Útil e Agradável - Jornal Plástico Bolha

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Útil e Agradável - Jornal Plástico Bolha
plástico bolha
aparentemente insólito...
Ano 2 - Número 15 - Agosto/2007
Distribuição Gratuita
“Nossa, o quinze!”, diria
Rachel de Queiroz se estivesse no
seu lugar agora, com o Plástico
Bolha de agosto nas mãos.
Porém, por essas bandas,
não há indício algum de seca;
muito pelo contrário, o clima
é de fartura. Pensamentos que
escorrem feito as cataratas do
Iguaçu, levantando muito vapor
e, principalmente, ressoando,
ressoando, ressoando...
Iracema, em MulheresDamas; Karl Erik Schollhammer
na entrevista; Eucanaã Ferraz
em Aos Alunos com Carinho;
Gregório Duvivier fechando as
Subjetivas Urbanas; Blogs dos
colaboradores no Clique Aqui.
Bruno Tolentino, representado
por Stella Caymmi na coluna
Puzzles; Poema traduzido de
Ricardo Sternberg; Manifesto
Sampler; poemas, contos e fragmentos.
Se você é um novo leitor,
bem-vindo! Está esperando o que
para nos enviar o seu trabalho?
Banhe-se também nesse
grande rio de idéias, cuja correnteza repuxa, purifica e, principalmente, segue adiante.
Útil e Agradável
Pedaços
Nem sempre se sonha com a neve. Quando se sonha,
nunca se sabe com o que – e se – se vai sonhar. Às vezes,
à noite, sinto que ouço o barulho de suspiros e, ao comer suspiros, sinto o barulho de suspiros dentro da boca,
dentro da mente, um suspiro do lado de dentro do ouvido. Mas nunca como suspiros. Quase sempre suspiro.
Ah...(suspiro). Sabe, nem sempre se sobrevive à vida. Nunca sobrevivemos à morte. Sei que a chuva sempre chega
primeiro – sempre primeiro como uma promessa. E quase
sempre sobrevivemos à chuva. Nem sempre é possível se
esquecer do silêncio. Se algum dia desejar esquecer alguma
coisa, quero esquecer o barulho e não o silêncio, não o
silêncio, quero sempre o silêncio. Quero sempre sentir o
vermelho, o vermelho guarda-chuva vermelho. Água na
pele é bom, mas só é bom quando é na pele e não na roupa. Sono sem sonho é como a morte - então acordar sem
sonhos é como sobreviver à morte. Mas não é. Não é.
lÉo torres
mÁrcia brito
Ricardo Sternberg
Tradução do poema na página 3
Isabel Wilker
angelo abu
joÃo francisco c. ribeiro
gregÓrio duvivier
He is thinking of Madame Bovary
Unlacing her boots as the carriage
Wanders over the countryside
And she, in the curtains-drawn dark,
Moves away from her marriage
Into the arms of her lover, Leon,
And then he is thinking of Noah
How those pairs entered the ark
Still fragrant with the resin
Of freshly hewn wood
And next how they, a newly minted pair,
Entered the lift, composed,
Then stopped the car between floors
And as Sly of the Family Stone
Sang he would take them higher,
Had a good go at it, oblivious
First to the buzzer that rang and rang,
Then the pounding on several floors
And finally, threats to call the police,
Which, in the end, proved unnecessary
For, miraculously, the Otis began its descent
And they stepped out on the lobby’s
Red carpet, bowed deeply to the concierge,
Then walked out hand in hand and
When a sea lion barked and brought him out
Of this reverie all he could think was
But what torture it is now to remember
His nimble fingers, her firm flesh.
Heinz Langer
NESTA EDIÇÃO
karl erik schollhammer
naaman
Carmel Reverie
alice sant’anna
stella caymmi
mauro gaspar
paulo gravina maria de lourdes
catharina wrede
heinz langer
marilena moraes
ricardo sternberg
alexandra wiltshire
pÉricles f. drÉlos
alluana ribeiro
isabel wilker chloe paisley
ana chiara
eucanaà ferraz
wellington brandÃo
fred coelho
lÚcia cordeiro
Aos alunos com carinho
Cachecol
PRINCÍPIOS DE CRÍTICA E TEORIA LITERÁRIA
2
Professor, o poeta. Não, o sujeito poético. Professor, o
eu lírico. Não, o poeta. O senhor sabe? Quem sabe? Como é
que eu fico sabendo? Ninguém sabe? O poema quer dizer que.
Não, entendi, o poema já disse. O poema é isto ou aquilo?
O poema é isto e aquilo? Isto vai cair na prova? E aquilo?
Eu acho que viajei. Não? Eu acho que. Está bem, eu viajei.
Como é que o senhor vê tudo isto só neste verso? E pode ver
ainda mais? Quando o senhor diz, quando explica, eu vejo.
E esta imagem? Isto tem a ver com o romantismo? Isto vai
cair na prova? Isto e aquilo, está bem, vou ler. O poeta não
quer mudar nada, entendi. E quer mudar tudo. Não entendi.
E a inspiração? Porque sim? Como assim? Quem é O Outro?
O senhor é O Outro? Eu sou O Outro? Entendi. É para não
entender? Entendi. Entendi que não é para entender. Isto vai
cair na prova? O ritmo não é medida? O ritmo é a vida? Vida
inventada? E a vida vivida? Entendi, isto é autobiográfico. É
e não é? Mas como eu vou saber que um poema que não quer
ser um poema é um poema? Do que é que os poemas falam?
Eles não falam de nada? Entendi. Isto vai cair na prova, pode
deixar, vou ler. Vou, sim. Vou ver na bibliografia. O senhor
podia dar um exemplo? Não, eu não estava conversando, eu
estava falando sobre isto. Não. Não. O poema cria imagens,
entendi. O senhor estava falando do gênero lírico. O poema
faz do leitor uma imagem? Não entendi. Quando o senhor
fala, eu entendo. Quando o senhor mostra, eu vejo. Qual vai
ser a matéria da prova? A poesia cria outro mundo? É intuição
ou experiência? É loucura ou conhecimento? A poesia pode
ser filosofia? A filosofia pode ser poesia? É meio complicado.
Uma coisa poética é um poema? É confissão? É monólogo?
Entendi, o poema não é sagrado. É sagrado? O senhor pode
repetir? Não é confissão. Pode ser? Como é que eu vou saber? O senhor sabe? Claro, o senhor sabe. Entendi, o senhor
também não sabe. Sabe que não sabe. Isto é saber, não é?
