Baixa - Faculdade de Letras
Transcription
Baixa - Faculdade de Letras
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO IL BIRRAIO DI PRESTON, DE ANDREA CAMILLERI: UMA RAPSÓDIA EM GIALLO LUCIANA NASCIMENTO DE ALMEIDA Rio de Janeiro 1º semestre 2012 IL BIRRAIO DI PRESTON, DE ANDREA CAMILLERI: UMA RAPSÓDIA EM GIALLO LUCIANA NASCIMENTO DE ALMEIDA Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana). Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos Rio de Janeiro 1º semestre 2012 IL BIRRAIO DI PRESTON, DE ANDREA CAMILLERI: UMA RAPSÓDIA EM GIALLO Luciana Nascimento de Almeida Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana). Examinado por: _____________________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Maria Lizete dos Santos – UFRJ _________________________________________________________________ Professor Doutor Aníbal Francisco Alves Bragança – UFF _________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Franca Zuccarello – UERJ _____________________________________________________________ Professora Doutora Maria Aparecida Cardoso Santos – UERJ _________________________________________________________________ Professora Doutora Annita Gullo – UFRJ Rio de Janeiro 1º semestre 2012 FICHA CATALOGRÁFICA ALMEIDA, Luciana Nascimento de Il birraio di Preston, de Andrea Camilleri: uma rapsódia em giallo / Luciana Nascimento de Almeida. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2012. 183 f. : 30 cm Orientadora: Maria Lizete dos Santos Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, Departamento de Letras Neolatinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012. Referências Bibliográficas: f. 176-183 1. Camilleri, Andrea. 2. Narrativa Italiana Séc. XX. 3. Romance Policial. 4. Rapsódia. 5. Melodrama. I. Santos, Maria Lizete dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Il birraio di Preston, de Andrea Camilleri: uma rapsódia em giallo. RESUMO Il birraio di preston, de Andrea Camilleri: uma rapsódia em giallo Luciana Nascimento de Almeida Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos Resumo da Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana). O presente trabalho propõe a análise de Il birraio de Preston de Andrea Camilleri como uma rapsódia, na qual o escritor italiano faz uso de estruturas do melodrama como estratégia narrativa para a construção de seu giallo. Palavras-chave: Andrea Camilleri – Romance Policial – Narrativa Italiana Séc. XX – Rapsódia – Melodrama Rio de Janeiro 1º semestre 2012 RIASSUNTO Il birraio di preston, de Andrea Camilleri: uma rapsódia in giallo Luciana Nascimento de Almeida Relatrice: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos Riassunto da Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana). Il presente lavoro ha come obiettivo l’analisi di Il birraio de Preston, di Andrea Camilleri come una rapsodia, nella quale lo scrittore italiano ricorre alle strutture del melodramma come strategia narrativa per la costruzione del suo giallo. Parole chiavi: Andrea Camilleri – Romanzo Poliziesco – Narrativa Italiana Sec. XX – Rapsodia – Melodramma Rio de Janeiro 1º semestre 2012 ABSTRACT Il birraio di preston, by Andrea Camilleri: a rhapsody in giallo Luciana Nascimento de Almeida Advisor: Prof. Dr. Maria dos Santos Lizete Abstract of the thesis submitted to the Graduate Program in Neo-Latin Literature at the Federal University of Rio de Janeiro, as part of the requirements necessary to obtain the title of Doctor of Neo-Latin Languages (Neo-Latin Literary Studies, option: Italian Literature). This paper proposes the analysis of Il birraio Preston by Andrea Camilleri as a rhapsody, in which the Italian writer makes use of structures of melodrama as a narrative strategy for the construction of his giallo. Keywords: Andrea Camilleri – Police Romance – XX Century Italian Narrative – Rhapsody – Melodrama Rio de Janeiro 1º semestre 2012 AGRADECIMENTOS A Deus, Senhor da minha vida, por me dar entendimento e forças para ir muito além dos meus sonhos. A minha orientadora, Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos, por todo apoio, amizade e companheirismo em mais esta jornada. Aos meus colegas de italiano, que sempre me apoiaram e compartilharam comigo tantos sonhos e conquistas. Aos professores do Setor de Letras Italianas, pelo estímulo e convivência enriquecedora. Aos professores doutores Aníbal Francisco Alves Bragança, Annita Gullo, Maria Aparecida Cardoso Santos e Maria Franca Zuccarello, pela generosa leitura desta tese. Dedico esta tese à minha querida mãe, minha amiga e primeira professora, minha fonte inesgotável de sabedoria, inspiração e exemplo. Eu sou um cérebro, Watson. O resto é mero apêndice. Sherlock Holmes (In: Pedra Mazarino) SUMÁRIO INTRODUÇÃO, p.12 CAPÍTULO I NA TRILHA DO GIALLO ITALIANO, 15 1.1 Sobre o romance policial, p. 15 1.2 As nuanças do giallo na Itália: escritores em relevo, p. 34 CAPÍTULO II ANDREA CAMILLERI: UM ESCRITOR SOB A LUPA, p. 51 2.1 A identidade siciliana em destaque, p. 51 2.2 O autor e a obra: Andrea Camilleri em exame, p.54 2.2.1 A edificação de Vigata, p. 66 2.2.2 Montalbano: um policial antiinstitucional, p. 68 CAPÍTULO III IL BIRRAIO DI PRESTON: UMA RAPSÓDIA IN GIALLO, p. 72 3.1 Em busca da melodia perdida, p. 147 3.2 O espetáculo interrompido, p. 166 CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 173 REFERÊNCIAS, p. 176 INTRODUÇÃO Na Itália, nos dias atuais, o romance policial ainda é considerado por muitos críticos literários como literatura “menor”, produto para consumo, desprovido de valor estético. Por isto, quando, no final do nosso curso de mestrado, travamos contato com a obra de Andrea Camilleri, encantados por seu texto, imediatamente decidimos tomar um de seus romances para corpus da nossa tese, com o objetivo de comprovar que, para além do filão policial, que é o aspecto palatável ao público não especializado, a narrativa de Camilleri se oferece a variados níveis de leitura. A obra de Camilleri pela qual optamos é Il birraio di Preston (O cervejeiro de Preston ou Ópera maldita, no título atribuído à tradução brasiliera), romance comumente classificado como histórico, visto que em sua trama há menção a fatos realmente ocorridos. A escolha de Il birraio de Preston deveu-se, principalmente, à classificação que a crítica literária italiana lhe atribui: para alguns é policial, simplesmente; para outros é histórico. Pretendemos discutir tais classificações, demonstrando que a obra é, em verdade, uma rapsódia e que, como tal, contempla várias narrativas distintas, incluindo a de uma investigação policial. Não se aplica, pois, em nossa opinião, a designação “literatura menor” ao romance, apesar de a obra ter registrado um número expressivo de exemplares vendidos. Ademais, consideramos que o fato de Camilleri ter um número grande de leitores e ótima vendagem de suas obras não o desqualifica. Afinal, outros escritores renomados internacionalmente, como o também italiano Umberto Eco, ou o colombiano Gabriel Garcia Márquez, ou ainda o brasileiro Jorge Amado têm, ou ao menos tinham, um grande público-leitor e suas obras vendem/ vendiam muito. Tomando como parâmetro os três autores supracitados, que são lidos também pelo grande público e tiveram suas obras transformadas em filmes e/ou telenovelas, o que amplia a área de abrangência de suas obras, entendemos que 12 os romances de Camilleri, principalmente aquele que nos propusemos a examinar, não se classificam como “literatura menor”. A história da inauguração e do incêndio do teatro de Vigàta, a cidade fictícia de Andrea Camilleri, na qual são ambientados seus romances, bem como a investigação e consequente elucidação dos fatos, são os fios condutores da trama de Il birraio di Preston. Porém, existe uma outra história, que se constrói paralelamente a essa primeira, que tencionamos fazer aflorar neste trabalho. Nossa proposta é demonstrar que Camilleri faz uso das estruturas do melodrama para construir seu romance, ou rapsódia, como preferimos classificar. Il birraio di Preston é uma rapsódia construída com estrutura semelhante à do melodrama, tese que procuraremos comprovar ao longo de três capítulos, organizados da seguinte maneira: no primeiro capítulo, serão apresentadas as bases teóricas que nortearão a tese, bem como será traçada, especialmente, a trajetória do giallo na Itália. No segundo, que se centrará no nosso autor, Andrea Camilleri, merecerão destaque sua vida e obra, bem como as temáticas desenvolvidas em sua produção poética. No último capítulo, se examinará a rapsódia Il birraio di Preston e se demonstrará como a Música e a História se fazem fortemente presentes no texto de Camilleri, cujo estilo é marcado pela hibridização língua italiana/dialeto siciliano. Por fim, antes de passarmos ao primeiro capítulo, consideramos oportuno esclarecer a origem do subtítulo atribuído a este trabalho: “rapsódia em giallo”. Fomos inspirados por duas obras de reconhecido valor estético: o livro de Mário de Andrade (São Paulo, 1893 – 1945), Macunaína (1928), que o autor classifica como rapsódia, onde se encontram reunidos os mitos, as lendas indígenas, a oralidade e a linguagem populares, além das características das regiões que compõem o nosso país; e, também, pela Rapsody in blue (1924), do compositor estadunidense George Gershwin (Nova Iorque, 1898 – Califórnia, 1937), que mistura em sua composição música erudita e jazz. 13 Tal subtítulo assinala nossa intenção que é demonstrar que Il birraio di Preston, apesar da classificação atribuída pelos especialistas, é uma rapsódia. Foi-nos, portanto, irresistível a associação dos dois termos, rapsódia e giallo, para designar a obra de Andrea Camilleri sobre a qual, a partir de agora, se voltará o nosso olhar. 14 CAPÍTULO I NA TRILHA DO GIALLO ITALIANO 1.1 Sobre o romance policial O interesse pela leitura de romances policiais é um fenômeno comum a diversos países e culturas, o que faz dessa uma das formas de literatura mais vendidas de todos os tempos. De Allan Poe a Andrea Camilleri, milhares de autores e milhões de livros do gênero oferecem aos leitores romances cheios de crimes, mistérios, investigações, soluções, ora seguindo um modelo mais clássico, ora inovando em um ou mais elementos, conforme veremos adiante. Citamos Sandra Reimão (1983: 7-8): Surge então a pergunta: “afinal de contas, por que compramos um romance policial? Por que nos entretemos tanto e tantas horas com este tipo de leitura? Como a literatura policial pode ser caracterizada? Quais de suas características fazem com que tantas pessoas gostem tanto deste tipo de leitura? Toda narrativa em que aparece um crime ou delito e alguém disposto a desvendá-lo pode ser considerado policial? Afinal, o que é uma narrativa policial? A citação acima, retirada da introdução do livro O que é o romance policial, consegue abranger as principais questões que rondam o tema. Esse gênero, originado no romance de aventuras, e inaugurado por Edgar Allan Poe, autor considerado o “pai” do romance policial, tem perdurado por gerações. Suas personagens atravessaram séculos, ganhando notoriedade entre os mais diversos públicos. Dupin, Hercule Poirot e, talvez, o detetive mais famoso de todos os tempos, Sherlock Holmes, são apenas alguns dos nomes que saíram das páginas dos romances policiais para entrarem nas páginas da história da literatura. Apesar de sua enorme receptividade por parte dos leitores e do sucesso de vendas, o romance policial, especialmente na Itália, ainda é visto com restrições, como se fosse uma literatura inferior ou, até mesmo, não-literatura, sendo classificado como literatura de consumo, ou literatura de massa. 15 Vários autores têm-se dedicado ao estudo do romance policial como gênero literário. No Brasil, destacam-se Paulo de Medeiros e Albuquerque, que, em seu livro intitulado O mundo emocionante do romance policial, publicado em 1979 pela Francisco Alves Editora, apresenta uma minuciosa história desse gênero, desde suas origens, com Allan Poe, em 1849, até a atualidade. Medeiros e Abuquerque traça um cronograma bastante completo dos autores, estilos e as publicações nos diversos países. Também, Sandra Lucia Reimão, em seu livro O que é romance policial, publicado em 1983, trata do gênero em si e de sua repercussão. Já em Literatura policial brasileira, publicado em 2005, a mesma autora enfatiza as características da produção nacional, abordando os tipos de detetives, vilões e apresentando uma breve análise sobre a produção das narrativas e uma cronologia dos romances policiais brasileiros. Para o estudo específico do romance policial italiano, recorreremos a Tutti i colori del giallo (2002), livro escrito pelo teórico italiano Luca Grovi, e, ainda, a Un secolo in giallo. Storia del poliziesco italiano (2006), de Maurizio Pistelli, além de outros conceituados teóricos, como Umberto Eco e o seu Superuomo di massa. Retorica e ideologia nel romanzo popolare (2005). Porém, para nossa base teórica nos serviremos da Poética da Prosa, de Tzvetan Todorov. Publicada em 2003, a obra possui um capítulo intitulado “Tipologia do Romance Policial”, no qual o autor estabelece os conceitos e as características referentes ao gênero. O romance policial teve sua origem no romance de aventuras, no qual “a ação exercia papel fundamental: “A ação, e acima de tudo a ação que comandava a maioria das cenas era a tônica das narrativas. O raciocínio frio e lógico, quando timidamente aparecia, era superado pela valentia do herói ou pela força das armas”. (ALBUQUERQUE, 1979: 2) Há, portanto, uma diferença importante na caracterização do romance de aventuras e do romance policial: a ação é elemento imprescindível na constituição do romance de aventuras; é a ação do herói que garante a vitória final, que leva o bem a vencer o mal. Praticamente não existe espaço para o raciocínio lógico. O 16 romance policial, ao contrário, fundamenta-se exatamente em tal raciocínio. Quando observamos os detetives dos romances de Agatha Christie, por exemplo, constatamos que é o raciocínio que leva à elucidação dos mistérios. Um exemplo de como esse raciocínio é capaz de fazer que um mistério seja elucidado e, assim como no romance de aventuras, o bem vença o mal, pode ser observado no romance Cartas na mesa. As investigações baseadas no raciocínio de Hercule Poirot são as responsáveis pela solução do assassinato de Mr. Shaitana, em sua própria casa, durante um jantar, praticamente diante de seus convidados. O fato não passa despercebido e é, inclusive, exaltado ao final do romance: Fez-se silêncio. Rhoda quebrou-o com um suspiro. “Que sorte surpreendente que o limpador de vidraças estivesse ali por acaso” – comentou. “Sorte? Acaso? Nada disso, mademoiselle. Foi a massa cinzenta de Hercule Poirot.” (CHRISTIE, 1936: 278) O domínio do romance de aventuras atravessou os séculos, firmando-se como o único divertimento voltado para a inteligência de seus leitores, uma vez que as demais obras produzidas quando de sua criação consistiam basicamente de livros ou tratados, destinados à elite ou aos estudiosos, inacessíveis ao leitor pouco letrado. Essa pode ser uma explicação para o sucesso conquistado pelo romance de aventuras, que estabeleceu seu lugar na história da literatura. Se as grandes mitologias ou a Bíblia tivessem sido narradas de outra forma, elas teriam conseguido interessar esse público? Relatadas num estilo seco e até mesmo hermético dos escritores de época, teriam tido a mesma aceitação que têm hoje ou teriam chegado ao mesmo fim melancólico das obras que se escreveram naquele tempo e que hoje ninguém mais se recorda? (ALBUQUERQUE, 1979: 2) A partir do advento da imprensa e do consequente crescimento da produção de livros, e, naturalmente, do romance, os leitores passaram a buscar obras cuja leitura produzisse deleite, viagens imaginárias, com uma nova estética. Foi a partir de então que o romance de aventuras sofreu modificações: “Deixou de ser a narrativa pura e simples de uma lenda ou de um fato histórico tratado, é bem verdade, e saiu à procura de novos caminhos” (ALBUQUERQUE, 1979: 2). 17 Os novos caminhos procurados pelo romance de aventuras não fugiram àquilo que é fundamental à sua estrutura, porque é inerente à própria história do homem: a luta entre o bem e o mal, onde o bem deve triunfar, ao final. A renovação ao gênero também alcançou o herói na sua concepção; ele deveria, é claro, permanecer do lado do bem, mas moldado à luz de novas características, diferentes do herói já estereotipado. Essa evolução, ou renovação, culminou na divisão do romance de aventuras em três vertentes: o romance de aventuras puro e simples; o romance de espionagem, que por vezes possui pontos em comum com o primeiro; e, por fim, o romance policial, que se distancia dos dois primeiros devido à inserção da lógica em seu enredo. A solução de um mistério constitui o cerne desse tipo de narrativa e a lógica entra como instrumento a serviço do investigador, inovando, assim, o modo de se narrar uma história, que, nesse caso, era constituída de uma investigação com vistas à solução de um crime. Sobre a divisão do romance de aventuras, Albuquerque (1979: 3) escreve: A primeira preservou o mesmo espírito, apenas aumentando o campo de ação; a segunda, fez surgir o romance de espionagem, que na verdade já existia, porém não rotulado como tal, pois a espionagem era apenas um detalhe e não o centro de intriga [...], e finalmente, a terceira fase, com o aparecimento do chamado romance policial, onde interveio pela primeira vez, suplantando a força e a razão, o raciocínio lógico. Talvez o termo “romance de mistério” ou, quem sabe, “romance criminal” fosse mais adequado, como defende Albuquerque (1979: 4), a exemplo do que já é praticado pelos franceses que “[...] embora utilizem o título roman policier, designam o romance de aventuras como roman d’action, e aquele em que existe um enigma criminal misterioso como roman de mystère.” Porém, fica evidente que o romance policial segue o modelo do romance de aventuras, no que diz respeito à luta bem versus mal, duas forças obrigatoriamente presentes no gênero policial, representadas pelas figuras do detetive e do criminoso. A essência de um romance policial traduz-se na presença de uma história onde haja um crime a ser solucionado, um criminoso e um 18 detetive que, com o uso da lógica, chegará à solução do mistério. Vale lembrar que a utilização da lógica como elemento principal na solução de um crime não implica a ausência da ação; ela pode, sim, ocorrer, ser intensa, mas não se constituir no fator determinante para a elucidação do crime ou da descoberta do criminoso. Entre o romance de aventuras e o policial existiu um tipo intermediário, chamado de romance sobrenatural ou de horror, que, contudo, não prosperou devido à formula utilizada (elementos sobrenaturais) pelos autores na solução de seus mistérios. Albuquerque explica as exigências do leitor de romances policiais: “A inteligência e o acúmulo de conhecimentos exigiam não só que as estórias tivessem uma base lógica como também que a solução fosse alcançada da mesma forma, ou seja, através do raciocínio e não dos fenômenos sobrenaturais.” (ALBUQUERQUE, 1979: 4). Esse novo tipo de romance ganhou a definição de policial, devido à sua caracterização, a investigação de um crime, cenário onde a figura do policial é quase sempre garantida. Apesar disso, em muitos casos, o posto de investigador, e consequente solucionador do mistério, cabe a outras personagens, como se pode verificar em alguns romances do escritor brasileiro Rubem Fonseca, nos quais o papel de investigador é ocupado pelo advogado Mandrake; ou em Agatha Christie, onde uma simples personagem sem ligação com a polícia ou que não exerça o ofício de investigador, assume este papel. É o que acontece com Miss Jane Marple, menos famosa apenas que o próprio Hercule Poirot. No site da UFPE http://www.cin.ufpe.br/~pmgj/agatha/marple.html (acesso em 02/01/2012), a personagem é assim descrita: A primeira aparição de Miss Marple foi no livro Assassinato na Casa do Pastor em 1930. Ela é uma senhora que vive na vila inglesa de St. Mary Mead. Bem diferente de Poirot, ela não se vangloria de suas deduções, sendo bastante humilde. Em vez de procurar por pistas ela se concentra no instinto e no seu conhecimento sobre a natureza humana. Uma famosa frase de Miss Marple diz o seguinte: “A natureza humana é a mesma em qualquer lugar”. Agatha Christie escreveu uma dúzia de livros de Miss Marple como Um Corpo na Biblioteca, Convite para um Homicídio, Mistério no Caribe, Nemesis, O Caso do Hotel Bertram, Um Crime Adormecido entre outros. 19 A fim de exemplificar a forma como a personagem atua, podemos citar A mão misteriosa, onde Miss Marple investiga a origem de certas cartas injuriosas enviadas a diversas pessoas, provocando, inclusive, um suicídio. Também A testemunha ocular do crime, no qual Elspeth MCGillicuddy, durante uma viagem da Escócia para a Inglaterra, para visitar Miss Marple, enquanto olhava pela janela de seu trem, vê uma mulher ser estrangulada. Apenas Miss Marple acreditará na história contada pela amiga, do aparente “crime perfeito”, com ausência de qualquer evidência de delito, e partirá em busca do rastro do criminoso e de evidências que levem ao corpo. Apesar das especulações sobre a autoria do primeiro romance policial – nomes como o de Sófocles, com seu Édipo Rei, Voltaire com Zadig ou O Destino estiveram entre os cogitados –, tais narrativas não são consideradas ainda romances policiais, embora haja a presença marcante do investigador em ambos os casos. O título de “pai” do romance policial foi atribuído a Edgar Allan Poe, que inaugura o gênero em 1841, com a publicação do conto The Murders in the Rue Morgue (Os Crimes da Rua Morgue), publicado na Graham's Magazine. Poe publicaria, ainda, dois outros romances: The Mystery of Marie Roget (O Mistério de Maria Roget), em 1842, e The Purleined Letter (A Carta Furtada), em 1844. Com esta produção imortalizou a personagem C. Auguste Dupin como o primeiro detetive da história. Mas a inovação de Allan Poe não parou aí. Dupin aparece apenas nos três romances supracitados, com o encargo de investigar os crimes: A primeira, em Os Crimes da Rua Morgue, são crimes de morte violenta, com navalhadas, pancadas, estrangulamento, além de apresentar um lado fantástico e um ser mistério de “quarto fechado”; na segunda, em O Mistério de Maria Roget, um homicídio ocorrido a distância, Poe dá a ideia de como o crime se teria desenrolado e chega a uma solução aparente mais cabível do que a apontada pelas autoridades; finalmente, na terceira, em A Casa Furtada, não há a morte violenta, mas em compensação uma genial estória de um furto admiravelmente solucionado pelo detetive. (ALBUQUERQUE, 1979: 97) 20 Embora, muitas vezes, o crime a ser elucidado seja um assassinato, existem outros tipos de delitos a serem explorados no romance policial, conforme afirma Albuquerque (1979: 97): “Há o crime de morte violenta, há o roubo, o rapto, enfim toda uma série de atos delituosos que já foram explorados por escritores de estórias de mistério”. Em seus romances, Allan Poe procurou explorar o crime nas suas diversas vertentes, o que o que o tornou também precursor na exploração do delito nas suas várias concepções. Albuquerque cita outros autores, que teriam se aventurado pelo gênero, classificando-os como “acidentais”. São exemplos: Dostoievski, Balzac, Victor Hugo e Charles Dickens. Ainda, de acordo com Albuquerque (1979: 8), o modelo deixado por Dickens pode ser considerado como o romance policial perfeito, “pois, inacabado, não chegou a apontar o criminoso. Trata-se de O mistério de Edward Drood”. Depois de Poe, é a vez de Émile Gaboriau trazer a público o segundo grande detetive da literatura: o Inspetor Lecoq, que possuía características da personagem Dupin, de Poe. No entanto, apesar da notoriedade dos dois autores e seus respectivos detetives, aquele que ocuparia o posto de maior detetive da história ainda estava por vir: Sherlock Holmes, criação de Sir Arthur Connan Doyle. Considerado o maior detetive de todos os tempos, Holmes mostrou todas as suas qualidades em quatro romances e cinco livros de contos e arrebatou seus leitores, que chegaram a acreditar que o detetive tivesse realmente existido “enquanto pessoa, e não enquanto criação literária.” (REIMÃO, 1983: 30). Nas citações abaixo, Albuquerque observa que, embora seja característica do detetive o uso do raciocínio na elucidação dos mistérios, isso não ocorre de maneira exclusiva e nem mesmo Holmes escapou a esta regra. Conan Doyle, com Sherlock Holmes criou o mais famoso detetive de todos os tempos, modelo para todos os outros que vieram depois. Porém, até mesmo Doyle, talvez por ter sido também autor de vários romances especificamente de aventuras no sentido clássico, de quando em quando incluía nos romances de Holmes uma parte do que se poderia chamar puramente de aventura, pela ação empregada. 21 Sherlock Holmes, um detetive cerebral não conseguiu fugir de todo à ação, assim como ocorreria mais tarde com Poirot e outros. Em várias proezas vamos encontrar, quase no mesmo plano de importância e lado a lado, a aventura e a solução lógica baseada no raciocínio. (ALBUQUERQUE, 1979: 9) Seja por conta da transição entre o romance de aventuras e o policial, momento vivido pelo próprio Conan Doyle, que foi escritor de ambos os gêneros, seja pelo fato de, como afirma Victor Manuel de Aguiar e Silva em A estrutura do romance (1974: 23): Com efeito, é impossível encontrar um romance concreto que realize de modo puro cada uma das modalidades tipológicas estabelecidas por Wolfgang Kayser, acontecendo também que muitos romances, pela sua riqueza e pela sua complexidade, dificilmente podem ser integrados nesta ou naquela classe. O fato é que a ação, oriunda do romance de aventuras conseguiu, de alguma forma, se manter no romance policial: O herói do romance policial chega à solução pela inteligência, e nunca usando a força e somente a força. Esta, algumas vezes, entra no quadro geral do romance, mas apenas como um detalhe adicional e secundário. A inteligência é tudo ou, pelo menos, o fator principal. (ALBUQUERQUE, 1979: 9) Quando examinamos os romances policiais contemporâneos, observamos que a ação ainda permanece nos enredos. Tomemos como exemplo o romance Il giro di boa, de Andrea Camilleri, no qual o comissário Montalbano consegue solucionar um caso de tráfico de imigrantes, mas acaba atingido por um tiro, evento que, inclusive, influencia o enredo do romance escrito a seguir por Camilleri, La pazienza del ragno, no qual o comissário, por causa do ferimento, tem uma participação diferente daquela do romance anterior. Se no primeiro a ação policial propriamente dita foi necessária para a elucidação dos fatos e perseguição do criminoso, que acabou morto por Montalbano, em La pazienza del ragno o comissário atua de maneira bem diferente, por estar fora de serviço, recuperando-se do tiro recebido. Entretanto, o previsível acontece e sua ausência na investigação do desaparecimento da jovem Susanna Mistretta dura pouco. A fim de ajudar os companheiros que conduzem o inquérito, Montalbano investiga paralelamente o 22 caso: vai ao local em que a jovem desaparecera, analisa as provas, conversa com o pai e o tio da moça, com possíveis testemunhas do sequestro, visita a mãe de Susanna – doente terminal, que perdera o gosto pela vida após um sério desentendimento com seu único irmão. A partir dessas informações, Montalbano passa a tecer, tal qual a aranha, uma teia que o leva a elucidar aquele delito. O autor utiliza a cena da tessitura de uma teia de aranha, em um arbusto, como link para que o comissário pudesse juntar as pistas. Ao observar o trabalho paciente e minucioso da aranha, Montalbano finalmente consegue deduzir que a ação de Susanna Mistretta fora semelhante àquela. Assistir dioturnamente a morte lenta e gradual de sua mãe lhe havia dado o tempo necessário para planejar, organizar e, finalmente, pôr em prática seu plano de vingança contra o tio materno, o verdadeiro culpado pelo infortúnio de sua mãe e, por conseqüência, o seu próprio infortúnio. Executado seu plano, ela conseguira destruir a carreira política do tio e, ainda, reaver o dinheiro que a mãe lhe emprestara, e que havia sido o estopim da tragédia familiar. Esses romances exemplificam a capacidade de Montalbano recorrer à ação, utilizando a força física, quando necessário, e, principalmente, seu poder de dedução. Sendo um detetive cerebral, ele consegue solucionar o caso de La pazienza del Ragno apenas com a análise dos fatos, elucidando o crime, ou melhor, a sua inexistência. Sobre a definição do romance policial, iniciamos com a afirmação de Todorov, que teoriza sobre o gênero: O romance policial tem suas normas, fazer “melhor” do que elas exigem é ao mesmo tempo fazer pior: quem quiser “embelezar” o romance policial, faz “literatura” e não romance policial. O romance policial por excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas aquele que a elas se conforma: No Orchids for Miss Blandish é uma encarnação do gênero, não uma superação. (TODOROV, 2003: 65) 23 Todorov faz distinção entre romance policial e literatura, ou “grande” arte e a arte “popular”: Um fato pouco notado e cujas consequências afetam todas as categorias estéticas é o seguinte: estamos hoje em presença de um corte entre suas duas manifestações essenciais; não existe mais uma única norma estética em nossa sociedade, mas duas; não se pode medir com as mesmas medidas a “grande” arte e a arte “popular”. (TODOROV, 2003: 65) Albuquerque buscou sintetizar uma definição para o gênero: O romance policial pode ser definido? Obter uma definição que agrade a todos e que realmente dê uma ideia do que ele vem a ser é uma tarefa bastante difícil. Evidentemente, o romance policial diferencia-se muito dos outros gêneros literários. É um romance que, oriundo do romance de aventuras, tomou novos rumos. Mas que rumos terão sido esses? (ALBUQUERQUE, 1979: 13) Em relação à crítica, cita a existência de dois grupos: Os críticos dividem-se em dois campos: há os que negam o romance policial como obra literária e há aqueles que, ao contrário, chegam a considerá-lo uma das melhores formas do romance. Haja vista que, para alguns críticos, Crime e Castigo (Prestuplenie i nakazanie) de Dostoievski e o Santuário (Sanctuary) de Willian Faulkner – duas obras primas – são romances policiais. (ALBUQUERQUE, 1979: 14) A maioria dos autores e obras policiais encontra-se excluída do cânone literário. Todorov afirma que a “grande obra” é a que sempre transgride as regras já existentes, criando novas: Uma dificuldade adicional vem se somar ao estudo dos gêneros devido ao caráter específico de toda norma estética. A grande obra de certa forma cria um novo gênero, e ao mesmo tempo transgride as regras do gênero válidas até então. O gênero da Cartuxa de Parma, ou seja, a norma à qual esse romance se refere, não é o romance francês do começo do século XIX; é o gênero “romance stendhaliano” que é criado precisamente por esta obra, e por algumas outras. Poder-se ia dizer que todo grande livro estabelece a existência de dois gêneros, a realidade de duas normas: a do gênero que ele transgride, que predominava na literatura precedente, e a do gênero que ele cria. (TODOROV, 2003: 65) 24 Há, também, outro nome a ser lembrado na evolução, ou história do romance policial: Edgar Wallace. Albuquerque (1979: 15) ressalta a importância do romance policial: Sua importância é tão grande que o bom romance policial não se limita a ser apenas a procura e a solução de um determinado problema. Ele não é, como querem alguns, um simples jogo de palavras cruzadas em que, encontradas as chaves, qualquer um pode chegar à solução. Todos os ingredientes clássicos do romance em geral, em todas as suas modalidades, são encontradas nas estórias policiais de hoje. O autor afirma que Edgard Wallace é pouco lembrado pela crítica, que não dá a devida importância à sua obra. Compara o ocorrido a Wallace com o que aconteceu a Dumas que, por causa de sua extensa produção literária, teve seu valor pouco reconhecido. Embora não seja nossa intenção comparar Andrea Camilleri a Dumas, ou a qualquer outro autor, observa-se que o mesmo tipo de julgamento que hoje sofre o nosso autor já foi aplicado ao próprio Alexandre Dumas. Com o crescimento do romance policial como gênero, diversos autores criaram regras a serem seguidas na concepção de um romance policial. Poe apresentou seis, Narcejac quatro, Ellery Queen possui uma síntese do que seria necessário em um bom romance policial e Van Dine estabeleceu vinte regras que deveriam ser observadas por qualquer escritor do gênero. Não há consenso sobre a relevância ou não de tais técnicas; para alguns estudiosos do assunto, elas não são relevantes. Albuquerque afirma que alguns autores tentaram uma ‘receita’ para escrever suas histórias de mistério, porém declara não crer em tais receitas, “uma vez que todas pecam em sua base; o que importa é que o autor seja realmente um romancista” (1979: 18). Pegando o gancho da citação acima, voltamos a Vitor Manuel de Aguiar e Silva, que estabelece uma definição para romance: O romance, como toda a narrativa, evoca “um mundo concebido como real, material e espiritual, situado num espaço determinado, num tempo determinado, reflectido na maioria das vezes num espírito determinado que, diferentemente da poesia, tanto pode 25 ser o de uma ou de várias personagens como o do narrador. (AGUIAR E SILVA, 1974: 41) A partir dessa definição, afirmamos que Camilleri, autor de uma narrativa policial é um grande romancista. Albuquerque afirma que os autores de romances que não o policial têm a liberdade de imaginar, de expressar, podendo mudar a trama, dando ao romance um fim inesperado. Já o romancista policial não pode fazer o mesmo. Aquele que escreve um romance policial deve, além dos elementos clássicos de um romance, inserir elementos que estimulem o leitor, evitando assim que a leitura se transforme numa atividade enfadonha, uma vez que a solução de um mistério é quase sempre detalhadamente descrita no romance. A respeito da crítica sobre este tipo de romance, escreve Albuquerque (1979: 14): “Os críticos dividem-se em dois campos: há os que negam o romance policial como obra literária e há aqueles que, ao contrário, chegam a considerá-lo uma das melhores formas de romance.” Independentemente do que dizem os críticos literários, o romance policial é um gênero bem-sucedido, que surge somente em 1841, com Poe, ou seja, cerca de dois séculos após a ascensão do romance como gênero literário, conforme afirma Aguiar e Silva (1974: 12): “É no século XVII, porém, sob o signo do barroco, que o romance conhece uma ploriferação extraordinária”. Sandra Reimão escreve que o nascimento do gênero policial se deu em um momento histórico e social bastante propício, no século XIX, com os jornais populares de grande tiragem. E é justamente nos jornais que surgem os primeiros espaços para a divulgação de narrativas: Esses jornais em algumas seções criam e valorizam o chamado “fato diverso”: dramas individuais, via de regra banais, ou então crimes raros e aparentemente inexplicáveis. O desafio do mistério aliado a um certo prazer mórbido na desgraça alheia e ao sentimento de justiça violada que requer então reparos, são basicamente os elementos geradores da atração e do prazer na leitura deste tipo de narrativa. 26 Satisfazendo esses prazeres e, ao mesmo tempo, habituando certo tipo de público à leitura regular dessas narrativas, esses jornais criam condições para o surgimento e divulgação de narrativas outras que de alguma forma lidam, trabalham, se articulam sobre os mesmos elementos ou elementos semelhantes aos que são articulados por estas narrativas de jornais populares, entre elas o romance policial. (REIMÃO, 1983: 12-13) Outro fato importante, e que pode ter contribuído decisivamente para que o romance policial seja assim definido, é que a polícia como instituição, assim como o gênero policial, tenha surgido também no século XIX. Desde suas origens até a atualidade, assistimos ao desenvolvimento do romance policial, que já passou por diversas transformações, sendo ajustado aos moldes de sociedades, autores e até mesmo modismos. O Mistério foi o primeiro romance policial brasileiro, tendo seu primeiro capítulo publicado no dia 20 de Março de 1920, no jornal A Folha. Foi composto de 47 capítulos, escritos em esquema de revezamento pelos escritores Afrânio Peixoto, Viriato Correia, Medeiros de Albuquerque – que utilizava o pseudônimo & – e Coelho Neto. A partir de então, os romances policiais conquistaram seu espaço no Brasil. Citamos autores do gênero, ao longo dos anos, Jerônimo Monteiro, Aníbal Costa, Lúcia Machado de Almeida, Maria Alice Barroso, Bariani Ortêncio, dentre outros. Nos dias atuais, escritores como Patrícia Melo (Assis, SP, 1962), Luiz Alfredo Garcia-Rosa (Rio de Janeiro, 1936) e Rubem Fonseca (Juiz de Fora, MG, 1925) são destaques no cenário nacional e têm suas obras traduzidas em diversas línguas. Rubem Fonseca, autor cult também na França, Portugal e México, já teve vários de seus romances transformados em filmes ou em minisséries para a “telinha”. Em 2003, o autor de Agosto foi contemplado com o Prêmio Camões1. Patrícia Melo também já teve algumas de suas obras transformadas em imagem e, com o romance O matador, foi indicada, em 1996, para o Prix Femina, um dos mais prestigiosos da França, e conquistou os prêmios 1 É considerado o mais importante prêmio literário outorgado a um escritor lusófono pelo conjunto de sua obra. É atribuído anualmente pelos governos do Brasil e de Portugal (no Brasil é conferido pela Fundação Biblioteca Nacional) e equivale ao Prêmio Nobel de Literatura para os países lusófonos. 27 Deux Océans (França, 1996) e Deutscher Krimi Preis (Alemanha, 1998). GarciaRoza, cujo romance O silêncio da chuva ganhou o prêmio Nestlé, em 1996, e o Jabuti, em 1997, imortalizou o detetive Espinosa. Espinosa, este é o gancho que utilizaremos para introduzir a figura que representa um dos pilares que sustentam o romance policial, o detetive. Ao tratarmos de narrativa policial, não podemos prescindir dessa personagem, que é fundamental para o desenvolvimento e conclusão do romance, uma vez que o investigador é o elo entre o crime cometido e a descoberta do culpado. Sabemos que, embora o policial muitas vezes ocupe esse lugar, não é necessário que o detetive pertença a uma corporação policial; o posto pode ser ocupado também por um advogado, um cidadão comum, uma pessoa qualquer. Podemos exemplificar a figura do detetive com a personagem Miss Jane Marple, célebre personagem de Agatha Christie, ou o advogado Mandrake, protagonista de alguns romances de Rubem Fonseca. O detetive é aquele que será capaz de unir os elementos resultantes da investigação e colocá-los de modo que seja possível a elucidação do crime, o deslindamento do mistério, encontrando o culpado pela infração. O primeiro detetive de romances policiais da história é Dupin, de Edgar Allan Poe, como já assinalamos. Albuquerque ressalta as diferenças entre esse e os demais detetives, como Holmes: Que fabulosa diferença entre o Dupin, de Edgar Allan Poe, ou o Sherlock Holmes de Conan Doyle de ontem, dos Chester Drym, Shell Scott e outros dos dias de hoje! Frutos da época em que foram criados, os primeiros refletem em suas atitudes e em seus métodos o fim do século passado, enquanto os últimos o que há de pior na agitada, nervosa e tumultuosa vida de nossos dias (1979: 37) Auguste Dupin aparece em apenas três romances e, em cada um deles, desvenda um crime diferente. Transformou-se em modelo a ser seguido pelos romancistas que o sucederiam. 28 O Monsieur Lecoq, de Émile Gaboriau, surgiu de maneira um pouco diferente de Dupin. No romance L’affaire Lerouge (1863), o papel de detetive coube ao policial Tabaret que, embora dotado de diversas qualidades, não alcançou sucesso. Lecoq teve um papel de menor importância nesse romance, entretanto, sua participação em outras obras do autor lhe rendeu um lugar entre os grandes detetives do gênero policial. De certa forma, Lecoq se antecipou a Sherlock Holmes, visto que foi ele, e não Holmes, o primeiro detetive a usar a química na elucidação de um crime (ALBUQUERQUE,1979: 43) Após Lecoq, foi a vez de entrar em cena Sherlock Holmes, o detetive mais famoso de todos os tempos. Naturalmente, na criação de Holmes, Conan Doyle utilizou traços dos dois mais famosos detetives que o antecederam. Em Albuquerque encontram-se as impressões de Doyle sobre sua personagem: Gaboriau seduziu-me pela elegante maneira com que compunha as peças de suas intrigas, e o magistral detetive de Poe, M. Dupin, foi, desde minha infância, um dos meus heróis preferidos. Mas poderia eu acrescentar alguma coisa de minha própria criação? Lembrei-me de meu antigo mestre, Joe Bell, sua figura de águia, suas maneiras bizarras, seu estranho dom de notar certos detalhes. Se ele fosse detetive, chegaria certamente a fazer desse exercício cativante, mas sem um fim preciso, algo de semelhante a uma ciência exata... como chamaria meu personagem? Possuo ainda a folha de um caderno de notas trazendo diversos nomes entre os quais eu hesitava... A princípio fixei-me em Sherringford Holmes, depois em Sherlock Holmes. Ele não poderia contar suas próprias aventuras. Era-lhe necessário, portanto, um camarada banal, comum, que o valorizasse por contraste; um nome terno e discreto para esse personagem sem brilho: Watson, serviria. (ALBUQUERQUE, 1979: 44-5) Através das palavras de Conan Doyle descobrimos algumas das marcantes características de Holmes, a criação de seu nome, as referências que o autor utilizou na composição de sua personagem e, ainda, a relevância inicial de Watson nas tramas protagonizadas por Holmes. Tal como aconteceu com os detetives que o antecederam, Holmes passou a ser exemplo a ser seguido pelos que viriam depois, mas Sherlock obteve tal força a ponto de sobressair-se aos demais e isolar-se no lugar mais alto das referências no romance policial: 29 Misto de Dupin e Lecoq, com um adendo do professor Bell, o detetive iria transformar-se no modelo de todos os outros que, surgiriam. Ou pelo menos de quase todos, pois mesmo nos ferozes e ultra-amorosos investigadores da moderna ficção norteamericana, ou melhor, de parte dela, vamos encontrar, se procurarmos bem, algo de Holmes. (ALBUQUERQUE, 1979: 45) Holmes, o detetive “cerebral, frio e calculista”, conforme afirma Albuquerque, foi personagem central em quatro romances e cinco coletâneas de contos, o suficiente para perpetuá-lo. Apesar da caracterização puramente racional de Holmes, a ação oriunda dos romances de aventuras ainda conseguiu permanecer nos romances por ele protagonizados, o que talvez ajude a explicar o sucesso obtido pela personagem (ALBUQUERQUE,1979: 47): Por que então esse sucesso que até hoje perdura, tornando-o inconteste de todos os detetives cerebrais? Talvez tenha sido porque Conan Doyle, ao escrever seus trabalhos, publicados como alguns de Poe e Gaboriau em folhetins, notadamente nos primeiros como o já citado Um estudo em vermelho e O sinal dos quatro (The sign of the four) – incluía uma grande parte de aventura, aliada, é claro, às sensacionais deduções do detetive. A fama de Holmes rompeu barreiras e perdura até os dias de hoje, a exemplo do que acontece com o gênero policial, amplamente utilizado em séries televisivas e filmes. Um exemplo é o seriado norte-americano House M.D. no qual o protagonista, Gregory House, médico, utiliza a lógica para resolver os mistérios médicos e diagnosticar seus pacientes. As semelhanças entre Holmes e House são perceptíveis: ambos utilizam a lógica e a observação na solução dos mistérios. Assim como Holmes, o médico é caracterizado como frio e calculista, que não gosta do contato com os pacientes, focando toda a sua atenção apenas nos sintomas, a fim de, com precisão, elaborar seu diagnóstico. Além disso, ambos são viciados: Holmes em cocaína; House em Vicodim, um opióide. Também, ambos possuem aptidões musicais. O jornal USA TODAY publicou, em 2004, um artigo em que, entre outras características, deixa entrever a influência de Sherlock Holmes na composição do doutor House: “Shore says it’s good training for an offbeat doctor on a show with 30 comedy touches, including House’s Sherlock Holmesian diagnoses of clinic patients”. 23 Temos, então, três detetives principais nessa que podemos denominar primeira fase do romance policial, quando o gênero parece consolidar suas estruturas, ao mesmo tempo em que esses detetives alcançaram a notoriedade e passaram a ser exemplo para os que os sucederiam. Chamamos essa de primeira fase porque, após Holmes, surgiram muitos outros tipos de detetives: “Homens, mulheres e até mesmo crianças. Porém, anos após o desaparecimento de Holmes, o grande detetive que veio marcar época, um investigador puramente cerebral foi Hercule Poirot, o pequeno, mas genial belga criado por Agatha Christie”. (ALBUQUERQUE, 1979: 54) Poirot, um detetive avesso a qualquer tipo de violência, utiliza somente o raciocínio e a lógica na elucidação dos crimes. Assim como Dupin, Lecoq e Holmes representam a primeira fase do romance policial, Poirot “abre” a segunda fase do gênero, na opinião de Albuquerque (1979: 56): Cremos que Poirot encarna a segunda etapa do romance policial, tão importante quanto a primeira, que teve em Sherlock Holmes a sua maior figura. Hercule seria uma espécie de sublimação da criação de Conan Doyle, possuindo todas as suas virtudes sem ter os seus defeitos. Poirot esteve em foco durante décadas, de 1920 a 1969. Sua “morte literária” acontece oficialmente em 1975, com a publicação do romance Cai o pano. Além de Poirot, outro detetive ganhou notoriedade na chamada segunda fase do romance policial: Nero Wolfe, criação do escritor Rex Stout. Agatha Cristie e Rex Stout foram os dois grandes nomes da segunda fase do romance policial e o fecharam, conforme afirma Albuquerque. Aliás, é impossível falar em romance policial sem citar o nome de Agatha Christie, a “dama do crime”. Nesse universo até então dominado por autores do 2 http://www.usatoday.com/life/television/news/2004-11-15-hugh-laurie_x.htm 3 "Shore diz que é um bom treino para o médico fora dos padrões em um show com toques de comédia, incluindo os Sherlock Holmesian diagnósticos de House com os pacientes da clínica”. 31 sexo masculino, Christie soube conquistar seu lugar graças a seu estilo, sua extensa produção e dois dos detetives mais famosos de todos os tempos: Hercule Poirot e Miss Jane Marple, “aquela gentil e pacata, refinada, mas simples, velhinha inglesa, brilhante e certeira quando se trata de conhecer a natureza humana e desvendar suas ações” (REIMÃO, 1983:43). Não se pode falar em romance policial e omitir essas duas figuras femininas tão marcantes nesse universo. Porém, nem todas as vertentes do policial obtiveram êxito ou foram qualificados como “boa literatura” do gênero. O romance policial acompanhou a evolução dos tempos, e também mudou, com o surgimento de novos heróis, a exemplo de Mike Hammer. Porém, essa personagem não foi bem aceita e comparada aos clássicos, qualificada como inferior (ALBUQUERQUE, 1979:62). Partindo do nada, ou melhor, partindo do romance de aventuras de boa qualidade aproveitado por Allan Poe, afirmado por Gaboriau e Conan Doyle, e seguido por tantos outros, esse romance nos Estados Unidos e também na França – os dois maiores centros – Baixa a um nível de péssima qualidade. Embora durante muito tempo o detetive ideal devesse ser uma pessoa focada na elucidação do mistério, revelando o mínimo possível sobre sua vida pessoal e evitando tratar de seus envolvimentos amorosos ou de assuntos que o desviassem de sua função primordial, observa-se que vários detetives recebem uma caracterização mais profunda, que vai além do indivíduo atrás de respostas. Dentre os vários exemplos existentes, citamos o Comissário Montalbano, de Andrea Camilleri, e o Comissário Mattos, de Rubem Fonseca. Quando analisamos, por exemplo, as regras de S.S. Van Dine, que delimitavam os contornos de um romance policial ideal, observamos que o detetive se caracteriza como alguém que não será estudado a fundo, pois suas características pessoais não são importantes. Sua função é investigar o crime, simplesmente. O detetive recebe uma descrição o mais enxuta possível e não se envolve emocionalmente com a situação, sob pena de arruinar a investigação. Os detetives contemporâneos já não possuem essas características. Se continuarmos a analisar a figura dos dois investigadores citados anteriormente, 32 Montalbano e Mattos, constataremos que muito da narrativa trata exatamente da vida pessoal de ambos. Em Agosto (1993), Rubem Fonseca apresenta o detetive como um homem fisicamente debilitado e que vive uma série de conflitos emocionais. Durante todo o romance, a história pessoal de Mattos se mistura à trama. Ele cumpre seu papel na trama e, mesmo afastado da polícia e sofrendo com sua doença, uma grave úlcera duodenal, descobre o assassino, deslinda o crime, contudo não tem a chance de fazer justiça, visto que ele mesmo, e Salete, sua namorada, são assassinados por Chicão, o criminoso. Mas, sua morte era mesmo iminente, devido a seu grave problema de saúde. Então, ser assassinado acaba por conferir maior importância ao inevitável evento, uma vez que o detetive tem uma morte digna, ao menos no âmbito narrativo, pois conseguira descobrir a verdade, embora tenha se tornado mais uma vítima do executor e dos mandantes do assassinato investigado por Mattos. Diferentemente do comissário Mattos, Salvo Montalbano, o comissário criado por Camilleri, protagoniza uma série de narrativas, iniciadas em 1994, com a publicação de La forma dell’acqua, totalizando, até 2009, com a publicação de Il gioco degli specchi, 22 livros, entre romances e livros de contos. Além de ser um investigador como Holmes e Poirot, apresentando aguda capacidade de raciocínio e dedução, como se verifica em La pazienza del ragno. Montalbano também é dado à ação, como acontece em Il giro di boa, quando sai ferido. Seu lado humano também é explorado: é um amante da cozinha siciliana e mantém um longo relacionamento com Lívia, sua eterna noiva, que vive em Genova e sempre vai visitá-lo. Outro fato importante de sua vida, e que o marca profundamente, é a morte da mãe, quando ele era ainda muito pequeno. A perda da mãe é bem trabalhada em Il ladro di merendine, romance no qual Montalbano conhece François, um menino cuja mãe tinha sido assassinada e que o comissário pretendia adotar juntamente com Lívia. Esse fato desdobra-se nos romances subsequentes, possibilitando ao leitor acompanhar a tentativa e o fracasso de Montalbano, que não consegue formar sua própria família. É um detetive brilhante, no entanto não consegue obter o mesmo êxito em sua vida pessoal. 