Baixa - Faculdade de Letras

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Baixa - Faculdade de Letras
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
IL BIRRAIO DI PRESTON, DE ANDREA CAMILLERI:
UMA RAPSÓDIA EM GIALLO
LUCIANA NASCIMENTO DE ALMEIDA
Rio de Janeiro
1º semestre 2012
IL BIRRAIO DI PRESTON, DE ANDREA CAMILLERI:
UMA RAPSÓDIA EM GIALLO
LUCIANA NASCIMENTO DE ALMEIDA
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção:
Literatura Italiana).
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos
Rio de Janeiro
1º semestre 2012
IL BIRRAIO DI PRESTON, DE ANDREA CAMILLERI:
UMA RAPSÓDIA EM GIALLO
Luciana Nascimento de Almeida
Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos,
opção: Literatura Italiana).
Examinado por:
_____________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Maria Lizete dos Santos – UFRJ
_________________________________________________________________
Professor Doutor Aníbal Francisco Alves Bragança – UFF
_________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Franca Zuccarello – UERJ
_____________________________________________________________
Professora Doutora Maria Aparecida Cardoso Santos – UERJ
_________________________________________________________________
Professora Doutora Annita Gullo – UFRJ
Rio de Janeiro
1º semestre 2012
FICHA CATALOGRÁFICA
ALMEIDA, Luciana Nascimento de
Il birraio di Preston, de Andrea Camilleri: uma rapsódia em giallo / Luciana
Nascimento de Almeida. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2012.
183 f. : 30 cm
Orientadora: Maria Lizete dos Santos
Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, Departamento de Letras
Neolatinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
Referências Bibliográficas: f. 176-183
1. Camilleri, Andrea. 2. Narrativa Italiana Séc. XX. 3. Romance Policial. 4.
Rapsódia. 5. Melodrama. I. Santos, Maria Lizete dos. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. III. Il birraio di Preston, de Andrea Camilleri:
uma rapsódia em giallo.
RESUMO
Il birraio di preston, de Andrea Camilleri: uma rapsódia em giallo
Luciana Nascimento de Almeida
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos
Resumo da Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos
Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).
O presente trabalho propõe a análise de Il birraio de Preston de Andrea Camilleri
como uma rapsódia, na qual o escritor italiano faz uso de estruturas do
melodrama como estratégia narrativa para a construção de seu giallo.
Palavras-chave: Andrea Camilleri – Romance Policial – Narrativa Italiana Séc. XX
– Rapsódia – Melodrama
Rio de Janeiro
1º semestre 2012
RIASSUNTO
Il birraio di preston, de Andrea Camilleri: uma rapsódia in giallo
Luciana Nascimento de Almeida
Relatrice: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos
Riassunto da Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos
Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).
Il presente lavoro ha come obiettivo l’analisi di Il birraio de Preston, di Andrea
Camilleri come una rapsodia, nella quale lo scrittore italiano ricorre alle strutture
del melodramma come strategia narrativa per la costruzione del suo giallo.
Parole chiavi: Andrea Camilleri – Romanzo Poliziesco – Narrativa Italiana Sec. XX
– Rapsodia – Melodramma
Rio de Janeiro
1º semestre 2012
ABSTRACT
Il birraio di preston, by Andrea Camilleri: a rhapsody in giallo
Luciana Nascimento de Almeida
Advisor: Prof. Dr. Maria dos Santos Lizete
Abstract of the thesis submitted to the Graduate Program in Neo-Latin Literature at
the Federal University of Rio de Janeiro, as part of the requirements necessary to
obtain the title of Doctor of Neo-Latin Languages (Neo-Latin Literary Studies,
option: Italian Literature).
This paper proposes the analysis of Il birraio Preston by Andrea Camilleri as a
rhapsody, in which the Italian writer makes use of structures of melodrama as a
narrative strategy for the construction of his giallo.
Keywords: Andrea Camilleri – Police Romance – XX Century Italian Narrative –
Rhapsody – Melodrama
Rio de Janeiro
1º semestre 2012
AGRADECIMENTOS
A Deus, Senhor da minha vida, por me dar entendimento e forças para ir muito
além dos meus sonhos.
A minha orientadora, Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos, por todo apoio,
amizade e companheirismo em mais esta jornada.
Aos meus colegas de italiano, que sempre me apoiaram e compartilharam comigo
tantos sonhos e conquistas.
Aos professores do Setor de Letras Italianas, pelo estímulo e convivência
enriquecedora.
Aos professores doutores Aníbal Francisco Alves Bragança, Annita Gullo, Maria
Aparecida Cardoso Santos e Maria Franca Zuccarello, pela generosa leitura desta
tese.
Dedico esta tese à minha querida mãe, minha amiga e primeira professora,
minha fonte inesgotável de sabedoria, inspiração e exemplo.
Eu sou um cérebro, Watson. O resto é mero apêndice.
Sherlock Holmes (In: Pedra Mazarino)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, p.12
CAPÍTULO I
NA TRILHA DO GIALLO ITALIANO, 15
1.1 Sobre o romance policial, p. 15
1.2 As nuanças do giallo na Itália: escritores em relevo, p. 34
CAPÍTULO II
ANDREA CAMILLERI: UM ESCRITOR SOB A LUPA, p. 51
2.1 A identidade siciliana em destaque, p. 51
2.2 O autor e a obra: Andrea Camilleri em exame, p.54
2.2.1 A edificação de Vigata, p. 66
2.2.2 Montalbano: um policial antiinstitucional, p. 68
CAPÍTULO III
IL BIRRAIO DI PRESTON: UMA RAPSÓDIA IN GIALLO, p. 72
3.1 Em busca da melodia perdida, p. 147
3.2 O espetáculo interrompido, p. 166
CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 173
REFERÊNCIAS, p. 176
INTRODUÇÃO
Na Itália, nos dias atuais, o romance policial ainda é considerado por
muitos críticos literários como literatura “menor”, produto para consumo,
desprovido de valor estético. Por isto, quando, no final do nosso curso de
mestrado, travamos contato com a obra de Andrea Camilleri, encantados por seu
texto, imediatamente decidimos tomar um de seus romances para corpus da
nossa tese, com o objetivo de comprovar que, para além do filão policial, que é o
aspecto palatável ao público não especializado, a narrativa de Camilleri se
oferece a variados níveis de leitura.
A obra de Camilleri pela qual optamos é Il birraio di Preston (O cervejeiro
de Preston ou Ópera maldita, no título atribuído à tradução brasiliera), romance
comumente classificado como histórico, visto que em sua trama há menção a
fatos realmente ocorridos.
A escolha de Il birraio de Preston deveu-se, principalmente, à classificação
que a crítica literária italiana lhe atribui: para alguns é policial, simplesmente; para
outros é histórico. Pretendemos discutir tais classificações, demonstrando que a
obra é, em verdade, uma rapsódia e que, como tal, contempla várias narrativas
distintas, incluindo a de uma investigação policial. Não se aplica, pois, em nossa
opinião, a designação “literatura menor” ao romance, apesar de a obra ter
registrado
um
número
expressivo
de
exemplares
vendidos.
Ademais,
consideramos que o fato de Camilleri ter um número grande de leitores e ótima
vendagem de suas obras não o desqualifica. Afinal, outros escritores renomados
internacionalmente, como o também italiano Umberto Eco, ou o colombiano
Gabriel Garcia Márquez, ou ainda o brasileiro Jorge Amado têm, ou ao menos
tinham, um grande público-leitor e suas obras vendem/ vendiam muito.
Tomando como parâmetro os três autores supracitados, que são lidos
também pelo grande público e tiveram suas obras transformadas em filmes e/ou
telenovelas, o que amplia a área de abrangência de suas obras, entendemos que
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os romances de Camilleri, principalmente aquele que nos propusemos a
examinar, não se classificam como “literatura menor”.
A história da inauguração e do incêndio do teatro de Vigàta, a cidade
fictícia de Andrea Camilleri, na qual são ambientados seus romances, bem como
a investigação e consequente elucidação dos fatos, são os fios condutores da
trama de Il birraio di Preston. Porém, existe uma outra história, que se constrói
paralelamente a essa primeira, que tencionamos fazer aflorar neste trabalho.
Nossa proposta é demonstrar que Camilleri faz uso das estruturas do melodrama
para construir seu romance, ou rapsódia, como preferimos classificar.
Il birraio di Preston é uma rapsódia construída com estrutura semelhante à
do melodrama, tese que procuraremos comprovar ao longo de três capítulos,
organizados da seguinte maneira: no primeiro capítulo, serão apresentadas as
bases teóricas que nortearão a tese, bem como será traçada, especialmente, a
trajetória do giallo na Itália.
No segundo, que se centrará no nosso autor, Andrea Camilleri, merecerão
destaque sua vida e obra, bem como as temáticas desenvolvidas em sua
produção poética.
No último capítulo, se examinará a rapsódia Il birraio di Preston e se
demonstrará como a Música e a História se fazem fortemente presentes no texto
de Camilleri, cujo estilo é marcado pela hibridização língua italiana/dialeto
siciliano.
Por fim, antes de passarmos ao primeiro capítulo, consideramos oportuno
esclarecer a origem do subtítulo atribuído a este trabalho: “rapsódia em giallo”.
Fomos inspirados por duas obras de reconhecido valor estético: o livro de Mário
de Andrade (São Paulo, 1893 – 1945), Macunaína (1928), que o autor classifica
como rapsódia, onde se encontram reunidos os mitos, as lendas indígenas, a
oralidade e a linguagem populares, além das características das regiões que
compõem o nosso país; e, também, pela Rapsody in blue (1924), do compositor
estadunidense George Gershwin (Nova Iorque, 1898 – Califórnia, 1937), que
mistura em sua composição música erudita e jazz.
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Tal subtítulo assinala nossa intenção que é demonstrar que Il birraio di
Preston, apesar da classificação atribuída pelos especialistas, é uma rapsódia.
Foi-nos, portanto, irresistível a associação dos dois termos, rapsódia e giallo, para
designar a obra de Andrea Camilleri sobre a qual, a partir de agora, se voltará o
nosso olhar.
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CAPÍTULO I
NA TRILHA DO GIALLO ITALIANO
1.1 Sobre o romance policial
O interesse pela leitura de romances policiais é um fenômeno comum a
diversos países e culturas, o que faz dessa uma das formas de literatura mais
vendidas de todos os tempos. De Allan Poe a Andrea Camilleri, milhares de
autores e milhões de livros do gênero oferecem aos leitores romances cheios de
crimes, mistérios, investigações, soluções, ora seguindo um modelo mais
clássico, ora inovando em um ou mais elementos, conforme veremos adiante.
Citamos Sandra Reimão (1983: 7-8):
Surge então a pergunta: “afinal de contas, por que compramos um
romance policial? Por que nos entretemos tanto e tantas horas
com este tipo de leitura? Como a literatura policial pode ser
caracterizada? Quais de suas características fazem com que
tantas pessoas gostem tanto deste tipo de leitura? Toda narrativa
em que aparece um crime ou delito e alguém disposto a
desvendá-lo pode ser considerado policial? Afinal, o que é uma
narrativa policial?
A citação acima, retirada da introdução do livro O que é o romance policial,
consegue abranger as principais questões que rondam o tema. Esse gênero,
originado no romance de aventuras, e inaugurado por Edgar Allan Poe, autor
considerado o “pai” do romance policial, tem perdurado por gerações. Suas
personagens atravessaram séculos, ganhando notoriedade entre os mais
diversos públicos. Dupin, Hercule Poirot e, talvez, o detetive mais famoso de
todos os tempos, Sherlock Holmes, são apenas alguns dos nomes que saíram
das páginas dos romances policiais para entrarem nas páginas da história da
literatura.
Apesar de sua enorme receptividade por parte dos leitores e do sucesso de
vendas, o romance policial, especialmente na Itália, ainda é visto com restrições,
como se fosse uma literatura inferior ou, até mesmo, não-literatura, sendo
classificado como literatura de consumo, ou literatura de massa.
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Vários autores têm-se dedicado ao estudo do romance policial como
gênero literário. No Brasil, destacam-se Paulo de Medeiros e Albuquerque, que,
em seu livro intitulado O mundo emocionante do romance policial, publicado em
1979 pela Francisco Alves Editora, apresenta uma minuciosa história desse
gênero, desde suas origens, com Allan Poe, em 1849, até a atualidade. Medeiros
e Abuquerque traça um cronograma bastante completo dos autores, estilos e as
publicações nos diversos países. Também, Sandra Lucia Reimão, em seu livro O
que é romance policial, publicado em 1983, trata do gênero em si e de sua
repercussão. Já em Literatura policial brasileira, publicado em 2005, a mesma
autora enfatiza as características da produção nacional, abordando os tipos de
detetives, vilões e apresentando uma breve análise sobre a produção das
narrativas e uma cronologia dos romances policiais brasileiros.
Para o estudo específico do romance policial italiano, recorreremos a Tutti i
colori del giallo (2002), livro escrito pelo teórico italiano Luca Grovi, e, ainda, a Un
secolo in giallo. Storia del poliziesco italiano (2006), de Maurizio Pistelli, além de
outros conceituados teóricos, como Umberto Eco e o seu Superuomo di massa.
Retorica e ideologia nel romanzo popolare (2005).
Porém, para nossa base teórica nos serviremos da Poética da Prosa, de
Tzvetan Todorov. Publicada em 2003, a obra possui um capítulo intitulado
“Tipologia do Romance Policial”, no qual o autor estabelece os conceitos e as
características referentes ao gênero.
O romance policial teve sua origem no romance de aventuras, no qual “a
ação exercia papel fundamental: “A ação, e acima de tudo a ação que comandava
a maioria das cenas era a tônica das narrativas. O raciocínio frio e lógico, quando
timidamente aparecia, era superado pela valentia do herói ou pela força das
armas”. (ALBUQUERQUE, 1979: 2)
Há, portanto, uma diferença importante na caracterização do romance de
aventuras e do romance policial: a ação é elemento imprescindível na constituição
do romance de aventuras; é a ação do herói que garante a vitória final, que leva o
bem a vencer o mal. Praticamente não existe espaço para o raciocínio lógico. O
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romance policial, ao contrário, fundamenta-se exatamente em tal raciocínio.
Quando observamos os detetives dos romances de Agatha Christie, por exemplo,
constatamos que é o raciocínio que leva à elucidação dos mistérios.
Um exemplo de como esse raciocínio é capaz de fazer que um mistério
seja elucidado e, assim como no romance de aventuras, o bem vença o mal, pode
ser observado no romance Cartas na mesa. As investigações baseadas no
raciocínio de Hercule Poirot são as responsáveis pela solução do assassinato de
Mr. Shaitana, em sua própria casa, durante um jantar, praticamente diante de
seus convidados. O fato não passa despercebido e é, inclusive, exaltado ao final
do romance:
Fez-se silêncio. Rhoda quebrou-o com um suspiro.
“Que sorte surpreendente que o limpador de vidraças estivesse
ali por acaso” – comentou.
“Sorte? Acaso? Nada disso, mademoiselle. Foi a massa cinzenta
de Hercule Poirot.” (CHRISTIE, 1936: 278)
O domínio do romance de aventuras atravessou os séculos, firmando-se
como o único divertimento voltado para a inteligência de seus leitores, uma vez
que as demais obras produzidas quando de sua criação consistiam basicamente
de livros ou tratados, destinados à elite ou aos estudiosos, inacessíveis ao leitor
pouco letrado. Essa pode ser uma explicação para o sucesso conquistado pelo
romance de aventuras, que estabeleceu seu lugar na história da literatura.
Se as grandes mitologias ou a Bíblia tivessem sido narradas de
outra forma, elas teriam conseguido interessar esse público?
Relatadas num estilo seco e até mesmo hermético dos escritores
de época, teriam tido a mesma aceitação que têm hoje ou teriam
chegado ao mesmo fim melancólico das obras que se
escreveram naquele tempo e que hoje ninguém mais se recorda?
(ALBUQUERQUE, 1979: 2)
A partir do advento da imprensa e do consequente crescimento da
produção de livros, e, naturalmente, do romance, os leitores passaram a buscar
obras cuja leitura produzisse deleite, viagens imaginárias, com uma nova estética.
Foi a partir de então que o romance de aventuras sofreu modificações: “Deixou de
ser a narrativa pura e simples de uma lenda ou de um fato histórico tratado, é
bem verdade, e saiu à procura de novos caminhos” (ALBUQUERQUE, 1979: 2).
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Os novos caminhos procurados pelo romance de aventuras não fugiram
àquilo que é fundamental à sua estrutura, porque é inerente à própria história do
homem: a luta entre o bem e o mal, onde o bem deve triunfar, ao final.
A renovação ao gênero também alcançou o herói na sua concepção; ele
deveria, é claro, permanecer do lado do bem, mas moldado à luz de novas
características, diferentes do herói já estereotipado.
Essa evolução, ou renovação, culminou na divisão do romance de
aventuras em três vertentes: o romance de aventuras puro e simples; o romance
de espionagem, que por vezes possui pontos em comum com o primeiro; e, por
fim, o romance policial, que se distancia dos dois primeiros devido à inserção da
lógica em seu enredo. A solução de um mistério constitui o cerne desse tipo de
narrativa e a lógica entra como instrumento a serviço do investigador, inovando,
assim, o modo de se narrar uma história, que, nesse caso, era constituída de uma
investigação com vistas à solução de um crime.
Sobre a divisão do romance de aventuras, Albuquerque (1979: 3) escreve:
A primeira preservou o mesmo espírito, apenas aumentando o
campo de ação; a segunda, fez surgir o romance de espionagem,
que na verdade já existia, porém não rotulado como tal, pois a
espionagem era apenas um detalhe e não o centro de intriga [...],
e finalmente, a terceira fase, com o aparecimento do chamado
romance policial, onde interveio pela primeira vez, suplantando a
força e a razão, o raciocínio lógico.
Talvez o termo “romance de mistério” ou, quem sabe, “romance criminal”
fosse mais adequado, como defende Albuquerque (1979: 4), a exemplo do que já
é praticado pelos franceses que “[...] embora utilizem o título roman policier,
designam o romance de aventuras como roman d’action, e aquele em que existe
um enigma criminal misterioso como roman de mystère.”
Porém, fica evidente que o romance policial segue o modelo do romance
de aventuras, no que diz respeito à luta bem versus mal, duas forças
obrigatoriamente presentes no gênero policial, representadas pelas figuras do
detetive e do criminoso. A essência de um romance policial traduz-se na presença
de uma história onde haja um crime a ser solucionado, um criminoso e um
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detetive que, com o uso da lógica, chegará à solução do mistério. Vale lembrar
que a utilização da lógica como elemento principal na solução de um crime não
implica a ausência da ação; ela pode, sim, ocorrer, ser intensa, mas não se
constituir no fator determinante para a elucidação do crime ou da descoberta do
criminoso.
Entre o romance de aventuras e o policial existiu um tipo intermediário,
chamado de romance sobrenatural ou de horror, que, contudo, não prosperou
devido à formula utilizada (elementos sobrenaturais) pelos autores na solução de
seus mistérios. Albuquerque explica as exigências do leitor de romances policiais:
“A inteligência e o acúmulo de conhecimentos exigiam não só que as estórias
tivessem uma base lógica como também que a solução fosse alcançada da
mesma forma, ou seja, através do raciocínio e não dos fenômenos sobrenaturais.”
(ALBUQUERQUE, 1979: 4).
Esse novo tipo de romance ganhou a definição de policial, devido à sua
caracterização, a investigação de um crime, cenário onde a figura do policial é
quase sempre garantida. Apesar disso, em muitos casos, o posto de investigador,
e consequente solucionador do mistério, cabe a outras personagens, como se
pode verificar em alguns romances do escritor brasileiro Rubem Fonseca, nos
quais o papel de investigador é ocupado pelo advogado Mandrake; ou em Agatha
Christie, onde uma simples personagem sem ligação com a polícia ou que não
exerça o ofício de investigador, assume este papel. É o que acontece com Miss
Jane Marple, menos famosa apenas que o próprio Hercule Poirot. No site da
UFPE http://www.cin.ufpe.br/~pmgj/agatha/marple.html (acesso em 02/01/2012), a
personagem é assim descrita:
A primeira aparição de Miss Marple foi no livro Assassinato na
Casa do Pastor em 1930. Ela é uma senhora que vive na vila
inglesa de St. Mary Mead. Bem diferente de Poirot, ela não se
vangloria de suas deduções, sendo bastante humilde. Em vez de
procurar por pistas ela se concentra no instinto e no seu
conhecimento sobre a natureza humana. Uma famosa frase de
Miss Marple diz o seguinte: “A natureza humana é a mesma em
qualquer lugar”. Agatha Christie escreveu uma dúzia de livros de
Miss Marple como Um Corpo na Biblioteca, Convite para um
Homicídio, Mistério no Caribe, Nemesis, O Caso do Hotel
Bertram, Um Crime Adormecido entre outros.
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A fim de exemplificar a forma como a personagem atua, podemos citar A
mão misteriosa, onde Miss Marple investiga a origem de certas cartas injuriosas
enviadas a diversas pessoas, provocando, inclusive, um suicídio. Também A
testemunha ocular do crime, no qual Elspeth MCGillicuddy, durante uma viagem
da Escócia para a Inglaterra, para visitar Miss Marple, enquanto olhava pela
janela de seu trem, vê uma mulher ser estrangulada. Apenas Miss Marple
acreditará na história contada pela amiga, do aparente “crime perfeito”, com
ausência de qualquer evidência de delito, e partirá em busca do rastro do
criminoso e de evidências que levem ao corpo.
Apesar das especulações sobre a autoria do primeiro romance policial –
nomes como o de Sófocles, com seu Édipo Rei, Voltaire com Zadig ou O Destino
estiveram entre os cogitados –, tais narrativas não são consideradas ainda
romances policiais, embora haja a presença marcante do investigador em ambos
os casos.
O título de “pai” do romance policial foi atribuído a Edgar Allan Poe, que
inaugura o gênero em 1841, com a publicação do conto The Murders in the Rue
Morgue (Os Crimes da Rua Morgue), publicado na Graham's Magazine. Poe
publicaria, ainda, dois outros romances: The Mystery of Marie Roget (O Mistério
de Maria Roget), em 1842, e The Purleined Letter (A Carta Furtada), em 1844.
Com esta produção imortalizou a personagem C. Auguste Dupin como o primeiro
detetive da história.
Mas a inovação de Allan Poe não parou aí. Dupin aparece apenas nos três
romances supracitados, com o encargo de investigar os crimes:
A primeira, em Os Crimes da Rua Morgue, são crimes de morte
violenta, com navalhadas, pancadas, estrangulamento, além de
apresentar um lado fantástico e um ser mistério de “quarto
fechado”; na segunda, em O Mistério de Maria Roget, um
homicídio ocorrido a distância, Poe dá a ideia de como o crime se
teria desenrolado e chega a uma solução aparente mais cabível
do que a apontada pelas autoridades; finalmente, na terceira, em
A Casa Furtada, não há a morte violenta, mas em compensação
uma genial estória de um furto admiravelmente solucionado pelo
detetive. (ALBUQUERQUE, 1979: 97)
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Embora, muitas vezes, o crime a ser elucidado seja um assassinato,
existem outros tipos de delitos a serem explorados no romance policial, conforme
afirma Albuquerque (1979: 97): “Há o crime de morte violenta, há o roubo, o rapto,
enfim toda uma série de atos delituosos que já foram explorados por escritores de
estórias de mistério”. Em seus romances, Allan Poe procurou explorar o crime nas
suas diversas vertentes, o que o que o tornou também precursor na exploração
do delito nas suas várias concepções.
Albuquerque cita outros autores, que teriam se aventurado pelo gênero,
classificando-os como “acidentais”. São exemplos: Dostoievski, Balzac, Victor
Hugo e Charles Dickens. Ainda, de acordo com Albuquerque (1979: 8), o modelo
deixado por Dickens pode ser considerado como o romance policial perfeito,
“pois, inacabado, não chegou a apontar o criminoso. Trata-se de O mistério de
Edward Drood”.
Depois de Poe, é a vez de Émile Gaboriau trazer a público o segundo
grande detetive da literatura: o Inspetor Lecoq, que possuía características da
personagem Dupin, de Poe. No entanto, apesar da notoriedade dos dois autores
e seus respectivos detetives, aquele que ocuparia o posto de maior detetive da
história ainda estava por vir: Sherlock Holmes, criação de Sir Arthur Connan
Doyle. Considerado o maior detetive de todos os tempos, Holmes mostrou todas
as suas qualidades em quatro romances e cinco livros de contos e arrebatou seus
leitores, que chegaram a acreditar que o detetive tivesse realmente existido
“enquanto pessoa, e não enquanto criação literária.” (REIMÃO, 1983: 30).
Nas citações abaixo, Albuquerque observa que, embora seja característica
do detetive o uso do raciocínio na elucidação dos mistérios, isso não ocorre de
maneira exclusiva e nem mesmo Holmes escapou a esta regra.
Conan Doyle, com Sherlock Holmes criou o mais famoso detetive
de todos os tempos, modelo para todos os outros que vieram
depois. Porém, até mesmo Doyle, talvez por ter sido também
autor de vários romances especificamente de aventuras no
sentido clássico, de quando em quando incluía nos romances de
Holmes uma parte do que se poderia chamar puramente de
aventura, pela ação empregada.
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Sherlock Holmes, um detetive cerebral não conseguiu fugir de
todo à ação, assim como ocorreria mais tarde com Poirot e
outros. Em várias proezas vamos encontrar, quase no mesmo
plano de importância e lado a lado, a aventura e a solução lógica
baseada no raciocínio. (ALBUQUERQUE, 1979: 9)
Seja por conta da transição entre o romance de aventuras e o policial,
momento vivido pelo próprio Conan Doyle, que foi escritor de ambos os gêneros,
seja pelo fato de, como afirma Victor Manuel de Aguiar e Silva em A estrutura do
romance (1974: 23):
Com efeito, é impossível encontrar um romance concreto que
realize de modo puro cada uma das modalidades tipológicas
estabelecidas por Wolfgang Kayser, acontecendo também que
muitos romances, pela sua riqueza e pela sua complexidade,
dificilmente podem ser integrados nesta ou naquela classe.
O fato é que a ação, oriunda do romance de aventuras conseguiu, de
alguma forma, se manter no romance policial:
O herói do romance policial chega à solução pela inteligência, e
nunca usando a força e somente a força. Esta, algumas vezes,
entra no quadro geral do romance, mas apenas como um detalhe
adicional e secundário. A inteligência é tudo ou, pelo menos, o
fator principal. (ALBUQUERQUE, 1979: 9)
Quando examinamos os romances policiais contemporâneos, observamos
que a ação ainda permanece nos enredos. Tomemos como exemplo o romance Il
giro di boa, de Andrea Camilleri, no qual o comissário Montalbano consegue
solucionar um caso de tráfico de imigrantes, mas acaba atingido por um tiro,
evento que, inclusive, influencia o enredo do romance escrito a seguir por
Camilleri, La pazienza del ragno, no qual o comissário, por causa do ferimento,
tem uma participação diferente daquela do romance anterior. Se no primeiro a
ação policial propriamente dita foi necessária para a elucidação dos fatos e
perseguição do criminoso, que acabou morto por Montalbano, em La pazienza del
ragno o comissário atua de maneira bem diferente, por estar fora de serviço,
recuperando-se do tiro recebido.
Entretanto, o previsível acontece e sua ausência na investigação do
desaparecimento da jovem Susanna Mistretta dura pouco. A fim de ajudar os
companheiros que conduzem o inquérito, Montalbano investiga paralelamente o
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caso: vai ao local em que a jovem desaparecera, analisa as provas, conversa com
o pai e o tio da moça, com possíveis testemunhas do sequestro, visita a mãe de
Susanna – doente terminal, que perdera o gosto pela vida após um sério
desentendimento com seu único irmão. A partir dessas informações, Montalbano
passa a tecer, tal qual a aranha, uma teia que o leva a elucidar aquele delito.
O autor utiliza a cena da tessitura de uma teia de aranha, em um arbusto,
como link para que o comissário pudesse juntar as pistas. Ao observar o trabalho
paciente e minucioso da aranha, Montalbano finalmente consegue deduzir que a
ação de Susanna Mistretta fora semelhante àquela. Assistir dioturnamente a
morte lenta e gradual de sua mãe lhe havia dado o tempo necessário para
planejar, organizar e, finalmente, pôr em prática seu plano de vingança contra o
tio materno, o verdadeiro culpado pelo infortúnio de sua mãe e, por conseqüência,
o seu próprio infortúnio. Executado seu plano, ela conseguira destruir a carreira
política do tio e, ainda, reaver o dinheiro que a mãe lhe emprestara, e que havia
sido o estopim da tragédia familiar.
Esses romances exemplificam a capacidade de Montalbano recorrer à
ação, utilizando a força física, quando necessário, e, principalmente, seu poder de
dedução. Sendo um detetive cerebral, ele consegue solucionar o caso de La
pazienza del Ragno apenas com a análise dos fatos, elucidando o crime, ou
melhor, a sua inexistência.