Isto é aquilo! Eu não disse que tinha entendido? Drummond.
Não, não li. Vou ler. Qual o nome? Eu não consigo viajar no
poema como o senhor. Entendi, não é viagem, é interpretação.
Eu não consigo interpretar que nem o senhor. Entendi, não
é para entender. Não, eu quis dizer que. Eu achei que. E os
gregos? Onde fica o “reino das palavras”? O senhor sabe?
Entendi, não é para entender completamente, só um pouco.
Eu quis dizer que entendi completamente que não se pode
entender completamente o poema. Então, por que o nome é
ciência da literatura? Li, eu adoro. A crítica não gosta? Por
quê? Eu gosto. Não, não li. Deve ser, a crítica gosta. Quem é a
crítica? O senhor é a crítica? Entendi. Está na pasta? Imagem,
entendi. Metáfora, entendi. Símbolo, entendi. Mito, entendi.
Wirgínia Wolf? Conheço. Ah, Wölfflin! Não, não conheço.
Dabliu, ó, trema, dois efes. Acho que já ouvi falar. O senhor
leu todos esses livros? Entendi. Puxa vida. Está na xerox? O
senhor pode repetir? O som e o metro devem ser estudados
como elementos da totalidade do poema, e não isolados do
sujeito. Ah, desculpe, e não isolados de sentido. Pois é, fica
outra coisa, completamente diferente. Terça-feira é feriado?
Entendi tudo. Tudinho. Só uma coisa: o que é, afinal, o poema?
Entendi, o senhor também não sabe.
Eucanaã Ferraz
Poeta e professor de Literatura Brasileira da UFRJ
A Última do Dia
Mexe, remexe, não entendo tanto
prazer no arremate, no desabrocho
do cachecol de lã de ponto frouxo,
tão charmoso, roxo, feather and fan.
Arrasta-se em dobras pelo chão,
nos chinelos, na cesta de crochê.
Focale de textura aconchegante,
beligerância doce, elegante.
E eu, criança, também coleante,
mergulho em seu colo, e me enovelo,
quero saber a paixão artesã.
Tramas laçadas bebendo chocolate
à chuva, às tardes, fazendo parte
da arte atemporal de saborear prazer.
Ele vai subindo a ladeira
Cheio de vermelho nos olhos
E verde nos bolsos
E amarelo no sangue
E branco nas fossas
E azul no céu
Antes cinza;
Vai subindo e olhando as casas
Que vão subindo em direção à lua
E as pessoas, as de sempre,
Conversando nas calçadas,
Contando umas às outras a última do dia.
Naaman
Lúcia Cordeiro
Subjetivas
por Gregório Duvivier
Urbanas III
abrir o olho de cada prédio:
ouvir o grito das poças e o
choro dos postes. dar a ver
a cada carro sua consciência
de carro, adormecida. viver
um pouco como viveria um
meio-fio, um caco de vidro,
uma placa de trânsito e ser
um pouco como eles, nem
que seja por uma fração de
segundo. deixá-los habitar
sua alma e passar a ser um
pouco sinal vermelho, um
pouco pedestre, um pouco
fusca que perde o freio e se espatifa em um muro qualquer.
plástico bolha
produzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio
Editor
Lucas Viriato
Editora Assistente
Marilena Moraes
Conselho Editorial
Luiz Coelho;
Gregório Duvivier;
Isabel Diegues
Comissão
Julia Barbosa; Isabel
Wilker; Paulo
Gravina; Alluana
Ribeiro; Mauro
Rebello; André
Sigaud; Flora Bonfanti
Projeto Gráfico
Lucas Viriato
Tiragem: 8.000
Impresso na CUT Graf
Distribuído no Rio de Janeiro e Belo Horizonte
Coordenação
Paulo Gravina
Revisão
Rubiane Valério; Rafael
Anselmé; Gabriel Mattos
Apoiadores
Marilena Moraes; Isabel
Diegues; Luiz Coelho
Equipe
Márcia Brito;
Marcelo Tapajós;
Rebecca Liechocki;
Camila Justino;
Marcela Rosa;
Esthér Oliver;
Henrique Meirelles;
Andrew McAlister,
Beatriz Pedras
Envie seus textos para: [email protected]
As cartas ou Do homem que foi engolido por uma mulher com dentes de liquidificador
Meu melhor amigo do último quarto de hora acha espirituoso brincar de soldadinho com
filósofos franceses — Imagine só: Deleuze contra Foucault, quem você acha que ganha?
Assentamo-nos — um valete de copas, uma dama de espadas e um rei de ouros — nos
vértices de um triângulo imaginário. Somos simpáticos. Trata-se de um senhor valete encantador. Dentro de um simples colóquio de três pessoas, consegue surrupiar, através da fixação
do olhar acima de nossas cabeças, a intimidade e a aprovação de uma legião inexistente de
seguidores. Orador de alcova, saberia fazer, creio eu, as confissões mais doces e íntimas com
um megafone. Mas está constipado. Trata-se de um senhor valete que sabe fungar. Ela, dama
por sua vez, mastiga cigarros num embevecimento que me comove.
Meu melhor amigo do último quarto de hora gosta de seus escritores beatnik bem passados — O Henry Miller bailava no jardim de infância perto da vida que o Kerouac levava
— ricto compenetrado — quero ser como o Kerouac quando eu crescer.
Discorremos sobre signos, a nova geografia dos países da antiga Iugoslávia, ele gosta de
culinária, os trágicos rumos do teatro, primos sifilíticos, ela também, acampamentos inundados em Bangladesh, deve ter o paladar muito apurado, as corruptelas do magiar, cortes
de barba para ditadores, artrites, acha que tem apenas uma boca sensível, fertilizadores
japoneses, o amor segundo as revistas, não duvida.
Meu melhor amigo do último
quarto de hora não fala de Balzac
depois das seis da tarde – C’est fort,
c’est excessivement fort.
Temos pernas parecidas, ela e eu.
Ambos cruzamos para a direita e só
depois passamos para a esquerda. Direita e esquerda, esquerda e direita: e
caímos na questão da tradução para o
italiano. Ela afirma ter certeza de que
é per favore. Ele discorda veementemente. Sibila que por favor é sempre
prego. A legião invisível estremece,
buliçosa: em casos mais formais se diz
per cortesia, peeer cor-te-sii-aaaa. Ela
recolhe, aos poucos, aos bicos: peeer
cor-te-sii-aaa. Peeer cor-te-sii-aaa. Peeer cor-te-sii-aaa. Entendo que tenha
gostado deste pequeno capricho.