33 O autor faz uso de todas as faces da vida da personagem na composição das obras, o que aumenta o interesse do leitor, aproximando-o do detetive. O sucesso alcançado por Camilleri é expressivo. Seus livros têm sido traduzidos para diversas línguas e toda a série de Montalbano foi transformada em filmes televisivos, produzidos e exibidos pela RAI. A vida transformada em ficção, a forma como um detetive consegue chegar ao criminoso, atrai não apenas leitores, mas também espectadores, que consomem os seriados e os filmes do gênero. Seriados como o norte-americano CSI fazem tanto sucesso, que possuem desdobramentos como CSI New York, CSI Miami e CSI Las Vegas, onde existe sempre um grupo de detetives. O líder deles sempre é o mais cerebral, ademais, e as tecnologias de investigação são amplamente utilizadas, como exames laboratoriais e programas de computador, uma evolução à técnica inaugurada por Lecoq, lá nos primórdios do policial. Tal evolução é perfeitamente explicável pela própria evolução do homem e das sociedades. Após nossa breve apresentação do surgimento e ascensão do romance policial, dedicaremos o próximo item ao giallo na Itália. 1.2 As nuanças do giallo na Itália: escritores em relevo Romance de aventuras, romance policial, giallo na Itália. Embora a Inglaterra, os Estados Unidos e a França sejam os países que possuem maior tradição em romances policiais, com escritores de reconhecimento mundial como Conan Doyle, Agatha Christie, Charles Dickens, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, é um fato concreto que esse gênero tem atravessado fronteiras continentais e culturais. O Brasil, por exemplo, cuja publicação de seu primeiro romance – O filho do pescador (1843), de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa –, foi bastante tardia em relação aos países supracitados, possui um considerável grupo de romancistas que se destacam pela produção de romances policiais. 34 Dentre eles, referenciamos, novamente, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Patricia Melo, Rubem Fonseca e acrescentamos P.D. James. Cléber Eduardo publicou uma matéria na revista Época Online, na qual se encontram dados sobre as editoras que possuem selos específicos para a publicação de romances e se aponta o êxito que vem sendo obtido pelos escritores brasileiros: A Coleção Negra, da Record, editou três autores brasileiros: Flávio Moreira da Costa, com Modelo para Morrer, Rubens Figueiredo, com Essa Maldita Farinha, e Tabajara Ruas, com A Região Submersa. Pelo menos outros três já estão confirmados para este ano, entre os quais o romance de estréia do compositor e cronista Aldir Blanc, cuja trama se desenrola no bairro carioca da Tijuca, uma das paixões do autor. “Policial é um gênero emergente no Brasil”, avalia Luciana Villas-Boas, da editora Record. “Supunha-se que encalhavam, mas provamos o contrário.” A Companhia das Letras também criou uma série para o mundo do crime, com edições em formato diferenciado, e outra chamada Literatura e Morte, composta de histórias fictícias de celebridades literárias. Alguns autores brasileiros, como Tony Bellotto (Bellini e a Esfinge), Patrícia Melo (O Matador) e Rubem Fonseca (O Doente Molière), vêm tendo sucesso superior ao obtido pelas estrelas estrangeiras da editora. Em setembro deve sair O Inferno, novo romance policial de Patrícia Melo.4 O artigo traz ainda uma possível explicação sobre o desenvolvimento tardio do gênero em nosso país: “O gênero policial era considerado de segunda categoria no Brasil, e isso contribuiu para não se desenvolver”, afirma Luiz Schwarcz, da Companhia. “Essa visão mudou de alguns anos para cá. Diversão não é incompatível com qualidade literária.”5 Conforme podemos observar, assim como acontece na Itália, o gênero policial, no Brasil, também sofria a classificação de “segunda categoria”. No entanto, apesar de, na península italiana, ainda não terem ascendido à “primeira categoria”, os romances policiais representam um verdadeiro sucesso editorial, com o crescente interesse por parte dos leitores. 4 5 http://epoca.globo.com/edic/20000724/cult1a.htm http://epoca.globo.com/edic/20000724/cult1a.htm 35 Na Itália, o romance policial (poliziesco) é mais conhecido como giallo, pelo motivo que a seguir explicamos. Maurizio Pistelli, em Un secolo in Giallo, trata da “pré-história”, ou seja, do surgimento do romance policial na Itália: La cosidetta “preistoria” del giallo italiano si può orientativamente far coincidere con un periodo cronologico compreso tra la seconda metà dell’Ottocento e il terzo decennio del secolo successivo. Mentre la critica è pressoché unanime nell’indicare il 1929 come l’anno nel quale, con l’inizio delle pubblicazioni della celebre collana de “I Libri Gialli” Mondadori, nasce “ufficialmente” in Italia il poliziesco, non appare altretanto facile individuare a ritroso la data precisa in cui il mistero, il delitto e l’indagine cominciarono unitamente a diffondersi nella nostra narrattiva. (PISTELLI, 2006: 97)6 Embora haja consenso sobre a “data de nascimento” do romance policial na Itália, a mesma precisão não se pode atribuir à introdução e difusão de elementos como o mistério, o delito e a investigação na narrativa, que, naturalmente, não possui uma delimitação tão precisa e teria ocorrido entre 1850 e 1930, aproximadamente. Além disso, o giallo teria ligação direta com o processo de industrialização, bem como o desenvolvimento e crescimento das cidades, o que passou a ser retratado a partir de 1841, data do lançamento do primeiro romance policial no Ocidente, The murders in the rue Morgue, de Edgard Allan Poe. A esse respeito, Maurizio Pistelli (2006: 4) declara: Recenti saggi critici hanno giustamente evidenziato come il contesto storico e culturale della seconda metà dell’Ottocento – caratterizzato dal rapido sviluppo della civiltà industriale, dalla costituzione delle moderne metropoli e della civiltà industriale, dalla diffusione del positivismo scientifico, che propone l’osservazione analitica della società esaltando il valore dei procedimenti logici come unici strumenti di approccio alla realtà – 6 A chamada "pré-história" do romance policial italiano, a título de orientação, se pode fazer coincidir com o período cronológico compreendido entre a segunda metade dos Oitocentos e o terceiro decênio do século seguinte. Enquanto a crítica é quase unânime ao indicar 1929 como o ano no qual, com o início das publicações da célebre coleção de "I Libri Gialli" Mondadori, nasce "oficialmente", na Itália, o policial, não parece fácil precisar a data em que o mistério, o delito e a investigação começaram, conjuntamente, a se difundir em nossa narrativa. (Tradução da autora) 36 sia considerare elemento fondamentale nell’affermazione del giallo, sia in Italia che naturalmente all’estero.7 Vale ainda ressaltar a contribuição literária de Francesco Mastriani, reconhecido como o intérprete italiano da obra de Eugène Sue, escritor francês, notabilizado por seus romances de mistério, moda literária que vigorou a partir da metade do século XIX. Os “misteri”, ou mistérios, afrontavam o tema da denúncia social, procurando retratar a realidade com toda a sua dramaticidade e tendo como ambiente as metrópoles, onde ocorriam crimes, envoltos em tramas obscuras e misteriosas, como relata Pistelli. Os romances mais prestigiados do napolitano Francesco Mastriani são La cieca di Sorrento (1852), que obteve grande sucesso, e Il mio cadavere, (1853), ao qual a crítica atribui um valor histórico importante, considerando-o o primeiro romance policial italiano. Ambos os romances citados foram escritos antes da Unificação da Itália. Além de ser o primeiro romance policial nacional, Il mio cadavere possui em sua tessitura as teorias da ciência moderna, segundo Pistelli (2006: 7): Ne Il mio cadavere lo scrittore napoletano inserisce infatti riferimenti espliciti – ampliati con note a piè pagina – a procedimenti scientifici relativi ad esempio alle modalità di accertamento di un decesso o di imbalsamazione del corpo umano.8 O estilo do autor sofreu mudanças com o passar do tempo. Os romances escritos após a Unificação da Itália, como, por exemplo, Le ombre, lavoro e miseria (1868) e Il materialista ovvero I misteri della scienza (1896) apresentam 7 Recentes ensaios críticos evidenciaram como o contexto histórico-cultural da segunda metade do século XIX – caracterizado pelo rápido desenvolvimento da civilização industrial, pela constituição das modernas metrópoles e pela difusão do positivismo científico, que propõe a observação analítica da sociedade exaltando o valor dos procedimentos lógicos como únicos instrumentos de abordagem da realidade – seja considerar elemento fundamental na afirmação do giallo, na Itália e, naturalmente, no exterior. (Tradução da autora) 8 Em O meu cadáver o escritor napolitano insere, de fato, referências explícitas – ampliadas com notas de rodapé – a procedimentos científicos relativos, por exemplo, às investigação de um falecimento ou ao embalsamamento do corpo humano. (Tradução da autora) 37 mudanças que vão desde a linguagem das personagens, até a própria descrição das cidades, que passaram a ser analisadas de forma mais crítica, tendo seus males e problemas evidenciados. Os problemas enfrentados pelas cidades passaram a destacar-se na trama: a máfia, a exploração do trabalho humano, a violência explícita nas localidades mais pobres, dentre outros. Essa literatura de denúncia conferiu a Mastriani sucesso de público, o que demandou novas edições de seus romances, fazendo que seus livros tocassem em um tema histórico de relevância para a Itália: a questão do Mezzogiorno. L’importanza di tali romanzi viene ad accrescersi in considerazione del fatto che sono recepiti, soprattutto nel mezzogiorno d’Italia, come una delle risposte più immediate all’acceso dibattito sulla “questione meridionale”, nonchè alla sentita esigenza di una narrativa d’impegno civile. (PISTELLI, 2006:7)9 Os primeiros romances policiais foram traduzidos na Itália às vésperas da Unificação. Paralelamente, foram surgindo os primeiros escritores do gênero no país. Até a publicação dos Gialli Mondadori, na Itália se produziu um grande número de romances policiais. O evento de 1929, ou seja, o lançamento da coletânea da editora Mondadori potencializou essa produção, colocando-a em evidência. Porém, como veremos adiante, o fascismo, com seu protecionismo à produção nacional, acabou por prejudicar a expansão do giallo, sobretudo quando comparado aos romances do gênero produzidos pelo mundo, especialmente na França e nos Estados Unidos. O romance policial italiano, ou giallo, como já era conhecido, teve de percorrer um longo caminho, até que pudesse novamente trilhar a estrada do prestígio literário, apesar de os romances contemporâneos ainda estarem submetidos a uma forte crítica, muitas vezes depreciativa, oriunda das narrativas produzidas nos “anos dourados” do giallo. A chegada, na Itália, dos romances de Conan Doyle, protagonizados por Sherlock Holmes, causou impacto na produção nacional italiana. A estréia do detetive em terras italianas, ocorrida em 1895, contribuiu positivamente para o 9 A importância de tais romances vem a aumentar pelo fato que são recebidos, sobretudo no mezzogiorno da Itália, como uma das respostas mais imediatas ao acalorado debate sobre a “questão meridional”, bem como a sentida exigência de uma narrativa de engajamento civil. (Tradução da autora) 38 romance policial que ali se produzia, visto que teve boa aceitação de público e, ainda, passou a ser referência para os escritores nacionais, que deram vida a detetives com características “holmianas”, ou seja, homens esnobes, intelectuais e, sobretudo, investigadores lieti, que investigavam pelo simples prazer de elucidar o mistério. O detetive de Doyle entrou na península itálica através da editora milanesa Verri, e suas atuações passaram a ser publicadas posteriormente em capítulos, no “Domenica del Corriere”. O sucesso de Holmes na Itália foi tamanho, que o público exigiu a republicação, em volumes, dos capítulos já lançados. Ao mesmo tempo, outras editoras procuraram publicar imediatamente os romances que ainda não haviam sido divulgados pelo “Domenica del Corriere”. O termo giallo, palavra que significa amarelo em língua italiana, é usado metonimicamente, substituindo o termo policial. No capítulo “I Libri Gialli” Mondadori, Maurizio Pistelli explica a adoção do termo giallo para designar romance policial na Itália: In Italia l’anno di nascita ufficiale del nuovo genere letterario rimane per molti il 1929, data della prima uscita della famosissima collana mondadoriana, contraddistinta dalle inconfondibili copertine gialle; un colore questo di forte visibilità, passato in seguito a designare, nel nostro paese, cosa unica nel mondo, il poliziesco tout court. (PISTELLI, 2006:97)10 Ou seja, o termo giallo nasceu a partir da coleção de romances policiais lançada pela Arnoldo Mondadori Editore, identificados pela cor da capa, amarela. O primeiro romance da coleção, que teve publicação semanal, foi La strana morte del Signor Benson, de S.S. Van Dine, originalmente publicado em 1926 sob o título The Benson murder Case. A Itália passou, então, a adotar o termo giallo para designar o gênero policial. 10 Na Itália, o ano do nascimento oficial do novo gênero literário é, para muitos, 1929, data da primeira publicação da famosíssima coleção mondadoriana, marcada pelas inconfundíveis capas amarelas; uma cor de forte visibilidade, passando a seguir a designar, no nosso país, coisa única no mundo, o policial tout court. (Tradução da autora) 39 Convém registrar que essa coleção continua a ser publicada até os nossos dias, tendo, atualmente, frequência quinzenal. No entanto, a palavra giallo, amarelo em italiano, ainda é objeto de estudos, que procuram explicar o porquê desta escolha específica. Pistelli argumenta que a explicação apresentada por Loris Rambelli em Storia del giallo italiano seria a mais convincente: In un paragrafo dedicato alla questione, il critico ravennate precisa come in effetti il termine “giallo” sia frutto di una metonimia, dovuta alla consuetudine di molte case editrici – basti pensare alla stessa Mondadori con i suoi libri “verdi” (drammi e segreti della storia) e “azzurri” (narrativa italiana) – di fare ricorso sulle copertine a un colore dominante per caratterizzare e differenziare anche visivamente le varie collane. In Inghilterra, Germania e Stati Uniti inoltre erano già state lanciate sul mercato collezioni di polizieschi aventi come segno cromatico distintivo il giallo; per questo è verossimile (anzi certo, secondo le dichiarazioni di Alberto Tedeschi rilasciate qualche anno più tardi a “Il Cerchio Verde”) che la Mondadori abbia ripreso tale denominazione e colore proprio da queste precedenti iniziative editoriali estere. (PISTELLI, 2006: 97-8)11 Ou seja, além de se tratar de uma forma de diferenciar os romances pertencentes àquele estilo, também seguia uma tendência internacional, já adotada por outros países, para classificar e fazer a distinção dos romances pertencentes ao gênero policial. Outras duas cores foram utilizadas nas capas dos romances como alternativas ao giallo: o rosso (vermelho) e o nero (negro). O vermelho obteve mais destaque e maior representatividade como nos informa Pistelli (2006: 98)12: 11 Em um parágrafo dedicado à questão, o crítico de Ravenna esclarece como o termo "giallo" seja fruto de uma metonímia, devido ao hábito de muitas casas editoras - basta pensar na própria Mondadori com o seu livros "verdes" (dramas e segredos da história) e "azúis" (narrativa italiana) - de utilizar uma cor dominante nas capas como recurso para caracterizar e diferenciar visivelmente as várias coleções. Além disso, na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos já haviam sido lançadas no mercado coleções de romances policiais tendo como sinal cromático distintivo o amarelo: por isso, é verossímil (ou melhor, é certo, segundo as declarações feitas por Alberto Tedeschi, alguns anos depois do "Il Cerchio Verde") que a Mondadori tenha retomado tal denominação e cor dessas iniciativas editoriais estrangeiras. (Tradução da autora) 12 Nos anos que definimos como "pré-história" deste gênero literário, a cor do sangue (o demonstra um excelente estudo de Renzo Cremante) aparece, de fato, com frequência, como possível alternativa ao amarelo. Algumas das coleções italianas que começam a incluir policiais são, não por acaso, diferenciadas justamente 40 Negli anni che abbiamo definito della “preistoria” di questo genere letterario, il colore del sangue (lo demostra un eccellente studio di Renzo Cremante) recorre infatti spesso come possibile variante al giallo. Alcune tra le collezioni italiane che iniziano a includere polizieschi sono non a caso contraddistinte proprio da questo colore: la “Biblioteca Rossa” della Sonzogno (1895); la “Colezione Rossa” di Spioti (1907); “I Libri del Triangolo Rosso” della Atlante di Milano (1931); “I Romanzi Rossi” della Bemporad (1937). Embora tenha tido destaque menor, nero também foi um termo bastante utilizado: Per quanto concerne invece il nero, scelto per l’immediata capacità evocativa di tenebre, mistero, morte, sono da ricordare oltre alla serie simenoniana della Mondadori (i cosiddetti “Libri Neri”) anche altre collane italiane del decennio 1930-40, che fin dal titolo vi fanno esplicito riferimento: “I Romanzi del Gatto Nero” (T.I.P., Torino 1934); "I Gialli del Domino Nero” (Martucci, Milano 1936); “I Gialli del Gufo Nero” (Attualità, Milano 1937); “Collana del Cerchio Nero” (SADEL, Milano 1940). Malgrado tali tentativi, in Italia nessun colore è riuscito mai a detronizzare il primato assoluto del giallo come sinonimo di tutto ciò che ruota intorno a un delitto, a un enigma, a un’indagine di polizia. (PISTELLI, 2006: 97-8)13 Conforme afirmamos acima, o termo giallo passou a designar não mais a cor atribuída às capas dos romances policiais, mas o gênero a que tais romances pertenciam, e, embora as cores vermelha e negra fossem realmente mais representativas, uma vez que a primeira representa o sangue e a segunda evoca o mistério, a morte, estas não foram capazes de enfraquecer ou substituir o amarelo. Pistelli continua tratando do lançamento da coleção Gialli Mondadori, que foi acompanhada de ampla publicidade, com vistas a demonstrar valores como leitura agradável e emocionante, ideal para qualquer hora e para todos os por esta cor: a "Biblioteca Rossa" da Sonzogno (1895); a "Colezione Rossa" di Spioti (1907); "I Libri del Triangolo Rosso" da Atlante de Milão (1931); "I Romanzi Rossi" da Bemporad (1937). (Tradução da autora) 13 No que diz respeito ao negro, escolhido pela capacidade imediata de evocar escuridão, mistério, morte, são memoráveis, além da série simenoniana da Mondadori (os chamados "Libri Neri"), as coleções italianas do decênio 1930-1940, que desde o título fazem referência explícita ao negro: "I Romanzi del Gatto Nero" (T.I.P., Torino 1934); "I Gialli del Dominio Nero" (Martucci, MIlão 1936); "I Gialli del Gufo Nero" (Attualità, MIlão 1937); "Collana del Cerchio Nero" (SADEL, Milão 1940). Apesar de tais tentativas, na Itália, nenhuma cor conseguiu destronar a superioridade absoluta do amarelo como sinônimo de tudo que gira ao redor de um delito, de um enigma, de uma investigação de polícia. (Tradução da autora) 41 públicos, seja em faixa etária, seja em nível cultural. A editora tinha ainda a intenção de ressaltar a qualidade artística das obras: Altro aspetto da non sottovalutare è l’intento, dichiarato dalla stessa casa editrice milanese, di voler offrire una serie di romanzi polizieschi di elevato livello artistico, in modo da poter essere esposti senza temore – grazie anche ad un’elegante veste grafica – sugli scaffali delle biblioteche private degli italiani. Per questo motivo i gialli Mondadori appaiono, almeno in un primo periodo, soltanto in libreria, corredati da lusinghieri giudizi di alcuni noti intellettuali dell’ epoca – come Massimo Bontempelli, Ada Negri, Alfredo Panzini, Cesare Zavattini, Margherita Sarfatti, Antonio Bruers, Luigi Chiarelli, Umberto Fracchia – riportati con enfasi sui rivolti di copertina. (PISTELLI, 2006: 99)14 Observamos, assim, os esforços por parte da editora em promover a imagem positiva da nova coleção. Os gialli foram apresentados como leitura de valor estético, com edição de luxo, apoiados pelos intelectuais de então, vendidos inicialmente apenas em livrarias, a fim de lhes conferir o status necessário para compor às bibliotecas particulares, entre os clássicos da literatura, conforme confirma Pistelli (2006: 99): “L’operazione che si cerca di promuovere è quella evidente di nobilitare la neo-collana e di riflesso tutto il genere giallo, abbattendo i pregiudizi che volevano tali libri necessariamente di infima qualità letteraria”.15 Este, tem sido, aliás, um impasse no que diz respeito ao romance policial, o questionamento da qualidade literária dos romances assim classificados, o valor dado ao público que o consome e a crítica, que atribui pouco valor literário a tais romances, classificando-os como produto puramente comercial. A escolha dos autores que inauguraram a coleção também foi proposital: 14 Outro aspecto que não se pode menosprezar é a intenção, declarada pela própria casa editora milanesa, de querer oferecer uma série de romances policiais de elevado nível artístico, de forma que pudessem ser expostos sem temor - graças também a uma elegante roupagem gráfica - nas estantes das bibliotecas particulares dos italianos. Por este motivo os gialli Mondadori são vendidos, ao menos inicialmente, somente em livrarias, adornados por lisonjeiros pareceres de alguns famosos intelectuais da época - como Massimo Bontempelli, Ada Negri, Alfredo Panzini, Cesare Zavattini, Margherita Sarfatti, Antonio Bruers, Luigi Chiarelli, Umberto Fracchia - referidos com ênfase nas contracapas. (Tradução da autora) 15 A operação que se procura promover é evidente: enobrecer a nova coletânea e, como consequência, todo o gênero giallo, diminuindo os preconceitos em relação àqueles livros, de ínfima qualidade literária. (Tradução da autora) 42 (oltre al critico d’arte, studioso di filosofia e giornalista Willard Huntington Wright, alias S. S. Van Dine, al celeberrimo Edgard Wallace, alla scrittrice di poesie Anne Katharine Green, è esemplare la scelta di alcuni racconti del grande Robert Louis Stevenson, tra cui il già famoso e non inedito Lo strano caso del dottor Jekyll e mister Hyde). (PISTELLI, 2006: 99)16 Os quatro primeiros gialli publicados eram de autores consagrados, o que reforçava a intenção de a editora conferir credibilidade ao romance policial desde o princípio, garantindo, assim, o sucesso e a permanência do novo gênero literário: um gênero popular, quanto a sua abrangência, pois alcançava leitores dos mais diversos gostos, formações, classes sociais e faixas etárias, mas que pudesse ser, também, bem aceito pelas pessoas culturalmente privilegiadas, que, talvez, se interessassem por esse gênero da literatura, consumindo-o e a incorporando-a a seu acervo pessoal, em suas bibliotecas, entre seus clássicos. O sucesso conquistado pelos “Gialli Mondadori” no decorrer dos anos levou a editora a outros empreendimentos, como o que ocorreu em 1931: Il grande favore di pubblico riscosso dalla collana gialla della Mondadori, a partire in particolare dal 1931, spinge la casa edittrice a varare altre iniziative analoghe. Tra le più importanti ecco allora, in ordine cronologico, la pubblicazione del “Supergiallo” (1932-41) – supplemento annuale prima dei “Libri Gialli” poi, dal quinto numero, dei “Gialli Economici” – voluminoso libro in brossura e con costola telata che raccoglie opere inedite di importanti autori, sia italiani che stranieri. (PISTELLI, 2006:104)17 Em 1933, a editora lançou a coleção “I Gialli Economici”, uma nova versão, mais popular, de baixo custo, destinada à venda nas bancas, ao contrário da primeira, lançada em 1929: 16 (além do crítico de arte, estudioso de filosofia e jornalista Willard Huntington Wright, pseudônimo S. S. Van Dine, ao celebérrimo Edgard Wallace, à escritora de poesias Anne Katharine Green, é exemplar a escolha de alguns contos dos grande Robert Louis Stevenson, entre os quais o já famoso e não inédito O estranho caso do doutor Jekyll e senhor Hyde). (Tradução da autora) 17 O grande sucesso de público obtido pela coleção gialla da Mondadori, a partir especialmente de 1931, estimula a editora a lançar outras iniciativas análogas. Entre as mais importantes estão, em ordem cronológica, a publicação do "Supergiallo" (1932-41) - suplemento anual primeiramente dos "Libri Gialli", depois, a partir do quinto número, dos "Gialli Economici" - volumoso livro em brochura, com lombada telada, que reúne obras inéditas de importantes autores, tanto italianos quanto estrangeiros. (Tradução da autora) 43 L’anno successivo viene lanciata una nuova collana a carattere più popolare e avventuroso destinata alle edicole, cioè “I Gialli Economici” (1933-41). Il prezzo scende a due lire, cambia il formato – più grande, simile al “Supergiallo” – ma il risultato è un’edizione ben curata che ricalca l’impostazione grafica della collezione-madre dei “Libri Gialli”. Tale operazione editoriale segna l’ingresso in pianta stabile alla Mondadori del giovanissimo Alberto Tedeschi, in precedenza direttore della “Collezione A. Romanzi Polizieschi e d’Avventura” per conto della milanese ATEM. Inizia così l’avventura straordinaria di un personaggio fondamentale nel prosieguo della storia del poliziesco italiano, al cui nome per cinquant’anni sarà legata la quasi totalità della produzione gialla mondadoriana. (PISTELLI, 2006: 104-05)18 Além dessas coleções, vale ainda destacar a “Serie dei Capolavori”, publicada entre 1937 e 1941, na qual, curiosamente, nenhuma obra de autoria italiana foi inserida. “Il Cerchio Verde” foi outra publicação que circulou entre 1935 e 1937, uma publicação popular, vendida a cinquenta (50) centavos e que continha publicações em diversos formatos e de diversos autores. Porém, se observa que a produção literária nacional não possuía, ainda, prestigio para figurar nos volumes lançados. Sobre a inclusão dos autores italianos de maneira obrigatória, não somente nos Gialli, mas em todas as coleções literárias, citamos ainda Pistelli (2006: 106): È il fascismo, pur in maniera contradditoria, a spingere inizialmente verso il genere poliziesco diversi scrittori italiani. In ossequio all’autarchia mussoliniana, si impone infatti l’obbligo di inserire una quota minima (20%) di autori nazionali in ogni collana edita nel nostro paese.19 Essa nova realidade obriga, então, a produção de novos títulos italianos, impondo condições à Mondadori, que “si vede costretta in tempi brevi a reperire 18 No ano seguinte foi lançada uma nova coleção, mais popular e aventurosa, destinada às bancas, isto é, "I Gialli Economici" (1934-41). O preço cai para duas liras, muda o formato - maior, semelhante ao "Supergiallo" - mas o resultado é uma edição bem cuidada, que copia o projeto gráfico da coleção matriz dos "Libri Gialli". Tal operação editorial marca a entrada na Mondadori do jovem Alberto Tedeschi, anteriormente diretor da "Collezione A. Romanzi Polizieschi e d'Avventura" na milanesa ATEM. Inicia-se, assim, a aventura extraordinária de uma personagem fundamental no prosseguimento da história do policial italiano, cujo nome, por cinquenta anos, estará ligado à quase totalidade da produção gialla mondadoriana. (Tradução da autora) 19 É o fascismo, de maneira contraditória, a empurrar inicialmente para o gênero policial diversos escritores italianos. Em cumprimento à autarquia mussoliniana, se impõe, de fato, a obrigação de se inserir uma cota mínima (20%) de autores nacionais em cada coleção editada no nosso país. (Tradução da autora) 44 un drappello di credibili scrittori autoctoni di polizieschi”. (2006:106). Para Pistelli, essa necessidade urgente em se cumprir o estabelecido pelo protecionismo fascista fez, de fato, que o gênero crescesse, mas em contrapartida prejudicou a qualidade da produção italiana, sobretudo quando comparada aos romances internacionais. Se la politica culturale protezionista del facismo favorisce la crescita del poliziesco italiano è altretanto vero che a distanza di pochi anni si giungerà a porre dei divieti, delle limitazioni così nette e soffocanti alla creatività di questi autori da sconfinare, come vedremo più avanti, quasi nel ridicolo. Logica conseguenza sarà l’allontanamento di molti scrittori da un genere dalle possibilità così limitate e di lì a poco apertamente osteggiato. (PISTELLI, 2006:106)20 As consequências dessa produção em larga escala, a fim de atender às necessidades editoriais – para um público cada vez mais exigente –, e, por conseguinte, considerada “de pouca qualidade” quando comparada à produção internacional, então já consagrada pelo público leitor, talvez seja a explicação pelo pouco prestígio atribuído ao romance policial italiano. Talvez explique as dificuldades que até hoje o gênero enfrenta, apesar de notoriamente apreciado, como é o caso de Andrea Camilleri. Nosso autor já vendeu milhões de exemplares de seu slivros; é citado em inúmeros artigos publicados nas mais diversas mídias; registra a produção de vários filmes baseados em seus romances; conta com sites especializados em tudo o que se refere ao autor, como é o caso do www.vigata.org, criado por iniciativa de seus fãs, e www.andreacamilleri.net. Nas palavras de Pistelli, a síntese das dificuldades enfrentadas pelos romancistas que se dedicam ao policial: Le perduranti difficoltà incontrate dal giallo italiano, nonchè in definitiva la sua incapacità di farsi accettare nel salotto buono delle patrie lettere, trovano comunque un’ulteriore e forse 20 Se a política cultural protecionista do fascismo favorece o crescimento do policial italiano é, entretanto, verdade que em poucos anos se chegará a impor proibições, limitações nítidas e sufocantes à criatividade destes autores para aprisionar, como veremos mais adiante, quase no ridículo. Como consequência lógica haverá o afastamento de muitos escritores de um gênero com possibilidades tão limitadas e, a seguir, abertamente hostilizado. (Tradução da autora) 45 decisiva spiegazione [...] in quella nostra accademica tradizione letteraria, in quella supponenza critica, secondo cui solo la pagina raffinata e “ben scritta” merita di riscuotere consenso e approvazione. (PISTELLI, 2006: 106)21 Nos dias atuais, o quadro referente ao giallo sofreu mudanças. Diversos autores italianos alcançaram sucesso internacional, a exemplo do siciliano Leonardo Sciascia, autor de romances consagrados pela crítica como Il giorno della Civetta, ou de Carlo Lucarelli, autor de Lupo Mannaro e, para não nos alongarmos, Andrea Camilleri, o nosso autor. Luca Crovi, em seu livro Tutti i colori del giallo, trata da questão do sucesso do romance policial e da crítica. Afirma: Eppure, nonostante gli sforzi di decine e decine di autori, le polemiche e le discussioni intorno alla legittimazione nazionale di un genere letterario come il giallo non sembrano ancora del tutto spente a tutt’oggi. Non sono bastate a serdarle i grandi successi in libreria di Camilleri (capace di vendere nel giro di tre anni quasi tre milioni di libri), Lucarelli, Fois, Macchiavelli & Guccini, Ferrandino, Baldini, Rigosi, Pinketts, Scerbanenco, Carlotto. Anzi basterebbe sottolineare che proprio il grande successo di questi narratori moderni ha suscitato un bel polverone da parte di intellettuali togati. (CROVI, 2002: 10-11)22 Embora o romance policial já tenha uma tradição considerável na Itália, registrando um número elevado de escritores bem-sucedidos no gênero, de leitores aficionados, e de vendas que ultrapassam as fronteiras peninsulares, alguns críticos o consideram um gênero inferior, até mesmo nocivo: Solamente due anni fa Eugenio Scalfari intitolava provocatoriamente un suo corsivo Il giallo ha ucciso il romanzo, 21 A longa dificuldade encontrada pelo giallo italiano e a sua incapacidade de se fazer aceitar na sala de visitas das Letras pátria encontram, posteriormente, talvez, uma explicação decisiva [...] naquela nossa acadêmica tradição literária, naquela suposição crítica, segundo a qual só a página refinada e "bem escrita" merece receber consenso e aprovação. (Tradução da autora) 22 Contudo, não obstante os esforços de dezenas e dezenas de autores, as polêmicas e as discussões em torno da legitimação nacional de um gênero literário como o giallo não parecem até hoje totalmente acabadas. Não bastaram para acalmá-las o grande sucesso de venda de Camilleri (capaz de vender no período de três anos quase três milhões de livros), Lucarelli, Fois, Macchiavelli & Guccini, Ferrandino, Baldini, Rigosi, Pinketts, Scerbanenco, Carlotto. Ao contrário, bastaria sublinhar que o grande sucesso desses narradores modernos provocou uma grande nuvem de pó por parte dos intelectuais togados. (Tradução da autora) 46 sottolineando come la letteratura di genere avesse secondo lui impoverito gli argomenti della nostra narrativa contemporanea. E qualche tempo dopo, sempre Scalfari ha persino sostenuto che negli autori italiani di gialli e noir degli ultimi vent’anni l’analisi psicologica dei personaggi è stata sostituita da una serrata sequenza di fatti, gli “esterni” (paesaggi, vedute, ambienti di città e paesi) sono stati di fatto aboliti, il linguaggio si è ristretto a pochi tratti essenziali e ad un numero di parole sufficiente al racconto cronachistico, sfumature, metafore, risonanze semantiche sono state sacrificate alla rapidità necessaria ad incalzare il lettore e tenerlo avvinto pagina dopo pagina allo svolgimento delle vicende narrate”. (CROVI, 2002: 11)23 Embora os dados a que tivemos acesso, durante a realização desta pesquisa, também informem que, de fato, em um período da história italiana, especialmente durante o facismo, quando uma parcela da produção literária publicada deveria ser nacional, os gialli foram considerados de baixa qualidade, em especial quando confrontados com os romances estrangeiros, principalmente os ingleses, que já gozavam de tradição e prestígio. Podemos afirmar, tendo como fonte as mesmas pesquisas, que o giallo italiano não se enquadra nas “infrações” referidas na citação acima. Leonardo Sciascia, siciliano como Andrea Camilleri, é um nome de relevo na história da narrativa policial (giallo) italiana. Sua obra mais conhecida é, provavelmente, Il giorno della Civetta (1961). Sobre as características de sua escrita, citamos um trecho extraído do ensaio entitulado “Leonardo Sciascia e o Romance Policial”, do professor da UNESP Hilário Antonio do Amaral: São dois os aspectos fundamentais do romance policial: a repetitividade e a centrifugação. Valem todos os artifícios literários, mas a estrutura é sempre fixa: um crime divide o tempo em dois e as investigações deverão eliminar essa separação, remendando a trama dos acontecimentos. Nos romances policiais sciascianos não há repetição nem centrifugação, ou seja, o investigador não é sempre o mesmo e são impedidos de reagrupar corretamente as peças do quebra- 23 Há somente dois anos, Eugenio Scalfari intitulava, provocativamente, um artigo seu Il giallo ha ucciso il romanzo, sublinhando como a literatura do gênero havia, segundo ele, empobrecido os argumentos da nossa narrativa contemporânea. E, pouco tempo depois, novamente Scalfari, afirmou que nos autores italianos de gialli e noir dos últimos vinte anos, "a análise psicológica das personagens foi substituída por uma sequência de fatos fechada: os "externos" (paisagens, vistas, ambientes urbanos e de interior) foram abolidos; a linguagem se restringiu a poucos traços essenciais e a um número de palavras suficientes ao relato cronista; nuanças, metáforas, ressonâncias semânticas foram sacrificadas à rapidez necessária para perseguir o leitor e tê-lo preso, página após página, ao desenvolvimento do acontecimento narrado. (Tradução da autora) 47 cabeça, embora saibam fazê-lo. O último capítulo nunca corresponde à peça final do mosaico e a desestruturação/centrifugação provocada pelo delito permanece. Há ainda outra diferença fundamental. O estereótipo do detetive, criado no período positivista é um pseudocientista; já os detetives criados por Sciascia são pseudoliterários e a sociedade vive em contínuo e profundo processo de esfacelamento. (AMARAL, p. 2) “Difesa di un colore” é o título de um artigo apresentado por Andrea Camilleri, em 2003, no congresso “Scrittori e critici a confronto” e disponível no site criado por seus leitores-fãs24, onde o autor discorre sobre a história do giallo, desde a adoção do termo como designador do gênero policial, até a atualidade. Nesse artigo, Camilleri também se refere ao surgimento dos primeiros romances italianos: I primi scrittori italiani a cimentarsi col romanzo poliziesco sono, negli anni che vanno dal 1930 al '35, Edoardo Anton, Guido Cantini, Alessandro De Stefani, Guglielmo Giannini, Giuseppe Romualdi, Vincenzo Tieri, Alessandro Varaldo. Questi autori provengono tutti dal teatro, non dalla narrativa. Perché tanti commediografi? Azzardo una discutibile ipotesi. La scrittura drammaturgica per sua stessa natura non può abbandonarsi alla divagazione o all'indugio su un particolare marginale, pena la caduta della tensione drammatica. Bene, allora si credeva che un buon romanzo giallo dovesse tirare dritto al suo scopo, che era quello di proporre un delitto e arrivare il più rapidamente possibile alla soluzione.25 Camilleri, na sequência de seu artigo, refere-se aos dois escritores que surgem após o longo período de obscuridade enfrentado pelo gênero, devido à baixa qualidade dos romances, inaugurando um novo tempo para esse tipo de produção literária: La verità è che la rinascita del romanzo giallo italiano ha due date ben precise. Il 1957, quando Carlo Emilio Gadda pubblica in volume "Quer pasticciaccio brutto de via Merulana" (che era già 24 www.vigata.org e http://scerbanencoscrive.forumcommunity.net/?t=35448904 25 Idem. Os primeiros escritores italianos a arriscar-se no romance policial, nos anos que vão de 1930 a 1935, são Edoardo Anton, Guido Cantini, Alessandro De Stefani, Guglielmo Giannini, Giuseppe Romualdi, Vicenzo Tieri, Alessandro Varaldo. Todos esses autores vêm do teatro, não da narrativa. Por que tantos comediógrafos? Arrisco uma hipótese discutível. A escrita dramática pela própria natureza não pode se abandonar à divagação ou deter-se sobre um detalhe marginal, sob pena de queda da tensão dramática. Bem, então se acreditava que um bom romance giallo devesse ir diretamente ao seu objetivo, que era o de propor um delito e chegar o mais rapidamente possível à sua solução. (Tradução da autora) 48 apparso su "Letteratura" nel 1946-47) e il 1961 quando Leonardo Sciascia da' alle stampe "Il giorno della civetta".26 O romance de Gadda é visto por Camilleri como um inquestionável giallo, uma vez que possui os elementos básicos do gênero: delito e investigador, embora o romance se encerre sem aparente solução dos crimes, que são dois, acontecidos com uma diferença de três dias: uma agressão à aristocrata vêneta Menegazzi, que teve suas jóias roubadas, e o assassinato de Liliana Calducci. O detetive da trama é o comissário molisano27 Francesco Ingravallo, mais conhecido como Dom Ciccio. O romance Il giorno della Civetta (1961), de Leonardo Sciascia, é um giallo que tem a máfia como tema. Inicia-se com o assassinado de Colasberna, líder de uma cooperativa. O encarregado pelas investigações é o capitão Bellodi, um expartigiano. Porém, uma série de assassinatos ocorre no decorrer da investigação: a primeira vítima é o camponês Nicolosi, testemunha ocular, que viu um dos assassinos fugir; a segunda é Parrinieddu, informante da polícia. Através das investigações, o capitão Bellodi chega ao executor do crime, Diego Marchica, e aos mandantes, que seriam dom Marianno Arena e il Pizzuco, dois mafiosos que tinham oferecido proteção a Colasberna, e, como este recusara a oferta da dupla, fora assassinado. Porém, Bellodi não tem como enfrentar o poder da máfia, e no final, retornando ao Norte da Itália, descobre finalmente que toda a sua investigação se perdera; a justiça, no final das contas, não tinha sido feita. Os dois romances supracitados têm em comum o fato de a narrativa terminar de maneira incompleta, ou seja, sem a restauração da ordem com a punição dos culpados pelos crimes. Apesar do sucesso que o romance policial alcançou desde a sua criação, com a imortalização de personagens e escritores, um sem-número de livros 26 A verdade é que o renascimento do romance giallo italiano possui duas datas bem precisas. O ano de 1957, quando Carlo Emilio Gadda publica em volume Quer pasticciaccio brutto di via Merulana (que já havia sido publicado em Letteratura, em 1946-47), e em 1961, quando Leonardo Sciascia publica Il giorno della civetta. (Tradução da autora) 27 Gentílico referente à região de Molise, situada ao Sul da Itália. 49 vendidos, traduzidos e adaptados por todos os continentes, o gênero ainda é considerado inferior, não tendo alcançado o status de “boa literatura” e não sendo aceito por muitos críticos literários. Podemos citar, ainda, outros romances italianos de sucesso que seguem o filão policial, como é o caso de O nome da Rosa (Il nome della Rosa) de Umberto Eco, publicado em 1980. A narrativa trata da investigação, por parte do frade franciscano Willian de Baskerville e Adson de Melk, um herdeiro de nobres e noviço de Baskerville, de uma série de crimes ocorridos em uma abadia medieval. Mesmo enfrentando resistência às suas investigações, Baskerville prossegue-as e obtém êxito: descobre que, por trás dos delitos, havia a tentativa de manutenção de uma biblioteca que abrigava obras censuradas pela Igreja Católica. O nome da Rosa pode ser lido como um romance histórico, ambientado na Itália Medieval, retratando as questões religiosas, políticas e culturais vigentes, mas se trata, principalmente, de uma narrativa policial, com estrutura coerente ao gênero, ou seja, com a presença do crime, investigador, investigação e consequente resolução do mistério. Estamos nos aproximandoco Capítulo II, que versará sobre o nosso autor, Andrea camilleri, e sua profícua obra poética. 50 CAPÍTULO II ANDREA CAMILLERI: UM ESCRITOR SOB A LUPA 2.1 A identidade siciliana em destaque A Sicilia registra a primeira manifestação literária italiana leiga paralelamente à literatura produzida na Umbria, religiosa. Conquistada pelos gregos formou, junto com o Sul da Itália, a Magna Grecia. Possui uma relevante importância e herança cultural, pois na Antiguidade Agrigento era, inclusive, sede da escola filosófica de Empédocles. Naturalmente, por seu rico passado cultural, o siciliano é orgulhoso de sua identidade, considerando-se, inclusive, mais grego que italiano, devido ao período em que a região esteve sob domínio da Grécia, fato que, naturalmente, acabou deixando para os sículos uma grande herança cultural, material e imaterial. Destaca-se, além da citada tradição literária, a importância das artes dramáticas, por exemplo. A Sicília, como domínio grego, absorveu e incorporou o teatro à própria cultura. Na Grécia antiga, o teatro consolidou-se em função das homenagens ao deus do vinho, Dionísio. Nas procissões realizadas em sua homenagem, nas quais eram utilizadas máscaras e fantasias, se entoavam cantos líricos, os ditirambos, ou seja, cantos corais de aspecto alegre e sombrio. O ditirambo constituía parte de uma narrativa, recitada pelo cantor principal, o corifeu, e o coral. O rapsodo (ραψῳδός / rhapsôidós), figura surgida no século VII, ia de cidade em cidade recitando poemas. Atenas foi o principal palco onde o teatro grego se desenvolveu, porém este também se espalhou por toda a área influenciada pela Grécia, como a Ásia Menor, o Norte da África e a Magna Grecia, da qual fazia parte a Sicilia. A tradição literária siciliana, iniciada com Federico II, na “Scuola Siciliana”, nestes últimos dois séculos revelou talentos literários como os de Giovanni Verga, Luigi Capuana, Luigi Pirandello, Giuseppe Tomaso di Lampedusa, Elio Vittorini, Salvatore Quasimodo, Natalia Ginzburg e Leonardo Sciascia, para citar alguns, além do nosso autor, Andrea Camilleri. Dos autores citados, daremos um breve destaque a três: Verga, Pirandello e Sciascia. 51 Giovanni Verga (Catania, 1840 – 1922), um dos grandes nomes da literatura italiana de todos os tempos, escritor e dramaturgo, filho de pequenos proprietários, é o maior representante do Verismo. Entre suas obras destacam-se os romances, Amore e Patria, de 18561857, I carbonari della montagna, de 1861-1862, Mastro Don Gesualdo, de 1889, e, provavelmente seu mais famoso romance, I malavoglia, publicado em 1881. I malavoglia é centrado na vida de uma família de pescadores que vive em Aci Trezza, um lugarejo próximo à Catânia. A história da família é marcada por sucessivas tragédias. A ausência do filho mais velho, ‘Ntonio, que vai servir no exército do Reino d’Italia leva o filho mais novo, Bastianazzo, a transportar um carregamento de tremoceiro para ser vendido em Risposto. Porém, Bastianazzo morre num naufrágio, durante a viagem, e a família perde o provedor de seu sustento e, ainda, contrai uma alta dívida por causa da perda do pescado. Após o ocorrido, ‘Ntonio retorna à força para sua antiga vida de pescador, mas sem condições de resolver os problemas de sua família. Acaba sendo preso. Uma sequência de tragédias e infelicidades continua a assolar a família até o final da narrativa, quando, finalmente, conseguem recuperar a casa que fora perdida por conta das dívidas acumuladas e tentam, ao menos, realizar o desejo de Padron ‘Ntoni, o patriarca da família, de retornar à sua antiga casa. No entanto, este morre antes, encerrando assim o ciclo das sucessivas derrotas que marcaram a trajetória da famíla. A obra integra o ciclo dos vencidos (Ciclo dei vinti), um projeto literário de Verga que, contudo, não se concretizou, uma vez que ele não chegou a escrever os cinco romances propostos. Além de romances, Verga também escreveu novelas, como Nedda (1874) e Novelle Rusticane (1883). Entre as peças teatrais, citamos I nuovi tartuffi (18651866), La Lupa (1886) e Mastro Don Gesualdo (1889). O segundo autor a ser destacado é Luigi Pirandello (Agrigento, 1867 Roma, 1936). Assim como Verga, foi escritor e dramaturgo, igualmente reconhecido como um dos maiores nomes do cenário literário italiano. Recebeu, em 1934, o Prêmio Nobel de Literatura. Seu primeiro sucesso, Il fu Mattia Pascal, foi publicado em 1904. O romance trata da história de Mattia Pascal, funcionário de uma biblioteca, que mora com a mulher na casa de sua sogra, com quem vive em constante conflito. Os poblemas com a sogra e com a mulher, bem como a 52 doença e morte das filhas, o levam a desaparecer de casa, fato que transforma definitivamente sua vida: durante sua ausência, em que ele ganha muito dinheiro em um cassino, um cadáver é encontrado em sua cidade, levando todos a crerem se tratar do próprio Mattia Pascal. Ao ler a notícia de sua própria morte, Mattia decide então partir e iniciar uma nova vida. Adotando um novo nome, Adriano Meis, se fixa em Roma, onde se apaixona por uma jovem, Adriana, com quem pensa em reconstruir sua vida. Porém, se dá conta de que com seu falso nome não poderá jamais casar-se com ela, nem denunciar o roubo que vem a sofrer, no qual perde o dinheiro que ganhara no jogo. Decide, então, retornar à sua antiga vida. Entretanto, ao voltar à cidade natal, encontra sua mulher casada com outro homem, com quem tem uma filha. O passado de Mattia fora apagado, uma vez que todos o supunham morto. No final do romance, Pascal consegue voltar a ser funcionário da biblioteca e ganha uma nova ocupação, zelar pelo próprio túmulo. Os romances de Pirandello tiveram e têm grande sucesso. No entanto, seu reconhecimento maior se deu através do teatro. Sua produção é dividida em quatro fases: Teatro siciliano, Teatro umoristico/grottesco, Il teatro nel teatro, Il teatro dei miti. Também é mundialmente reconhecido por seu ensaio Umorismo, no qual se encontram os pressupostos teóricos que norteiam sua obra. Dentre sua vasta produção teatral – Questa sera si recita a soggetto, Enrico IV, Così è se vi pare, dentre outras –, Sei personaggi in cerca d’autore é certamente a sua mais famosa peça. Pirandello é um dos autores italianos mais estudados de todos os tempos. No ano de 2011, somente na Universidade Federal do Rio de Janeiro, foram defendidas uma tese e uma dissertação sobre o autor. A tese – Humor, horror e cidade: comédia pirandelliana e contemporaneidade –, de autoria de Pedro Carvalho Murad, foi defendida em julho; a dissertação, intitulada O rosto e as máscaras: a (des)construção da personagem Vitangelo Moscarda no romance Uno nessuno centomila de Luigi Pirandello, de autoria de Daniele Soares da Silva, em agosto. Ambos os trabalhos foram orientados pela professora Maria Lizete dos Santos. 53 Quanto ao terceiro autor destacado, Leonardo Sciascia (Racalmuto, 1921 – Palermo, 1989), como já mencionamos anteriormente, figura, ao lado de Carlo Emilio Gadda, como um dos responsáveis pela renovação do romance policial na Itália, graças ao seu Il giorno della civetta. Autor de extensa produção literária, artística e jornalística, entre romances, contos, ensaios, poesias, textos teatrais e artigos jornalísticos, seu nome consta na lista dos grandes escritores da literatura italiana do século XX. Seus romances frequentemente criticam a corrupção política italiana, o poder autoritário, a máfia. Sua primeira obra, Le favole della dittatura, foi publicada em 1950. A sicília e as questões sicilianas estão frequentemente presentes em sua produção. La Sicilia, il suo cuore, uma coletânea de poesias publicada em 1952, o ensaio Pirandello e il pirandellismo, de 1953, que foi contemplado com o Prêmio Pirandello, Gli zii di Sicilia, Salvatore Sciascia, 1958, Feste religiose in Sicilia, 1965, Narratori in Sicilia, 1967, Candido, ovvero un sogno fatto in Sicilia, Einaudi, 1977 e Alfabeto pirandelliano, 1989 são obras que demonstram o envolvimento do autor com questões, tradições e a cultura de sua terra natal. A partir deste pequeno vislumbre do percurso literário desses três autores e da própria história siciliana, observamos que o teatro está intimamente ligado à cultura da ilha, integranteantiga Magna Grecia. A herança grega permaneceu impressa na trajetória dos sicilianos Verga, Pirandello, Sciascia e Camilleri, o foco desta tese, ao qual dedicaremos o próximo subcapítulo. 