Sobre a definição do romance policial, iniciamos com a afirmação de
Todorov, que teoriza sobre o gênero:
O romance policial tem suas normas, fazer “melhor” do que elas
exigem é ao mesmo tempo fazer pior: quem quiser “embelezar”
o romance policial, faz “literatura” e não romance policial. O
romance policial por excelência não é aquele que transgride as
regras do gênero, mas aquele que a elas se conforma: No
Orchids for Miss Blandish é uma encarnação do gênero, não
uma superação. (TODOROV, 2003: 65)
23
Todorov faz distinção entre romance policial e literatura, ou “grande” arte e
a arte “popular”:
Um fato pouco notado e cujas consequências afetam todas as
categorias estéticas é o seguinte: estamos hoje em presença de
um corte entre suas duas manifestações essenciais; não existe
mais uma única norma estética em nossa sociedade, mas duas;
não se pode medir com as mesmas medidas a “grande” arte e a
arte “popular”. (TODOROV, 2003: 65)
Albuquerque buscou sintetizar uma definição para o gênero:
O romance policial pode ser definido? Obter uma definição que
agrade a todos e que realmente dê uma ideia do que ele vem a
ser é uma tarefa bastante difícil. Evidentemente, o romance
policial diferencia-se muito dos outros gêneros literários. É um
romance que, oriundo do romance de aventuras, tomou novos
rumos. Mas que rumos terão sido esses? (ALBUQUERQUE,
1979: 13)
Em relação à crítica, cita a existência de dois grupos:
Os críticos dividem-se em dois campos: há os que negam o
romance policial como obra literária e há aqueles que, ao
contrário, chegam a considerá-lo uma das melhores formas do
romance. Haja vista que, para alguns críticos, Crime e Castigo
(Prestuplenie i nakazanie) de Dostoievski e o Santuário
(Sanctuary) de Willian Faulkner – duas obras primas – são
romances policiais. (ALBUQUERQUE, 1979: 14)
A maioria dos autores e obras policiais encontra-se excluída do cânone
literário.
Todorov afirma que a “grande obra” é a que sempre transgride as regras já
existentes, criando novas:
Uma dificuldade adicional vem se somar ao estudo dos gêneros
devido ao caráter específico de toda norma estética. A grande
obra de certa forma cria um novo gênero, e ao mesmo tempo
transgride as regras do gênero válidas até então. O gênero da
Cartuxa de Parma, ou seja, a norma à qual esse romance se
refere, não é o romance francês do começo do século XIX; é o
gênero “romance stendhaliano” que é criado precisamente por
esta obra, e por algumas outras. Poder-se ia dizer que todo
grande livro estabelece a existência de dois gêneros, a realidade
de duas normas: a do gênero que ele transgride, que
predominava na literatura precedente, e a do gênero que ele
cria. (TODOROV, 2003: 65)
24
Há, também, outro nome a ser lembrado na evolução, ou história do
romance policial: Edgar Wallace.
Albuquerque (1979: 15) ressalta a importância do romance policial:
Sua importância é tão grande que o bom romance policial não se
limita a ser apenas a procura e a solução de um determinado
problema. Ele não é, como querem alguns, um simples jogo de
palavras cruzadas em que, encontradas as chaves, qualquer um
pode chegar à solução. Todos os ingredientes clássicos do
romance em geral, em todas as suas modalidades, são
encontradas nas estórias policiais de hoje.
O autor afirma que Edgard Wallace é pouco lembrado pela crítica, que não
dá a devida importância à sua obra. Compara o ocorrido a Wallace com o que
aconteceu a Dumas que, por causa de sua extensa produção literária, teve seu
valor pouco reconhecido. Embora não seja nossa intenção comparar Andrea
Camilleri a Dumas, ou a qualquer outro autor, observa-se que o mesmo tipo de
julgamento que hoje sofre o nosso autor já foi aplicado ao próprio Alexandre
Dumas.
Com o crescimento do romance policial como gênero, diversos autores
criaram regras a serem seguidas na concepção de um romance policial. Poe
apresentou seis, Narcejac quatro, Ellery Queen possui uma síntese do que seria
necessário em um bom romance policial e Van Dine estabeleceu vinte regras que
deveriam ser observadas por qualquer escritor do gênero. Não há consenso sobre
a relevância ou não de tais técnicas; para alguns estudiosos do assunto, elas não
são relevantes. Albuquerque afirma que alguns autores tentaram uma ‘receita’
para escrever suas histórias de mistério, porém declara não crer em tais receitas,
“uma vez que todas pecam em sua base; o que importa é que o autor seja
realmente um romancista” (1979: 18).
Pegando o gancho da citação acima, voltamos a Vitor Manuel de Aguiar e
Silva, que estabelece uma definição para romance:
O romance, como toda a narrativa, evoca “um mundo concebido
como real, material e espiritual, situado num espaço determinado,
num tempo determinado, reflectido na maioria das vezes num
espírito determinado que, diferentemente da poesia, tanto pode
25
ser o de uma ou de várias personagens como o do narrador.
(AGUIAR E SILVA, 1974: 41)
A partir dessa definição, afirmamos que Camilleri, autor de uma narrativa
policial é um grande romancista.
Albuquerque afirma que os autores de romances que não o policial têm a
liberdade de imaginar, de expressar, podendo mudar a trama, dando ao romance
um fim inesperado. Já o romancista policial não pode fazer o mesmo. Aquele que
escreve um romance policial deve, além dos elementos clássicos de um romance,
inserir elementos que estimulem o leitor, evitando assim que a leitura se
transforme numa atividade enfadonha, uma vez que a solução de um mistério é
quase sempre detalhadamente descrita no romance.
A respeito da crítica sobre este tipo de romance, escreve Albuquerque
(1979: 14): “Os críticos dividem-se em dois campos: há os que negam o romance
policial como obra literária e há aqueles que, ao contrário, chegam a considerá-lo
uma das melhores formas de romance.”
Independentemente do que dizem os críticos literários, o romance policial é
um gênero bem-sucedido, que surge somente em 1841, com Poe, ou seja, cerca
de dois séculos após a ascensão do romance como gênero literário, conforme
afirma Aguiar e Silva (1974: 12): “É no século XVII, porém, sob o signo do
barroco, que o romance conhece uma ploriferação extraordinária”.
Sandra Reimão escreve que o nascimento do gênero policial se deu em um
momento histórico e social bastante propício, no século XIX, com os jornais
populares de grande tiragem. E é justamente nos jornais que surgem os primeiros
espaços para a divulgação de narrativas:
Esses jornais em algumas seções criam e valorizam o chamado
“fato diverso”: dramas individuais, via de regra banais, ou então
crimes raros e aparentemente inexplicáveis. O desafio do mistério
aliado a um certo prazer mórbido na desgraça alheia e ao
sentimento de justiça violada que requer então reparos, são
basicamente os elementos geradores da atração e do prazer na
leitura deste tipo de narrativa.
26
Satisfazendo esses prazeres e, ao mesmo tempo, habituando certo
tipo de público à leitura regular dessas narrativas, esses jornais
criam condições para o surgimento e divulgação de narrativas
outras que de alguma forma lidam, trabalham, se articulam sobre
os mesmos elementos ou elementos semelhantes aos que são
articulados por estas narrativas de jornais populares, entre elas o
romance policial. (REIMÃO, 1983: 12-13)
Outro fato importante, e que pode ter contribuído decisivamente para que o
romance policial seja assim definido, é que a polícia como instituição, assim como
o gênero policial, tenha surgido também no século XIX.
Desde suas origens até a atualidade, assistimos ao desenvolvimento do
romance policial, que já passou por diversas transformações, sendo ajustado aos
moldes de sociedades, autores e até mesmo modismos.
O Mistério foi o primeiro romance policial brasileiro, tendo seu primeiro
capítulo publicado no dia 20 de Março de 1920, no jornal A Folha. Foi composto
de 47 capítulos, escritos em esquema de revezamento pelos escritores Afrânio
Peixoto, Viriato Correia, Medeiros de Albuquerque – que utilizava o pseudônimo &
– e Coelho Neto. A partir de então, os romances policiais conquistaram seu
espaço no Brasil. Citamos autores do gênero, ao longo dos anos, Jerônimo
Monteiro, Aníbal Costa, Lúcia Machado de Almeida, Maria Alice Barroso, Bariani
Ortêncio, dentre outros. Nos dias atuais, escritores como Patrícia Melo (Assis, SP,
1962), Luiz Alfredo Garcia-Rosa (Rio de Janeiro, 1936) e Rubem Fonseca (Juiz
de Fora, MG, 1925) são destaques no cenário nacional e têm suas obras
traduzidas em diversas línguas. Rubem Fonseca, autor cult também na França,
Portugal e México, já teve vários de seus romances transformados em filmes ou
em minisséries para a “telinha”. Em 2003, o autor de Agosto foi contemplado com
o Prêmio Camões1. Patrícia Melo também já teve algumas de suas obras
transformadas em imagem e, com o romance O matador, foi indicada, em 1996,
para o Prix Femina, um dos mais prestigiosos da França, e conquistou os prêmios
1
É considerado o mais importante prêmio literário outorgado a um escritor lusófono pelo conjunto de sua
obra. É atribuído anualmente pelos governos do Brasil e de Portugal (no Brasil é conferido pela Fundação
Biblioteca Nacional) e equivale ao Prêmio Nobel de Literatura para os países lusófonos.
27
Deux Océans (França, 1996) e Deutscher Krimi Preis (Alemanha, 1998). GarciaRoza, cujo romance O silêncio da chuva ganhou o prêmio Nestlé, em 1996, e o
Jabuti, em 1997, imortalizou o detetive Espinosa.
Espinosa, este é o gancho que utilizaremos para introduzir a figura que
representa um dos pilares que sustentam o romance policial, o detetive.
Ao tratarmos de narrativa policial, não podemos prescindir dessa
personagem, que é fundamental para o desenvolvimento e conclusão do
romance, uma vez que o investigador é o elo entre o crime cometido e a
descoberta do culpado. Sabemos que, embora o policial muitas vezes ocupe esse
lugar, não é necessário que o detetive pertença a uma corporação policial; o
posto pode ser ocupado também por um advogado, um cidadão comum, uma
pessoa qualquer. Podemos exemplificar a figura do detetive com a personagem
Miss Jane Marple, célebre personagem de Agatha Christie, ou o advogado
Mandrake, protagonista de alguns romances de Rubem Fonseca.
O detetive é aquele que será capaz de unir os elementos resultantes da
investigação e colocá-los de modo que seja possível a elucidação do crime, o
deslindamento do mistério, encontrando o culpado pela infração.
O primeiro detetive de romances policiais da história é Dupin, de Edgar
Allan Poe, como já assinalamos. Albuquerque ressalta as diferenças entre esse e
os demais detetives, como Holmes:
Que fabulosa diferença entre o Dupin, de Edgar Allan Poe, ou o
Sherlock Holmes de Conan Doyle de ontem, dos Chester Drym,
Shell Scott e outros dos dias de hoje! Frutos da época em que
foram criados, os primeiros refletem em suas atitudes e em seus
métodos o fim do século passado, enquanto os últimos o que há
de pior na agitada, nervosa e tumultuosa vida de nossos dias
(1979: 37)
Auguste Dupin aparece em apenas três romances e, em cada um deles,
desvenda um crime diferente. Transformou-se em modelo a ser seguido pelos
romancistas que o sucederiam.
28
O Monsieur Lecoq, de Émile Gaboriau, surgiu de maneira um pouco
diferente de Dupin. No romance L’affaire Lerouge (1863), o papel de detetive
coube ao policial Tabaret que, embora dotado de diversas qualidades, não
alcançou sucesso. Lecoq teve um papel de menor importância nesse romance,
entretanto, sua participação em outras obras do autor lhe rendeu um lugar entre
os grandes detetives do gênero policial. De certa forma, Lecoq se antecipou a
Sherlock Holmes, visto que foi ele, e não Holmes, o primeiro detetive a usar a
química na elucidação de um crime (ALBUQUERQUE,1979: 43)
Após Lecoq, foi a vez de entrar em cena Sherlock Holmes, o detetive mais
famoso de todos os tempos. Naturalmente, na criação de Holmes, Conan Doyle
utilizou traços dos dois mais famosos detetives que o antecederam. Em
Albuquerque encontram-se as impressões de Doyle sobre sua personagem:
Gaboriau seduziu-me pela elegante maneira com que compunha
as peças de suas intrigas, e o magistral detetive de Poe, M.
Dupin, foi, desde minha infância, um dos meus heróis preferidos.
Mas poderia eu acrescentar alguma coisa de minha própria
criação? Lembrei-me de meu antigo mestre, Joe Bell, sua figura
de águia, suas maneiras bizarras, seu estranho dom de notar
certos detalhes. Se ele fosse detetive, chegaria certamente a
fazer desse exercício cativante, mas sem um fim preciso, algo de
semelhante a uma ciência exata... como chamaria meu
personagem? Possuo ainda a folha de um caderno de notas
trazendo diversos nomes entre os quais eu hesitava... A princípio
fixei-me em Sherringford Holmes, depois em Sherlock Holmes.
Ele não poderia contar suas próprias aventuras. Era-lhe
necessário, portanto, um camarada banal, comum, que o
valorizasse por contraste; um nome terno e discreto para esse
personagem sem brilho: Watson, serviria. (ALBUQUERQUE,
1979: 44-5)
Através das palavras de Conan Doyle descobrimos algumas das marcantes
características de Holmes, a criação de seu nome, as referências que o autor
utilizou na composição de sua personagem e, ainda, a relevância inicial de
Watson nas tramas protagonizadas por Holmes.
Tal como aconteceu com os detetives que o antecederam, Holmes passou
a ser exemplo a ser seguido pelos que viriam depois, mas Sherlock obteve tal
força a ponto de sobressair-se aos demais e isolar-se no lugar mais alto das
referências no romance policial:
29
Misto de Dupin e Lecoq, com um adendo do professor Bell, o
detetive iria transformar-se no modelo de todos os outros que,
surgiriam. Ou pelo menos de quase todos, pois mesmo nos
ferozes e ultra-amorosos investigadores da moderna ficção norteamericana, ou melhor, de parte dela, vamos encontrar, se
procurarmos bem, algo de Holmes. (ALBUQUERQUE, 1979: 45)
Holmes,
o
detetive
“cerebral,
frio
e
calculista”,
conforme
afirma
Albuquerque, foi personagem central em quatro romances e cinco coletâneas de
contos, o suficiente para perpetuá-lo. Apesar da caracterização puramente
racional de Holmes, a ação oriunda dos romances de aventuras ainda conseguiu
permanecer nos romances por ele protagonizados, o que talvez ajude a explicar o
sucesso obtido pela personagem (ALBUQUERQUE,1979: 47):
Por que então esse sucesso que até hoje perdura, tornando-o
inconteste de todos os detetives cerebrais? Talvez tenha sido
porque Conan Doyle, ao escrever seus trabalhos, publicados
como alguns de Poe e Gaboriau em folhetins, notadamente nos
primeiros como o já citado Um estudo em vermelho e O sinal dos
quatro (The sign of the four) – incluía uma grande parte de
aventura, aliada, é claro, às sensacionais deduções do detetive.
A fama de Holmes rompeu barreiras e perdura até os dias de hoje, a
exemplo do que acontece com o gênero policial, amplamente utilizado em séries
televisivas e filmes. Um exemplo é o seriado norte-americano House M.D. no qual
o protagonista, Gregory House, médico, utiliza a lógica para resolver os mistérios
médicos e diagnosticar seus pacientes. As semelhanças entre Holmes e House
são perceptíveis: ambos utilizam a lógica e a observação na solução dos
mistérios. Assim como Holmes, o médico é caracterizado como frio e calculista,
que não gosta do contato com os pacientes, focando toda a sua atenção apenas
nos sintomas, a fim de, com precisão, elaborar seu diagnóstico. Além disso,
ambos são viciados: Holmes em cocaína; House em Vicodim, um opióide.
Também, ambos possuem aptidões musicais.
O jornal USA TODAY publicou, em 2004, um artigo em que, entre outras
características, deixa entrever a influência de Sherlock Holmes na composição do
doutor House: “Shore says it’s good training for an offbeat doctor on a show with
30
comedy touches, including House’s Sherlock Holmesian diagnoses of clinic
patients”. 23
Temos, então, três detetives principais nessa que podemos denominar
primeira fase do romance policial, quando o gênero parece consolidar suas
estruturas, ao mesmo tempo em que esses detetives alcançaram a notoriedade e
passaram a ser exemplo para os que os sucederiam. Chamamos essa de
primeira fase porque, após Holmes, surgiram muitos outros tipos de detetives:
“Homens, mulheres e até mesmo crianças. Porém, anos após o desaparecimento
de Holmes, o grande detetive que veio marcar época, um investigador puramente
cerebral foi Hercule Poirot, o pequeno, mas genial belga criado por Agatha
Christie”. (ALBUQUERQUE, 1979: 54)
Poirot, um detetive avesso a qualquer tipo de violência, utiliza somente o
raciocínio e a lógica na elucidação dos crimes. Assim como Dupin, Lecoq e
Holmes representam a primeira fase do romance policial, Poirot “abre” a segunda
fase do gênero, na opinião de Albuquerque (1979: 56):
Cremos que Poirot encarna a segunda etapa do romance policial,
tão importante quanto a primeira, que teve em Sherlock Holmes a
sua maior figura. Hercule seria uma espécie de sublimação da
criação de Conan Doyle, possuindo todas as suas virtudes sem
ter os seus defeitos.
Poirot esteve em foco durante décadas, de 1920 a 1969. Sua “morte
literária” acontece oficialmente em 1975, com a publicação do romance Cai o
pano. Além de Poirot, outro detetive ganhou notoriedade na chamada segunda
fase do romance policial: Nero Wolfe, criação do escritor Rex Stout.
Agatha Cristie e Rex Stout foram os dois grandes nomes da segunda fase
do romance policial e o fecharam, conforme afirma Albuquerque.
Aliás, é impossível falar em romance policial sem citar o nome de Agatha
Christie, a “dama do crime”. Nesse universo até então dominado por autores do
2
http://www.usatoday.com/life/television/news/2004-11-15-hugh-laurie_x.htm
3
"Shore diz que é um bom treino para o médico fora dos padrões em um show com toques de comédia,
incluindo os Sherlock Holmesian diagnósticos de House com os pacientes da clínica”.
31
sexo masculino, Christie soube conquistar seu lugar graças a seu estilo, sua
extensa produção e dois dos detetives mais famosos de todos os tempos: Hercule
Poirot e Miss Jane Marple, “aquela gentil e pacata, refinada, mas simples,
velhinha inglesa, brilhante e certeira quando se trata de conhecer a natureza
humana e desvendar suas ações” (REIMÃO, 1983:43). Não se pode falar em
romance policial e omitir essas duas figuras femininas tão marcantes nesse
universo.
Porém, nem todas as vertentes do policial obtiveram êxito ou foram
qualificados como “boa literatura” do gênero. O romance policial acompanhou a
evolução dos tempos, e também mudou, com o surgimento de novos heróis, a
exemplo de Mike Hammer. Porém, essa personagem não foi bem aceita e
comparada aos clássicos, qualificada como inferior (ALBUQUERQUE, 1979:62).
Partindo do nada, ou melhor, partindo do romance de aventuras
de boa qualidade aproveitado por Allan Poe, afirmado por
Gaboriau e Conan Doyle, e seguido por tantos outros, esse
romance nos Estados Unidos e também na França – os dois
maiores centros – Baixa a um nível de péssima qualidade.
Embora durante muito tempo o detetive ideal devesse ser uma pessoa
focada na elucidação do mistério, revelando o mínimo possível sobre sua vida
pessoal e evitando tratar de seus envolvimentos amorosos ou de assuntos que o
desviassem de sua função primordial, observa-se que vários detetives recebem
uma caracterização mais profunda, que vai além do indivíduo atrás de respostas.
Dentre os vários exemplos existentes, citamos o Comissário Montalbano, de
Andrea Camilleri, e o Comissário Mattos, de Rubem Fonseca.
Quando analisamos, por exemplo, as regras de S.S. Van Dine, que
delimitavam os contornos de um romance policial ideal, observamos que o
detetive se caracteriza como alguém que não será estudado a fundo, pois suas
características pessoais não são importantes. Sua função é investigar o crime,
simplesmente. O detetive recebe uma descrição o mais enxuta possível e não se
envolve emocionalmente com a situação, sob pena de arruinar a investigação.
Os detetives contemporâneos já não possuem essas características. Se
continuarmos a analisar a figura dos dois investigadores citados anteriormente,
32
Montalbano e Mattos, constataremos que muito da narrativa trata exatamente da
vida pessoal de ambos.
Em Agosto (1993), Rubem Fonseca apresenta o detetive como um homem
fisicamente debilitado e que vive uma série de conflitos emocionais. Durante todo
o romance, a história pessoal de Mattos se mistura à trama. Ele cumpre seu papel
na trama e, mesmo afastado da polícia e sofrendo com sua doença, uma grave
úlcera duodenal, descobre o assassino, deslinda o crime, contudo não tem a
chance de fazer justiça, visto que ele mesmo, e Salete, sua namorada, são
assassinados por Chicão, o criminoso. Mas, sua morte era mesmo iminente,
devido a seu grave problema de saúde. Então, ser assassinado acaba por conferir
maior importância ao inevitável evento, uma vez que o detetive tem uma morte
digna, ao menos no âmbito narrativo, pois conseguira descobrir a verdade,
embora tenha se tornado mais uma vítima do executor e dos mandantes do
assassinato investigado por Mattos.
Diferentemente do comissário Mattos, Salvo Montalbano, o comissário
criado por Camilleri, protagoniza uma série de narrativas, iniciadas em 1994, com
a publicação de La forma dell’acqua, totalizando, até 2009, com a publicação de Il
gioco degli specchi, 22 livros, entre romances e livros de contos. Além de ser um
investigador como Holmes e Poirot, apresentando aguda capacidade de raciocínio
e dedução, como se verifica em La pazienza del ragno. Montalbano também é
dado à ação, como acontece em Il giro di boa, quando sai ferido. Seu lado
humano também é explorado: é um amante da cozinha siciliana e mantém um
longo relacionamento com Lívia, sua eterna noiva, que vive em Genova e sempre
vai visitá-lo. Outro fato importante de sua vida, e que o marca profundamente, é a
morte da mãe, quando ele era ainda muito pequeno. A perda da mãe é bem
trabalhada em Il ladro di merendine, romance no qual Montalbano conhece
François, um menino cuja mãe tinha sido assassinada e que o comissário
pretendia adotar juntamente com Lívia. Esse fato desdobra-se nos romances
subsequentes, possibilitando ao leitor acompanhar a tentativa e o fracasso de
Montalbano, que não consegue formar sua própria família. É um detetive
brilhante, no entanto não consegue obter o mesmo êxito em sua vida pessoal.
33
O autor faz uso de todas as faces da vida da personagem na composição
das obras, o que aumenta o interesse do leitor, aproximando-o do detetive. O
sucesso alcançado por Camilleri é expressivo. Seus livros têm sido traduzidos
para diversas línguas e toda a série de Montalbano foi transformada em filmes
televisivos, produzidos e exibidos pela RAI.
A vida transformada em ficção, a forma como um detetive consegue chegar
ao criminoso, atrai não apenas leitores, mas também espectadores, que
consomem os seriados e os filmes do gênero. Seriados como o norte-americano
CSI fazem tanto sucesso, que possuem desdobramentos como CSI New York,
CSI Miami e CSI Las Vegas, onde existe sempre um grupo de detetives. O líder
deles sempre é o mais cerebral, ademais, e as tecnologias de investigação são
amplamente utilizadas, como exames laboratoriais e programas de computador,
uma evolução à técnica inaugurada por Lecoq, lá nos primórdios do policial. Tal
evolução é perfeitamente explicável pela própria evolução do homem e das
sociedades.
Após nossa breve apresentação do surgimento e ascensão do romance
policial, dedicaremos o próximo item ao giallo na Itália.
1.2 As nuanças do giallo na Itália: escritores em relevo
Romance de aventuras, romance policial, giallo na Itália. Embora a
Inglaterra, os Estados Unidos e a França sejam os países que possuem maior
tradição em romances policiais, com escritores de reconhecimento mundial como
Conan Doyle, Agatha Christie, Charles Dickens, Raymond Chandler, Dashiell
Hammett, é um fato concreto que esse gênero tem atravessado fronteiras
continentais e culturais. O Brasil, por exemplo, cuja publicação de seu primeiro
romance – O filho do pescador (1843), de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa –,
foi bastante tardia em relação aos países supracitados, possui um considerável
grupo de romancistas que se destacam pela produção de romances policiais.
34
Dentre eles, referenciamos, novamente, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Patricia Melo,
Rubem Fonseca e acrescentamos P.D. James.
Cléber Eduardo publicou uma matéria na revista Época Online, na qual se
encontram dados sobre as editoras que possuem selos específicos para a
publicação de romances e se aponta o êxito que vem sendo obtido pelos
escritores brasileiros:
A Coleção Negra, da Record, editou três autores brasileiros:
Flávio Moreira da Costa, com Modelo para Morrer, Rubens
Figueiredo, com Essa Maldita Farinha, e Tabajara Ruas, com A
Região Submersa. Pelo menos outros três já estão confirmados
para este ano, entre os quais o romance de estréia do
compositor e cronista Aldir Blanc, cuja trama se desenrola no
bairro carioca da Tijuca, uma das paixões do autor. “Policial é
um gênero emergente no Brasil”, avalia Luciana Villas-Boas, da
editora Record. “Supunha-se que encalhavam, mas provamos o
contrário.” A Companhia das Letras também criou uma série
para o mundo do crime, com edições em formato diferenciado, e
outra chamada Literatura e Morte, composta de histórias fictícias
de celebridades literárias. Alguns autores brasileiros, como Tony
Bellotto (Bellini e a Esfinge), Patrícia Melo (O Matador) e Rubem
Fonseca (O Doente Molière), vêm tendo sucesso superior ao
obtido pelas estrelas estrangeiras da editora. Em setembro deve
sair O Inferno, novo romance policial de Patrícia Melo.4
O artigo traz ainda uma possível explicação sobre o desenvolvimento tardio
do gênero em nosso país:
“O gênero policial era considerado de segunda categoria no
Brasil, e isso contribuiu para não se desenvolver”, afirma Luiz
Schwarcz, da Companhia. “Essa visão mudou de alguns anos
para cá. Diversão não é incompatível com qualidade literária.”5
Conforme podemos observar, assim como acontece na Itália, o gênero
policial, no Brasil, também sofria a classificação de “segunda categoria”. No
entanto, apesar de, na península italiana, ainda não terem ascendido à “primeira
categoria”, os romances policiais representam um verdadeiro sucesso editorial,
com o crescente interesse por parte dos leitores.
4
5
http://epoca.globo.com/edic/20000724/cult1a.htm
http://epoca.globo.com/edic/20000724/cult1a.htm
35
Na Itália, o romance policial (poliziesco) é mais conhecido como giallo, pelo
motivo que a seguir explicamos.
Maurizio Pistelli, em Un secolo in Giallo, trata da “pré-história”, ou seja, do
surgimento do romance policial na Itália:
La cosidetta “preistoria” del giallo italiano si può orientativamente
far coincidere con un periodo cronologico compreso tra la
seconda metà dell’Ottocento e il terzo decennio del secolo
successivo. Mentre la critica è pressoché unanime nell’indicare il
1929 come l’anno nel quale, con l’inizio delle pubblicazioni della
celebre collana de “I Libri Gialli” Mondadori, nasce “ufficialmente”
in Italia il poliziesco, non appare altretanto facile individuare a
ritroso la data precisa in cui il mistero, il delitto e l’indagine
cominciarono unitamente a diffondersi nella nostra narrattiva.
(PISTELLI, 2006: 97)6
Embora haja consenso sobre a “data de nascimento” do romance policial
na Itália, a mesma precisão não se pode atribuir à introdução e difusão de
elementos como o mistério, o delito e a investigação na narrativa, que,
naturalmente, não possui uma delimitação tão precisa e teria ocorrido entre 1850
e 1930, aproximadamente.
Além disso, o giallo teria ligação direta com o processo de industrialização,
bem como o desenvolvimento e crescimento das cidades, o que passou a ser
retratado a partir de 1841, data do lançamento do primeiro romance policial no
Ocidente, The murders in the rue Morgue, de Edgard Allan Poe. A esse respeito,
Maurizio Pistelli (2006: 4) declara:
Recenti saggi critici hanno giustamente evidenziato come il
contesto storico e culturale della seconda metà dell’Ottocento –
caratterizzato dal rapido sviluppo della civiltà industriale, dalla
costituzione delle moderne metropoli e della civiltà industriale,
dalla diffusione del positivismo scientifico, che propone
l’osservazione analitica della società esaltando il valore dei
procedimenti logici come unici strumenti di approccio alla realtà –
6
A chamada "pré-história" do romance policial italiano, a título de orientação, se pode fazer coincidir com o
período cronológico compreendido entre a segunda metade dos Oitocentos e o terceiro decênio do século
seguinte. Enquanto a crítica é quase unânime ao indicar 1929 como o ano no qual, com o início das
publicações da célebre coleção de "I Libri Gialli" Mondadori, nasce "oficialmente", na Itália, o policial, não
parece fácil precisar a data em que o mistério, o delito e a investigação começaram, conjuntamente, a se
difundir em nossa narrativa. (Tradução da autora)
36
sia considerare elemento fondamentale nell’affermazione del
giallo, sia in Italia che naturalmente all’estero.7
Vale ainda ressaltar a contribuição literária de Francesco Mastriani,
reconhecido como o intérprete italiano da obra de Eugène Sue, escritor francês,
notabilizado por seus romances de mistério, moda literária que vigorou a partir da
metade do século XIX. Os “misteri”, ou mistérios, afrontavam o tema da denúncia
social, procurando retratar a realidade com toda a sua dramaticidade e tendo
como ambiente as metrópoles, onde ocorriam crimes, envoltos em tramas
obscuras e misteriosas, como relata Pistelli.
Os romances mais prestigiados do napolitano Francesco Mastriani são La
cieca di Sorrento (1852), que obteve grande sucesso, e Il mio cadavere, (1853),
ao qual a crítica atribui um valor histórico importante, considerando-o o primeiro
romance policial italiano. Ambos os romances citados foram escritos antes da
Unificação da Itália.
