a forma continuamente varia, é porque a poesia, transfigurada, há de alterar o
exterior conforme as vestes de cada tempo.
322
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