2.2 O autor e a obra: Andrea Camilleri em exame Atualmente, Andrea Camilleri é um dos escritores italianos de maior projeção no cenário do romance policial. O siciliano nascido em Porto Empedocle já vendeu mais de dez milhões de livros, tendo suas obras traduzidas em dezenas de países. Além dos romances protagonizados pelo comissário Salvo Montalbano, que o levaram ao sucesso, produziu romances classificados pelos teóricos como históricos, ambientados na Sicília do século XIX, entre eles Il birraio di Preston, objeto desta tese. 54 Todas as suas obras são ambientadas na imaginária Vigáta, cidade siciliana criada por Camilleri. Em seus romances os elementos da cultura siciliana estão presentes de forma bastante significativa. Neles, a cozinha ocupa lugar de destaque, com descrições detalhadas de pratos típicos. Também, a narração dos locais e paisagens típicos torna plástica a sua narrativa. No entanto, talvez seja a língua uma das marcas mais evidentes e peculiares na obra de Camilleri, que utiliza o dialeto na composição de suas obras, criando uma atmosfera puramente siciliana. Aliás, levando sua experiência linguística ao extremo, escreveu, por exemplo, o romance La mossa del cavallo (Rizzoli, 1999) quase que integralmente em siciliano. Graças a seus romances gialli alcançou o posto de um dos escritores italianos mais conhecidos dos últimos anos, cuja extensa obra, composta, sobretudo, por romances policiais, é sinônimo de popularidade, com um elevado número de leitores e com a movimentação de grandes somas, fruto das vendas de seus livros, que ultrapassaram os limites da Itália, chegando em muitos países, inclusive no Brasil. No Brasil, os livros de Andrea Camilleri são editados pela Bertrand do Brasil, selo pertencente ao Grupo Editorial Record. Até o dia doze de dezembro de dois e onze, encontravam-se disponíveis no catálogo on-line da editora28 vinte e um (21) títulos traduzidos em língua portuguesa. De acordo com informações gentilmente fornecidas pelo departamento de imprensa da editora Record, Andrea Camilleri soma até hoje, no Brasil, 60.195 exemplares vendidos, um número em constante crescimento, ainda de acordo com o departamento. Na Itália, a editora que publica os títulos de Camilleri é a Sellerio. Até o dia doze de dezembro de dois mil e onze, era possível encontrar no site da editora setenta e seis (76) títulos disponíveis em catálogo. Precisar o número exato de livros vendidos por Camilleri na Itália não é uma tarefa simples. O que há de concreto, no entanto, é que esse número já 28 http://www.record.com.br/autor_livros.asp?id_autor=73&pag=3 55 ultrapassou em muito a marca de 10 milhões de livros. No site www.ilrecensore.com, encontramos a resenha do romance de Camilleri Il gioco degli specchi, 18º romance protagonizado pelo comissário Montalbano. Na apresentação ao livro, Alessandra Stoppini cita os seguintes dados editoriais de Camilleri, até o dia da publicação do artigo, 13 de junho de 201129: Fino ad oggi Andrea Camilleri ha venduto 13 milioni di copie tradotte in oltre 30 lingue in tutto il mondo. La serie tv Il commissario Montalbano tratta dai romanzi di Andrea Camilleri protagonista Luca Zingaretti per la regia di Alberto Sironi in onda su Rai 1 dal 1998 ha raggiunto livelli di ascolto record.30 O jornal italiano Corriere della Sera publicou em seu site, no ano de 200731, uma matéria assinada por Polese Ranieri, que afirma: “16.500.000 Il record di volumi venduti in libreria è di Andrea Camilleri”. Fizemos contato com a Sellerio, editora italiana que publica os livros do nosso autor, que gentilmente nos enviou o seguinte texto, sobre a vendagem do romance Il birraio di Preston: Gentile signora, del romanzo ‘Il birraio di Preston’ sono state tirate dal 1995 ad oggi circa 500.000 copie. Si tratta delle sole edizioni Sellerio, escluse pertanto le edizioni riservate all’edicola, allegate a giornali e riviste, book club, etc… Con i migliori auguri per la sua tesi (che ci farà piacere ricevere) e molti cordiali saluti. Sellerio editore32 29 http://www.ilrecensore.com/wp2/2011/06/il-gioco-degli-specchi-camilleri-primo-in-classifica/ 30 Até hoje Andrea Camilleri vendeu 13 milhões de cópias traduzidas em mais de 30 línguas em todo o mundo. A série de TV O comissário Montalbano, baseada nos romances de Andrea Camilleri, protagonizada por Luca Zingaretti, com direção de Alberto Sironi, no ar pela Rai 1, desde 1998, atingiu níveis de audiência recorde. (Tradução da autora) 31 http://archiviostorico.corriere.it/2007/novembre/13/Bye_bye_America_bestseller_torna_co_9_071113035.s htm 32 Gentil senhora, do romance Il birraio di Preston foram impressas, de 1995 até hoje, cerca de 500 mil cópias. Trata-se somente das edições Sellerio, excluídas, portanto, as edições reservadas às bancas, junto com jornais e revistas, book club etc... Com os melhores votos para a sua tese (que gostaremos de receber) e muitos cordiais cumprimentos. Sellerio editore 56 No que diz respeito às traduções publicadas no Brasil, foi uma tarefa difícil obter o número exato dos títulos traduzidos e da tiragem de cada um deles. O grupo editorial Record nos enviou o número total dos títulos vendidos até o dia 13 de dezembro de 2011, que foi de 60.195 livros.33 Atualmente, encontram-se no catálogo da editora 21 títulos, entre os quais A ópera maldita, título atribuído à tradução brasileira de Il birraio di Preston, feita por Giuseppe D'Angelo e Maria Helena Kühner. A página web www.vigata.org, criada por leitores-fãs de Camilleri, reúne um número considerável de informações sobre o autor, que são atualizadas frequentemente: bibliografia, número de livros vendidos, série televisiva inspirada em suas obras, bem como os prêmios que lhe foram conferidos, dos quais destacamos os de 2011: prêmio Orio Vergani, prêmio Letterario Castelfiorentino e prêmio Fondazione Campiello. O escritor nasceu em Porto Empendocle, província de Agrigento, em 1925. Atuou como diretor, autor de teatro e televisão, em algumas das mais conhecidas produções policiais da televisão italiana, cujos protagonistas eram o tenente Sheridan e o comissário Maigret. Posteriormente, passou a se dedicar mais intensamente à atividade de escritor. É autor de importantes romances de ambientação siciliana nascidos de seus estudos sobre a história da ilha. Mas seu grande sucesso chegou com a criação do comissário Montalbano, protagonista de uma série de romances que não abandonam a ambientação e atmosfera siciliana, presente em praticamente tudo o que o autor escreve. A obra literária de Camilleri tem como ponto inicial o ano de 1978, quando da publicação do romance Il corso delle cose, pela editora Lalli. Dois anos depois, seria a vez de Un filo di fumo, publicado pela editora Garzanti. Seu terceiro livro, La strage dimenticata, sairia apenas quatro anos mais tarde, e o quarto, La stagione della caccia, aguardaria um tempo ainda maior, oito anos, sendo publicado em 1993. Foi a partir desse ano que sua produção ganhou um ritmo 33 Adriana Fidalgo - Imprensa - Ed. Record 57 mais acelerado, e a publicação de La forma dell'acqua (1994) deu vida ao comissário Salvo Montalbano, que traria notoriedade e um estrondoso sucesso e visibilidade à obra do escritor. Seu sucesso de público, que se reflete na grande quantidade de romances vendidos, de obras adaptadas para a TV, as traduções em muitos idiomas, não foram suficientes para trazer ao autor e a sua obra o prestígio da crítica italiana. Apesar de suas obras receberem crítica desfavorável dos mais renomados teóricos da literatura italiana contemporânea e, também, de não figurarem nas listas Canônicas, os romances de Andrea Camilleri já foram contemplados com inúmeros prêmios e menções dos mais diversos tipos. E, embora haja certa dificuldade na obtenção de crítica científica e acadêmica sobre autor e obra, diversos sites oferecem informações detalhadas sobre a produção de Camilleri, que incluem a cronologia de suas publicações, temáticas dos romances, prêmios recebidos, críticas e, até mesmo, obras que ainda estão em fase de preparação. Dentre os sites, destaca-se o www.vigata.org, integralmente dedicado ao autor e a sua produção, pois, além de tratar dos romances, também hospeda páginas sobre tudo o que Camilleri já produziu e pretende fazer. Ao longo dos anos, a produção de Andrea Camilleri ganhou volume; o número de obras publicadas aumentou de maneira significativa. Somente na última década, dos anos 2000, foram publicados cinquenta e cinco livros, sendo que o ano de 2009 assistiu ao maior montante publicado, nove livros, entre romances e ensaios, um deles intitulado Un onorevole siciliano. Le interpellanze parlamentari di Leonardo Sciascia, o que demonstra a variedade de temas pelos quais o autor transita. A crítica baseia-se nesse grande volume de obras publicadas, para reforçar a tese de que o que Camilleri produz não é literatura, mas uma “subliteratura”, destinada apenas ao entretenimento e, consequentemente, às vendas. Vários nomes ligados à critica literária italiana já exprimiram opinião sobre o autor. No artigo “Hanno detto di lui” (Disseram sobre ele), disponível em www.vigata.org, alguns atribuem valor à produção de Camilleri; outros tecem 58 críticas negativas, com a justificativa dos motivos pelos quais atribuem pouco valor ao autor e à sua produção. Entre os críticos “pró-Camilleri” encontram-se: o escritor Carlo Bo, que ressalta a qualidade literária da obra do nosso autor, comparando-o a Simenon e Graham Greene; Manuel Vasquez Montalban, multifacetado escritor espanhol, morto em 2003, aponta a influência do teatro nos textos de Camilleri; Roberto Cotroneo, crítico literário e escritor, mais comedidamente, afirma que “Camilleri è uno scrittore di buon talento”; e Carlo Fruttero, tradutor e escritor torinês, também o compara a Simenon. Entre os críticos que se posicionam do lado oposto, citamos nomes de relevo no panorama da crítica como Giulio Ferroni, Pietrangelo Buttafuoco e Massimo Onofri. Abaixo transcrevemos a opinião desses teóricos. Giulio Ferroni, professor universitário, crítico literário e escritor, afirma: "Camilleri è troppo accomodante, troppo disincantato, troppo privo 34 d’indignazione." "Non è uno scrittore importante del novecento." Pietrangelo Buttafuoco, jornalista e escritor, se exprime, em dialeto: Minchia, chi camurria stu settantino. Era un cristiano pacifico, scrivia sceneggiaturi pi Megrette… A sira turnava a casa, s’assittava cu na buttigghia di vinu, un piattu d’alivi e un piezzu di pani, e s’arricriava a scriviri minchiati, ca quannu i scrivia ridia sulu sulu. Nun putia continuare a scriviri minchiate a so casa, pi so mugghieri, i mso figghi e i so niputi?"35 E Massimo Onofri, crítico literário, é duro em sua crítica: Andrea Camilleri? Un autore che ha realizzato «un’abilissima operazione di mercato», i cui romanzi non hanno «nessuna necessità espressiva» e la cui scrittura è caratterizzata da un dialetto «esornativo, cautamente lessicale, ancora rassicurante».36 34 “Camilleri é demasiadamente acomodante, desencantado demais, excessivamente desprovido de indignação.” “Não é um escritor importante do século XX.” (Tradução da autora) 35 "Tolo, que mala é este septuagenário. Era um cristão pacífico, escrevia roteiro para Megrette… À noite voltava para casa, matava a sede com uma garrafa de vinho, um prato de azeitonas e um pedaço de pão, e se punha a escrever tolices, e quando as escrevia, ria sozinho. Não podia continuar a escrever tolices em sua casa, para sua mulher, seus filhos e seus netos?" (Tradução da autora) 36 Andrea Camilleri? Um autor que realizou “uma habilíssima operação de mercado”, cujos romances não possuem “nenhuma necessidade expressiva” e cuja escritura é caracterizada por um dialeto “exornativo, cautamente lexical, ainda reservado”. (Tradução da autora) 59 A tese de que os romances de Camilleri constituem um produto destinado a atender o mercado, e o entretenimento puro e simples, seria justificável, devido à soma de fatores como a quantidade de romances publicados em curto período de tempo e o grande volume de vendas, conforme apontamos anteriormente. Porém, o real motivo de tanto sucesso, com direito a adaptações de suas obras, tanto para o teatro quanto para a televisão, parcerias com outros escritores, ainda permanece sem resposta definitiva. Autores como Ornella Palumbo procuram, através de obras dedicadas ao escritor siciliano, desvendar tal fenômeno. Em seu livro L’incantesimo di Camilleri a autora procura decifrar as causas do fascínio, dell’incantesimo que Camilleri e sua obra exercem sobre seus leitores. A autora trata das temáticas abordadas pelo autor, transitando por diversos romances de Camilleri, aborda os narradores, a influência do teatro em sua produção e dá destaque a Montalbano e, com ele, a toda a sicilianidade encontrada na narrativa camilleriana, passando pelas paisagens, cultura, comida, personagens. As polêmicas em que o autor se encontra envolvido parecem pouco interessar à parte mais importante nesse processo: o leitor. Prova disso é o sucesso internacional conquistado pelo autor, a grande quantidade de livros traduzidos, a adaptação de suas narrativas a outros tipos de arte, além do número expressivo de trabalhos acadêmicos, artigos e resenhas publicados. Ousamos afirmar, inclusive, que existe um tipo de leitores de Camilleri, que Palumbo procura classificar já na introdução de seu livro: Noi Camilleròmani (Camilleròfili no, non rende), di certo Camilleròpati, forse anche Camilleròfagi, siamo una moltitudine, felicemente trasversale quanto a età, sesso, estrazione socioculturale e nazionalità. Mi chiedo: dov’è la “magarìa”:? dove le molle di questa passione collettiva? che incantesimo ci ha fatto Camilleri? perchè è diventato un caso, cos’è il caso Camilleri? (PALUMBO, 2005: 11)37 37 Nós Camelliromaníacos (Camellerófilos não, não serve), de certo Camilleropatas, talvez também Camillerófagos, somos uma multidão, felizmente transversal quanto à idade, sexo, estrato sociocultural e nacionalidade. Me pergunto: onde está a magia? onde estão os impulsos desta paixão coletiva? Que encantamento nos fez Camilleri? Por que se tornou um caso; o que é o caso Camilleri? (Tradução da autora) 60 A partir do texto supracitado, podemos observar que, semelhantemente ao romance policial, Camilleri possui ao redor de si um encantamento que, embora real e comprovado, seja pelos números de livros publicados, estimativas de leitores ao redor do mundo ou livros traduzidos, seja pelas palavras de Palumbo, permanece ainda encoberto por algum tipo de mistério, sob um véu, como acontece com o romance policial, fato explicitado por Sandra Lúcia Reimão em O que é Romance Policial? Ao final do livro, Ornella reafirma a força do autor junto ao público, reforçando ainda a ideia de que, ao contrário do que afirmam os críticos citados anteriormente, a literatura de Camilleri tem, sim, algo a nos dizer, tratando-se de uma escrita autêntica, capaz de resgatar o homem contemporâneo, devolvendolhe as raízes perdidas em algum ponto da história. Afirma Palumbo (2005: 118) Se in dieci milioni di lettori andiamo a comprarci Camilleri, vuol dire non che non abbiamo voglia di pensare, ma il contrario: vuol dire che Camilleri ha delle cose da dirci, la cui autenticità ci coinvolge profondamente. Perché un po’ tutti noi, nel mondo globalizzato, siamo figli, o nipoti, o pronipoti di espropriati, di emigranti: non solo nel senso storico, ma anche in quello psicologico legato alle dinamiche del quotidiano. (2005: 118)38 Esse sentimento de recuperação pode estar ligado ao conteúdo das obras, aos elementos culturais que indentificamos como nossos, talvez à justiça que, de uma forma ou outra, acaba acontecendo na ficção e que, por vezes, não ocorre no mundo “real”, ou, ainda, à forma como a escrita de Camilleri pode ser atemporal, verossímil, como ocorre em Il birraio, no qual nos identificamos com as personagens, vivenciamos seus dramas como se fossem nossos. Ornella Palumbo traz uma nova definição, uma tentativa de expressão do sucesso de Camilleri, que é o reencontro do homem perdido, o retorno ao lar, ideia reforçada no trecho citado abaixo, sempre de Palumbo (2005: 118): 38 Se nós, dez milhões de leitores, vamos comprar Camilleri, não significa que não temos vontade de pensar, mas, ao contrário, quer dizer que Camilleri tem coisas a nos dizer, cuja autenticidade nos envolve profundamente. Porque todos nós, no mundo globalizado, somos um pouco filhos, ou netos, ou bisnetos de emigrantes: não apenas no sentido histórico, mas também no sentido psicológico, ligado às dinâmicas do cotidiano. (Tradução da autora) 61 Nella narrativa di Camilleri, noi sentiamo profumo di casa. Chiariamo subito: non leggiamo Camilleri per nostalgia, né per sentirci consolati, ma perché in quelle pagine passa un senso propositivo, operativo, l’ipotesi di un possibile figurato ritorno.39 E temos ainda a figura do super-herói, encarnada no detetive, e, nesse caso, em Montalbano, o mais célebre de todos: Montalbano è l’uomo che, dopo i sogni e le rovine del Sessantotto, noi potremmo essere, a condizione di non patteggiare compromessi con la nostra verità. Forse, Montalbano è come vorremmo essere e non siamo, con buona pace dei sensi di colpa. Poche e chiare le regole cui attenersi: la fedeltà a se stessi, il rispetto e la difesa di un’etica civile, la cultura, i sani innocenti piaceri dell’esistenza [...] (2005:119)40 Esse detetive, diferente do clássico, porém mais próximo do homem comum, pode ser um dos elementos narrativos que aproximam o leitor à obra, que nos despertam o interesse pela escrita de Camilleri. A obra de Andrea Camilleri tem a Sicilia como centro de onde ele vê o mundo. Em sua obra se afirma a identidade sícula: a diversidade cultural, na qual a culinária ocupa espaço de destaque, e, principalmente, a questão dialetal, que implica a distinção de uso da língua nas relações de poder. Mesmo em seus romances classificados como históricos, Un filo di fumo (1980), La strage dimenticata (1984), La stagione della caccia (1992), La bolla di componenda (1993), Il birraio di Preston (1995), La concessione del telefono (1998), La mossa del cavallo (1999), Il re di Girgenti (2001), La presa di Macallé (2003), a presença siciliana é marcante, muitas vezes assumindo a função de personagem. A imaginária Vigata é a cidade siciliana por excelência, palco de todas as histórias, circunscrição do modo siciliano de ser. 39 Na narrativa de Camilleri, nós sentimos perfume de casa. Esclarecemos logo: não lemos Camilleri por saudade, nem para nos sentirmos consolados, mas porque naquelas páginas passa um sentido propositivo, operativo, a hipótese de um possível retorno figurado. (Tradução da autora) 40 Montalbano é o homem que, depois dos sonhos e ruínas de 1968, nós podemos ser, sob a condição de não pactuar compromisso com a nossa verdade. Talvez, Montalbano seja como queremos ser e não somos, com os sentimentos de culpa apaziguados. Poucas e claras regras às quais se ater: a fidelidade a si mesmos, o respeito e a defesa de uma ética civil, a cultura, os inocentes e saudáveis prazeres da existência. (Tradução da autora) 62 Em seus romances “históricos” sempre se encontram presentes os costumes das épocas ali representadas, seja da Idade Média, como em I re di Girgenti, com a representação da vida difícil dos camponeses em contraste com a dos príncipes, seja na oitocentesca Vigàta de Il birraio di Preston, com as relações de poder e conflitos dos grupos favoráveis e contrários à situação política vigente ou, ainda, naquela habitada por Montalbano e os numerosos romances onde ele é protagonista, onde vemos uma Sicília globalizada, inserida no mundo virtual que até mesmo Catarella, o atrapalhado auxiliar de Montalbano, é capaz de acessar. Outro elemento de importância na obra de Camilleri e que, assim como a língua siciliana, faz parte da estética do autor, é a música, inclusive encontrada em suas escolhas lexicais. Além de Il birraio di Preston, o corpus do nosso estudo, citamos La voce del violino, romance no qual a música constitui uma temática fortemente explorada. Em La voce del violino, o quarto romance de Andrea Camilleri, a personagem Salvo Montalbano assume o papel de protagonista. A trama se desenvolve a partir do misterioso assassinato de Michela Licalzi, uma belíssima jovem encontrada completamente nua sobre a cama de sua mansão, recémconstruída em Vigàta. Montalbano descobre o crime quase por acaso, após colidir com um carro que estava estacionado. O Comissário deixa um bilhete ao proprietário do automóvel, para contato, e, quando volta ao local do acidente, dois dias depois, encontra a mesma cena. Percebe que ninguém passara para buscar aquele veículo. Desconfiado, resolve investigar o porquê de o carro estar abandonado e acaba por descobrir o corpo de Michela. Começa, então, a investigação oficial. Descobre que a jovem era casada com Emanuele Licalzi, médico, muito mais velho do que ela. Ao Comissário o marido afirma que havia amor na relação do casal, mas um amor do tipo pai/filha; o casamento era de conveniência, uma vez que Licalzi era impotente. O marido sabia, inclusive, que sua esposa mantinha relacionamentos extraconjugais, em especial com Guido Serravalle, o dono de um antiquariato, por quem Michela sentia forte atração. 63 Um terceiro homem aparece na história: Maurizio di Blasi, um jovem estudante que nutria um amor, jamais correspondido, por Michela. No limiar de sua loucura, Maurizio passa a perseguir Michela e desaparece quando do seu assassinato, o que acabou por apontá-lo como um dos suspeitos do crime. Durante as investigações de Montalbano, o Delegado, seu superior, decide afastá-lo do caso, passando o inquérito a ser conduzido pelo chefe da Polícia Civil. Alguns dias mais tarde, lia-se no noticiário que o assassino de Michela Licalzi havia sido descoberto e morto, pois teria apontado uma bomba para o chefe da investigação, ameaçando-o, enquanto gritava “- punam-me!”. O caso foi considerado resolvido. A aparente solução do caso não convence Montalbano, e suas suspeitas são confirmadas, quando ele recebe a informação de que a bomba com que Maurizio ameaçara o chefe da Polícia Civil, e por isso fora alvejado em seguida, na verdade era seu sapato. Se ele estava desarmado, porque os policiais o haviam matado? Mesmo afastado do caso, o Comissário continua sua investigação paralelamente e interroga todas as pessoas próximas à senhora Licalzi. Surge, então, uma misteriosa fita com imagens da morte de Maurizio di Blasi, onde fica evidente que ele não ameaçara os policiais. Após essa revelação, a investigação é colocada em xeque e volta ao início. Ernesto Panzacchi, o chefe da Polícia Civil é afastado de suas funções e o Delegado restitui a Montalbano o comando das investigações do assassinato. Uma nova pista surge, quando uma amiga de Michela, Clementina Vasile Cozzo, procura o Comissário e conta sobre o concerto que o maestro Cataldo Barbera daria em homenagem à falecida. Ao conversar com Barbera, Montalbano descobre que era amigo de Licalzi e que compartilhavam o gosto pela música. Descobriu, ainda, que Michela possuía um violino, herdado do bisavô, mas que nunca tinha dado importância ao possível valor do instrumento, um legítimo Andrea Guarnieri, de valor inestimável. Era a peça que faltava para o Comissário desvendar o mistério. Montalbano procura por Guido Serravalle e lhe conta, fazendo hipóteses, tudo o que, possivelmente, acontecera com ele e Michela. Na verdade, 64 Serravalle tinha uma grande dívida provinda de jogos de azar e Michela falsificava as despesas da construção da mansão, a fim de conseguir dinheiro para ajudá-lo. Mas, nem toda a ajuda da moça fora suficiente para saldar as dívidas de Serravalle, que, então, decidiu assassinar a amante e roubar o violino, para poder se livrar de seus credores. No entanto, por ironia do destino, o violino roubado era um instrumento de pequeno valor, que o maestro Barbera havia deixado com Michela enquanto ele estivesse com a posse do valioso Guarnieri. Montalbano consegue desvendar o mistério do assassinato, unindo os fios da trama e harmonizando-os como as cordas do violino. Nesse romance, podemos observar que a música, representada pelo instrumento musical, o valiosíssimo violino herdado por Michela e, ainda, a presença do maestro Cataldo Barbera, são elementos importantes na trama. O gosto pela música compartilhado entre o maestro e Michela, a amizade de ambos e o empréstimo do violino levam o comissário à solução do mistério, à descoberta do verdadeiro assassino da jovem. E é exatamente durante o concerto que homenagearia Michela que Montalbano, finalmente, consegue ouvir a “voz” do violino, que lhe recita, sussura a seus ouvidos a verdade: E dopo manco cinque minuti il commissario principiò a provare una sensazione stramma che lo turbò. Gli parse che a un tratto il suono del violino diventasse una voce, una voce di fìmmina, che domandava d’essere ascoltata e capita. Lentamente ma sicuramente le note si stracangiavano in sillabe, anzi no, in fonemi, e tuttavia esprimevano una specie di lamento, un canto di pena antica che a tratti toccava punte di un’ardente e misteriosa tragicità. Quella commossa voce di fìmmina diceva che c’era un segreto terribile che poteva essere compreso solo da chi sapeva abbandonarsi completamente al suono, all’onda del suono. Chiuse gli occhi, profondamente scosso e turbato. Ma dentro di sé era macari stupito: come aveva fatto quel violino a cangiare così tanto di timbro dall’ultima volta che l’aveva sentito? Sempre con gli occhi chiusi, si lasciò guidare dalla voce. E vide se stesso trasìre nella villetta, traversare il salotto, raprire la vetrinetta, pigliare in mano l’astuccio del violino... Ecco cos’era quello che l’aveva tormentato, l’elemento che non quatrava con l’insieme! La luce fortissima che esplose dintra la sua testa gli fece scappare un lamento. (CAMILLERI, 1997: 180-81)41 41 E, em menos de cinco minutos, o comissário começou a experimentar uma sensação estranha que o perturbou. Pareceu-lhe que, de repente, o som do violino se tornasse uma voz, uma voz de mulher, que pedia para ser ouvida e entendida. Lentamente, mas seguramente, as notas se transformavam em sílabas, não, em fonemas, e todavia exprimiam uma espécie de lamento, um canto de pena antiga que, por vezes, tocava pontas de uma ardente e misteriosa tragicidade. Aquela comovida voz de mulher dizia que havia um segredo 65 Ao ouvir o testemunho que a música acabara de fazer, Montalbano já não tinha qualquer dúvida sobre a autoria e a motivação do crime. Fora capaz de ligar as provas e concluir que Michela havia sido assassinada exatamente por causa daquele violino, que o próprio marido dissera a Montalbano se tratar de herança familiar. Com esse evento, Montalbano deduziu que essa informação talvez fosse conhecida por mais alguém, e intuiu que se tratasse de Guido Serravalle, o amante. A fim de confirmar suas suposições, Montalbano o procura no hotel onde se hospedava, e através de uma história muito parecida com a vivida por Michela e Serravalle, consegue confirmar suas suspeitas. O amante era, de fato, o assassino que depositara no violino todas as esperanças de pagar suas altas dívidas. Na sequência, trataremos da cidade imaginária de Camilleri, Vigàta, palco onde se desenvolvem as tramas engendradas por nosso autor. 2.2.1 A edificação de Vigata Os romances de Andrea Camilleri são ambientados em Vigáta, cidade imaginária, situada na também fictícia província de Montelusa, que corresponde a Porto Empendocle, cidade da província de Agrigento, onde o escritor nasceu. Em todos os seus romances, como já dissemos, encontra-se a forte presença da cultura siciliana, na caracterização das personagens, na descrição do ambiente, na questão da língua e na abordagem de temas do mundo contemporâneo, como, por exemplo, a violência, as drogas, a máfia, a imigração clandestina. terrível, que somente poderia ser compreendido por quem sabia abandonar-se completamente ao som, à onda do som. Fechou os olhos, profundamente abalado e perturbado. Mas, internamente, estava maravilhado: como aquele violino tinha feito para mudar tanto assim de timbre desde a última vez que o havia ouvido? Sempre com os olhos fechados, se deixou guiar pela voz. E viu-se entrar na mansão, atravessar a sala de visitas, pegar o estojo do violino com as mãos... Isso, era aquilo que o havia atormentado, o elemento que não combinava com o conjunto! A luz fortíssima, que explodiu dentro da sua cabeça o fez deixar escapar um lamento. (Tradução da autora) 66 A influência exercida pelos romances de Camilleri na Sicília é tão forte que, a partir 2003, a cidade de Porto Empendocle passou a ser reconhecida como Porto Empendocle-Vigàta, em homenagem à cidade imaginária do autor. Prossima uscita, Vigata. Nessuna perplessità se, viaggiando per le strade della Sicilia, vi capiterà di intravedere un cartello con l'indicazione della città di Salvo Montalbano. Perché Andrea Camilleri ha dato il suo benestare al comune di Porto Empedocle, che gli aveva chiesto di poter adottare, come secondo nome, quello del paese in cui vive e lavora il celebre commissario. 42 Porém, em 2009, a decisão foi revogada, mas certamente Porto Empendocle jamais deixará de ser Vigàta para os camillerianos espalhados pelo mundo. Sobre a Vigàta de Camilleri, de Montalbano e de todas as personagens que a habitam, Luca Crovi escreve: Scrutando una delle tante cartine stradali vi sarà impossibile trovare Vigàta. Eppure milioni di italiani potranno confessarvi di conoscerla, di esservi stati almeno una volta in compagnia del commissario Salvo Montalbano, in villeggiatura per qualche ora o magari per qualche giorno. Stiamo parlando di una città situata, secondo Camilleri, tra Porto Empedocle e Agrigento in una delle zone più solari della Sicilia. Come ha scritto un critico letterario, potremmo definirlo “il centro più inventato della Sicilia più tipica”. (CROVI, 2002: 183-84)43 Vigàta, a cidade criada por Andrea Camilleri, foi transformada, de acordo com a definição de Luca Crovi, numa verdadeira capitale del delitto. Dentro dos limites da cidade estão reunidos os heróis, os vilões, as vítimas e todas as personagens que povoam os romances do autor, sendo o palco principal, onde todas as narrativas de Camilleri estão ambientadas. O êxito alcançado pelos 42 http://www.repubblica.it/online/cronaca/vigata/vigata/vigata.html Próxima saída, Vigata. Nenhuma perplexidade se, viajando pelas estradas da Sicília, avistar um cartaz com a indicação da cidade de Salvo Montalbano. Porque Andrea Camilleri deu o seu consentimento à comuna de Porto Empedocle, que lhe tinha pedido para adotar, como segundo nome, o lugar em que vive e trabalha o célebre comissário. (Tradução da autora) 43 Escrutando um dos tantos mapas rodoviários, será impossível encontrar Vigàta. Mesmo assim, milhões de italianos poderão confessar conhecê-la, de ter estado ali ao menos uma vez em companhia do comissário Salvo Montalbano, em veraneio por algumas horas ou, talvez, por alguns dias. Estamos falando de uma cidade situada, segundo Camilleri, entre Porto Empedocle e Agrigento, em uma das zonas mais solares da Sicília. Como escreveu um crítico literário, poderemos defini-lo "o centro mais inventado da Sicília mais típica." (Tradução da autora) 67 romances do autor fizeram de Vigàta mais que uma cidade existente apenas nos livros; o impacto causado nos leitores foi tamanho que, como lemos acima, chegou a causar a mudança de nome de Porto Empendocle para Porto Empendocle-Vigàta, e independentemente disso, Vigàta já passou a existir de maneira definitiva no mundo da literatura e nas outras formas artísticas que reproduzem a obra camilleriana, como a televisão e o teatro. A abrangência da influência literária na topografia siciliana vai além de Porto Empedocle-Vigàta, atingindo também outras cidades, conforme relata Crovi (2002: 183-84): Se volessimo controllare infatti la toponomastica ci accorgeremmo subito a colpo d’occhio che alle immaginarie Fela, Fiacca, Montelusa, Montereale, Raccadali, Sampedusa, descritte da Camilleri corrispondono le reali Gela, Sciacca, Agrigento, Realmonte, Raffadali, Lampedusa.44 O período da história vigatense contada nas páginas de Camilleri vão do século XIX ao século XXI. Nos limites de Vigàta não se concentram somente os delitos e virtudes de todo o mundo, mas a própria história do homem do século XIX ao século XXI. A Vigàta de Camilleri está dividida entre dois grupos de romances, os que frequentemente são considerados “históricos” e os “atuais ou contemporâneos”, protagonizados por Salvo Montalbano, o mais famoso comissário fictício italiano que, apesar de não atuar no Il birraio di Preston, o romance-rapsódia focalizado nesta tese, merece a nossa atenção. 2.2.2 Montalbano: um policial antiinstitucional De todos os investigadores criados por Andrea Camilleri, o mais célebre, sem dúvida, é Salvo Montalbano. Os romances por ele protagonizados foram 44 Se quiséssemos controlar de fato a toponomástica, perceberemos rapidamente que as imaginárias Fela, Fiacca, Montelusa, Montereale, Raccadali, Sampedusa, descritas por Camilleri correspondem às reais Gela, Sciacca, Agrigento, Realmonte, Raffadali, Lampedusa. (Tradução da autora) 68 adaptados, em sua maioria, em filmes produzidos pela RAI, e obtiveram grande sucesso de público e de vendas no mundo. Intelecto privilegiado, Montalbano resolve os crimes utilizando o raciocínio lógico, seguindo os princípios do detetive clássico, quase nunca utilizando a força bruta. No entanto, muitas vezes, recorre à ação para solucionar os mistérios e confirmar suas hipóteses. Mas não se trata do auxílio policial, pois, na maioria das ocasiões, ele utiliza seus próprios meios para solucionar os crimes, seguindo seus instintos. Age sozinho em busca de pistas, ou conta com o auxílio de seus amigos particulares, conforme veremos mais adiante. Embora várias das características atribuídas ao detetive clássico sejam econtradas em Montalbano, como seu poder de elucidar mistérios a partir da observação e raciocínio, bem como o fato de recorrer o mínimo possível à ação e à força bruta, em diversos momentos ele rompe com essas características. Ao contrário do detetive clássico, cuja vida particular é quase sempre um mistério para o público, o leitor dos romances de Camilleri é informado de praticamente todos os aspectos da vida de Salvo Montalbano, desde sua infância difícil, visto que cresceu sem mãe, até seu eterno noivado com Livia, que vive em Boccadasse, em Gênova. Há um conflito entre o investigador e o homem. Na vida profissional, Montalbano é um homem bem-sucedido, de caráter irrepreensível, possuindo nome e renome em seu meio. Já a vida privada de Montalbano é marcada pela indefinição de seu relacionamento com Livia. Embora ele demonstre amar a noiva, em momento algum observamos seu desejo de casar-se com ela. Esse fato é reforçado em diversas ocasiões, nas quais ele sempre procura esquivar-se, quando o assunto é casamento ou mesmo um passo mais sério na relação. Apenas em Il ladro di Merendine e no romance que o segue, La voce del violino, constatamos que o comissário faz um movimento com vistas a resolver sua vida afetiva, pois, na tentativa de obter a adotação de um menino, Francois, que conhecera no primeiro romance, Montalbano leva a sério a ideia de casar-se com Livia e constituir uma família, para a felicidade da noiva, que sonhava com o casamento e a ideia de ter um filho. Entretanto, o sonho do casal não se concretiza. Enquanto os dois procuravam oficializar a união civil, o menino fica aos cuidados da irmã de Mimì Augello, um subordinado a Montalbano. Tal 69 convivência faz que Francois não queira mais se afastar da família de Augello, onde encontrara pais e irmãos, ponha um ponto final à tentativa de adoção por parte de Salvo e Livia. Embora o matrimônio nunca se concretize, o relacionamento dos dois pode se acompanhado ao longo dos anos, através dos romances. Outra característica marcante na personalidade de Montalbano é seu amor pelo mar. Em La prima indagine di Montalbano, conto que narra como se deu a sua promoção como comissário, o leitor acompanha toda a expectativa havida em torno do fato: a ansiedade de Montalbano, sua alegria ao receber a notícia sobre o local em que atuaria – Vigàta –, cidade de sua infância, até sua mudança para uma casa em Marinella, que é um dos cenários importantes em todos os romances da saga Montalbano. Além do espaço geográfico, a culinária representa outro ponto de destaque nos romances nos quais Montalbano é protagonista. A relação do detetive com a boa mesa é estreita; o momento da refeição é sagrado e segue um verdadeiro ritual. Comer, para ele, não significa apenas nutrir-se, mas representa um momento de prazer, que deve ser apreciado em silêncio, ora em seu restaurante preferido, onde mantém uma relação de amizade e confiança com o chefe, ora em sua casa, em Marinella, quando, sentado à varanda, saboreia as especialidades que Adelina, sua empregada, lhe prepara. Vale ressaltar que o delegado Puglisi, o detetive de Il birraio di Preston, em alguns momentos na narrativa, também não segue o protocolo policial. Assim como acontece nas aventuras protagonizadas por Montalbano, o leitor acompanha a jornada de Puglisi, seu caráter, seu compromisso com a verdade e a busca incessante para alcançá-la, sua luta contra a corrupção de seus superiores e, ainda, seus delitos. Puglisi também mente e engana, por amor, indo contra seus deveres de policial, ao alterar o cenário da morte da viúva e seu amante, tudo por amor a Agatina, irmã da falecida, que se desespera ao constatar a iminente desonra que recairia sobre a imagem de sua irmã, tão logo fosse divulgada as circusntâncias de sua morte. Esse deslize acaba manchando a honra de Puglisi, questionada por um anônimo, que escreve ao marido de Agatina. 70 Observamos que o modelo de detetive instituído na tipologia do romance policial, onde o detetive perfeito é racional pura e simplesmente, não se reflete nas personagens camillerianas. Temos, sim, brilhantes detetives que, porém, são suscetíveis às paixões e aos defeitos inerentes ao homem comum, sem que isso, no entanto, afete a capacidade investigativa dessas personagens. Apresentado o autor e sua produção poética, na sequência, nos acercaremos da obra escolhida para nossa análise: Il birraio di Preston. 71 CAPÍTULO III IL BIRRAIO DI PRESTON: UMA RAPSÓDIA EM GIALLO Il birraio di Preston (1995) é considerado a obra-prima de Andrea Camileri, baseada em fatos reais, extraídos da obra Inchiesta sulle condizioni della Sicilia del 1875-76. Está ambientada na cidade fictícia de Vigàta, à qual dedicamos o item 2.2.1, no ano de 1875, a trama tem como ponto de partida um incêndio ocorrido no Teatro Re d’Italia, que ocorre exatamente no dia de sua inauguração, ocasião em que seria apresentada a ópera Il birraio di Preston, de Luigi Ricci. Camilleri constrói sua narrativa de maneira não-linear. Embora o leitor venha a obter todas as informações, no decorrer do romance, essas são apresentadas paulatinamente, em capítulos fechados. Um dos recursos utilizados é o do flashback. Os capítulos se intercalam entre os que descrevem acontecimentos anteriores ao incêndio, os que apresentam personagens e situações e, ainda, os que se referem aos fatos ocorridos no pós-incêndio. Iniciando o estudo de Il birraio di Preston, convém justificar a proposta do subtítulo da nossa tese, “rapsódia in giallo”. Assim, vejamos o significado do termo “rapsódia”, a partir do verbete encontrado no Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia45: Originário do grego rhapsodía, significando “canção costurada” (em latim, rhapsodia; em alemão, rapsodie; em espanhol, rapsodia; em francês: rapsodie; em inglês, rhapsody; em italiano, rapsodia ), o termo “rapsódia” designa, desde a Grécia arcaica, tanto cada um dos livros de Homero (século VIII a.C.) quanto os poemas épicos cantados por alguém que não fosse o criador dos poemas, como o aedo o era. Rapsodo (em grego clássico ραψῳδός / rhapsôidós) é o nome dado a um artista popular ou cantor que, na antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando poemas, principalmente epopéias. Diferia-se do aedo, que compunha os próprios poemas e os cantava, acompanhado de um instrumento (lira ou fórminx). O rapsodo não se fazia acompanhar de nenhum instrumento e, durante a declamação, ficava geralmente em pé e segurava um ramo de loureiro, símbolo de Apolo. Platão, no seu tratado de poesia Íon, explica a Sócrates a apresentação de uma rapsódia. 45 http://www.edtl.com.pt/index.php option=com_mtree&task=viewlink&link_id=1534&Itemid=2. 72 O significado de “canção costurada” muito se assemelha ao tipo de narrativa que se encontra em Il birraio di Preston, que é composto por um conjunto de várias pequenas histórias que, juntas, contam uma história maior. Conforme a própria proposta narrativa ali apresentada, a partir de um único narrador, Gerd Hoffer poderia ser considerado um rapsodo, pois a ele coube unir os pedaços de história vivenciados por outras personagens: No código musical, “rapsódia” nomeia, portanto, toda fantasia instrumental que utiliza temas e processos de composição improvisada, tirados de cantos tradicionais ou populares, de que são exemplos as rapsódias húngaras de Franz Liszt (18111886). Justaposição de escassa unidade formal de melodias populares ou folclóricas e de temas conhecidos, extraídos com frequência de óperas e operetas, as rapsódias caracterizam-se por terem apenas um movimento, mas podem integrar fortes variações de tema, intensidade, tonalidade, sem necessidade, todavia, de seguir uma estrutura pré-definida. Com uma forma mais livre que as variações, uma vez que não há necessidade de se repetirem os temas, podem-se, ao sabor da inspiração, criar novos temas [...] (Idem) Diversos dos elementos acima mencionados encontram-se presentes em Il birraio de Preston. A variação de temas é uma constante em toda a narrativa. Embora o percurso seja o mesmo, isto é, contar a história da inauguração e incêndio do teatro Re d’Italia, os capítulos estão dispostos de forma não-linear, a narrativa é conduzida em cenas, ou pequenas histórias, parecendo às vezes desconexas, dentro da história principal. Em um capítulo, por exemplo, nos encontramos diante do teatro incendiado; no seguinte, somos transportados à vida íntima de uma autoridade e, na sequência, assistimos Nando Traquandi planejando os detalhes do incêndio. Embora a variação temática seja uma constante, a narrativa se completa ao final. A carga dramática também tem intensidade diferente em cada capítulo: uns apresentam ligação mais estreita ao caso do incêndio, mostrando detalhes da tragédia. Outros são mais leves, como o que narra a discussão entre os membros do Circolo cittadino di Vigàta, ou, ainda, o que mostra as reações e os diálogos da plateia durante a apresentação da ópera, naquela fatídica noite. A música, que é 73 tema em diversos capítulos do livro, pode ser considerada uma personagem na trama analisada. A condição humana é outro tema explorado: o desejo de o prefeito expressar o seu amor, levado às ultimas consequências pelo prefeito; o drama vivido pelo professor Carnazza, cuja esposa é bem jovem do que ele, fato que o leva a realizar todas as vontades da mulher, pelo simples medo de perdê-la; a sede de poder de dom Memè; o idealismo sem limites de Nando Traquandi; e, ainda, o conflito entre o amor e o dever, vivido pelo delegado Puglisi. A trajetória do povo vigatense é contada: cenas do cotidiano, da vida privada, do mundo político, do movimento revolucionário dos mazzinianos estão lado a lado, misturados, unindo-se. As diversas histórias e perspectivas dão a unidade à rapsódia. As estruturas narrativas de Il birraio do Preston assemelhamse às de Macunaíma: De migração semântica dá-se como singular exemplo o caso de Mário de Andrade (1893-1945), que, no “momento épico” do modernismo brasileiro, por ele protagonizado, e não sabendo como classificar um texto que escrevera, durante uma semana, em 1928, deitado numa rede, no sítio de seu “Tio” (na realidade era seu primo) Pio, batizou de “rapsódia” seu livro Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, usando o mesmo estratagema de musicista com que intitulara um texto anterior – “Amar, verbo intransitivo, de 1927, romance por ele designado “Idílio”. Principal romance do movimento modernista nacional, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter emblema a cultura que retrata: colcha de retalhos, miscelânea, mosaico, puzzle de cores, etnias, sons, vezes e vozes.46 Elementos folclóricos, religiosos, étnicos e até fantasiosos estão lado a lado na trama de Macunaína, de Mário de Andrade, romance que o próprio autor classificou como rapsódia. Em Il birraio di Preston, observamos a existência de uma miscelânea semelhante à do livro de Mario de Andrade como, por exemplo, as diferenças culturais entre as personagens – as intenções diante de uma mesma situação; a questão linguística, que se une à cidadania de algumas figuras de ficção, como no caso do engenheiro alemão Hoffer, do prefeito Bortuzzi, que é toscano, e de Nando Traquandi, romano, ou seja, três cidadãos oriundos de cidades distintas e inseridos na realidade Siciliana. 46 http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=1534&Itemid=2 74 Assim, estamos convencidos de que Il birraio di Preston também pode ser lido como um romance rapsódico, uma vez que temas diversos estão ali presentes. As diferentes culturas que conviviam em Vigàta, a música, a história, os interesses políticos, os jogos de poder e até mesmo o dia-a-dia, os fatos do cotidiano aparecem de maneira concreta na obra. É rapsódico porque conta, denuncia, revela a realidade daquela região, no período imediatamente posterior à Unificação Italiana, quando as pessoas ainda conviviam com duas realidades distintas, o velho e o novo lado a lado. Cabe informar, ao darmos início à análise da obra, que todos os textos extraídos de Il birraio di Preston (Palermo: Sellerio, 1995) serão referenciados somente com o ano da publicação e o número da página. Também, que a tradução aos textos citados, transcritos da publicação brasileira da citada obra – CAMILLERI, Andrea. A ópera maldita. Tradução de Giuseppe D’Angelo e Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004 –, receberá o mesmo tratamento. Também, que, quando considerarmos necessário, interferiremos em algumas soluções encontradas pelos tradutores. O primeiro capítulo da rapsódia, “Era una notte che faceva spavento” (“Era uma noite de dar medo”), apresenta o evento central da trama, ou seja, o incêndio do teatro Re d'Italia. A primeira personagem a entrar em cena é o menino Gerd, de nove anos, filho do engenheiro alemão Fridolin Hoffer. O garoto acorda no meio da noite e se depara com um imenso clarão vindo de Vigàta. Sem entender o que se passava, mas consciente de que o fato certamente fugia à realidade, corre para contar a novidade ao pai que, exultante, se dirige imediatamente para cidade, pois, além de ser engenheiro, era também inventor e acabara de criar uma máquina de apagar chamas, a vapor. Via, portanto, nesse incêndio a oportunidade para, finalmente, testar seu experimento: “Mein Gott!” Fece l’ingegnere quasi senza fiatto. Poi, trattenendo a stento, urla e vociate di gioia, di purissima felicità, febbrilmente si vestì, raprì il cassetto grande dello scagno, ne trasse una grande tromba dorata munita di cordone per tenerla ad armacollo ed uscì di casa di corsa senza manco preoccuparsi di chiudere la porta alle sue spalle. (1995: 12)47 47 "Mein Gott", exclamou o engenheiro, quase sem fôlego. Em seguida, reprimindo com esforço suas exclamações e gritos de alegria, da mais pura felicidade, vestiu-se febrilmente, abriu o gavetão da escrivaninha e dele retirou uma grande trombeta dourada, munida de um cordão para ser posta a tira-colo, e saiu correndo de casa sem sequer se preocupar em fechar a porta atrás de si. (2004: 10) 75 Ao chegarem ao local do incêndio, o engenheiro e os seus homens perceberam a gravidade da situação, e interrogaram um homem: “Kosa essere successo?” spiò l’ingegnere. “Dove?” spiò a sua volta l’uomo con fare gentile. “Kome dofe? A Figàta, kosa essere successo?”. “A Vigàta?” “Sì” fecero tutti in una specie di coro. “Pare che ci sia un incendio” disse l’uomo taliando verso il paese in basso quasi a ottenere conferma. “Ma kome è stato? Lei sa?”. L’uomo calò le braccia, se le mise darrè la schiena, si taliò la punta delle scarpe. “Non lo sapete?”. “No. Nessuno kvi lo sa”. “Ah. Pare che la soprano a un certo punto stonò”. E detto questo si rimise in cammino, ripigliando la posizione di mano in alto. “Che minchia è la soprano?” Spiò Tano Alleto, il cocchiere. “È una donna ke kanta” spiegò Hoffer scuotendosi dallo stupore. (1999: 15-16)48 Terminado o primeiro capítulo, a narrativa volta abruptamente a um momento, ao que parece, bastante anterior ao incêndio: à reunião de cidadãos – comerciantes, professores, médicos dentre outros – no clube Circolo Cittadino di Vigàta, onde todos manifestavam insatisfação ante à decisão do prefeito, Eugenio Bortuzzi, de encenar a ópera lirica Il birraio di Preston de Luigi Ricci na inauguração do teatro: 48 "Que koisa acontecerr?", perguntou o engenheiro. "Onde?", perguntou, gentilmente, olhando em torno. "Koma, onde? Em Figàta, que koisa acontecerr?" "Em Vigàta?" "Sim", disseram todos, em uma espécie de coro. "Parece que está havendo um incêndio", disse o homem olhando para o povoado abaixo como se buscasse confirmação. "Mas como isto acontecerr? A senhor sabe?" O homem abaixou os braços, colocou-os atrás das costas e olhou para as pontas dos sapatos. "Não sabe?" "Não. Ninguém daqui saberr." "Ah! Parece que em certo momento a soprano desafinou." E dizendo isso, retomou seu caminho, voltando à posição anterior, com as mãos erguidas. "Que porra de soprano é essa?", perguntou Tano Alletto, o cocheiro. "É um mulherr que kanta", explicou Hoffer, refazendo-se da estupefação. (2004: 13-4) 76 “Però lei, cavaliere, ha ragione” ripigliò il canonico. “Ce n’è di musica bella. E noi invece ci dobbiamo agliuttiri, volenti o nolenti, una musica che manco sappiamo com’è solo perchè così vuole l’autorità! Cose da pazzi! Dobbiamo fare soffrire le nostre orecchie con la musica di questo Luigi Ricci solo perchè il signor prefetto ordina così!”