Além de ser o primeiro romance policial nacional, Il mio cadavere possui
em sua tessitura as teorias da ciência moderna, segundo Pistelli (2006: 7):
Ne Il mio cadavere lo scrittore napoletano inserisce infatti
riferimenti espliciti – ampliati con note a piè pagina – a
procedimenti scientifici relativi ad esempio alle modalità di
accertamento di un decesso o di imbalsamazione del corpo
umano.8
O estilo do autor sofreu mudanças com o passar do tempo. Os romances
escritos após a Unificação da Itália, como, por exemplo, Le ombre, lavoro e
miseria (1868) e Il materialista ovvero I misteri della scienza (1896) apresentam
7
Recentes ensaios críticos evidenciaram como o contexto histórico-cultural da segunda metade do século
XIX – caracterizado pelo rápido desenvolvimento da civilização industrial, pela constituição das modernas
metrópoles e pela difusão do positivismo científico, que propõe a observação analítica da sociedade
exaltando o valor dos procedimentos lógicos como únicos instrumentos de abordagem da realidade – seja
considerar elemento fundamental na afirmação do giallo, na Itália e, naturalmente, no exterior. (Tradução da
autora)
8
Em O meu cadáver o escritor napolitano insere, de fato, referências explícitas – ampliadas com notas de
rodapé – a procedimentos científicos relativos, por exemplo, às investigação de um falecimento ou ao
embalsamamento do corpo humano. (Tradução da autora)
37
mudanças que vão desde a linguagem das personagens, até a própria descrição
das cidades, que passaram a ser analisadas de forma mais crítica, tendo seus
males e problemas evidenciados. Os problemas enfrentados pelas cidades
passaram a destacar-se na trama: a máfia, a exploração do trabalho humano, a
violência explícita nas localidades mais pobres, dentre outros. Essa literatura de
denúncia conferiu a Mastriani sucesso de público, o que demandou novas edições
de seus romances, fazendo que seus livros tocassem em um tema histórico de
relevância para a Itália: a questão do Mezzogiorno.
L’importanza di tali romanzi viene ad accrescersi in
considerazione del fatto che sono recepiti, soprattutto nel
mezzogiorno d’Italia, come una delle risposte più immediate
all’acceso dibattito sulla “questione meridionale”, nonchè alla
sentita esigenza di una narrativa d’impegno civile. (PISTELLI,
2006:7)9
Os primeiros romances policiais foram traduzidos na Itália às vésperas da
Unificação. Paralelamente, foram surgindo os primeiros escritores do gênero no
país. Até a publicação dos Gialli Mondadori, na Itália se produziu um grande
número de romances policiais. O evento de 1929, ou seja, o lançamento da
coletânea da editora Mondadori potencializou essa produção, colocando-a em
evidência. Porém, como veremos adiante, o fascismo, com seu protecionismo à
produção nacional, acabou por prejudicar a expansão do giallo, sobretudo quando
comparado aos romances do gênero produzidos pelo mundo, especialmente na
França e nos Estados Unidos. O romance policial italiano, ou giallo, como já era
conhecido, teve de percorrer um longo caminho, até que pudesse novamente
trilhar a estrada do prestígio literário, apesar de os romances contemporâneos
ainda estarem submetidos a uma forte crítica, muitas vezes depreciativa, oriunda
das narrativas produzidas nos “anos dourados” do giallo.
A chegada, na Itália, dos romances de Conan Doyle, protagonizados por
Sherlock Holmes, causou impacto na produção nacional italiana. A estréia do
detetive em terras italianas, ocorrida em 1895, contribuiu positivamente para o
9
A importância de tais romances vem a aumentar pelo fato que são recebidos, sobretudo no mezzogiorno da
Itália, como uma das respostas mais imediatas ao acalorado debate sobre a “questão meridional”, bem como
a sentida exigência de uma narrativa de engajamento civil. (Tradução da autora)
38
romance policial que ali se produzia, visto que teve boa aceitação de público e,
ainda, passou a ser referência para os escritores nacionais, que deram vida a
detetives com características “holmianas”, ou seja, homens esnobes, intelectuais
e, sobretudo, investigadores lieti, que investigavam pelo simples prazer de
elucidar o mistério.
O detetive de Doyle entrou na península itálica através da editora milanesa
Verri, e suas atuações passaram a ser publicadas posteriormente em capítulos,
no “Domenica del Corriere”. O sucesso de Holmes na Itália foi tamanho, que o
público exigiu a republicação, em volumes, dos capítulos já lançados. Ao mesmo
tempo, outras editoras procuraram publicar imediatamente os romances que
ainda não haviam sido divulgados pelo “Domenica del Corriere”.
O termo giallo, palavra que significa amarelo em língua italiana, é usado
metonimicamente, substituindo o termo policial. No capítulo “I Libri Gialli”
Mondadori, Maurizio Pistelli explica a adoção do termo giallo para designar
romance policial na Itália:
In Italia l’anno di nascita ufficiale del nuovo genere letterario
rimane per molti il 1929, data della prima uscita della
famosissima collana mondadoriana, contraddistinta dalle
inconfondibili copertine gialle; un colore questo di forte visibilità,
passato in seguito a designare, nel nostro paese, cosa unica nel
mondo, il poliziesco tout court. (PISTELLI, 2006:97)10
Ou seja, o termo giallo nasceu a partir da coleção de romances policiais
lançada pela Arnoldo Mondadori Editore, identificados pela cor da capa, amarela.
O primeiro romance da coleção, que teve publicação semanal, foi La strana morte
del Signor Benson, de S.S. Van Dine, originalmente publicado em 1926 sob o
título The Benson murder Case. A Itália passou, então, a adotar o termo giallo
para designar o gênero policial.
10
Na Itália, o ano do nascimento oficial do novo gênero literário é, para muitos, 1929, data da primeira
publicação da famosíssima coleção mondadoriana, marcada pelas inconfundíveis capas amarelas; uma cor de
forte visibilidade, passando a seguir a designar, no nosso país, coisa única no mundo, o policial tout court.
(Tradução da autora)
39
Convém registrar que essa coleção continua a ser publicada até os nossos
dias, tendo, atualmente, frequência quinzenal.
No entanto, a palavra giallo, amarelo em italiano, ainda é objeto de
estudos, que procuram explicar o porquê desta escolha específica. Pistelli
argumenta que a explicação apresentada por Loris Rambelli em Storia del giallo
italiano seria a mais convincente:
In un paragrafo dedicato alla questione, il critico ravennate
precisa come in effetti il termine “giallo” sia frutto di una
metonimia, dovuta alla consuetudine di molte case editrici – basti
pensare alla stessa Mondadori con i suoi libri “verdi” (drammi e
segreti della storia) e “azzurri” (narrativa italiana) – di fare ricorso
sulle copertine a un colore dominante per caratterizzare e
differenziare anche visivamente le varie collane. In Inghilterra,
Germania e Stati Uniti inoltre erano già state lanciate sul mercato
collezioni di polizieschi aventi come segno cromatico distintivo il
giallo; per questo è verossimile (anzi certo, secondo le
dichiarazioni di Alberto Tedeschi rilasciate qualche anno più tardi
a “Il Cerchio Verde”) che la Mondadori abbia ripreso tale
denominazione e colore proprio da queste precedenti iniziative
editoriali estere. (PISTELLI, 2006: 97-8)11
Ou seja, além de se tratar de uma forma de diferenciar os romances
pertencentes àquele estilo, também seguia uma tendência internacional, já
adotada por outros países, para classificar e fazer a distinção dos romances
pertencentes ao gênero policial.
Outras duas cores foram utilizadas nas capas dos romances como
alternativas ao giallo: o rosso (vermelho) e o nero (negro). O vermelho obteve
mais destaque e maior representatividade como nos informa Pistelli (2006: 98)12:
11
Em um parágrafo dedicado à questão, o crítico de Ravenna esclarece como o termo "giallo" seja fruto de
uma metonímia, devido ao hábito de muitas casas editoras - basta pensar na própria Mondadori com o seu
livros "verdes" (dramas e segredos da história) e "azúis" (narrativa italiana) - de utilizar uma cor dominante
nas capas como recurso para caracterizar e diferenciar visivelmente as várias coleções. Além disso, na
Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos já haviam sido lançadas no mercado coleções de romances
policiais tendo como sinal cromático distintivo o amarelo: por isso, é verossímil (ou melhor, é certo, segundo
as declarações feitas por Alberto Tedeschi, alguns anos depois do "Il Cerchio Verde") que a Mondadori
tenha retomado tal denominação e cor dessas iniciativas editoriais estrangeiras. (Tradução da autora)
12
Nos anos que definimos como "pré-história" deste gênero literário, a cor do sangue (o demonstra um
excelente estudo de Renzo Cremante) aparece, de fato, com frequência, como possível alternativa ao amarelo.
Algumas das coleções italianas que começam a incluir policiais são, não por acaso, diferenciadas justamente
40
Negli anni che abbiamo definito della “preistoria” di questo
genere letterario, il colore del sangue (lo demostra un eccellente
studio di Renzo Cremante) recorre infatti spesso come possibile
variante al giallo. Alcune tra le collezioni italiane che iniziano a
includere polizieschi sono non a caso contraddistinte proprio da
questo colore: la “Biblioteca Rossa” della Sonzogno (1895); la
“Colezione Rossa” di Spioti (1907); “I Libri del Triangolo Rosso”
della Atlante di Milano (1931); “I Romanzi Rossi” della Bemporad
(1937).
Embora tenha tido destaque menor, nero também foi um termo bastante
utilizado:
Per quanto concerne invece il nero, scelto per l’immediata
capacità evocativa di tenebre, mistero, morte, sono da ricordare
oltre alla serie simenoniana della Mondadori (i cosiddetti “Libri
Neri”) anche altre collane italiane del decennio 1930-40, che fin
dal titolo vi fanno esplicito riferimento: “I Romanzi del Gatto Nero”
(T.I.P., Torino 1934); "I Gialli del Domino Nero” (Martucci, Milano
1936); “I Gialli del Gufo Nero” (Attualità, Milano 1937); “Collana
del Cerchio Nero” (SADEL, Milano 1940). Malgrado tali tentativi,
in Italia nessun colore è riuscito mai a detronizzare il primato
assoluto del giallo come sinonimo di tutto ciò che ruota intorno a
un delitto, a un enigma, a un’indagine di polizia. (PISTELLI,
2006: 97-8)13
Conforme afirmamos acima, o termo giallo passou a designar não mais a
cor atribuída às capas dos romances policiais, mas o gênero a que tais romances
pertenciam, e, embora as cores vermelha e negra fossem realmente mais
representativas, uma vez que a primeira representa o sangue e a segunda evoca
o mistério, a morte, estas não foram capazes de enfraquecer ou substituir o
amarelo.
Pistelli continua tratando do lançamento da coleção Gialli Mondadori, que
foi acompanhada de ampla publicidade, com vistas a demonstrar valores como
leitura agradável e emocionante, ideal para qualquer hora e para todos os
por esta cor: a "Biblioteca Rossa" da Sonzogno (1895); a "Colezione Rossa" di Spioti (1907); "I Libri del
Triangolo Rosso" da Atlante de Milão (1931); "I Romanzi Rossi" da Bemporad (1937). (Tradução da autora)
13
No que diz respeito ao negro, escolhido pela capacidade imediata de evocar escuridão, mistério, morte,
são memoráveis, além da série simenoniana da Mondadori (os chamados "Libri Neri"), as coleções italianas
do decênio 1930-1940, que desde o título fazem referência explícita ao negro: "I Romanzi del Gatto Nero"
(T.I.P., Torino 1934); "I Gialli del Dominio Nero" (Martucci, MIlão 1936); "I Gialli del Gufo Nero"
(Attualità, MIlão 1937); "Collana del Cerchio Nero" (SADEL, Milão 1940). Apesar de tais tentativas, na
Itália, nenhuma cor conseguiu destronar a superioridade absoluta do amarelo como sinônimo de tudo que
gira ao redor de um delito, de um enigma, de uma investigação de polícia. (Tradução da autora)
41
públicos, seja em faixa etária, seja em nível cultural. A editora tinha ainda a
intenção de ressaltar a qualidade artística das obras:
Altro aspetto da non sottovalutare è l’intento, dichiarato dalla
stessa casa editrice milanese, di voler offrire una serie di romanzi
polizieschi di elevato livello artistico, in modo da poter essere
esposti senza temore – grazie anche ad un’elegante veste
grafica – sugli scaffali delle biblioteche private degli italiani. Per
questo motivo i gialli Mondadori appaiono, almeno in un primo
periodo, soltanto in libreria, corredati da lusinghieri giudizi di
alcuni noti intellettuali dell’ epoca – come Massimo Bontempelli,
Ada Negri, Alfredo Panzini, Cesare Zavattini, Margherita Sarfatti,
Antonio Bruers, Luigi Chiarelli, Umberto Fracchia – riportati con
enfasi sui rivolti di copertina. (PISTELLI, 2006: 99)14
Observamos, assim, os esforços por parte da editora em promover a
imagem positiva da nova coleção. Os gialli foram apresentados como leitura de
valor estético, com edição de luxo, apoiados pelos intelectuais de então, vendidos
inicialmente apenas em livrarias, a fim de lhes conferir o status necessário para
compor às bibliotecas particulares, entre os clássicos da literatura, conforme
confirma Pistelli (2006: 99): “L’operazione che si cerca di promuovere è quella
evidente di nobilitare la neo-collana e di riflesso tutto il genere giallo, abbattendo i
pregiudizi che volevano tali libri necessariamente di infima qualità letteraria”.15
Este, tem sido, aliás, um impasse no que diz respeito ao romance policial, o
questionamento da qualidade literária dos romances assim classificados, o valor
dado ao público que o consome e a crítica, que atribui pouco valor literário a tais
romances, classificando-os como produto puramente comercial. A escolha dos
autores que inauguraram a coleção também foi proposital:
14
Outro aspecto que não se pode menosprezar é a intenção, declarada pela própria casa editora milanesa, de
querer oferecer uma série de romances policiais de elevado nível artístico, de forma que pudessem ser
expostos sem temor - graças também a uma elegante roupagem gráfica - nas estantes das bibliotecas
particulares dos italianos. Por este motivo os gialli Mondadori são vendidos, ao menos inicialmente,
somente em livrarias, adornados por lisonjeiros pareceres de alguns famosos intelectuais da época - como
Massimo Bontempelli, Ada Negri, Alfredo Panzini, Cesare Zavattini, Margherita Sarfatti, Antonio Bruers,
Luigi Chiarelli, Umberto Fracchia - referidos com ênfase nas contracapas. (Tradução da autora)
15
A operação que se procura promover é evidente: enobrecer a nova coletânea e, como consequência, todo o
gênero giallo, diminuindo os preconceitos em relação àqueles livros, de ínfima qualidade literária. (Tradução
da autora)
42
(oltre al critico d’arte, studioso di filosofia e giornalista Willard
Huntington Wright, alias S. S. Van Dine, al celeberrimo Edgard
Wallace, alla scrittrice di poesie Anne Katharine Green, è
esemplare la scelta di alcuni racconti del grande Robert Louis
Stevenson, tra cui il già famoso e non inedito Lo strano caso del
dottor Jekyll e mister Hyde). (PISTELLI, 2006: 99)16
Os quatro primeiros gialli publicados eram de autores consagrados, o que
reforçava a intenção de a editora conferir credibilidade ao romance policial desde
o princípio, garantindo, assim, o sucesso e a permanência do novo gênero
literário: um gênero popular, quanto a sua abrangência, pois alcançava leitores
dos mais diversos gostos, formações, classes sociais e faixas etárias, mas que
pudesse ser, também, bem aceito pelas pessoas culturalmente privilegiadas, que,
talvez, se interessassem por esse gênero da literatura, consumindo-o e a
incorporando-a a seu acervo pessoal, em suas bibliotecas, entre seus clássicos.
O sucesso conquistado pelos “Gialli Mondadori” no decorrer dos anos levou
a editora a outros empreendimentos, como o que ocorreu em 1931:
Il grande favore di pubblico riscosso dalla collana gialla della
Mondadori, a partire in particolare dal 1931, spinge la casa
edittrice a varare altre iniziative analoghe. Tra le più importanti
ecco allora, in ordine cronologico, la pubblicazione del
“Supergiallo” (1932-41) – supplemento annuale prima dei “Libri
Gialli” poi, dal quinto numero, dei “Gialli Economici” – voluminoso
libro in brossura e con costola telata che raccoglie opere inedite
di importanti autori, sia italiani che stranieri. (PISTELLI,
2006:104)17
Em 1933, a editora lançou a coleção “I Gialli Economici”, uma nova versão,
mais popular, de baixo custo, destinada à venda nas bancas, ao contrário da
primeira, lançada em 1929:
16
(além do crítico de arte, estudioso de filosofia e jornalista Willard Huntington Wright, pseudônimo S. S.
Van Dine, ao celebérrimo Edgard Wallace, à escritora de poesias Anne Katharine Green, é exemplar a
escolha de alguns contos dos grande Robert Louis Stevenson, entre os quais o já famoso e não inédito O
estranho caso do doutor Jekyll e senhor Hyde). (Tradução da autora)
17
O grande sucesso de público obtido pela coleção gialla da Mondadori, a partir especialmente de 1931,
estimula a editora a lançar outras iniciativas análogas. Entre as mais importantes estão, em ordem
cronológica, a publicação do "Supergiallo" (1932-41) - suplemento anual primeiramente dos "Libri Gialli",
depois, a partir do quinto número, dos "Gialli Economici" - volumoso livro em brochura, com lombada
telada, que reúne obras inéditas de importantes autores, tanto italianos quanto estrangeiros. (Tradução da
autora)
43
L’anno successivo viene lanciata una nuova collana a carattere
più popolare e avventuroso destinata alle edicole, cioè “I Gialli
Economici” (1933-41). Il prezzo scende a due lire, cambia il
formato – più grande, simile al “Supergiallo” – ma il risultato è
un’edizione ben curata che ricalca l’impostazione grafica della
collezione-madre dei “Libri Gialli”. Tale operazione editoriale
segna l’ingresso in pianta stabile alla Mondadori del giovanissimo
Alberto Tedeschi, in precedenza direttore della “Collezione A.
Romanzi Polizieschi e d’Avventura” per conto della milanese
ATEM. Inizia così l’avventura straordinaria di un personaggio
fondamentale nel prosieguo della storia del poliziesco italiano, al
cui nome per cinquant’anni sarà legata la quasi totalità della
produzione gialla mondadoriana. (PISTELLI, 2006: 104-05)18
Além dessas coleções, vale ainda destacar a “Serie dei Capolavori”,
publicada entre 1937 e 1941, na qual, curiosamente, nenhuma obra de autoria
italiana foi inserida. “Il Cerchio Verde” foi outra publicação que circulou entre 1935
e 1937, uma publicação popular, vendida a cinquenta (50) centavos e que
continha publicações em diversos formatos e de diversos autores. Porém, se
observa que a produção literária nacional não possuía, ainda, prestigio para
figurar nos volumes lançados.
Sobre a inclusão dos autores italianos de maneira obrigatória, não somente
nos Gialli, mas em todas as coleções literárias, citamos ainda Pistelli (2006: 106):
È il fascismo, pur in maniera contradditoria, a spingere
inizialmente verso il genere poliziesco diversi scrittori italiani. In
ossequio all’autarchia mussoliniana, si impone infatti l’obbligo di
inserire una quota minima (20%) di autori nazionali in ogni
collana edita nel nostro paese.19
Essa nova realidade obriga, então, a produção de novos títulos italianos,
impondo condições à Mondadori, que “si vede costretta in tempi brevi a reperire
18
No ano seguinte foi lançada uma nova coleção, mais popular e aventurosa, destinada às bancas, isto é, "I
Gialli Economici" (1934-41). O preço cai para duas liras, muda o formato - maior, semelhante ao
"Supergiallo" - mas o resultado é uma edição bem cuidada, que copia o projeto gráfico da coleção matriz dos
"Libri Gialli". Tal operação editorial marca a entrada na Mondadori do jovem Alberto Tedeschi,
anteriormente diretor da "Collezione A. Romanzi Polizieschi e d'Avventura" na milanesa ATEM. Inicia-se,
assim, a aventura extraordinária de uma personagem fundamental no prosseguimento da história do policial
italiano, cujo nome, por cinquenta anos, estará ligado à quase totalidade da produção gialla mondadoriana.
(Tradução da autora)
19
É o fascismo, de maneira contraditória, a empurrar inicialmente para o gênero policial diversos escritores
italianos. Em cumprimento à autarquia mussoliniana, se impõe, de fato, a obrigação de se inserir uma cota
mínima (20%) de autores nacionais em cada coleção editada no nosso país. (Tradução da autora)
44
un drappello di credibili scrittori autoctoni di polizieschi”. (2006:106). Para Pistelli,
essa necessidade urgente em se cumprir o estabelecido pelo protecionismo
fascista fez, de fato, que o gênero crescesse, mas em contrapartida prejudicou a
qualidade da produção italiana, sobretudo quando comparada aos romances
internacionais.
Se la politica culturale protezionista del facismo favorisce la
crescita del poliziesco italiano è altretanto vero che a distanza di
pochi anni si giungerà a porre dei divieti, delle limitazioni così
nette e soffocanti alla creatività di questi autori da sconfinare,
come vedremo più avanti, quasi nel ridicolo. Logica conseguenza
sarà l’allontanamento di molti scrittori da un genere dalle
possibilità così limitate e di lì a poco apertamente osteggiato.
(PISTELLI, 2006:106)20
As consequências dessa produção em larga escala, a fim de atender às
necessidades editoriais – para um público cada vez mais exigente –, e, por
conseguinte, considerada “de pouca qualidade” quando comparada à produção
internacional, então já consagrada pelo público leitor, talvez seja a explicação
pelo pouco prestígio atribuído ao romance policial italiano. Talvez explique as
dificuldades que até hoje o gênero enfrenta, apesar de notoriamente apreciado,
como é o caso de Andrea Camilleri. Nosso autor já vendeu milhões de
exemplares de seu slivros; é citado em inúmeros artigos publicados nas mais
diversas mídias; registra a produção de vários filmes baseados em seus
romances; conta com sites especializados em tudo o que se refere ao autor, como
é
o
caso
do
www.vigata.org,
criado
por
iniciativa
de
seus
fãs,
e
www.andreacamilleri.net.
Nas palavras de Pistelli, a síntese das dificuldades enfrentadas pelos
romancistas que se dedicam ao policial:
Le perduranti difficoltà incontrate dal giallo italiano, nonchè in
definitiva la sua incapacità di farsi accettare nel salotto buono
delle patrie lettere, trovano comunque un’ulteriore e forse
20
Se a política cultural protecionista do fascismo favorece o crescimento do policial italiano é, entretanto,
verdade que em poucos anos se chegará a impor proibições, limitações nítidas e sufocantes à criatividade
destes autores para aprisionar, como veremos mais adiante, quase no ridículo. Como consequência lógica
haverá o afastamento de muitos escritores de um gênero com possibilidades tão limitadas e, a seguir,
abertamente hostilizado. (Tradução da autora)
45
decisiva spiegazione [...] in quella nostra accademica tradizione
letteraria, in quella supponenza critica, secondo cui solo la
pagina raffinata e “ben scritta” merita di riscuotere consenso e
approvazione. (PISTELLI, 2006: 106)21
Nos dias atuais, o quadro referente ao giallo sofreu mudanças. Diversos
autores italianos alcançaram sucesso internacional, a exemplo do siciliano
Leonardo Sciascia, autor de romances consagrados pela crítica como Il giorno
della Civetta, ou de Carlo Lucarelli, autor de Lupo Mannaro e, para não nos
alongarmos, Andrea Camilleri, o nosso autor.
Luca Crovi, em seu livro Tutti i colori del giallo, trata da questão do sucesso
do romance policial e da crítica. Afirma:
Eppure, nonostante gli sforzi di decine e decine di autori, le
polemiche e le discussioni intorno alla legittimazione nazionale di
un genere letterario come il giallo non sembrano ancora del tutto
spente a tutt’oggi. Non sono bastate a serdarle i grandi successi
in libreria di Camilleri (capace di vendere nel giro di tre anni quasi
tre milioni di libri), Lucarelli, Fois, Macchiavelli & Guccini,
Ferrandino, Baldini, Rigosi, Pinketts, Scerbanenco, Carlotto. Anzi
basterebbe sottolineare che proprio il grande successo di questi
narratori moderni ha suscitato un bel polverone da parte di
intellettuali togati. (CROVI, 2002: 10-11)22
Embora o romance policial já tenha uma tradição considerável na Itália,
registrando um número elevado de escritores bem-sucedidos no gênero, de
leitores aficionados, e de vendas que ultrapassam as fronteiras peninsulares,
alguns críticos o consideram um gênero inferior, até mesmo nocivo:
Solamente due anni fa Eugenio Scalfari intitolava
provocatoriamente un suo corsivo Il giallo ha ucciso il romanzo,
21
A longa dificuldade encontrada pelo giallo italiano e a sua incapacidade de se fazer aceitar na sala de
visitas das Letras pátria encontram, posteriormente, talvez, uma explicação decisiva [...] naquela nossa
acadêmica tradição literária, naquela suposição crítica, segundo a qual só a página refinada e "bem escrita"
merece receber consenso e aprovação. (Tradução da autora)
22
Contudo, não obstante os esforços de dezenas e dezenas de autores, as polêmicas e as discussões em torno
da legitimação nacional de um gênero literário como o giallo não parecem até hoje totalmente acabadas. Não
bastaram para acalmá-las o grande sucesso de venda de Camilleri (capaz de vender no período de três anos
quase três milhões de livros), Lucarelli, Fois, Macchiavelli & Guccini, Ferrandino, Baldini, Rigosi, Pinketts,
Scerbanenco, Carlotto. Ao contrário, bastaria sublinhar que o grande sucesso desses narradores modernos
provocou uma grande nuvem de pó por parte dos intelectuais togados. (Tradução da autora)
46
sottolineando come la letteratura di genere avesse secondo lui
impoverito gli argomenti della nostra narrativa contemporanea. E
qualche tempo dopo, sempre Scalfari ha persino sostenuto che
negli autori italiani di gialli e noir degli ultimi vent’anni l’analisi
psicologica dei personaggi è stata sostituita da una serrata
sequenza di fatti, gli “esterni” (paesaggi, vedute, ambienti di città
e paesi) sono stati di fatto aboliti, il linguaggio si è ristretto a
pochi tratti essenziali e ad un numero di parole sufficiente al
racconto cronachistico, sfumature, metafore, risonanze
semantiche sono state sacrificate alla rapidità necessaria ad
incalzare il lettore e tenerlo avvinto pagina dopo pagina allo
svolgimento delle vicende narrate”. (CROVI, 2002: 11)23
Embora os dados a que tivemos acesso, durante a realização desta
pesquisa, também informem que, de fato, em um período da história italiana,
especialmente durante o facismo, quando uma parcela da produção literária
publicada deveria ser nacional, os gialli foram considerados de baixa qualidade,
em especial quando confrontados com os romances estrangeiros, principalmente
os ingleses, que já gozavam de tradição e prestígio. Podemos afirmar, tendo
como fonte as mesmas pesquisas, que o giallo italiano não se enquadra nas
“infrações” referidas na citação acima.
Leonardo Sciascia, siciliano como Andrea Camilleri, é um nome de relevo
na história da narrativa policial (giallo) italiana. Sua obra mais conhecida é,
provavelmente, Il giorno della Civetta (1961). Sobre as características de sua
escrita, citamos um trecho extraído do ensaio entitulado “Leonardo Sciascia e o
Romance Policial”, do professor da UNESP Hilário Antonio do Amaral:
São dois os aspectos fundamentais do romance policial: a
repetitividade e a centrifugação. Valem todos os artifícios
literários, mas a estrutura é sempre fixa: um crime divide o
tempo em dois e as investigações deverão eliminar essa
separação, remendando a trama dos acontecimentos. Nos
romances policiais sciascianos não há repetição nem
centrifugação, ou seja, o investigador não é sempre o mesmo e
são impedidos de reagrupar corretamente as peças do quebra-
23
Há somente dois anos, Eugenio Scalfari intitulava, provocativamente, um artigo seu Il giallo ha ucciso il
romanzo, sublinhando como a literatura do gênero havia, segundo ele, empobrecido os argumentos da nossa
narrativa contemporânea. E, pouco tempo depois, novamente Scalfari, afirmou que nos autores italianos de
gialli e noir dos últimos vinte anos, "a análise psicológica das personagens foi substituída por uma sequência
de fatos fechada: os "externos" (paisagens, vistas, ambientes urbanos e de interior) foram abolidos; a
linguagem se restringiu a poucos traços essenciais e a um número de palavras suficientes ao relato cronista;
nuanças, metáforas, ressonâncias semânticas foram sacrificadas à rapidez necessária para perseguir o leitor e
tê-lo preso, página após página, ao desenvolvimento do acontecimento narrado. (Tradução da autora)
47
cabeça, embora saibam fazê-lo. O último capítulo nunca
corresponde
à
peça
final
do
mosaico
e
a
desestruturação/centrifugação provocada pelo delito permanece.
Há ainda outra diferença fundamental. O estereótipo do detetive,
criado no período positivista é um pseudocientista; já os
detetives criados por Sciascia são pseudoliterários e a sociedade
vive em contínuo e profundo processo de esfacelamento.
(AMARAL, p. 2)
“Difesa di un colore” é o título de um artigo apresentado por Andrea
Camilleri, em 2003, no congresso “Scrittori e critici a confronto” e disponível no
site criado por seus leitores-fãs24, onde o autor discorre sobre a história do giallo,
desde a adoção do termo como designador do gênero policial, até a atualidade.