Ela se vira e esconde a boca atrás do espaldar de cadeira. Após um breve olhar de soslaio
do senhor para mim, ela tem súbito interesse em me estudar fixamente. Um ‘já disseram que
a senhora tem uns olhos de comer capim?’ me percorre a espinha, inconstante. Sinto nos
nervos de trás uns floreios estranhos.
Meu melhor amigo do último quarto de hora soletra o-t-á-r-i-o nas minhas costas com
a ponta dos bigodes.
Uma mandíbula descomunal se ergue detrás da cadeira, a boca de quarteirões de largura,
que cresce, que cresce, me engalfinho à perna de uma mesa, o traço reto do batom nos lábios
se difunde em rachaduras homéricas, que aumentam, que aumentam, vales nos cantos da
boca dessa mulher, quero xingar todos em russo, mas não sei como, como se deleitam!, ela
tem dentes de liquidificador, a goela agora é um mundo todo, não vejo mais nada, ela quer
me comer, oh Deus, ela vai me comer, ela me comeu.
Meu melhor amigo do último quarto de hora, do fundo do mundo, sussurra ao pé do
meu ouvido que devo procurar um analista.
Ricardo Sternberg
No primeiro semestre deste ano, o poeta Ricardo Sternberg (carioca que se mudou para os Estados Unidos com
a família aos quinze anos) fez uma visita à PUC-Rio, apresentando uma pequena palestra para os alunos da Oficina de
Poesia do professor Paulo Henriques Britto.
Bacharel em literatura inglesa pela University of California, Riverside, fez mestrado e doutorado em literatura comparada na UCLA. Seus poemas já foram publicados em revistas como The Paris Review, The Nation, Poetry (Chicago),
Descant, American Poetry Review, The Virginia Quarterly e
Ploughshares. Publicou The invention of honey (1990, reeditado em 1996), Map of dreams (1996) e Bamboo church
(2003, reeditado em 2006).
Ricardo Sternberg vive no Canadá desde 1979, onde dá
aulas de literatura portuguesa e brasileira na Universidade de
Toronto. Escreve quase exclusivamente em inglês, mas não
nega a influência de Bandeira, Drummond e Cabral. Sternberg enviou ao Plástico Bolha alguns poemas, que traduzimos com a supervisão do professor Paulo Henriques Britto.
Abaixo, o primeiro deles.
Sonhando em Carmel
tradução de Marilena Moraes
Ele pensa em Madame Bovary
Ao tirar-lhe as botas enquanto
a carruagem percorre os campos
e ela, no escurinho das cortinas,
sai do casamento direto
para os braços do amante, Leon,
e ele então pensa então em Noé,
nos casais entrando na arca,
que ainda cheirava a madeira recém-cortada
e depois relembra que eles, um casal recém-formado,
entraram no elevador, dignos,
então pararam entre dois andares e foram às nuvens,
como cantava Sly & The Family Stone,
e foram fundo ali mesmo, indiferentes,
primeiro à campainha que não parava de tocar e
depois às batidas violentas em vários andares e,
finalmente, às ameaças de chamar a polícia,
o que se revelou desnecessário,
pois, por milagre, o Otis começou a descer
e eles saíram pelo tapete vermelho da portaria,
de mãos dadas, e cumprimentaram solenemente o porteiro,
e quando um leão-marinho gritou e o acordou do
sonho, ele só conseguia pensar, torturado,
como eram ágeis seus dedos, e rija a carne dela.
João Francisco Costa Ribeiro
PSICOLOGIA
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Rua Maria Quitéria 74, conj. 202, sala 9 - Ipanema, Rio de Janeiro
tel.: 7817-3502
e-mail: [email protected]
3
Um dia qualquer
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
I
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
DO
FIMDOMUNDO
I
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
FIMDOMUNDO
UNDO
Chloe Paisley
O Duo Doloroso
V
Difícil o vazio. Mais difícil
entre as quatro paredes do intelecto.
Ali, entre os sentidos, sob o teto
e o solo onde começa o precipício,
o vôo, impertinente, tinha início
a todo instante e nunca era direto,
era oblíquo: ora o gozo era suplício,
ora o suplício mesmo era dileto...
O abismo era metódico, seu método
audaz, mas um se foi e outro esvaiu-se
como mais um suspiro sem remédio.
Já o vazio, o mais límpido exercício,
era um puro palácio aritmético...
Mas e a vida? Ah, a vida era esse vício!
Bruno Tolentino (1940-2007). Do livro As Horas de
Katharina (Rio de Janeiro: Cia. das Letras,1994. p. 154)
mulheres-damas
por
Ana Chiara
4
Iracema
Não quero sugar todo o seu leite
Nem quero você enfeite do meu ser
Caetano Veloso
Iracema
não me enganas
cadela nas minhas tetas
abanas o rabo para o português
na paisagem selvagem
das letras
e toda beleza fútil
de um amor inventado
tramas
dramas
marco histórico
dorzinha da mulher à-toa.
Puzzles
Bruno Tolentino
No dia 27 de junho passado, o Brasil perdeu um dos seus maiores poetas e eu perdi
um grande amigo. Conheci o poeta Bruno Tolentino em 1994, na noite em que lançou
As Horas de Katharina, pela Companhia das Letras, no Museu da República lotado, no
Rio de Janeiro. Não pude ir ao lançamento, mas amigos comuns me levaram ao restaurante Gambino, no Largo do Machado, para conhecê-lo. Havia uma mesa comprida
e um homem fascinante, elétrico e vivo falava cinco línguas ao mesmo tempo para
um grupo de amigos de diversas procedências, que foram comemorar com ele. Uma
verdadeira pirotecnia. Já no final da noite começamos a conversar e, não sei como, me
vi contando ao poeta, profundamente atento, uma experiência de Deus muito particular
acontecida na infância, em que nem eu mesma costumava pensar mais. Nascia ali uma
grande amizade.
Dias antes, eu havia acompanhado pelos jornais a ampla repercussão em torno
do lançamento e da volta de Tolentino ao Brasil em 1993, após trinta anos de ausência,
aclamado por críticos e intelectuais. Arnaldo Jabor era um dos que comemoravam o
retorno do poeta “para publicar obra de rara importância e encerrar uma noite que durava trinta anos”. Mas a lua-de-mel seria curta. Polêmico, crítico e sem disposição para
cortejar quem quer que fosse, falava o que pensava e desagradou a muitos – sobretudo
com a cortante crítica que fazia ao concretismo.