. (1995: 24)49 As personagens principais são apresentadas ao leitor a partir deste ponto, no qual é revelada a opinião que cada um deles tem em relação não somente ao prefeito, mas também à ópera por ele selecionada para a inauguração do teatro da cidade. O clima de discórdia é absoluto, agravado pela naturalidade de Bortuzzi: sendo florentino, o prefeito não é aceito pelos vigatenses, que julgam a sua decisão de apresentar Il birraio di Preston como uma forma de ele impor seu poder na cidade. “A quella vociata e a quella botta improvvisa, i soci del circolo cittadino di Vigàta, “Famiglia e progresso”, sobbalzarono perché si erano fatti nervosi dopo tre ore e passa d’accesa discussione” (1995: 17).50 O terceiro capítulo, “Avrebbe tentado d’alzare la muschittera?” (Será que ele tentaria erguer o mosquiteiro?) introduz uma nova personagem, a senhora Riguccio Concetta, “vedova Lo Russo”, uma jovem viúva, cujo marido morrera afogado no mar. Ela se apaixona por um vigatense, Gáspano, que encontrou pela primeira vez em um dia em que chegara atrasada à missa: A un tratto la porta della controporta s’era aperta e lui era trasuto. Mai prima l’aveva veduto, ma appena Concetta lo taliò capì che per qualche minuto il suo timone sarebbe stato ingovernabile. Beddru, era, beddru, un angolo di paradiso. Àvuto, biunnu e ricco di capelli ricci, sicco sicco ma quanto era giusto in un omo sano, un occhio cilestre come il mare e l’altro, quello di dritta, che non c’era. Se ne stava, l’occhio ammucciato sotto la palpebra che si era come impicciata, murata, alla parte di sotto. Però non faceva impressione, anzi: tutta la luce dell’occhio astutato si riversava nell’altro, lo faceva sparluccicante come una pietra priziosa, come un faro di notte. (1995: 30)51 49 "Porém o senhor cavaliere tem razão", voltou a dizer o cônego. "Há muitas músicas lindas. E nós, pelo contrário, temos que engolir, querendo ou não querendo, uma música que nem sabemos como é, só porque assim quer a autoridade. Coisa de loucos! Temos que deixar nossos ouvidos sofrerem com a música desse tal Luigi Ricci só porque o senhor prefeito assim ordena!" (2004: 22) 50 Àquele grito e àquela batida imprevista, os sócios do "Família e Progresso", clube citadino de Vigàta, se sobressaltaram, pois já nervosos depois de três horas ou mais de uma acesa discussão. (2004: 15) 51 De repente, a divisória em frente à porta principal se abrira e ele entrara. Nunca o tinha visto antes, mas, assim que Concetta o olhou, percebeu que por alguns instantes seu timão se havia desgovernado. Lindo, era lindo, um anjo do paraíso. Alto, louro, e com fartos cabelos encaracolados, talhe tão esbelto quanto seria adequado a um homem sadio, um olho celeste como o mar e o outro, o direito, inexistente. Esse olho ficava 77 A viúva e Gáspano decidem, então, se ver e marcam o encontro justamente para o dia da inauguração do teatro Re d’Italia. O encontro acontece, e o capítulo termina nesse ponto, porém o destino dos dois está selado e se desdobrará em capítulos futuros. O quinto capítulo, “Chiamatemi Emanuele!” (Chamem o Emanuele!), apresenta duas das principais personagens da história: o prefeito Eugenio Bortuzzi e dom Memè, este que ocupará o papel de vilão da trama. O narrador faz, então, a descrição de dom Memè, o que ajuda o leitor a entender o seu caráter: Diceva la voce popolare che don Memè il sorriso non l’avesse perso manco quando il delegato di pubblica sicurezza, cinque anni avanti, sollevando un lenzuolo gli aveva mostrato, steso nudo sopra un bancone di marmo, il corpo martoriato del figlio Gnazino che non era riuscito a toccare i vent’anni. Dopo l’autopsia, sempre con lo stesso sorriso, educatamente don Memè aveva domandato una spiega al medico legale e questi l’aveva ragguagliato che, a suo parere, al giovane, prima di essere strangolato, avevano tagliato la lingua, segato le orecchie, cavato gli occhi, asportato minchia e coglioni. Nell’ordine. E di quell’ordine don Memè aveva pigliato accuratamente nota, su un foglio di carta, con una matita copiativa che di tanto in tanto bagnava con la punta della lingua. Il messaggio che quel morto portava col modo stesso della sua morte era chiaro: chi aveva ammazzato il picciotto lo pensava uno dalla parola facile e sempre pronto a fottere femmine, picciotte o maritate che fossero, a dritta e a mancina. Nei due mesi successivi, don Memé si era dedicato ad una laboriosa transazione d’affari. Al termine della quale, ceduta ad altri la primazia sul feudo Cantarella, aveva ricevuto in cambio, presso una sua casa di campagna, i due assassini del figlio, messi in condizione di non potere arriminare manco un dito. (1995: 37-8)52 semicerrado sob a pálpebra, que havia ficado como que presa, na parte de baixo. Mas isso não dava má impressão, ao contrário, toda a luz do olho apagado revertera para o outro, tornando-o brilhante como uma pedra preciosa, como um farol na noite. (2004: 28) 52 A voz do povo dizia que don Memè não havia perdido o sorriso nem quando o delegado de Segurança Pública, cinco anos antes, levantando um lençol, lhe mostrara, estendido nu sobre uma bancada de mármore, o corpo dilacerado do filho, Gnazino, de 20 anos incompletos. Uma vez feita a autópsia, estampando o mesmo sorriso, don Memè tinha educadamente pedido uma explicação ao médico-legista, e este havia explicado que, a seu ver, antes de estrangularem o jovem, tinham-lhe cortado a língua, decepado as orelhas, escavado os olhos, castrado o pênis e os colhões. Exatamente nessa ordem. E don Memè tinha tomado nota, cuidadosamente, dessa ordem em uma folha de papel, com um lápis especial, que de vez em quando umedecia na ponta da língua. A mensagem que aquele morto trazia, no modo como ocorrera sua morte, estava clara: quem tinha matado o rapaz achava que ele era um desses tipos de palavra fácil e sempre disposto a trepar com todas as mulheres, a torto e a direito, fossem elas solteiras ou casadas. Nos dois meses que se seguiram, don Memè se havia dedicado a uma laboriosa transação de negócios, ao término do qual, 78 A narrativa continua a revelar a forma como dom Memè havia vingado a morte do filho, e também, a mostrar a dimensão de seu poder, pois, apesar de ser evidente sua culpa em tal vingança, ele saíra inocentado, graças ao álibi reforçado por diversos cidadãos: Scoperti i cadaveri ormai mangiati da cani e corvi, il delegato, fatta una sbrigativa indagine e sempre persuaso che due più due facessero quattro, era andato di corsa ad arrestare don Memè. Nel giro della stessa giornata, dieci insospettabili abitanti di Varo, a cinquanta chilometri da Montelusa, si erano precitipati a testimoniare che il giorno del duplice omicidio don Memè era nel loro paese, a godersi la festa di san Calogero. [...] “Ma quant’è bella l’unità d’Italia!” aveva esclamato don Memè con un sorriso più cordiale del solito, mentre gli si aprivano le porte del carcere. (1995: 38-9)53 O episódio exemplifica o poder de dom Memè, que procurava potencializálo com o apoio ao prefeito na execução da ópera Il birraio di Preston. Este capítulo trata, basicamente, dos preparativos, por parte de dom Memé e do prefeito, dos cartazes de anúncio da inauguração do teatro e encenação da ópera. “Rise a lungo, da solo, mentre Sua Eccellenza svolgeva il rotolo. Erano le bozze di stampa di un manifesto che annunziava la prossima recita dell’opera Il birraio di Preston per l’inaugurazione del nuovo teatro di Vigàta”. (1995: 41)54 Também relevante é o diálogo havido entre os dois sobre a rejeição que a ópera sofria por parte do povo, que não desejava acatar as ordens do prefeito de Montelusa: “Allora il problema è che quest’opera è stata voluta da lei che è il cedendo a terceiros a prioridade sobre o feudo Cantarella, tinha recebido em troca, uma de suas casas de campo, os dois assassinos do filho, postos em condições de não ter como levantar nem um dedo. (2004: 36) 53 Ao serem descobertos os cadáveres, já semidevorados por cachorros e corvos, o delegado, depois de uma sumária investigação, e cada vez mais persuadido de que dois mais dois só podem ser quatro, correra a prender don Memè. Mas, no decurso do mesmo dia, 10 insuspeitos moradores de Varo, a cinquenta quilômetros de Montelusa, tinham vindo prontamente testemunhar que, no dia do duplo homicídio, don Memè estava em seu vilarejo, divertindo-se na festa de São Calógero. [...] "mas como é linda a unidade italiana!", exclamara don Memè, com um sorriso mais cordial que de costume, enquanto se abriam para ele as portas da cadeia. (2004: 37) 54 Riu longamente sozinho, enquanto Sua Excelência desfazia o rolo. Eram as provas de um cartaz que anunciava a próxima apresentação da ópera Il birraio di Preston, por ocasião da inauguração do novo teatro de Vigàta. (2004: 39) 79 prefetto di Montelusa. E ai vigatesi non piace niente di quello che dicono e fanno i montelusani”. (1995: 43)55 Dom Memè assegura ao prefeito que o povo era bom, mas não aceitaria a imposição da autoridade “estrangeira”. O capítulo seis, intitulado “Nella mattina del giorno in cui” (Na manhã do dia em que o mataram), trata de uma jornada de trabalho do doutor Gammacurta, médico da cidade, de acentuado mau-humor: La scansione del malumore, tanto strammo in una persona all’urbi e all’orbo cògnita come gentile e perbene, consisteva nel fatto che quella sera, non c’erano santi, a teatro doveva andare. Al circolo, con gli altri soci, aveva pigliato solenne impegno di far finire a fischi e a pìrita l’opera che il prefetto aveva imposta ai vigatesi: poi, essendo di natura poco attirato a esporsi di persona, aveva pensato di disertare adducendo la scusa di malato grave, da visitare. Ma si era scordato della moglieri, con la quale il gorno avanti aveva un’accesa discussione. (1995: 45-6)56 O médico realmente não queria ir ao teatro, mas a esposa fazia absoluta questão de comparecer ao evento, uma vez que a senhora Cozzo, esposa do diretor, também estaria lá, e entre as duas havia uma espécie de competição, sobre quem estaria mais elegante. Ao chegarem ao teatro, o doutor Gammacurta pôde observar a alegria da esposa, pelo fato de o vestido da senhora Cozzo não chamar tanto a atenção quanto o seu, e ver os sócios do Circolo Cittadino di Vigàta: “i soci del circolo, coi qualli scambiò saluti, sorrisi e cenni d’intesa, si erano tutti strategicamente dislocati tra palchi e la platea”. (1995: 47)57 Começaria, finalmente, a apresentação da ópera. 55 "Então o problema é que essa ópera foi escolhida pelo senhor, que é o prefeito de Montelusa. E os vigatenses não gostam nem um pouco do que dizem e fazem os montelusanos." (2004: 41) 56 A razão de seu mau humor, tão estranho em uma pessoa tão gentil e de boa paz, residia no fato de que, naquela noite, não havia santo que o livrasse, teria que ir ao teatro. No clube, tinha-se comprometido solenemente com os outros sócios, no sentido de que a ópera que o prefeito tinha imposto aos vigatenses viesse a ser um fiasco, uma cagada total. Porém, sendo por natureza pouco inclinado a expor-se individualmente, tinha pensado em desertar, dando a desculpa de estar com um doente grave a ser visitado. Mas tinha-se esquecido da mulher, com quem no dia anterior tivera uma acesa discussão: (2004: 44) 57 os sócios do clube, com os quais trocou cumprimentos, sorrisos e sinais de entendimento, tinham-se colocado todos estrategicamente pelos camarotes e a plateia. (2004: 45) 80 Amici, alla fabbrica allegri, corriamo! I sei operai parsero toccare il cielo con un dito. Allegri corriamo! Fecero tutti assieme, isando le vrazza. Con biade e luppoli la birra facciamo! I sei con le parannanze si misero a satare di gioia. La birra facciamo! [...] E Bob, correndo da una carriola a un sacco, da un sacco a una pila di cannestri. Facciamo un liquore che arreca piacer.(1995:47-8)58 Ao ouvirem essa exaltação à cerveja, logo começaram a gritar, no intuito de atrapalhar a apresentação: “A tia piace!” esclamò a voce alta uno che stava assittato nei posti proprio sotto al soffitto. “A mia la birra pare pisciazza, a mia mi piace il vino!” (1995: 48)59 A partir desse momento, tem inicio, além da ópera, um tumulto protagonizado pela plateia. Havia rejeição à ópera, pois as pessoas não entendiam como funcionava a dinâmica da apresentação, e questionavam sobre o que acontecia no palco, como podemos observar na voz indignada de dom Gregorio Smecca: “Ma perchè questi sei stronzi ripetono sempre le cose? Che credono, che siamo zulù? Noi quello che c’è da capire lo capiamo a prima botta, senza bisogno di ripetizione”. (1995: 48)60 O prefeito, irritado com a confusão, pede ao delegado Puglisi, que estava sentado próximo dele no camarote real, que prendesse os que estavam 58 Amigos para a fábrica Alegres corramos Os operários pareciam estar no céu. Alegres corramos disseram todos juntos, erguendo os braços. Com aveia e lupo A cerveja façamos! [...] E Bob, correndo de um carrinho de mão para um saco, de um saco para uma pilha de cestos: Fazemos um licor Que faz gosto. (2004: 46) 59 "Você gosta?", perguntou em voz alta um dos que estavam nas cadeiras da torrinha, bem debaixo do teto. "Pra mim esta cerveja 'tá parecendo mijo, eu gosto mesmo é de vinho!" (2004: 47) 60 "Mas por que esses seis bostas ficam repetindo a mesma coisa? 'tão achando o quê, que nós somos zulus? O que tem que entender nós entendemos da primeira vez, não precisam repetir!" (Idem) 81 atrapalhando a apresentação. Porém, o delegado lhe sugere calma, pois sabia que, a qualquer momento, poderia haver uma rebelião, e que não seria totalmente culpa dos espectadores: “Guardi, Eccellenza, mi perdoni, ma non c’è assolutamente cattivo animo o intenzione in quello che fanno. Non sono disturbatori, io li conosco uno per uno. Brava gente, mi creda, rispetosa. Solo che non hanno mai visto un teatro e non sanno come starci”. (1995: 49)61 O prefeito cede ao apelo do delegado e não insiste na prisão dos “baderneiros”. É nesse clima de insatisfação geral, do prefeito e do público, que a apresentação transcorre, com a alegria de Danielle Robinson, dono da cervejaria, que anuncia as bodas com sua noiva, Effy. Entretanto, de vez em quando, os espectadores faziam algum tipo de comentário sobre os acontecimentos narrados na ópera, por brincadeira ou por ignorância: Cercate, trovare in tutti i contorni i flauti, i timbali i pifferi, i corni. “I corni non hai bisogno di cercarli, vengono da soli” disse una voce dal solito loggione. Qualcuno rise. “Ma il timbalo non è quello che mi fai col riso, la carne e i piselli?” spiò seriamente Gammacurta alla moglie, “Sì”. “E allora, che ci accucchia coi pifferi e i flauti?”. (1995: 50)62 As diversas interrupções feitas pelos vigatenses acabaram prejudicando o desenvolvimento do espetáculo e a performance dos cantores, em especial da soprano que representava o papel de Effy, cuja forma física não passou despercebida por Lollò Sciacchitano e Sciaverio: 61 "Veja, Excelência, perdoe-me, mas não há maldade ou má intenção no que fazem. Não são perturbadores da ordem, eu os conheço um por um. São boa gente, e respeitosa, creia-me. Só que nunca viram um teatro e não sabem como se comportar nele." (2004: 48 ) 62 Procurem e achem por esses arredores As flautas, os tímbalos, os pífaros, os cornes. "Os cornos ninguém precisa procurar, eles aparecem sozinhos", disse uma voz, sempre da torrinha. Alguns riram. "Mas timbale não é aquilo que se faz com arroz, carne e ervilhas?", perguntou seriamente Gammacurta a sua senhora. "Sim", disse a mulher. "Então o que é que tem a ver com os pífaros e as flautas?"(2004: 49) 82 Era un fimminone di due metri e passa, con certe mani che parevano palle e un naso che uno ci si poteva saldamente afferrare se tirava vento forte. E sotto questo naso c’era un’ombra scura di baffi che il belletto generosamente cosparso non riusciva a nascondere. Si muoveva inoltre a larghe falcate, battendo rumorosamente i talloni. (1995:52)63 A questo punto, dal loggione si udì la voce di Lollò Sciacchitano. “Sciavè, tu saresti capace di spasimare per na fimmina accussì?”. Stentorea la risposta di Sciaverio: “Manco dopu trent’anni di carzaro duro, Lollò”. (1995:53)64 O doutor Gammacurta, que a princípio via nessa confusão armada pelo Circolo Cittadino a principal razão de sua presença ali, sente-se incomodado e penalizado pela cantora, decidindo então retirar-se do local, indo ver o cavalheiro Mistretta que, durante uma das intervenções, havia tido uma crise de asma. No capítulo seguinte “Egregie signore e diciamole pure” (Prezadas senhoras e também...), ouve-se o discurso do professor Carnazza que, a pedido de sua mulher, que era amiga da esposa do prefeito, aceitara proferir uma espécie de conferência na casa do marquês Coniglio della Favara. O tema era Luigi Ricci, o autor de Il birraio di Preston, o que, na verdade, constutuía mais uma estratégia de dom Memé e do prefeito Bortuzzi, na promoção do evento. No entanto, já no início de seu discurso, o professor explica o porquê de ter aceitado o convite: satisfazer o desejo da esposa, que era muito mais jovem que ele: io non sapevo niente di questo Luigi Ricci, me ne fottevo altamente, scusate, di lui e delle musiche sue. Del resto poche sono oramai le cose che m’allettano. E invece, no: tu questa conferenza la devi fare, mi comanda lei, altrimenti... Altrimenti, lo so io che significa altrimenti! Basta, lasciamo perdere. E chi glielo ha proposto alla mia signora? Tutti sapete che Concetta è amica stritta della signora di Sua Eccellenza il prefetto Bortuzzi. 63 Era uma mulheraça de dois metros e tanto, com mãos que pareciam pás e um nariz ao qual alguém poderia seguramente agarra-se em caso de ventania. E sob esse nariz havia uma sombra escura, de bigodes que o póde-arroz generosamente espalhado não conseguia esconder. Movia-se, além disso, em passos largos, batendo ruidosamente com os calcanhares. (2004: 51) 64 A esta altura, da torrinha veio a voz de Lollò Sciacchitano: "Sciavè, você seria capaz de se apaixonar por uma dona dessas?" Estrepitosa foi a resposta de Sciaverio: "Nem depois de 30 anos de prisão, e das piores, Lollò."(2004: 53) 83 Spiegato il busillisi? Chiaro? Ecco la scansione per la quale sono qua, come un trunzo, davanti a voi”. (1995: 55)65 A revelação do palestrante deixou em má situação dom Memé, conhecidamente aliado do prefeito, que se sentiu perdido, pois a ideia tinha sido sua: La bella pensata di dire al prefetto che la di lui signora Luigia intesa Giagia, parlasse alla signora Concetta, maritata al preside Carnazza del ginnasio di Fela l’aveva avuta lui. Amici, ai quali aveva domandato consiglio, gli avevano indicato il professor Carnazza come finissimo intenditore di musica, tacendogli però, i cornuti, che il preside era magari, e forse più, finissimo, intenditore di vini. E dire che persino Sua Eccellenza l’aveva messo in guardia. (1995: 55)66 O diretor dá início à palestra, informando detalhes da vida e obra do compositor, e, ao mesmo tempo, comparando fatos da vida de Luigi Ricci com a de amigos presentes, até que chega a Il birraio di Preston, discorrendo sobre as informações técnicas da ópera: data da primeira apresentação, autor do libreto, entre outras informações. A forma como o diretor Carnazza conduziu a palestra provocou efeito contrário ao esperado por dom Memè, ao ponto de o próprio anfitrião, marquese Coniglio della Favara, vir saudá-lo durante o intervalo da conferência, pois, sabendo que dom Memè era aliado do prefeito, surpreendeu-se com o que ele imaginou ser uma ação de Ferraguto provando justamente o contrário, que ele se opunha à encenação da ópera: “Grazie, don Memè”, agradeceu com um sorrisinho, “non pensavo che lei malgrado tutto fosse dalla parte nostra”, disse o marquês. (1995: 59)67 65 Eu não sabia nada a respeito desse Luigi Ricci, queria que se fodesse de todo - desculpem - ele e suas músicas. Aliás, poucas são as coisas hoje em dia que ainda me dão algum ânimo... No entanto, dá-se ao contrário: não, você tem que dar essa conferência, me ordena ela, senão... Senão, eu sei o que significa esse senão! Mas deixemos isso de lado. E quem propôs isso a minha senhora? Todo mundo sabe que Concetta é amiga íntima da mulher de Sua Excelência, o prefeito Bortuzzi. Está explicado o busílis? Está claro? É essa razão pela qual estou aqui, como uma estaca, diante dos senhores." (2004: 54) 66 A bela ideia de sugerir ao prefeito que sua Senhora Luigia, conhecida como Giagia, falasse com a senhora Concetta, casada com Carnazza, o diretor do ginásio de Fela, fora sua. Amigos a quem tinha pedido conselhos lhe haviam indicado o professor Carnazza como finíssimo conhecedor de música, não mencionando, porém, aqueles cornos, que o diretor era também, e talvez mais ainda, finíssimo conhecedor de vinhos. E dizer que até Sua Excelência lhe havia avisado. (2004: 54) 67 "Obrigado, don Memè", disse com um leve sorriso. "Não julgava que o senhor, apesar de tudo, estivesse do nosso lado." (2004:59) 84 Dom Memè chegou a pensar em matar o professor durante a pausa, a fim de evitar que ele voltasse, causando um dano ainda maior, mas desistiu da ideia ao ser abordado pelo marquês, conforme descrito acima. Porém, nada precisou ser feito, pois o professor Artidoro Carnazza jamais voltou do intervalo que ele mesmo havia solicitado. Procurado durante toda a noite, por todos os presentes que acreditavam que ele havia se perdido no palácio do marquês, jamais foi encontrado. Neste ponto, o autor constrói uma narrativa com o formato de documentário, ou melhor, “abre um parêntese” na história, a fim de que, o narrador possa explicar aquilo que, de fato, ocorrera com o diretor Carnazza, quando cita que, durante a Segunda Guerra Mundial, o palácio Coniglio foi parcialmente destruído e que, na ala que se manteve de pé, fora encontrado um baú. ( [...] Nel tettomorto dell’ala ovest rimasta miracolosamente in piedi, dentro un baule, venne rinvenuto lo scheletro di un uomo in abito da cerimonia, sicuramente deceduto per cause naturali, dato che non c’erano segni di violenza. Il baule era speciale, si poteva raprire dall’esterno ma, una volta chiuso, scattava una molla che non consentiva di raprire dall’interno. Chi ci si metteva dentro, magari per scherzo, per babbiare, poi non poteva più nèsciri. Allato ai resti, alcuni fogli sui quali ancora a malappena si leggevano parole incomprensibili. Si potè a stento capire un nome, quello di un tale Luiggi Picci, o Ricci, che fosse). (1995: 62)68 Ou seja, sugere-se que Carnazza tenha morrido preso nesse baú descoberto no sótão do palácio Coniglio. No capítulo seguinte, “Turiddru Macca, il figlio” (Turiddru Macca, o filho), retornamos ao quadro do incêndio do teatro. O capítulo se abre com a narrativa da rotina de Turiddru Macca, um habitante de Vigàta, trabalhador do porto, sem qualquer ligação com os eventos 68 ([...] No sótão da ala oeste, que ficara milagrosamente de pé, dentro de um baú foi encontrado o esqueleto de um homem em trajes de cerimônia, que havia certamente perecido de morte natural, uma vez que não havia sinais de violência. O baú era especial, podia ser aberto por fora, mas uma vez fechado, acionava uma mola que não permitia mais abri-lo de dentro. Quem se metesse dentro dele, ou por brincadeira, ou por imbecilidade, não poderia mais sair. Ao lado dos restos, algumas folhas nas quais, ainda mal rabiscadas, liam-se palavras incompreensíveis. Com algum esforço, podia-se perceber um nome, o de um tal de Luigi Picci, ou Ricci, provavelmente.) (2004: 61-2) 85 ocorridos naquela noite. Porém, sua mãe, gnà Nunzia, morava em uma casa localizada ao lado do teatro que, naquele momento, estava em chamas, o que fez que ele deixasse sua família e fosse correndo até o local do incêndio. Nesse momento, a narrativa volta ao ponto em que o engenheiro Hoffer se preparava para colocar em prática seu plano de utilizar a máquina que inventara para apagar o incêndio: “Kvi, kvi, da kvesta parte!” gridò l’ingegnere ai suoi uomini che arrivarono in un fiat con la macchina spegnivampe. Gli si avvicinò uno che teneva un fazzoletto vagnato sul naso per proteggersi dal fumo. “Sono il delegato Puglisi. Lei chi è che vuole fare?”. “Io essere e sono ingegnere Hoffer. Ingegnere di miniera. Ho kvi makinario di me inventato che speghne foco. Lei aiuta me? “Certo” disse il delegato che già aveva, rassegnato, allargato le braccia davanti al danno, e quindi ogni cacatella di mosca poteva giovare. (1995: 65)69 Entra em cena outra personagem importante: o delegado Puglisi, o investigador da trama. Em meio à ação para apagar o incêndio, o engenheiro tem um diálogo com uma das famílias desalojadas por conta do fogo. É a família Pizzuto, que, em coro, relata o que teria acontecido, como se estivessem em uma apresentação teatral: “Foi apitare in kvesta kasa?” spiò l’ingegnere al gruppo immobile. Il gruppo si animò, pigliò vita. “Siamo la famiglia Pizzuto” dissero i quattro tutti insieme. Poi il cinquantino fece mezzo passo avanti, parlò. “Mi chiamo Antonino Pizzuto” disse con voce strasciata e lagnosa. “Abbitiamo al piano terra di questa casa che pigliò foco. Stavamo dormendo con le finestre chiuse”. “Con le finestre chiuse” dissero gli altri. (1995: 66)70 69 "Aqui, aqui, em este lato!", gritou o engenheiro para seus homens, que chegaram num abrir e fechar de olhos com a máquina de apagar chamas. Aproximou-se dele um homem que trazia um lenço molhado sobre o nariz, para proteger-se da fumaça. "Sou o delegado Puglisi. E o senhor, quem é e o que está querendo fazer?" "Eu serr e sou engenheira Hoffer, engenheira da mina. Tenho aqui uma máquina de minha invençon que apaka fogo. O senhor ajuda mim?" "Claro", disse o delegado, que já estava abrindo os braços, desalentado, diante do dano, e para quem, por isso, qualquer mínima cagada de mosca poderia ser útil.(2004: 65) 70 "Focês habitarr esta casa?", perguntou o engenheiro ao grupo imóvel. O grupo animou-se, recuperou vida. "Somos a família Pizzuto", disseram os quatro juntos. Em seguida, o cinquentão deu meio passo adiante e falou: 86 A descrição prossegue até o momento em que a água do mar finalmente chega à máquina, que começa a funcionar e combater as chamas, para a extrema felicidade do engenheiro, devido ao sucesso do seu invento: Nardo Sciascia, sentito l’ordine, raprì com mano ferma il volano dell’acqua fredda. Immediatamente un getto violento, che fece traballiare i due che tenevano la pompa, pigliò a dirigersi verso le vampe. Per la commozione, l’ingegnere si mise a ballare ora su un piede, ora sull’altro, pareva un orso. (1995: 67)71 Voltando a Turiddru Macca. O rapaz, com muito esforço, consegue passar pelo cordão de isolamento e chega à casa de sua mãe. Ao se deparar com o quadro, entra em desespero: Chiangia, Turiddru, per lo scanto del piricolo che so matre stava correndo, ma chiangiva magari per la bella casa che se ne stava andando in fumo, quella casa di tre cammari e cucina dove lui e la sua famiglia, dopo la morte della gnà Nunzia, ma all’ora giusta e santa, quella voluta da Dio, sarebbero potuti andarci ad abitare, con più largo e còmido del catojo dove adesso stavano. (1995: 67)72 Nessa parte da narrativa, as duas cenas principais do capítulo se intercalam, acontecem simultaneamente, fazendo que os dois protagonistas estejam no auge de suas ações: o engenheiro tentado apagar o fogo o mais rápido possível e Turiddru desesperado por salvar a mãe: Fu a questo punto che il finestrone del quartino abitato dalla gnà Nunzia si raprì di colpo e spuntò una figura di fìmmina anziana in cammisa bianca di notte. L’apparizione alzò le braccia verso il cielo. “Gesuzzu beddru! Madunnuzza santa! Foco doviva éssiri e foco fu!” “Mamà!, Mamà” chiamò Turiddru. "Eu me chamo Antonio Pizzuto", disse com voz arrastada e lamentosa. "Moramos no andar térreo desta casa que pegou fogo. Estávamos dormindo, com as janelas fechadas." "Com as janelas fechadas", disseram os outros. (2004: 66) 71 Nardo Sciascia, ouvindo a ordem abriu com mão firme o registro da água fria. Imediatamente um violento jato que fez oscilar os dois que seguravam a bomba, começou a sair na direção das chamas. No auge da emoção, o engenheiro pôs-se a dançar, ora sobre um pé, ora sobre outro, como se fosse um urso. (2004: 67) 72 Turiddru chorava de medo, do perigo que sua mãe estava correndo, mas chorava também pela linda casa que estava virando cinzas, aquele apartamento de três quartos e cozinha, em que ele e sua família, depois da morte da dona Nunzia - mas na hora justa e sagrada, querida por Deus -, teriam podido instalar-se com mais espaço e comodidade que no casebre em que estavam morando. (2004: 67-8) 87 La vecchia non fece ‘nzinga d’averlo sentito. Sparì nuovamente dentro la casa. “Schnell! Presto!” fece a gran voce Hoffer esaltato. “Pisoghna salfare vecchia tonna!”. (1995: 68)73 No meio da confusão, o engenheiro, que naquele momento experimentava uma extrema alegria por salvar vidas com seu invento, se confunde na tradução das ordens do alemão para o italiano, o que causa um acidente com a família Pizzuto. Porém, Turiddru percebe que a máquina inventada pelo engenheiro de fato havia ajudado a controlar as chamas, e aproveitou esse momento para entrar na casa de sua mãe e salva-la. Entretanto, a forma que utilizou para convencê-la a abandonar o imóvel não foi nada convencional: Non passarono manco cinque minuti che Turiddru Macca assumò dal fumo tenendo la gnà Nunzia immobile caricata sulle spalle. “Sbinni?” s’informò Puglisi. “Nonsi. Ci desi un cazzotto in faccia”. “E pirchì?”. “Diciva ca nun vuliva scìnniri in cammisa da notte in mezzo a tutti questi ominazzi”. (1995: 70)74 A próxima peça que compõe a história de Il birraio di Preston, “Solo chi è picciotto può avere” (Só quem é jovem pode ter tais sentimentos), apresenta mais uma importante cena para o desenvolvimento da narrativa: “solo chi è picciotto può avere sentimenti così” pensò don Pippino Mazzaglia con una punta d’invidia e una di compatimento mentre ascoltava la discorruta di Nando Traquandi, il giovane arrivato clandestino da Roma e che lui teneva ammucciato nella sua casa di campagna da una simàna. Sicco, capelli rossicci e ricci, con gli occhialetti darrè i quali sparluccicavano gli occhi spiritati, la mano mancina a grattarsi di tanto in tanto, come un ticchio, la rada barbetta torno torno il mento, la mano dritta che a ogni cinque parole portava alle labbra un fazzolettino di pizzo per asciucare la 73 Foi a esta altura que o janelão do pequeno quarto habitado por Dona Nunzia abriu-se súbito e apareceu uma figura de anciã em camisola branca de dormir. A aparição ergueu os braços para o alto. "Sangue de Cristo" Minha Santíssima Virgem! Fogo! Tinha que ser fogo, e fogo foi!" "Mamãe, mamãe!", chamou Turiddru. A velha não deu sinal de ter ouvido. Desapareceu de novo para dentro da casa. "Schnell! Depressa!", disse, aos berros, Hoffer, exaltado. "Brecisa salvarr velha zinhora!" (2004: 68) 74 Não se passaram nem cinco minutos e Turiddru Macca reapareceu dentro da fumaça, trazendo nas costas Dona Nunzia. "Desmaiou?", perguntou Puglisi. "Não, senhor. Eu, que dei um soco na cara dela." "E por quê?" "Dizia que não ia descer de camisola no meio de todos esses marmanjos."(2004: 70-1) 88 macchietta bianca che la sputazza condensandosi, formava ai lati della bocca. (1995: 72)75 A personagem descrita acima, Nando Traquandi, um jovem mazziniano76 que chega à Vigàta com uma missão secreta exerce papel fundamental na trama. O ato que estava para executar tinha por objetivo levantar a população contra o governo vigente, atendendo, assim, aos objetivos revolucionários dos carbonari77. Traquandi é mentor e co-executor do incêndio do teatro, o fato central do romance que estamos examinando. Conta com o auxílio de alguns vigatenses integrantes do grupo mazziniano, que o apóiam e lhe dão abrigo: Ninì Prestìa, Pippino Mazzaglia, Cosimo Bellofiore, Decu Garzia, sendo este último o seu cúmplice direto na ação do incêndio. O jovem romano tinha seu plano de ação bem definido, e pretendia utilizar a inauguração do teatro para atingir seu intento, o de causar uma revolta popular contra o governo vigente, o que deixava intrigado o grupo que o estava apoiando, uma vez que eles não conseguiam entender a relação entre os dois fatos, a 75 "Só quem é jovem pode ter esse tipo de sentimentos", pensou don Pippino Mazzaglia com uma ponta de inveja e uma certa pena, enquanto escutava o discurso de Nando Traquandi, o jovem que chegara clandestinamente de Roma e que há uma semana ele mantinha escondido em sua casa de campo. De talhe delgado, cabelos meio ruivos e encaracolados, usando pequenos óculos através dos quais brilhavam olhos arregalados, a mão esquerda coçando de vez em quando, como um tique, a rala barbicha sob o queixo, a mão direita a cada cinco palavras levando aos lábios um lencinho de renda, para enxugar a pequena mancha branca que a saliva, condensando-se, formava ao lado da boca. (2004: 72) 76 Não podemos deixar de escrever uma nota sobre Giuseppe Mazzini (Gênova, 1805 – Pisa, 1872), “o apóstolo da unidade e da independência italiana, que deveriam ser conseguidas, uma e outra, por obra do povo e na forma democrática da república. Animador incansável, dedicou a sua vida, desperdiçada a maior parte em doloroso exílio, numa férvida pregação de ideias, através do exemplo pessoal, de cartas e da atividade revolucionária de associações nacionais e internacionais tais como a “Jovem Itália” (1831), a “Jovem Europa” (1834), a “Liga Internacional dos Povos” (1847) e na “Associação Nacional Italiana” (1848). / A concepção de Mazzini, alimentada por um sentido profundamente religioso (daqui a conhecida fórmula “Deus e Povo”) e aberta à questão social e aos novos problemas da emancipação dos operários, supera de um lado os princípios individualísticos incluídos na Revolução Francesa, afirmando a possibilidade do homem expandir a própria personalidade somente na vida coletiva; e supera de outro lado o utilitarismo do século XVIII, contrapondo a este uma visão inteiramente espiritual e moral da vida. / No pensamento mazziniano a nação, “livre e una”, não é senão o natural e necessário degrau pelo qual o homem pode alcançar, partindo do conceito de pátria, o superior da unidade substancial, mesmo subsistindo os organismos nacionais, da família humana inteira. Ele, portanto, indicou aos jovens não simplesmente a libertação da Itália e da Europa, mas de todos os povos, como condição primordial da verdadeira libertação do homem”. In: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/mazzini.html 77 Carbonário, s.m. Aquele que era membro de certa sociedade secreta revolucionária, na Itália; (p. ext.) membro de qualquer sociedade secreta revolucionária. (Do it. carbonaro, do lat carbonariu.) Superdicionário Língua Portuguesa. 89 inauguração do teatro e a ação mazziniana que estava para acontecer. Pippino Mazzaglia resolve então fazer tal questionamento. “Quello che voglio spiare non è pura e semplice perdita di tempo, come forse a lei può sembrare. È da quando è cominciata questa storia del Birraio che io ci perdo il sonno a domandarmi perchè il prefetto di Montelusa s’è intestato a volere inaugurare il teatro di Vigàta con quest’opera che nessuno voleva. Ho saputo che non ci ha interesse di soldi, che l’autore non era parente suo, che non si corica con qualcuna delle cantanti. E allora perchè lo ha fatto? Per ottenere il risultato che voleva, ha obbligato a dimettersi due consigli d’amministrazione del teatro, fino a quando non ha trovato le pecore giuste che facessero a tempo beee sotto la sua bachetta. Perchè? (1995: 75)78 Na verdade, o questionamento não interessa a Nando Traquandi, pois em sua opinião a insistência do prefeito em inaugurar o teatro com Il birraio di Preston seria somente uma oportunidade de ele demonstrar seu poder: “Allora je dico che er prefetto voleva dimostrà er potere suo, e, indirettamente, quant’è potente er governo che lui rappresenta”. (1995: 75)79 Traquandi afirma que os motivos do prefeito não se mostravam relevantes e que somente a ação importava. Também que “parlare, discutere, capire” era coisa de gente velha. Eles continuam com a reunião, o romano mostrando e lendo partes de diversos documentos que, segundo ele “dimostrano come la situazione sia oramai arrivata a un punto estremo”. (1995: 73)80 No final, o romano fez comentários sobre a situação em que se encontrava a Itália, além da que o próprio movimento dos carbonari enfrentava. Explicou porque aquela oportunidade não poderia ser perdida: 78 "O que quero perguntar não é pura e simples perda de tempo, como talvez possa parecer. É que, desde que começou essa história do Birraio, eu venho perdendo o sono, perguntando-me por que o prefeito de Montelusa insistiu em querer inaugurar o teatro de Vigàta com essa ópera que todos rejeitam. Soube que não há no caso interesse financeiro, que o autor não é seu parente e que ele não dorme com nenhuma das cantoras. Então, por que o fez? Para conseguir o resultado que queria, obrigou dois conselhos de administração do teatro a se demitirem, até a vir encontrar ovelhas obedientes que balissem prontamente seus mée sob sua batuta. Por quê?" (2004:75) 79 "Então eu digo: o prefeito queria demonstrar seu poder e, indirettamente, a força que tem o governo que ele representa." (2004:75) 80 mostram como a situação já havia chegado a um ponto extremo 90 “Io ho finito, ma potrei continuare ancora, sempre con le parole dei nostri nemici che sono le stesse identiche di quelle che potremmo usare noi: Famo a capicce: l’Italia è un vurcano pronto a scoppià. E loro lo sanno e ci hanno pavura. Mannano in galera i nostri, scoprono i nostri depositi d’armi, li sequestrano o je danno foco, ma er giorno appresso ne spuntano di novi, tanti precisi de quanti so annati distrutti. E noi mazziniani, qui a Vigàta, si nun cogliemo l’occasione de stasera semo cojoni”. (1995:78)81 Eles sabiam que a maioria da população não estaria no teatro, mas em suas residências. Logo, a repercussão do incêndio não obteria um apelo popular tão forte. A tal ponderação, Traquandi afirma: “Sarà come dite voi. Ma noi ce dovemo approfittà de la situazione, falla diventà più grossa, senza remedio. Me spiego mejo. Si la cosa resta com’è, hai voja a dì: doppo du giorni tutti se so scordati de tutto. Ma si la cosa la famo diventà grossa assai, ne dovranno parlà tutti, e non solo qua a Vigàta. Me spiego? Bigna che diventi un caso nazzionale”. (1995: 79)82 Diante da afirmação de Traquandi, Decu Garzìa logo se mostrou interessado e questionou como seria, então, a ação, ao que o romano prontamente respondeu: “Se manna a foco er teatro”83. A partir desse momento, o plano estava traçado, assim como o destino de Vigàta. “Lei sa home la penso” (O senhor sabe o que penso), o capítulo seguinte, traz à cena um diálogo entre o prefeito Bortuzzi e o coronel Aymone Vidusso, comandante da praça militar de Montelusa. O motivo da discussão entre as duas autoridades é a questão da repercussão da inauguração do teatro ante a população: “Non si può rischiare un moto popolare solo perché a lei è saltato il 81 Já terminei, mas poderia ainda continuar, sempre com as palavras de nossos inimigos, que são idênticas às que poderíamos usar. Devemos ter clareza: a Itália é um vulcão prestes a explodir. Eles sabem disso e têm medo. Mandam prender os nossos, descobrem nossos depósitos de armas e põem fogo neles, mas no dia seguinte surgem outros, em número igual ao dos que foram destruídos. E nós, mazzinianos, aqui em Vigàta, se não aproveitarmos a oportunidade desta noite, somos uns idiotas. (2004: 78) 82 "Que seja como dizem. Mas nós temos que aproveitar a situação, fazer que ela se torne mais séria, irremediável. Vou explicar melhor. Se a coisa fica como está, nem é preciso dizer que, daqui a dois dias, todo mundo já terá esquecido de tudo. Mas se fizermos com que a coisa cresça bastante, todos terão que falar dela, e não só aqui em Vigàta. Fui claro? É preciso que isso se torne um caso nacional."(2004: 79) 83 Se põe fogo no teatro 91 ticchi di far rappresentare a Vigàta un’opera lirica che ai vigatesi, a quanto pare, proprio non va giù, non piace”. (1995: 80)84 Bortuzzi reafirmava que toda a oposição enfrentada pela ópera devia-se à vontade da população de se opor à autoridade instituída. O coronel Vidusso, então, traz à cena o quadro que representa a realidade política e social da Sicília da época, o que, inclusive, vai ao encontro do que Nando Traquandi havia defendido como razão para, se aproveitando do evento do teatro, iniciar uma revolta. Esta é uma citação emblemática da história cronológica representada no romance: “Sia pure, Eccellenza. Ma lei, insistendo, rischia di provocare dei malumori in un momento in cui non ce n’è proprio bisogno, lei dovrebbe saperlo almeno quanto me. Non devo essere io a rammentarle che l’isola è una polveriera e che, se non è esplosa fino ad ora, ciò è dovuto alla prudenza o, se le suona meglio, alla paura, di Mazzini. E quindi io non metterò l’esercito, i miei uomini, a servizio di un puntiglio, di un atto di testardaggine”. (1995: 81)85 O prefeito insistiu em sua decisão e exigiu o apoio do coronel Vidusso e do exército para aquilo que segundo ele, seria um movimento contra a autoridade. Afirmou que os vigatenses não entendiam nada de música, o que tornaria sem sentido a oposição à ópera por uma questão de crítica musical: “Io ragiono, sa? E diho, ragionando, che quando c’è periholo di sommovimento hontro l’autorità, lo stato, tutte le forze, diho tutte, senza distinzione di horpo e arma, devono, madonna bambinaia, essere homparte a reprimere senza stare a spaccare il culo ai passeri. Questi siciliani la son gente che puzza, lo sa o no?”. (1995: 81)86 84 "Não se pode correr o risco de uma revolta popular só porque o senhor meteu na cabeça a ideia de fazer representar em Vigàta uma ópera-lírica que, ao que parece, os vigatenses rejeitam, que não lhes agrada."(2004: 80) 85 "Que seja, Excelência. Mas, insistindo, Vossa Excelência corre o risco de provocar descontentamentos em um momento em que não há a menor necessidade disso - algo de que deve saber pelo menos tão bem quanto eu. Não deveria ser eu a lembrar-lhe que a ilha é um barril de pólvora e que, se não explodiu até agora, isso se deve à prudência, ou, se lhe parece mais exato, ao medo, de Mazzini. E por isso eu não vou pôr o exército, os meus homens, a serviço de um capricho, de um ato de teimosia." (2004: 81) 86 "Eu raciocino, sabe? E é raciocinando que di'o que quando há peri'o de sublevação 'contra a autoridade e o Estado, todas as forças, eu di'o todas, sem distinguir corporação nem arma, devem - pela Mãe de Deus! formar um só bloco, para a repressão, sem se dividir por causa de detalhes. Esses sicilianos são uma gente que cheira mal, o senhor sabe disso ou não sabe?" (2004: 81-2) 92 Entretanto, o coronel se manteve firme em sua decisão de não apoiar o prefeito e usou como argumento que o exército deveria ser conclamado, pois, em sua opinião, se tratava de uma questão do estado, um momento em que a autoridade deveria imperar, e não retroceder por conta da pressão popular. À essa argumentação, o coronel prontamente respondeu: “Lei, se vuole, può farlo. Non ne è padronissimo, ma può farlo. E può darsi che qualcuno ravvisi nel suo modo d’agire un abuso d’autorità. Fatti suoi. Ma l’esercito italiano non può e non deve restare coinvolto in una quistione stupida come questa. Ad ogni modo, domanderò il parere a chi di competenza. Mi scusi”. (1995:82)87 O prefeito ainda tenta persuadir o coronel, ameaçando informar a sua falta de colaboração a seu superior, Avogrado di Casanova. Esta se revelou uma tática inútil, uma vez que Aymone Vidusso não se deixou intimidar, mantendo-se firme em sua decisão. E o prefeito ignorava que o coronel já havia se precavido: Bortuzzi poteva murmuriàrsi quanto voleva, il colonnello Vidusso aveva le spalle coperte. Quattro giorni avanti dell’invito al colloquio col prefetto, avendo sentito il vento che tirava e prevedendo una richiesta d’intervento dell’esercito in caso che le cose si fossero messe male, aveva scritto un ampio e dettagliato rapporto al tenente generale Avogrado di Casanova, di stanza a Palermo, dove spiegava come qualmente il prefetto fosse un incapace e, quello che era peggio, un buffone disposto alle peggiori buffonate. Anzi, più che un pagliaccio: un individuo al quale il potere aveva dato alla testa e che per esercitarlo, questo potere, non aveva esitato ad allearsi con un losco figuro, un noto maffioso. Il danno che quell’uomo poteva provocare, ostinandosi a imporre ai vigatesi la rappresentazione del Birraio di Preston, si sarebbe potuto rivelare incalcolabile. (1995: 83)88 87 "O senhor, se quiser, pode fazê-lo. Não tem autoridade para tal, mas pode fazê-lo. E pode acontecer que alguém veja em seu modo de agir um abuso de autoridade. Problema seu. Mas o Exército italiano não pode, nem deve, ficar envolvido em uma questão tão tola quanto essa. De qualquer forma, vou pedir o parecer de quem tem competência para tal. Com licença." (2004: 82) 88 Bortuzzi podia resmungar quanto quisesse, o Coronel Vidusso estava coberto. Quatro dias antes da entrevista com o prefeito, tendo já visto para que lado soprava o vento e prevendo um pedido de intervenção do Exército no caso de as coisas piorarem, tinha escrito longo e detalhado relatório ao Tenente-General Advogado di Casanova, que estava em Palermo, no qual explicava quão incapaz era o prefeito e, o que era pior, era um bufão propenso às piores palhaçadas. Ou melhor, mais que um palhaço: um indivíduo a quem o poder havia subido à cabeça e que, para exibir esse poder, não hesitara em aliar-se a um sujeito de mau- 93 Ademais, fica claro que o prefeito é, de fato, visto como um palhaço, conforme observamos na citação, ou ainda, uma definição mais interessante e que está diretamente relacionada ao nosso estudo, um bufão. O apoio ao coronel chega através de um bilhete do general Casanova: “Ca y disa al surr Prefet, cun bel deuit y’m racumandu, c’a vada a pieslu ‘nt cùl”. (1995: 83)89 O prefeito considera a falta de apoio do exército um problema, pois, no caso da ocorrência de algum incidente, o que era algo bem provável devido ao modo como os fatos estavam acontecendo, ele não teria como reverter a situação. Nesse momento, Emmanuele Ferraguto intervém, dizendo que a cavalaria, sob o comando do capitão Villaroel, seria suficiente para garantir a paz e que, muito provavelmente, nada teriam a fazer: “Eccellenza, se ne stia fresco come un quarto di pollo. A Vigàta, parola di Emmanuele Ferraguto, quando rappresenteranno il Birraio non succederà niente di niente. Lo stesso capitano Villaroel e i suoi ventiquattro cavalleggeri, potranno andare, mi scusi Eccellenza, a minarsela prima, durante e dopo la musicata. Non avranno niente da fare! Invece ascùti a mia, che le porto una bella cosa” (1995:84-85)90 A “bela coisa” que dom Memè tinha levado ao prefeito era a cópia de um jornal montelusano chamado “Gallina Faraona”, que conclamava os cidadãos vigantenses a dar um voto de confiança à ópera Il birraio di Preston, deixando as críticas, caso fossem realmente necessárias, ao momento posterior à sua representação, durante a inauguração do teatro. Porém, para que o dito jornal, que em outras ocasiões havia trazido problemas a Eugenio Bortuzzi, fizesse tal crítica positiva, seria necessária a intervenção direta de Ferraguto: Conoscendo il suo proposito, e cioè che la “Gallina Faraona” se ne sarebbe uscita con un bell’articolo che avrebbe invitato i vigatèsi a mettersi a pisciare su opera, cantanti e prefetto, don caráter, mafioso notório. O dano que aquele homem poderia provocar, obstinando-se em impor aos vigatenses a representação do Birraio di Preston seria incalculável. (2004: 83) 89 "Diga ao senhor prefeito - mas, com muito trato, por favor - que vá tomar no cu!" (2004: 84) 90 "Excelência, pode ficar descansado, palavra de Emanuele Ferraguto, em Vigàta, quando for levada à cena o Birraio, não vai acontecer absolutamente nada. O próprio Capitão Villaroel e seus 24 soldados montados poderão ir, com o perdão de Sua Excelência, masturbar-se antes, durante e depois da música. Não terão o que fazer! Em vez disso, ouça-me, que tenho uma boa coisa a dar-lhe." (2004: 85) 94 Memè ci aveva giocato d’anticipo e senza perdere tempo e parole. Micio Cigna era zito con la figlia di don Gerlando Curtò, si sarebbero sposati nell’annata. Sei giorni avanti la prevista uscita dell’articolo contro il Birraio, mille pecore di proprietà di don Gerlando erano state arrubbate nottetempo di persone infaccialate che avevano stordito a legnate i tre guardiani. Per quanto Curtò si fosse messo a fare l’iradidio, delle pecore non si era trovato manco um pilo. Due giorni avanti che l’articolo niscisse, a don Gerlando era comparso davanti don Memè, cerimonioso, sorridente. “Don Gerlando, mi sono permesso di recuperargliele io le sue pecore”. Curtò aveva manifestato nessuna gioia, anzi si era preoccupato. Che avrebbe chiesto in cambio don Memè? Perché era chiarissimo che a fottergli le pecore era stato proprio quello che stava dicendogli di averle ritrovate. (1995: 87)91 Curtò não teve outra saída a não ser ceder aos caprichos de dom Memè para ter de volta suas mil ovelhas, o que custou uma acalorada discussão com seu futuro genro. “Colore latte e appannato” (De cor leitosa e cremosa), o capítulo que se segue, nos faz voltar ao cenário do incêndio do teatro. “Il teatro ancora abbrusciava, con più fumo che foco, ma solo dentro il suo perietro, i muri esterni avevano resistito magari se il tetto era crollato e lentamente si consumava dentro quella specie di grande fornace”. (1995: 89)92 91 Conhecendo seu propósito, de que a Gallina Faraona saísse com um belo artigo instigando os vigatenses a cagar para a obra, cantores e prefeito, don Memè havia jogado sua carta antes e sem perder tempo com palavras. Micio Cigna estava noivo da filha de don Gerlando Curtò e iriam se casar naquele mesmo ano. Seis dias antes de sair o artigo contra o Birraio, 1.000 ovelhas de propriedade de don Gerlando tinham sido roubadas durante a noite, por pessoas encapuzadas, que haviam atacado a pau os três vigias. Por mais que Curtò tivesse movido céus e terras, das ovelhas não achara mais que um pêlo. Dois dias antes de sair o artigo, don Memè comparecera, cerimonioso, ambíguo e sorridente, diante de don Gerlando. "Don Gerlando, dei-me ao trabalho de recuperar eu mesmo as ovelhas." Curtò não manifestara a menor alegria, ao contrário, mostrara-se preocupado. O que pediria don Memè em troca? Porque estava mais do que claro que quem lhe tinha roubado as ovelhas fora exatamente quem ora dizia tê-las encontrado. (2004: 87) 92 O teatro ainda queimava, com mais fumaça que fogo, mas só dentro de seu perímetro as paredes externas haviam resistido, embora o teto tivesse ruído e lentamente se consumia dentro daquela espécie de grande fornalha. (2004: 89) 95 Àquela altura, o incêndio já havia sido praticamente controlado, o engenheiro Hoffer e seus ajudantes tinham obtido êxito com a invenção e com a ajuda do comendador Restuccia que “Era uno dei congiurati, certo, contro la rappresentazione dell’opera, ma si era sentito indignare per l’incendio, secondo lui doloso, del teatro”. (1995: 89)93 O delegado Puglisi, que desde o início tinha permanecido no local do sinistro, decide ir até sua casa, para se banhar, antes de continuar seu trabalho. No caminho, porém, tem uma ideia e retorna ao local do incêndio, o que causa surpresa a seu subordinado, que tinha ficado ali à sua espera. A partir de então o investigador começa a exercer plenamente sua função dentro da trama, através da análise da “cena do crime”. Restavano mozziconi d’intelaiatura senza vetri, il foco se l’era mangiate. In mezzo alle sei vasiste c’era una porta di legno, o almeno quello che restava, tutta abbrusciata. Da essa si partivano sei gradini di pietra che scendevano all’interno, verso il sottopalco. Ai lati e sopra la porta c’era marcato il segno di un foco rabbioso e divorante, assai più forte che altrove. Davanti a questa porta Puglisi si fermò imparpagliato. Poi si addunò che l’ultima vasista a destra era stata per miracolo quase sparagnata, vi si avvicinò, si calo a taliarla bene. Il vetro della vasista era stato spaccato ma i pezzi erano caduti all’interno. Puglisi si rialzò e arretrò lentamente, fino a trovarsi con le spalle quase appuiate alla casa della gnà Nunzia. La visione d’insieme lo confortò nell’opinione che andava facendosi: il foco non aveva pigliato nel salone d’entrata, dove c’erano la biglietteria e lo scalone c'he portava ai palchi, alla platea e al loggione, perché uno spettatore aveva lasciato un sicarro acceso vicino a una tenda, ma era principiato dalla parte esattamente opposta. (1995: 91-2)94 93 Ele era, sem dúvida, um dos conjurados contra a representação da ópera, mas tinha ficado indignado com o incêndio, a seu ver doloso, do teatro. (2004: 89) 94 Havia restos de tela nas esquadrias sem vidros, o fogo as tinha devorado. No meio das seis pequenas janelas havia uma porta de madeira, ou pelo menos, o que dela restava, inteiramente queimada. Dela partiam seis degraus de pedra, que desciam para o interior, o subsolo do palco. Dos lados e em cima da porta havia marcas de um fogo raivoso e devorador, muito mais violento que em outros pontos. Diante dessa porta Puglisi parou, intrigado. Depois observou que a última janelinha da primeira tinha sido, quase milagrosamente, poupada, aproximou-se dela e agachou-se para olhá-la de perto. O vidro tinha sido quebrado, mas os pedaços tinham caído para o interior. Puglisi voltou a se erguer e recuou lentamente, até encontrar-se com as costas quase apoiadas na casa de Dona Nunzia. A visão de conjunto confirmou a opinião que se estava formando: o fogo não havia começado no salão de entrada, onde ficavam a bilheteria e a escadaria que levava aos palcos, à plateia e à torrinha, porque algum espectador tivesse deixado um charuto aceso perto de uma cortina, mas tinha começado exatamente pela porta oposta. (2004: 91-2) 96 Observamos, então, que o delegado, ao analisar o local, começa a juntar evidências que comprovam que o incêndio não havia começado como aparentava. Ele passa, então, a questionar o que de fato teria acontecido ali, iniciando a formulação de algumas hipóteses: Non c’era infatti dubbio che la porta di dentro era aperta al momento dell’incendio, lo testimoniavano i resti delle ante ancora attaccate ai cardini. E allora perché la porta era stata spalancata per far nascere una forte corrente d’aria che attizzasse il foco? Il cane cirneco che era Puglisi si arrisbigliò, appizzò le orecchie, fiutò l’aria, ma la stanchezza era tanta, decise che dopo la lavatina sarebbe tornato a studiare la quistione con la testa più leggera e libera. (1995: 92)95 O perfil do investigador começa a ganhar traços fortes, mostrando que Puglisi era um detetive que usa o raciocínio lógico, como Dupin e Poirot, necessitando estar em plena forma mental para conseguir analisar os elementos que se lhe apresentavam. Porém, ao tentar voltar para casa, lembra-se da viúva Lo Russo, que morava no andar superior ao da casa de gnà Nunzia. Começa a se perguntar se a jovem realmente dormira na casa da irmã, a fim de fugir da confusão e do barulho causados pela inauguração do teatro. Puglisi vai então até a casa de Agatina, e descobre que Concetta Lo Russo não havia dormido lá, o que o faz deduzir que possivelmente algo grave lhe teria acontecido, pois, estando em sua casa durante o incêndio não havia pedido socorro. Ele pega a chave reserva da casa com Agatina e volta ao local do incêndio. Ao chegar descobre o porquê do silêncio da viúva: La porta della casa della vedova da verde si era cangiata in marrò per il fumo. Raprì, trasì in un’anticamerina nivura, perché là dentro tutto era diventato nìvuro. Avanzò di qualche passo e si trovò nella càmmara da letto. Non riusciva a vedere niente, l’odore era diventado colore pece. Una lama di luce splapita trasiva da un’anta malaccostata del finestrone. Vi si avvicinò, la raprì del tutto. La luce irruppe e la prima cosa che vide furono 95 Porque não havia a menor dúvida de que a porta estava aberta no momento do incêndio, como comprovaram os restos dos alisares ainda presos às dobradiças. Então, por que a porta tinha sido escancarada para provocar uma forte corrente de ar que atiçasse o fogo? O cão rastreador que era Puglisi despertou, aguçou as orelhas, farejou o ar, mas o cansaço era tanto que decidiu que, depois de lavar-se, voltaria a estudar a questão com a cabeça mais leve e livre. (2004: 92) 97 due statue d’ebano, a grandezza naturale, messe sul letto. Rappresentavano i corpi nudi di un uomo e di una donna, strettamente allacciati. (1995: 96)96 No capítulo “In ritardu, come u solitu” (Atrasado, como sempre!) se abre mais uma cena da história, centrada no casal Gammacurta. O cenário é o teatro, com a apresentação da ópera já iniciada, na qual o médico chega atrasado, sendo logo repreendido pela esposa: “Il secondo atto è principiato da un pezzo” confermò arrabiata la signora Gammacurta. “Ti pare cosa da persone civili fare come fai tu?”