Nesse artigo, Camilleri também se refere ao surgimento dos primeiros romances
italianos:
I primi scrittori italiani a cimentarsi col romanzo poliziesco sono,
negli anni che vanno dal 1930 al '35, Edoardo Anton, Guido
Cantini, Alessandro De Stefani, Guglielmo Giannini, Giuseppe
Romualdi, Vincenzo Tieri, Alessandro Varaldo. Questi autori
provengono tutti dal teatro, non dalla narrativa. Perché tanti
commediografi? Azzardo una discutibile ipotesi. La scrittura
drammaturgica per sua stessa natura non può abbandonarsi alla
divagazione o all'indugio su un particolare marginale, pena la
caduta della tensione drammatica. Bene, allora si credeva che un
buon romanzo giallo dovesse tirare dritto al suo scopo, che era
quello di proporre un delitto e arrivare il più rapidamente possibile
alla soluzione.25
Camilleri, na sequência de seu artigo, refere-se aos dois escritores que
surgem após o longo período de obscuridade enfrentado pelo gênero, devido à
baixa qualidade dos romances, inaugurando um novo tempo para esse tipo de
produção literária:
La verità è che la rinascita del romanzo giallo italiano ha due
date ben precise. Il 1957, quando Carlo Emilio Gadda pubblica in
volume "Quer pasticciaccio brutto de via Merulana" (che era già
24
www.vigata.org e http://scerbanencoscrive.forumcommunity.net/?t=35448904
25
Idem. Os primeiros escritores italianos a arriscar-se no romance policial, nos anos que vão de 1930 a
1935, são Edoardo Anton, Guido Cantini, Alessandro De Stefani, Guglielmo Giannini, Giuseppe Romualdi,
Vicenzo Tieri, Alessandro Varaldo. Todos esses autores vêm do teatro, não da narrativa. Por que tantos
comediógrafos? Arrisco uma hipótese discutível. A escrita dramática pela própria natureza não pode se
abandonar à divagação ou deter-se sobre um detalhe marginal, sob pena de queda da tensão dramática. Bem,
então se acreditava que um bom romance giallo devesse ir diretamente ao seu objetivo, que era o de propor
um delito e chegar o mais rapidamente possível à sua solução. (Tradução da autora)
48
apparso su "Letteratura" nel 1946-47) e il 1961 quando Leonardo
Sciascia da' alle stampe "Il giorno della civetta".26
O romance de Gadda é visto por Camilleri como um inquestionável giallo,
uma vez que possui os elementos básicos do gênero: delito e investigador,
embora o romance se encerre sem aparente solução dos crimes, que são dois,
acontecidos com uma diferença de três dias: uma agressão à aristocrata vêneta
Menegazzi, que teve suas jóias roubadas, e o assassinato de Liliana Calducci. O
detetive da trama é o comissário molisano27 Francesco Ingravallo, mais conhecido
como Dom Ciccio.
O romance Il giorno della Civetta (1961), de Leonardo Sciascia, é um giallo
que tem a máfia como tema. Inicia-se com o assassinado de Colasberna, líder de
uma cooperativa. O encarregado pelas investigações é o capitão Bellodi, um expartigiano. Porém, uma série de assassinatos ocorre no decorrer da investigação:
a primeira vítima é o camponês Nicolosi, testemunha ocular, que viu um dos
assassinos fugir; a segunda é Parrinieddu, informante da polícia. Através das
investigações, o capitão Bellodi chega ao executor do crime, Diego Marchica, e
aos mandantes, que seriam dom Marianno Arena e il Pizzuco, dois mafiosos que
tinham oferecido proteção a Colasberna, e, como este recusara a oferta da dupla,
fora assassinado. Porém, Bellodi não tem como enfrentar o poder da máfia, e no
final, retornando ao Norte da Itália, descobre finalmente que toda a sua
investigação se perdera; a justiça, no final das contas, não tinha sido feita.
Os dois romances supracitados têm em comum o fato de a narrativa
terminar de maneira incompleta, ou seja, sem a restauração da ordem com a
punição dos culpados pelos crimes.
Apesar do sucesso que o romance policial alcançou desde a sua criação,
com a imortalização de personagens e escritores, um sem-número de livros
26
A verdade é que o renascimento do romance giallo italiano possui duas datas bem precisas. O ano de
1957, quando Carlo Emilio Gadda publica em volume Quer pasticciaccio brutto di via Merulana (que já
havia sido publicado em Letteratura, em 1946-47), e em 1961, quando Leonardo Sciascia publica Il giorno
della civetta. (Tradução da autora)
27
Gentílico referente à região de Molise, situada ao Sul da Itália.
49
vendidos, traduzidos e adaptados por todos os continentes, o gênero ainda é
considerado inferior, não tendo alcançado o status de “boa literatura” e não sendo
aceito por muitos críticos literários.
Podemos citar, ainda, outros romances italianos de sucesso que seguem o
filão policial, como é o caso de O nome da Rosa (Il nome della Rosa) de Umberto
Eco, publicado em 1980. A narrativa trata da investigação, por parte do frade
franciscano Willian de Baskerville e Adson de Melk, um herdeiro de nobres e
noviço de Baskerville, de uma série de crimes ocorridos em uma abadia medieval.
Mesmo enfrentando resistência às suas investigações, Baskerville prossegue-as e
obtém êxito: descobre que, por trás dos delitos, havia a tentativa de manutenção
de uma biblioteca que abrigava obras censuradas pela Igreja Católica.
O nome da Rosa pode ser lido como um romance histórico, ambientado na
Itália Medieval, retratando as questões religiosas, políticas e culturais vigentes,
mas se trata, principalmente, de uma narrativa policial, com estrutura coerente ao
gênero, ou seja, com a presença do crime, investigador, investigação e
consequente resolução do mistério.
Estamos nos aproximandoco Capítulo II, que versará sobre o nosso autor,
Andrea camilleri, e sua profícua obra poética.
50
CAPÍTULO II
ANDREA CAMILLERI: UM ESCRITOR SOB A LUPA
2.1 A identidade siciliana em destaque
A
Sicilia
registra
a
primeira
manifestação
literária
italiana
leiga
paralelamente à literatura produzida na Umbria, religiosa. Conquistada pelos
gregos formou, junto com o Sul da Itália, a Magna Grecia. Possui uma relevante
importância e herança cultural, pois na Antiguidade Agrigento era, inclusive, sede
da escola filosófica de Empédocles. Naturalmente, por seu rico passado cultural,
o siciliano é orgulhoso de sua identidade, considerando-se, inclusive, mais grego
que italiano, devido ao período em que a região esteve sob domínio da Grécia,
fato que, naturalmente, acabou deixando para os sículos uma grande herança
cultural, material e imaterial. Destaca-se, além da citada tradição literária, a
importância das artes dramáticas, por exemplo. A Sicília, como domínio grego,
absorveu e incorporou o teatro à própria cultura.
Na Grécia antiga, o teatro consolidou-se em função das homenagens ao
deus do vinho, Dionísio. Nas procissões realizadas em sua homenagem, nas
quais eram utilizadas máscaras e fantasias, se entoavam cantos líricos, os
ditirambos, ou seja, cantos corais de aspecto alegre e sombrio. O ditirambo
constituía parte de uma narrativa, recitada pelo cantor principal, o corifeu, e o
coral. O rapsodo (ραψῳδός / rhapsôidós), figura surgida no século VII, ia de
cidade em cidade recitando poemas. Atenas foi o principal palco onde o teatro
grego se desenvolveu, porém este também se espalhou por toda a área
influenciada pela Grécia, como a Ásia Menor, o Norte da África e a Magna Grecia,
da qual fazia parte a Sicilia.
A tradição literária siciliana, iniciada com Federico II, na “Scuola Siciliana”,
nestes últimos dois séculos revelou talentos literários como os de Giovanni Verga,
Luigi Capuana, Luigi Pirandello, Giuseppe Tomaso di Lampedusa, Elio Vittorini,
Salvatore Quasimodo, Natalia Ginzburg e Leonardo Sciascia, para citar alguns,
além do nosso autor, Andrea Camilleri. Dos autores citados, daremos um breve
destaque a três: Verga, Pirandello e Sciascia.
51
Giovanni Verga (Catania, 1840 – 1922), um dos grandes nomes da
literatura italiana de todos os tempos, escritor e dramaturgo, filho de pequenos
proprietários, é o maior representante do Verismo.
Entre suas obras destacam-se os romances, Amore e Patria, de 18561857, I carbonari della montagna, de 1861-1862, Mastro Don Gesualdo, de 1889,
e, provavelmente seu mais famoso romance, I malavoglia, publicado em 1881.
I malavoglia é centrado na vida de uma família de pescadores que vive em
Aci Trezza, um lugarejo próximo à Catânia. A história da família é marcada por
sucessivas tragédias. A ausência do filho mais velho, ‘Ntonio, que vai servir no
exército do Reino d’Italia leva o filho mais novo, Bastianazzo, a transportar um
carregamento de tremoceiro para ser vendido em Risposto. Porém, Bastianazzo
morre num naufrágio, durante a viagem, e a família perde o provedor de seu
sustento e, ainda, contrai uma alta dívida por causa da perda do pescado. Após o
ocorrido, ‘Ntonio retorna à força para sua antiga vida de pescador, mas sem
condições de resolver os problemas de sua família. Acaba sendo preso. Uma
sequência de tragédias e infelicidades continua a assolar a família até o final da
narrativa, quando, finalmente, conseguem recuperar a casa que fora perdida por
conta das dívidas acumuladas e tentam, ao menos, realizar o desejo de Padron
‘Ntoni, o patriarca da família, de retornar à sua antiga casa. No entanto, este
morre antes, encerrando assim o ciclo das sucessivas derrotas que marcaram a
trajetória da famíla. A obra integra o ciclo dos vencidos (Ciclo dei vinti), um projeto
literário de Verga que, contudo, não se concretizou, uma vez que ele não chegou
a escrever os cinco romances propostos.
Além de romances, Verga também escreveu novelas, como Nedda (1874)
e Novelle Rusticane (1883). Entre as peças teatrais, citamos I nuovi tartuffi (18651866), La Lupa (1886) e Mastro Don Gesualdo (1889).
O segundo autor a ser destacado é Luigi Pirandello (Agrigento, 1867 Roma, 1936). Assim como Verga, foi escritor e dramaturgo, igualmente
reconhecido como um dos maiores nomes do cenário literário italiano. Recebeu,
em 1934, o Prêmio Nobel de Literatura. Seu primeiro sucesso, Il fu Mattia Pascal,
foi publicado em 1904. O romance trata da história de Mattia Pascal, funcionário
de uma biblioteca, que mora com a mulher na casa de sua sogra, com quem vive
em constante conflito. Os poblemas com a sogra e com a mulher, bem como a
52
doença e morte das filhas, o levam a desaparecer de casa, fato que transforma
definitivamente sua vida: durante sua ausência, em que ele ganha muito dinheiro
em um cassino, um cadáver é encontrado em sua cidade, levando todos a crerem
se tratar do próprio Mattia Pascal. Ao ler a notícia de sua própria morte, Mattia
decide então partir e iniciar uma nova vida. Adotando um novo nome, Adriano
Meis, se fixa em Roma, onde se apaixona por uma jovem, Adriana, com quem
pensa em reconstruir sua vida. Porém, se dá conta de que com seu falso nome
não poderá jamais casar-se com ela, nem denunciar o roubo que vem a sofrer, no
qual perde o dinheiro que ganhara no jogo. Decide, então, retornar à sua antiga
vida. Entretanto, ao voltar à cidade natal, encontra sua mulher casada com outro
homem, com quem tem uma filha. O passado de Mattia fora apagado, uma vez
que todos o supunham morto. No final do romance, Pascal consegue voltar a ser
funcionário da biblioteca e ganha uma nova ocupação, zelar pelo próprio túmulo.
Os romances de Pirandello tiveram e têm grande sucesso. No entanto, seu
reconhecimento maior se deu através do teatro. Sua produção é dividida em
quatro fases: Teatro siciliano, Teatro umoristico/grottesco, Il teatro nel teatro, Il
teatro dei miti.
Também é mundialmente reconhecido por seu ensaio Umorismo, no qual
se encontram os pressupostos teóricos que norteiam sua obra.
Dentre sua vasta produção teatral – Questa sera si recita a soggetto,
Enrico IV, Così è se vi pare, dentre outras –, Sei personaggi in cerca d’autore é
certamente a sua mais famosa peça.
Pirandello é um dos autores italianos mais estudados de todos os tempos.
No ano de 2011, somente na Universidade Federal do Rio de Janeiro, foram
defendidas uma tese e uma dissertação sobre o autor. A tese – Humor, horror e
cidade: comédia pirandelliana e contemporaneidade –, de autoria de Pedro
Carvalho Murad, foi defendida em julho; a dissertação, intitulada O rosto e as
máscaras: a (des)construção da personagem Vitangelo Moscarda no romance
Uno nessuno centomila de Luigi Pirandello, de autoria de Daniele Soares da Silva,
em agosto. Ambos os trabalhos foram orientados pela professora Maria Lizete
dos Santos.
53
Quanto ao terceiro autor destacado, Leonardo Sciascia (Racalmuto, 1921
– Palermo, 1989), como já mencionamos anteriormente, figura, ao lado de Carlo
Emilio Gadda, como um dos responsáveis pela renovação do romance policial na
Itália, graças ao seu Il giorno della civetta.
Autor de extensa produção literária, artística e jornalística, entre romances,
contos, ensaios, poesias, textos teatrais e artigos jornalísticos, seu nome consta
na lista dos grandes escritores da literatura italiana do século XX. Seus romances
frequentemente criticam a corrupção política italiana, o poder autoritário, a máfia.
Sua primeira obra, Le favole della dittatura, foi publicada em 1950.
A sicília e as questões sicilianas estão frequentemente presentes em sua
produção. La Sicilia, il suo cuore, uma coletânea de poesias publicada em 1952, o
ensaio Pirandello e il pirandellismo, de 1953, que foi contemplado com o Prêmio
Pirandello, Gli zii di Sicilia, Salvatore Sciascia, 1958, Feste religiose in Sicilia,
1965, Narratori in Sicilia, 1967, Candido, ovvero un sogno fatto in Sicilia, Einaudi,
1977 e Alfabeto pirandelliano, 1989 são obras que demonstram o envolvimento do
autor com questões, tradições e a cultura de sua terra natal.
A partir deste pequeno vislumbre do percurso literário desses três autores e
da própria história siciliana, observamos que o teatro está intimamente ligado à
cultura da ilha, integranteantiga Magna Grecia. A herança grega permaneceu
impressa na trajetória dos sicilianos Verga, Pirandello, Sciascia e Camilleri, o foco
desta tese, ao qual dedicaremos o próximo subcapítulo.
2.2 O autor e a obra: Andrea Camilleri em exame
Atualmente, Andrea Camilleri é um dos escritores italianos de maior
projeção no cenário do romance policial. O siciliano nascido em Porto Empedocle
já vendeu mais de dez milhões de livros, tendo suas obras traduzidas em dezenas
de
países.
Além
dos
romances protagonizados
pelo
comissário
Salvo
Montalbano, que o levaram ao sucesso, produziu romances classificados pelos
teóricos como históricos, ambientados na Sicília do século XIX, entre eles Il birraio
di Preston, objeto desta tese.
54
Todas as suas obras são ambientadas na imaginária Vigáta, cidade
siciliana criada por Camilleri. Em seus romances os elementos da cultura siciliana
estão presentes de forma bastante significativa. Neles, a cozinha ocupa lugar de
destaque, com descrições detalhadas de pratos típicos. Também, a narração dos
locais e paisagens típicos torna plástica a sua narrativa. No entanto, talvez seja a
língua uma das marcas mais evidentes e peculiares na obra de Camilleri, que
utiliza o dialeto na composição de suas obras, criando uma atmosfera puramente
siciliana. Aliás, levando sua experiência linguística ao extremo, escreveu, por
exemplo, o romance La mossa del cavallo (Rizzoli, 1999) quase que
integralmente em siciliano.
Graças a seus romances gialli alcançou o posto de um dos escritores
italianos mais conhecidos dos últimos anos, cuja extensa obra, composta,
sobretudo, por romances policiais, é sinônimo de popularidade, com um elevado
número de leitores e com a movimentação de grandes somas, fruto das vendas
de seus livros, que ultrapassaram os limites da Itália, chegando em muitos países,
inclusive no Brasil.
No Brasil, os livros de Andrea Camilleri são editados pela Bertrand do
Brasil, selo pertencente ao Grupo Editorial Record. Até o dia doze de dezembro
de dois e onze, encontravam-se disponíveis no catálogo on-line da editora28 vinte
e um (21) títulos traduzidos em língua portuguesa. De acordo com informações
gentilmente fornecidas pelo departamento de imprensa da editora Record, Andrea
Camilleri soma até hoje, no Brasil, 60.195 exemplares vendidos, um número em
constante crescimento, ainda de acordo com o departamento.
Na Itália, a editora que publica os títulos de Camilleri é a Sellerio. Até o dia
doze de dezembro de dois mil e onze, era possível encontrar no site da editora
setenta e seis (76) títulos disponíveis em catálogo.
Precisar o número exato de livros vendidos por Camilleri na Itália não é
uma tarefa simples. O que há de concreto, no entanto, é que esse número já
28
http://www.record.com.br/autor_livros.asp?id_autor=73&pag=3
55
ultrapassou
em
muito
a
marca
de
10
milhões
de
livros.
No
site
www.ilrecensore.com, encontramos a resenha do romance de Camilleri Il gioco
degli specchi, 18º romance protagonizado pelo comissário Montalbano. Na
apresentação ao livro, Alessandra Stoppini cita os seguintes dados editoriais de
Camilleri, até o dia da publicação do artigo, 13 de junho de 201129:
Fino ad oggi Andrea Camilleri ha venduto 13 milioni di copie
tradotte in oltre 30 lingue in tutto il mondo. La serie tv Il
commissario Montalbano tratta dai romanzi di Andrea Camilleri
protagonista Luca Zingaretti per la regia di Alberto Sironi in onda
su Rai 1 dal 1998 ha raggiunto livelli di ascolto record.30
O jornal italiano Corriere della Sera publicou em seu site, no ano de 200731,
uma matéria assinada por Polese Ranieri, que afirma: “16.500.000 Il record di
volumi venduti in libreria è di Andrea Camilleri”.
Fizemos contato com a Sellerio, editora italiana que publica os livros do
nosso autor, que gentilmente nos enviou o seguinte texto, sobre a vendagem do
romance Il birraio di Preston:
Gentile signora,
del romanzo ‘Il birraio di Preston’ sono state tirate dal 1995 ad
oggi circa 500.000 copie. Si tratta delle sole edizioni Sellerio,
escluse pertanto le edizioni riservate all’edicola, allegate a
giornali e riviste, book club, etc…
Con i migliori auguri per la sua tesi (che ci farà piacere ricevere)
e molti cordiali saluti.
Sellerio editore32
29
http://www.ilrecensore.com/wp2/2011/06/il-gioco-degli-specchi-camilleri-primo-in-classifica/
30
Até hoje Andrea Camilleri vendeu 13 milhões de cópias traduzidas em mais de 30 línguas em todo o
mundo. A série de TV O comissário Montalbano, baseada nos romances de Andrea Camilleri, protagonizada
por Luca Zingaretti, com direção de Alberto Sironi, no ar pela Rai 1, desde 1998, atingiu níveis de audiência
recorde. (Tradução da autora)
31
http://archiviostorico.corriere.it/2007/novembre/13/Bye_bye_America_bestseller_torna_co_9_071113035.s
htm
32
Gentil senhora, do romance Il birraio di Preston foram impressas, de 1995 até hoje, cerca de 500 mil
cópias. Trata-se somente das edições Sellerio, excluídas, portanto, as edições reservadas às bancas, junto
com jornais e revistas, book club etc... Com os melhores votos para a sua tese (que gostaremos de receber) e
muitos cordiais cumprimentos. Sellerio editore
56
No que diz respeito às traduções publicadas no Brasil, foi uma tarefa difícil
obter o número exato dos títulos traduzidos e da tiragem de cada um deles. O
grupo editorial Record nos enviou o número total dos títulos vendidos até o dia 13
de dezembro de 2011, que foi de 60.195 livros.33 Atualmente, encontram-se no
catálogo da editora 21 títulos, entre os quais A ópera maldita, título atribuído à
tradução brasileira de Il birraio di Preston, feita por Giuseppe D'Angelo e Maria
Helena Kühner.
A página web www.vigata.org, criada por leitores-fãs de Camilleri, reúne
um número considerável de informações sobre o autor, que são atualizadas
frequentemente: bibliografia, número de livros vendidos, série televisiva inspirada
em suas obras, bem como os prêmios que lhe foram conferidos, dos quais
destacamos os de 2011: prêmio Orio Vergani, prêmio Letterario Castelfiorentino e
prêmio Fondazione Campiello.
O escritor nasceu em Porto Empendocle, província de Agrigento, em 1925.
Atuou como diretor, autor de teatro e televisão, em algumas das mais conhecidas
produções policiais da televisão italiana, cujos protagonistas eram o tenente
Sheridan e o comissário Maigret. Posteriormente, passou a se dedicar mais
intensamente à atividade de escritor. É autor de importantes romances de
ambientação siciliana nascidos de seus estudos sobre a história da ilha. Mas seu
grande sucesso chegou com a criação do comissário Montalbano, protagonista de
uma série de romances que não abandonam a ambientação e atmosfera siciliana,
presente em praticamente tudo o que o autor escreve.
A obra literária de Camilleri tem como ponto inicial o ano de 1978, quando
da publicação do romance Il corso delle cose, pela editora Lalli. Dois anos depois,
seria a vez de Un filo di fumo, publicado pela editora Garzanti. Seu terceiro livro,
La strage dimenticata, sairia apenas quatro anos mais tarde, e o quarto, La
stagione della caccia, aguardaria um tempo ainda maior, oito anos, sendo
publicado em 1993. Foi a partir desse ano que sua produção ganhou um ritmo
33
Adriana Fidalgo - Imprensa - Ed. Record
57
mais acelerado, e a publicação de La forma dell'acqua (1994) deu vida ao
comissário Salvo Montalbano, que traria notoriedade e um estrondoso sucesso e
visibilidade à obra do escritor.
Seu sucesso de público, que se reflete na grande quantidade de romances
vendidos, de obras adaptadas para a TV, as traduções em muitos idiomas, não
foram suficientes para trazer ao autor e a sua obra o prestígio da crítica italiana.
Apesar de suas obras receberem crítica desfavorável dos mais renomados
teóricos da literatura italiana contemporânea e, também, de não figurarem nas
listas Canônicas, os romances de Andrea Camilleri já foram contemplados com
inúmeros prêmios e menções dos mais diversos tipos. E, embora haja certa
dificuldade na obtenção de crítica científica e acadêmica sobre autor e obra,
diversos sites oferecem informações detalhadas sobre a produção de Camilleri,
que incluem a cronologia de suas publicações, temáticas dos romances, prêmios
recebidos, críticas e, até mesmo, obras que ainda estão em fase de preparação.
Dentre os sites, destaca-se o www.vigata.org, integralmente dedicado ao autor e
a sua produção, pois, além de tratar dos romances, também hospeda páginas
sobre tudo o que Camilleri já produziu e pretende fazer.
Ao longo dos anos, a produção de Andrea Camilleri ganhou volume; o
número de obras publicadas aumentou de maneira significativa. Somente na
última década, dos anos 2000, foram publicados cinquenta e cinco livros, sendo
que o ano de 2009 assistiu ao maior montante publicado, nove livros, entre
romances e ensaios, um deles intitulado Un onorevole siciliano. Le interpellanze
parlamentari di Leonardo Sciascia, o que demonstra a variedade de temas pelos
quais o autor transita. A crítica baseia-se nesse grande volume de obras
publicadas, para reforçar a tese de que o que Camilleri produz não é literatura,
mas
uma
“subliteratura”,
destinada
apenas
ao
entretenimento
e,
consequentemente, às vendas.
Vários nomes ligados à critica literária italiana já exprimiram opinião sobre
o autor. No artigo “Hanno detto di lui” (Disseram sobre ele), disponível em
www.vigata.org, alguns atribuem valor à produção de Camilleri; outros tecem
58
críticas negativas, com a justificativa dos motivos pelos quais atribuem pouco
valor ao autor e à sua produção. Entre os críticos “pró-Camilleri” encontram-se: o
escritor Carlo Bo, que ressalta a qualidade literária da obra do nosso autor,
comparando-o a Simenon e Graham Greene; Manuel Vasquez Montalban,
multifacetado escritor espanhol, morto em 2003, aponta a influência do teatro nos
textos de Camilleri; Roberto Cotroneo, crítico literário e escritor, mais
comedidamente, afirma que “Camilleri è uno scrittore di buon talento”; e Carlo
Fruttero, tradutor e escritor torinês, também o compara a Simenon. Entre os
críticos que se posicionam do lado oposto, citamos nomes de relevo no panorama
da crítica como Giulio Ferroni, Pietrangelo Buttafuoco e Massimo Onofri. Abaixo
transcrevemos a opinião desses teóricos.
Giulio Ferroni, professor universitário, crítico literário e escritor, afirma:
"Camilleri
è
troppo
accomodante,
troppo
disincantato,
troppo
privo
34
d’indignazione." "Non è uno scrittore importante del novecento."
Pietrangelo Buttafuoco, jornalista e escritor, se exprime, em dialeto:
Minchia, chi camurria stu settantino. Era un cristiano pacifico,
scrivia sceneggiaturi pi Megrette… A sira turnava a casa,
s’assittava cu na buttigghia di vinu, un piattu d’alivi e un piezzu di
pani, e s’arricriava a scriviri minchiati, ca quannu i scrivia ridia
sulu sulu. Nun putia continuare a scriviri minchiate a so casa, pi
so mugghieri, i mso figghi e i so niputi?"35
E Massimo Onofri, crítico literário, é duro em sua crítica:
Andrea Camilleri? Un autore che ha realizzato «un’abilissima
operazione di mercato», i cui romanzi non hanno «nessuna
necessità espressiva» e la cui scrittura è caratterizzata da un
dialetto
«esornativo,
cautamente
lessicale,
ancora
rassicurante».36
34
“Camilleri é demasiadamente acomodante, desencantado demais, excessivamente desprovido de
indignação.” “Não é um escritor importante do século XX.” (Tradução da autora)
35
"Tolo, que mala é este septuagenário. Era um cristão pacífico, escrevia roteiro para Megrette… À noite
voltava para casa, matava a sede com uma garrafa de vinho, um prato de azeitonas e um pedaço de pão, e se
punha a escrever tolices, e quando as escrevia, ria sozinho. Não podia continuar a escrever tolices em sua
casa, para sua mulher, seus filhos e seus netos?" (Tradução da autora)
36
Andrea Camilleri? Um autor que realizou “uma habilíssima operação de mercado”, cujos romances não
possuem “nenhuma necessidade expressiva” e cuja escritura é caracterizada por um dialeto “exornativo,
cautamente lexical, ainda reservado”. (Tradução da autora)
59
A tese de que os romances de Camilleri constituem um produto destinado a
atender o mercado, e o entretenimento puro e simples, seria justificável, devido à
soma de fatores como a quantidade de romances publicados em curto período de
tempo e o grande volume de vendas, conforme apontamos anteriormente. Porém,
o real motivo de tanto sucesso, com direito a adaptações de suas obras, tanto
para o teatro quanto para a televisão, parcerias com outros escritores, ainda
permanece sem resposta definitiva. Autores como Ornella Palumbo procuram,
através de obras dedicadas ao escritor siciliano, desvendar tal fenômeno. Em seu
livro L’incantesimo di Camilleri a autora procura decifrar as causas do fascínio,
dell’incantesimo que Camilleri e sua obra exercem sobre seus leitores. A autora
trata das temáticas abordadas pelo autor, transitando por diversos romances de
Camilleri, aborda os narradores, a influência do teatro em sua produção e dá
destaque a Montalbano e, com ele, a toda a sicilianidade encontrada na narrativa
camilleriana, passando pelas paisagens, cultura, comida, personagens.
As polêmicas em que o autor se encontra envolvido parecem pouco
interessar à parte mais importante nesse processo: o leitor. Prova disso é o
sucesso internacional conquistado pelo autor, a grande quantidade de livros
traduzidos, a adaptação de suas narrativas a outros tipos de arte, além do número
expressivo de trabalhos acadêmicos, artigos e resenhas publicados. Ousamos
afirmar, inclusive, que existe um tipo de leitores de Camilleri, que Palumbo
procura classificar já na introdução de seu livro:
Noi Camilleròmani (Camilleròfili no, non rende), di certo
Camilleròpati, forse anche Camilleròfagi, siamo una moltitudine,
felicemente trasversale quanto a età, sesso, estrazione socioculturale e nazionalità. Mi chiedo: dov’è la “magarìa”:? dove le
molle di questa passione collettiva? che incantesimo ci ha fatto
Camilleri? perchè è diventato un caso, cos’è il caso Camilleri?
(PALUMBO, 2005: 11)37
37
Nós Camelliromaníacos (Camellerófilos não, não serve), de certo Camilleropatas, talvez também
Camillerófagos, somos uma multidão, felizmente transversal quanto à idade, sexo, estrato sociocultural e
nacionalidade. Me pergunto: onde está a magia? onde estão os impulsos desta paixão coletiva? Que
encantamento nos fez Camilleri? Por que se tornou um caso; o que é o caso Camilleri? (Tradução da autora)
60
A partir do texto supracitado, podemos observar que, semelhantemente ao
romance policial, Camilleri possui ao redor de si um encantamento que, embora
real e comprovado, seja pelos números de livros publicados, estimativas de
leitores ao redor do mundo ou livros traduzidos, seja pelas palavras de Palumbo,
permanece ainda encoberto por algum tipo de mistério, sob um véu, como
acontece com o romance policial, fato explicitado por Sandra Lúcia Reimão em O
que é Romance Policial?