Em 1964, com o regime militar, o poeta refugiara-se na Europa. Já tinha publicado,
em 1963, Anulação e Outros Reparos, seu primeiro livro – reeditado pela Topbooks em
1998 – que havia lhe rendido o prêmio Revelação de Autor em 1960, com apenas vinte
anos. Roma foi seu primeiro destino, onde se encontrou com o amigo Giuzeppe Ungaretti, poeta italiano, de quem foi hóspede. No longo período de exílio, paralelamente à
sua produção poética, trabalhou como tradutor e intérprete da Comunidade Econômica
Européia, além de atuar como professor nas universidades de Bristol, Essex e Oxford,
onde em 1973 sucedeu o poeta W. H. Auden, de quem era amigo, na direção da Oxford
Poetry Now, a revista de poesia daquela Universidade.
(Há quem duvide do fato – Bruno tinha a divertida mania de ficcionalizar sua vida e
vai dar um trabalhão para quem se atrever a escrever sua biografia – mas existem vários
números da revista de poesia da Oxford sob sua direção circulando pelas mãos dos mais
aficionados pela sua obra para comprovar.)
Em 1987, Bruno Tolentino viveu uma situação-limite, que inspirou o livro A Balada
do Cárcere: foi preso por tráfico de drogas em Dartmoor, conhecida na Inglaterra como
a “Ilha do Diabo”, de onde foi libertado 22 meses depois, quando o governo inglês
reconheceu que ele havia sido injustamente acusado.
Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino Sobrinho, que nasceu em 12 de novembro de
1940, era de uma tradicional família do Rio de Janeiro, parente de Lúcia Miguel Pereira,
biógrafa de Machado de Assis, Antonio Candido e Bárbara Heliodora. Conviveu com
Cecília Meirelles – a quem se referia como “tia Cecília” – e Manuel Bandeira, seus
primeiros mestres, e também com os principais nomes da intelectualidade brasileira
dos anos 1940 e 1950.
No exterior, Bruno publicou Le Vrai Le Vain (Paris, 1971) e Au Colloque des
Monstres (Paris, 1973), em francês, e About the Hunt (Oxford, 1978), na língua inglesa.
Chamou a atenção da crítica internacional e de grandes poetas europeus. Jean Starobinki
escreveu (Nouvelle Revue Française/1979), que o brasileiro era “um poeta de raro talento”
e “uma das mentes mais equipadas para abordar o problema da poesia em nosso tempo”,
enquanto Yves Bonnefoy afirmava que ele era “sem dúvida um ‘daqueles poucos’ que
fazem a cultura de uma época” (Ephémére no.5). Saint-John Perse acrescentou que seus
poemas “exalam uma dor tão justa que só sua perfeição formal a torna suportável”.
De volta ao Brasil, além de As Horas de Katharina, premiado com o Jabuti em 1995,
publicou Os Deuses de Hoje (Record/1995), Os Sapos de Ontem (Diadorim/1995), A
Balada do Cárcere (Topbooks/1996) – vencedor do prêmio Cruz e Souza, em 1996, e
Abgar Renault, em 1997 –, o já mencionado O Mundo como Idéia (Globo Editora/2002),
que rendeu ao autor outro Jabuti, e seu último livro a Imitação do Amanhecer (Globo
Editora /2006), indicado também para o Jabuti deste ano. Em 2003, foi eleito intelectual
do ano pela Academia Brasileira de Letras (Prêmio José Ermírio de Moraes).
Sobre sua poesia, Ferreira Gullar observou que “dois dos melhores poetas do Brasil,
João Cabral de Melo Neto e Bruno Tolentino, usam formas rimadas e metrificação que
nada têm de arcaizantes”. Isto porque Tolentino era brilhante em terza rima**, forma
poética herdada de Dante, que a criou inspirado na Santíssima Trindade.
A obra de Bruno Tolentino é “uma meditação sobre como o ser humano tende a
abolir a realidade criando um sistema de conceitos através do qual pretende resolver o
drama da existência”, como agudamente apontaram Martim Vasques da Cunha e Guilherme Malzoni Rabello, gestores de sua obra.
Falei com Bruno por telefone na noite do domingo de Páscoa, e a esperança na
ressurreição não me deixa crer que tenha sido a última vez.
Stella Caymmi
Jornalista, biógrafa e doutoranda em literatura brasileira pela PUC-Rio
* terza rima: a linha central de cada terceto rima com as duas linhas marginais do terceto
seguinte (aba, bcb, cdc,etc).
INVASORES DE CORPOS: MANIFESTO SAMPLER
FOTOGRAMA V:
A POTÊNCIA DO FRAGMENTO X O DELEITE ESTÉRIL DA RUÍNA
O livro deve se fracionar à imagem da desaceleração
das situações de choque. Deve fraturar-se à imagem dos
estilhaços do fotograma. Deve enrolar-se sobre si mesmo
como a serpente sobre as colinas do céu. Deve derrubar
todas as figuras de estilo. Deve apagar-se na leitura. Deve rir
em seu sono. Deve revirar-se em seu túmulo.
E, ainda assim, cada sampling, cada fragmento é um
comentário, pois é uma escolha, um recorte, uma associação,
uma afinidade. Pensar na importância do fragmento como
potência não-totalizadora. A totalização é o fechamento,
opera dentro de uma dimensão de falta, de perda, de tentar
recuperar o que se perdeu ou nunca existiu. O fragmento,
por sua vez, é a ruína que não se quer reconstruir para que
volte a ser o que foi uma vez. A dimensão do fragmento é
o suplemento, e não o complemento. O que se busca é a
possibilidade de um “vir a ser”, pois a potência está no que
se constrói a partir dos restos, com os olhos abertos para
frente, e não para a imagem apagada que está na origem da
ruína e na memória saudosista.
A escrita sampler não copia porque não imita, e não
imita porque não é cópia, é uma re-escritura, uma invasão
do corpo escrito para tirá-lo da ruína imóvel. Samplear é o
poder de estender relações de força. É sempre experimentar
a partir dos fragmentos de outras experiências. Não interpretar, mas experimentar. E a experimentação é sempre o
atual, o nascente, o novo, o que está em vias de fazer. É
preciso conseguir dobrar a linha, para constituir uma zona
vivível onde seja possível alojar-se, enfrentar, apoiar-se,
respirar – em suma: pensar.