. (1995: 97)97 O médico, assim como quase todos ali presentes, dava pouca ou nenhuma importância ao evento. Conversavam em alta voz, às vezes distantes uns dos outros, sem sequer olhar para o palco, onde os cantores se esforçavam para serem ouvidos. Na verdade, a população via no evento uma oportunidade de se encontrar com amigos e parentes, logo utilizaram o tempo de outra forma: “Era tutto un gran condolersi per lutti e disgrazie e un compiacersi per matrimoni, nascite e zitaggi. Il paese, una volta tanto insolitamente riunito, visto che l’opera non lo pigliava, aveva colto l’occasione per scambiarsi fatti e notizie.” (1995: 98)98 Quem estava preocupado era o prefeito, que assistia do seu camarote real o fracasso do espetáculo, estando acompanhado, entre outros, de dom Memè, que permanecia impassível ao quadro, podemos dizer, cômico que se desenhava no teatro: cantores tentando desesperadamente serem ouvidos pela plateia que, desinteressada, fazia a sua própria apresentação, num autêntico coro de vozes, 96 A porta da casa da viúva, de verde, havia-se tornado marrom, devido à fumaça. Abriu-a e entrou em uma ante-sala pequena, negra, porque lá dentro tudo se havia tornado escuro. Avançou alguns passos e viu-se no quarto de dormir. Não conseguia divisar nada. O cheiro se havia tornado cor de piche. Um débil raio de luz entrava por uma das folhas do janelão, entreaberta. Aproximou-se dele e abriu-o por inteiro. A luz invadiu, e a primeira coisa que viu foram duas estátuas de ébano, de tamanho natural, jogadas na cama. Representavam os corpos nus de um homem e uma mulher, estreitamente abraçados. (2004: 96) 97 "O segundo ato já começou faz tempo", confirmou, com raiva a senhora Gammacurta. "Você acha que é coisa de gente civilizada comportar-se como você se comporta? (2004: 97) 98 Por tora parte um condoer-se por lutos e desgraças, e um alegrar-se por matrimônios, nascimentos e noivados. O povoado, uma vez tão insolitamente reunido, já que a ópera não lhe despertava interesse, aproveitava a ocasião para intercambiar fatos e notícias. (2004: 98) 98 alheia ao que acontecia à sua volta. O ato, que poderia ser lido como oposição ao prefeito, a sua autoridade e a sua ópera, era na verdade apenas o reflexo da falta de conhecimento musical da população, que, ademais, não sentia interesse pelo espetáculo. Esse fato incomodava Bortuzzi, não por ele em si, mas pelo que representava: Tutto gli stava andando per traverso, a Sua Eccellenza, e senza che quelli che erano apertamente contro all’opera fossero intervenuti con fischiate da crapari e rumorate varie, dallo sghignazzo al pìrito. Le cose stavano andando storte perché il Birraio cadeva nell’indifferenza generale. Non pigliava. Tálio don Memè e questi allargò le braccia. Contro dieci ce l’avrebbe fatta, ma contro un paese intero? (1995: 98-9)99 Ou seja, pior que a oposição e as pessoas que, contra a vontade, assistiam uma ópera por causa da autoridade do prefeito, era aquela plateia lotada, totalmente indiferente ao espetáculo, o que provocava um efeito indesejado: dava força aos opositores do Birraio e, ao mesmo tempo, afundava ainda mais a autoriade de “sua excelência”. Após tentar entender a história encenada na ópera, ouvir os comentários da esposa, concluir que realmente o espetáculo não faria sucesso em Vigàta e, até, assistir uma parte do ato em curso, além de se aborrecer com o comentário da mulher que olhava atentamente para o palco, não pelo espetáculo, mas para os vestidos, Gammacurta decide ir embora para casa, e descobre que as saídas estavam bloqueadas, por ordem do prefeito. Os presentes até poderiam desdenhar a ópera, mas teriam de permanecer no teatro até o fim de sua apresentação. “Dove andate?” gli spiò uno dei due con la tipica voce da sbirro che faceva saltare i nervi a Gammacurta, magari se mai aveva avuto a che fare con la liggi e i suoi rappresentanti. Perciò arrispunnì sgarbato. (1995: 99)100 99 Estava tudo indo de mal a pior para Sua Excelência, e sem que aqueles que estavam abertamente contra a ópera tivessem sequer intervindo com assobios de guardiães de cabras e ruídos variados, de gargalhadas a imitação de peidos. As coisas estava indo mal porque o Birraio caía na indiferença geral, não interessava a ninguém. Olhou don Memè e este abriu os braços. Contra 10 ele havia ganhado, mas contra um povoado inteiro? (2004: 99) 100 "Aonde o senhor vai?", perguntou um dos dois, com a típica voz de policial, que irritava Gammacurta, embora nunca tivesse tido nada a ver com a lei e seus representantes. Por isso respondeu descortesmente. (2004: 103) 99 Gammacurta tenta argumentar, mas é proibido de sair do teatro, por causa da ordem do prefeito: quem tentasse desobedecer seria preso. O médico, a essa altura, já irritado, decide procurar outra saída, encontrando uma nos fundos do teatro. Porém, quando consegue cruzar a porta, ouve uma ordem para levantar as mãos: um militar a cavalo lhe apontava a arma, porque acreditava se tratar de um ladrão com a intenção de roubar o teatro, entrando pelos fundos. Porém, o médico tenta escapar e corre na direção da casa de gnà Nunzia, escondendo-se nos fundos, em um depósito de sal, pois acreditava que o militar não o alcançaria: “Difatti il milite non ci entrò, fermò la vestia, pigliò accuratamente la mira verso l’ùmmira nìvura che sul bianco del sale spiccava malgrado lo scuro e sparò.” (1995: 104)101 O próximo capítulo retoma a ação de Nando Traquandi e Decu Garzìa. A primeira cena de “Avissi voluto che mio padre” (Eu gostaria que meu pai) mostra que as duas personagens ficaram sozinhas, sem o apoio do demais, para incendiar o teatro. Decu Garzìa encontra-se em um momento reflexivo; afirma que gostaria que seus pais tivessem pensado antes de fazê-lo nascer. Quando o romano, mais por cortesia que por interesse, pergunta o porquê dessa afirmação, ele responde: “Perché non lo saccio io stesso quello che mi piglia appena sento che c’è da fare motuperio, bordello. Vogliamo abbrusciare il teatro? Abbrusciamolo, c’è qua Decu pronto! Vogliamo dare fuoco al paisi? Date una torcia a Garzìa! Vogliamo mannàrsi a farsi fottere il mondo? Eccomi in prima fila! Ma pirchì? Per comu? Per quale scascione? Nun me n’importa nenti di nenti. Appena c’è di fare danno, ruvina, minnita, mi viene la smania, ci devo essere puro io”. (1995:105)102 A Traquandi, porém, pouco importava a motivação de Decu Garzìa, visto que desejava apenas concluir seu propósito. 101 De fato, o soldado não entrou nele, parou o animal, mirou cuidadosamente na direção da sombra negra que sobressaía no banco do sal, apesar da escuridão, e atirou. (2004: 105) 102 "Porque eu mesmo não sei o que dá em mim assim que ouço que está se armando algum rolo, alguma confusão. Estão querendo queimar o teatro? Pois vamos lá, Decu está pronto! Vamos tacar fogo no povoado? Dêem uma tocha a Garzìa! Queremos mandar o mundo todo pro inferno? Aqui estou eu, na primeira fila! Mas, por quê? E como? Por que razão? Não me importa nem um tico. Basta que exista a possibilidade de causar dano, de ruína, vingança, vai me dando uma ânsia que eu tenho que me meter também." (2004: 107) 100 A condição social e a história da Itália de então voltam a ser citadas no momento em que dom Pippino retorna com os objetos que os dois utilizariam no ataque ao teatro. Questionado pelo próprio Nando Traquandi, dom Pippino confirma que o despreza, e explica o motivo: “No, non scherzo, si figuri se è il momento giusto. Io ho visto l’esercito italiano, in più occasioni, e sempre più frequentemente, sparare su gente che protestava perché stava a murìri di fame. Hanno sparato magari su fìmmine e picciliddri. E io ne ho provato raggia e vrigogna. Raggia perché non si può restarsene freschi e tranquilli a vedere ammazzare persone ‘nnuccenti. Vrigogna perché io stesso, con le mie parole, i miei atti, con gli anni di galera, con l’esilio, ho dato una mano a fare quest’Italia che é addiventata cosi com’è, una parte che soffoca l’altra e se si ribella, la spara. Ora perciò non ho più gana di provare altra vrigogna dando appoggio a persone come lei, che magari la pensano come a mia, ma che non si fanno scrupolo di provocare altro sangue. Questo è quanto. Fine della predica”. (1995: 106 107)103 Na sequência, o romano deixa a casa em companhia de Garzìa, ambos cautelosamente caminhando no escuro, rumo à ação. Durante a caminhada, Traquandi sonda sobre a cidade através de diversas perguntas a Decu Garzia. Queria saber como funcionava a iluminação do teatro e da cidade, ao que o outro responde, revelando também algumas ilegalidades e fofocas, como por exemplo o desvio de recursos que os responsáveis pela iluminação pública realizavam desligando as luzes duas horas antes do combinado, ou a guerra entre o prefeito e Puglisi, porque Bortuzzi abrira uma investigação contra ele, que era acusado de proteger o jogo de loto clandestino. Porém, dessa acusação, o delegado saira ileso: “[...] È vero che il prefetto l’ha denunciato, ma è puro vero che Puglisi se ne è nisciuto pulito. Questo però non significa”. “Nun significa che ?”. 103 "Não, não estou brincando, imagine se isto é momento para tal. Eu vi o Exército italiano, em mais de uma ocasião, e cada vez mais seguidamente, atirar contra gente que protestava porque estava morrendo de fome. Atiraram até em mulheres e crianças. Eu senti raiva e vergonha disso. Raiva de não poder ficar calmo e indiferente vendo pessoas inocentes serem mortas. Vergonha porque eu mesmo, com minhas palavras e meus atos, com anos de cadeia, com o exílio, contribuí para fazer esta Itália que chegou a ser o que hoje é, uma parte sufocando a outra e, quando esta se revolta, atirando nela. Por isso agora não tenho mais vontade de sentir vergonha maior dando apoio a pessoas como o senhor, que talvez pensem como eu, mas que não têm escrúpulos em provocar mais sangue. Só isso. Fim do sermão."(2004:107-08) 101 “Che Puglisi te la lassa passare liscia se abbrusci il tiatro. Sempre sbirro è, ed è sbirro bravo. [...]” (1995: 110)104 A afirmação de Decu Garzia nos permite verificar o julgamento que se fazia de Puglisi, tido como um bom policial, e que, portanto, poderia representar um perigo ao crime que estavam para cometer. Após roubarem dois cofrinhos de um oleiro, foram diretamente para o teatro e, ao chegarem, Traquandi preparou cautelosamente os dois cofres, enchendo-os com petróleo e pedaços de tecido. Quando estava tudo pronto, partiram para a ação: “Ce semo” disse Traquandi a vascia voce. “Tu vai verso er lato destro. Spacca tutti i vetri delle finestrelle, poi butta dentro er dindarolo. Io faccio l’istesso coll’artro. Aspetta che te l’appiccio”. [...] “Dammi puro il dindarolo tuo” fece il romano “e tu intanto spacca tutti i vetri, faranno corrente d’aria”. (1995: 111)105 O rastro deixado pela dupla durante a ação foi aquele que o delegado observou em sua inspeção, quando analisou a cena do crime. A última cena desse capítulo mostra o princípio do incêndio e os cúmplices se dirigindo à casa de Decu Garzìa, pois o romano estava com fome e sono. Ao chegar a este ponto da narrativa, o leitor já percorreu a metade do caminho e conhece a história do teatro, bem como os conflitos de poder existentes em Vigàta e a motivação do incêndio. O capítulo “Tutti oramà lo conoscevano” (Todos já o conheciam) apresenta um novo protagonista, dom Ciccio, ou Amabile Adornato, seu nome de batismo, um exímio marceneiro, conhecido e respeitado em várias cidades vizinhas à Vigàta, que nunca ficava sem trabalho. Porém, essa era apenas uma das qualidades de dom Ciccio: 104 "[...] É verdade que o prefeito o denunciou, mas é também verdade que Puglisi saiu inocente do inquérito. Mas isso não significa nada." "Não significa o quê?" "Que Puglisi venha a livrar tua cara se incendiar o teatro. Ele não deixa de ser um tira, e um tira dos bons. [...]." 105 "Chegamos", disse Traquandi em voz baixa. "Você vai para a direita. Quebra todos os vidros das janelinhas, depois joga dentro o cofrinho. Eu faço o mesmo com o outro. Espere que eu o acendo para você." [...] "Me dê seu cofre também", disse o romano, "e você enquanto isso quebra todos os vidros, para fazer corrente de ar." (2004: 112) 102 Don Ciccio teneva un particolare: non solo aveva studiato musica, sapeva leggere la carta, ma era puro capace di sonare il flauto traverso con la stessa bravura con la quale si contava sapessero sonare gli angeli quando il Padreterno comandava loro di fargli un concertino. (1995:113-4)106 Todos os domingos, após o almoço, ele realizava em sua casa um encontro de música para seus amigos mais chegados. Era admirado por seu vasto conhecimento e talento, o que aguçava a curiosidade de muitos, que sempre faziam a mesma pergunta: “Don Ciccio, comu fu?”107, que acabou lhe rendendo um sobrenome: “Don Ciccio comu fu”. O destino de dom Ciccio se cruzou com o do Birraio na tarde em que ele recebeu a visita dos principais membros do circolo “Famiglia e progresso” que queriam fazer uma pergunta importante: “Don Ciccio, voi la conoscete quest’opera che il signor prefetto di Montelusa vuole a tutti i costri farci sentire?” Mi pare che si chiama Il birraio di Preston”. (1995:115)108 Diante da afirmativa de dom Ciccio, que conhecia a ópera, e havia visto sua encenação mais ou menos há vinte anos em Palermo, os membros do Circolo esperavam pela sua opinião. A resposta veio através de uma ação, não de palavras: Don Ciccio si calo verso terra chiano chiano, portando il braccio sinistro darrè la schina che gli faceva male, con la mano destra pigliò un riccio di legno, si risusì. Mostro a tutti lentamente il truciolo, come un prestigiatore o un parrino che in chiesa fa vedere l’ostia consacrata. “Quest’opira è acussì” disse. Strinse il truciolo tra le dita, lo sbriciolò, ne gettò i minuti frammenti per aria. “Questa è l’opera, la sua consistenza”. (1995:115-6)109 106 Don Ciccio tinha uma característica: não só tinha estudado música, sabia ler partituras, mas também era capaz de tocar flauta transversa com a mesma maestria que, ao que se dizia, os anjos a tocavam quando o Padre Eterno lhes dava ordem de fazer um pequeno concerto. (2004: 114) 107 Don Ciccio, como foi? (2004:115) 108 "Don Ciccio, o senhor conhece essa ópera que o senhor prefeito de Montelusa quer a qualquer preço nos obrigar a assistir? Parece que se chama Il birraio di Preston". (2004: 116) 109 Don Ciccio abaixou-se lentamente, até o chão, levando o braço esquerdo atrás das costas, que lhe doíam, com a mão direita pegou uma raspa de madeira, e tornou a erguer-se. Mostrou a todos a lasquinha enrolada da madeira, como um prestidigitador ou um padre mostrando na igreja a hóstia consagrada. "Essa ópera é isto", disse. Apertou a lasca de madeira entre os dedos, estraçalhando-a, e jogou os diminutos fragmentos no ar. "É esta a consistência da ópera." (2004: 116-7) 103 A opinião do velho marceneiro prejudicou ainda mais a já maculada reputação da ópera, e o amanhecer do dia seguinte viu dom Memè entrar velozmente no gabinete do prefeito, que logo soube o motivo do alarme: “Capita che quel gran cornuto di falegnami di Vigàta don Ciccio Adornato, non è d’accordo, L’opira non ci piaci, l’ha detto a quelli del circolo e ora lo va dicendo a tutti”. (1995: 116)110 Dom Memé sabia que a opinião de dom Ciccio teria peso, e explicou ao prefeito que ele não era um simples marceneiro, mas uma autoridade nos assuntos musicais. Pede, então, que Bortuzzi colocasse em prática o plano por ele proposto, para dar um sumiço temporário no crítico musical, a fim de que não causasse mais nenhum prejuízo a seus planos. A solução encontrada por dom Memè, relativamente simples, consistia em ludibriar o Comendador Lillo Lumìa, que tinha uma empreitada embargada por Bortuzzi, dizendo-lhe que o prefeito havia decidido reconsiderar sua decisão. Segundo dom Memè seria a única opção: “Eccelenza, se non gli dico accussì non posso fare quello che ho in testa di fare, e don Ciccio il falegnami può continuare a smerdare l’opira e a metterci i vigatèsi contro.” (1995: 118)111 Dom Memè garantiu ao prefeito que ele não precisaria mudar de ideia em relação ao Comendador Lumìa e à sua empreitada, porque, depois da apresentação da ópera poderia dizer que não mudara de opinião. A alegria ao receber a notícia favorável foi tamanha que o Comendador se colocou à disposição de dom Memè ou de qualquer um de seus amigos. Percebendo que havia conseguido o que queria, Ferraguto colocou em prática seu plano. “Mi state facendo venire una cosa a mente. Se proprio ci tinìte, potreste darmi una mano d’aiuto per una minchiata, uno sgherzo a un amico” (1995: 120)112 Naquele mesmo dia, um criado do Comendador foi até o depósito de dom Ciccio e pediu-lhe que o acompanhasse à casa de dom Lillo, com urgência, para 110 "O que houve é que aquele grande corno de carpinteiro de Vigàta, don Ciccio Adornato, não está de acordo. Não gosta da ópera, disse isso para os do clube e agora anda dizendo para todo mundo." (2004: 117) 111 "Excelência, se não falar assim, não vou poder fazer o que tenho em mente, e don Ciccio, o carpinteiro, vai poder continuar a jogar merda na ópera e colocar os vigatenses contra nós." (2004: 119) 112 "Está me fazendo lembrar de uma coisa. Se o senhor faz mesmo questão, poderia me dar uma ajudinha para uma bobagem, uma brincadeira que quero fazer com um amigo?"(2004: 121) 104 retirar um “etàgere”. Duas horas depois o móvel já estava sendo transportado para a oficina do marceneiro, onde deveria ficar por duas semanas. O plano de afastar dom Ciccio teve seu desfecho ao amanhecer do dia seguinte: Alle sette del mattino del giorno appresso, don Ciccio, che aveva appena aperto, vide trasire nel magazzino il tenente Pillitteri dei militi a cavallo con due dei suoi uomini. Senza dire manco una parola gli sbirri lo sbatterono contro il muro, mentre Pillitteri andava a colpo sicuro verso il tanger. Lo raprì, levo un quadratino di legno che nascondeva un angolo morto, ci infilò la mano, tastiò, tirò fora due anelli di brillanti e un colliè di cui la signora Lumìa aveva denunziato la sira avanti la scomparsa. Pillitteri gli mise i ferri ai polsi e gli fece attraversare tutta Vigàta a piedi in mezzo ai due militi a cavallo. (1995: 121)113 Assim, dom Ciccio acabou pagando caro, com a privação da própria liberdade, além da falsa acusação de roubo. Sua opinião contrária ao Birraio o afastara do convívio social, como era a intenção de dom Memè. Ademais, sua prisão serviu como um aviso aos que porventura se opusessem ao espetáculo que estava para acontecer. “Il vento s’alzò da occidente” (O vento veio do Ocidente) leva o leitor de volta à casa de Concetta Lo Russo. O delegado agora observa a madeira que servira de ponte para o homem, ainda descohecido, entrar na casa da viúva e, no interior da casa, o estado em que esta ficara por causa do fogo, com as paredes pretas e uma nuvem de fuligem. Ele ainda estava no quarto, a observar os corpos e o ambiente, quando a irmã da morta chegou à casa. O delegado ainda tentava encontrar uma forma de comunicar a morte da viúva quando Agatina, percebendo o que havia acontecido, começa a gritar. E Puglisi não conseguiu suportar os gritos e as lágrimas da mulher: Ma era proprio questo che Puglisi di natura sua non era capace di reggere, le vociate e le lagrime delle fimmine. Violento e improvviso, lo schiaffo del delegato fece torcere la faccia di Agatina tutta da un lato, mandò a sbattere la picciota contro un 113 Às sete da manhã do dia seguinte, don Ciccio, que acabava de abrir o depósito, viu entrar na oficina o Tenente Pillitteri, da Polícia Montada, com dois de seus soldados. Sem dizer palabra, os esbirros o colocaram de encontro à parede, enquanto Pillitteri ia, sem hesitar, para o étagère, que abriu. Dele tirou um quadradinho de madeira, que escondia um ângulo morto, enfiou nele a mão, vasculhando, e retirou dois anéis de brilhantes e um colar, dos quais a Senhora Lumìa tinha dado falta na noite anterior. Pillitteri colocou-lhe as algemas nos pulsos e o fez atravessar toda Vigàta a pé, no meio dos dois soldados a cavalo. (2004:122) 105 muro. Contemporaneamente Puglisi le arrivò di sopra con tutto il corpo, schiacciandola. “Statti azzittata. Non ti cataminare, non fare voci. Ferma, o ti arriva un’altra timbulata che ti apiccia la testa. Mi senti? Stati ferma o ti spacco la faccia. Talìami, mi capisci?”. (1995:123)114 Após levar Agatina até o quarto e mostrar-lhe os cadáveres da irmã e do amante, na cama, o delegado a questionou sobre a duração do relacionamento que Concetta e Gáspano Inclima mantinham; porém, chegaram à conclusão que aquele teria sido o primeiro e último encontro do casal, e refletiam sobre aquela fatalidade, pois a jovem viúva pagara com a vida o seu encontro secreto, após cinco anos de viuvez, e o pior ainda estava por vir, pois teria sua honra denegrida. O delegado ponderou que poderia evitar que a imagem da viúva fosse maculada: Tornò nella cammara da letto, s’avvicinò ai due morti, allungò una mano e toccò i corpi. Erano ancora morbidi e cedevoli, si vede che il calore dei fumolizzo aveva ritardato la legnosità della morte. Si levò la giacchetta, i pantaloni, la cammisa: rimase in mutande e maglia di lana. Tirò un lungo sospiro e si mise all’opera. (1995:126)115 Terminada a arrumação do quarto, chamou Agatina e disse-lhe que a cena que ela veria era a “oficial”, a que deveria ser descrita a todos, como sendo a encontrada no momento em que entrara na casa da irmã: Nella cammara la scena era completamente cangiata. Sul letto, non più nuda ma in fodetta, ci stava Concetta, ed era come se stesse tranquillamente dormendo. Il piccioto invece era stinninchiato per terra, completamente vistuto, i piedi rivolti verso il finestrone e un braccio sopra il letto. Stava a facciabocconi. (1995: 126)116 114 Mas era justamente isso que Puglisi, dada a sua natureza, não era capaz de aguentar: os gritos e as lágrimas das mulheres. Violento e imprevisto, o tabefe do delegado fez Agatina virar o rosto para um só lado e a jovem bater de econtro a uma parede. Ao mesmo tempo, Puglisi chegou sobre ela com todo o corpo, imprensando-a. "Fique quieta. Não se mova, não grite. Pare, ou vou ter que lhe dar outra bofetada de arrebentar a cabeça. Está me entendendo? Fique parada ou te quebro a cara! Olhe para mim, está me entendendo?" (2004: 124) 115 Voltou para o quarto de dormir, aproximou-se dos dois cadáveres, estendeu a mão e tocou os corpos. Estavam ainda macios e cediam à pressão, via-se que o calor da fumaça tinha retardado a rigidez da morte. Tirou o casaco, as calças e a camisa: ficou em cuecas e camiseta de lã, deu um longo suspiro e pôs mãos à obra. (2004:126-7) 116 No quarto a cena estava completamente mudada. Na cama, não mais nua, e sim de combinação, estava Concetta, como se estivesse dormindo tranquilamente. O rapaz, ao contrário, estava estendido no chão, completamente vestido, os pés virados para o lado do janelão e um braço sobre o rosto. Estava de bruços. (2004: 127) 106 O delegado gostava de Agatina, e talvez, por isso, ou porque achasse mesmo uma injustiça a viúva ser difamada por uma única noite de amor, segundo suas próprias palavras “E io tutto questo tiatro lo sto facendo solo perché non mi pare di giusto e poi perchè me l’hai addimandato tu” (1995: 127)117, resolveu alterar a cena e assim salvar a honra da falecida. No cenário criado, os amantes tornaram-se vítimas inocentes do incêndio: ela, morta por não ter conseguido escapar das chamas; ele morto heroicamente ao tentar salvar a viúva. O sentimento de justiça, ou a interpretação do que seria mais justo, também é característica de Montalbano. Podemos observar tal semelhança na atitude do comissário em La forma dell’acqua, descrita em L’incantesimo di Camilleri: Montalbano è uno che non sopporta le sopraffazioni e le ingiustizie sociali [...] Contro di essi si batte come uomo, prima che come poliziotto. Perciò non disdegna, per arrivare allo scopo, di adoperare metodi non sempre ortodossi dal punto di vista dell’applicazione della legge. Per esempio, in La forma dell’acqua, non esita a patteggiare con l’avvocato Rizzo, un potente di sottobosco mafioso implicato in un omicidio, per procurare una soluzione a un testimone recalcitrante, che a rigore dovrebbe essere perseguito: costui ha tentato di vendere un oggetto prezioso trovato per caso, forse una prova, perchè ha il figlioletto malato, è povero e non può permettersi il costo delle cure per il bambino. Montalbano fa in modo che a pagare le cure sia proprio l’avvocato Rizzo, e non importa se bisognerà falsificare una data. (2005: 93)118 Podemos observar que tanto Montalbano quanto Puglisi recorrem a métodos questionáveis para fazer valer seu senso de justiça. Porém o autor consegue articular os “deslizes” da verdade nua e crua, do estritamente legal e verdadeiro, sem comprometer o caráter ou a capacidade investigativa de ambos. O leitor sempre sabe o real motivo de tais atitudes. 117 "Estou fazendo toda esta encenação só porque não me parece justo, e também porque você me pediu." (2004:128) 118 Montalbano não suporta as opressões e injustiças sociais. [...] Contra essas, luta como homem, mais do que como policial. Por isso, para alcançar seus objetivos, não hesita em utilizar métodos pouco ortodoxos do ponto de vista legal. Por exemplo, em La forma dell'acqua, não exita em estabelecer um pacto com o poderoso dvogado Rizzo, de passado mafioso, envolvido em um homicídio, na tentativa de encontrar uma solução para uma testemunha desobediente, que deveria ser rigorosamente perseguida: essa pessoa tentara vender um objeto precioso que achara, talvez uma prova, porque tinha o filho doente, e, sendo pobre, não podia arcar com o custo do tratamento do menino. Montalbano faz que o próprio advogado Rizzo pague o tratamento, e não importa se precisará falsificar uma data. (Tradução da autora) 107 Puglisi, assim com outros investigadores, não se encaixa no perfil clássico do investigador frio e calculista, focado exclusivamente na solução do enigma, cuja vida particular e sentimentos são totalmente ignorados. Por gostar da irmã da jovem viúva, interferiu na realidade, criou, como ele mesmo disse, um teatro, no qual se encenou uma ficção sobre a morte de Concetta e Gàspano. O delegado, inclusive, acabou se deixando seduzir por Agatina, ainda na casa incendiada, ato cujo desdobramento se verifica mais adiante na trama. Por fim, ele chama seu assistente, o investigador Catalanotti, que percebeu imediatamente que havia algo de errado na cena da morte dos amantes, cuja disposição dos corpos lhe pareciam “pupi finti”, bonecos criados por alguém: “Puvireddri! Puvireddri tutti e dù” li compassionò Catalanotti che non mancava intanto di taliàre d’attorno con gli occhi di bravo sbirro quale era. C’era qualcosa che non lo faceva persuaso, ma non la sapeva individuare. (1995: 128)119 A farsa engendrada pelo delegado durou pouco, pois Catalanotti não concordou com a explicação oferecida por seu chefe. Quando Puglisi falou sobre a possibilidade de o jovem morto ter subido por uma rampa e quebrado a janela, na tentativa de salvar a viúva, foi interrompido por seu subordinado, que mostrou a janela intacta, o que provava que tinha sido Concetta quem a teria aberto. A observação do jovem investigador deixou o delegado desconcertado: “Puglisi si sentì come un picciliddro scoperto mentre dice una farfantarìa, non fosse stato per quello che aveva fatto con la fìmmina, non si sarebbe lasciato pigliare in castagna come un principiante” (1995: 129)120. Porém, a aflição do delegado por ter tido ao cometer um erro primário durou pouco, pois Catalanotti apresentou uma solução para o “problema”: Fece quattro passi, scansò il morto, arrivò all’altezza dei vetri, li raprì, niscì sul finestrone sotto la pioggia battente, un vero sdilluvio, tirò fuori dalla sacchetta un fazzolettone a quadri rossi e bianchi, vi avvolse la mano dritta, dette un pugno al vetro più 119 "Coitado! Coitados dos dois!" disse, com pena, Catalanotti, que não parava, contudo, de olhar ao redor com olhos de bom policial que era. Algo ali não o convencia, mas não sabia precisar o que era. (2004: 129) 120 Puglisi sentiu-se como uma criança apanhada inventando uma mentira; se não fosse por aquilo que tinha feito com a mulher não se teria deixado apanhar de surpresa, como um principiante. (2004: 130) 108 vicino alla maniglia facendo in modo che i pezzi cadessero tutti all’interno, ritrasì nella cammara. “Continuassi, diligà”, disse sornione. “Ora il vostro discorso fila che è una billizza”. (1995:129)121 Neste episódio, verifica-se uma inversão de valores: o detetive, por definição, é aquele que trabalha sempre em busca da verdade, mas, no caso em análise, é ele que a mascara, com a ajuda de seu assistente, que coopera para a construção da farsa. Mas, esse não é o último acontecimento narrado no capítulo, nem a última colaboração de Catalanotti, que encontra, sob a montanha de sal, o corpo do médico Gammacurta. Num primeiro momento, o assistente avista o que parecia ser apenas uma mancha no monte de sal, uma espécie de bola rosa e preta; mas se tratava de uma cabeça, que a chuva torrencial que caía descobre: “È una testa, diligà. È la testa di un catafero” fece Catalanotti che nelle occasioni solenni gli pigliava di parlare in quello che riteneva essere italiano. “La testa di un catafero messo in salamoia”. (1995: 130)122 Enquanto mandava seu assistente acompanhar a senhora Agatina, e também, pedir ao outro colega, Burruano, para avisar ao magistrado sobre a descoberta que tinham feito, o delegado Puglisi decidiu verificar o corpo encontrado sob a montanha de sal; tratava-se do cadáver do médico, que, apesar de estar ali desde o momento em que fora alvejado, ainda vivia, mas não por muito tempo: “Dottore! Dottore! “ chiamò privo di speranza. E invece capitò una specie di miracolo. Gammacurta raprì gli occhi, lo taliò fisso, lo riconobbe. “Ah, è lei?” articolò con difficoltà ma chiaramente. “Buongiorno”. Calò la testa di lato, chiuse gli occhi e morì. (1995: 130-1)123 121 Deu quatro passos, afastou o morto, chegou à altura dos vidros, abriu-os, saiu pelo janelão, debaixo da chuva que caía, um verdadeiro dilúvio, tirou do bolso um lenço quadriculado em vermelho e branco, envolveu nele a mão direita, deu um murro no vidro, perto da maçaneta, fazendo com que os pedaços caissem todos no interior, voltou a entrar no quarto. "Continue, delegado", disse com um sorriso maroto. "Agora seu relato se encaixa perfeitamente." (Idem) 122 "É uma cabeça, delegado. É a cabeça de um cadáver", disse Catalanotti, que em ocasiões solenes resolvia falar em algo que julgava ser italiano. "A cabeça de um cadáver conservado em salmoura." (2004: 131) 123 "Doutor! Doutor!", chamou, sem esperança. E aconteceu, contudo, uma espécie de milagre. Gammacurta abriu os olhos, olhou-o fixamente, reconheceuo. "Ah, é o senhor", articulou com dificuldade, mas claramente. "Bom dia." Inclinou a cabeça para os lados, fechou os olhos e morreu. (2004: 131) 109 O décimo quinto capítulo, “Nell’accingermi alla descrizione” (Ao prepararme para descrever), é construído como se fosse um coro, onde diversas vozes, embora dissonantes, tratam do mesmo tema. A fala de três autoridades é intercalada com as vozes populares, anônimas, que através de cartas demonstram seus sentimentos sobre os acontecimentos que Vigàta experimentava nos últimos tempos. A primeira voz é ser ouvida é a do prefeito Eugenio Bortuzzi, que através de um longo e detalhado relatório narra os últimos acontecimentos da cidade, tece comentários sobre a situação política da ilha: sobre a inauguração do teatro e a polêmica em torno da encenação de Il birraio di Preston, opina que os fatos havidos na noite da inauguração representavam uma sublevação popular contra sua autoridade de Representante do Estado; afirma que a escolha da ópera tinha sido meramente casual: Mi venne allora, del tutto casualmente, di formulare un titolo, quello del Birraio di Preston, opera da me goduta in anni più verdi e precisamente alla sua prima esecuzione trionfale avvenuta in Firenze nell’anno 1847. Feci quel titolo certamente non per ragioni personali, ma perchè ritenevo che quell’opera, nella sua vaga leggerezza, nella sua semplicità di parola e di musica, fosse atta alla ritardata comprensione dei siciliani, e dei vigatèsi in particolare, per ogni superno manifestarsi dell’arte. (1995: 134)124 O prefeito esclarece que sua sugestão não tinha tido o objetivo de impor sua autoridade perante a população, mas visava ajudá-la, uma vez que se tratava de pessoas com pouco acesso a eventos culturais. Supõe que o repúdio à ópera se devesse ao fato de ter sido ele a sugeri-la: Alcuni componenti del Consiglio d’Amministrazione, frammassoni e mazziniani in combutta con frammassoni e mazziniani di Vigàta, saputo che il suggerimento da me proveniva, fieramente e per puro partito preso s’opposero, spargendo in malafede la voce che 124 Ocorreu-me, então, por mero acaso, mencionar um título, o do Birraio di Preston, ópera que eu apreciei em meus verdes anos, exatamente quando de sua primeira e triunfal execução, acontecida em Florença, no ano de 1847. Citei aquele título evidentemente não por motivos pessoais, mas porque julgava que aquela ópera, por ser algo bem leve e de grande simplicidade en termos de letra e música, seria adequada à lerda compreensão dos sicilianos, e dos vigatenses em particular, em relação a toda e qualquer superior manifestação de arte. (2004: 134) 110 trattavasi non di un mio umile parere ma di un mio preciso ordine. 125 (1995: 134) Na sequência do relatório do prefeito a seu superior, um documento redigido em italiano, de maneira polida, são apresentadas duas pequenas cartas à autoridade local, escritas por populares, nas quais pode ser observado o largo uso do dialeto siciliano, porém com grafia incorreta, e identifica-se, especialmente, a presença do coro, um dos elementos caracterizadores do melodrama: “Al signor profeto Bortuzziiccillenza Montelusa “Caro Profetto, tu si na grandi testa di cazzo. Pirchì non te ne torni a Forenze? Tu non sì un profetto na uno strunzo ca feti e uno sasìno. Tieni tre morti sopra li spaddri per il foco del tiatro. Tu sì la peju sdilinquenzia. Nun ai cuscienza. Firmato un citatino”.126 “A Sua Cillenza Bortuzzi prifeto di Montelusa “Non ci scassare la minghia ai vigatèsi. L’opra che tu vuoi no si farà. Lascia perdire, ca è meglio pi tia. I vigatèsi”. (1995: 135)127 Em ambas as cartas, podemos verificar a oposição que a população, de fato, fazia ao prefeito. Outro ponto interessante é que, assim como na organização da própria narrativa, as duas cartas tinham sido escritas em tempos diferentes, a primeira após o incêndio, a segunda antes da noite da inauguração. A próxima autoridade, o padre, faz uma exortação aos seus párocos para não iemr ao teatro, pois, em sua opinião, “il tiatro è la casa preferita dal diavolo”. Na tentativa de convencer os fiéis, o padre cita Santo Agostinho, exemplificando: Conta Tertulliano che una volta una fimmina divota, onesta e bona matri di famiglia, s’intestò a tutti i costi che voleva andare a 125 Alguns membros do Conselho de Administração, franco-maçons e mazzinianos, de comum acordo com franco-maçons e mazzinianos de Vigàta, ao saber que a sugestão partira de mim, orgulhosamente e por puro parti pris, foram contra, difundindo, de má-fé, o boato de que se tratava não de um humilde parecer meu, mas de uma terminante ordem minha. (Idem) 126 "Ao Senhor Profeto Bortuzzi Cilenza Montelusa "Caro profeto, você é um grande cabeça de merda. Por que não volta para sua Florença? Você não é um profeto, você não passa de um bosta que fede e um burro. Tem três mortes nas costas por causa do incendio do teatro. Você é um criminoso da pior raça. Não tem conciência. Assinado - Um cidadão." (2004: 135) 127 "A Sua Cillenza Bortuzzi, Prifeto di Montelusa. Não encha o saco dos vigatenses. A ópera que tu tá querendo não vai ser levada. Esquece isso, que é melhor pra tu. Os vigatenses." (2004: 135) 111 tiatro. Non ci poté né marito, né patre, né madre, né figli. La fìmmina tistarda taliò lo spittacolo, ma quando niscì non era più la stissa. Biastimiva, diciva parulazzi, vuliva che ogni mascolo che incontrava la cavarcasse sulla strada stissa. A forza marito e figli si la purtarono ni la casa e chiamarono un parrino di corsa. Il parrino vagnò con l’acqua biniditta la fìmmina e disse al diavolo di nèsciri fora. E sapete che arrisponnì il diavolo? “Tu, parrino, non t’intricare in una cosa che è mia! Io questa fìmmina mi pigliai pirchì issa di sua volontà vinni dintra di la me casa, che è u tiatro!”. (1995: 136)128 O padre, aparentemente, não tinha motivos para exigir tanta fidelidade do povo, pois uma carta com revelações lhe fora enviada. Mais uma vez os cidadãos se manifestavam e novamente o coro aparece na obra: “Reverendissimo canonico “G. Verga – Chiesa Matrice – Vigàta “Ero in chiesa aieri a sentire la sua predica contro il tiatro. E mi scappa una dimanna: la fimmina che vossia si è tenuta in parrocchia e dintra il letto per vent’anni e dalla quali ha avuto un figlio mascolo di nome Giugiuzzo di anni quindici, a quale categoria di buttane appartiene? Fìmmina di tiatro, fìmmina di Sodoma, fìmmina di Gomorra o troia semplice? Un parrocciano che crede alle cose di Dio”. (1995: 137)129 Há uma sequência de correspondências, como o relatório do Coronel Armando Vidusso, versando sobre os eventos ocorridos na noite, uma carta endereçada ao Presidente do Tribunal de Montelusa, onde é levantada a suspeita da existência de favorecimento à família do prefeito com a apresentação do Birraio, além de uma carta de Villaroel endereçada a Bortuzzi, informando sobre a pintura de uma parede onde fora feita uma inscrição de ofensa à Excelência. Finalmente, há o relato do delegado Puglisi, informando o Superintendente sobre 128 Tertuliano conta que uma vez uma mulher devota, honesta e boa mãe de família teimou que queria ir ao teatro. Não houve marido, nem pai, nem mãe, nem filho que fizessem ela desistir. A cabeçuda da mulher viu o espetáculo, mas, quando saiu de lá, já não era mais a mesma pessoa. Blasfemava, dizia palavrões, queria que todo macho que encontrava cavalgasse ela ali na rua mesmo. O marido e o filho levaram ela à força pra casa e chamaram correndo um padre. O padre banhou a mulher com água benta e mandou o diabo sair fora dela. E sabem o que o diabo respondeu? 'Padre, você não se meta com uma coisa que é minha! Eu me apossei dessa mulher porque ela por vontade própria entrou na minha casa, que é o teatro!' (2004: 136-7) 129 "Reverendíssimo cônego G. Verga - Igreja da Matriz - Vigàta" "Eu estava na igreja ontem e ouvi seu sermão contra o teatro. E me deu vontade de lhe fazer uma pergunta: a mulher que o senhor manteve na paróquia e em sua cama durante 20 anos, e com a qual teve um filho macho, de nome Giugiuzzo, de 15 anos, a que categoria de puta pertence? É uma mulher de teatro, uma mulher de Sodoma, uma mulher de Gomorra, ou pura e simplesmente uma piranha? Um paroquiano que crê nas coisas de Deus." (2004: 137) 112 os acontecimentos, número de mortos e feridos. O delegado porém, demonstra acreditar que aquele evento tenha sido premeditado, “dato che la cosa appare ai miei ochhi complicata assai e tale da portare pregiudizio alle Alte Autorità dello Stato”. (1995: 139)130 E como aconteceu nos dois casos precedentes, lemos cartas, ou bilhetes, escritos por cidadãos que permanecem no anonimato. O primeiro, endereçado a Puglisi: “Al tilicato Puglisi “che cumanna lo sbirrame di Vigàta “Sei un omo di merda che si profita di li fìmmini”. (1995:140)131 Além dese bilhete, onde aparentemente o segredo do delegado com Agatina parece não ser tão secreto assim, há outra carta, endereçada a Totò Pennica, o marido traído, alertando-o sobre os acontecimentos ocorridos na casa da falecida cunhada, desde o fato de a morta ser considerada uma mulher sem “honra”, até o de sua própria mulher ter-se comportado de modo suspeito, tendo em vista sua reação anormal à notícia da morte da irmã, sem “fare voci e svìniri, comu fannu tutti li fìmmini do munnu”132, além de permanecer por um longo tempo trancada com o delegado Puglisi. Verificamos, assim, que o coro, sabedor de fatos aparentemente secretos e ocultos, começa a se fazer ouvir. Mais uma cena se fecha. No capítulo que se abre, “Oh che bella giornata!” (Oh, que belo dia!) nos são apresentados novos aspectos da personagem que representa o superintendente de Montelusa, já citado nos discursos do delegado Puglisi e do prefeito Bortuzzi. O capítulo é inaugurado com a fala de Everardo Colombo, que se mostra maravilhado com a bela manhã que se desenha diante de seus olhos. 130 pois a coisa a meus olhos parece bastante complicada, podendo vir a prejudicar Altas Autoridades do Estado. (2004: 140) 131 "Ao diligado Puglisi que comanda os tiras de Vigàta" "Tu é um home de merda que se aproveita das mulheres." (2004:140) 132 Gritar e desmaiar, como todas as mulheres do mundo. (2004: 140) 113 O superintendente, que residia na ilha há nove meses, se defrontava sempre com um tempo chuvoso, que, aliás, lhe era bastante familiar, uma vez que era milanês, e “a Milano la pioggia fosse persona di famiglia”133. Porém, o luminoso dia contrastava com o tempo que fazia dentro de sua casa, onde uma tempestade, que há muito se formara, começava a desabar. Sua esposa decidira dar um fim repentino à vida do casal, uma dura pena que Everardo Colombo pagava por negar-lhe a ida ao tão esperado evento ocorrido na cidade: Pigliò a pugni il muro. La questione con so moglieri durava oramai da una decina di giorni, da quando le aveva comunicato che all’inaugurazione del nuovo teatro di Vigàta loro due non sarebbero andati. “E perché?”. Cossa te fottet? Ragioni mie”. “Ma come? Mi sono fatta un vestito apposta! Lo capisci, desgraziaa?”. “Bogna avè giudizi, Pina. Questa storia che el prefett ha con la gente di Vigàta me pias no. Alla larga di so persecuzion, di so intrigh! Bortuzzi l’è un matt! Con lui, bene che vada, ti trovi tra el cess e la ruera. Lassa perd”. (1995:143)134 O superintendente dirigiu-se para seu escritório, e novamente encontramos o coro na narrativa, não apenas subentendido pelo leitor, mas explicitado no próprio texto, na voz daqueles que, desde cedo, esperavam pela “autoridade”: “Buongiorno, Eccellenza” fecero in coro. (1995: 144)135 Meli, o secretário, começa a transmitir os diversos assuntos a sua excelência, até chegase referir a um grave fato, ocorrido em Vigàta: 133 e a chuva é como um membro da família (Tradução da autora) Deu socos na parede. O problema com sua mulher já estava durando uns 10 dias, desde o momento em que lhe havia comunicado que os dois não iriam à inauguração do novo teatro de Vigàta. 134 "E por quê?" "Que te importa? Tenho cá minhas razões." "Mas como? Mandei fazer um vestido para essa data! Não entende, desgraçado?" "Eu preciso ter cuidado, Pina. Essa história do prefeito com o pessoal de Vigàta não me agrada. É feita só de perseguições, de intrigas! Esse Bortuzzi é um louco! Com ele, mesmo que as coisas andem bem, a gente fica entre a cruz e a caldeira. Esquece a ópera." (2004: 142-3) 135 "Bom dia, Excelência", disseram em coro. (2004: 144) 114 “Che altro c’è?”. Meli esalò un altro angosciato sospiro. “C’è che il delegato Puglisi di Vigàta ci ha segnalato la presenza in paese del pericoloso repubblicano romano Traquandi Nando, per il quale c’è un mandato di cattura emesso dal Ministero”. “Quel fiocul d’ona baltroca del Mazzini è stato segnalato a Napoli. Si vede che vuole venire nell’isola per creare rebelòtt e intanto manda in rondera qualcuno a tastare il terreno. Puglisi ha scoperto chi dà ricetto al Traquandi?”. “Sissignore. Abita in casa di don Giuseppe Mazzaglia, che non ammuccia certo come la pensa”. (1996: 146)136 Diante da revelação da presença do já conhecido mazziniano na cidade e de que um cidadão vigatense o estava hospedando, o superintendente ordena a prisão de ambos. Porém, a notoriedade de dom Giuseppe Mazzaglia e a reação negativa que a prisão de uma figura tão querida pelos vigatenses poderia provocar fazem que a ordem seja modificada: somente o romano deveria ser preso, e no dia seguinte ao espetáculo de inauguração do teatro. Tal ordem não poderia ser descumprida. Embora o superintendente de Montelusa não soubesse, a ordem que dera assinou a sentença de morte do teatro e também selou o destino de algumas personagens, entre elas a do próprio investigador da trama, o delegado Puglisi, conforme veremos adiante. A esposa do superintendente volta à cena logo a seguir, quando recebe seu amante: “Tano Barreca, giovane rappresentante della parlemitana casa di 136 "E o que mais houve?" Meli exalou outro suspiro angustiado. "O delegado Puglisi, de Vigàta, registrou a presença no povoado do perigoso republicano romano Nando Traquandi, para o qual existe um mandato de captura emitido pelo ministério." "Aquele filho-da-puta do Mazzini foi visto em Nápoles. Vê-se que está querendo vir à ilha para armar uma rebelião e antes manda alguém na frente para sondar o terreno. Puglisi descobriu quem está dando guarida ao Traquandi?" "Sim, senhor. Está na casa de don Giuseppe Mazzaglia, que certamente não confessa o que pensa."