Ao final do livro, Ornella reafirma a força do autor junto ao público,
reforçando ainda a ideia de que, ao contrário do que afirmam os críticos citados
anteriormente, a literatura de Camilleri tem, sim, algo a nos dizer, tratando-se de
uma escrita autêntica, capaz de resgatar o homem contemporâneo, devolvendolhe as raízes perdidas em algum ponto da história. Afirma Palumbo (2005: 118)
Se in dieci milioni di lettori andiamo a comprarci Camilleri, vuol
dire non che non abbiamo voglia di pensare, ma il contrario: vuol
dire che Camilleri ha delle cose da dirci, la cui autenticità ci
coinvolge profondamente. Perché un po’ tutti noi, nel mondo
globalizzato, siamo figli, o nipoti, o pronipoti di espropriati, di
emigranti: non solo nel senso storico, ma anche in quello
psicologico legato alle dinamiche del quotidiano. (2005: 118)38
Esse sentimento de recuperação pode estar ligado ao conteúdo das obras,
aos elementos culturais que indentificamos como nossos, talvez à justiça que, de
uma forma ou outra, acaba acontecendo na ficção e que, por vezes, não ocorre
no mundo “real”, ou, ainda, à forma como a escrita de Camilleri pode ser
atemporal, verossímil, como ocorre em Il birraio, no qual nos identificamos com as
personagens, vivenciamos seus dramas como se fossem nossos.
Ornella Palumbo traz uma nova definição, uma tentativa de expressão do
sucesso de Camilleri, que é o reencontro do homem perdido, o retorno ao lar,
ideia reforçada no trecho citado abaixo, sempre de Palumbo (2005: 118):
38
Se nós, dez milhões de leitores, vamos comprar Camilleri, não significa que não temos vontade de pensar,
mas, ao contrário, quer dizer que Camilleri tem coisas a nos dizer, cuja autenticidade nos envolve
profundamente. Porque todos nós, no mundo globalizado, somos um pouco filhos, ou netos, ou bisnetos de
emigrantes: não apenas no sentido histórico, mas também no sentido psicológico, ligado às dinâmicas do
cotidiano. (Tradução da autora)
61
Nella narrativa di Camilleri, noi sentiamo profumo di casa.
Chiariamo subito: non leggiamo Camilleri per nostalgia, né per
sentirci consolati, ma perché in quelle pagine passa un senso
propositivo, operativo, l’ipotesi di un possibile figurato ritorno.39
E temos ainda a figura do super-herói, encarnada no detetive, e, nesse
caso, em Montalbano, o mais célebre de todos:
Montalbano è l’uomo che, dopo i sogni e le rovine del
Sessantotto, noi potremmo essere, a condizione di non
patteggiare compromessi con la nostra verità. Forse, Montalbano
è come vorremmo essere e non siamo, con buona pace dei sensi
di colpa. Poche e chiare le regole cui attenersi: la fedeltà a se
stessi, il rispetto e la difesa di un’etica civile, la cultura, i sani
innocenti piaceri dell’esistenza [...] (2005:119)40
Esse detetive, diferente do clássico, porém mais próximo do homem
comum, pode ser um dos elementos narrativos que aproximam o leitor à obra,
que nos despertam o interesse pela escrita de Camilleri.
A obra de Andrea Camilleri tem a Sicilia como centro de onde ele vê o
mundo. Em sua obra se afirma a identidade sícula: a diversidade cultural, na qual
a culinária ocupa espaço de destaque, e, principalmente, a questão dialetal, que
implica a distinção de uso da língua nas relações de poder. Mesmo em seus
romances classificados como históricos, Un filo di fumo (1980), La strage
dimenticata (1984), La stagione della caccia (1992), La bolla di componenda
(1993), Il birraio di Preston (1995), La concessione del telefono (1998), La mossa
del cavallo (1999), Il re di Girgenti (2001), La presa di Macallé (2003), a presença
siciliana é marcante, muitas vezes assumindo a função de personagem. A
imaginária Vigata é a cidade siciliana por excelência, palco de todas as histórias,
circunscrição do modo siciliano de ser.
39
Na narrativa de Camilleri, nós sentimos perfume de casa. Esclarecemos logo: não lemos Camilleri por
saudade, nem para nos sentirmos consolados, mas porque naquelas páginas passa um sentido propositivo,
operativo, a hipótese de um possível retorno figurado. (Tradução da autora)
40
Montalbano é o homem que, depois dos sonhos e ruínas de 1968, nós podemos ser, sob a condição de não
pactuar compromisso com a nossa verdade. Talvez, Montalbano seja como queremos ser e não somos, com
os sentimentos de culpa apaziguados. Poucas e claras regras às quais se ater: a fidelidade a si mesmos, o
respeito e a defesa de uma ética civil, a cultura, os inocentes e saudáveis prazeres da existência. (Tradução
da autora)
62
Em seus romances “históricos” sempre se encontram presentes os
costumes das épocas ali representadas, seja da Idade Média, como em I re di
Girgenti, com a representação da vida difícil dos camponeses em contraste com a
dos príncipes, seja na oitocentesca Vigàta de Il birraio di Preston, com as relações
de poder e conflitos dos grupos favoráveis e contrários à situação política vigente
ou, ainda, naquela habitada por Montalbano e os numerosos romances onde ele é
protagonista, onde vemos uma Sicília globalizada, inserida no mundo virtual que
até mesmo Catarella, o atrapalhado auxiliar de Montalbano, é capaz de acessar.
Outro elemento de importância na obra de Camilleri e que, assim como a
língua siciliana, faz parte da estética do autor, é a música, inclusive encontrada
em suas escolhas lexicais. Além de Il birraio di Preston, o corpus do nosso
estudo, citamos La voce del violino, romance no qual a música constitui uma
temática fortemente explorada.
Em La voce del violino, o quarto romance de Andrea Camilleri, a
personagem Salvo Montalbano assume o papel de protagonista. A trama se
desenvolve a partir do misterioso assassinato de Michela Licalzi, uma belíssima
jovem encontrada completamente nua sobre a cama de sua mansão, recémconstruída em Vigàta.
Montalbano descobre o crime quase por acaso, após colidir com um carro
que estava estacionado. O Comissário deixa um bilhete ao proprietário do
automóvel, para contato, e, quando volta ao local do acidente, dois dias depois,
encontra a mesma cena. Percebe que ninguém passara para buscar aquele
veículo. Desconfiado, resolve investigar o porquê de o carro estar abandonado e
acaba por descobrir o corpo de Michela. Começa, então, a investigação oficial.
Descobre que a jovem era casada com Emanuele Licalzi, médico, muito mais
velho do que ela.
Ao Comissário o marido afirma que havia amor na relação do casal, mas
um amor do tipo pai/filha; o casamento era de conveniência, uma vez que Licalzi
era impotente. O marido sabia, inclusive, que sua esposa mantinha
relacionamentos extraconjugais, em especial com Guido Serravalle, o dono de
um antiquariato, por quem Michela sentia forte atração.
63
Um terceiro homem aparece na história: Maurizio di Blasi, um jovem
estudante que nutria um amor, jamais correspondido, por Michela. No limiar de
sua loucura, Maurizio passa a perseguir Michela e desaparece quando do seu
assassinato, o que acabou por apontá-lo como um dos suspeitos do crime.
Durante as investigações de Montalbano, o Delegado, seu superior,
decide afastá-lo do caso, passando o inquérito a ser conduzido pelo chefe da
Polícia Civil. Alguns dias mais tarde, lia-se no noticiário que o assassino de
Michela Licalzi havia sido descoberto e morto, pois teria apontado uma bomba
para o chefe da investigação, ameaçando-o, enquanto gritava “- punam-me!”. O
caso foi considerado resolvido.
A aparente solução do caso não convence Montalbano, e suas suspeitas
são confirmadas, quando ele recebe a informação de que a bomba com que
Maurizio ameaçara o chefe da Polícia Civil, e por isso fora alvejado em seguida,
na verdade era seu sapato. Se ele estava desarmado, porque os policiais o
haviam matado?
Mesmo afastado do caso, o Comissário continua sua investigação
paralelamente e interroga todas as pessoas próximas à senhora Licalzi. Surge,
então, uma misteriosa fita com imagens da morte de Maurizio di Blasi, onde fica
evidente que ele não ameaçara os policiais. Após essa revelação, a investigação
é colocada em xeque e volta ao início. Ernesto Panzacchi, o chefe da Polícia
Civil é afastado de suas funções e o Delegado restitui a Montalbano o comando
das investigações do assassinato.
Uma nova pista surge, quando uma amiga de Michela, Clementina Vasile
Cozzo, procura o Comissário e conta sobre o concerto que o maestro Cataldo
Barbera daria em homenagem à falecida. Ao conversar com Barbera,
Montalbano descobre que era amigo de Licalzi e que compartilhavam o gosto
pela música. Descobriu, ainda, que Michela possuía um violino, herdado do
bisavô, mas que nunca tinha dado importância ao possível valor do instrumento,
um legítimo Andrea Guarnieri, de valor inestimável. Era a peça que faltava para
o Comissário desvendar o mistério.
Montalbano procura por Guido Serravalle e lhe conta, fazendo hipóteses,
tudo o que, possivelmente, acontecera com ele e Michela. Na verdade,
64
Serravalle tinha uma grande dívida provinda de jogos de azar e Michela
falsificava as despesas da construção da mansão, a fim de conseguir dinheiro
para ajudá-lo. Mas, nem toda a ajuda da moça fora suficiente para saldar as
dívidas de Serravalle, que, então, decidiu assassinar a amante e roubar o
violino, para poder se livrar de seus credores. No entanto, por ironia do destino,
o violino roubado era um instrumento de pequeno valor, que o maestro Barbera
havia deixado com Michela enquanto ele estivesse com a posse do valioso
Guarnieri. Montalbano consegue desvendar o mistério do assassinato, unindo os
fios da trama e harmonizando-os como as cordas do violino.
Nesse romance, podemos observar que a música, representada pelo
instrumento musical, o valiosíssimo violino herdado por Michela e, ainda, a
presença do maestro Cataldo Barbera, são elementos importantes na trama. O
gosto pela música compartilhado entre o maestro e Michela, a amizade de
ambos e o empréstimo do violino levam o comissário à solução do mistério, à
descoberta do verdadeiro assassino da jovem. E é exatamente durante o
concerto que homenagearia Michela que Montalbano, finalmente, consegue
ouvir a “voz” do violino, que lhe recita, sussura a seus ouvidos a verdade:
E dopo manco cinque minuti il commissario principiò a provare
una sensazione stramma che lo turbò. Gli parse che a un tratto il
suono del violino diventasse una voce, una voce di fìmmina, che
domandava d’essere ascoltata e capita. Lentamente ma
sicuramente le note si stracangiavano in sillabe, anzi no, in fonemi,
e tuttavia esprimevano una specie di lamento, un canto di pena
antica che a tratti toccava punte di un’ardente e misteriosa
tragicità. Quella commossa voce di fìmmina diceva che c’era un
segreto terribile che poteva essere compreso solo da chi sapeva
abbandonarsi completamente al suono, all’onda del suono. Chiuse
gli occhi, profondamente scosso e turbato. Ma dentro di sé era
macari stupito: come aveva fatto quel violino a cangiare così tanto
di timbro dall’ultima volta che l’aveva sentito? Sempre con gli occhi
chiusi, si lasciò guidare dalla voce. E vide se stesso trasìre nella
villetta, traversare il salotto, raprire la vetrinetta, pigliare in mano
l’astuccio del violino... Ecco cos’era quello che l’aveva tormentato,
l’elemento che non quatrava con l’insieme! La luce fortissima che
esplose dintra la sua testa gli fece scappare un lamento.
(CAMILLERI, 1997: 180-81)41
41
E, em menos de cinco minutos, o comissário começou a experimentar uma sensação estranha que o
perturbou. Pareceu-lhe que, de repente, o som do violino se tornasse uma voz, uma voz de mulher, que pedia
para ser ouvida e entendida. Lentamente, mas seguramente, as notas se transformavam em sílabas, não, em
fonemas, e todavia exprimiam uma espécie de lamento, um canto de pena antiga que, por vezes, tocava
pontas de uma ardente e misteriosa tragicidade. Aquela comovida voz de mulher dizia que havia um segredo
65
Ao ouvir o testemunho que a música acabara de fazer, Montalbano já não
tinha qualquer dúvida sobre a autoria e a motivação do crime. Fora capaz de
ligar as provas e concluir que Michela havia sido assassinada exatamente por
causa daquele violino, que o próprio marido dissera a Montalbano se tratar de
herança familiar.
Com esse evento, Montalbano deduziu que essa informação talvez fosse
conhecida por mais alguém, e intuiu que se tratasse de Guido Serravalle, o
amante. A fim de confirmar suas suposições, Montalbano o procura no hotel
onde se hospedava, e através de uma história muito parecida com a vivida por
Michela e Serravalle, consegue confirmar suas suspeitas. O amante era, de fato,
o assassino que depositara no violino todas as esperanças de pagar suas altas
dívidas.
Na sequência, trataremos da cidade imaginária de Camilleri, Vigàta, palco
onde se desenvolvem as tramas engendradas por nosso autor.
2.2.1 A edificação de Vigata
Os romances de Andrea Camilleri são ambientados em Vigáta, cidade
imaginária, situada na também fictícia província de Montelusa, que corresponde a
Porto Empendocle, cidade da província de Agrigento, onde o escritor nasceu. Em
todos os seus romances, como já dissemos, encontra-se a forte presença da
cultura siciliana, na caracterização das personagens, na descrição do ambiente,
na questão da língua e na abordagem de temas do mundo contemporâneo, como,
por exemplo, a violência, as drogas, a máfia, a imigração clandestina.
terrível, que somente poderia ser compreendido por quem sabia abandonar-se completamente ao som, à onda
do som. Fechou os olhos, profundamente abalado e perturbado. Mas, internamente, estava maravilhado:
como aquele violino tinha feito para mudar tanto assim de timbre desde a última vez que o havia ouvido?
Sempre com os olhos fechados, se deixou guiar pela voz. E viu-se entrar na mansão, atravessar a sala de
visitas, pegar o estojo do violino com as mãos... Isso, era aquilo que o havia atormentado, o elemento que
não combinava com o conjunto! A luz fortíssima, que explodiu dentro da sua cabeça o fez deixar escapar um
lamento. (Tradução da autora)
66
A influência exercida pelos romances de Camilleri na Sicília é tão forte que,
a partir 2003, a cidade de Porto Empendocle passou a ser reconhecida como
Porto Empendocle-Vigàta, em homenagem à cidade imaginária do autor.
Prossima uscita, Vigata. Nessuna perplessità se, viaggiando per
le strade della Sicilia, vi capiterà di intravedere un cartello con
l'indicazione della città di Salvo Montalbano. Perché Andrea
Camilleri ha dato il suo benestare al comune di Porto Empedocle,
che gli aveva chiesto di poter adottare, come secondo nome,
quello del paese in cui vive e lavora il celebre commissario. 42
Porém, em 2009, a decisão foi revogada, mas certamente Porto
Empendocle jamais deixará de ser Vigàta para os camillerianos espalhados pelo
mundo.
Sobre a Vigàta de Camilleri, de Montalbano e de todas as personagens que
a habitam, Luca Crovi escreve:
Scrutando una delle tante cartine stradali vi sarà impossibile
trovare Vigàta. Eppure milioni di italiani potranno confessarvi di
conoscerla, di esservi stati almeno una volta in compagnia del
commissario Salvo Montalbano, in villeggiatura per qualche ora o
magari per qualche giorno. Stiamo parlando di una città situata,
secondo Camilleri, tra Porto Empedocle e Agrigento in una delle
zone più solari della Sicilia. Come ha scritto un critico letterario,
potremmo definirlo “il centro più inventato della Sicilia più tipica”.
(CROVI, 2002: 183-84)43
Vigàta, a cidade criada por Andrea Camilleri, foi transformada, de acordo
com a definição de Luca Crovi, numa verdadeira capitale del delitto. Dentro dos
limites da cidade estão reunidos os heróis, os vilões, as vítimas e todas as
personagens que povoam os romances do autor, sendo o palco principal, onde
todas as narrativas de Camilleri estão ambientadas. O êxito alcançado pelos
42
http://www.repubblica.it/online/cronaca/vigata/vigata/vigata.html Próxima saída, Vigata. Nenhuma
perplexidade se, viajando pelas estradas da Sicília, avistar um cartaz com a indicação da cidade de Salvo
Montalbano. Porque Andrea Camilleri deu o seu consentimento à comuna de Porto Empedocle, que lhe tinha
pedido para adotar, como segundo nome, o lugar em que vive e trabalha o célebre comissário. (Tradução da
autora)
43
Escrutando um dos tantos mapas rodoviários, será impossível encontrar Vigàta. Mesmo assim, milhões de
italianos poderão confessar conhecê-la, de ter estado ali ao menos uma vez em companhia do comissário
Salvo Montalbano, em veraneio por algumas horas ou, talvez, por alguns dias. Estamos falando de uma
cidade situada, segundo Camilleri, entre Porto Empedocle e Agrigento, em uma das zonas mais solares da
Sicília. Como escreveu um crítico literário, poderemos defini-lo "o centro mais inventado da Sicília mais
típica." (Tradução da autora)
67
romances do autor fizeram de Vigàta mais que uma cidade existente apenas nos
livros; o impacto causado nos leitores foi tamanho que, como lemos acima,
chegou a causar a mudança de nome de Porto Empendocle para Porto
Empendocle-Vigàta, e independentemente disso, Vigàta já passou a existir de
maneira definitiva no mundo da literatura e nas outras formas artísticas que
reproduzem a obra camilleriana, como a televisão e o teatro.
A abrangência da influência literária na topografia siciliana vai além de
Porto Empedocle-Vigàta, atingindo também outras cidades, conforme relata Crovi
(2002: 183-84):
Se volessimo controllare infatti la toponomastica ci
accorgeremmo subito a colpo d’occhio che alle immaginarie
Fela, Fiacca, Montelusa, Montereale, Raccadali, Sampedusa,
descritte da Camilleri corrispondono le reali Gela, Sciacca,
Agrigento, Realmonte, Raffadali, Lampedusa.44
O período da história vigatense contada nas páginas de Camilleri vão do
século XIX ao século XXI. Nos limites de Vigàta não se concentram somente os
delitos e virtudes de todo o mundo, mas a própria história do homem do século
XIX ao século XXI.
A Vigàta de Camilleri está dividida entre dois grupos de romances, os que
frequentemente são considerados “históricos” e os “atuais ou contemporâneos”,
protagonizados por Salvo Montalbano, o mais famoso comissário fictício italiano
que, apesar de não atuar no Il birraio di Preston, o romance-rapsódia focalizado
nesta tese, merece a nossa atenção.
2.2.2 Montalbano: um policial antiinstitucional
De todos os investigadores criados por Andrea Camilleri, o mais célebre,
sem dúvida, é Salvo Montalbano. Os romances por ele protagonizados foram
44
Se quiséssemos controlar de fato a toponomástica, perceberemos rapidamente que as imaginárias Fela,
Fiacca, Montelusa, Montereale, Raccadali, Sampedusa, descritas por Camilleri correspondem às reais Gela,
Sciacca, Agrigento, Realmonte, Raffadali, Lampedusa. (Tradução da autora)
68
adaptados, em sua maioria, em filmes produzidos pela RAI, e obtiveram grande
sucesso de público e de vendas no mundo.
Intelecto privilegiado, Montalbano resolve os crimes utilizando o raciocínio
lógico, seguindo os princípios do detetive clássico, quase nunca utilizando a força
bruta. No entanto, muitas vezes, recorre à ação para solucionar os mistérios e
confirmar suas hipóteses. Mas não se trata do auxílio policial, pois, na maioria das
ocasiões, ele utiliza seus próprios meios para solucionar os crimes, seguindo seus
instintos. Age sozinho em busca de pistas, ou conta com o auxílio de seus amigos
particulares, conforme veremos mais adiante.
Embora várias das características atribuídas ao detetive clássico sejam
econtradas em Montalbano, como seu poder de elucidar mistérios a partir da
observação e raciocínio, bem como o fato de recorrer o mínimo possível à ação e
à força bruta, em diversos momentos ele rompe com essas características. Ao
contrário do detetive clássico, cuja vida particular é quase sempre um mistério
para o público, o leitor dos romances de Camilleri é informado de praticamente
todos os aspectos da vida de Salvo Montalbano, desde sua infância difícil, visto
que cresceu sem mãe, até seu eterno noivado com Livia, que vive em
Boccadasse, em Gênova.
Há um conflito entre o investigador e o homem.
Na vida profissional,
Montalbano é um homem bem-sucedido, de caráter irrepreensível, possuindo
nome e renome em seu meio. Já a vida privada de Montalbano é marcada pela
indefinição de seu relacionamento com Livia. Embora ele demonstre amar a
noiva, em momento algum observamos seu desejo de casar-se com ela. Esse
fato é reforçado em diversas ocasiões, nas quais ele sempre procura esquivar-se,
quando o assunto é casamento ou mesmo um passo mais sério na relação.
Apenas em Il ladro di Merendine e no romance que o segue, La voce del
violino, constatamos que o comissário faz um movimento com vistas a resolver
sua vida afetiva, pois, na tentativa de obter a adotação de um menino, Francois,
que conhecera no primeiro romance, Montalbano leva a sério a ideia de casar-se
com Livia e constituir uma família, para a felicidade da noiva, que sonhava com o
casamento e a ideia de ter um filho. Entretanto, o sonho do casal não se
concretiza. Enquanto os dois procuravam oficializar a união civil, o menino fica
aos cuidados da irmã de Mimì Augello, um subordinado a Montalbano. Tal
69
convivência faz que Francois não queira mais se afastar da família de Augello,
onde encontrara pais e irmãos, ponha um ponto final à tentativa de adoção por
parte de Salvo e Livia. Embora o matrimônio nunca se concretize, o
relacionamento dos dois pode se acompanhado ao longo dos anos, através dos
romances.
Outra característica marcante na personalidade de Montalbano é seu amor
pelo mar. Em La prima indagine di Montalbano, conto que narra como se deu a
sua promoção como comissário, o leitor acompanha toda a expectativa havida em
torno do fato: a ansiedade de Montalbano, sua alegria ao receber a notícia sobre
o local em que atuaria – Vigàta –, cidade de sua infância, até sua mudança para
uma casa em Marinella, que é um dos cenários importantes em todos os
romances da saga Montalbano.
Além do espaço geográfico, a culinária representa outro ponto de destaque
nos romances nos quais Montalbano é protagonista. A relação do detetive com a
boa mesa é estreita; o momento da refeição é sagrado e segue um verdadeiro
ritual. Comer, para ele, não significa apenas nutrir-se, mas representa um
momento de prazer, que deve ser apreciado em silêncio, ora em seu restaurante
preferido, onde mantém uma relação de amizade e confiança com o chefe, ora
em sua casa, em Marinella, quando, sentado à varanda, saboreia as
especialidades que Adelina, sua empregada, lhe prepara.
Vale ressaltar que o delegado Puglisi, o detetive de Il birraio di Preston, em
alguns momentos na narrativa, também não segue o protocolo policial. Assim
como acontece nas aventuras protagonizadas por Montalbano, o leitor
acompanha a jornada de Puglisi, seu caráter, seu compromisso com a verdade e
a busca incessante para alcançá-la, sua luta contra a corrupção de seus
superiores e, ainda, seus delitos. Puglisi também mente e engana, por amor, indo
contra seus deveres de policial, ao alterar o cenário da morte da viúva e seu
amante, tudo por amor a Agatina, irmã da falecida, que se desespera ao constatar
a iminente desonra que recairia sobre a imagem de sua irmã, tão logo fosse
divulgada as circusntâncias de sua morte. Esse deslize acaba manchando a
honra de Puglisi, questionada por um anônimo, que escreve ao marido de
Agatina.
70
Observamos que o modelo de detetive instituído na tipologia do romance
policial, onde o detetive perfeito é racional pura e simplesmente, não se reflete
nas personagens camillerianas. Temos, sim, brilhantes detetives que, porém, são
suscetíveis às paixões e aos defeitos inerentes ao homem comum, sem que isso,
no entanto, afete a capacidade investigativa dessas personagens.
Apresentado o autor e sua produção poética, na sequência, nos
acercaremos da obra escolhida para nossa análise: Il birraio di Preston.
71
CAPÍTULO III
IL BIRRAIO DI PRESTON: UMA RAPSÓDIA EM GIALLO
Il birraio di Preston (1995) é considerado a obra-prima de Andrea Camileri,
baseada em fatos reais, extraídos da obra Inchiesta sulle condizioni della Sicilia
del 1875-76. Está ambientada na cidade fictícia de Vigàta, à qual dedicamos o
item 2.2.1, no ano de 1875, a trama tem como ponto de partida um incêndio
ocorrido no Teatro Re d’Italia, que ocorre exatamente no dia de sua inauguração,
ocasião em que seria apresentada a ópera Il birraio di Preston, de Luigi Ricci.
Camilleri constrói sua narrativa de maneira não-linear. Embora o leitor
venha a obter todas as informações, no decorrer do romance, essas são
apresentadas paulatinamente, em capítulos fechados. Um dos recursos utilizados
é o do flashback. Os capítulos se intercalam entre os que descrevem
acontecimentos anteriores ao incêndio, os que apresentam personagens e
situações e, ainda, os que se referem aos fatos ocorridos no pós-incêndio.
Iniciando o estudo de Il birraio di Preston, convém justificar a proposta do
subtítulo da nossa tese, “rapsódia in giallo”. Assim, vejamos o significado do
termo “rapsódia”, a partir do verbete encontrado no Dicionário de Termos
Literários de Carlos Ceia45:
Originário do grego rhapsodía, significando “canção costurada”
(em latim, rhapsodia; em alemão, rapsodie; em espanhol,
rapsodia; em francês: rapsodie; em inglês, rhapsody; em italiano,
rapsodia ), o termo “rapsódia” designa, desde a Grécia arcaica,
tanto cada um dos livros de Homero (século VIII a.C.) quanto os
poemas épicos cantados por alguém que não fosse o criador dos
poemas, como o aedo o era. Rapsodo (em grego clássico
ραψῳδός / rhapsôidós) é o nome dado a um artista popular ou
cantor que, na antiga Grécia, ia de cidade em cidade recitando
poemas, principalmente epopéias. Diferia-se do aedo, que
compunha os próprios poemas e os cantava, acompanhado de
um instrumento (lira ou fórminx). O rapsodo não se fazia
acompanhar de nenhum instrumento e, durante a declamação,
ficava geralmente em pé e segurava um ramo de loureiro,
símbolo de Apolo. Platão, no seu tratado de poesia Íon, explica a
Sócrates a apresentação de uma rapsódia.
45
http://www.edtl.com.pt/index.php option=com_mtree&task=viewlink&link_id=1534&Itemid=2.
72
O significado de “canção costurada” muito se assemelha ao tipo de
narrativa que se encontra em Il birraio di Preston, que é composto por um
conjunto de várias pequenas histórias que, juntas, contam uma história maior.
Conforme a própria proposta narrativa ali apresentada, a partir de um único
narrador, Gerd Hoffer poderia ser considerado um rapsodo, pois a ele coube unir
os pedaços de história vivenciados por outras personagens:
No código musical, “rapsódia” nomeia, portanto, toda fantasia
instrumental que utiliza temas e processos de composição
improvisada, tirados de cantos tradicionais ou populares, de que
são exemplos as rapsódias húngaras de Franz Liszt (18111886). Justaposição de escassa unidade formal de melodias
populares ou folclóricas e de temas conhecidos, extraídos com
frequência de óperas e operetas, as rapsódias caracterizam-se
por terem apenas um movimento, mas podem integrar fortes
variações de tema, intensidade, tonalidade, sem necessidade,
todavia, de seguir uma estrutura pré-definida. Com uma forma
mais livre que as variações, uma vez que não há necessidade de
se repetirem os temas, podem-se, ao sabor da inspiração, criar
novos temas [...] (Idem)
Diversos dos elementos acima mencionados encontram-se presentes em Il
birraio de Preston. A variação de temas é uma constante em toda a narrativa.
Embora o percurso seja o mesmo, isto é, contar a história da inauguração e
incêndio do teatro Re d’Italia, os capítulos estão dispostos de forma não-linear, a
narrativa é conduzida em cenas, ou pequenas histórias, parecendo às vezes
desconexas, dentro da história principal. Em um capítulo, por exemplo, nos
encontramos diante do teatro incendiado; no seguinte, somos transportados à
vida íntima de uma autoridade e, na sequência, assistimos Nando Traquandi
planejando os detalhes do incêndio. Embora a variação temática seja uma
constante, a narrativa se completa ao final.
A carga dramática também tem intensidade diferente em cada capítulo: uns
apresentam ligação mais estreita ao caso do incêndio, mostrando detalhes da
tragédia. Outros são mais leves, como o que narra a discussão entre os membros
do Circolo cittadino di Vigàta, ou, ainda, o que mostra as reações e os diálogos da
plateia durante a apresentação da ópera, naquela fatídica noite. A música, que é
73
tema em diversos capítulos do livro, pode ser considerada uma personagem na
trama analisada.
A condição humana é outro tema explorado: o desejo de o prefeito
expressar o seu amor, levado às ultimas consequências pelo prefeito; o drama
vivido pelo professor Carnazza, cuja esposa é bem jovem do que ele, fato que o
leva a realizar todas as vontades da mulher, pelo simples medo de perdê-la; a
sede de poder de dom Memè; o idealismo sem limites de Nando Traquandi; e,
ainda, o conflito entre o amor e o dever, vivido pelo delegado Puglisi.
A trajetória do povo vigatense é contada: cenas do cotidiano, da vida
privada, do mundo político, do movimento revolucionário dos mazzinianos estão
lado a lado, misturados, unindo-se. As diversas histórias e perspectivas dão a
unidade à rapsódia. As estruturas narrativas de Il birraio do Preston assemelhamse às de Macunaíma:
De migração semântica dá-se como singular exemplo o caso de
Mário de Andrade (1893-1945), que, no “momento épico” do
modernismo brasileiro, por ele protagonizado, e não sabendo
como classificar um texto que escrevera, durante uma semana,
em 1928, deitado numa rede, no sítio de seu “Tio” (na realidade
era seu primo) Pio, batizou de “rapsódia” seu livro Macunaíma,
o herói sem nenhum caráter, usando o mesmo estratagema de
musicista com que intitulara um texto anterior – “Amar, verbo
intransitivo, de 1927, romance por ele designado “Idílio”.