De todas as formas de obter livros, samplerescrever é
a mais louvável.
Quem não se cuida é tragado. Ser tragado pode ser
uma boa experiência, depende da intenção do sujeito. Não
é exatamente uma questão de limite, de rigor ou de estilo,
mas do que fazer com as possibilidades da escrita. O que se
quer é complementar — no sentido de construir de novo
o imperfeito, o passado traumático, a utopia que se perdeu
— ou suplementar — retomar a ruína com o corpo do presente, fazê-la viver e transformá-la numa outra coisa, numa
terceira instância?
Vozes não de espectros, mortos e tornados ruínas do
discurso, mas de produtores que permanecem vivos na escrita. Ruínas não são o espaço da contemplação mórbida ou
do mero inventário estéril. Ruínas são espaços de potência,
elementos de combate, focos de resistência ao domínio das
limitações. Nascemos com os mortos.
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Fragmentos
“Não sei como começar”. “Não se preocupe com isso, é só seguir em frente”. Ouvindo essas palavras de estímulo, comecei o trabalho. Me surpreendeu a facilidade com que ia
seguindo em frente, os movimentos pareciam naturais, fora do meu controle. Era como um pássaro que, asas abertas e paradas, deixa as correntes, quentes ou frias, carregarem seu corpo.
Me senti leve.
“Pronto, agora você pára e dá aquela volta que eu lhe falei”. Desobedeci. O mestre gostou da desobediência. Ele sempre tivera uma estranha afeição pelos que não seguiam à risca
seus conselhos. Os resultados foram catastróficos, o que deixou o mestre ainda mais contente, porque ele também gostava quando percebia que, no fim, quem estava certo era ele.
Voltei atrás até o ponto em que tudo estava indo bem.
(...)
Nihil est in intellectu quod non fuerit in sensu. Nada há no cérebro que antes não tenha passado pelos sentidos.
Na praia ele pensava em sua vida, seus erros e seus acertos. Os acidentes e os planejamentos. Viu as ondas subindo e quebrando, levantando a espuma branca que ia amarelando com a mistura arenosa. Não era de ficar imerso em pensamentos como naquela tarde, era da raça dos práticos, que dançavam no mundo com suas ações e interpelações
incisivas e objetivas.
O sol se pôs, a noite se fechou. Ele deixou a areia e voltou à sua selva de pedra, seu ninho de concreto, que abraçava com toda sua frieza e rigidez. Sentiu-se rígido também.
Tomou seus remédios e foi dormir, ciente de que nada nunca mudaria em sua vida. Acordou com os membros formigando, um formigamento que não pedia relaxamentos ou
massagens. Pedia, isso sim, movimentos agressivos. Saiu à rua e movimentou-se o quanto pôde, mas nada mudou. Sentou-se na areia e sentiu o formigamento parar. Deitou-se
e ali ficou por 50 anos mais.
(...)
“Ela não vê um palmo na frente do nariz”, foi a frase que abriu a conversa. O restaurante estava elegantemente vazio, deixando a tarde com cara de comédia romântica. Especificamente numa daquelas horas em que o mocinho está se lamentando e a mocinha chega pra dizer que quer voltar pra ele independente dos erros dos dois. Agora o papo era diferente.
Ele não queria saber de amor de novo, de passeios pela beira da praia tacando milho pros pombos ou olhando as crianças carecas. A mocinha não ia chegar. Primeiro, porque ela já não
era tão mocinha assim; depois, porque ela estava em outro restaurante, do outro lado do túnel, falando com seu próprio advogado.
Corta para o túnel. O ar parecia mais esfumaçado que o de costume. Os olhos dela começaram a lacrimejar. Ela tinha certeza de que era pela poluição, já que a última vez que havia
chorado por um homem tinha sido aos 12 anos.
(...)
O calafrio veio junto com o chamado da secretária de seu editor. O desespero demorou um pouco mais. Três meses e tudo o que ele conseguira criar tinha sido aquela novela
medíocre. Não sabia o porquê, sua ficção vinha ficando cada vez mais chata e sem graça. Sua mulher continuava achando tudo lindo e divertidíssimo, mas como podia ser diferente se o
que mais o atraía nela era exatamente sua estupidez?! Pedia sua opinião, mas seus comentários ridículos já não acalmavam mais seu espírito. Havia perdido o dom, estava certo disso.
E seu editor não precisou de muito tempo para descobrir o que ele já sabia. Dois dias com o original foram suficientes para que ele fosse chamado para uma reunião. No dia anterior havia sonhado com essa reunião. Seu chefe, vestido de cavaleiro do apocalipse, preparava uma panela de ratos com dois de seus oito braços, enquanto enfiava pequenas varetas por
baixo de suas unhas. “Como havia sido bom o sonho” foi o que ele pensou ao sair da reunião.
Uma semana, esse era todo o tempo de que ele dispunha para levar alguma coisa decente para seu editor ler. Chegando em casa, a primeira coisa que viu foi o olhar vazio de sua
mulher. “Como foi a reunião, querido?”, “Excelente, Margarete, excelente”. E encerrou o diálogo indo para a banheira. Um longo banho, era disso que ele precisava para recuperar aquela
genialidade de outrora. Outrora. Será que sua genialidade se acabou quando ele começou a usar palavras como “outrora”?
Léo Torres
5
Quem sou eu?
Para toda pergunta difícil se tem uma resposta difícil.
Será que é isso mesmo? Isso é uma verdade? Não sei,
porém aqui começo o meu desafio com uma tentativa de
desvendar o meu ser.
Fisicamente eu sou alta e baixa, pois para as crianças
eu sou alta, já que possuo uma altura consideravelmente
maior do que as delas, e para os adultos eu sou baixa,
já que sou menor do que eles. Eu calço 37, tenho unhas
de tamanho médio, porém limpinhas, tenho uma pequena
cicatriz na coxa do meu último acampamento. Quer dizer,
eu tenho cicatrizes pela minha perna toda, na qual cada
uma tem a sua história; eu costumo dizer que faço uma
tatuagem em cada lugar que vou. Você está pensando que
fico triste com isso? Está enganado; afinal, esta é a minha
memória. E o que eu seria sem ela?