(2004: 145-6) 115 profumi e cosmetici ‘La Parisiense’”. (1995:147)137 O encontro dos dois acontece em sua própria casa, no quarto do casal, a cada quinze dias. Na cena final, percebemos que havia algo a mais na decisão de Everardo Colombo adiar a prisão de Nando Traquandi. Tratava-se de uma jogada política com a qual, segundo seu julgamento, se sairia bem após a inauguração do teatro, não importando o que acontecesse. Explica à esposa: [...] Allora, per farle apparire quello che era, si mise a contare la storia del mazziniano Traquandi. Non l’aveva fatto arrestare subito, spiegò, perché lui, il superintendente, poteva tirarci il suo tornaconto. E difatti: se l’opera imposta dal prefetto ai vigatèsi fosse andata male, lui poteva guadagnare un doppio punto di vantaggio sull’altro rappresentante dello stato facendo arrestare il pericoloso agitatore. Se invece l’opera andava bene, poteva sempre pareggiare il conto mandando in galera, e con grande scalpore, quel resiatt del mazziniano. Insomma, Traquandi rappresentava un vero asso nella manica, da giocare al momento opportuno. (1995: 149-50)138 O que ele não imaginava, porém, é que a execução da ópera iria mal, o evento se transformaria em uma tragédia, e que o mazziniano de forma alguma seria um às em sua manga; muito pelo contrário, o colocaria em uma situação difícil, uma vez que ele sabia da presença do mazziniano e nada havia feito. Mais uma vez voltamos ao teatro, ao momento em que Il Birraio estava em execução no palco. Novo capítulo, “Quanto durerá ancora” (Quanto tempo ainda demora?). A narrativa começa com a indagação do comendador Restuccia que, impaciente, olha o relógio e planeja escapar do teatro com a esposa assim que o segundo ato, em curso, terminasse. Porém, o que acontece na sequência não apenas 137 Tano Barreca, jovem representante da casa palermitana de perfumes e cosméticos La Parisiense. (2004: 147) 138 Então para fazer ver sua importância, começou a contar-lhe o caso do mazziniano Traquandi. Não havia mandado prendê-lo imediatamente, porque ele, o superintendente, podia tirar alguma vantagem disso. De fato, se a ópera imposta pelo prefeito aos vigatenses fosse mal, ele poderia ganhar um duplo ponto de vantagem sobre o outro representante do Estado, mandando prender o perigoso agitador, se, contudo, a ópera tivesse êxito, podia pelo menos ficar quite mandando para a cadeia, com grande alarde, aquele mazziniano cretino. Em suma, Traquandi representava um verdadeiro às de baralho na manga, a ser jogado no momento oportuno. (2004: 149) 116 impede o comendador de realizar seu plano, como também causa tumulto e confusão. Os espectadores fazem sua participação no espetáculo. O coro mais uma vez aparece, tanto nas vozes e ações, que demonstram insatisfação e reprovação, quanto no que acontece no palco com relação ao desconhecimento do espetáculo teatral, materializado na violenta reação de Lollò Sciacchitano, que só se acalmou com a intervenção do delegado Puglisi, a quem explica o motivo de sua ira: “Questi del tiatro. Dice che ci sono due Fratelli gemelli, uno che di nome fa Giorgio e l’autru Daniele! Non è vero, diligatu, privo di la vista di l’occhi! È sempri la stessa pirsona ca si cangia d’abito e finge d’essiri ora uno ora l’autro! Ma io sugnu d’occhio fino!”. “Scusami, Lollò, ma a tia che te ne fotte?”. “Comu che me ne fotte? Io pagai un biglietto pi vidìri due gemelli! E Imbeci è sempre uno che fa la finta! Non ci cridete? Vossia li chiami in palcoscenico tutti e due insèmmula e vedrà che solo uno se n’appresenta”. (1995: 152)139 Esse tumulto era apenas um dos muitos que se desenvolviam no momento. Assim que o segundo ato terminou, antes mesmo dos acordes finais da orquestra, a plateia tentou levantar-se, porém foi impedida pelo capitão Villaroel, que evocou o até então desconhecido decreto baixado pelo prefeito: “D’ordine di Sua Eccellenza il prefetto Bortuzzi, allo scopo di evitare pubblico disordine, si fa comando a tutti quelli che qui stanno di continuare a starci. Cioè, voglio dire, che non si può uscire manco nei corridoi. Ognuno ha l’obbligo di restare al posto suo”. (1995: 153)140 139 "Esses caras do teatro. Dizem que tem dois irmãos gêmeos, um que se chama Giorgio e o outro, Daniele. Não é verdade, delegado! Que eu fique cego! É sempre a mesma pessoa que troca de roupa e finge ser ora um, ora outro. Mas eu tenho olho vivo!" "Perdão, Lollò, mas que lhe importa isso?" "Como que me importa? Eu paguei uma entrada para ver dois gêmeos. E é sempre o mesmo imbecil fingindo! Não está acreditando em mim? Pois o senhor chame no palco os dois juntos e vai ver que só aparece um." (2004:151-52) 140 "Por ordem de Sua Excelência, o prefeito Bortuzzi, e com o objetivo de evitar uma desordem pública, ordenamos a todos que aqui estão continuem onde estão. Isto é, quero dizer que não se pode sair nem para os corredores. Todos estão obrigados a permanecer em seu lugar."(2004: 152) 117 Tal ordem não foi bem aceita pelo público, que começou a provocar um barulho, um coro de vozes que o delegado “Capì che si trattava del mormorio minaccioso del pubblico”141. (1995: 153) A autoridade de Villaroel, no entanto, não tida em consideração, tanto que se viu como protagonista das piadas do público ao tentar sair do palco. Isso acontecia enquanto o delegado entrava em ação, para manter a ordem, e impedir as vaias dos espectadores. Simultaneamente, a curiosa cena protagonizada pelo capitão se desenrolava no palco: E intanto alle orecchie gli arrivò un coro poderoso, composto non dagli artisti cantanti, ma dagli spettatori stessi: “Acqua! Acqua! Acqua! Foco!”. Tálio strammato verso il palco. Villaroel non ce la faceva a trovare la spaccatura centrale del sipario che gli avrebbe permesso di nèsciri. Si spostava ora a dritta (acqua! acqua!), ora a mancina (acqua! acqua!), e solo quando si trovava in mezzo sentiva che la gente gli gridava “Foco! Foco!”. Ma se con le mani tentava di dividere il velluto pesante, quello mostrava di consistere solo di pieghe abbodanti, senza mai rivelare una qualsiasi apertura. (1995:155)142 A confusão continuava por toda parte. Com a proibição de sair de seu lugar, o já exaltado e enganado Lollò Sciacchitano ameaçou urinar na plateia, caso não conseguisse chegar ao toalete, o que fez que vários outros espectadores manifestassem a mesma necessidade. O comendador Restuccia precisou ameaçar o soldado com sua bengala-estilete, a fim de que sua senhora conseguisse ir até o reservado. Finalmente as pessoas tiveram permissão para ir ao toalete. 141 "Entendeu que se tratava do murmurar ameaçador do público." (Idem) 142 Enquanto isso, chegou a seus ouvidos um coro vigoroso, composto não pelos cantores, mas pelos próprios espectadores. "Está frio! Está Frio! Está quente!" Olhou, desnorteado, para o palco. Villaroel não conseguia encontrar a abertura da cortina para poder sair, e, como num jogo de cabra-cega, ora puxava para a direita (está frio!), ora para a esquerda (está frio!), e só quando se encontrava no meio ouvia as pessoas gritarem (está esquentando!). E se tentava com as mãos dividir o pesado veludo, este mostrava apenas consistir de dobras abundantes, sem nunca revelar uma abertura qualquer. (2004: 154) 118 Começa o terceiro ato, sem maiores problemas. O cenário novamente havia sido trocado e os cantores, antes cervejeiros e depois soldados, agora se vestiam de nobres. Lollò Sciacchitano, para alívio do delegado, não percebeu nada por estar brigando com alguém sentado ao seu lado. O clima dentro do teatro estava mais calmo. No camarote real estavam dom Memè, o prefeito e sua esposa, além do prefeito da cidade que não estava exatamente acompanhando o espetáculo “Il sindaco, l’ultimo ospite del palco reale, si teneva la testa tra le mani e muoveva silenziosamente le labbra. Pregava”. (1995: 157)143 Nos bastidores, ao contrário do que se observava na plateia, naquele momento, o clima era de total nervosismo. Pilate Spadolini, o empresário da ópera e sobrinho do prefeito, suava. Estava preocupado com Madalena, a soprano que fazia o papel de Effy, a noiva do “birraio” (cervejeiro), que já havia desmaiado, no intervalo, por causa do clima de guerra instaurado no teatro durante todo o tempo da apresentação da ópera. Parecia adivinhar o que estava por vir. No palco acontecia um dueto entre Effy e Anna, rival da noiva do “birraio” quando a bomba explodiu. Durante o dueto, quando estava por completar a frase “Vi do un consiglio per vostro ben”144, a soprano parou antes do “bem” e encheu de ar os pulmões, Quando disparou o agudo para completar seu canto, sua voz não foi o único som ouvido pelos presentes, pois uma fração de segundo antes, o militar Tinuzzo Bonavia, cochilando, se descuidou e deixou sua arma disparar atingindo-lhe o nariz. O barulho do tiro alarmou todos os que se encontravam no teatro; Bonavia sangrava e gritava; o susto fez que o “ben" da soprano saísse como uma sirene de navio, ou como o silvo de uma baleia dos mares do Norte, quando é arpoada. A tudo isso se somou o berro da senhora Restuccia que, despertada pelo barulho, soltou um de seus famosos gritos. Não havia o que fazer, nem o prefeito, nem Villaroel, Puglisi ou quem quer que fosse poderia evitar o que imediatamente aconteceu: 143 O prefeito da cidade, o último espectador do camarote real, mantinha a cabeça entre as mãos e movia silenciosamente os lábios. Rezava. (2004: 156) 144 Dou-lhe um conselho para o seu bem. (2004: 158) 119 La somma dello sparo, le grida del milite ferito, il terrorizzante “ben” della soprano, la vociata della signora Restuccia, scatenarono il panico incontrollato, anche perché nessuno dei presenti stava guardando il palcoscenico: se l’avessero fatto, avrebbero potuto farsi conto e ragione, invece cosi quel tutt’insieme li pigliò di sorpresa. Tutti si susìrono dai loro posti, impressionati, poi bastò che il primo si metesse a correre perché altri facessero lo stesso. Gridando, biastemiando, vociando, piangendo, supplicando, prigando, alcuni si precipitarono fora dalla sala di corsa, scontrandosi con l’opposizione dei militi. Intanto la soprano che aveva stonato cadeva con un botto sordo sulle tavole del palcoscenico, priva di sensi. (1995:160)145 Esse capítulo, dentre os que tiveram como cenário o teatro no momento da apresentação da ópera, é o que traz maior riqueza de detalhes sobre o que ocorreu no interior do prédio na sua primeira e última noite. Finalmente o leitor entende porque, no primeiro capítulo do romance, quando o engenheiro Hoffer indaga sobre o que teria provocado o incêndio, ouviu que o motivo teria sido o desafino da soprano. Aqui termina, considerada a diegese do romance, a exibição dos fatos ocorridos no teatro Re d’Italia na noite de sua inauguração. O cenário muda de forma mais evidente, com o capítulo “Sono un maestro di scola elementare” ( Sou um professor primário), protagonizado por Minicuzzo Adornato, o filho do marceneiro, preso injustamente por ter emitido uma opinião contrária à encenação de Il birraio di Preston, conforme vimos anteriormente. A narrativa começa com Minicuzzo tentando justificar sua omissão, ou não reação quanto à prisão de seu pai, pois, sendo um professor primário, pouco poderia fazer para tirar o marceneiro da cadeia, e ainda poderia pagar caro, caso tentasse alguma reação: 145 A soma do disparo, dos gritos do soldado ferido, do aterrador "bem" da soprano, dos berros da Senhora Restuccia desencadeou um pânico incontrolável, até mesmo porque nenhum dos presentes estava olhando para a cena: se o estivessem feito, teriam podido dar-se conta do que havia, mas, ao contrário, tudo aquilo junto os pegou de surpresa. Levantara-se de seus lugares, assustados, e depois bastou que o primeiro se pusesse a correr para que os outros fizessem o mesmo. Gritando, xingando, berrando, chorando, suplicando, rezando, alguns se precipitaram para fora da sala, na maior correria, indo de encontro à oposição dos soldados. Enquanto isso, a soprano que tinha desafinado caía com um baque surdo nas tábuas do palco, desmaiada. (2004: 159) 120 “Io, commendatore, non ho putiri, sono una cosa di niente, una pezza da piedi. E il fatto che ho famiglia significa che appena mi muovo, mi catamino, m’arrimino, appena protesto o faccio voci, lo Stato me la fa pagare col palno e la gnutticatùra, ci mette il buon peso, il giorno dopo, mi trovo a insegnare come si scrive la parola Italia in un perso paese di Sardegna. Mi spiegai?”. (1995:161)146 No entanto, a justificativa do professor não convence o Comendador Restuccia, que o repreende por não defender o pai, como talvez defendesse a sua mulher e filhos. A ajuda do comendador, porém, não é gratuita. Ele decide auxiliar o marceneiro em parte por ser grato ao professor que, com dedicação e muito esforço, conseguira educar o aparentemente perdido neto de Restuccia, Mariolo, criado pelos avós depois da morte de seus pais e, em parte, porque aprovava a atitude de dom Ciccio em relação ao Birraio. Além disso, fica evidente o valor que o comendador dá à família e aos sentimentos que Minicuzzo manifestou quando, ao receber a notícia da prisão de seu pai, se pôs a chorar diante de sua classe. “È vero. E ho subito domandato scusa ai miei addrevi che erano rimasti impressionati. Non dovevo farlo”. “Lo doveva fare, imbeci. Ha dimostrato cosi che suo padre fa parte della sua famiglia. Ed io per questo sono qua. Maestro, so patri don Ciccio è un galantomo specchiato che si è trovato contro una cacata, salvando la faccia di chi mi sente, come il prefetto Bortuzzi, solo per avere detto pubblicamente come la pensava su questa minchiata del Birraio di Preston. E io mi sono pigliato la libertà di provvedere. Ho scritto due righe sulla quistione all’onorevole Fiannaca. (1995: 163)147 E foi na antesala de Paolino Fiannaca que Minicuzzo Adornato estava às oito horas. Quando finalmente os dois se encontraram, Minicuzzo precisou ainda 146 "Eu, comendador, não tenho poder, sou um joão-ninguém, um nada. E o fato de ter família significa que, se eu pensar em me mover, me mexer, me levantar, assim que esboce um protesto, ou um grito, o Estado me fará pagar a conta com juros, e juros altos, o que o Estado quiser. E eu, no dia seguinte, vou me encontrar ensinando como se escreve a palavra Itália em um vilarejo perdido da Sardenha. Está explicado?" (2004:160) 147 "É verdade. Mas logo depois pedi desculpas a meus alunos, que tinham ficado impressionados. Eu não deveria ter feito isso." "Ao contrário, tinha que fazer. Demonstrou assim que seu pai faz parte de sua família. E é por isso que eu estou aqui. Professor, seu pai, don Ciccio, é um homem de bem, respeitado, e que escorregou em uma cagada, livrando a cara de quem me ouve, como o prefeito Bortuzzi, só por ter dito publicamente o que pensava a respeito desta cretinice do Birraio di Preston. E eu me dei a liberdade de tomar providências: escrevi duas linhas ao deputado Fiannaca. (2004: 162) 121 responder a uma pergunta que, embora parecesse um tanto óbvia, dado que ele tinha a carta do comendador, era de fundamental importância. Sua resposta poderia salvar ou arruinar o pai encarcerado. “Io vorrei parlare...”. “Con l’avvocato Fiannaca?” interrupe pronto l’altro. “Con Fiannaca sì, ma non con l’avvocato” disse Adornato ricuperando una certa lucidità. “Con l’onorevole Fiannaca, allora?” Minicuzzo restò incerto. Fiannaca decise d’aiutarlo. “È questione politica?”. “Nonsi. Almeno non credo”. La faccia dell’onorevole s’illuminò. “Allora lei vuole parlare col Fiannaca presidente della Società di Mutuo Soccorso Onore & Famiglia?”. “Con lui” fece Adornato che tanto stronzo non era. (1995: 16465)148 Podemos constatar como o autor constrói esta personagem, pela primeira vez apresentada ao leitor, e rapidamente lhe confere profundidade na narrativa, pois, embora seja sabido que o ser humano Fiannaca seja apenas um, existem ao menos três Fiannaca diferentes, exercendo papéis diversos, como se fossem pessoas distintas. E que atuam em palcos diferentes, conforme o Fiannaca presidente da Sociedade de Mútuo Socorro Honra & Família afirma quando diz: “In questo caso dobbiamo nèsciri da qua, questo è lo studio dell’onorevole”. (1995: 165)149 148 "Eu queria falar..." "Com o advogado Fiannaca?", interrompeu prontamente o outro. "Com Fiannaca sim, mas não com o advogado", disse Adornato, recuperando ump pouco a lucidez. "Com o deputado Fiannaca, então?" Minicuzzo ficou indeciso. Fiannaca decidiu ajudá-lo. "É uma questão política?" "Não, senhor. Pelo menos não creio que seja." A cara do deputado iluminou-se. "Então o senhor quer falar com o Fiannaca presidente da Sociedade de Mútuo Socorro Honra & Família?" "Com ele", disse Adornato, que não era tão tolo assim. (2004: 163-64) 149 "Nesse caso, temos que sair daqui. Este é o gabinete do deputado." (2004: 164) 122 O detalhamento da personagem Fiannaca nos remete ao escritor e dramaturgo siciliano Luigi Pirandello e à sua personagem Vitangelo Moscarda, que reconhece ser “uno, nessuno, centomila”.150 Fiannaca e Adornato passam pelo portãozinho onde podia ser vista uma placa com a inscrição “PAOLO FIANNACA, AVVOCATO”. Chegam finalmente à “sede” da “SOCIETÀ DI MUTUO SOCCORSO HONORE & FAMIGLIA”. Ao entrarem, Minicuzzo observou que lá não havia papel ou documentos; tudo era feito de palavras. E foi com palavras que o professor explicou ao presidente da sociedade a injustiça que seu pai sofrera, tendo sido preso por ordem do prefeito Bortuzzi, com a colaboração do capitão Villaroel e de dom Memè Ferraguto. Minicuzzo Adornato descobre que a simples menção ao nome de Memè Ferraguto bastava para que ele conseguisse o que quisesse de Fiannaca, que chamou seu assistente, Gaetanino, pedindo ao filho do marceneiro para repetir o que acabara de dizer. Mesmo sem entender onde isso o levaria, Minicuzzo não apenas repetiu como acrescentou um toque pessoal em sua afirmação: “Lo ripeto magari davanti a Cristo. Il prefetto ha mandato in galera mio padre con l’inganno e la complicità del capitano Villaroel e di quel gran cornuto di dom Memè Ferraguto."151 (1995: 166-7) Minicuzzo conquistara a simpatia de Fiannaca. Fora corajoso o suficiente para manter suas palavras e, assim, vencer o prefeito e, principalmente, dom Memè que, naquela mesma tarde, recebeu a visita de Gaetanino, que lhe transmitiu a mensagem não do presidente da sociedade de mútuo socorro honra & família ou do advogado, mas do deputado Fiannaca: “Ordini? Sempre preghiere umilissime. L’onorevole ci vole fare assapere che per la facenna del falegname fatto arrestare sicuramente ci fu errore. Errore suo di vossia, don Memè”. (1995:168-9)152 150 "um, ninguém, e cem mil" 151 "Repito até diante de Cristo. O prefeito mandou meu pai para a cadeia sem razão e com a cumplicidade do Capitão Villaroel e daquele grande corno de Memè Ferraguto."(2004: 165) 152 "Ordens? Não, apenas um humilde pedido. O deputado quer que Vossa Senhoria saiba que, no caso do marceneiro que foi preso, com certeza houve um erro. E erro seu, de Vossa Senhoria, don Memè." (2004: 167) 123 Os Lumìa, após ouvirem o que tinha a dizer dom Memè, chamaram o capitão Villaroel e a senhora afirmou que todo o incidente não passara de um terrível engano. Explica que Santo Antonio a havia iluminado e feito recordar onde as joias estavam; afirma que, inclusive, estava disposta a reparar o engano, indenizando o carpinteiro. Um diálogo entre o prefeito e o carpinteiro, agora recém-saído da cadeia fecha a cena. Após felicitá-lo por sua inocência e libertação, o prefeito pergunta a dom Ciccio: “perché siete tanto hontrario alla rappresentazione del Birraio di Preston?” (1995: 170)153 O carpinteiro, após pensar, responde a pergunta. Neste momento o leitor encontra, nesta narrativa onde a música está tão presente, sendo motivo de tantas brigas, um relato de alguém que fora arrebatado pela beleza da música e que tenta mensurar com palavras o sentimento experimentado. Dom Ciccio conta mais uma vez como a música entrou em sua existência, algo que muito raramente fazia, conforme vimos no capítulo Tutti orama’ lo conoscevano: Dopo manco cinco minuti che l’orchestra sonava e i cantanti cantavano, a mia sicuramente mi principiò una febbre àuta. U cori mi batteva forti, ora sentiva càvudo càvudo ora friddo friddo, la testa mi firriava. Didopu, come si fossi addiventato un palloneddro di acqua saponata, di quelli liggeri e trasparenti che i picciliddri fano per jocu con una cannuzza, accominzai a volare. Sissignura, a volari. Cillenza, mi deve crìdiri: volava! E prima m’apparse il tiatro da fora, poi la piazza cu tutte le persone e l’armàla, po’la citate intera ca mi parse nica nica, poi vitti campagni virdi, li sciumi granni do Nord, li deserti gialli ca dìcino che ci sono in Africa, poi tutto il mondo intesso vitti, una palluzza colorata come a quella che c’è dintra a l’ovo. Dopu arrivai vicino a u suli, acchianai ancora e mi trovai in paradisu, con le nuvole, l’aria fresca pittata di blu chiaro, quarche stella ancora astutata. Poi la musica e lu canto finero, io raprii gli occhi e vitti che dintra o tiatro era arrimasto solo. Non aveva gana di nèsciri di fora, ancora dintra di mia sentiva la musica. Pigliai sonno e m’arrisbigliai, svenni e arrivenni, arrisi e chiangii, nascii e murii. [...] Dopu quella jurnata io vado a sentiri musica e òpire, piglio macari il trenu e cerco, cerco, cerco sempre senza trovare mai. “Che hosa cercate?” Domandò il prefetto che senza rendersene conto si era alzato in piedi” 153 "Pode me expli'ar por que o senhor é tão 'ontrário à representação do Birraio di Preston?" (2004: 169) 124 “Una musica, cillenza, che mi facesse provare la stessa felicità, ca mi facissi vìdiri com’è fatto u cielu. [...] (1995: 171-2)154 O marceneiro deixou o prefeito sem resposta, e este não teve outra alternativa a não ser encerrar o assunto. Com seu discurso, dom Ciccio oferece ao leitor a explicação daquilo que ficara incompleto no supracitado capítulo, centrado exatamente no carpinteiro, onde pudemos saber mais sobre sua relação com a música. O poder que a música exerce sobre o homem é um tema trabalhado por Camilleri em mais de um romance. Em La voce del violino, romance pertencente à saga da mais notória personagem do escritor, o comissário Montalbano, publicado em 1997, ocorre algo semelhante. A música do violino é uma espécie de protagonista do romance, já que, assim como em o Birraio, exerce o papel de motivador do crime; age de forma tão poderosa que o faz sentir a melodia entoada no funeral da jovem morta por causa daquele instrumento e consiga unir os elementos, e, através do raciocínio estimulado por seu som, desvendar o crime e descobrir o assassino. Voltemos, então, ao Il birraio di Preston, cuja narrativa agora já começa a caminhar para seu desfecho, tendo os próximos capítulos a função de finalizar as muitas cenas já apresentadas, de oferecer um final coerente às várias histórias que compõem o romance, que entrelaça tantas personagens a partir da trama do incêndio do teatro di Vigàta. 154 "Depois de nem cinco minutos que a orquestra tocava e os cantores cantavam, eu comecei com certeza a ter uma febre alta. O coração batia forte, ora eu me sentia quente, quente, ora frio, frio, e com a cabeça fervendo. Depois, como se eu fosse virando uma bolha de sabão soprada, daquelas leves e transparentes que os meninos fazem de brincadeira com um canudo, eu comecei a voar. Sim senhor, a voar. Celenza, acredite em mim: eu voava. E primeiro me apareceu o teatro pelo lado de fora, depois a praça com todas as pessoas e animais, depois a cidade toda, que eu achei bem pequenininha, e depois vi os campos verdes, os rios grandes do Norte, os desertos amarelos que dizem que tem na África, depois todo o mundo, o mundo inteiro, eu vi, um globinho colorido como aquele que está dentro do ovo. Então eu cheguei perto do sol, subi mais e mais e me vi no paraíso, com as nuvens, o ar fresco pintado de azul-claro, umas estrelas ainda apagadas. Aí a música e o canto acabaram, eu abri os olhos e vi que tinha ficado sozinho no teatro. Não tinha vontade de sair fora, ainda sentia a música dentro de mim. Caí no sono e despertei, desmaiei e recuperei os sentidos, ri e chorei, nasci e morri. [...] Depois daquele dia, eu gosto de ouvir música e ópera, pego até o trem e procuro, procuro sempre, sem nunca mais encontrar. "E o que você procura?", perguntou o prefeito, que, sem se dar conta, se havia posto de pé. "Uma música, Celenza, que me faça exprimentar a mesma felicidade, que me faça ver como que é feito o céu." (2004: 169-171) 125 O detetive retorna à cena, e, dessa vez, com um novo auxiliar, temporário, para ajudá-lo em sua missão de elucidar o delito através da análise da cena do crime. O capítulo “Un giovanotto dall’aria semplice” (Um rapaz com ar simples) começa na delegacia, onde o delegado mantém um acalorado diálogo com o filho do falecido médico Gammacurta, pois não entendia como nem o filho, nem sua mãe tinham ido procurá-lo após o desaparecimento do médico, tendo sido a parteira, que ambos – mãe e filho – sabiam ser a amante de Gammacurta, quem tinha ido até o delegado. A seguir, Puglisi recebe um jovem, Mario Filastò, perito da Fondiaria Seguros de Palermo, que afirmava ter como provar que o incêndio era de caráter criminoso, e não acidental, como lhe teria sido dito no momento de sua chegada à Vigàta. Enquanto os dois se dirigiam para as ruínas do teatro, trata de apresentar sua experiência em assuntos de incêndio: “Mi stia a credere” disse Filastò. “Io sperienza di foco ne ho assai. So come nasce, come cresce, com’è capriccioso, quanto basta un niente a fargli cangiare Idea, direzione, forza. Il foco nel teatro principiò dalla parte di dietro, da darrè, e non dal salone dove stava la gente”. “Su questa storia di dove il foco pigliò, magari io ci avevo fatto una mezza pensata” disse Puglisi. (1995: 176)155 O delegado ouve do perito informações precisas sobre a direção do fogo, como se espalhou, tudo exatamente ao contrário daquilo que aparentemente havia acontecido. O processo de investigação seguiu nos moldes do romance policial tradicional, onde o raciocínio puro e simples é capaz de elucidar um crime, ao estilo de Dupin e Lecoq. A análise da cena do crime e dos elementos ocupa papel fundamental na elucidação do caso. Os dois continuam a analisar a cena, quando Filastò mostra ao delegado restos de um objeto. Num primeiro momento, Puglisi deduziu que se tratasse de 155 "Pode crer em mim", disse Filastò, "tenho bastante experiência no que se refere a fogo, sei como nasce, como cresce, o quanto é caprichoso, como basta um nada para fazê-lo mudar de ideia, de direção, de intensidade. O fogo no teatro começou atrás, na parte posterior, e não no salão em que estava o público." "Sobre essa história de onde o fogo começou eu também já andei pensando um pouco", disse Puglisi. (2004:175) 126 um recipiente para se colocar água, mas logo vê que o objeto seguramente tinha outro fim. “Non è un bummolo né una quartarella. Non è fatto per tenerci dentro l’acqua, lo taliasse bene”. “È un Caruso, un sarbadanaro” fece Puglisi stupito. “Giusto” fece Filastò. “E altri pezzi diun secondo sarbadanaro si trovano più in là, dove ci stavano i costumi della compagnia”. (1995: 177)156 Além disso, os restos dos cofrinhos cheiravam a querosene, un sinal de que esse objeto merecia especial atenção; era suspeito o fato de um porquinho de barro, destinado às economias de alguém, ter cheiro de querosene e ser encontrado no local do incêndio. O perito pergunta ao delegado quem cormeciava aquele tipo de objeto e ambos seguem para a casa de dom Pitrino. No caminho, Puglisi parabeniza o rapaz por sua eficiência. A resposta do jovem, no entanto, tem uma significação especial dentro do contexto do romance policial: “Ci vuole occhio, si. Ma è come un joco, una scommessa. Uno talìa tutto il danno che il foco ha fatto, talìa attento, talìa e ritalìa e poi dice: c’è qualche cosa che non quatra. E ritalìa di bel nuovo nuovamente fino a quando non scopre che è quello che non quatra”. (1995: 178)157 Quando chegam à casa de dom Pitrino, descobrem aquilo que o leitor já sabia: dois daqueles cofres haviam sido roubados no dia anterior. Após se dar conta do prejuízo sofrido, dom Pitrino atendeu o pedido do perito, que fez uma espécie de reconstituição, a fim de confirmar suas suspeitas em relação ao fim dado aos cofrinhos roubados. [...] Allora Filastò domando che il Caruso venisse riempito di pitroglio, che era merce venduta nella putìa. Zu Pitrino, per 156 "Não é nem uma ânfora nem uma moringa. Não serve para pôr água dentro. Olhe bem o que é." "É um cofrinho, um porquinho de barro", disse Puglisi, estupefato. "Exato", disse Filastò. "E outros pedaços, de um segundo porquinho, que se encontram mais para lá, onde estavam os figurinos da companhia."(2004: 176) 157 "É preciso olho vivo, sim, mas é como um jogo, uma aposta. A pessoa olha todo o dano causado pelo fogo, olha atentamente, olha e volta a olhar, e depois pensa: há alguma coisa aqui que não condiz. E volta a olhar de novo, mais uma vez, até que descobre o que não estava condizendo."(2004: 177) 127 quanto la richiesta fose tramma, non fece domande, si limitò a eseguire con qualche difficoltà. Filastò si fece magari dare un pezzo di pezza. Puglisi pagò e uscirono. A una decina di passi dalla casuzza del Vecchio, già era campagna aperta. Filastò fece praticamente vedere al delegato come funzionavano il caruso, il pitroglio e il pezzo di pezza. Dopo si allontanarono che alle loro spalle i cippa, i legnetti e gli sterpi che il giovanotto aveva ammucchiato per gettarci contro il caruso, ancora abbrusciavano malgrado fossero assuppati di pioggia. (1995: 179)158 Filastò explica ao delegado que sua empresa, por ser grande e abrangente, estava acostumada a lidar com casos de fraude em relação aos seguros e que, inclusive, dois agentes haviam relatado casos parecidos, os agentes de Nápoles e Roma. A menção à cidade de Roma chamou imediatamente a atenção do delegado Puglisi, talvez porque já suspeitasse de Nando Traquandi, o romano mazziniano que se encontrava na cidade. Na verdade, Nápoles já fora mencionada pelo superintendente Everardo Colombo, quando, em uma conversa com seu secretário, ele informara que Mazzini tinha sido visto naquela cidade. E suas suspeitas aumentaram, pois ele não acreditava na possibilidade de que um vigatense fosse capaz de esperar a cidade voltar à calma após o espetáculo para só então atear fogo ao teatro, pois já não havia dúvidas sobre a dolosidade do incêndio, tampouco sobre o período em que o fogo começou, conforme o perito da seguradora garantiu: “Non c’è dubbio: l’incendio è stato appiccato a freddo, dopo qualche ora che a Vigàta era tornata la calma”. (1995: 180)159 Não restava outra coisa a fazer: o delegado decidiu falar com o superintendente. Ao chegar lá, sujo, molhado, tendo caído do cavalo devido ao extremo cansaço, machucado por causa da queda, logo foi barrado por Meli, o secretário, pois não demonstrava se encontrar em condições de ter uma 158 [...] Então Filastò pediu que o porquinho fosse enchido de querosene, que era também mercadoria à venda na casa. Seu Pitrino, embora o pedido fosse inusitado, não fez perguntas, limitou-se a executar, com alguma dificuldade, o pedido. Filastò pediu também um pedaço de pano. Puglisi pagou e sairam. A uns dez passos do casebre do velho já era campo aberto. Filastò fez para o delegado a demonstração de como funcionavam o porquinho, o querosene e o pedaço de pano. Depois se afastaram, porque às suas costas os pedaços de troncos, as achas de lenha e os gravetos que o rapaz tinha ajuntado para jogar contra eles o porquinho estavam ainda queimando, apesar de molhados de chuva. (2004: 178) 159 "Não há dúvida: o incêndio foi ateado premeditadamente, algumas horas depois de o povoado de Vigàta ter voltado à calma." (2004:179) 128 audiência com a autoridade. Além disso, Meli explicou a Puglisi que o superintendente estava irritado com ele, por causa da mensagem que recebera do delegado, conforme acompanhamos no capítulo “Oh che bella giornada!”, repreendendo-o por ter sido indiscreto e insinuado que a investigação mencionada no bilhete poderia ter como resultado o envolvimento de altas personalidades. Naquela ocasião, Puglisi denunciara a presença do romano e informara que Giuseppe Mazzaglia o estava escondendo, sendo que o envolvimento deste, um notório cidadão vigatense, fizera que Everardo Colombo retardasse a prisão do Traquandi, a fim de não envolver Mazzaglia na confusão, causando uma revolta popular. Esse fato agora estava se voltanto contra o superintendente, conforme podemos acompanhar no diálogo entre Puglisi e Meli: “Ecco, dato che ci siete: fate sapere al superintendente che quando scrissi alte personalità io usavo il plurale per mantenermi largo ma pensavo solo al prefetto. Ora mi sono persuaso che il plurale era giusto”. “Ci sarebbero altre personalità implicate?” “Sissignore”. “Per esempio?” “Per esempio la persona con la quale andrete a parlare tra un momento”. [...] “Vi rendete conto di quello che state dicendo?”. “Perfettamente. Perché non mi avete dato subito l’ordine d’arrestare il mazziniano venuto da Roma?”. “Muto!” intimò Meli. “Venite nel mio ufficio!”. (1995: 181)160 160 "Olha, já que tocou no assunto, faça saber ao superintendente que quando escrevi Altas Personalidades eu usava o plural para falar de modo geral, mas pensava apenas no prefeito. Agora estou ficando convencido de que o plural estava correto." "Ah, haveria outras personalidades implicadas?" "Sim, senhor." "Por exemplo?" "Por exemplo, a pessoa com a qual o senhor vai falar dentro de um momento." [...] "Deu-se conta do que está dizendo?" "Perfeitamente. Por que não me deram imediatamente a ordem de prender o mazziniano vindo de Roma?" "Cale a boca!", intimou Meli. "E venha a meu gabinete!"(2004: 180) 129 A firmeza das afirmações do delegado espantou Meli. Já no escritório do secretário, mais calmo, Puglisi perguntou novamente porque não lhe tinham dado ordem para prender o mazziniano. Meli revelou que o superintendente ordenara que a prisão fosse adiada até a inauguração do teatro, o que provocou a imediata reação do delegado: “Che bella pensata che ha avuto il signor cavaliere! Se me lo facevate arrestare a tempo, capace che quello non ce la faceva ad abbrusciare il tiatru”. “Siete convinto che sia stato lui?”. “Certezza ancora non ne ho. Ma appena l’agguanto, mi faccio contare tutto e vedrete che ho ragione io. Datemi l’ordine scritto e datato”. (1995: 182)161 Neste ponto da narrativa fica claro que o delegado já solucionou o crime, como um legítimo investigador. Fica evidente, também, que o superintendente está com um grave problema nas mãos, fato que ele percebe assim que seu secretário o informa da presença de Puglisi na superintendência: “Cavaliere, nel mio ufficio c’è Puglisi”. “Cossa ‘l voeur?” “Vuole subito l’ordine di cattura per quel mazziniano nascosta a Vigàta, Traquandi”. “Fateglielo”. “Sissi, ma la difficoltà è che il delegato pensa che a dare foco al teatro sia stato proprio Traquandi”. “E allora?”. “Cavaliere, se è stato il romano, e Puglisi raramente sbaglia, saremo da Puglisi stesso incolpati di non averlo fatto arrestare prima”. “Oh cazzo!” fece il superintendente che finalmente aveva capito. (1995: 182)162 161 "Que bela ideia teve o senhor cavaliere! Se me mandassem prendê-lo em tempo, talvez aquele sujeito não tivesse conseguido incendiar o teatro." "Está convencido de que foi ele?" "Certeza ainda não tenho, mas no momento em que o pegar, farei com que me diga tudo e verá que tenho razão. Dê-me a ordem por escrito, e datada."(2004:181) 162 "Cavaliere, Puglisi está no meu gabinete." "O que é que ele quer?" "Quer sem demora uma ordem de prisão para aquele mazziniano que está escondido em Vigàta, o Traquandi." 130 O superintendente ainda tenta responsabilizar Meli, insinuando que talvez ele não tivesse entendido bem sua ordem e, acidentalmente, retardado a prisão do romano. Mas o rapaz não se deixou envolver, em virtude da gravidade da questão. No final do capítulo, encontramos os dois pensando, debatendo, sussurando uma solução para o impasse. Neste ponto da narrativa policial, já observamos a conclusão de quase todas as partes essenciais do romance: o crime foi executado, a investigação realizada e o investigador solucionou o quebra-cabeças; e, ademais, além de descobrir as causas do incêndio, já sabe quem é o culpado. Mas resta, ainda, a punição. O próximo capítulo Se una notte d’invernata tinta (Se em uma noite de inverno um viajante), com título que faz menção ao clássico de Italo Calvino, inicia também com o mesmo estilo narrativo: Se una notte d’invernata tinta, già di per suo, con pioggia troniate lampi e vento, un viaggiatore fosse venuto a passare per la chiazza dove sorgeva il tiatro novo di Vigàta, a vedere il danno in cui si trovava in mezzo, lampioni divelti, aiole distrutte, vetri rotti, militi a cavallo che correvano strata strata, carrozze che andavano e venivano con persone ferite o signore svenute e a sentire spari lontani, vociate ora lamentose ora arraggiate, prighiere, domande d’aiuto, biastemie, subito avrebbe dato di sprone al cavallo per scapparsene alla larga da quello che avrebbe con ragione creduto un novello quarantotto. Mai e po’mai avrebbe potuto immaginare che quella minnitta, quel disastro, quella rovina fosse stata causata dalla stonatura di un soprano. Stonatura terribili e orrenda, è vero, che parse a tutti come se un papòre, sonando la sirena di nebbia, fosse di colpo entrato nel tiatro, ed è pure da considerare il fatto che quarcheduno, contemporaneamente, aveva magari sparato un colpo di moschetto. (1995: 184)163 "Dê." "Sim, senhor, mas o problema é que o delegado acredita que foi ele quem incendiou o teatro." "E daí?" "Cavaliere, se foi mesmo o romano - e Puglisi raramente erra -, seremos acusados pelo próprio Puglisi de não termos mandado prendê-lo antes." "Ih, que merda!", disse o superintendente, que finalmente entendera. (2004: 181) 163 Se em uma noite de inverno, já por si escura, com chuva, trovoadas, relâmpagos e ventania, um viajante viesse a passar pela praça em que se erguera o novo teatro de Vigàta, vendo o estrago em meio ao qual se encontrava - lampiões arrancados do solo, jardineiras destruídas, vidros quebrados, soldados a cavalo correndo de um lado para o outro, carruagens indo e vindo com pessoas feridas ou senhoras desmaiadas - e 131 Além de ser levado ao romance Se una notte d’inverno un viaggiatore, de Italo Calvino, o leitor também viaja até o início do romance, mais precisamente ao primeiro capítulo, num diálogo entre o engenheiro Hoffer e um homem que vinha passando, vindo de Vigàta na fatídica noite: “Kosa essere successo?” spiò l’ingegnere. “Dove?” spiò a sua volta l’uomo con fare gentile. “Kome dofe? A Figàta, kosa essere successo?”. “A Vigàta?” “Sì” fecero tutti in una specie di coro. “Pare che ci sia un incendio” disse l’uomo taliando verso il paese in basso quasi a ottenere conferma. “Ma kome è stato? Lei sa?”. L’uomo calò le braccia, se le mise darrè la schiena, si taliò la punta delle scarpe. “Non lo sapete?”. “No. Nessuno kvi lo sa”. “Ah. Pare che la soprano a un certo punto stonò”. E detto questo si rimise in cammino, ripilgiando la posizione di mano in alto. “Che minchia è la soprano?” Spiò Tano Alleto, il cocchiere. “È una donna ke kanta” spiegò Hoffer scuotendosi dallo stupore. (1999: 15-6)164 Nesse capítulo, o leitor já conhece completamente o que aconteceu no teatro, a confusão iniciada com o tiro acidental e o desafino da soprano, e que ouvindo tiros ao longe, gritos ora queixosos ora raivosos, rezas, pedidos de socorro, blasfêmias, teria imediatamente esporeado o cavalo, a fim de fugir para bem longe do que julgaria, com razão, ser uma nova revolta. Pois jamais, em momento algum, poderia imaginar que todo aquele espalhafato, aquele desastre, aquela ruína tivesse sido causada pela desafinação de uma soprano. Desafinação terrível, pavorosa, não há dúvida, que deu a todos a impressão de que um vapor, tocando a sirena em meio à neblina, estaria imprevistamente entrando no teatro, no momento mesmo em que, simultaneamente, alguém disparava um tipo de fuzil. (2004: 183) 164 "Que koisa acontecerr?", perguntou o engenheiro. "Onde?", perguntou, gentilmente, olhando em torno. "Koma, onde? Em Figàta, que koisa acontecerr?" "Em Vigàta?" "Sim", disseram todos, em uma espécie de coro. "Parece que está havendo um incêndio", disse o homem olhando para o povoado abaixo como se buscasse confirmação. "Mas como isto acontecerr? A senhor sabe?" O homem abaixou os braços, colocou-os atrás das costas e olhou para as pontas dos sapatos. "Não sabe?" "Não. Ninguém daqui saberr." "Ah! Parece que em certo momento a soprano desafinou." E dizendo isso, retomou seu caminho, voltando à posição anterior, com as mãos erguidas. "Que porra de soprano é essa?", perguntou Tano Alletto, o cocheiro. "É um mulherr que kanta", explicou Hoffer, refazendo-se da estupefação. (2004:13-14) 132 terminou com o incêndio. Não obstante, os dois eventos não tiveram qualquer relação, a não ser a esperteza de Nando Traquandi que, com a cumplicidade de Decu Garzia, aproveitou toda a polêmica da inauguração do teatro para incendiálo, na intenção de que este fosse o estopim para uma revolta popular contra a autoridade instituída. Voltando ao capítulo, nele se continua narrando os fatos ocorridos durante a apresentação, porém de uma maneira mais descritiva, mais organizada e detalhada, como se fosse uma compilação geral dos fatos ocorridos dentro do teatro, a partir do momento em que a confusão geral fora deflagrada, após o tiro acidental, que provocou o desafino da já muito nervosa soprano, e assim por diante. Observa-se, também, a pronta reação de dom Memè, que percebendo que a situação fugira completamente do controle prontamente se encarregou de retirar de dentro do teatro a esposa do prefeito, além do próprio Bortuzzi. Os militares ainda insistiam em seguir a ordem inicial, de não deixar os espectadores sairem de seus lugares, apesar da situação incontrolável que se desenhava, pois a plateia, até então obediente às ordens, apesar da irritação, agora buscava fugir, tentanto arrombar as portas dos camarotes. Os homens colocaram as mulheres desmaiadas em um canto e iniciaram sua revolução, enfrentando os militares e, a seguir, a cavalaria que fazia guarda do lado de fora. Por fim, e à custa de muito esforço, dom Memè conseguiu retirar o prefeito e a esposa do local. As pessoas, aproveitando o espaço aberto para a passagem das autoridades, conseguiram escapar, o que foi possivel graças aos que, estando do lado de fora, arrancaram os lampiões, deixando a praça às escuras. O único a permanecer inerte durante toda a ação foi o delegado Puglisi. O homem da lei se mostrou sem ação exatamente no momento em que deveria agir. Talvez por saber que sua interferência seria inútil, uma vez que nem mesmo o exército conseguiria conter a multidão. “Fin dal principio del burdello si era 133 assittato sconfortato su una seggia della platea e si era pigliato la testa tra le mani”. (1995: 193)165 A partir desse ponto, o teatro, ao menos fisicamente, já não aparecerá na narrativa. Chegamos aos quatro últimos atos, onde os destinos das principais personagens de Il birraio di Preston serão definidos e apresentados ao leitor. Executado o seu plano, Traquandi vai dormir na casa de Decu Garzia. E, antes de entrar no mundo dos sonhos, traz novamente à memória o fogo, não como crime, mas como espetáculo que o encantou e que ele gostaria de novamente encenar: Era una gioia appicià er foco, su questo non ce stava dubbio gnuno, ma a vedello cresce, annarsene sempre più arto, guadambiare spazio, magnasse cantando tutto quelo che je se parava avanti, la gioia poco a poco si mutava in piacere e te l’arritrovavi duro come quanno stavi a chiavà. “Bigna che ce riprovi” si disse Traquandi [...]. (1995: 194)166 Mais tarde, naquela noite, os dois incendiários foram acordados por Girlando, primo de Decu, um policial que trabalhava na superintendência. Após convencer o romano que se tratava de uma pessoa de confiança, finalmente Garzia abriu a porta e o policial começou a explicar ao primo e ao romano porque estava ali: “Allura?” Spiò Decu. “È una cosa complicata” fece Girlando. “Complicata a spiegari e a capiri”. “Me te voi inculà?” fu la domanda brutale di Traquandi che non aveva capito la cerimonia. “No” fece lo sbirro isando una mano. “No. Anzi”. “E allura spiegati, cugino!”. “Decù, si tu sei nirbuso, lo sono magari io. Perché se in questura vengono a sapiri che io sono venuto a trovarvi, mi fotto come 165 Desde o começo da confusão, tinha-se sentado, abatido, em uma cadeira da plateia, e ali permanecera com a cabeça entre as mãos. (2004: 192) 166 Era uma alegria atear o fogo, quanto a isso não tinha a menor dúvida, porém, ao vê-lo crescer, subir cada vez mais, ir cada vez mais alto, ganhar espaço, comer, cantando, tudo o que aparecia à sua frente, a alegria pouco a pouco se transformava em prazer e dava tanta excitação como quando se estava trepando. "Precisamos experimentar isso de novo", disse a si mesmo Traquandi [...]. (2004: 193) 134 mínimo la carriera. Questo dev’essere chiaro. Ragiunamo, vediamo come stanno le cose. Dunque, quella minchia di prifetto di Montelusa decide che a Vigàta il nuovo tiatro dev’essere incignato da un’opera di merda. E ci arrinesce, mettendosi contro tutti. E l’opera finisce come doviva finire, a cazzo di canne. Siamo tutti d’accordo? (1995: 196-67)167 e Girlando continua sua explicação, expondo um detalhe que alarmou os criminosos: “E che succedi?” proseguì lo sbirro. “Succedi che passate due ore che tutto é tornato sireno dopo il bordello successo in tiatro, il tiatro piglia foco. E questo è strammo”. [...] “A nuautri vigatèsi ci accanoscino tutti. E tutti sanno che siamo capaci delle peju cose, ma sul momento, a sangue càvudo, faccia a faccia. Mai faremmo una cosa di questo genere alla scordatina, due ore dopo, belli e arriposati. Noi non ci ripensiamo dopo, come fannu i cornuti. Quindi ad abbrusciare il tiatro non è stato un vigatèse, ma un forasteri. Questo è il preciso concetto del diligato Puglisi che manco due ore fa è andato a contalra al superintendente questa sua pinione. “Secondo Puglisi cu fu?” spiò aggiarniato Decu. “Secondo Puglisi fu quel mazziniano venuto da Roma e che si trovava in paisi da quattro giorni”. “Io?” disse spavaldo Traquandi. (1995: 197)168 167 E então?", perguntou Decu. "É uma coisa complicada", disse Girlando. "Complicada para explicar e para entender." "Mas você está querendo nos foder?", perguntou asperamente Traquandi, que não entendera o ritual. "Não", disse o tira, levantando uma das mãos. "Não, pelo contrário." "Então explique, primo." "Decu, se você está nervoso, eu também estou, porque se na superintendência vierem a saber que eu vim aqui, no mínimo minha carreira está fodida. Isso tem que ficar claro. Vamos pensar bem. Ver como estão as coisas. Ora, aquele bosta de prefeito de Montelusa resolveu que, em Vigàta, o novo teatro tinha que ser inaugurado com uma ópera de merda. E conseguiu isso, contra tudo e contra todos. E a ópera terminou como tinha que terminar, do pior jeito possível. Estamos todos de acordo?" (2004: 195-96) 168 "E o que acontece?", continuou o tira. "Acontece que duas horas depois de tudo ter voltado ao normal, depois de toda a confusão que ocorreu no teatro, o teatro pega fogo. E isso é estranho." [...] "É que nós, vigatenses, nos conhecemos muito bem e sabemos que somos capazes das piores coisas, mas ali, na hora, com o sangue quente, e cara a cara. Nunca que íamos fazer uma coisa daquele jeito, às escondidas, belos e descansados, duas horas depois. Nós não pensamos a pensar nas coisas duas horas depois, como fazem os cornudos. Por isso, quem incendiou o teatro não foi um vigatense, e sim um forasteiro. É exatamente essa a ideia do delegado Puglisi, que há menos de duas horas foi levar essa sua conclusão ao superintendente de polícia. "Segundo Puglisi, quem foi?", perguntou, pálido, Decu. 135 Agora já não adiantava disfarçar, pois os dois haviam sido descobertos, e restava apenas pensar numa saída para a situação. A solução arquitetada pelo primo de Decù era engenhosa e poderia dar certo. Ele disse ter outra opinião, que imediatamente se tornou na esperança de os dois se salvarem. A culpa pelo incêndio deveria ser atribuída a Cocò Impiduglia, um louco de Vigàta, que era conhecido por tacar fogo em qualquer coisa. Porém, Traquandi não se convencera e queria mais explicações, pois já estava nervoso por ter sido descoberto. Girlando precisou acrescentar mais um detalhe ao plano, que o tornava ainda mais perigoso: “[...] Puglisi non solo è pirsuaso che chi desi foco al tiatro, e fici du morti, è il mazziniano arrivato da Roma, ma ebbe il coraggio di dire al superintendente che se iddru ci dava l’ordine d’arrestarlo immediatamente, a questo romano, quello non avrebbe avuro né modo né tempo d’abbrusciarlo, questo santo tiatro. E quindi di consequenzia puro il superintendente è, sempri seconno Puglisi, risponsabile del burdello. E questa è cosa seria assa. Puglisi è uno secco gessaro”. (1995: 198-99)169 Assim, a única solução que restava ao romano era fugir imediatamente, pois o delegado não deixaria que sua responsabilidade pelo incêndio e consequentemente a negligência do superintendente passassem despercebidas. Apesar da resistência inicial, Traquandi aceitou a proposta e a ajuda que Girlando lhe oferecia. Após a saída do romano, o policial assegurou que estava tudo bem ao primo Decu e que este lhe devia um favor: “L’amico romano ora è nella mano giusta. E tu mi devi ringraziare. Perché se non era per questa pensata mia, tu domani a matina ti trovavi nel càrzaro e tirarti fora sarebbe stato difficile assa. Ci "Segundo Puglisi, foi aquele mazziniano vindo de Roma e que há quatro dias estava no povoado." "Eu", disse arrogantemente Traquandi. (2004: 196) 169 "[...] Puglisi não só está convencido de que quem tocou fogo no teatro e provocou duas mortes foi o mazziniano que veio de Roma, como teve a coragem de dizer ao Superintendente de Polícia, que, se tivesse dado ordem de prender de imediato esse romano, ele não teria tido nem tempo nem meios para queimar esse bendito teatro. Portanto, ainda segundo Puglisi, o superintendente também é responsável por toda essa confusão. E isso é coisa muito séria. Puglisi é um burro com antolhos." (2004:197) 136 sono due morti, Decuzzu, non te ne scordare”.170 (1995: 200). Em seguida, instruiu Garzia sobre como se comportar, quando, inevitavelmente, o delegado viesse atrás dele e do romano: “[...] A Puglisi ci dici che non sai nenti di questo romano, che non l’hai mai visto, che sulla storia del tiatro sei ’nnuccenti come a Gesù bammino”. (1995: 200)171 A despedida dos primos acontecia quase que simultaneamente à chegada do delegado Puglisi à casa de dom Pippino Mazzaglia, que inicialmente acolhera o romano, e que não passava bem de saúde. Mas, por fim, resolveu receber Puglisi. O delegado, vendo o estado em que dom Pippino se encontrava, fez-lhe uma única pergunta: “Lo saccio che da vossia il romano non c’è, perché vossia non dava ricetto in casa a uno che è capace di dare foco a un tiatro e ad ammazzare, senza starci a pinsari, due poveri ‘nnuccenti. Vossia non è persona capace di queste cose. E io sugnu qua per spiare: unni è ammucciato ques’assassino?” (1995: 202)172 Dom Pippino, com sua voz fraca, prontamente disse que não sabia, mas o delegado, que conhecia a ligação entre os dois, conforme vimos anteriormente, citou o nome de Mazzaglia na superintendência, quando foi denunciar a presença do mazziniano na cidade, e só não conseguiu a ordem de prisão por causa do envolvimento de dom Pippino. Puglisi continuou seu interrogatório, demonstrando ter amplo conhecimento dos nomes envolvidos com Nando Traquandi: “Vossia non parlassi, che parlo io. Io mi sono fatto conto e ragione. Vossia non si mette con una carnetta come questo Traquandi, e non ci si mette manco don Ninì Prestìa, che è un galantomo come vossia. E, ci pozzo mettiri la mano sul foco, non ci si mise manco Bellofiore. E allora, di tutti voi mazziniani, resta 170 "O amigo romano está agora em boas mãos. E tu tem que me agradecer. Que se não fosse essa minha ideia, amanhã de manhã tu ia tá em cana, e te tirar de lá ia ser muito pior. Tem dois mortos, Decuzzu, não te esqueça disso."