Principal romance do movimento modernista nacional,
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter emblema a cultura que
retrata: colcha de retalhos, miscelânea, mosaico, puzzle de
cores, etnias, sons, vezes e vozes.46
Elementos folclóricos, religiosos, étnicos e até fantasiosos estão lado a
lado na trama de Macunaína, de Mário de Andrade, romance que o próprio autor
classificou como rapsódia. Em Il birraio di Preston, observamos a existência de
uma miscelânea semelhante à do livro de Mario de Andrade como, por exemplo,
as diferenças culturais entre as personagens – as intenções diante de uma
mesma situação; a questão linguística, que se une à cidadania de algumas figuras
de ficção, como no caso do engenheiro alemão Hoffer, do prefeito Bortuzzi, que é
toscano, e de Nando Traquandi, romano, ou seja, três cidadãos oriundos de
cidades distintas e inseridos na realidade Siciliana.
46
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=1534&Itemid=2
74
Assim, estamos convencidos de que Il birraio di Preston também pode ser
lido como um romance rapsódico, uma vez que temas diversos estão ali
presentes. As diferentes culturas que conviviam em Vigàta, a música, a história,
os interesses políticos, os jogos de poder e até mesmo o dia-a-dia, os fatos do
cotidiano aparecem de maneira concreta na obra. É rapsódico porque conta,
denuncia, revela a realidade daquela região, no período imediatamente posterior
à Unificação Italiana, quando as pessoas ainda conviviam com duas realidades
distintas, o velho e o novo lado a lado.
Cabe informar, ao darmos início à análise da obra, que todos os textos
extraídos de Il birraio di Preston (Palermo: Sellerio, 1995) serão referenciados
somente com o ano da publicação e o número da página. Também, que a
tradução aos textos citados, transcritos da publicação brasileira da citada obra –
CAMILLERI, Andrea. A ópera maldita. Tradução de Giuseppe D’Angelo e Maria
Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004 –, receberá o mesmo
tratamento. Também, que, quando considerarmos necessário, interferiremos em
algumas soluções encontradas pelos tradutores.
O primeiro capítulo da rapsódia, “Era una notte che faceva spavento” (“Era
uma noite de dar medo”), apresenta o evento central da trama, ou seja, o incêndio
do teatro Re d'Italia. A primeira personagem a entrar em cena é o menino Gerd,
de nove anos, filho do engenheiro alemão Fridolin Hoffer. O garoto acorda no
meio da noite e se depara com um imenso clarão vindo de Vigàta. Sem entender
o que se passava, mas consciente de que o fato certamente fugia à realidade,
corre para contar a novidade ao pai que, exultante, se dirige imediatamente para
cidade, pois, além de ser engenheiro, era também inventor e acabara de criar
uma máquina de apagar chamas, a vapor. Via, portanto, nesse incêndio a
oportunidade para, finalmente, testar seu experimento:
“Mein Gott!” Fece l’ingegnere quasi senza fiatto. Poi, trattenendo
a stento, urla e vociate di gioia, di purissima felicità, febbrilmente
si vestì, raprì il cassetto grande dello scagno, ne trasse una
grande tromba dorata munita di cordone per tenerla ad armacollo
ed uscì di casa di corsa senza manco preoccuparsi di chiudere la
porta alle sue spalle. (1995: 12)47
47
"Mein Gott", exclamou o engenheiro, quase sem fôlego. Em seguida, reprimindo com esforço suas
exclamações e gritos de alegria, da mais pura felicidade, vestiu-se febrilmente, abriu o gavetão da
escrivaninha e dele retirou uma grande trombeta dourada, munida de um cordão para ser posta a tira-colo, e
saiu correndo de casa sem sequer se preocupar em fechar a porta atrás de si. (2004: 10)
75
Ao chegarem ao local do incêndio, o engenheiro e os seus homens
perceberam a gravidade da situação, e interrogaram um homem:
“Kosa essere successo?” spiò l’ingegnere.
“Dove?” spiò a sua volta l’uomo con fare gentile.
“Kome dofe? A Figàta, kosa essere successo?”.
“A Vigàta?”
“Sì” fecero tutti in una specie di coro.
“Pare che ci sia un incendio” disse l’uomo taliando verso il paese
in basso quasi a ottenere conferma.
“Ma kome è stato? Lei sa?”.
L’uomo calò le braccia, se le mise darrè la schiena, si taliò la
punta delle scarpe.
“Non lo sapete?”.
“No. Nessuno kvi lo sa”.
“Ah. Pare che la soprano a un certo punto stonò”.
E detto questo si rimise in cammino, ripigliando la posizione di
mano in alto.
“Che minchia è la soprano?” Spiò Tano Alleto, il cocchiere.
“È una donna ke kanta” spiegò Hoffer scuotendosi dallo stupore.
(1999: 15-16)48
Terminado o primeiro capítulo, a narrativa volta abruptamente a um
momento, ao que parece, bastante anterior ao incêndio: à reunião de cidadãos –
comerciantes, professores, médicos dentre outros – no clube Circolo Cittadino di
Vigàta, onde todos manifestavam insatisfação ante à decisão do prefeito, Eugenio
Bortuzzi, de encenar a ópera lirica Il birraio di Preston de Luigi Ricci na
inauguração do teatro:
48
"Que koisa acontecerr?", perguntou o engenheiro.
"Onde?", perguntou, gentilmente, olhando em torno.
"Koma, onde? Em Figàta, que koisa acontecerr?"
"Em Vigàta?"
"Sim", disseram todos, em uma espécie de coro.
"Parece que está havendo um incêndio", disse o homem olhando para o povoado abaixo como se buscasse
confirmação.
"Mas como isto acontecerr? A senhor sabe?"
O homem abaixou os braços, colocou-os atrás das costas e olhou para as pontas dos sapatos.
"Não sabe?"
"Não. Ninguém daqui saberr."
"Ah! Parece que em certo momento a soprano desafinou."
E dizendo isso, retomou seu caminho, voltando à posição anterior, com as mãos erguidas.
"Que porra de soprano é essa?", perguntou Tano Alletto, o cocheiro.
"É um mulherr que kanta", explicou Hoffer, refazendo-se da estupefação. (2004: 13-4)
76
“Però lei, cavaliere, ha ragione” ripigliò il canonico. “Ce n’è di
musica bella. E noi invece ci dobbiamo agliuttiri, volenti o nolenti,
una musica che manco sappiamo com’è solo perchè così vuole
l’autorità! Cose da pazzi! Dobbiamo fare soffrire le nostre orecchie
con la musica di questo Luigi Ricci solo perchè il signor prefetto
ordina così!”. (1995: 24)49
As personagens principais são apresentadas ao leitor a partir deste ponto,
no qual é revelada a opinião que cada um deles tem em relação não somente ao
prefeito, mas também à ópera por ele selecionada para a inauguração do teatro
da cidade. O clima de discórdia é absoluto, agravado pela naturalidade de
Bortuzzi: sendo florentino, o prefeito não é aceito pelos vigatenses, que julgam a
sua decisão de apresentar Il birraio di Preston como uma forma de ele impor seu
poder na cidade. “A quella vociata e a quella botta improvvisa, i soci del circolo
cittadino di Vigàta, “Famiglia e progresso”, sobbalzarono perché si erano fatti
nervosi dopo tre ore e passa d’accesa discussione” (1995: 17).50
O terceiro capítulo, “Avrebbe tentado d’alzare la muschittera?” (Será que
ele tentaria erguer o mosquiteiro?) introduz uma nova personagem, a senhora
Riguccio Concetta, “vedova Lo Russo”, uma jovem viúva, cujo marido morrera
afogado no mar. Ela se apaixona por um vigatense, Gáspano, que encontrou pela
primeira vez em um dia em que chegara atrasada à missa:
A un tratto la porta della controporta s’era aperta e lui era trasuto.
Mai prima l’aveva veduto, ma appena Concetta lo taliò capì che
per qualche minuto il suo timone sarebbe stato ingovernabile.
Beddru, era, beddru, un angolo di paradiso. Àvuto, biunnu e ricco
di capelli ricci, sicco sicco ma quanto era giusto in un omo sano,
un occhio cilestre come il mare e l’altro, quello di dritta, che non
c’era. Se ne stava, l’occhio ammucciato sotto la palpebra che si
era come impicciata, murata, alla parte di sotto. Però non faceva
impressione, anzi: tutta la luce dell’occhio astutato si riversava
nell’altro, lo faceva sparluccicante come una pietra priziosa, come
un faro di notte. (1995: 30)51
49
"Porém o senhor cavaliere tem razão", voltou a dizer o cônego. "Há muitas músicas lindas. E nós, pelo
contrário, temos que engolir, querendo ou não querendo, uma música que nem sabemos como é, só porque
assim quer a autoridade. Coisa de loucos! Temos que deixar nossos ouvidos sofrerem com a música desse tal
Luigi Ricci só porque o senhor prefeito assim ordena!" (2004: 22)
50
Àquele grito e àquela batida imprevista, os sócios do "Família e Progresso", clube citadino de Vigàta, se
sobressaltaram, pois já nervosos depois de três horas ou mais de uma acesa discussão. (2004: 15)
51
De repente, a divisória em frente à porta principal se abrira e ele entrara. Nunca o tinha visto antes, mas,
assim que Concetta o olhou, percebeu que por alguns instantes seu timão se havia desgovernado. Lindo, era
lindo, um anjo do paraíso. Alto, louro, e com fartos cabelos encaracolados, talhe tão esbelto quanto seria
adequado a um homem sadio, um olho celeste como o mar e o outro, o direito, inexistente. Esse olho ficava
77
A viúva e Gáspano decidem, então, se ver e marcam o encontro
justamente para o dia da inauguração do teatro Re d’Italia. O encontro acontece,
e o capítulo termina nesse ponto, porém o destino dos dois está selado e se
desdobrará em capítulos futuros.
O quinto capítulo, “Chiamatemi Emanuele!” (Chamem o Emanuele!),
apresenta duas das principais personagens da história: o prefeito Eugenio
Bortuzzi e dom Memè, este que ocupará o papel de vilão da trama. O narrador
faz, então, a descrição de dom Memè, o que ajuda o leitor a entender o seu
caráter:
Diceva la voce popolare che don Memè il sorriso non l’avesse
perso manco quando il delegato di pubblica sicurezza, cinque
anni avanti, sollevando un lenzuolo gli aveva mostrato, steso
nudo sopra un bancone di marmo, il corpo martoriato del figlio
Gnazino che non era riuscito a toccare i vent’anni. Dopo
l’autopsia, sempre con lo stesso sorriso, educatamente don
Memè aveva domandato una spiega al medico legale e questi
l’aveva ragguagliato che, a suo parere, al giovane, prima di
essere strangolato, avevano tagliato la lingua, segato le orecchie,
cavato gli occhi, asportato minchia e coglioni. Nell’ordine. E di
quell’ordine don Memè aveva pigliato accuratamente nota, su un
foglio di carta, con una matita copiativa che di tanto in tanto
bagnava con la punta della lingua. Il messaggio che quel morto
portava col modo stesso della sua morte era chiaro: chi aveva
ammazzato il picciotto lo pensava uno dalla parola facile e
sempre pronto a fottere femmine, picciotte o maritate che fossero,
a dritta e a mancina. Nei due mesi successivi, don Memé si era
dedicato ad una laboriosa transazione d’affari. Al termine della
quale, ceduta ad altri la primazia sul feudo Cantarella, aveva
ricevuto in cambio, presso una sua casa di campagna, i due
assassini del figlio, messi in condizione di non potere arriminare
manco un dito. (1995: 37-8)52
semicerrado sob a pálpebra, que havia ficado como que presa, na parte de baixo. Mas isso não dava má
impressão, ao contrário, toda a luz do olho apagado revertera para o outro, tornando-o brilhante como uma
pedra preciosa, como um farol na noite. (2004: 28)
52
A voz do povo dizia que don Memè não havia perdido o sorriso nem quando o delegado de Segurança
Pública, cinco anos antes, levantando um lençol, lhe mostrara, estendido nu sobre uma bancada de mármore,
o corpo dilacerado do filho, Gnazino, de 20 anos incompletos. Uma vez feita a autópsia, estampando o
mesmo sorriso, don Memè tinha educadamente pedido uma explicação ao médico-legista, e este havia
explicado que, a seu ver, antes de estrangularem o jovem, tinham-lhe cortado a língua, decepado as orelhas,
escavado os olhos, castrado o pênis e os colhões. Exatamente nessa ordem. E don Memè tinha tomado nota,
cuidadosamente, dessa ordem em uma folha de papel, com um lápis especial, que de vez em quando
umedecia na ponta da língua. A mensagem que aquele morto trazia, no modo como ocorrera sua morte,
estava clara: quem tinha matado o rapaz achava que ele era um desses tipos de palavra fácil e sempre
disposto a trepar com todas as mulheres, a torto e a direito, fossem elas solteiras ou casadas. Nos dois meses
que se seguiram, don Memè se havia dedicado a uma laboriosa transação de negócios, ao término do qual,
78
A narrativa continua a revelar a forma como dom Memè havia vingado a
morte do filho, e também, a mostrar a dimensão de seu poder, pois, apesar de ser
evidente sua culpa em tal vingança, ele saíra inocentado, graças ao álibi
reforçado por diversos cidadãos:
Scoperti i cadaveri ormai mangiati da cani e corvi, il delegato,
fatta una sbrigativa indagine e sempre persuaso che due più due
facessero quattro, era andato di corsa ad arrestare don Memè.
Nel giro della stessa giornata, dieci insospettabili abitanti di Varo,
a cinquanta chilometri da Montelusa, si erano precitipati a
testimoniare che il giorno del duplice omicidio don Memè era nel
loro paese, a godersi la festa di san Calogero. [...] “Ma quant’è
bella l’unità d’Italia!” aveva esclamato don Memè con un sorriso
più cordiale del solito, mentre gli si aprivano le porte del carcere.
(1995: 38-9)53
O episódio exemplifica o poder de dom Memè, que procurava potencializálo com o apoio ao prefeito na execução da ópera Il birraio di Preston. Este
capítulo trata, basicamente, dos preparativos, por parte de dom Memé e do
prefeito, dos cartazes de anúncio da inauguração do teatro e encenação da
ópera. “Rise a lungo, da solo, mentre Sua Eccellenza svolgeva il rotolo. Erano le
bozze di stampa di un manifesto che annunziava la prossima recita dell’opera Il
birraio di Preston per l’inaugurazione del nuovo teatro di Vigàta”. (1995: 41)54
Também relevante é o diálogo havido entre os dois sobre a rejeição que a
ópera sofria por parte do povo, que não desejava acatar as ordens do prefeito de
Montelusa: “Allora il problema è che quest’opera è stata voluta da lei che è il
cedendo a terceiros a prioridade sobre o feudo Cantarella, tinha recebido em troca, uma de suas casas de
campo, os dois assassinos do filho, postos em condições de não ter como levantar nem um dedo. (2004: 36)
53
Ao serem descobertos os cadáveres, já semidevorados por cachorros e corvos, o delegado, depois de uma
sumária investigação, e cada vez mais persuadido de que dois mais dois só podem ser quatro, correra a
prender don Memè. Mas, no decurso do mesmo dia, 10 insuspeitos moradores de Varo, a cinquenta
quilômetros de Montelusa, tinham vindo prontamente testemunhar que, no dia do duplo homicídio, don
Memè estava em seu vilarejo, divertindo-se na festa de São Calógero. [...] "mas como é linda a unidade
italiana!", exclamara don Memè, com um sorriso mais cordial que de costume, enquanto se abriam para ele
as portas da cadeia. (2004: 37)
54
Riu longamente sozinho, enquanto Sua Excelência desfazia o rolo. Eram as provas de um cartaz que
anunciava a próxima apresentação da ópera Il birraio di Preston, por ocasião da inauguração do novo teatro
de Vigàta. (2004: 39)
79
prefetto di Montelusa. E ai vigatesi non piace niente di quello che dicono e fanno i
montelusani”. (1995: 43)55
Dom Memè assegura ao prefeito que o povo era bom, mas não aceitaria a
imposição da autoridade “estrangeira”.
O capítulo seis, intitulado “Nella mattina del giorno in cui” (Na manhã do dia
em que o mataram), trata de uma jornada de trabalho do doutor Gammacurta,
médico da cidade, de acentuado mau-humor:
La scansione del malumore, tanto strammo in una persona
all’urbi e all’orbo cògnita come gentile e perbene, consisteva
nel fatto che quella sera, non c’erano santi, a teatro doveva
andare. Al circolo, con gli altri soci, aveva pigliato solenne
impegno di far finire a fischi e a pìrita l’opera che il prefetto
aveva imposta ai vigatesi: poi, essendo di natura poco
attirato a esporsi di persona, aveva pensato di disertare
adducendo la scusa di malato grave, da visitare. Ma si era
scordato della moglieri, con la quale il gorno avanti aveva
un’accesa discussione. (1995: 45-6)56
O médico realmente não queria ir ao teatro, mas a esposa fazia absoluta
questão de comparecer ao evento, uma vez que a senhora Cozzo, esposa do
diretor, também estaria lá, e entre as duas havia uma espécie de competição,
sobre quem estaria mais elegante.
Ao chegarem ao teatro, o doutor Gammacurta pôde observar a alegria da
esposa, pelo fato de o vestido da senhora Cozzo não chamar tanto a atenção
quanto o seu, e ver os sócios do Circolo Cittadino di Vigàta: “i soci del circolo, coi
qualli scambiò saluti, sorrisi e cenni d’intesa, si erano tutti strategicamente
dislocati tra palchi e la platea”. (1995: 47)57
Começaria, finalmente, a apresentação da ópera.
55
"Então o problema é que essa ópera foi escolhida pelo senhor, que é o prefeito de Montelusa. E os
vigatenses não gostam nem um pouco do que dizem e fazem os montelusanos." (2004: 41)
56
A razão de seu mau humor, tão estranho em uma pessoa tão gentil e de boa paz, residia no fato de que,
naquela noite, não havia santo que o livrasse, teria que ir ao teatro. No clube, tinha-se comprometido
solenemente com os outros sócios, no sentido de que a ópera que o prefeito tinha imposto aos vigatenses
viesse a ser um fiasco, uma cagada total. Porém, sendo por natureza pouco inclinado a expor-se
individualmente, tinha pensado em desertar, dando a desculpa de estar com um doente grave a ser visitado.
Mas tinha-se esquecido da mulher, com quem no dia anterior tivera uma acesa discussão: (2004: 44)
57
os sócios do clube, com os quais trocou cumprimentos, sorrisos e sinais de entendimento, tinham-se
colocado todos estrategicamente pelos camarotes e a plateia. (2004: 45)
80
Amici, alla fabbrica
allegri, corriamo!
I sei operai parsero toccare il cielo con un dito.
Allegri corriamo!
Fecero tutti assieme, isando le vrazza.
Con biade e luppoli
la birra facciamo!
I sei con le parannanze si misero a satare di gioia.
La birra facciamo!
[...]
E Bob, correndo da una carriola a un sacco, da un sacco a una
pila di cannestri.
Facciamo un liquore
che arreca piacer.(1995:47-8)58
Ao ouvirem essa exaltação à cerveja, logo começaram a gritar, no intuito
de atrapalhar a apresentação: “A tia piace!” esclamò a voce alta uno che stava
assittato nei posti proprio sotto al soffitto. “A mia la birra pare pisciazza, a mia mi
piace il vino!” (1995: 48)59
A partir desse momento, tem inicio, além da ópera, um tumulto
protagonizado pela plateia. Havia rejeição à ópera, pois as pessoas não
entendiam como funcionava a dinâmica da apresentação, e questionavam sobre o
que acontecia no palco, como podemos observar na voz indignada de dom
Gregorio Smecca: “Ma perchè questi sei stronzi ripetono sempre le cose? Che
credono, che siamo zulù? Noi quello che c’è da capire lo capiamo a prima botta,
senza bisogno di ripetizione”. (1995: 48)60
O prefeito, irritado com a confusão, pede ao delegado Puglisi, que estava
sentado próximo dele no camarote real, que prendesse os que estavam
58
Amigos para a fábrica
Alegres corramos
Os operários pareciam estar no céu.
Alegres corramos
disseram todos juntos, erguendo os braços.
Com aveia e lupo
A cerveja façamos!
[...]
E Bob, correndo de um carrinho de mão para um saco, de um saco para uma pilha de cestos:
Fazemos um licor
Que faz gosto. (2004: 46)
59
"Você gosta?", perguntou em voz alta um dos que estavam nas cadeiras da torrinha, bem debaixo do teto.
"Pra mim esta cerveja 'tá parecendo mijo, eu gosto mesmo é de vinho!" (2004: 47)
60
"Mas por que esses seis bostas ficam repetindo a mesma coisa? 'tão achando o quê, que nós somos zulus?
O que tem que entender nós entendemos da primeira vez, não precisam repetir!" (Idem)
81
atrapalhando a apresentação. Porém, o delegado lhe sugere calma, pois sabia
que, a qualquer momento, poderia haver uma rebelião, e que não seria totalmente
culpa dos espectadores:
“Guardi, Eccellenza, mi perdoni, ma non c’è assolutamente
cattivo animo o intenzione in quello che fanno. Non sono
disturbatori, io li conosco uno per uno. Brava gente, mi creda,
rispetosa. Solo che non hanno mai visto un teatro e non sanno
come starci”. (1995: 49)61
O prefeito cede ao apelo do delegado e não insiste na prisão dos
“baderneiros”.
É nesse clima de insatisfação geral, do prefeito e do público, que a
apresentação transcorre, com a alegria de Danielle Robinson, dono da
cervejaria, que anuncia as bodas com sua noiva, Effy. Entretanto, de vez em
quando, os espectadores faziam algum tipo de comentário sobre os
acontecimentos narrados na ópera, por brincadeira ou por ignorância:
Cercate, trovare in tutti i contorni
i flauti, i timbali i pifferi, i corni.
“I corni non hai bisogno di cercarli, vengono da soli” disse una
voce dal solito loggione. Qualcuno rise.
“Ma il timbalo non è quello che mi fai col riso, la carne e i piselli?”
spiò seriamente Gammacurta alla moglie,
“Sì”.
“E allora, che ci accucchia coi pifferi e i flauti?”. (1995: 50)62
As diversas interrupções feitas pelos vigatenses acabaram prejudicando o
desenvolvimento do espetáculo e a performance dos cantores, em especial da
soprano que representava o papel de Effy, cuja forma física não passou
despercebida por Lollò Sciacchitano e Sciaverio:
61
"Veja, Excelência, perdoe-me, mas não há maldade ou má intenção no que fazem. Não são perturbadores
da ordem, eu os conheço um por um. São boa gente, e respeitosa, creia-me. Só que nunca viram um teatro e
não sabem como se comportar nele." (2004: 48 )
62
Procurem e achem por esses arredores
As flautas, os tímbalos, os pífaros, os cornes.
"Os cornos ninguém precisa procurar, eles aparecem sozinhos", disse uma voz, sempre da torrinha.
Alguns riram.
"Mas timbale não é aquilo que se faz com arroz, carne e ervilhas?", perguntou seriamente Gammacurta a sua
senhora.
"Sim", disse a mulher.
"Então o que é que tem a ver com os pífaros e as flautas?"(2004: 49)
82
Era un fimminone di due metri e passa, con certe mani che
parevano palle e un naso che uno ci si poteva saldamente
afferrare se tirava vento forte. E sotto questo naso c’era un’ombra
scura di baffi che il belletto generosamente cosparso non riusciva
a nascondere. Si muoveva inoltre a larghe falcate, battendo
rumorosamente i talloni. (1995:52)63
A questo punto, dal loggione si udì la voce di Lollò Sciacchitano.
“Sciavè, tu saresti capace di spasimare per na fimmina accussì?”.
Stentorea la risposta di Sciaverio:
“Manco dopu trent’anni di carzaro duro, Lollò”. (1995:53)64
O doutor Gammacurta, que a princípio via nessa confusão armada pelo
Circolo Cittadino a principal razão de sua presença ali, sente-se incomodado e
penalizado pela cantora, decidindo então retirar-se do local, indo ver o
cavalheiro Mistretta que, durante uma das intervenções, havia tido uma crise de
asma.
No capítulo seguinte “Egregie signore e diciamole pure” (Prezadas
senhoras e também...), ouve-se o discurso do professor Carnazza que, a pedido
de sua mulher, que era amiga da esposa do prefeito, aceitara proferir uma
espécie de conferência na casa do marquês Coniglio della Favara. O tema era
Luigi Ricci, o autor de Il birraio di Preston, o que, na verdade, constutuía mais
uma estratégia de dom Memé e do prefeito Bortuzzi, na promoção do evento.
No entanto, já no início de seu discurso, o professor explica o porquê de ter
aceitado o convite: satisfazer o desejo da esposa, que era muito mais jovem que
ele:
io non sapevo niente di questo Luigi Ricci, me ne fottevo
altamente, scusate, di lui e delle musiche sue. Del resto poche
sono oramai le cose che m’allettano. E invece, no: tu questa
conferenza la devi fare, mi comanda lei, altrimenti... Altrimenti, lo
so io che significa altrimenti! Basta, lasciamo perdere. E chi glielo
ha proposto alla mia signora? Tutti sapete che Concetta è amica
stritta della signora di Sua Eccellenza il prefetto Bortuzzi.
63
Era uma mulheraça de dois metros e tanto, com mãos que pareciam pás e um nariz ao qual alguém poderia
seguramente agarra-se em caso de ventania. E sob esse nariz havia uma sombra escura, de bigodes que o póde-arroz generosamente espalhado não conseguia esconder. Movia-se, além disso, em passos largos, batendo
ruidosamente com os calcanhares. (2004: 51)
64
A esta altura, da torrinha veio a voz de Lollò Sciacchitano:
"Sciavè, você seria capaz de se apaixonar por uma dona dessas?"
Estrepitosa foi a resposta de Sciaverio:
"Nem depois de 30 anos de prisão, e das piores, Lollò."(2004: 53)
83
Spiegato il busillisi? Chiaro? Ecco la scansione per la quale sono
qua, come un trunzo, davanti a voi”. (1995: 55)65
A revelação do palestrante deixou em má situação dom Memé,
conhecidamente aliado do prefeito, que se sentiu perdido, pois a ideia tinha sido
sua:
La bella pensata di dire al prefetto che la di lui signora Luigia
intesa Giagia, parlasse alla signora Concetta, maritata al preside
Carnazza del ginnasio di Fela l’aveva avuta lui. Amici, ai quali
aveva domandato consiglio, gli avevano indicato il professor
Carnazza come finissimo intenditore di musica, tacendogli però, i
cornuti, che il preside era magari, e forse più, finissimo,
intenditore di vini. E dire che persino Sua Eccellenza l’aveva
messo in guardia. (1995: 55)66
O diretor dá início à palestra, informando detalhes da vida e obra do
compositor, e, ao mesmo tempo, comparando fatos da vida de Luigi Ricci com a
de amigos presentes, até que chega a Il birraio di Preston, discorrendo sobre as
informações técnicas da ópera: data da primeira apresentação, autor do libreto,
entre outras informações.
A forma como o diretor Carnazza conduziu a palestra provocou efeito
contrário ao esperado por dom Memè, ao ponto de o próprio anfitrião, marquese
Coniglio della Favara, vir saudá-lo durante o intervalo da conferência, pois,
sabendo que dom Memè era aliado do prefeito, surpreendeu-se com o que ele
imaginou ser uma ação de Ferraguto provando justamente o contrário, que ele
se opunha à encenação da ópera: “Grazie, don Memè”, agradeceu com um
sorrisinho, “non pensavo che lei malgrado tutto fosse dalla parte nostra”, disse o
marquês. (1995: 59)67
65
Eu não sabia nada a respeito desse Luigi Ricci, queria que se fodesse de todo - desculpem - ele e suas
músicas. Aliás, poucas são as coisas hoje em dia que ainda me dão algum ânimo... No entanto, dá-se ao
contrário: não, você tem que dar essa conferência, me ordena ela, senão... Senão, eu sei o que significa esse
senão! Mas deixemos isso de lado. E quem propôs isso a minha senhora? Todo mundo sabe que Concetta é
amiga íntima da mulher de Sua Excelência, o prefeito Bortuzzi. Está explicado o busílis? Está claro? É essa
razão pela qual estou aqui, como uma estaca, diante dos senhores." (2004: 54)
66
A bela ideia de sugerir ao prefeito que sua Senhora Luigia, conhecida como Giagia, falasse com a senhora
Concetta, casada com Carnazza, o diretor do ginásio de Fela, fora sua. Amigos a quem tinha pedido
conselhos lhe haviam indicado o professor Carnazza como finíssimo conhecedor de música, não
mencionando, porém, aqueles cornos, que o diretor era também, e talvez mais ainda, finíssimo conhecedor de
vinhos. E dizer que até Sua Excelência lhe havia avisado. (2004: 54)
67
"Obrigado, don Memè", disse com um leve sorriso. "Não julgava que o senhor, apesar de tudo, estivesse do
nosso lado." (2004:59)
84
Dom Memè chegou a pensar em matar o professor durante a pausa, a fim
de evitar que ele voltasse, causando um dano ainda maior, mas desistiu da ideia
ao ser abordado pelo marquês, conforme descrito acima.
Porém, nada precisou ser feito, pois o professor Artidoro Carnazza jamais
voltou do intervalo que ele mesmo havia solicitado. Procurado durante toda a
noite, por todos os presentes que acreditavam que ele havia se perdido no
palácio do marquês, jamais foi encontrado.
Neste ponto, o autor constrói uma narrativa com o formato de
documentário, ou melhor, “abre um parêntese” na história, a fim de que, o
narrador possa explicar aquilo que, de fato, ocorrera com o diretor Carnazza,
quando cita que, durante a Segunda Guerra Mundial, o palácio Coniglio foi
parcialmente destruído e que, na ala que se manteve de pé, fora encontrado um
baú.