Continuando... O meu dedão do pé me dá constante
dor de cabeça, pois minha unha vive encravada. A minha
mãe diz que isso acontece porque eu a corto quadrada. Aí,
eu a corto redonda, mas ela logo encrava de novo. Haja
paciência com essa minha unha, mas eu não fico triste
com ela, não. A minha vó diz que “Deus sabe o que faz”,
e se ele deu a minha unha assim é porque tem que ser
assim. E eu acredito nela nesse aspecto, já que não há
jeito; porém, às vezes, tenho as minhas dúvidas se Deus
realmente sabe o que faz. Por exemplo, a minha prima se
chama Francinete e ela passou a vida escutando piadinhas
com o seu nome, como “Francinete cara de chiclete”. Aí,
ela foi ao cartório e trocou o nome por Fernanda, e o
povo a chama “Fernanda cara de lavanda”. Coitada, ela
sofre tanto! E, assim, eu falo pra ela que “Deus sabe o que
faz”, embora eu tenha dúvidas disso.
Por falar em dúvida, este é o meu lema, pois tenho dúvida em tudo, até naquilo que tenho certeza. Eu
tenho um amigo que me diz que a dúvida é a base para
o conhecimento. E ele até me apresentou um filósofo
chamado Sócrates, que foi o autor da seguinte frase: “Só
sei que nada sei”. A princípio, quando eu a li, não compreendi, mas pesquisei algumas coisas sobre a vida dele
e fiz a minha interpretação; porém, não cabe aqui explicá-la. Depois disso, fiquei um pouco aliviada com as
minhas dúvidas.
Bem, agora que já falei muito sobre mim e já me defini... O quê? Você ainda não entendeu? Então chega mais
perto que eu vou falar bem baixinho... Eu sou definida
pela não-definição. Agora me fale sobre você, que também gosto de escutar histórias.
Bolhas Geraes
Ternura
Quando, como São Francisco de Assis,
desimpeço de um seixo o caminho de uma
formiguinha, sinto que desbloqueei um
mundo e o pobre inseto me parece maior,
maior do que a minha imensa ternura.
Pórtico
Ó Musa,
confusa,
difusa e abstrusa,
esteje presa!
Perplexidade
Márcia Brito
Relação Paradigmática
6
Relação paradigmática essa, a nossa,
que se dá em ausência.
Tantas opções que não foram escolhidas, tantas possibilidades que poderiam ter sido...
Fica aqui, na minha sentença, o seu espaço a ser preenchido, pela palavra que você escolher.
A lacuna a você destinada faz dessa oração incompleta oração com sujeito, mas sujeito “abandonado”.
Não descreio. Não desespero.
Louvo a Deus que não conheço
e percebo dentro do meu coração ansioso
essa longínqua música
feita de nada e esperança.
Wellington Brandão
Alexandra Wiltshire
Banca da PUC
Serial Killer
Tel.: 2512-7109
Pá! Barulho seco de corpo retorcido, estatelado, falecido contra o amarelo da tinta do
quarto. Zumbido calado e morte bem merecida no meio da noite que coça e pinica. Já foi tarde
e com o meu sangue, raquítico inseto incessante, agora estático enfeite bem grande. Na minha
parede coleciono cadáveres.
Catharina Wrede
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Entrevista por Paulo Gravina e Alluana Ribeiro
Um olhar estrangeiro
Considerando que sua formação acadêmica foi toda na Dinamarca,
o que despertou seu interesse pela América Latina e pelo Brasil?
Passei um bom tempo em países de língua espanhola, antes de
começar meus cursos. Morei dois anos na Espanha, morei no
México, na Argentina e viajei seis meses pela América Latina.
Mesmo que toda a minha formação e meu mestrado tenham
sido sobre literatura nórdica, o meu doutorado foi voltado
para a literatura latino-americana. Aí, tive a oportunidade de
vir como professor de intercâmbio, para a UnB, em um convênio entre o Itamaraty e a Universidade da Dinamarca. Dava
aulas de dinamarquês e literatura nórdica. Depois de um ano
e meio em Brasília, decidi terminar meu doutorado no Brasil.
Então, vim para o Rio e comecei a escrever. Eu tinha contatos com várias universidades, através do Affonso Romano de
Sant’Anna, que ainda estava trabalhando na PUC e na UFRJ,
pois o tinha conhecido na Dinamarca. Quando foi afastado
para assumir a presidência da Biblioteca Nacional, ele me convidou para dar um curso sobre pós-modernismo. Foi muito
bom, porque era uma turma de discípulos dele, alunos de pósgraduação, parte dos quais são professores agora, como Ana
Cristina Chiara, Victor Hugo, Vera Queiroz e Ricardo Oiticica. Depois me sugeriram pedir uma bolsa para recém-doutor e ficar aqui como bolsista durante três anos; e eu fiquei.
Do que você mais gosta e do que menos gosta no Brasil?
Não sei, muitas coisas. Gosto do Rio, dos brasileiros. Gosto da vida
aqui. O que menos gosto é da desorganização, da falta de coerência
política. Bom, não gosto da eterna repetição do mesmo governo.
Qual é o lugar da América Latina e do Brasil nos estudos contemporâneos
de literatura?
Não há dúvidas de que os estudos de literatura latino-americana têm um papel institucional muito mais forte do que os da
literatura e da cultura brasileira. A partir da interação dos departamentos de Espanhol, com o papel que o espanhol já tinha
quando surgiu um interesse pelos estudos latino-americanos,
abriram-se caminhos na Europa e nos Estados Unidos. Hoje,
nos Estados Unidos, os programas de espanhol, por força da
literatura latino-americana, são os que mais crescem. Há obviamente um reflexo da presença da cultura hispano-americana
nos EUA, da migração, da importância que essa cultura tem
dentro da cultura norte-americana. O Brasil tem sido arrastado
um pouco por essa mesma lógica, mas sem conseguir institucionalmente a mesma força. Ou seja, os estudos da literatura
brasileira, da cultura brasileira, nos EUA pelo menos, ainda são
parte dos estudos da América Latina. Poucos programas têm autonomia, como programas de português e de estudos brasileiros
e africanos, mas isso começa a mudar, pois começam a surgir
alguns programas de Estudos Brasileiros independentes dos Estudos Latino-Americanos. Outra observação importante é que
o Congresso da Latin American Studies Association (LASA), de
2009, vai acontecer pela primeira vez no Brasil, na PUC, coordenado pela professora Rosa Marina Brito e por mim. Esperamos sete mil participantes no evento, o que reflete a importância
crescente dos brasilianistas nos Estudos Latino-Americanos.
Como você vê a inserção do Brasil no mundo ocidental em relação à cultura
e não apenas à literatura?