(2004: 199) 171 "E tu diz ao Puglisi que não sabe nada desse tal de romano, que nunca viu ele, e que nessa história de teatro tu é tão inocente como o Menino Jesus." (2004:199) 172 "Sei que o romano não está em sua casa, porque o senhor não daria guarida a uma pessoa que é capaz de incendiar um teatro e de matar, sem pensar nos pobres inocentes. O senhor não é capaz de tais coisas. E eu estou aqui para perguntar: onde está escondido esse assassino?" (2004:201) 137 solamente un nome. Quello di Decu. Mi sto sbagliando?”. (1995: 203)173 Quando, por fim, perguntou se o romano estava na casa de Garzìa, obteve a confirmação através do silêncio de dom Pippino. Encontramos no delegado Puglisi a característica clássica de um investigador, a perspicácia, a agudeza de raciocínio, a habilidade para correlacionar os fatos. Chegamos, finalmente, aos últimos três capítulos da trama, compostos de dois atos finais da história da inauguração do teatro de Vigàta, e um último capítulo, saído diretamente das anotações do escritor (ou seria dramaturgo? Isso veremos adiante), que é exatamente Gerd Hoffer, o menino que, muitos anos antes, numa noite, viu, da janela do banheiro, um clarão que vinha do teatro Re d'Italia, a se consumir em chamas. Dentre as muitas revelações já acontecidas até este ponto da narrativa, surge uma que, talvez, não fosse esperada pelo leitor: o porquê de o prefeito Bortuzzi ter escolhido a ópera Il birraio di Preston para a inauguração do teatro de Vigàta. Sobre essa escolha, duas hipóteses foram cogitadas ao longo da trama: a primeira sugeria que, sendo ele a autoridade instituída pelo governo, provavelmente queria mostrar seu poder ante à população ao anunciar a sua escolha e, apesar da enorme oposição por parte de praticamente todos os moradores da cidade, manter a decisão até o fim; a segunda, talvez parte da primeira, é de que um parente seria o diretor da ópera, um bom motivo que, acrescido ao anterior, mais importante, justificaria a irreversibilidade da escolha. Mas uma reviravolta acontece nesse caso e desfaz ambas as hipóteses. A explicação para a escolha de Bortuzzi é a mais inesperada possível, mas justifica todo o seu empenho para a apresentação da ópera. Não se tratava de uma questão de poder, mas de amor, como se esclarece no capítulo que examinaremos a seguir. 173 "O senhor não fale, deixe que eu falo. Eu pensei bastante a respeito. O senhor não se envolve com um malfeitor como esse Traquandi, como não se envolve com ele don Ninì Prestìa, que é um homem de bem como o senhor. E, ponho a mão no fogo, Bellofiore também não se envolveu. Então, de todos vocês, mazzinianos, sobra apenas um nome: Decu. Estou enganado?" (2004: 201-02) 138 “Giagia mia cara” (Giagia, minha querida) é o título do capítulo e, também, de uma carta de amor do prefeito à esposa, cuidadosamente escrita pelo marido apaixonado, com o propósito de ser lida no dia da estreia do teatro: “Giagia mia cara, in questo giorno io vengo a rivelarti, adorata, un altro mio secreto. Tanti di me tu ne possiedi, Giagia, e da me al tuo cuore consegnati neli anni di questo nostro comune cammino, sicché essi pendono come collana di perle rare attorno al suo collo erbuneo [...]. (1995: 204)174 E continua, expondo os problemas que enfrentou ao escolher Il birraio di Preston: “Molto lottai, adorata, affinché quest’opera venisse in Vigàta rappresentata e ho dovuto affrontare con sereno spirito e franco coraggio giorni bui, discussioni accese, vituperose macchinazioni per raggiungere il mio fine. [...]175 “Devo, prima di rivelarti la secreta cagione della mia intromissione in una decisione che solo avrebe dovuto riguardare, e in piena libertà, i responsabili del nuovo teatro di Vigàta, fare di necessità un passo indietro." (1995: 205)176 Ele continua a sua carta, relatando o quão sem sentido era a sua vida muitos anos antes, em 1847, quando era apenas um jovem advogado. No entanto tudo mudara, quando, uma noite, acompanhou um amigo ao Teatro della Pergola, para assistir à primeira representação, na cidade de Florença, da ópera Il birraio di Preston. Aquela noite mudaria completamente a sua vida, pois ambos se conheceram no teatro. A descrição que Bortuzzi faz do sentimento que o invadiu quando os olhares, dele e da esposa, se encontraram naquela noite se aproxima da descrição feita pelo marceneiro quando este, ao ser interrogado pelo prefeito sobre o porquê de se opor a Il birraio, explicou o que sentiu ao assistir a música 174 "Giagia, minha querida, "Neste dia venho lhe revelar, adorada, um outro segredo meu. Você possui tantos, Giagia, que foram entregues por mim a seu coração ao longo dos anos deste nosso caminho comum, que eles pendem como um colar de pérolas raras em torno do seu colo ebúrneo. (2004: 203) 175 "Lutei muito, adorada, para que essa ópera fosse apresentada em Vigàta, e tive que enfrentar com espírito sereno e ostensiva coragem dias sombrios, discussões inflamadas, vituperosas maquinações, para atingir meu propósito. (...)" (2004:204) 176 "Devo, antes de revelar-lhe a secreta razão de minha interveniência em decisão que deveria ter cabido, e com total liberdade, apenas aos responsáveis pelo novo teatro de Vigàta, dar necessariamente um passo atrás. (2004: 204) 139 mais importante da sua vida: “non ridere Giagia adorata, in una bolla di sapone che leggera leggera principiava a fluttuare nell’aria, volava, usciva fuori dal teatro, sorvolava la piazza, s’innalzava fino a dever rimpicciolita la città tutta...”. (1995:207)177 Ao mesmo tempo em que lemos a emocionada carta do prefeito à esposa, assistimos a um último ato de intimidação de dom Memè. Tudo começou com os dois forasteiros lendo o anúncio da ópera que, aliás, aparece pela primeira vez no romance: “Avviso straordinario” fece Cannizzaro “pel la sera di mercoledì addì dieci dicembre. Inaugurazione festosa del novo teatro di Vigàta nomato Re d’Italia. Unica recita dell’opera Il birraio di Preston, del maestro Luigi Ricci napolitano. Che cotanto trionfo ha ricevuto non solamente in Italia ma nel Mondo Intero. Le opere sue, da La cena frastornata a Il sonnambulo, hanno avuto il plauso di Re e Imperatori nonchè del vasto e colto pubblico. Arra di sicuro successo in Vigàta ne sono il tenore cantante Liborio Strano e l’attrice cantante Maddalena Paolazzi che per l’occasione avranno l’effige dell’innamorato birraio e della di lui bella fidanzata Effy. La rappresentazione, adornata di variopinte scene e di magnifici costumi, avrà luogo alle ore sei di sera precise. Rispettosi del pubblico, i cantanti tutti, l’orchestra fatta di quattordici professori diretti dal Valente Maestro Eusebio Capezzato, il Coro dell’Accademia Vocale di Napoli, attendono con animo palpitante il plauso dell’intelligente pubblico di Vigàta che il novo teatro Re d’Italia vorrà graziosamente convenire”. (1995: 208) O anúncio do espetáculo traz pela primeira vez ao leitor informações precisas sobre o espetáculo – autor e nome dos músicos – e o elogio feito à população da cidade que, sabemos, não condiz com a opinião daqueles que impuseram a encenação da ópera, que consideravam os vigatenses ignorantes no quesito música. Voltando à trama, os dois forasteiros gracejaram da ópera, o que lhes custou caro, pois dom Memè fez questão de reprimi-los, agredindo-os e ameaçando-os, a fim de alertar os vigatenses sobre o que poderia acontecer aos que manifestassem opinião contrária à ópera: “Voltò le spalle ai due e si allontanò. Era contento, gli veniva di cantare: tutti avevano visto quello che capitava a 177 "não ria, Giagia adorada, em uma bolha de sabão que, leve, leve, começa a flutuar no ar, voava, saía do teatro, sobrevoava a praça, e subia até ver em tamanho diminuto a cidade inteira..." (2004: 206) 140 sfottere l’opira. Il paìsi, del fatto, ne sarebbe stato informato in meno di un’ora”. (1995:210)178 A narrativa focaliza a carta escrita pelo prefeito, no trecho em que revela seus motivos para desejar a apresentação de Il birraio: “[...] ecco perché ho voluto testardamente che a Vigàta quest’opera si rappresentasse. Altra cagione no v’è e quale essa sia stata niuno potrà mai scovrirla, essa si tien celata nell’intimo del cuor mio e del tuo. Questa sera siederemo in teatro nel palco Reale l’uno accanto all’altra, non più distanti come allora, e ti stringerò fortemente la mano. Te la stringerò a rimembrare i momenti più belli del nostro primo incontro. Godiamoci insieme, adorata, questo regalo che il tempo e l’occasione m’hanno permesso d’offrirti, arra di futura felicita. Ti bacia, con la dolcezza che tanto ti piace, il tuo per la vita Dindino”. (1995: 210)179 O apaixonado Bortuzzi pendurou a carta estrategicamente ao espelho, para que a esposa não deixasse de encontrá-la. Quando estavam a caminho do teatro, ele perguntou a opinião da mulher sobre seu ato de amor, que os juntaria mais uma vez diante de Il birraio. A resposta dificilmente seria mais surpreendente: “Però te tu ti sbagli, Dindino”. “Hosa sbaglio?” “La data, Dindino. Io nun venni mi’a allo spettaholo di cotesto birraio. Io un l’ho mai udito”. “Stai scherzando?”. [...] “No, Dindino mio, mi’a scherzo. Io quella sera in teatro ‘un son venuta. Son rimasta a ‘asa con la mi nonnetta. Avevo le mie hose, Dindino, e stavo tanto male. Ne son certa, Dindino, sono andata a riguardarmi il diario. Son rimasta a ‘asa”. “Ma noi due non ci siamo visti per la prima volta alla Pergola?”. “Certo, Dindo, al teatro della Pergola, ma sei gioni dopo. L’era mi’a questo birraio, ma un’opera di Bohherini, mi pare si chiamasse La Giovannina o qualche hosa di simile”. “Si chiamava La Clementina, ora mi ricordo” disse torvo Bortuzzi e quindi ammutolì. (1995:211-12)180 178 Deu as costas aos dois e afastou-se. Estava contente, com vontade de cantar: todo mundo tinha visto o que acontecia com quem debochasse da ópera. O povoado seria informado do fato em menos de uma hora. (2004:208-209) 179 "[...] eis por que quis teimosamente que em Vigàta se encenasse essa ópera. Não há qualquer outra razão, e qual tenha sido ninguém poderá jamais descobrir, pois ela está escondida no âmago do meu coração e do seu. Esta noite sentaremos no teatro, no camarote real, um ao lado do outro, não mais distantes como daquela vez, e eu apertarei fortemente sua mão para lembrar os momentos mais belos de nosso primeiro encontro. Gozemos juntos, adorada, esse presente que o tempo e as circunstâncias me permitiram oferecer a você, como garantia de futura felicidade. Um beijo, com a doçura de que tanto você gosta, do seu para toda a vida, Dindino." (2004: 209) 180 "Mas você está enganado, Dindino." 141 De apaixonado e exultante, o prefeito passou a frustrado, pois seu engano ia além do âmbito matrimonial. A sucessão de desencontros tinha começado por causa da ópera Il birraio di Preston: a oposição, a participação de dom Memè, o interesse do mazziniano, o incêndio do teatro, as mortes, tudo que já havia acontecido e aquilo que ainda estava por vir. Um ledo engano. Último ato da história: “L’aranci erano più abbondanti” trata do destino das principais personagens do romance, ou seja, dom Memè, Nando Traquandi e Puglisi. Logo no início do capítulo, lê-se que o delegado e Catalanotti estão de guarda do lado de fora da casa onde se encontravam os dois criminosos, aguardando o momento de agir. Puglisi caminha na direção da casa dos Garzìa e bate à porta: “Cu è?” spiò una voce impastata di sonno dall’interno. Puglisi immediatamente si fece persuaso che quello che aveva risposto stava facendo tiatro, si capiva che faceva finta di essere stato arrisbigliato proprio in quel momento. “Io sono, il diligato Puglisi. Vi devo parlari. Venite fora”. “Ora vegnu, un minuto di pacienza” disse la voce non più addrumisciuta ma vigile, attenta. La porta si raprì e spuntò Decu in mutande e maglia di lana, una coperta sopra li spaddri. “Bongiornu, diligatu. Che c’è?” “Unn’è il romano?”. Decu sbattè le parpibre facendo mostra d’essiri sorpreso, ma non sapeva recitari. “Quali romano?”. “Volete babbiare? Solo sugnu. Trasìte voi stesso e taliàte”. (1995: 214-15)181 "Estou enganado em quê?" "Na data, Dindino. Eu não estava no espetáculo desse cervejeito. Esse eu nunca vi. Nunca ouvi." "Está brincando?" [...] "Não, meu Dindino, não estou brincando...Eu não fui naquela noite ao teatro. Fiquei em casa, com minha avozinha. Estava menstruada e me sentindo mal. Tenho certeza disso. Fui rever no meu diário. Eu estava em casa." "Mas nós dois não nos vimos pela primeira vez no Pérgola?" "Isso, Dindo, no Teatro della Pergola, mas seis dias depois. Não era esse Birraio, mas uma ópera de Bocherini, acho que se chamava La Giovannina, ou algo parecido." "Chamava-se La Clementina, a'ora me lembro", disse, perturbado, Bortuzzi. E a seguir emudeceu. (2004:210) 181 "Quem é?", perguntou do interior uma voz carregada de sono. Puglisi imediatamente se convenceu de que aquele que havia respondido estava fazendo teatro, percebia-se que estava fingindo ter sido despertado exatamente naquele instante. "Sou eu, o delegado Puglisi. Tenho que falar com você. Venha cá fora." "Saio já, um minuto de paciência", disse a voz, não mais adormecida, mas vigilante, atenta. A porta se abriu e apareceu Decu, de cuecas e camiseta de lã, um cobertor sobre os ombros. "Bom dia, delegado. Que foi que houve?" "Onde está o romano?" 142 Porém, Decu, que não recitava bem a sua farsa, se traiu e determinou o fim trágico, o seu e o do delegado: Senza dire parola, Decu si assittò sul letto, si calo in avanti per pigliare le scarpe. Era disposto a fare tutto quello che gli aveva suggerito suo cugino, tanto contro di lui non c’era manco na minchia di prova. Puglisi poteva andare a menarsela da qualche altra parte. Ma mentre tastiava con la mano per affirrare le scarpe da sotto il letto, le dita incontrarono l’azzàro freddo della canna del revorbaro che aveva nascosto il giorno avanti e di cui s’era scordato. Senza che il ciriveddro ci entrasse per niente nella facenna, ma solo per puro istinto, impugno il ferro e sparò. Pigliato in pieno petto, Puglisi sbatté contro il muro, l’arma gli cadì dalla mano, poi sciddricò con le spaddri appujate alla parete. (1995: 215)182 O delegado havia conseguido, em um curto espaço de tempo, através da análise e da dedução, descobrir os culpados pelo incêndio do teatro, porém não lhe foi dada a oportunidade de executar a punição dos criminosos. Sua morte acaba acontecendo de maneira quase que banal, pois o principal criminoso, o romano, estava longe dali, e Decu Garzìa já estava protegido pelo álibi oferecido pelo primo. Podemos observar o contraste entre Puglisi e Garzìa. O primeiro, usando a inteligência, obteve êxito em sua missão; o segundo não soube se controlar, partiu para uma ação impensada, que lhe custou a vida. Quando Catalanotti ouviu o disparo, correu para dentro da casa: “Madonna santa!” sussurro Catalanotti, e capì, per troppa spirenzia, che il suo amico e superiore era morto sul colpo, astutato come fa un soffio sulla cannila. “Non ci avevo intento” lastimo con un filo di voce Decu. “Non lo volevo ammazzare. Mi scappò l’intenzione”. Catalanotti lo tálio. Una cosa schifosa, biunnizza, di scarso pelo, una specie di verme a forma d’omo. E si stava pisciando nelle mutande che goccioliavano. “Ti scappò l’intenzione?”. “Sissi. Lo giuro”. Decu pestanejou, dando mostras de estar surpreeendido, embora não soubesse representar. "Que romano?" "O romano que está com você." "Está querendo me gozar? Eu estou sozinho. Entre e veja o senhor mesmo." (2004: 212-13) 182 Sem dizer palavra, Decu sentou-se na cama, curvou-se para a frente, para pegar os sapatos. Estava disposto a fazer tudo que lhe havia sugerido seu primo, pois contra ele não tinham nenhuma porra de prova. Puglisi que fosse se masturbar em qualquer outro lugar. Mas, enquanto tateava com a mão para pegar os sapatos debaixo da cama, os dedos encontraram o aço frio do cano do revólver que tinha escondido no dia anterior e do qual se tinha esquecido. Sem que o cérebro chegasse a participar do assunto, somente por puro instinto, empurrou o ferro e atirou. Ferido em pleno peito, Puglisi bateu contra a parede, a arma caiu-lhe da mão, e a seguir arriou, as costas apoiadas na parede. (2004:213) 143 “Puro a mia scappò” disse Catalanotti e gli sparò in faccia. Poi s’acculò allato a Puglisi, gli pigliò la testa tra le mani, lo vasò sulla fronte, si mise a chiàngiri. (1995: 216)183 Assim se conclui a primeira cena do último capítulo: o herói morto como principal evento e a punição do primeiro vilão, ainda que este tenha sido somente coadjuvante na ação. No parágrafo seguinte, o leitor encontra o segundo dos finais propostos, com Laurentano e Traquandi, que continuam seu caminho para fora de Vigàta: “Haiu a pisciare” disse. “Puro a me me scappa” consenti Traquandi. [...] Il romano s’avvicinò a un albero, si sbottonò, principiò a sgravasse. Ma proprio davanti a lui, sospeso a un ramo basso, ce stava un arancio ch’era una bellezza, num se poteva resiste. Tenendo l’uccello con la sinistra Traquandi arzò la mano destra a prenne er frutto. E proprio in quel momento Laurentano gli sparò darrè il cozzo. Il romano se ne venne in avanti, sbattendo la testa contro il tronco dell’àrbulo prima di cadere affacciabocconi. (1995:216)184 No segundo final proposto a punição atinge um nível mais alto, porque, embora não sendo o único vilão da história, Nando Traquandi e se mostrou oportunista, aproveitou-se dos fatos ocorridos na cidade para agir em prol de seu ideal mazziniano. Desde o primeiro momento demostrou não se importar com as vidas que poderiam se perder por causa do incêndio. Foi ele que efetivamente cometeu o crime. Sua punição, a morte, não foi ocasionada pelo crime que cometera, mas pela conveniência que seu desaparecimento 183 representava para o "Virgem Santa!", sussurrou Catalanotti, entendendo, por toda sua experiência, que seu amigo e superior havia morrido instantaneamente, apagado como uma vela soprada. "Eu não tinha intenção", lamentou-se Decu, com um fio de voz. "Não queria matá-lo, foi sem querer." Catalanotti olhou para ele: uma coisa nojenta, um lixo, quase sem pêlos, uma espécie de verme em forma de homem. E estava se mijando nas cuecas que pingavam. "Foi sem querer?" "Sim, juro!" "Então eu também não quis", disse Catalanotti, e deu-lhe um tiro na cara. Depois agachou-se ao lado de Puglisi, pegou sua cabeça entre as mãos, beijou-lhe a teste e começou a chorar. (2004: 213-14) 184 "Tenho que mijar", disse. "Eu também estou com vontade", concordou Traquandi. [...] O romano se aproximou de uma árvore, desabotou a braguilha e começou a aliviar-se. Mas bem na sua frente, suspensa em um galho baixo, havia uma laranja que era uma beleza, não dava para resistir. Mantendo o caralho com a esquerda, Traquandi levantou a mão direita para pegar a fruta. E foi exatamente nesse momento que Laurentano lhe deu um tiro na nuca. O romano caiu para a frente, batendo a cabeça contra o tronco da árvore antes de cair de bruços. (2004: 214) 144 superintendente, que, com o assassinato do mazziniano, poderia esconder sua responsabilidade nos fatos ocorridos: desconsiderou o pedido de Puglisi, de que Traquandi fosse preso, dando-lhe a oportunidade de cumprir seu propósito. Neste ponto, sabemos também que o primo de Decu foi até ele com dois objetivos: fazer que Traquandi mordesse a isca rumo à morte e livrar o primo da condenação, esforço que Garzìa desperdiçou quando atirou no delegado. O maior dos vilões, porém, ainda não recebera sua punição, que começou quando ele não foi recebido pelo prefeito, que alegou estar ocupado. Apenas Vasconcellos, o chefe de gabinete, o recebeu, e para entregar-lhe um pacote de livros: Era sicuramenti la storia archeologica della Sicilia, quella che lui aveva obbligato il notaro Scimè a dargliela per farne a sua volta rigalo lo tálio fisso con gli occhiuzzi che parevano próprio quelli di uno scorsone, un serpente, e sibilo: “Buona quaresina, signor Ferraguto”. Don Memè, che era soprappinsero, cadì nel trainello come una pera cotta. “Quaresima? A dicembri?”. “Dicembre o gennaio, la carnevalata è finita”. Ce l’aveva fatta, quel beccamorto di Vasconcellos a tirare fora il nìvuro della seppia, la mozzicatura vilinosa della vipera. (1995: 218)185 Totalmente irado, dom Memè decidiu ir para uma casa sua, em Sanleone, onde recebeu uma inesperada visita: "Tálio verso il cancello e vide che stava arrivando Gaetanino Sparma, il cosidetto camperi dell"onorevole Fiannaca. Don Memè gli ando incontro, com’era di giusto”. (1995: 219)186 Os dois se cumprimentaram, e começaram a conversar. Gaetanino disse que fora enviado pelo deputado Fiannaca, que desejava falar-lhe. Em seguida, começou a contar a história de um homem de Favara, que tinha aborrecido o deputado naquela manhã, pois não sabia a diferença entre ser um prepotente 185 Era com certeza a história arqueológica da Sicília, que ele havia obrigado o tabelião Scimé a dar-lhe, para, por sua vez, oferecê-la de presente ao prefeito. Ao pegar o pacote, Vasconcellos olhou-o fixamente, com aqueles olhinhos que pareciam exatamente os de uma víbora, de uma serpente, e sibilou: "Boa Quaresma, Senhor Ferraguto." Don Memè, que estava distraído com outras ideias, caiu como um patinho na armadilha: "Quaresma? Em dezembro?" "Dezembro ou janeiro, o carnaval acabou." Tinha conseguido, aquele cara de coveiro do Vasconcellos, pôr à mostra o negro da siba, a picada venenosa da víbora. (2004: 216) 186 Olhou para a cerca de entrada e viu que estava chegando Gaetanino Sparma, o chamado homem de confiança do deputado Fiannaca. Don Memè foi a seu encontro, como seria de esperar. (2004: 217) 145 qualquer e um homem com poder. Essa conversa deixou dom Memè alerta, e ele perguntou qual seria essa diferença. Gaetanino se prontificou a explicar-lhe a diferença como também a ajudá-lo na colheita de laranjas. E continuou: “La differenzia” ripigliò il camperi “consiste non solo nell’apparenzia, ma magari nella sostanzia. Questo signuri di Favara, va a sapiri pirchì, s’è appaiato col diligato del paìsi. Sono diventati culo e cammisa. E accussì s’è messo a fare lui, per conto del diligato, quello che il diligato, ossia la liggi, non può fare in proprio. Superchierie, infamità, vrigogne. Pigliari a uno a pagnittuna sulla pubblica piazza, mannarlo in càrzaro senza colpa, queste sono cose – dice l’onorevole – d’apparenzia. Ma per farle senza perdere la faccia e soprattutto senza farla perdere agli amici che ti danno fidúcia, ci vole la forza della sustanzia. Se però si viene a scoprire che tu sustanzia non ne tieni, che sei vacante di dintra, sei solamenti una frasca al ventro, allura addiventi un servo pripotenti e, peju ancora, un servo pripotenti di la liggi, che è una cosa storta di natura. Vossia è d’accordo?”. “Certo ca sugnu d’accordo”. “Ora un pripotenti che si cridi ono d’onuri può fare dano, e danno assai”. (1995: 220-21)187 A essa altura, dom Memè sabia que o tal prepotente era ele, que os delitos eram os que cometera; sabia-se encrencado e tinha consciência de que devia explicações sobre sua relação com o prefeito. Mas não teve tempo para dar explicação a quem quer que fosse porque, segundos depois, Gaetanino pôs um ponto final em sua vida: Si calo per pigliare la sua coffa. E fu l’ultimo gesto della sua vita perché Gaetanino, persuaso d’avergli dato tutte le ragioni possibili per quello che era il compito suo, raprì il rasoio, pigliò don Memè per i capiddri, gli tiro la testa narre e gli sgarrò la gola, facendo nello stesso tempo un salto indietro per non allordarsi di sangue. Nel maneggio del rasoio il camperi era maestro, magari se mai in vita sua aveva fatto il varberi. Dopo, con la punta dello scarpone, volto il morto a panza all’aria e gl’infilò tra i denti un foglio di carta Bianca senza nessuna scrivuta ma intestato. L’intestazione 187 "A diferença", recomeçou o homem, "está não só na aparência, mas também na substância. Esse senhor de Favara, sabe-se lá por que, se juntou com o delegado do povoado. Viraram unha e carne. E com isso ele se meteu a fazer, em lugar do delegado, o que o delegado, ou a lei, não pode fazer ele mesmo. Abusos, infâmias, coisas vergonhosas, Golpear uma pessoa em praça pública, levá-la para a cadeia, sem culpa, estas são as coisas de aparência - diz o deputado. Mas para fazer estas coisas sem quebrar a cara, e sobretudo sem deixar mal os amigos que têm confiança em você, é preciso a força da substância. Só que, quando se vem a descobrir que você não tem substância, que você é vazio por dentro, que você não passa de folha solta no vento, aí então vira um servo prepotente, e, o que é ainda pior, um servo prepotente da lei, que é uma coisa torta por natureza. O senhor concorda?" "Claro que concordo." "Agora, um prepotente que pensa que é um homem de respeito pode causar dano, muito dano mesmo." (2004: 218) 146 faceva: “Regia Prefetura di Montelusa”. Acussì, chi voleva capire, capiva. (1995: 221)188 O terceiro, e derradeiro final se concluíra. O maior dos vilões também recebera seu castigo e se tornara portador de uma mensagem. Endereçada a quem? Como o prefeito deveria interpretar a morte de seu maior aliado? Imputação de culpa ou um aviso? A narrativa termina aqui, mas não a história, como veremos a seguir. “Capitolo primo” (Capítulo primeiro) é o título do último capítulo do romance. Traz uma proposta de leitura dos fatos de maneira diferenciada. O leitor se encontra uma vez mais com o filho do engenheiro, Gerd Hoffer, o menino que dera o alarme do incêndio em Vigàta e se atribui o papel de testemunha ocular, com o dever de reconstruir a história baseada na “verdade dos fatos”, com “atti istruttorii, documenti, lettere, testimonianze”. (1995:223)189 A trama de Il birraio di Preston gira em torno da apresentação de um melodrama, gênero que está na estrutura do próprio romance/rapsódia de Camilleri, como tentaremos demonstrar no próximo item. 3.1 Em busca da melodia perdida. Neste item tencionamos demonstrar que Camilleri faz uso das estruturas do melodrama na compoisção da rapsódia Il birraio di Preston. Mas, antes de iniciarmos o nosso discurso, queremos esclarecer que, embora não acolhamos a classificação “romance histórico”, que comumente é atribuída à obra em questão, reconhecemos em sua elaborada trama referências a fatos ocorridos em uma época importante para a história da Itália: os Oitocentos e os movimentos do 188 Agachou-se para pegar seu cesto. E foi o último gesto de sua vida, porque Gaetanino, persuadido de terlhe dado todas as explicações possíveis para o trabalho que iria fazer, abriu a navalha, agarrou don Memè pelo cabelo, puxou sua cabeça para trás e o degolou, dando ao mesmo tempo um pulo para trás, a fim de não se sujar de sangue. No uso da navalha o homem de confiança era mestre, embora nunca tivesse sido barbeiro. Com a ponta do coturno, virou o morto de barriga para cima e enfiou-lhe entre os dentes uma folha de papel em branco, sem nada escrito. Mas com um timbre: Real Prefettura de Montelusa. Quem quisesse entender que entendesse. (2004: 219) 189 atos processuais, documentos, cartas, testemunhos. (2004: 221) 147 início do século, com ênfase ao movimento revolucionário da carbonária e de Giuseppe Mazzini, a Sicília e seus aspectos políticos, sociais e culturais, A incidência de fatos da história italiana e, especialmente, de aspectos da cultura siciliana em Il birraio di Preston dão especial sabor a esse romancerapsódia que, como sinalizamos no início deste item, apresenta uma estrutura próxima a do melodrama. Melodrama. Vejamos as principais características desse gênero músicoteatral. Este gênero músico-teatral surgiu na sequência de pesquisas feitas no século XVI no sentido de ressuscitar a tragédia clássica. Distingue-se da tragédia grega, na medida em que, nesta, a primazia cabe à palavra, tendo características complementares a dança e a música, ao passo que naquele a música é fundamental e o texto se resume a um guião, embora minucioso. (Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira, vol. 19, p. 654) Observamos que o melodrama surgiu da tentativa de se recuperar a tragédia clássica. O século XVIII assistiu a polêmica criada em torno do gênero, além da tentativa, no século seguinte, de dar a supremacia à palavra. Entre os continuadores mencionam-se Pier Francesco Cavalli e Mareontonio Certi, em quem já se verificam os primeiros sinais da polêmica pela supremacia da música ou do drama que havia de dominar o séc XVIII. Na primeira metade deste século, o Apostolo Zeno tentou uma reforma do gênero no sentido de devolver à palavra a importância que lhe cabia na tragédia grega. (Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira, vol. 19, pp. 654-55) Metastásio é considerado o maior poeta do gênero e de suas obras ressaltamos Semiramide e La clemenza di Tito. Depois o melodrama entrou em fase de decadência, embora os românticos da fase descendente do movimento ainda o cultivassem como gênero teatral, caracterizado por uma exploração abusiva do patético. (Idem, ibidem) A música, já introduzida neste trabalho através da apresentação do romance La voce del violino, permeia toda a narrativa, iniciando pelo título do romance em análise, Il birraio di Preston, que é também o título da ópera encenada na narrativa, durante a inauguração do teatro Re d’Italia. 148 Na narrativa, no segundo capítulo, registra-se a discussão sobre que ópera seria mais indicada para um evento da importância da inauguração do teatro da cidade. Segundo o Circolo Cittadino di Vigàta, deveria ser uma ópera melhor do que a de Luigi Ricci, a escolhida pelo prefeito. Talvez devesse ser uma peça de Wagner, por exemplo. O tema música introduz algumas personagens, como dom Ciccio, o carpinteiro entendido de música, cuja opinião contrária ao possível êxito da apresentação de Il birraio di Preston causou problemas para os intentos do prefeito e de dom Memè, custando-lhe a liberdade. A música está presente também durante a discussão do Circolo Cittadino sobre a decisão do prefeito de encenar Il birraio di Preston e a consequente resistência daqueles que julgaram tal ato como abuso de autoridade do governante florentino. “Però lei, cavaliere, ha ragione” ripigliò il canonico. “Ce n’è di musica bella. E noi invece ci dobbiamo agliuttiri, volenti o nolenti, una musica che manco sappiamo com’è solo perchè così vuole l’autorità! Cose da pazzi! Dobbiamo fare soffrire le nostre orecchie con la musica di questo Luigi Ricci solo perchè il signor prefeito ordina così!”. (1995: 24)190 Nas palavras de dom Ciccio, o carpinteiro, homem respeitado por seu talento musical, ao expressar o que a música representava em sua vida e explicar o motivo de sua não aprovação à opera, respondendo à pergunta do prefeito. (1995: 170) E a música também foi protagonista de momentos patéticos, como, por exemplo, no episódio em que se descobre o equívoco do prefeito em relação à ópera apresentada no teatro La Pergola, na noite em que conhecera a esposa. Assim como acontece em Il birraio di Preston, verificamos a presença da música em outros romances do autor. Um inventário de todas as referências musicais encontradas na produção de Andrea Camilleri, obra a obra, pode ser acessado em http://www.vigata.org/musica/musica_camilleri.shtml. 190 "Porém o senhor cavaliere tem razão", voltou a dizer o cônego. "Há muitas músicas lindas. E nós, pelo contrário, temos que engolir, querendo ou não querendo, uma música que nem sabemos como é, só porque assim quer a autoridade. Coisa de loucos! Temos que deixar nossos ouvidos sofrerem com a música desse tal Luigi Ricci só porque o senhor prefeito assim ordena!" (2004: 22) 149 Em La voce del violino, assim como acontece em Il birraio di Preston, à música é atribuída tamanha importância, que poderíamos considerá-la uma personagem. Durante a narrativa, observamos como a música é capaz de conduzir o comissário Montalbano em sua busca pelo assassino da jovem Michela Licalzi. É a música, ou melhor, a “voz” emitida pelo precioso violino de Michela que traz à luz não apenas o assassino da jovem, mas a motivação que culminou no crime. A música adquire voz, poder de revelar aquilo que estava encoberto; é a testemunha do delito, que “fala” no momento crucial, mas que, no entanto, só pode ser ouvida por aquele que é capaz de compreendê-la, no caso o comissário Montalbano. A música exerce papel paradoxal em toda a narrativa de Il birraio di Preston. Se considerarmos a oposição drama versus comédia ou, como preferimos chamar, ópera séria vs ópera bufa, e os elementos melodramáticos que permeiam a narrativa, observaremos que a música está presente em ambos os elementos, que se alternam na trama, fazendo-se presente nos momentos mais sublimes e nos momentos mais patéticos, sendo veículo dos mais nobres e dos mais obscuros sentimentos. A respeito da definição do que seja melodrama, citamos: “O melodrama leva alguns elementos do drama, especialmente as intrigas e as paixões, às suas últimas consequências”. (Mirador, 7453) Entre as intrigas presentes no romance camilleriano podemos ressaltar o jogo de interesses protagonizado por dom Memè, conhecido mafioso que se apóia na autoridade do prefeito para atingir seus objetivos. A outra “intriga” é a representada pelo mazziniano, Nando Traquandi, que para pôr em prática seu plano de desencadear uma revolta popular, não mede esforços, planeja e executa o plano de incendiar o teatro, deixando evidente que não se importava com a possibilidade de fazer vítimas inocentes, o que, de fato, aconteceu. Entre as paixões levadas às últimas consequências, a do prefeito é a mais intensa, uma vez que, desejando homenagear sua esposa, aproveita a oportunidade da inauguração do teatro para encenar ali o espetáculo que ambos tinham assistido no dia em que se conheceram. Porém, é traído pela memória e 150 provoca desnecessariamente toda a confusão narrada em Il birraio di Preston, pois a ópera certa era La Clementina. Voltanto à história do melodrama, a apresentação de Dafne, em Firenze, no ano de 1594, é considerada o marco zero do gênero. Nascida da necessidade da cultura renascentista em recuperar a tragédia grega, o melodrama é a junção da poesia e da música. No artigo Il Melodramma e l’Opera lirica encontramos uma definição para o signo melodrama: “Mèlos in greco antico significa musica. Dramma da dràgma, indica la rappresentazione teatrale in genere, con la voluta omissione della distinzione fra Tragedia e Commedia, che si operava nel teatro greco”.191 Vale ressaltar que, diferentemente do que ocorria no teatro grego, no melodrama havia espaço para que a tragédia e a comédia operassem em conjunto, o que vem de encontro àquilo que observamos na tessitura de Il birraio di Preston. O leitor se vê diante de cenas de forte dramaticidade e, na sequência, encontra outras que provocam o riso. Sobre o teor de um melodrama: As obras-primas do melodrama são textos que vivem quase exclusivamente graças à habilidade de construir intrigas inesperadas ou dosar com eficácia as intrigas mais esperadas. As principais qualidades do melodramaturgo são imaginação e vivacidade, capacidade de criar personagens cheias de inocência e virtude, ao lado de vilões diabólicos, assustadores, encarnações do mal e das trevas. No melodrama, as personagens são esquematizadas, estereotipadas, dotadas de psicologia direta, sem mistérios. Estão divididas entre o campo do bem e do mal: virtuosos ou criminosos, vítimas ou vilões. (Mirador, 7454) 191 http://www.toscamoredisperato.it/index.php?option=com_content&view=article&id=93&Itemid=213 “Mèlos em grego antico significa música. Drama, de dràgma, indica a representação teatral em gênero, com a omissão intencional da distinção entre Tragédia e Comédia, que se operava no teatro grego.” (Tradução da autora) 151 Embora seja um romance construído de forma não linear, o leitor é capaz de organizar a cronologia dos fatos apresentados em Il birraio di Preston. Cada capítulo possui coerência interna e a maior parte deles apresenta uma temática diferente daquela apresentada no capítulo anterior, correspondendo a uma cena da obra. A junção dessas cenas dá forma a blocos, que podemos chamar de atos, ou princípio, meio e fim da história. Em seus primeiros anos, o melodrama era um espetáculo que, embora gratuito, estava reservado apenas aos nobres; somente a aristocracia tinha acesso aos espetáculos. Veneza ocupou um importante papel na difusão do gênero, uma vez que lá surgiram os primeiros teatros públicos, sendo o mais antigo deles o San Cassiano, fundado em 1637, ocasião em que foi encenada L’Andromeda, de autoria de Francesco Minelli di Tivoli. A partir de então, qualquer pessoa estava autorizada a assistir a um espetáculo, bastando para isso que adquirisse um ingresso. Esse fato ocasionou o surgimento de outros teatros abertos ao público pagante e o aumento do número de melodramas apresentados. A partir da segunda metade do século XVII, e graças aos músicos italianos, o melodrama se difundiu por toda a Europa. A ópera francesa, a tragédie-lyrique, criada por Giovanni Battista Lulli, florentino naturalizado francês, “si differenziava dal melodramma per la maggior rigorosità nell’interpretazione musicale e la particolare attenzione verso le coreografie, arrichite dalla presenza dei balletti.”192 Mas, foi a partir do século XVIII que o melodrama adquiriu maior popularidade, porém sofrendo modificações, uma vez que parte da retórica característica do gênero deu lugar à inserção da música em maior escala na trama apresentada. Christoph Willibald Gluck e Wolfgang Amadeus Mozart são exponentes desse movimento no melodrama. Dois clássicos exemplos de ópera populares são Le nozze di Figaro e Il Dongiovanni, ambas de autoria de Mozart. 192 http://www.toscamoredisperato.it/index.php option=com_content&view=article&id=93&Itemid=213. “Distinguia-se do melodrama pelo maior rigor na interpretação musical e a especial atenção dada às coreografias, enriquecidas pela presença dos balés.“ (Tradução da autora) 152 Voltando à Itália, foram Alessandro Scarlatti e, principalmente, Pietro Metastasio os responsáveis pela definição da ópera séria. Metastasio estabeleceu a estrutura e a métrica das óperas, conferindo, assim, seriedade às representações. A ópera bufa, por outro lado, nasceu em Nápoles. Era, basicamente, a forma como as cenas do cotidiano se representavam entre os atos de um espetáculo, e, em breve tempo, graças ao sucesso alcançado, transformou-se em gênero. Enquanto a ópera séria exigia o cumprimento, de maneira rigorosa, dos esquemas e estruturas que a norteavam, a ópera buffa não se empunha tal rigor: “i compositori si ispiravano a vicende legate alla vita di tutti i giorni che il pubblico capisca con maggior facilità, riuscendo a identificarsi nei personaggi”.193 Nomes como Rossini, Bellini, Donizetti e Verdi estão relacionados à época de ouro do melodrama, que nesse período passou a ser chamado de Ópera. Voltando a Il birraio di Preston, assim como os próprios acontecimentos que constituem a trama, o cômico e o trágico se intercalam durante toda a narrativa. Em alguns momentos, essa alternância acontece de capítulo para capítulo, outras vezes dentro de um mesmo capítulo. O capítulo “Avrebbe tentado d’alzare la muschittera” exemplifica o que pode ser considerado ópera séria. Nesse capítulo, é apresentada a história da jovem viúva Concetta Riguccio, que conhece o jovem Gáspano e, durante uma missa, marcam um encontro para aquela mesma noite, na casa dela. Tudo sai conforme o combinado e os dois têm sua primeira noite juntos. Porém, aquele era o dia em que ocorreria o incêndio, e a casa da viúva localizava-se ao lado do teatro. E o incêndio toma proporções ainda mais trágicas, pois o jovem casal morre durante a noite, sufocado pela fumaça produzida pelo fogo. Essa tragédia, embora tenha sido consequência do incêndio, vitimou pessoas que não possuíam 193 http://www.toscamoredisperato.it/index.php option=com_content&view=article&id=93&Itemid=213. "Os compositores se inspiravam em acontecimentos ligados ao cotidiano para que o público entendesse com maior facilidade, conseguindo identificar-se nas personagens." (Tradução da autora) 153 ligação direta com as personagens principais da trama; no entanto, mais adiante, esse fato ganhará importância, uma vez que trará desdobramentos para o delegado Puglisi, que se encontrará diante da escolha de seguir estritamente as suas funções como delegado e investigador ou fazer o que lhe parecia mais justo, inteferir na cena. E, sabemos que ele escolheu a segunda opção, ao modificar o quarto onde estavam os mortos e, assim, salvar a honra da falecida viúva. Em contrapartida, no capítulo “Giagia mia cara”, predomina a ópera bufa. O capítulo é ambientado na noite da inauguração do teatro Re d’Italia, quando o prefeito finalmente revela, através de uma carta endereçada à esposa, a real motivação da escolha da ópera Il birraio di Preston. Ele explica o porquê da insistência em apresentar aquela ópera, enfrentando seus inimigos políticos e correndo riscos. Mas, a resposta dada pela esposa não poderia ser mais decepcionante, nem colocar o prefeito em situação mais patética, como vimos anteriormente: ele se equivocara, porque a ópera que tinham assistido juntos, no dia em que se conheceram, fora La Clementina. Não somente na produção de Camilleri a música ocupa lugar de destaque. Se examinarmos a obra de outros escritores, como a do brasileiro Rubem Fonseca, verificaremos que a música também se faz presente em, pelo menos, um de seus romances de sucesso: Agosto (1993). Em Agosto, romance policial ambientado no Rio de Janeiro, na era Vargas, a música participa da trajetória de vida do comissário Mattos, que desde a juventude esteve envolvido com a ópera, tendo sido inclusive claqueur do Teatro Municipal. E, mesmo na fase adulta, já policial de carreira, jamais se afastara da música erudita, mantendo em sua casa discos e partituras de La Traviata e La Bohème, por exemplo, tendo a ópera estado presente “fisicamente” em diversos momentos importantes de sua existência. O comissário sempre ouvia os trechos das óperas, e, tal qual o comissário Montalbano, em La voce del violino, refletia sobre o crime investigado enquanto ouvia a música. Vejamos: Naquele momento Mattos estava deitado no sofá-cama Drago, ouvindo La Bohème. Ele acabara de ver uma foto na primeira página da Tribuna da Imprensa que o deixara muito perturbado. As desventuras amorosas de Rodolpho e Mimi, ainda que continuassem sendo expressas com emoção pela Tebaldi e pelo 154 Prandelli, haviam cedido lugar às cogitações sobre o crime do edifício Deauville. (FONSECA, 1993: 108) O trecho citado revela, ainda, um traço da personalidade do comissário Mattos, característica esta dissonante daquela exigida em um investigador, mas que não interferia em seu raciocínio lógico, ao menos em sua opinião: Mattos, conquanto reconhecesse ser emotivo e impulsivo em demasia, acreditava ter lucidez e perspicácia suficientes para escapar das clássicas ciladas da investigação criminal, principalmente da “armadilha da lógica”. A lógica era, para ele, uma aliada do policial, um instrumento crítico que, nas análises das situações controversas, permitia chegar a um conhecimento da verdade. Todavia, assim como existia uma lógica adequada à matemática e outra à metafísica, uma adequada à filosofia especulativa e outra à pesquisa empírica, havia uma lógica adequada à criminologia, que nada tinha à ver, porém, com premissas e deduções silogísticas à la Conan Doyle. Na sua lógica, o conhecimento da verdade e a apreensão da realidade só podiam ser alcançados duvidando-se da própria lógica e até mesmo da realidade. Ele admirava o ceticismo de Hume e lamentava que suas leituras realizadas na faculdade, não apenas do filósofo escocês, mas também de Berkeley e Hegel, tivessem sido tão superficiais. (Idem) Voltando à música, essa foi de fato, companheira de Mattos durante boa parte de sua vida. As páginas de Agosto vão ressaltando esse envolvimento do comissário com a música erudita, sendo lembrado, inclusive por outras personagens, como é o caso Alice, a namorada que o abandonara tempos atrás: “Tenho um encontro às cinco e meia. Com o maestro. Lembra do maestro?” “Maestro?” “O velho que chefiava a claque, o seu Emílio, lembra?” Ela se recordava vagamente de Mattos ter contado que quando estudante fizera parte da claque do Teatro Municipal para poder assistir a óperas de graça, ganhando ainda alguns trocados. (Idem) A música esteve presente também nos momentos dolorosos da vida de Mattos, como em seu rompimento com Alice. Nota-se que, a partir da música, o autor constrói uma crítica à classe mais abastada e sua interação com as artes: Algum tempo depois do rompimento com Alice, ele fora assistir a La Bohème no Municipal, com Di Stefano e a Tebaldi. Estava 155 acostumado a ir na torrinha, por ser mais barato e também porque era na galeria que a claque se postava e ele se acostumara com o local. Mas naquela ocasião comprara uma cadeira na plateia, próxima de uma frisa, onde havia um homem e uma mulher que cochilavam o tempo todo. Notou também que outras pessoas permaneciam dormindo em suas frisas, até mesmo quando Di Stefano deu um fabuloso dó de peito na ária Che gelida manina. Ficou profundamente irritado, já estava sentindo, então, os primeiros sintomas de sua úlcera duodenal e de seu ódio pelos ricos. Ir à ópera, aos concertos, aos museus, fingir que liam os clássicos, tudo fazia parte de uma grande encenação hipócrita dos ricos, cujo objetivo era mostrar que eles – pensava principalmente em Alice e sua família – pertenciam a uma classe especial de pessoas superiores que, ao contrário da chusma ignara, sabia ver, ouvir e comer com elegância e sensibilidade, o que justificaria a posse do dinheiro e o gozo de todos os privilégios. (FONSECA, 1993: 50-1) Aliás, a própria vida do comissário Mattos se assemelha aos temas dos melodramas, que ele constantemente ouve e são objetos de seu desejo. Ele, um homem formado em direito e comissário de polícia, é o que se pode chamar de um bom policial, por se encaixar nos moldes de boa conduta. É um profissional honesto, que se importa com os prisioneiros de sua carceragem e está sempre preocupado em cumprir seu dever. Em sua vida pessoal, é um homem doente e atormentado; sofre fisicamente por causa de uma úlcera duodenal e é infeliz no amor – tendo sido abandonado por Alice, devido à sua condição social inferior, e vivendo um romance inconsistente com Salete, que, apesar de ser apaixonada por ele, vive com um homem rico e casado. Os atributos pessoais do comissário parecem, no entanto, não lhe renderem sucesso, seja profissional ou pessoal. É mais temido que respeitado pelos colegas de trabalho, que o consideram um louco devido ao seu comportamento: “Com o senhor eu não discuto. O senhor é o meu chefe e tenho pelo senhor o maior respeito.” Na verdade Rosalvo tinha medo do comissário. Estava certo que Mattos não regulava bem, as caretas que fazia, a greve maluca que tentara promover, aquela coisa de sair desarmado nas diligências, e principalmente a mania de não levar grana do bicho – porra, o cara andava de lotação, nem automóvel tinha e desprezava o levado dos banqueiros! Era preciso tomar cuidado com o homem. (FONSECA, 1993: 45) 156 Embora Mattos transgrida a figura do detetive clássico em alguns aspectos, ele conserva o da honestidade, sendo um policial exemplar, ou seja, não se trata de um mau caráter ou criminoso conduzindo a investigação, fato que vai se comprovando no decorrer do romance. Quando Ilídio, o bicheiro que Mattos chutara e prendera, decide matar o comissário, Aniceto Moscoso procurou intervir na decisão do colega: “A gente não mata os policiais”, disse Aniceto, “nós compramos eles.” “Esse puto não se vende.” “Todos têm o seu preço. Falo de cadeira, estou nesse negócio há mais tempo que você.” “O cachorro me humilhou, a cidade inteira está rindo de mim. Ele tem que morrer, para eu poder olhar novamente para a cara dos meus filhos.” “Maior vingança será comprar o sujeito.” “Esse filho da puta não tem preço; ele é maluco. Todo mundo sabe disso.” (FONSECA, 1993: 122) E, naturalmente, a personalidade incorruptível do comissário, conforme vimos acima, lhe rendeu poucos amigos, uma vez que ele se colocava contra todo um sistema onde muitos eram corruptos, conforme comprovamos ao ler a conversa havida entre o bicheiro que queria matá-lo e aqueles que queriam dissuadi-lo da ideia: “Você sabe que sou uma pessoa que procura se informar bem antes de tomar qualquer decisão, mesmo que seja uma coisa simples. Eu me informei sobre esse comissário. Os colegas não gostam dele, os chefes não gostam dele.” (FONSECA, 1993: 123) Assim, estamos diante de um homem de vida amorosa e pessoal atribulada e saúde debilitada. Esses são os conflitos vividos por Mattos, que, embora sonhe com a aprovação em um concurso para juiz federal e assim poder melhorar sua condição profissional, não deixa de exercer seu cargo com compromisso e seriedade. 157 Durante toda a narrativa a música se contrapõe aos elementos clássicos do romance policial/noir, a violência exercida tanto pela polícia quanto pelos bandidos, o detalhismo das cenas de assassinato e até mesmo esquartejamento, além da personagem complexa que é o comissário Mattos. A música representa uma releitura da sua própria trajetória com Alice, a ex-namorada e agora esposa de Pedro Lomagno: “Mattos colocou o disco na vitrola. A música da ouverture inundou a pequena sala: identificou logo a melodia de um e a do outro, amor e ódio, Isolda e Tristão, Alice e Alberto, o paradoxo e a loucura”. (FONSECA, 1993:220) Até mesmo no momento derradeiro do comissário, nos instantes que precederam sua morte, o drama cantado deu o tom final à sua amargurada vida. Antes de seguir para o hospital, pois finalmente estava sofrendo a hemorragia estomacal que exigiria imediata intervenção cirúrgica, Mattos pede à Salete, a companheira que escolhera para dividir sua vida dali para a frente, que pusesse um disco especial na vitrola: Mattos voltou a fechar os olhos. Continuava suando muito. Mas o estômago não doía. Nem mesmo azia sentia. “Pega o disco que está em cima da vitrola, por favor, e põe para tocar. Está escrito Elixir de amor na capa. Me deu vontade de ouvir um pouquinho, antes de sairmos para o hospital.” (FONSECA, 1993: 341) [...] Subitamente intensidade. o som da vitrola aumentou fortemente de Mattos virou-se e viu Chicão ao lado da vitrola apontando um revólver para ele. “Diga adeus à sua garota”, gritou Chicão, para ser ouvido acima do som da vitrola. Mattos olhou para Salete. Foi a última coisa que viu. Caiu ao chão, morto pelo disparo de Chicão. (FONSECA, 1993: 342) Retornando a Il Birraio di Preston, reproduzimos abaixo um trecho que trata do teatro em Camilleri, retirado do livro L’incantesimo di Camilleri: 158 Il teatro è l’anima del percorso letterario di Camilleri. Nella palestra del deatro e in quella dell’esperienza televisiva il Camilleri scrittore mette a fuoco – e da parte – i procedimenti del congegno narrativo. Egli stesso racconta, nell’intervista concessa a Cinzia Tani per il programma di Rai Educational Rewind - Visioni private, di aver studiato a lungo come operava Diego Fabbri quando costriva la sceneggiatura televisiva di Maigret. Fabbi comprava un libro, ne sforbiciava materialmente le pagine, poi le disponeva per terra a una a una in ordine non sequenziale, come in un mosaico, secondo l’intreccio che via via gli si rivelava funzionale all’efficacia del racconto televisivo. Da scrittore, non solo per i polizieschi ma anche per i romanzi storici, Camilleri ha proceduto esattamente così. (2005: 23)194 Esse procedimento é observado na escrita e, em nosso corpus de análise, é um dos alicerces que compõem a estrutura do romance. Il birraio di Preston possui essa estrutura mosaica; os capítulos aparentemente soltos, sem uma conexão rígida, dão forma e significado ao romance. O autor orquestra os capítulos, num contínuo avançar-retroceder, no qual o leitor acompanha e observa o mosaico que é a história do incêndio do teatro Re d’Italia, em forma de flashback. Ao palco da narrativa sobem as mais diversas personagens, trazendo a sua história, algumas diretamente relacionadas à trama, outras distantes e aparentemente sem qualquer conexão. A vida privada de muitas das personagens vêm à tona, segredos são revelados, caráteres são desenhados. Não se revela simplesmente um mistério, sua investigação e desfecho, pois o texto vai além, ao pormenorizar a sociedade envolvida na história narrada, com suas dores e alegrias, qualidades e defeitos, momentos cômicos e trágicos, onde outros paradoxos como verdade-mentira, justiça-injustiça, crime-castigo desenham a Sicília pós-unificação e a insere na Itália recém-criada. 