( [...] Nel tettomorto dell’ala ovest rimasta miracolosamente in
piedi, dentro un baule, venne rinvenuto lo scheletro di un uomo in
abito da cerimonia, sicuramente deceduto per cause naturali,
dato che non c’erano segni di violenza.
Il baule era speciale, si poteva raprire dall’esterno ma, una volta
chiuso, scattava una molla che non consentiva di raprire
dall’interno. Chi ci si metteva dentro, magari per scherzo, per
babbiare, poi non poteva più nèsciri. Allato ai resti, alcuni fogli sui
quali ancora a malappena si leggevano parole incomprensibili. Si
potè a stento capire un nome, quello di un tale Luiggi Picci, o
Ricci, che fosse). (1995: 62)68
Ou seja, sugere-se que Carnazza tenha morrido preso nesse baú
descoberto no sótão do palácio Coniglio.
No capítulo seguinte, “Turiddru Macca, il figlio” (Turiddru Macca, o filho),
retornamos ao quadro do incêndio do teatro.
O capítulo se abre com a narrativa da rotina de Turiddru Macca, um
habitante de Vigàta, trabalhador do porto, sem qualquer ligação com os eventos
68
([...] No sótão da ala oeste, que ficara milagrosamente de pé, dentro de um baú foi encontrado o esqueleto
de um homem em trajes de cerimônia, que havia certamente perecido de morte natural, uma vez que não
havia sinais de violência.
O baú era especial, podia ser aberto por fora, mas uma vez fechado, acionava uma mola que não permitia
mais abri-lo de dentro. Quem se metesse dentro dele, ou por brincadeira, ou por imbecilidade, não poderia
mais sair. Ao lado dos restos, algumas folhas nas quais, ainda mal rabiscadas, liam-se palavras
incompreensíveis. Com algum esforço, podia-se perceber um nome, o de um tal de Luigi Picci, ou Ricci,
provavelmente.) (2004: 61-2)
85
ocorridos naquela noite. Porém, sua mãe, gnà Nunzia, morava em uma casa
localizada ao lado do teatro que, naquele momento, estava em chamas, o que
fez que ele deixasse sua família e fosse correndo até o local do incêndio.
Nesse momento, a narrativa volta ao ponto em que o engenheiro Hoffer se
preparava para colocar em prática seu plano de utilizar a máquina que inventara
para apagar o incêndio:
“Kvi, kvi, da kvesta parte!” gridò l’ingegnere ai suoi uomini che
arrivarono in un fiat con la macchina spegnivampe.
Gli si avvicinò uno che teneva un fazzoletto vagnato sul naso per
proteggersi dal fumo.
“Sono il delegato Puglisi. Lei chi è che vuole fare?”.
“Io essere e sono ingegnere Hoffer. Ingegnere di miniera. Ho kvi
makinario di me inventato che speghne foco. Lei aiuta me?
“Certo” disse il delegato che già aveva, rassegnato, allargato le
braccia davanti al danno, e quindi ogni cacatella di mosca poteva
giovare. (1995: 65)69
Entra em cena outra personagem importante: o delegado Puglisi, o
investigador da trama. Em meio à ação para apagar o incêndio, o engenheiro
tem um diálogo com uma das famílias desalojadas por conta do fogo. É a família
Pizzuto, que, em coro, relata o que teria acontecido, como se estivessem em
uma apresentação teatral:
“Foi apitare in kvesta kasa?” spiò l’ingegnere al gruppo immobile.
Il gruppo si animò, pigliò vita.
“Siamo la famiglia Pizzuto” dissero i quattro tutti insieme.
Poi il cinquantino fece mezzo passo avanti, parlò.
“Mi chiamo Antonino Pizzuto” disse con voce strasciata e
lagnosa. “Abbitiamo al piano terra di questa casa che pigliò foco.
Stavamo dormendo con le finestre chiuse”.
“Con le finestre chiuse” dissero gli altri. (1995: 66)70
69
"Aqui, aqui, em este lato!", gritou o engenheiro para seus homens, que chegaram num abrir e fechar de
olhos com a máquina de apagar chamas. Aproximou-se dele um homem que trazia um lenço molhado sobre o
nariz, para proteger-se da fumaça.
"Sou o delegado Puglisi. E o senhor, quem é e o que está querendo fazer?"
"Eu serr e sou engenheira Hoffer, engenheira da mina. Tenho aqui uma máquina de minha invençon que
apaka fogo. O senhor ajuda mim?"
"Claro", disse o delegado, que já estava abrindo os braços, desalentado, diante do dano, e para quem, por
isso, qualquer mínima cagada de mosca poderia ser útil.(2004: 65)
70
"Focês habitarr esta casa?", perguntou o engenheiro ao grupo imóvel.
O grupo animou-se, recuperou vida.
"Somos a família Pizzuto", disseram os quatro juntos.
Em seguida, o cinquentão deu meio passo adiante e falou:
86
A descrição prossegue até o momento em que a água do mar finalmente
chega à máquina, que começa a funcionar e combater as chamas, para a
extrema felicidade do engenheiro, devido ao sucesso do seu invento:
Nardo Sciascia, sentito l’ordine, raprì com mano ferma il volano
dell’acqua fredda. Immediatamente un getto violento, che fece
traballiare i due che tenevano la pompa, pigliò a dirigersi verso le
vampe. Per la commozione, l’ingegnere si mise a ballare ora su
un piede, ora sull’altro, pareva un orso. (1995: 67)71
Voltando a Turiddru Macca. O rapaz, com muito esforço, consegue passar
pelo cordão de isolamento e chega à casa de sua mãe. Ao se deparar com o
quadro, entra em desespero:
Chiangia, Turiddru, per lo scanto del piricolo che so matre stava
correndo, ma chiangiva magari per la bella casa che se ne stava
andando in fumo, quella casa di tre cammari e cucina dove lui e la
sua famiglia, dopo la morte della gnà Nunzia, ma all’ora giusta e
santa, quella voluta da Dio, sarebbero potuti andarci ad abitare,
con più largo e còmido del catojo dove adesso stavano. (1995:
67)72
Nessa parte da narrativa, as duas cenas principais do capítulo se
intercalam, acontecem simultaneamente, fazendo que os dois protagonistas
estejam no auge de suas ações: o engenheiro tentado apagar o fogo o mais
rápido possível e Turiddru desesperado por salvar a mãe:
Fu a questo punto che il finestrone del quartino abitato dalla gnà
Nunzia si raprì di colpo e spuntò una figura di fìmmina anziana in
cammisa bianca di notte. L’apparizione alzò le braccia verso il
cielo.
“Gesuzzu beddru! Madunnuzza santa! Foco doviva éssiri e foco
fu!”
“Mamà!, Mamà” chiamò Turiddru.
"Eu me chamo Antonio Pizzuto", disse com voz arrastada e lamentosa. "Moramos no andar térreo desta casa
que pegou fogo. Estávamos dormindo, com as janelas fechadas."
"Com as janelas fechadas", disseram os outros. (2004: 66)
71
Nardo Sciascia, ouvindo a ordem abriu com mão firme o registro da água fria. Imediatamente um violento
jato que fez oscilar os dois que seguravam a bomba, começou a sair na direção das chamas. No auge da
emoção, o engenheiro pôs-se a dançar, ora sobre um pé, ora sobre outro, como se fosse um urso. (2004: 67)
72
Turiddru chorava de medo, do perigo que sua mãe estava correndo, mas chorava também pela linda casa
que estava virando cinzas, aquele apartamento de três quartos e cozinha, em que ele e sua família, depois da
morte da dona Nunzia - mas na hora justa e sagrada, querida por Deus -, teriam podido instalar-se com mais
espaço e comodidade que no casebre em que estavam morando. (2004: 67-8)
87
La vecchia non fece ‘nzinga d’averlo sentito. Sparì nuovamente
dentro la casa.
“Schnell! Presto!” fece a gran voce Hoffer esaltato. “Pisoghna
salfare vecchia tonna!”. (1995: 68)73
No meio da confusão, o engenheiro, que naquele momento experimentava
uma extrema alegria por salvar vidas com seu invento, se confunde na tradução
das ordens do alemão para o italiano, o que causa um acidente com a família
Pizzuto. Porém, Turiddru percebe que a máquina inventada pelo engenheiro de
fato havia ajudado a controlar as chamas, e aproveitou esse momento para
entrar na casa de sua mãe e salva-la. Entretanto, a forma que utilizou para
convencê-la a abandonar o imóvel não foi nada convencional:
Non passarono manco cinque minuti che Turiddru Macca assumò
dal fumo tenendo la gnà Nunzia immobile caricata sulle spalle.
“Sbinni?” s’informò Puglisi.
“Nonsi. Ci desi un cazzotto in faccia”.
“E pirchì?”.
“Diciva ca nun vuliva scìnniri in cammisa da notte in mezzo a tutti
questi ominazzi”. (1995: 70)74
A próxima peça que compõe a história de Il birraio di Preston, “Solo chi è
picciotto può avere” (Só quem é jovem pode ter tais sentimentos), apresenta mais
uma importante cena para o desenvolvimento da narrativa:
“solo chi è picciotto può avere sentimenti così” pensò don Pippino
Mazzaglia con una punta d’invidia e una di compatimento mentre
ascoltava la discorruta di Nando Traquandi, il giovane arrivato
clandestino da Roma e che lui teneva ammucciato nella sua casa
di campagna da una simàna. Sicco, capelli rossicci e ricci, con gli
occhialetti darrè i quali sparluccicavano gli occhi spiritati, la mano
mancina a grattarsi di tanto in tanto, come un ticchio, la rada
barbetta torno torno il mento, la mano dritta che a ogni cinque
parole portava alle labbra un fazzolettino di pizzo per asciucare la
73
Foi a esta altura que o janelão do pequeno quarto habitado por Dona Nunzia abriu-se súbito e apareceu
uma figura de anciã em camisola branca de dormir. A aparição ergueu os braços para o alto.
"Sangue de Cristo" Minha Santíssima Virgem! Fogo! Tinha que ser fogo, e fogo foi!"
"Mamãe, mamãe!", chamou Turiddru.
A velha não deu sinal de ter ouvido. Desapareceu de novo para dentro da casa.
"Schnell! Depressa!", disse, aos berros, Hoffer, exaltado. "Brecisa salvarr velha zinhora!" (2004: 68)
74
Não se passaram nem cinco minutos e Turiddru Macca reapareceu dentro da fumaça, trazendo nas costas
Dona Nunzia.
"Desmaiou?", perguntou Puglisi.
"Não, senhor. Eu, que dei um soco na cara dela."
"E por quê?"
"Dizia que não ia descer de camisola no meio de todos esses marmanjos."(2004: 70-1)
88
macchietta bianca che la sputazza condensandosi, formava ai lati
della bocca. (1995: 72)75
A personagem descrita acima, Nando Traquandi, um jovem mazziniano76
que chega à Vigàta com uma missão secreta exerce papel fundamental na trama.
O ato que estava para executar tinha por objetivo levantar a população contra o
governo vigente, atendendo, assim, aos objetivos revolucionários dos carbonari77.
Traquandi é mentor e co-executor do incêndio do teatro, o fato central do
romance que estamos examinando. Conta com o auxílio de alguns vigatenses
integrantes do grupo mazziniano, que o apóiam e lhe dão abrigo: Ninì Prestìa,
Pippino Mazzaglia, Cosimo Bellofiore, Decu Garzia, sendo este último o seu
cúmplice direto na ação do incêndio.
O jovem romano tinha seu plano de ação bem definido, e pretendia utilizar
a inauguração do teatro para atingir seu intento, o de causar uma revolta popular
contra o governo vigente, o que deixava intrigado o grupo que o estava apoiando,
uma vez que eles não conseguiam entender a relação entre os dois fatos, a
75
"Só quem é jovem pode ter esse tipo de sentimentos", pensou don Pippino Mazzaglia com uma ponta de
inveja e uma certa pena, enquanto escutava o discurso de Nando Traquandi, o jovem que chegara
clandestinamente de Roma e que há uma semana ele mantinha escondido em sua casa de campo. De talhe
delgado, cabelos meio ruivos e encaracolados, usando pequenos óculos através dos quais brilhavam olhos
arregalados, a mão esquerda coçando de vez em quando, como um tique, a rala barbicha sob o queixo, a mão
direita a cada cinco palavras levando aos lábios um lencinho de renda, para enxugar a pequena mancha
branca que a saliva, condensando-se, formava ao lado da boca. (2004: 72)
76
Não podemos deixar de escrever uma nota sobre Giuseppe Mazzini (Gênova, 1805 – Pisa, 1872), “o
apóstolo da unidade e da independência italiana, que deveriam ser conseguidas, uma e outra, por obra do
povo e na forma democrática da república. Animador incansável, dedicou a sua vida, desperdiçada a maior
parte em doloroso exílio, numa férvida pregação de ideias, através do exemplo pessoal, de cartas e da
atividade revolucionária de associações nacionais e internacionais tais como a “Jovem Itália” (1831), a
“Jovem Europa” (1834), a “Liga Internacional dos Povos” (1847) e na “Associação Nacional Italiana”
(1848). / A concepção de Mazzini, alimentada por um sentido profundamente religioso (daqui a conhecida
fórmula “Deus e Povo”) e aberta à questão social e aos novos problemas da emancipação dos operários,
supera de um lado os princípios individualísticos incluídos na Revolução Francesa, afirmando a possibilidade
do homem expandir a própria personalidade somente na vida coletiva; e supera de outro lado o utilitarismo
do século XVIII, contrapondo a este uma visão inteiramente espiritual e moral da vida. / No pensamento
mazziniano a nação, “livre e una”, não é senão o natural e necessário degrau pelo qual o homem pode
alcançar, partindo do conceito de pátria, o superior da unidade substancial, mesmo subsistindo os organismos
nacionais, da família humana inteira. Ele, portanto, indicou aos jovens não simplesmente a libertação da
Itália e da Europa, mas de todos os povos, como condição primordial da verdadeira libertação do homem”.
In: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/mazzini.html
77
Carbonário, s.m. Aquele que era membro de certa sociedade secreta revolucionária, na Itália; (p. ext.)
membro de qualquer sociedade secreta revolucionária. (Do it. carbonaro, do lat carbonariu.) Superdicionário
Língua Portuguesa.
89
inauguração do teatro e a ação mazziniana que estava para acontecer. Pippino
Mazzaglia resolve então fazer tal questionamento.
“Quello che voglio spiare non è pura e semplice perdita di tempo,
come forse a lei può sembrare. È da quando è cominciata questa
storia del Birraio che io ci perdo il sonno a domandarmi perchè il
prefetto di Montelusa s’è intestato a volere inaugurare il teatro di
Vigàta con quest’opera che nessuno voleva. Ho saputo che non ci
ha interesse di soldi, che l’autore non era parente suo, che non si
corica con qualcuna delle cantanti. E allora perchè lo ha fatto?
Per ottenere il risultato che voleva, ha obbligato a dimettersi due
consigli d’amministrazione del teatro, fino a quando non ha
trovato le pecore giuste che facessero a tempo beee sotto la sua
bachetta. Perchè? (1995: 75)78
Na verdade, o questionamento não interessa a Nando Traquandi, pois em sua
opinião a insistência do prefeito em inaugurar o teatro com Il birraio di Preston
seria somente uma oportunidade de ele demonstrar seu poder: “Allora je dico che
er prefetto voleva dimostrà er potere suo, e, indirettamente, quant’è potente er
governo che lui rappresenta”. (1995: 75)79
Traquandi afirma que os motivos do prefeito não se mostravam relevantes
e que somente a ação importava. Também que “parlare, discutere, capire” era
coisa de gente velha. Eles continuam com a reunião, o romano mostrando e lendo
partes de diversos documentos que, segundo ele “dimostrano come la situazione
sia oramai arrivata a un punto estremo”. (1995: 73)80
No final, o romano fez comentários sobre a situação em que se encontrava
a Itália, além da que o próprio movimento dos carbonari enfrentava. Explicou
porque aquela oportunidade não poderia ser perdida:
78
"O que quero perguntar não é pura e simples perda de tempo, como talvez possa parecer. É que, desde que
começou essa história do Birraio, eu venho perdendo o sono, perguntando-me por que o prefeito de
Montelusa insistiu em querer inaugurar o teatro de Vigàta com essa ópera que todos rejeitam. Soube que não
há no caso interesse financeiro, que o autor não é seu parente e que ele não dorme com nenhuma das
cantoras. Então, por que o fez? Para conseguir o resultado que queria, obrigou dois conselhos de
administração do teatro a se demitirem, até a vir encontrar ovelhas obedientes que balissem prontamente seus
mée sob sua batuta. Por quê?" (2004:75)
79
"Então eu digo: o prefeito queria demonstrar seu poder e, indirettamente, a força que tem o governo que ele
representa." (2004:75)
80
mostram como a situação já havia chegado a um ponto extremo
90
“Io ho finito, ma potrei continuare ancora, sempre con le parole
dei nostri nemici che sono le stesse identiche di quelle che
potremmo usare noi: Famo a capicce: l’Italia è un vurcano pronto
a scoppià. E loro lo sanno e ci hanno pavura. Mannano in galera i
nostri, scoprono i nostri depositi d’armi, li sequestrano o je danno
foco, ma er giorno appresso ne spuntano di novi, tanti precisi de
quanti so annati distrutti. E noi mazziniani, qui a Vigàta, si nun
cogliemo l’occasione de stasera semo cojoni”. (1995:78)81
Eles sabiam que a maioria da população não estaria no teatro, mas em
suas residências. Logo, a repercussão do incêndio não obteria um apelo popular
tão forte. A tal ponderação, Traquandi afirma:
“Sarà come dite voi. Ma noi ce dovemo approfittà de la situazione,
falla diventà più grossa, senza remedio. Me spiego mejo. Si la
cosa resta com’è, hai voja a dì: doppo du giorni tutti se so scordati
de tutto. Ma si la cosa la famo diventà grossa assai, ne dovranno
parlà tutti, e non solo qua a Vigàta. Me spiego? Bigna che diventi
un caso nazzionale”. (1995: 79)82
Diante da afirmação de Traquandi, Decu Garzìa logo se mostrou
interessado e questionou como seria, então, a ação, ao que o romano
prontamente respondeu: “Se manna a foco er teatro”83. A partir desse momento, o
plano estava traçado, assim como o destino de Vigàta.
“Lei sa home la penso” (O senhor sabe o que penso), o capítulo seguinte,
traz à cena um diálogo entre o prefeito Bortuzzi e o coronel Aymone Vidusso,
comandante da praça militar de Montelusa. O motivo da discussão entre as duas
autoridades é a questão da repercussão da inauguração do teatro ante a
população: “Non si può rischiare un moto popolare solo perché a lei è saltato il
81
Já terminei, mas poderia ainda continuar, sempre com as palavras de nossos inimigos, que são idênticas às
que poderíamos usar. Devemos ter clareza: a Itália é um vulcão prestes a explodir. Eles sabem disso e têm
medo. Mandam prender os nossos, descobrem nossos depósitos de armas e põem fogo neles, mas no dia
seguinte surgem outros, em número igual ao dos que foram destruídos. E nós, mazzinianos, aqui em Vigàta,
se não aproveitarmos a oportunidade desta noite, somos uns idiotas. (2004: 78)
82
"Que seja como dizem. Mas nós temos que aproveitar a situação, fazer que ela se torne mais séria,
irremediável. Vou explicar melhor. Se a coisa fica como está, nem é preciso dizer que, daqui a dois dias, todo
mundo já terá esquecido de tudo. Mas se fizermos com que a coisa cresça bastante, todos terão que falar dela,
e não só aqui em Vigàta. Fui claro? É preciso que isso se torne um caso nacional."(2004: 79)
83
Se põe fogo no teatro
91
ticchi di far rappresentare a Vigàta un’opera lirica che ai vigatesi, a quanto pare,
proprio non va giù, non piace”. (1995: 80)84
Bortuzzi reafirmava que toda a oposição enfrentada pela ópera devia-se à
vontade da população de se opor à autoridade instituída. O coronel Vidusso,
então, traz à cena o quadro que representa a realidade política e social da Sicília
da época, o que, inclusive, vai ao encontro do que Nando Traquandi havia
defendido como razão para, se aproveitando do evento do teatro, iniciar uma
revolta. Esta é uma citação emblemática da história cronológica representada no
romance:
“Sia pure, Eccellenza. Ma lei, insistendo, rischia di provocare dei
malumori in un momento in cui non ce n’è proprio bisogno, lei
dovrebbe saperlo almeno quanto me. Non devo essere io a
rammentarle che l’isola è una polveriera e che, se non è esplosa
fino ad ora, ciò è dovuto alla prudenza o, se le suona meglio, alla
paura, di Mazzini. E quindi io non metterò l’esercito, i miei uomini,
a servizio di un puntiglio, di un atto di testardaggine”. (1995: 81)85
O prefeito insistiu em sua decisão e exigiu o apoio do coronel Vidusso e do
exército para aquilo que segundo ele, seria um movimento contra a autoridade.
Afirmou que os vigatenses não entendiam nada de música, o que tornaria sem
sentido a oposição à ópera por uma questão de crítica musical:
“Io ragiono, sa? E diho, ragionando, che quando c’è periholo di
sommovimento hontro l’autorità, lo stato, tutte le forze, diho tutte,
senza distinzione di horpo e arma, devono, madonna bambinaia,
essere homparte a reprimere senza stare a spaccare il culo ai
passeri. Questi siciliani la son gente che puzza, lo sa o no?”.
(1995: 81)86
84
"Não se pode correr o risco de uma revolta popular só porque o senhor meteu na cabeça a ideia de fazer
representar em Vigàta uma ópera-lírica que, ao que parece, os vigatenses rejeitam, que não lhes
agrada."(2004: 80)
85
"Que seja, Excelência. Mas, insistindo, Vossa Excelência corre o risco de provocar descontentamentos em
um momento em que não há a menor necessidade disso - algo de que deve saber pelo menos tão bem quanto
eu. Não deveria ser eu a lembrar-lhe que a ilha é um barril de pólvora e que, se não explodiu até agora, isso
se deve à prudência, ou, se lhe parece mais exato, ao medo, de Mazzini. E por isso eu não vou pôr o exército,
os meus homens, a serviço de um capricho, de um ato de teimosia." (2004: 81)
86
"Eu raciocino, sabe? E é raciocinando que di'o que quando há peri'o de sublevação 'contra a autoridade e o
Estado, todas as forças, eu di'o todas, sem distinguir corporação nem arma, devem - pela Mãe de Deus! formar um só bloco, para a repressão, sem se dividir por causa de detalhes. Esses sicilianos são uma gente
que cheira mal, o senhor sabe disso ou não sabe?" (2004: 81-2)
92
Entretanto, o coronel se manteve firme em sua decisão de não apoiar o
prefeito e usou como argumento que o exército deveria ser conclamado, pois, em
sua opinião, se tratava de uma questão do estado, um momento em que a
autoridade deveria imperar, e não retroceder por conta da pressão popular. À
essa argumentação, o coronel prontamente respondeu:
“Lei, se vuole, può farlo. Non ne è padronissimo, ma può farlo. E
può darsi che qualcuno ravvisi nel suo modo d’agire un abuso
d’autorità. Fatti suoi. Ma l’esercito italiano non può e non deve
restare coinvolto in una quistione stupida come questa. Ad ogni
modo, domanderò il parere a chi di competenza. Mi scusi”.
(1995:82)87
O prefeito ainda tenta persuadir o coronel, ameaçando informar a sua falta
de colaboração a seu superior, Avogrado di Casanova. Esta se revelou uma tática
inútil, uma vez que Aymone Vidusso não se deixou intimidar, mantendo-se firme
em sua decisão. E o prefeito ignorava que o coronel já havia se precavido:
Bortuzzi poteva murmuriàrsi quanto voleva, il colonnello Vidusso
aveva le spalle coperte. Quattro giorni avanti dell’invito al
colloquio col prefetto, avendo sentito il vento che tirava e
prevedendo una richiesta d’intervento dell’esercito in caso che le
cose si fossero messe male, aveva scritto un ampio e dettagliato
rapporto al tenente generale Avogrado di Casanova, di stanza a
Palermo, dove spiegava come qualmente il prefetto fosse un
incapace e, quello che era peggio, un buffone disposto alle
peggiori buffonate. Anzi, più che un pagliaccio: un individuo al
quale il potere aveva dato alla testa e che per esercitarlo, questo
potere, non aveva esitato ad allearsi con un losco figuro, un noto
maffioso. Il danno che quell’uomo poteva provocare, ostinandosi
a imporre ai vigatesi la rappresentazione del Birraio di Preston, si
sarebbe potuto rivelare incalcolabile. (1995: 83)88
87
"O senhor, se quiser, pode fazê-lo. Não tem autoridade para tal, mas pode fazê-lo. E pode acontecer que
alguém veja em seu modo de agir um abuso de autoridade. Problema seu. Mas o Exército italiano não pode,
nem deve, ficar envolvido em uma questão tão tola quanto essa. De qualquer forma, vou pedir o parecer de
quem tem competência para tal. Com licença." (2004: 82)
88
Bortuzzi podia resmungar quanto quisesse, o Coronel Vidusso estava coberto. Quatro dias antes da
entrevista com o prefeito, tendo já visto para que lado soprava o vento e prevendo um pedido de intervenção
do Exército no caso de as coisas piorarem, tinha escrito longo e detalhado relatório ao Tenente-General
Advogado di Casanova, que estava em Palermo, no qual explicava quão incapaz era o prefeito e, o que era
pior, era um bufão propenso às piores palhaçadas. Ou melhor, mais que um palhaço: um indivíduo a quem o
poder havia subido à cabeça e que, para exibir esse poder, não hesitara em aliar-se a um sujeito de mau-
93
Ademais, fica claro que o prefeito é, de fato, visto como um palhaço,
conforme observamos na citação, ou ainda, uma definição mais interessante e
que está diretamente relacionada ao nosso estudo, um bufão. O apoio ao coronel
chega através de um bilhete do general Casanova: “Ca y disa al surr Prefet, cun
bel deuit y’m racumandu, c’a vada a pieslu ‘nt cùl”. (1995: 83)89
O prefeito considera a falta de apoio do exército um problema, pois, no
caso da ocorrência de algum incidente, o que era algo bem provável devido ao
modo como os fatos estavam acontecendo, ele não teria como reverter a
situação. Nesse momento, Emmanuele Ferraguto intervém, dizendo que a
cavalaria, sob o comando do capitão Villaroel, seria suficiente para garantir a paz
e que, muito provavelmente, nada teriam a fazer:
“Eccellenza, se ne stia fresco come un quarto di pollo. A Vigàta,
parola di Emmanuele Ferraguto, quando rappresenteranno il
Birraio non succederà niente di niente. Lo stesso capitano
Villaroel e i suoi ventiquattro cavalleggeri, potranno andare, mi
scusi Eccellenza, a minarsela prima, durante e dopo la musicata.
Non avranno niente da fare! Invece ascùti a mia, che le porto una
bella cosa” (1995:84-85)90
A “bela coisa” que dom Memè tinha levado ao prefeito era a cópia de um
jornal montelusano chamado “Gallina Faraona”, que conclamava os cidadãos
vigantenses a dar um voto de confiança à ópera Il birraio di Preston, deixando as
críticas, caso fossem realmente necessárias, ao momento posterior à sua
representação, durante a inauguração do teatro. Porém, para que o dito jornal,
que em outras ocasiões havia trazido problemas a Eugenio Bortuzzi, fizesse tal
crítica positiva, seria necessária a intervenção direta de Ferraguto:
Conoscendo il suo proposito, e cioè che la “Gallina Faraona” se
ne sarebbe uscita con un bell’articolo che avrebbe invitato i
vigatèsi a mettersi a pisciare su opera, cantanti e prefetto, don
caráter, mafioso notório. O dano que aquele homem poderia provocar, obstinando-se em impor aos
vigatenses a representação do Birraio di Preston seria incalculável. (2004: 83)
89
"Diga ao senhor prefeito - mas, com muito trato, por favor - que vá tomar no cu!" (2004: 84)
90
"Excelência, pode ficar descansado, palavra de Emanuele Ferraguto, em Vigàta, quando for levada à cena
o Birraio, não vai acontecer absolutamente nada. O próprio Capitão Villaroel e seus 24 soldados montados
poderão ir, com o perdão de Sua Excelência, masturbar-se antes, durante e depois da música. Não terão o
que fazer! Em vez disso, ouça-me, que tenho uma boa coisa a dar-lhe." (2004: 85)
94
Memè ci aveva giocato d’anticipo e senza perdere tempo e
parole. Micio Cigna era zito con la figlia di don Gerlando Curtò, si
sarebbero sposati nell’annata. Sei giorni avanti la prevista uscita
dell’articolo contro il Birraio, mille pecore di proprietà di don
Gerlando erano state arrubbate nottetempo di persone
infaccialate che avevano stordito a legnate i tre guardiani. Per
quanto Curtò si fosse messo a fare l’iradidio, delle pecore non si
era trovato manco um pilo. Due giorni avanti che l’articolo
niscisse, a don Gerlando era comparso davanti don Memè,
cerimonioso, sorridente.
“Don Gerlando, mi sono permesso di recuperargliele io le sue
pecore”.
Curtò aveva manifestato nessuna gioia, anzi si era preoccupato.
Che avrebbe chiesto in cambio don Memè? Perché era
chiarissimo che a fottergli le pecore era stato proprio quello che
stava dicendogli di averle ritrovate. (1995: 87)91
Curtò não teve outra saída a não ser ceder aos caprichos de dom Memè
para ter de volta suas mil ovelhas, o que custou uma acalorada discussão com
seu futuro genro.