Acho que o Brasil foi descoberto relativamente tarde na cultura
contemporânea. Mas vejo muito interesse na Europa e nos EUA.
Sempre houve interesse pela música brasileira, mas agora há um
interesse grande também por cinema, dança, design, moda. Há
Márcia Brito
Um dinamarquês bem carioca dá aulas de literatura na PUC-Rio, e todos querem ser seus alunos. Karl Erik Schollhammer nos conta um pouco da sua
história no Brasil, de como Borges despertou seu interesse pela América Latina e o que ele recomenda como literatura e produções teóricas contemporâneas.
corporada aos mecanismos representativos dos grandes meios
de expressão e grandes veículos de comunicação. É um novo realismo, no sentido em que procura não representar a realidade,
mas recriar certas experiências da realidade esteticamente. Isso
é algo com que tenho trabalhado, tenho praticamente um livro
pronto a respeito, para publicar este ano. Posteriormente, foi o
que me levou a um trabalho de comparação entre literatura e
imagem, coisa que eu registrei como uma forma de escrita que
tentava se apropriar de caminhos nas artes plásticas, no cinema,
nas artes performáticas, para a renovação da própria escrita.
Considerando as inúmeras teorias de literatura. Qual seria, hoje, o papel
do professor de literatura?
O papel do professor de literatura é... ler literatura. (risos) É
mostrar como se pode ler literatura; portanto, é mostrar por
que ele gosta de ler literatura. Não existe uma pedagogia da
literatura; existe o diálogo sobre a leitura que o professor pode
iniciar, sobre o que lhe dá prazer. Ele pode expor o seu próprio
caminho. O que me dá prazer em ensinar sobre literatura é isso.
Já que estamos falando do mercado de arte, queremos saber se você tem
alguma verve artística: você pinta, escreve?
uma visualidade, uma questão de estética brasileira que começa
a ficar muito visível. No ano passado, quando fui à Dinamarca
em férias, achei engraçado ver um festival brasileiro em um supermercado, que consistia basicamente da oferta de produtos
como sandálias havaianas, roupas com a bandeira do Brasil, uma
palmeirinha, cachaça, limão (porque limão brasileiro não tem lá),
pequenas coisas com alguma referência ao Brasil. Isso é gozado.
Você percebe o interesse pelos produtos do Brasil que começam
a ser comercializados. A distância não é mais tão grande,
há mais intercâmbio, muito mais diálogo que antigamente.
Não. Na realidade, acho que a minha relação com as artes é
de apreciação, de interação. Gosto praticamente de tudo:
música, artes plásticas — que para mim são muito importantes — cinema, de literatura. Mas nunca tive — e nunca
tive problema em não ter — essa relação com a produção.
Sou um consumidor muito feliz do talento dos outros.
Como sou cético em relação ao talento, tenho certeza de
que as artes não carecem da minha participação. (risos)
Qual a sua relação com o escritor argentino Jorge Luis Borges?
Minha grande descoberta recentemente foi Sebald, foi como
uma epifania. Senti que ali havia uma coisa que realmente
eu não esperava, que procurava há muito tempo e que estava acontecendo de maneira muito singular diante das outras tendências contemporâneas. Obviamente não é o único,
tenho lido também alguns escritores do passado, como Robert Walser, e escritores novos, como Murakami, Vila-Matas
e Bernardo Carvalho, cujo último romance, O sol se põe em
São Paulo, considero o melhor lançamento do ano no Brasil.
Tenho redescoberto Coetzee, que li há uns quinze anos, e que
agora comecei a ler sistematicamente, e estou gostando muito.
Dos latino-americanos, estou orientando uma tese sobre o Roberto Bolaño, que também me surpreendeu muito. Há muitos escritores novos, muito interessantes, é difícil escolher. Já
sobre os trabalhos teóricos, acho que é um pouco diferente.
Estamos num momento de uma certa incerteza teórica. Claro
que há bons teóricos produzindo agora, o Agamben e o Ranciere, por exemplo. Mas, neste momento, não percebo uma
nova teoria, uma nova abordagem à relação entre teoria e obra
literária, entre teoria e arte. As pessoas estão testando, cada um
montando sua própria perspectiva, mas não vejo uma escola
tomando conta. Você precisa voltar para certas abordagens
históricas, abordagens materialistas, estruturalistas, culturalistas, mas sempre com o reconhecimento de que nenhuma delas
oferece um caminho único. Estamos numa situação em que
o seu objeto de pesquisa determina os caminhos teóricos que
você escolhe. Este é o ponto mais positivo neste momento.
Borges foi quem me trouxe para a literatura latino-americana.
Eu gostava muito dessa literatura; estudava espanhol na época,
fiz uma segunda graduação em espanhol e tive um professor
que me apresentou Borges. Fiquei muito impactado. Participei
de uma primeira tradução de alguns contos de Borges, foi uma
das primeiras edições de Borges em dinamarquês. Depois, resolvi escrever minha tese sobre Borges e a Literatura Fantástica,
trabalhando com Borges, Cortázar e Bioy Casares, e passei um
tempo em Buenos Aires. Era 1986, e tive a oportunidade de
conhecê-lo, no seu último ano de vida. Simplesmente fui para
o lançamento do último livro de poesia que ele publicou em
vida (Los Conjurados) e me apresentei. Ele me convidou a procurá-lo, e falei que queria fazer uma entrevista. Conversamos
algumas vezes e fiz a entrevista. Pouco tempo depois Borges
faleceu. Mas tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente.
Em um trabalho recente, você apresentou os “novos realismos” como uma
tendência da literatura e das artes contemporâneas. Você poderia falar um
pouco mais sobre isso?
Este é um projeto sobre a literatura brasileira contemporânea,
uma literatura urbana, voltada para as questões sociopolíticas
atuais, muitas vezes para as questões de crime e violência da
época pós-ditadura. Trabalhando com isso durante alguns anos,
observei uma volta a um certo realismo, que se afastava do realismo histórico, com seus fundamentos de objetividade, representação e verossimilhança. Essa é uma tendência literária que,
ao mesmo tempo que quer se voltar para realidade, precisa se
afastar de modos tradicionais de representação, para não ser in-
O que você recomenda hoje em termos de literatura e de produções teóricas?
Alguma mensagem final para os alunos?
Que estudem, né! (risos)
7
Antes mesmo de serem convidadas para participar do mundo, a arte virou para a ciência e falou:
- Cuidado [com os excessos]!