194 O teatro é a alma do percurso literário de Camilleri. No teatro e na experiência televisiva, o Camilleri escritor põe à prova - e a parte - os procedimentos do engenho narrativo. (Tradução da autora) Ele conta, na entrevista concedida a Cinzia Tani para o programa da Rai Educational Rewind - Visioni private, ter estudado durante muito tempo como operava Diego Fabbri quando construia a dramatização televisiva de Maigret. Fabbri comprava um livro, cortava as páginas, depois as dispunha no chão uma a uma, em ordem não sequencial, como em um mosaico, segundo o enredo que pouco a pouco se revelava funcional à eficácia da narrativa televisiva. (Tradução da autora) Como escritor, não somente de romances policiais mas também com os romances históricos, Camilleri procedeu extatamente assim. 159 O trecho abaixo se refere à figura de Montalbano, mas pode ser aplicado, também, a Il Birraio di Preston: I racconti si basano su omicidi da ricostruire, e il genere letterario praticato è senza dubbio il giallo: ritmi e modi della costruzione rivelano pertinente, magistrale professionalità. La suspense tiene, densissima, fino all’ultima pagina. Non è questo, però, il merito principale delle storie. Il loro potere di fascinazione sta soprattutto in quell’imbastire intorno al lettore un universo di relazioni umane, un trionfo di familiarità accattivante fino all’inglobamento, in cui, a un certo punto, si inseriscono alcune note squilibranti e insidiose. (PALUMBO, 2005: 95)195 Além das estruturas do melodrama presentes na narrativa de Il birraio, já mencionadas anteriormente, como capítulos em forma de atos, outro aspecto importante a ser observado, no que diz respeito aos capítulos, é o fato de cada um começar por uma frase que remete a uma obra da literatura mundial. Ou seja, cada um dos capítulos de Il birraio di Preston é inspirado em um título literário, sendo o primeiro – Era una notte che faceva spavento – uma referência a Era una notte buia e tempestosa, de Snoopy, e o penúltimo, L’aranci erano più abbondandi, baseado em Gli aranci erano più abbondanti, de L. Durrell. Tal referência reforça a tese de que cada capítulo poderia representar um ato do melodrama, que forma, em nossa opinião, a estrutura do romance. Além disso, essa escolha do autor, de nomear cada capítulo com referência a um romance da literatura universal, também nos remete à rapsódia, uma vez que vários temas estão reunidos em uma única história. O valor melodramático de Il birraio di Preston ultrapassou as páginas do romance, que é consideradao por muitos o seu capolavoro: foi adaptado para o teatro, transformada literalmente em melodrama. O espetáculo teatral Il birraio di Preston, dirigido por Giuseppe Dipasquale, é classificado como uma comédia, ou 195 As histórias são baseadas em homicídios a serem reconstruídos, e o gênero literário praticado é sem dúvidas o policial: ritmos e modos da construção revelam pertinência, magistral profissionalismo. O suspense se mantém, densissimo, até a última página. Não é esse, porém, o mérito principal das histórias. O poder delas de fascinar está sobretudo no alinhavar ao redor do leitor um universo de relações humanas, um triunfo de familiaridade envolvente, no qual, em um certo ponto, se inserem algumas notas destoantes e pérfidas. (Tradução da autora) 160 como preferimos chamar, ópera bufa. Abaixo transcrevemos o resumo do espetáculo, que tem duração de duas horas, contando-se o intervalo:196 Da un capolavoro di Andrea Camilleri, un irresistibile ritratto della provincia siciliana nella seconda metà dell’Ottocento. Siamo nella seconda metà dell’Ottocento, in una piccola città della provincia siciliana, quella Vigàta dove Camilleri ama ambientare tutte le sue storie ancora un secolo e mezzo prima dell’arrivo di Montalbano. Si deve inaugurare il nuovo teatro civico. Il prefeito Bortuzzi – fiorentino e perciò “straniero” - s’intestardisce ad aprire la stagione lirica com Il birraio di Preston, melodramma di Ricci di scarso valore, di nulla fama e di oggettiva idiozia. In realtà nessuno vorrebbe la rappresentazione di quell’opera, ma il prefetto obbliga a dimettersi ben due consigli di amministrazione del teatro, pur di far passare quella che lui considera una doverosa educazione dei vigatesi all’Arte. Tra i siciliani, visibilmente irritati dall’autorità esterna, si insinua il “bombarolo” mazziniano Nando Traquandi, venuto da Roma per creare scompiglio all’apertura della sala […] Tra mafiosi veri e presunti, brucianti storie d’amore, morti ammazzati per volontà e per accidente, lazzi di un loggione indisciplinato, si dipana una storia dalla perfetta architettura narrativa.(O grifo é do autor)197 A escolha da capa de A ópera maldita, versão brasileira do romance camilleriano, também remete ao melodrama, literalmente. Trata-se da pintura Mélodrame, de Honoré Daumier, que ilustra a capa do livro publicado pela Editora Rocco. 196 http://www.piccoloteatro.org/spettacolo_sch.php?stepdx=Sxpet&AcRec=768. De uma obra-prima de 197 De uma obra-prima de Andrea Camilleri, um irresistível retrato da província siciliana da segunda metade dos Oitocentos. Estamos na segunda metade do século XIX, em uma pequena cidade da província siciliana, aquela Vigàta onde Camilleri ama ambientar todas as suas histórias ainda um século e meio antes da chegada de Montalbano. (Tradução da autora) Deve-se inaugurar o novo teatro cívico. O prefeito Bortuzzi - florentino e por isso "estrangeiro" - se obstina em abrir a estação lírica com Il birraio di Preston, melodrama de Ricci de pouco valor, de nenhuma fama e de objetiva idiotice. Na realidade ninguém queria a representação daquela ópera, mas o prefeito obriga a destituição de dois conselhos de administração do teatro, para fazer passar aquela que ele considera uma necessária educação dos vigatenses à Arte. Entre os sicilianos, visivelmente irritados pela autoridade externa, se insinua o "bombarolo" mazziniano Nando Traquandi, vindo de Roma para criar desordem na abertura da sala [...] Entre mafiosos verdadeiros e presumidos, incendiantes histórias de amor, mortos assassinados premeditadamente ou por acidente, gracejos de uma torrinha indisciplinada, se enovela uma história de perfeita arquitetura narrativa. 161 Ratificando o fato de que toda a criação literária de Andrea Camilleri tem como ponto de partida um fato real, comprovamos o teor da ópera através do libreto do espetáculo teatral Il birraio di Preston. O melodrama jocoso em três atos, de Luigi Ricci, com libreto de Francesco Guidi, foi apresentado pela primeira vez em Florença, no Teatro della Pergola, no dia 04 de fevereiro de 1847, dados condizentes com os encontrados no romance de Camilleri. Assim, Il birraio di Preston representa três obras criadas de maneira sequencial e que apresentam ciclicidade. A primeira foi a ópera de Luigi Ricci, de 1847, que serviu de inspiração para a criação do homônimo romance de Andrea Camilleri, de 1995 que, por fim, foi devidamente adaptado para o teatro, transformando-se, assim, no espetáculo dirigido por Giuseppe Dipasquale. Entre as resenhas escritas sobre o espetáculo de Dipasquale, citamos a que foi assinada por Carmelo La Carrubba,198 que trata da questão linguística e exalta a capacidade que possui o autor de fazer reviver a oralidade das personagens: Tutti conosciamo le doti di affabulatore di un narratore che sembra far rivivere l’oralità del racconto – come nel “cuntu” – in cui si innesta una lingua creata per la bisogna dove è possibile giocare e divertire l’interlocutore. E in ciò consiste la “teatralità” del racconto di Camilleri che però sulla scena può mantenere la sua piacevole leggerezza se è rappresentata nei tempi scenici comico-umoristici di cui sopra.199 E, tratanto especificamente do conteúdo, Carruba exalta as características do texto literário camilleriano tranpostas para o texto teatral de Giuseppe Dipasquale. Na resenha são elencados diversos aspectos presentes no romance, já tratados neste estudo, como o paradoxo, as relações de poder, além da coexistência do trágico e do cômico: Ma affrontiamo il contenuto de “Il birraio di Preston” una tragicommedia dai risvolti paradossali che nasce dalla banalità di un ricordo frainteso all’origine, un errore conservato nella memoria come un fatto specifico: il prefetto di Montelusa, un fiorentino cocciuto e ottuso interpretato da Gianpaolo Poddighe, impone di 198 http://www.cataniaperte.com/teatro/articoli/birraio_preston.htm 199 Todos conhecemos os dotes de fabulador de um narrador que parece fazer reviver a oralidade da narrativa - como no "cuntu" - no qual se insere uma língua criada pela necessidade com a qual é possível brincar e divertir o interlocutor. E nisto consiste a "teatralidade" da narrativa de Camilleri, que, no entanto encenado pode manter a sua agradável leveza, se é representada nos tempos cênicos cômico-humoristicos. (Tradução da autora) 162 rappresentare a Vigàta al Teatro civico “Re D’Italia” l’opera lirica di tal Ricci “Il birraio di Preston” nella convinzione che alla prima di quell’opera al Teatro La Pergola di Firenze vi avesse conosciuto la moglie, la quale, rinfrescando l’ormai spenta memoria del marito, precisa che lei non era presente alla prima ma assistette – dopo giorni – allo spettacolo “Clementina”. E il marito aveva scatenato una rivoluzione assurda, una vera guerra civile con incendio e tre morti in scena per colpa della improbabile opera di Luigi Ricci. Per cui essere governati in Sicilia in quel 1877 significava avere un Potere che ignorava le esigenze di una popolazione e il suo malessere sociale. Ma a Camilleri che ama il gusto del paradosso e della sorpresa creando altresì una poetica dello stupore in cui si racconta il senso del ridicolo che investe il personaggio e che è attratto dalle situazioni incandescenti, interessa e si serve di una lingua dai toni e colori caldi con cui egli può scorazzare come un bambino malizioso che trova la sua giustificazione nella risata. Altro elemento è l’ironia dell’autore che gli consente di avvicinarsi ai fatti da narrare; è il suo primo approccio che poi si sviluppa nel paradosso, nel linguaggio sapido del sesso, nella conflittualità che però, alla fine, si risolve e si dissolve nella risata. O, anche, quando rivisita un giudizio di Sciascia sulla vedova riaffermando nella creazione del personaggio di Agatina e Concetta Riguccia interpretato efficacemente con malcelato candore da Mariella Lo Giudice che essa è “l’animale che tiene il becco sottoterra”. 200 A questão da língua é um argumento amplamente explorado por Andrea Camilleri em seus romances. O dialeto siciliano usado pelo autor confere à sua obra uma singularidade, e quase sempre provoca dificuldade na tradução do texto como, por exemplo, observamos na nota dos tradutores à edição brasileira de Il birraio di Preston, cujo título em português é A ópera maldita. Abaixo 200 Mas enfrentemos o conteúdo de Il birraio de Preston, uma tragicomédia de desdobramentos paradoxais, que nasce da banalidade de uma lembrança mal interpretada na origem, um erro conservado na memória como um fato específico: o prefeito de Montelusa, um florentino cabeçudo e obtuso, interpretado por Gianpaolo Poddighe, impõe a representação em Vigàta, no Teatro civil "Re D'Italia", a ópera lírica do tal Ricci, Il birraio de Preston, com a convicção de que, na estreia daquela ópera, no Teatro La Pergola de Florença, tivesse conhecido a esposa, a qual refrescando a já apagada memória do marido, esclarece que ela não estava presente na primeira, mas assistira - dias depois - o espetáculo "Clementina". E o marido tinha desencadeado uma revolução absurda, uma verdadeira guerra civil com incêndio e três mortes em cena por culpa da improvável ópera de Luigi Ricci. Pelo qual ser governante na Sicília, em 1877, significava ter um Poder que ignorava as exigências de uma população e o seu mal-estar social. Mas a Camilleri, que ama o gosto do paradoxo e da surpresa, criando outrossim uma poética do estupor na qual se conta o senso do ridículo que investe a personagem e que é atraído pelas situações incandescentes, interessa e se serve de uma língua de tons e cores quentes com a qual ele pode descouraçar como menino malicioso que encontra a sua justificativa na risada. Outro elemento é a ironia do autor que permite a aproximação aos fatos a serem narrados; é a sua primeira investida, que depois se desenvolve no paradoxo, na linguagem saborosa do sexo, no conflito que, porém, no final, se resolve e se dissolve na risada. Ou, também, quando revisita um juízo de Sciascia sobre a viúva, reafirmando na criação da personagem de Agatina e Concetta Riguccia, interpretada eficazmente com indissimulada candura por Mariella Lo Giudice, que essa é "o animal que tem o bico debaixo da terra”. (Tradução da autora) 163 reproduzimos a advertência dos tradutores, onde reafirmam as dificuldades de tradução, dadas as escolhas linguísticas do autor: Levando a alto grau de refinamento o trabalho com a linguagem – que é uma das características do autor -, nesta obra ele não só precisa, através da linguagem, a situação culturea, social e as características psicológicas dos personagens, como usa diferentes dialetos – o romano, o milanês, o piemontês., o toscano – para identificar cada um e chega até a buscar a transcrição fonética do falar de um deles. Na impossibilidade de reproduzir na tradução as diferenças dialetais, limitamo-nos a assinalá-la em alguns momentos do texto. (CAMILLERI, 2005: 5)201 A dificuldade em traduzir Camilleri e o trabalho realizado pelos tradutores Giuseppe D'Angelo e Maria Helena Kühner nos induziram a utilizar a versão brasileira na tradução às citações feitas a partir do texto original em italiano. A dificuldade de leitura apresentada pelos textos de Camilleri estimulou a pesquisa e publicação do livro Piccolo vocabolario per i lettori di Camilleri, em siciliano-italiano, de autoria de Gianni Bonfiglio, publicado no ano de 2002 pela editora Fermento, e parte integrante da coleção Percorsi della memoria. Abaixo reproduzimos a apresentação ao Piccolo vocabolario, encontrada no site da editora:202 Questo volume vuole essere un compendio della lingua siciliana, un piccolo vocabolario, utile strumento per i lettori di Andrea Camilleri e Mario Di Bella e per coloro che incontrano termini siciliani. È rivolto anche a tutti i "siciliani di mare" che, vivendo da molti anni lontano dalla Sicilia, hanno forse dimenticato molti dei vocaboli fondamentali della loro lingua madre. In chiusura, è stato inserito un prontuario composto da una serie di frasi tipiche, che potrà essere utilizzato per pronto accomodo da tutti quelli che si recheranno in Sicilia o che avranno voglia di scoprire un linguaggio nuovo e diverso da quelli finora conosciuti.203 201 Convém assinalar que interferimos em certas traduções, quando divergimos da solução encntrada pelos tradutores. 202 http://www.fermento.net/catalogo/libro.php?id=55 203 Este volume quer ser um compêndio da língua siciliana, um pequeno vocabulário, útil instrumento para os leitores de Andrea Camilleri e Mario Di Bella e para aqueles que encontram termos sicilianos. É voltado também a todos os "sicilianos de mar" que, vivendo há muitos anos longe da Sicília, tenham talvez esquecido 164 Podemos observar nos romances de Camilleri a coexistência da língua italiana e dos dialetos, especialmente o siciliano que faz parte do estilo do autor. A língua constitui traço idenditário na obra, sendo elemento capaz de moldar as personagens. Enquanto a língua italiana é utilizada nos momentos públicos, oficiais, nos diálogos formais, o dialeto é a escolha dos momentos mais íntimos, pessoais, nos diálogos populares. Podemos exemplificar essa diferença de uso com trechos do próprio Birraio, observando as diferenças entre a linguagem dos relatórios às autoridades e as cartas de populares. No trecho do relatório enviado pelo prefeito, no qual explica os motivos “oficiais” para a escolha da ópera a ser apresentada, lemos: Mi venne allora, del tutto casualmente, di formulare un titolo, quello del Birraio di Preston, opera da me goduta in anni più verdi e precisamente alla sua prima esecuzione trionfale avvenuta in Firenze nell’anno 1847. Feci quel titolo certamente non per ragioni personali, ma perchè ritenevo che quell’opera, nella sua vaga leggerezza, nella sua semplicità di parola e di musica, fosse atta alla ritardata comprensione dei siciliani, e dei vigatèsi in particolare, per ogni superno manifestarsi dell’arte. (1995: 134)204 E, na carta de populares endereçada ao prefeito: “Al signor profeto Bortuzziiccillenza Montelusa “Caro Profetto, tu si na grandi testa di cazzo. Pirchì non te ne torni a Forenze? Tu non sì un profetto na uno strunzo ca feti e uno sasìno. Tieni tre morti sopra li spaddri per il foco del tiatro. Tu sì la peju sdilinquenzia. Nun ai cuscienza. Firmato un citatino”.205 muitos dos vocábulos fundamentais de sua língua mãe. No final, foi inserido um prontuário composto de uma série de frases típicas, que poderão ser utilizadas prontamente por todos aqueles que irão para a Sicília ou que terão vontade de descobrir uma linguagem nova e diferente daquela até agora conhecida. (Tradução da autora) 204 Ocorreu-me, então, por mero acaso, mencionar um título, o do Birraio di Preston, ópera que eu apreciei em meus verdes anos, exatamente quando de sua primeira e triunfal execução, acontecida em Florença, no ano de 1847. Citei aquele título, evidentemente, não por motivos pessoais, mas porque julgava que aquela ópera, por ser algo bem leve e de grande simplicidade em termos de letra e música, seria adequada à lerda compreensão dos sicilianos, e dos vigatenses em particular, em relação a toda e qualquer superior manifestação de arte. (Tradução da autora) 205 Ao Senhor Profeto Bortuzzi Cilenza Montelusa "Caro profeto, você é um grande cabeça de merda. Por que não volta para sua Florença? Você não é um profeto, você não passa de um bosta que fede e um burro. Tem três mortes nas costas por causa do incemdio do teatro. Você é um criminoso da pior raça. Não tem conciência. Assinado - Um cidadão." 165 3.2 O espetáculo interrompido O paradoxo está presente em toda a narrativa de Il birraio di Preston. Todorov escreveu “A tipologia do Romance Policial”, capítulo de Poética da Prosa (1971), editada em português pela editora Martins Fontes, em 2003, no qual define a tipologia do romance policial; discorre sobre as tentativas de adequação em um gênero, as peculiaridades deste tipo de narrativa, e, sobretudo, trata das características essenciais que devem existir em um romance para que ele possa ser classificado como policial. No início de nosso trabalho, utilizamos o livro O mundo emocionante do romance policial, de Paulo de Medeiros e Albuquerque, para traçarmos uma linha do tempo detalhada do gênero policial, desde o seu surgimento até a contemporaneidade. Sobre o romance policial clássico, que Todorov chama de “romance de enigma” é dito: A primeira história, a do crime, termina antes que a segunda comece. Mas o que acontece na segunda? Poucas coisas. Os personagens dessa segunda história, a história da investigação, não agem, só tomam conhecimento. Nada pode acontecer com eles: uma regra do gênero postula a imunidade do detetive. É impossível imaginar Hercule Poirot ou Philo Vance ameaçados por algum perigo, atacados, feridos, e, com mais razão ainda, mortos. As cento e cinquenta páginas que separam a descoberta do crime da revelação do culpado são dedicadas a uma lenta aprendizagem: examina-se indício após indício, pista após pista. O romance de enigma tende, pois, para uma arquiterura puramente geométrica: Assassinato no Expresso do Oriente (A. Christie), por exemplo, apresenta doze personagens suspeitos; o livro consiste em doze, mais uma vez doze interrogatórios, prólogo e epílogo (ou seja, descoberta do crime e descoberta do culpado). (TODOROV, 2003: 66-7) A partir da citação acima, observamos o seguinte: Il birraio di Preston, assim como diversos outros romances policiais, rompe com várias das regras citadas acima, sobretudo no que diz respeito à atuação do detetive. Afinal, o delegado Puglisi não apenas se expõe a toda sorte de perigo durante a narrativa, como acaba sendo assassinado, ainda que acidentalmente, ao final dela. O comissário Mattos, personagem de Rubem Fonseca, é outro exemplo desse novo tipo de detetive. Ao percorrer as páginas de Agosto, o leitor conhece a trajetória 166 de vida do comissário, suas desilusões, seu relacionamento com Salete, uma prostituta, os problemas que enfrenta em seu trabalho. O mesmo acontece em Lupo Mannaro, de Carlo Lucarelli, no qual temos dois investigadores, o comissário Romeo e a jovem Grazia, que protagonizará outros romances de Lucarelli, e que também protagoniza, junto ao comissário Montalbano, o romance Acqua in bocca, escrito a quatro mãos pelos romancistas italianos, Camilleri e Lucarelli. Assim, como acontece com o comissário Montalbano, todos esses detetives citados vão na contramão daquilo que se definiu como detetive clássico: o comissário Romeo termina afastado da polícia por estar doente, sendo substituído por Grazia; o comandante Mattos é assassinado pelo próprio criminoso do delito que investigou e elucidou, sem sequer ter a chance de prendêlo; e, por fim, o comissário Montalbano, talvez por protagonizar uma considerável quantidade de romances, se expõe de maneira mais intensa e profunda ao leitor. Os medos e as paixões experimentados por esses homens e mulheres constituem parte importante dos romances que protagonizam. Eles não são infalíveis, porém seus objetivos sempre são alcançados, preservando assim a fundamental regra do romance policial, os crimes sempre são elucidados e, ainda que no âmbito narrativo a elucidação não seja revelada, para o leitor nunca restam dúvidas quanto a autoria dos crimes. Assim, observamos que a estrutura contemporânea do romance policial difere bastante da original. A história do crime e a da investigação já não constituem os únicos pilares em que se sustentam a narrativa. Novos elementos foram inseridos e fazem parte da trama. Se tomarmos como exemplo o comissário Montalbano, verificaremos como essa personagem está enraizada nas narrativas que protagoniza. Sua vida está estreitamente vinculada à história narrada. A paixão do comissário pela terra onde vive, pela gastronomia local, o seu conturbado relacionamento com Lívia, sua eterna noiva, seu senso de justiça e seus valores estão presentes de forma bastante abrangente nos romances. Todorov trata das duas histórias existentes no romance policial, a do crime e a da investigação, ou de como se tomou conhecimento do delito, citando os formalistas russos, através da fábula e do tema. Na fábula, não há inversão no tempo, as ações seguem sua ordem natural; no tema, o autor pode nos apresentar os resultados antes das causas, o final antes do começo. Essas 167 duas noções não caracterizam duas partes da história ou duas histórias diferentes, mas dois aspectos de uma mesma história, são dois pontos de vista sobre a mesma coisa. Como, então, o romance policial consegue tornar ambos presentes, colocá-los lado a lado? (TODOROV, 2003: 66) O autor segue explicando como esses dois elementos se fazem presentes. Retomando nosso corpus, podemos então questionar como a fábula, isto é, o incêndio do Teatro Re d’Italia caminha lado a lado com o tema, a narrativa. Para explicar esse paradoxo, é preciso lembrar inicialmente o status particular das duas histórias. A primeira, a do crime, é na verdade a história de uma ausência: sua característica mais precisa é a de não poder estar imediatamente presente no livro. Em outras palavras, o narrador não pode nos transmitir diretamente as réplicas dos personagens envolvidos nelas, nem nos descrever seus gestos: para fazer isso, tem necessariamente de passar pela intermediação de um outro (ou do mesmo) personagem que relatará, na segunda história, as palavras escutadas ou os atos observados. O status da segunda é, como vimos, igualmente excessivo: é uma história que não tem nenhuma importância em si mesma, que serve exclusivamente de mediador entre o leitor e a história do crime. Os teóricos do romance policial sempre concordaram em dizer que o estilo, neste tipo de literatura, tem que ser prefeitamente transparente, inexistente; a única exigência à qual obedecer é simples, claro, direto. (TODOROV, 2003: 68) Em Il birraio di Preston, não há essa divisão em duas histórias, pois o formato teatral da trama rompe com essa característica. O leitor toma conhecimento dos fatos no momento em que eles acontecem. É como se estivéssemos sentados numa plateia e, a cada abrir e fechar das cortinas, víssemos surgir diante de nós os fatos, em forma de uma nova cena. O leitor toma conhecimento da motivação, planejamento e execução do delito pelo próprio criminoso; não há intermediários nessa ação, assim como em toda a trama, não apenas o crime, tampouco a investigação. Cabe ressaltar, no entanto, que, embora a organização de Il birraio di Preston seja diferente, a estrutura interna da narrativa se mantém. É como se, para as personagens, o romance seguisse a ordem natural dos fatos, os pontos de vista de que falamos acima, mas para o leitor fosse concedida uma visão “de cima”, onisciente. O leitor está em todos os lugares: ele conhece tudo porque quase nada se oculta aos olhos daquele que lê. Todorov (2003: 68) prossegue: 168 No romance de enigma, há portanto duas histórias: uma ausente mas real, a outra presente mas insignificante. Essa presença e essa ausência explicam a existência de ambas na continuidade da narrativa. A primeira comporta tantas convenções e procedimentos literários (que nada mais são do que o aspecto “tema” do relato) que o autor não pode deixá-los sem explicação. Note-se que esses procedimentos são essencialmente de dois tipos, inversões temporais e “visões” particulares: o teor de cada informação é determinado pela pessoa que a transmite, não existe observação sem observador; o autor não pode por definição ser onisciente, como era no romance clássico. Eis mais um aspecto do romance policial tradicional que é transgredido pela narrativa em Il birraio di Preston. A existência das duas histórias citadas por Todorov de fato se comprova; ambas estão presentes e são relevantes na estrutura do romance; vão sendo construídas ao longo da narrativa. Não se trata da pura e simples observação de uma personagem, na verdade de nenhuma personagem em especial. As duas histórias são contadas aos poucos, tomam forma na medida em que cada cenário é construído. A estrutura da narrativa em atos oferece muito mais que a simples elucidação do crime. Através dela o leitor toma conhecimento de múltiplas histórias, entre as quais a do crime e da investigação. Além disso, verifica-se outra transgressão no que diz respeito ao narrador, que é onisciente: vê tudo e sabe tudo. Apenas o último capítulo, o “Capitolo primo”, é narrado por uma personagem, Gerd Hoffer, o rapsodo, que assume o papel de conservar e transmitir os fatos ocorridos. Para ilustrar esses dois tipos de romance, podemos citar, em comparação a Il birraio di Preston, outro romance de Camilleri, La voce del violino, já referenciado, no qual, a partir de um acidente, o comissário Montalbano chega até uma vila e encontra o corpo de Michela Licalzi. Durante toda a narrativa, Montalbano seguirá as pistas e seu poder de dedução, a fim de chegar ao criminoso, e o faz, desvendando inclusive os motivos que levaram o amante de Michela a cometer o crime. Em termos de dinâmica da narrativa, Il birraio di Preston se encaixa nos moldes de um subgênero que é desdobramento do policial, o romance noir, que teve origem nos Estados Unidos da América. Sobre ele, Todorov escreve: O romance noir é um romance policial que funde as duas histórias ou, em outras palavras, suprime a primeira e dá vida à segunda. Não nos relatam mais um crime anterior ao momento 169 da narrativa, a narrativa coincide com a ação. Nenhum romance noir é apresentado sob a forma de memórias: não há um ponto de chegada a partir do qual o narrador abarcaria os acontecimentos passados, não sabemos se ele chegará vivo ao final da história. A prospectiva substitui a retrospectiva. (TODOROV, 2003:69-70) E é exatamente o que acontece em Il birraio di Preston: temos uma visão ampla, detalhada da história, ou das histórias ali presentes. As coisas vão acontecendo, os fatos vão se sucedendo. E esse gênero rege, dá vida a uma nova estrutura: Não há história para adivinhar; e não há mistério, no sentido em que estava presente no romance de enigma. Mas nem por isso o interesse do leitor diminui: percebe-se aqui que existem duas formas de interesse totamente diferentes. A prmeira pode ser chamada de curiosidade; ela vai do efeito à causa: a partir de um certo efeito (um cadáver e alguns indícios) é preciso encontrar sua causa (o culpado e aquilo que o levou a cometer o crime. A segunda forma é o suspense, e aqui se vai da causa ao efeito: mostram-nos primeiro as causas, os dados iniciais (gângsteres que preparam golpes), e nosso interesse é mantido pela expectativa do que vai acontecer, ou seja, dos efeitos (cadáveres, crimes, brigas). Esse tipo de interesse era inconcebível no romance de enigma, pois seus personagens principais (o detetive e seu amigo, o narrador) estavam, por definição, imunizados: nada podia acontecer-lhes. A situação se inverte no romance noir: tudo é possível, e o detetive põe em risco sua saude e até sua vida. (TODOROV, 2003:70) Assim, verificamos que Il birraio di Preston dialoga em muitos aspectos com a definição de romance noir, uma vez que temos a fusão das duas histórias que compunham o romance de mistério, ou romance policial tradicional, em uma, a troca da curiosidade em se descobrir o assassino pelo suspense em saber qual a próxima ação do assassino e consequentemente do detetive, como em um tabuleiro de xadrez nada está definido, a expectativa está presente em todos os momentos. Fatos inesperados e que não necessariamente pertencem ao âmbito da investigação acontecem. A morte do médico e, especialmente a do comissário, que é assassinado de forma totalmente inesperada, quase que acidentalmente, pelo cúmplice do criminoso principal, surpreendendo o leitor, “um gênero novo cria-se em torno de um elemento que não era obrigatório no antigo” (TODOROV, 170 2003: 70). Il birraio di Preston parece se encaixar nessa definição, de romance noir, nesse subgênero do romance policial. A fim de embasar nossas afirmações sobre o romance noir e, especialmente, sua aplicabilidade em Il birraio di Preston, citamos mais uma vez Todorov (2003: 74): O leitor fica interessado não só pelo que aconteceu antes, mas também pelo que acontecerá mais tarde, ele se pergunta tanto sobre o futuro quanto sobre o passado. Ambos os tipos de interesse se encontram reunidos aqui: há a curiosidade de saber como os acontecimentos passados se explicam; e há também o suspense: o que vai acontecer com os personagens principais? Lembremos que esses personagens gozam de imunidade no romance de enigma; aqui arriscam o tempo todo a vida. O mistério tem uma função diferente da que tinha o romance de enigma: é antes um ponto de partida, o interesse principal vem da segunda história, aquela que se desenrola no presente. Embora a divisão rígida entre passado e presente praticamente não exista em Il birraio di Preston - a ordem em que os fatos se apresentam tem uma estrutura teatral, onde a história é contada em forma de atos, sem obediência à estrutura princípio, meio e fim, e com as partes da história se intercalando – é o noir o gênero que mais se aproxima daquele encontrado no romance. Naturalmente, essa é apenas uma tentativa de classificação desse romance policial ou rapsódia. Todorov, enfim, sintetiza a relação entre os três tipos de romance (de mistério, noir e de suspense): Mas é bastante notável que a evolução do romance policial em suas grandes linhas tenha seguido precisamente a sucessão dessas formas. Poderíamos dizer que, num dado momento, o romance policial sente como um peso injustificado as restrições de tal ou qual gênero e livra-se delas para constituir um novo código. A regra do gênero é percebida como uma restrição a partir do momento em que se torna pura forma e não se justifica mais pela estrutura do conjunto. [...] O romance de suspense que nasceu depois da grande época do romance noir sentiu esse meio como atributo inútil, e conservou apenas o próprio suspense. Mas ao mesmo tempo foi preciso reforçar a intriga e restabelecer o antigo mistério. (TODOROV, 2003:76) Assim, podemos afirmar que, diante da análise da narrativa à luz da teoria aqui apresentada, trata-se de um romance noir, ou melhor, de uma rapsódia noir, 171 uma vez que as características desse subgênero do policial prevalecem no decorrer da história, ou, utilizando o termo dos formalistas russos, do tema. Ao começarmos a caminhar para as considerações finais, devemos sublinhar que a rapsódia Il birraio di Preston está, de fato, baseada em fatos reais, extraídos da obra Inchiesta sulle condizioni della Sicilia del 1875-76. Ou seja, a trama se desenrola na Itália recém-unificada, já com a Sicília anexada ao território italiano. Na verdade, como afirmamos anteriormente, Camilleri parte sempre de um fato real para arquitetar seus romances. E, na obra em exame, embora alguns fatos pertençam à história cronológica da Itália, esses servem somente como motivação inicial. 172 CONSIDERAÇÕES FINAIS Começamos as considerações finais confessando nosso embaraço na classificação da obra que examinamos nesta tese, Il birraio di Preston, que é frequentemente inserida no rol de romances de Andrea Camilleri que são classificados como históricos. A narrativa, de fato, parte de um importante momento da história da Itália, pois a ação principal, o incêndio do teatro Re d’Italia, acontece na noite de 10 de dezembro de 1874, pouco tempo após a Unificação da Itália. Mas, ter como ponto de partida um fato histórico para desenvolver a trama é condizente com o estilo do autor, que, neste romance, utiliza as informações contidas em Inchiesta sulle condizioni della Sicilia del 187576 para construir seu jogo ficcional, estabelecer um contrato narrativo com o seu leitor. Parte somente do fato histórico. Em Il birraio di Preston encontramos elementos caracterizadores do gênero policial: o crime, que é o incêndio do teatro; a figura do detetive, representada pelo delegado Puglisi, que conduz a investigação; e a solução do crime e identificação dos culpados. Porém, como já afirmamos, a exemplo do que acontece com Agosto, Quer Pasticciaccio brutto di via Merulana e Il giorno della Civetta, não se realiza a punição consequente da descoberta do investigador, o que fecharia o ciclo do romance policial. Nando Traquandi, o mazziniano, só é assassinado para atender os interesses das autoridades que queriam ocultar o próprio erro. Após a investigação conduzida por Puglisi apontar Traquandi como o responsável pelo incêndio, as autoridades precisaram agir rapidamente e o fizeram, eliminando o revolucionário e atribuindo o crime ao louco da cidade, Cocò Impiduglia. Il birraio di Preston se encaixa também nos moldes do romance noir, subgênero do policial, pois o leitor acompanha toda a ação que ocorre na narrativa, desde o planejamento do delito à solução. A história do crime e a da investigação se fundem em uma única. As estratégias narrativas utilizadas pelo autor conferem ao romance a possibilidade de diversos níveis de leitura. O primeiro deles, e o mais visível, como apontamos, é o giallo (policial), em virtude da estrutura da obra, associado ao estilo do autor. O histórico é outro nível de leitura presente no texto de 173 Camilleri, que tem como cenário a Sicilia do século XIX, palco de disputas políticas e sociais, anexada à recém-unificada Itália. Mas, queremos classifica-lo como rapsódia, com a estrutura dos capítulos representando cenas, ou atos da história sob o palco de Vigàta. É melodramático. Através das narrativas dentro da grande narrativa, podemos abrir cortinas que nos permitem o vislumbre de pequenas cenas do cotidiano, da vida privada dos cidadãos vigatenses, com seus amores e suas dores, que se misturam, e mesmo compõem a trama principal. Essas tramas inesperadas vão surgindo a cada capítulo e, embora não possuam ligação direta, algumas delas não se liga nem mesmo ao incêndio, completam o mosaico que é Il birraio di Preston, uma rapsódia melodramática. Em Macunaíma, Mário de Andrade reúne lendas indígenas, provérbios do povo brasileiro, a diversidade religiosa, assim como as características de cada região do nosso país, que retratam a sociedade brasileira de então, nessa diversidade incluída a língua popular, na representação da oralidade. Il birraio di Preston é, também, uma narrativa onde estão reunidos o modo de vida e os costumes do povo siciliano do século XIX, as relações entre as autoridades e o povo. Tal como acontece em Macunaíma, a língua possui papel importante nessa e nas demais obras de Camilleri. A utilização do siciliano marca a identidade dos vigatenses, pois a oralidade está presente em todos os momentos, o coro das vozes populares se faz sentir em toda a trama, até mesmo nas cartas enviadas pelos cidadãos comuns ao prefeito Bortuzzi. O coro, elemento integrante do teatro grego, desde os seus primórdios, presente no melodrama – que se originou como proposta de recuperação da tragédia – é um dos elementos melodramáticos presentes em Il birraio di Preston. É a voz do povo que anuncia, acusa e revela as injustiças. O coro aparece na narrativa em momentos variados. Primeiro ele anuncia a tragédia, o incêndio. Depois, no teatro – representado pelos espectadores que falam durante toda a apresentação da ópera – demonstra ignorância musical e, também, indignação contra o prefeito e sua ordem. No entanto, o trecho onde o coro aparece de maneira mais eficaz é aquele no qual são publicadas as cartas em que as principais autoridades de Vigàta, o prefeito, o padre e até mesmo o delegado Puglisi, são acusados. 174 Apesar de não possuir o poder, o povo soube utilizar o único instrumento que não podiam lhe tirar, a voz, e durante toda a narrativa exerceu o papel que lhe cabia, informar e acusar. A questão da língua italiana e da língua siciliana, os traços identitários do siciliano permeiam toda a narrativa que dialoga com outras obras da literatura italiana, principalmente. Il birraio di Preston apresenta uma miríade de histórias encaixadas em uma história maior e recusa moldes classificatórios: se estabelece sobre o gênero policial, mas não é uma simples história de crime e punição; apresenta uma estrutura condizente com a do melodrama: a construção dos capítulos que nos remetem a atos, a presença do coro, anunciando, denunciando e protestando contra os abusos de autoridade e as injustiças, o paradoxo entre a ópera séria e a ópera buffa. Toda a narrativa é conduzida pelas linhas do delito e da investigação, nesta rapsódia em giallo. 175 REFERÊNCIAS 1- Obras de Andrea Camilleri Acqua in bocca. Roma: Minimum Fax, 2010. Le ali della sfinge. Palermo: Sellerio Editore, 2006. Altri casi per il commissaio Montalbano. Palermo: Sellerio Editore, 2011. Ancora tre indagini per il commissario Montalbano. Palermo: Sellerio Edittore, 2009. Gli arancini di Montalbano. Milano: Mondadori, 1999. Biografia del figlio cambiato. Milano: Rizzoli, 2000. Il birraio di Preston. Palermo: Sellerio Editore, 1995. La bolla di componenda. Palermo: Sellerio Editore, 1993. La caccia al tesoro. Palermo: Sellerio Editore, 2010. Il campo del vasaio. Palermo: Sellerio Editore, 2008. Il cane di terracotta. Palermo: Sellerio Editore, 1996. Il casellante. Palermo: Sellerio Editore, 2008. Il cielo rubato. Milano: Skira, 2009. Il colore del sole. Milano: Mondadori, 2007. Il commissario Montalbano – Le prime indagini. Palermo: Sellerio Editore, 2008. La concessione del telefono. Palermo: Sellerio Editore, 1998. Il corso delle cose. Siena: Lalli, 1978. La danza del gabbiano. Palermo: Sellerio Editore, 2009. Il diavolo Tentatore/Innamorato. Roma: Donzelli, 2005. Il diavolo, certamente. Milano: Mondadori, 2012. Dossier Renoir. Milano: Skira, 2009. 176 L’età del dubbio. Palermo: Sellerio Editore, 2008. I fantasmi. Milano: E-Il mensile di Emergency, 2011. Favole del tramonto. Roma: Edizioni dell’Altana, 2000. Un filo di fumo. Milano: Garzanti, 1980. La forma dell’acqua. Palermo: Sellerio Editore, 1994. Il gioco degli specchi. Palermo: Sellerio Editore, 2011. Il gioco della mosca. Palermo: Sellerio Editore, 1995. Il giro di boa. Palermo: Sellerio Editore, 2003. La gita a Tindari. Palermo: Sellerio Editore, 2000. Gocce di Sicilia. Roma: Edizioni dell’Altana, 2001. Gran Circo Taddei e altre storie di Vigàta. Palermo: Sellerio Editore, 2011. Le inchieste del Commissario Collura. Libreria dell’Orso, 2002. L’intermittenza. Milano: Mondadori, 2010. Le interpellanze parlamentari di Leonardo Sciascia. Milano: Bompiani, 2009. Un inverno italiano – Cronache con rabbia 2008-2009. Milano: Chiarelettere, 2009. Il ladro di merendine. Palermo: Sellerio Editore, 1996. La luna di carta. Palermo: Sellerio Editore, 2005. Maruzza Musumeci. Palermo: Sellerio Editore, 2007. Il medaglione. Milano: Mondadori, 2005. Memorie e conversazioni sul teatro. Milano: Rizzoli, 2002. Un mese con Montalbano. Milano: Mondadori, 1998. La moneta di Akragas. Milano, Skira, 2011. La mossa del cavallo. Milano: Rizzoli, 1999. La muerte de Amalia Sacerdote. Barcelona: RBA, 2008. 177 Il nipote del Negus. Palermo: Sellerio Editore, 2010. La novella di Antonello da Palermo. Napoli: Guida, 1984. L’ occhi e la memoria Porto Empedocle 1950. Roma: Palombi, 2007. L’odore della notte. Palermo: Sellerio Editore, 2001. A ópera maldita. Trad. Giuseppe D’Angelo e Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. Pagine Scelte di Luigi Pirandello. Milano: Rizzoli, 2007. Il palato assoluto. Catania: Stilos, 2010. La paura di Montalbano. Milano: Milano: Mondadori, 2002. La pazienza del ragno. Palermo: Sellerio Editore, 2004. Le pecore e il pastore. Palermo: Sellerio Editore, 2007. La Pensione Eva. Milano: Mondadori, 2005. Piccolo dizionario dei termini teatrali. Milano: Rizzoli, 2001. La pista di sabbia. Palermo: Sellerio Editore, 2007. La presa di Macallè. Palermo: Sellerio Editore, 2003. La prima indagine di Montalbano. Milano: Mondadori, 2004. Privo di titolo. Palermo: Sellerio Editore, 2005. Racconti quotidiani. Milano, Mondadori, 2001. Il re di Girgenti. Palermo: Sellerio Editore, 2001. La rizzagliata – Un onorevole siciliano. Palermo: Sellerio Editore, 2009. Romanzi storici e civili. Milano: Mondadori, 2004. Un sabato, con gli amici. Milano: Mondadori, 2009. La scomparsa di Patò. Milano: Mondadori, 2000. La setta degli angeli. Palermo: Sellerio Editore, 2011. Il sonaglio. Palermo: Sellerio Editore, 2009. Il sorriso di Angelica. Palermo: Sellerio Editore, 2010. 178 La stage dimenticata. Palermo: Sellerio Editore, 1984. La stagione della caccia. Palermo: Sellerio Editore, 1992. Lo stivale di Garibaldi. Catania: Stilos, 2010. La storia de Il Naso di Nikolaj V. Gogol’. Roma: Gruppo Editoriale L’Espresso, 2010. Storie di Montalbano. Milano: Mondadori, 2002. Il tailleur grigio. Milano: Milano: Mondadori, 2008. La targa. Milano: Corriere della Sera, 2011. Teatro. Milano: Arnaldo Lombardi, 2003. Di terra nostra Cronache con rabbia 2009-2010. Milano: Chiarelettere, 2010. La tripla vita di Michele Sparacino. Milano: Corriere della Sera, 2008. La vampa d’agosto. Palermo: Sellerio Edittore, 2006. La voce del violino. Palermo: Sellerio Edittore, 1997. Voi non sapete. Milano: Mondadori, 2007. La Vucciria. Milano: Skira, 2008. 2- Obras teóricas ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros e. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S. A., 1979. ANTONUCCI, Giovanni. Storia del Teatro Italiano. Tascabili economici Newton. Roma, 1995. AVERBUCK, Ligia. “A propósito de literatura e outras formas (narrativas) de nosso tempo”. In: ___. (Org.) Literatura em tempo de cultura de massa. São Paulo: Nobel, 1984. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _________. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad.: Yara Frateschi Vieira et al. São Paulo: Hucitec, 1995. 179 BARTHES, Roland. “O efeito do real”. In: BERSANI, L. et al. Literatura e realidade: (que é realismo?). Tradução: Tereza Coelho. Lisboa: Dom Quixote, 1984. __________. “A morte do autor”. In: O rumor da língua. Trad.: Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. BERNARDELLI, Andrea. La narrazione. 4ª ed. Milão: Laterza, 2006. BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Os livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1990. CALVINO, Italo. Porque ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CANDIDO, Antonio. “A personagem do romance”. In: CANDIDO, Antonio [et. Al.]. A personagem de ficção. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. CHRISTIE, Agatha. Cartas na mesa. São Paulo: Círculo do livro, 1936. CROVI, Luca. Tutti i colori del giallo. Il giallo italiano da De Marchi a Scerbanenco a Camilleri. Venezia: Marsilio, 2002. Discurso histórico e narrativa literária. Orgs. Sandra Leenhardt e Jatahy Pesavento. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1998. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ECO, Umberto. Sei paggeggiate nei boschi narrativi. 7ª ed. Milano: RCS Libri, 2007. ___________. Il superuomo di massa. Retorica e ideologia nel romanzo popolare. 3ª ed. Milano: Bompiani, 2005. FONSECA, Rubem. Agosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Finzioni di fine secolo. Org. Emy Beseghi. Milano: Milano: Mondadori, 1995. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. MIOLI, Piero. Storia dell’opera lirica. Roma: Tascabili Economici Newton, 1994. ONOFRI, Massimo. Il canone letterario. Roma-Bari: Editori Laterza, 2001 PALUMBO, Ornella. L'incantesimo di Camilleri. Roma: Editori Riuniti, 2005. 180 PISTELLI, Maurizio. Un secolo in giallo. Storia del poliziesco italiano. Roma: Donzelli editore, 2006. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de narratologia. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2000. REIMÃO, Sandra Lucia. Literatura policial brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. _______. O que é romance policial. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-moderno”. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SEGRE, Cesare. Avviamento all’analisi del testo letterario. Torino: Einaudi, 1999. ______. Tempo di bilanci. Torino: Einaudi, 2005. SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Estrutura do romance. Coimbra: Almedina, 1974. separata. ________. Teoria da Literatura. 2ª ed. Coimbra: Almedina,1968. TODOROV, Tzvetan. “Tipologia do Romance Policial”. In Poética da prosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ENCICLOPÉDIA VERBO LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA. Edição século XXI. Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 2001. GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LARROUSSE. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A., 1973. ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL. São Paulo: Enciclopédia Britannica do Brasil publicações LTDA., 1995. SPINELLI, Vicenzo ; CASASANTA, Mario. Dizionario completo Italiano – Portoghese (brasiliano) Portoghese (brasiliano) – Italiano. Milano: Editore Ulrico Hoelpi Milano, 1983. 3- Sítios visitados: http://www.dailymotion.com/video/xhh5we_roma-celebra-andrea-camilleri-e-i-suoi13-milioni-libri-venduti_news(12/12/2011) http://www.sellerio.it/it/cerca/risultati_lib.php?f=camilleri&cerca.x=20&cerca.y=5 (12/12/2011) http://www.record.com.br/autor_livros.asp?id_autor=73&pag=3 (12/12/2011) 181 http://archiviostorico.corriere.it/2007/novembre/13/Bye_bye_America_bestseller_to rna_co_9_071113035.shtml (12/12/2011) http://www.usatoday.com/life/television/news/2004-11-15-hugh-laurie_x.htm (05/02/2010) AMARAL, Hilario Antonio. Leonardo Sciascia e o romance policial. Publicado em http://www.letras.ufrj.br/neolatinas/media/publicacoes/cadernos/a4n3/hilario_amar al.pdf (15/01/2012) http://scerbanencoscrive.forumcommunity.net/?t=35448904 (16/01/2012) http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=1534 &Itemid=2 (20/01/2012) http://www.toscamoredisperato.it/index.php?option=com_content&view=article&id =93&Itemid=213 (20/01/2012) http://www.atuttascuola.it/relazioni/quer_pasticciaccio_brutto_de_via.htm (21/01/2012) http://www.atuttascuola.it/scuola/relazioni/sciascia.htm (21/01/2012) http://epoca.globo.com/edic/20000724/cult1a.htm (24/01/2012) http://www.piccoloteatro.org/spettacolo_sch.php?stepdx=Sxpet&AcRec=768 (25/01/2012) http://www.teatro.org/spettacoli/recensioni/il_birraio_di_preston_10808 (25/01/2012) http://www.museodeldiscodepoca.com/archivio/visualizza_scheda.php?id=D00009 7155 (25/01/2012) http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/Honor%C3%A9_Daumier (25/01/2012) http://www.multilingualarchive.com/ma/enwiki/pt/Honor%C3%A9_Daumier (25/01/2012) http://www.cataniaperte.com/teatro/articoli/birraio_preston.htm (24/01/2012) http://www.repubblica.it/online/cronaca/vigata/vigata/vigata.html (09/02.2011) http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=1534 &Itemid=2. (09/02/2012) http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=23 (09/02/2012) http://dizionari.corriere.it/dizionario_italiano/N/nonche.shtml (09/02/2012) 182 letras.terra.com.br/queen/64295/ (12/02/2012) dizionari.corriere.it (12/02/2012) www.academia.org.br (12/02/2012) 183