Depois de uma de suas constantes trocas de ofensas, Dioniso, o deus do caos, fala para Apolo, o deus das belas
formas:
- Enquanto eu preciso de você para existir, você precisa de mim para ser feliz.
Apolo, imitando os movimentos do predestinado Édipo, nada respondeu.
Quando o jovem Heráclito percebeu que era impossível se banhar duas vezes no mesmo rio, uma vez que o
universo está sempre em movimento, o deus silvestre que havia ficado cego por ver demais resolveu falar:
- O caos possui infinitas ordens impossíveis de serem percebidas pela lógica do pensamento.
Após ouvir tais palavras, Heráclito pôde, enfim, se despedir da culpa que carregava por ser capaz de pensar.
Péricles F. Drelos
aula sobre schopenhauer
ele disse que a gente
só conhece as representações que a gente
conhece, e que se eu gosto de você
eu não gosto de você mais do que eu
acho que você deve ser: ele
disse que tédio é a espera por um outro
desejo que ainda não chegou, a gente
acha que esse vai se realizar e paft!
precisa de um novo desejo
puxa vida, a gente devia descomplicar.
O Massacre
8
Seria apenas mais um fim de semana no quarto perdido lá no fundo da garagem onde vivia com o porteiro do prédio.
Faria um farto almoço de domingo e depois assistiria a um filme na televisão. Mas o destino lhe reservava uma surpresa.
Eu não acreditaria se não tivesse ido vê-la depois de seu telefonema. Pensava que fosse exagero enquanto ouvia seu
desespero do outro lado da linha.
Fui à sua casa, e nada me marcou tanto quanto a imagem de Sulamita. O rosto estava molhado, sem saber se de lágrima
ou de suor. As mãos sujas de terra afundavam nos vasos como se buscassem a própria essência. Quando me viu, sentou no
chão e chorou feito criança.
“Ah, meu Deus, por que ele fez isso? Ele não entende, não tem alma o desgraçado? Olha só, tenho que jogar fora todas
as minhas plantas. Não pode mais ter passarinho também. Meu marido teve que dar os canários e, hoje de manhã, quando
não escutei eles cantarem, me deu um nó na garganta. O síndico não explicou nada, só falou que não quer mais as minhas
plantas nem os passarinhos do meu marido. Severino diz que não se importa, mas quando olha o lugar onde ficavam as
gaiolas, o olho enche d’água”.
Eu não consegui dizer palavra. Burle Marx ergueria um monumento a ela em pleno Parque do Flamengo, tivesse ele
podido assistir à cena. Jamais conheci alguém com um amor assim pelas plantas, de paixão exacerbada pela natureza, tanta
que recolhia nas ruas vasos jogados fora com algum resto de vida e os fazia florir.
Sempre que eu chegava em sua casa, me espantava a exuberância do fícus que já atingia o teto. E cada planta tinha
uma história.
O quase-jardim escondera, até então, dos carros importados, das madames e doutores dentro de seus Armanis, do
síndico que guardava sua frieza atrás dos óculos escuros comprados em Paris ou Londres e do mar do outro lado da Vieira
Souto o quarto úmido e sem janelas onde vivia com seu homem.
E me doeu, como nunca, ver o antigo fícus reduzido a um pedaço de pau dentro de uma lata cheia de terra e todo resto
dele dentro de um saco preto jogado na calçada, esperando o caminhão da limpeza urbana.
Uma moradora do terceiro andar dera abrigo a umas samambaias, eu fiquei com alguns vasos e Sulamita escondeu uma
orquídea no banheiro, a salvo do massacre.
Por fim, o barraco, enegrecido pelo mofo, se viu despido. Tudo feio, frio, morto. Ela, que não tinha quase nada, agora
possuía menos ainda.
Passados o desespero e a indignação, ficou nela um semblante de dor inexplicável. Permaneceu em silêncio quando me
despedi, sedada pela tristeza. Parecia ter naquele dia sepultado mais uma de suas paixões, como tantas outras que ficaram
esquecidas na poeira dos caminhos por onde andara antes de chegar diante daquele mar, extasiada com tanta beleza.
Uma semana depois, voltei para saber como estava. Nos sentamos do lado de fora do quarto, pois fazia mais de quarenta graus. Enquanto conversávamos, vimos o síndico entrando na sua Ferrari, e ela falou olhando pra ele: “Aí, tá indo pra
mansão de Teresópolis. Ouvi ele falando para o morador do 508 que precisava jogar tênis pra relaxar e respirar ar puro. Que
não agüentava mais a poluição. Quem é que entende essa gente?”
Percebi, apesar da dureza das palavras, o seu conformismo:
“É mais uma saudade que guardo junto com as outras que eu trouxe de Norte: meu barraco cercado de mato verde, onde a
lua nunca chegou. Hoje, está nu, coitado, nessa cidade cheia de solidão”.
Pátria de Negro
Senta-se diante do papel em branco à espera da palavra. O suor frio umedece suas mãos e ele percebe a verdade. As
palavras é que estão à sua volta, ávidas por serem escolhidas. Pobre homem, nunca lhe fora dado esse direito; quando muito,
não o impediram.
Armou-se, então, de seus quereres e foi adiante. Abrindo picadas na floresta do tempo, fazendo armadilhas contra os
predadores de seus sonhos, andou, sem dia nem hora, nas trilhas que ele mesmo inventou.
Há tempos lhe dizem: este é o país do futuro.
Enquanto o futuro não chega, vai vivendo essa aldeia de beleza e miséria sem igual. Uma Pátria legalmente inscrita na
História e soturnamente negada a corações que dela jamais se desfazem.
Insistentemente ouve: vai, negro, ser brasileiro na vida.
Dois contos de Maria de Lourdes Souza
marcelina
marcelina nunca fez aula de esgrima
tem uma máquina de costura
copos de plástico
e uma mesa com pés assimétricos
*
aos domingos
marcelina vai ao parque
compra algodão doce
é pra minha sobrinha
marcelina não tem sobrinhas
nem irmãs
*
quase nunca
marcelina recebe visitas
a última vez era um homem
é o carteiro, pode entrar?
marcelina mordeu o dedo
engasgou
não tem ninguém em casa
happy end
um poema feliz
seríamos nós dois
caminhando feito
bobos
de risos e galáxias
com passos de dança
numa rua sem gravi
dade somos dois
astronautas
indo comprar pão
três poemas do livro a dobra dura de
Alice Sant´anna