“Colore latte e appannato” (De cor leitosa e cremosa), o capítulo que se
segue, nos faz voltar ao cenário do incêndio do teatro. “Il teatro ancora
abbrusciava, con più fumo che foco, ma solo dentro il suo perietro, i muri esterni
avevano resistito magari se il tetto era crollato e lentamente si consumava dentro
quella specie di grande fornace”. (1995: 89)92
91
Conhecendo seu propósito, de que a Gallina Faraona saísse com um belo artigo instigando os vigatenses a
cagar para a obra, cantores e prefeito, don Memè havia jogado sua carta antes e sem perder tempo com
palavras. Micio Cigna estava noivo da filha de don Gerlando Curtò e iriam se casar naquele mesmo ano. Seis
dias antes de sair o artigo contra o Birraio, 1.000 ovelhas de propriedade de don Gerlando tinham sido
roubadas durante a noite, por pessoas encapuzadas, que haviam atacado a pau os três vigias. Por mais que
Curtò tivesse movido céus e terras, das ovelhas não achara mais que um pêlo. Dois dias antes de sair o artigo,
don Memè comparecera, cerimonioso, ambíguo e sorridente, diante de don Gerlando.
"Don Gerlando, dei-me ao trabalho de recuperar eu mesmo as ovelhas."
Curtò não manifestara a menor alegria, ao contrário, mostrara-se preocupado. O que pediria don Memè em
troca? Porque estava mais do que claro que quem lhe tinha roubado as ovelhas fora exatamente quem ora
dizia tê-las encontrado. (2004: 87)
92
O teatro ainda queimava, com mais fumaça que fogo, mas só dentro de seu perímetro as paredes externas
haviam resistido, embora o teto tivesse ruído e lentamente se consumia dentro daquela espécie de grande
fornalha. (2004: 89)
95
Àquela altura, o incêndio já havia sido praticamente controlado, o
engenheiro Hoffer e seus ajudantes tinham obtido êxito com a invenção e com a
ajuda do comendador Restuccia que “Era uno dei congiurati, certo, contro la
rappresentazione dell’opera, ma si era sentito indignare per l’incendio, secondo lui
doloso, del teatro”. (1995: 89)93
O delegado Puglisi, que desde o início tinha permanecido no local do
sinistro, decide ir até sua casa, para se banhar, antes de continuar seu trabalho.
No caminho, porém, tem uma ideia e retorna ao local do incêndio, o que causa
surpresa a seu subordinado, que tinha ficado ali à sua espera. A partir de então o
investigador começa a exercer plenamente sua função dentro da trama, através
da análise da “cena do crime”.
Restavano mozziconi d’intelaiatura senza vetri, il foco se l’era
mangiate. In mezzo alle sei vasiste c’era una porta di legno, o
almeno quello che restava, tutta abbrusciata. Da essa si partivano
sei gradini di pietra che scendevano all’interno, verso il
sottopalco. Ai lati e sopra la porta c’era marcato il segno di un
foco rabbioso e divorante, assai più forte che altrove. Davanti a
questa porta Puglisi si fermò imparpagliato. Poi si addunò che
l’ultima vasista a destra era stata per miracolo quase sparagnata,
vi si avvicinò, si calo a taliarla bene. Il vetro della vasista era stato
spaccato ma i pezzi erano caduti all’interno. Puglisi si rialzò e
arretrò lentamente, fino a trovarsi con le spalle quase appuiate
alla casa della gnà Nunzia. La visione d’insieme lo confortò
nell’opinione che andava facendosi: il foco non aveva pigliato nel
salone d’entrata, dove c’erano la biglietteria e lo scalone c'he
portava ai palchi, alla platea e al loggione, perché uno spettatore
aveva lasciato un sicarro acceso vicino a una tenda, ma era
principiato dalla parte esattamente opposta. (1995: 91-2)94
93
Ele era, sem dúvida, um dos conjurados contra a representação da ópera, mas tinha ficado indignado com o
incêndio, a seu ver doloso, do teatro. (2004: 89)
94
Havia restos de tela nas esquadrias sem vidros, o fogo as tinha devorado. No meio das seis pequenas
janelas havia uma porta de madeira, ou pelo menos, o que dela restava, inteiramente queimada. Dela partiam
seis degraus de pedra, que desciam para o interior, o subsolo do palco. Dos lados e em cima da porta havia
marcas de um fogo raivoso e devorador, muito mais violento que em outros pontos. Diante dessa porta
Puglisi parou, intrigado. Depois observou que a última janelinha da primeira tinha sido, quase
milagrosamente, poupada, aproximou-se dela e agachou-se para olhá-la de perto. O vidro tinha sido
quebrado, mas os pedaços tinham caído para o interior. Puglisi voltou a se erguer e recuou lentamente, até
encontrar-se com as costas quase apoiadas na casa de Dona Nunzia. A visão de conjunto confirmou a opinião
que se estava formando: o fogo não havia começado no salão de entrada, onde ficavam a bilheteria e a
escadaria que levava aos palcos, à plateia e à torrinha, porque algum espectador tivesse deixado um charuto
aceso perto de uma cortina, mas tinha começado exatamente pela porta oposta. (2004: 91-2)
96
Observamos, então, que o delegado, ao analisar o local, começa a juntar
evidências que comprovam que o incêndio não havia começado como
aparentava. Ele passa, então, a questionar o que de fato teria acontecido ali,
iniciando a formulação de algumas hipóteses:
Non c’era infatti dubbio che la porta di dentro era aperta al
momento dell’incendio, lo testimoniavano i resti delle ante ancora
attaccate ai cardini. E allora perché la porta era stata spalancata
per far nascere una forte corrente d’aria che attizzasse il foco? Il
cane cirneco che era Puglisi si arrisbigliò, appizzò le orecchie,
fiutò l’aria, ma la stanchezza era tanta, decise che dopo la
lavatina sarebbe tornato a studiare la quistione con la testa più
leggera e libera. (1995: 92)95
O perfil do investigador começa a ganhar traços fortes, mostrando que
Puglisi era um detetive que usa o raciocínio lógico, como Dupin e Poirot,
necessitando estar em plena forma mental para conseguir analisar os elementos
que se lhe apresentavam.
Porém, ao tentar voltar para casa, lembra-se da viúva Lo Russo, que
morava no andar superior ao da casa de gnà Nunzia. Começa a se perguntar se a
jovem realmente dormira na casa da irmã, a fim de fugir da confusão e do barulho
causados pela inauguração do teatro. Puglisi vai então até a casa de Agatina, e
descobre que Concetta Lo Russo não havia dormido lá, o que o faz deduzir que
possivelmente algo grave lhe teria acontecido, pois, estando em sua casa durante
o incêndio não havia pedido socorro. Ele pega a chave reserva da casa com
Agatina e volta ao local do incêndio. Ao chegar descobre o porquê do silêncio da
viúva:
La porta della casa della vedova da verde si era cangiata in
marrò per il fumo. Raprì, trasì in un’anticamerina nivura, perché
là dentro tutto era diventato nìvuro. Avanzò di qualche passo e si
trovò nella càmmara da letto. Non riusciva a vedere niente,
l’odore era diventado colore pece. Una lama di luce splapita
trasiva da un’anta malaccostata del finestrone. Vi si avvicinò, la
raprì del tutto. La luce irruppe e la prima cosa che vide furono
95
Porque não havia a menor dúvida de que a porta estava aberta no momento do incêndio, como
comprovaram os restos dos alisares ainda presos às dobradiças. Então, por que a porta tinha sido escancarada
para provocar uma forte corrente de ar que atiçasse o fogo? O cão rastreador que era Puglisi despertou,
aguçou as orelhas, farejou o ar, mas o cansaço era tanto que decidiu que, depois de lavar-se, voltaria a estudar
a questão com a cabeça mais leve e livre. (2004: 92)
97
due statue d’ebano, a grandezza naturale, messe sul letto.
Rappresentavano i corpi nudi di un uomo e di una donna,
strettamente allacciati. (1995: 96)96
No capítulo “In ritardu, come u solitu” (Atrasado, como sempre!) se abre
mais uma cena da história, centrada no casal Gammacurta. O cenário é o teatro,
com a apresentação da ópera já iniciada, na qual o médico chega atrasado,
sendo logo repreendido pela esposa: “Il secondo atto è principiato da un pezzo”
confermò arrabiata la signora Gammacurta. “Ti pare cosa da persone civili fare
come fai tu?”. (1995: 97)97
O médico, assim como quase todos ali presentes, dava pouca ou nenhuma
importância ao evento. Conversavam em alta voz, às vezes distantes uns dos
outros, sem sequer olhar para o palco, onde os cantores se esforçavam para
serem ouvidos. Na verdade, a população via no evento uma oportunidade de se
encontrar com amigos e parentes, logo utilizaram o tempo de outra forma:
“Era tutto un gran condolersi per lutti e disgrazie e un compiacersi
per matrimoni, nascite e zitaggi. Il paese, una volta tanto
insolitamente riunito, visto che l’opera non lo pigliava, aveva colto
l’occasione per scambiarsi fatti e notizie.” (1995: 98)98
Quem estava preocupado era o prefeito, que assistia do seu camarote real
o fracasso do espetáculo, estando acompanhado, entre outros, de dom Memè,
que permanecia impassível ao quadro, podemos dizer, cômico que se desenhava
no teatro: cantores tentando desesperadamente serem ouvidos pela plateia que,
desinteressada, fazia a sua própria apresentação, num autêntico coro de vozes,
96
A porta da casa da viúva, de verde, havia-se tornado marrom, devido à fumaça. Abriu-a e entrou em uma
ante-sala pequena, negra, porque lá dentro tudo se havia tornado escuro. Avançou alguns passos e viu-se no
quarto de dormir. Não conseguia divisar nada. O cheiro se havia tornado cor de piche. Um débil raio de luz
entrava por uma das folhas do janelão, entreaberta. Aproximou-se dele e abriu-o por inteiro. A luz invadiu, e
a primeira coisa que viu foram duas estátuas de ébano, de tamanho natural, jogadas na cama. Representavam
os corpos nus de um homem e uma mulher, estreitamente abraçados. (2004: 96)
97
"O segundo ato já começou faz tempo", confirmou, com raiva a senhora Gammacurta. "Você acha que é
coisa de gente civilizada comportar-se como você se comporta? (2004: 97)
98
Por tora parte um condoer-se por lutos e desgraças, e um alegrar-se por matrimônios, nascimentos e
noivados. O povoado, uma vez tão insolitamente reunido, já que a ópera não lhe despertava interesse,
aproveitava a ocasião para intercambiar fatos e notícias. (2004: 98)
98
alheia ao que acontecia à sua volta. O ato, que poderia ser lido como oposição ao
prefeito, a sua autoridade e a sua ópera, era na verdade apenas o reflexo da falta
de conhecimento musical da população, que, ademais, não sentia interesse pelo
espetáculo. Esse fato incomodava Bortuzzi, não por ele em si, mas pelo que
representava:
Tutto gli stava andando per traverso, a Sua Eccellenza, e senza
che quelli che erano apertamente contro all’opera fossero
intervenuti con fischiate da crapari e rumorate varie, dallo
sghignazzo al pìrito. Le cose stavano andando storte perché il
Birraio cadeva nell’indifferenza generale. Non pigliava. Tálio don
Memè e questi allargò le braccia. Contro dieci ce l’avrebbe fatta,
ma contro un paese intero? (1995: 98-9)99
Ou seja, pior que a oposição e as pessoas que, contra a vontade, assistiam
uma ópera por causa da autoridade do prefeito, era aquela plateia lotada,
totalmente indiferente ao espetáculo, o que provocava um efeito indesejado: dava
força aos opositores do Birraio e, ao mesmo tempo, afundava ainda mais a
autoriade de “sua excelência”.
Após tentar entender a história encenada na ópera, ouvir os comentários
da esposa, concluir que realmente o espetáculo não faria sucesso em Vigàta e,
até, assistir uma parte do ato em curso, além de se aborrecer com o comentário
da mulher que olhava atentamente para o palco, não pelo espetáculo, mas para
os vestidos, Gammacurta decide ir embora para casa, e descobre que as saídas
estavam bloqueadas, por ordem do prefeito. Os presentes até poderiam
desdenhar a ópera, mas teriam de permanecer no teatro até o fim de sua
apresentação.
“Dove andate?” gli spiò uno dei due con la tipica voce da sbirro
che faceva saltare i nervi a Gammacurta, magari se mai aveva
avuto a che fare con la liggi e i suoi rappresentanti. Perciò
arrispunnì sgarbato. (1995: 99)100
99
Estava tudo indo de mal a pior para Sua Excelência, e sem que aqueles que estavam abertamente contra a
ópera tivessem sequer intervindo com assobios de guardiães de cabras e ruídos variados, de gargalhadas a
imitação de peidos. As coisas estava indo mal porque o Birraio caía na indiferença geral, não interessava a
ninguém. Olhou don Memè e este abriu os braços. Contra 10 ele havia ganhado, mas contra um povoado
inteiro? (2004: 99)
100
"Aonde o senhor vai?", perguntou um dos dois, com a típica voz de policial, que irritava Gammacurta,
embora nunca tivesse tido nada a ver com a lei e seus representantes. Por isso respondeu descortesmente.
(2004: 103)
99
Gammacurta tenta argumentar, mas é proibido de sair do teatro, por causa
da ordem do prefeito: quem tentasse desobedecer seria preso. O médico, a essa
altura, já irritado, decide procurar outra saída, encontrando uma nos fundos do
teatro. Porém, quando consegue cruzar a porta, ouve uma ordem para levantar as
mãos: um militar a cavalo lhe apontava a arma, porque acreditava se tratar de um
ladrão com a intenção de roubar o teatro, entrando pelos fundos. Porém, o
médico tenta escapar e corre na direção da casa de gnà Nunzia, escondendo-se
nos fundos, em um depósito de sal, pois acreditava que o militar não o alcançaria:
“Difatti il milite non ci entrò, fermò la vestia, pigliò accuratamente la mira verso
l’ùmmira nìvura che sul bianco del sale spiccava malgrado lo scuro e sparò.”
(1995: 104)101
O próximo capítulo retoma a ação de Nando Traquandi e Decu Garzìa. A
primeira cena de “Avissi voluto che mio padre” (Eu gostaria que meu pai) mostra
que as duas personagens ficaram sozinhas, sem o apoio do demais, para
incendiar o teatro. Decu Garzìa encontra-se em um momento reflexivo; afirma que
gostaria que seus pais tivessem pensado antes de fazê-lo nascer. Quando o
romano, mais por cortesia que por interesse, pergunta o porquê dessa afirmação,
ele responde:
“Perché non lo saccio io stesso quello che mi piglia appena sento
che c’è da fare motuperio, bordello. Vogliamo abbrusciare il
teatro? Abbrusciamolo, c’è qua Decu pronto! Vogliamo dare fuoco
al paisi? Date una torcia a Garzìa! Vogliamo mannàrsi a farsi
fottere il mondo? Eccomi in prima fila! Ma pirchì? Per comu? Per
quale scascione? Nun me n’importa nenti di nenti. Appena c’è di
fare danno, ruvina, minnita, mi viene la smania, ci devo essere
puro io”. (1995:105)102
A Traquandi, porém, pouco importava a motivação de Decu Garzìa, visto
que desejava apenas concluir seu propósito.
101
De fato, o soldado não entrou nele, parou o animal, mirou cuidadosamente na direção da sombra negra
que sobressaía no banco do sal, apesar da escuridão, e atirou. (2004: 105)
102
"Porque eu mesmo não sei o que dá em mim assim que ouço que está se armando algum rolo, alguma
confusão. Estão querendo queimar o teatro? Pois vamos lá, Decu está pronto! Vamos tacar fogo no povoado?
Dêem uma tocha a Garzìa! Queremos mandar o mundo todo pro inferno? Aqui estou eu, na primeira fila!
Mas, por quê? E como? Por que razão? Não me importa nem um tico. Basta que exista a possibilidade de
causar dano, de ruína, vingança, vai me dando uma ânsia que eu tenho que me meter também." (2004: 107)
100
A condição social e a história da Itália de então voltam a ser citadas no
momento em que dom Pippino retorna com os objetos que os dois utilizariam no
ataque ao teatro. Questionado pelo próprio Nando Traquandi, dom Pippino
confirma que o despreza, e explica o motivo:
“No, non scherzo, si figuri se è il momento giusto. Io ho visto
l’esercito italiano, in più occasioni, e sempre più frequentemente,
sparare su gente che protestava perché stava a murìri di fame.
Hanno sparato magari su fìmmine e picciliddri. E io ne ho provato
raggia e vrigogna. Raggia perché non si può restarsene freschi e
tranquilli a vedere ammazzare persone ‘nnuccenti. Vrigogna
perché io stesso, con le mie parole, i miei atti, con gli anni di
galera, con l’esilio, ho dato una mano a fare quest’Italia che é
addiventata cosi com’è, una parte che soffoca l’altra e se si
ribella, la spara. Ora perciò non ho più gana di provare altra
vrigogna dando appoggio a persone come lei, che magari la
pensano come a mia, ma che non si fanno scrupolo di provocare
altro sangue. Questo è quanto. Fine della predica”. (1995: 106 107)103
Na sequência, o romano deixa a casa em companhia de Garzìa, ambos
cautelosamente caminhando no escuro, rumo à ação. Durante a caminhada,
Traquandi sonda sobre a cidade através de diversas perguntas a Decu Garzia.
Queria saber como funcionava a iluminação do teatro e da cidade, ao que o outro
responde, revelando também algumas ilegalidades e fofocas, como por exemplo o
desvio de recursos que os responsáveis pela iluminação pública realizavam
desligando as luzes duas horas antes do combinado, ou a guerra entre o prefeito
e Puglisi, porque Bortuzzi abrira uma investigação contra ele, que era acusado de
proteger o jogo de loto clandestino. Porém, dessa acusação, o delegado saira
ileso:
“[...] È vero che il prefetto l’ha denunciato, ma è puro vero che
Puglisi se ne è nisciuto pulito. Questo però non significa”.
“Nun significa che ?”.
103
"Não, não estou brincando, imagine se isto é momento para tal. Eu vi o Exército italiano, em mais de uma
ocasião, e cada vez mais seguidamente, atirar contra gente que protestava porque estava morrendo de fome.
Atiraram até em mulheres e crianças. Eu senti raiva e vergonha disso. Raiva de não poder ficar calmo e
indiferente vendo pessoas inocentes serem mortas. Vergonha porque eu mesmo, com minhas palavras e meus
atos, com anos de cadeia, com o exílio, contribuí para fazer esta Itália que chegou a ser o que hoje é, uma
parte sufocando a outra e, quando esta se revolta, atirando nela. Por isso agora não tenho mais vontade de
sentir vergonha maior dando apoio a pessoas como o senhor, que talvez pensem como eu, mas que não têm
escrúpulos em provocar mais sangue. Só isso. Fim do sermão."(2004:107-08)
101
“Che Puglisi te la lassa passare liscia se abbrusci il tiatro. Sempre
sbirro è, ed è sbirro bravo. [...]” (1995: 110)104
A afirmação de Decu Garzia nos permite verificar o julgamento que se fazia
de Puglisi, tido como um bom policial, e que, portanto, poderia representar um
perigo ao crime que estavam para cometer. Após roubarem dois cofrinhos de um
oleiro, foram diretamente para o teatro e, ao chegarem, Traquandi preparou
cautelosamente os dois cofres, enchendo-os com petróleo e pedaços de tecido.
Quando estava tudo pronto, partiram para a ação:
“Ce semo” disse Traquandi a vascia voce. “Tu vai verso er lato
destro. Spacca tutti i vetri delle finestrelle, poi butta dentro er
dindarolo. Io faccio l’istesso coll’artro. Aspetta che te l’appiccio”.
[...]
“Dammi puro il dindarolo tuo” fece il romano “e tu intanto spacca
tutti i vetri, faranno corrente d’aria”. (1995: 111)105
O rastro deixado pela dupla durante a ação foi aquele que o delegado
observou em sua inspeção, quando analisou a cena do crime.
A última cena desse capítulo mostra o princípio do incêndio e os cúmplices
se dirigindo à casa de Decu Garzìa, pois o romano estava com fome e sono.
Ao chegar a este ponto da narrativa, o leitor já percorreu a metade do
caminho e conhece a história do teatro, bem como os conflitos de poder
existentes em Vigàta e a motivação do incêndio.
O capítulo “Tutti oramà lo conoscevano” (Todos já o conheciam) apresenta
um novo protagonista, dom Ciccio, ou Amabile Adornato, seu nome de batismo,
um exímio marceneiro, conhecido e respeitado em várias cidades vizinhas à
Vigàta, que nunca ficava sem trabalho. Porém, essa era apenas uma das
qualidades de dom Ciccio:
104
"[...] É verdade que o prefeito o denunciou, mas é também verdade que Puglisi saiu inocente do inquérito.
Mas isso não significa nada."
"Não significa o quê?"
"Que Puglisi venha a livrar tua cara se incendiar o teatro. Ele não deixa de ser um tira, e um tira dos bons.
[...]."
105
"Chegamos", disse Traquandi em voz baixa. "Você vai para a direita. Quebra todos os vidros das
janelinhas, depois joga dentro o cofrinho. Eu faço o mesmo com o outro. Espere que eu o acendo para você."
[...]
"Me dê seu cofre também", disse o romano, "e você enquanto isso quebra todos os vidros, para fazer corrente
de ar." (2004: 112)
102
Don Ciccio teneva un particolare: non solo aveva studiato musica,
sapeva leggere la carta, ma era puro capace di sonare il flauto
traverso con la stessa bravura con la quale si contava sapessero
sonare gli angeli quando il Padreterno comandava loro di fargli un
concertino. (1995:113-4)106
Todos os domingos, após o almoço, ele realizava em sua casa um
encontro de música para seus amigos mais chegados. Era admirado por seu
vasto conhecimento e talento, o que aguçava a curiosidade de muitos, que
sempre faziam a mesma pergunta: “Don Ciccio, comu fu?”107, que acabou lhe
rendendo um sobrenome: “Don Ciccio comu fu”.
O destino de dom Ciccio se cruzou com o do Birraio na tarde em que ele
recebeu a visita dos principais membros do circolo “Famiglia e progresso” que
queriam fazer uma pergunta importante: “Don Ciccio, voi la conoscete quest’opera
che il signor prefetto di Montelusa vuole a tutti i costri farci sentire?” Mi pare che si
chiama Il birraio di Preston”. (1995:115)108
Diante da afirmativa de dom Ciccio, que conhecia a ópera, e havia visto
sua encenação mais ou menos há vinte anos em Palermo, os membros do Circolo
esperavam pela sua opinião. A resposta veio através de uma ação, não de
palavras:
Don Ciccio si calo verso terra chiano chiano, portando il braccio
sinistro darrè la schina che gli faceva male, con la mano destra
pigliò un riccio di legno, si risusì. Mostro a tutti lentamente il
truciolo, come un prestigiatore o un parrino che in chiesa fa
vedere l’ostia consacrata.
“Quest’opira è acussì” disse.
Strinse il truciolo tra le dita, lo sbriciolò, ne gettò i minuti
frammenti per aria.
“Questa è l’opera, la sua consistenza”. (1995:115-6)109
106
Don Ciccio tinha uma característica: não só tinha estudado música, sabia ler partituras, mas também era
capaz de tocar flauta transversa com a mesma maestria que, ao que se dizia, os anjos a tocavam quando o
Padre Eterno lhes dava ordem de fazer um pequeno concerto. (2004: 114)
107
Don Ciccio, como foi? (2004:115)
108
"Don Ciccio, o senhor conhece essa ópera que o senhor prefeito de Montelusa quer a qualquer preço nos
obrigar a assistir? Parece que se chama Il birraio di Preston". (2004: 116)
109
Don Ciccio abaixou-se lentamente, até o chão, levando o braço esquerdo atrás das costas, que lhe doíam,
com a mão direita pegou uma raspa de madeira, e tornou a erguer-se. Mostrou a todos a lasquinha enrolada
da madeira, como um prestidigitador ou um padre mostrando na igreja a hóstia consagrada.
"Essa ópera é isto", disse.
Apertou a lasca de madeira entre os dedos, estraçalhando-a, e jogou os diminutos fragmentos no ar.
"É esta a consistência da ópera." (2004: 116-7)
103
A opinião do velho marceneiro prejudicou ainda mais a já maculada
reputação da ópera, e o amanhecer do dia seguinte viu dom Memè entrar
velozmente no gabinete do prefeito, que logo soube o motivo do alarme: “Capita
che quel gran cornuto di falegnami di Vigàta don Ciccio Adornato, non è
d’accordo, L’opira non ci piaci, l’ha detto a quelli del circolo e ora lo va dicendo a
tutti”. (1995: 116)110
Dom Memé sabia que a opinião de dom Ciccio teria peso, e explicou ao
prefeito que ele não era um simples marceneiro, mas uma autoridade nos
assuntos musicais. Pede, então, que Bortuzzi colocasse em prática o plano por
ele proposto, para dar um sumiço temporário no crítico musical, a fim de que não
causasse mais nenhum prejuízo a seus planos.
A solução encontrada por dom Memè, relativamente simples, consistia em
ludibriar o Comendador Lillo Lumìa, que tinha uma empreitada embargada por
Bortuzzi, dizendo-lhe que o prefeito havia decidido reconsiderar sua decisão.
Segundo dom Memè seria a única opção: “Eccelenza, se non gli dico accussì non
posso fare quello che ho in testa di fare, e don Ciccio il falegnami può continuare a
smerdare l’opira e a metterci i vigatèsi contro.” (1995: 118)111
Dom Memè garantiu ao prefeito que ele não precisaria mudar de ideia em
relação ao Comendador Lumìa e à sua empreitada, porque, depois da
apresentação da ópera poderia dizer que não mudara de opinião.
A alegria ao receber a notícia favorável foi tamanha que o Comendador se
colocou à disposição de dom Memè ou de qualquer um de seus amigos.
Percebendo que havia conseguido o que queria, Ferraguto colocou em prática
seu plano. “Mi state facendo venire una cosa a mente. Se proprio ci tinìte, potreste
darmi una mano d’aiuto per una minchiata, uno sgherzo a un amico” (1995: 120)112
Naquele mesmo dia, um criado do Comendador foi até o depósito de dom
Ciccio e pediu-lhe que o acompanhasse à casa de dom Lillo, com urgência, para
110
"O que houve é que aquele grande corno de carpinteiro de Vigàta, don Ciccio Adornato, não está de
acordo. Não gosta da ópera, disse isso para os do clube e agora anda dizendo para todo mundo." (2004: 117)
111
"Excelência, se não falar assim, não vou poder fazer o que tenho em mente, e don Ciccio, o carpinteiro,
vai poder continuar a jogar merda na ópera e colocar os vigatenses contra nós." (2004: 119)
112
"Está me fazendo lembrar de uma coisa. Se o senhor faz mesmo questão, poderia me dar uma ajudinha
para uma bobagem, uma brincadeira que quero fazer com um amigo?"(2004: 121)
104
retirar um “etàgere”. Duas horas depois o móvel já estava sendo transportado
para a oficina do marceneiro, onde deveria ficar por duas semanas. O plano de
afastar dom Ciccio teve seu desfecho ao amanhecer do dia seguinte:
Alle sette del mattino del giorno appresso, don Ciccio, che aveva
appena aperto, vide trasire nel magazzino il tenente Pillitteri dei
militi a cavallo con due dei suoi uomini. Senza dire manco una
parola gli sbirri lo sbatterono contro il muro, mentre Pillitteri
andava a colpo sicuro verso il tanger. Lo raprì, levo un quadratino
di legno che nascondeva un angolo morto, ci infilò la mano, tastiò,
tirò fora due anelli di brillanti e un colliè di cui la signora Lumìa
aveva denunziato la sira avanti la scomparsa. Pillitteri gli mise i
ferri ai polsi e gli fece attraversare tutta Vigàta a piedi in mezzo ai
due militi a cavallo. (1995: 121)113
Assim, dom Ciccio acabou pagando caro, com a privação da própria
liberdade, além da falsa acusação de roubo. Sua opinião contrária ao Birraio o
afastara do convívio social, como era a intenção de dom Memè. Ademais, sua
prisão serviu como um aviso aos que porventura se opusessem ao espetáculo
que estava para acontecer.
“Il vento s’alzò da occidente” (O vento veio do Ocidente) leva o leitor de
volta à casa de Concetta Lo Russo. O delegado agora observa a madeira que
servira de ponte para o homem, ainda descohecido, entrar na casa da viúva e, no
interior da casa, o estado em que esta ficara por causa do fogo, com as paredes
pretas e uma nuvem de fuligem. Ele ainda estava no quarto, a observar os corpos
e o ambiente, quando a irmã da morta chegou à casa. O delegado ainda tentava
encontrar uma forma de comunicar a morte da viúva quando Agatina, percebendo
o que havia acontecido, começa a gritar. E Puglisi não conseguiu suportar os
gritos e as lágrimas da mulher:
Ma era proprio questo che Puglisi di natura sua non era capace di
reggere, le vociate e le lagrime delle fimmine. Violento e
improvviso, lo schiaffo del delegato fece torcere la faccia di
Agatina tutta da un lato, mandò a sbattere la picciota contro un
113
Às sete da manhã do dia seguinte, don Ciccio, que acabava de abrir o depósito, viu entrar na oficina o
Tenente Pillitteri, da Polícia Montada, com dois de seus soldados. Sem dizer palabra, os esbirros o colocaram
de encontro à parede, enquanto Pillitteri ia, sem hesitar, para o étagère, que abriu. Dele tirou um quadradinho
de madeira, que escondia um ângulo morto, enfiou nele a mão, vasculhando, e retirou dois anéis de brilhantes
e um colar, dos quais a Senhora Lumìa tinha dado falta na noite anterior.
Pillitteri colocou-lhe as algemas nos pulsos e o fez atravessar toda Vigàta a pé, no meio dos dois soldados a
cavalo. (2004:122)
105
muro. Contemporaneamente Puglisi le arrivò di sopra con tutto il
corpo, schiacciandola.
“Statti azzittata. Non ti cataminare, non fare voci. Ferma, o ti
arriva un’altra timbulata che ti apiccia la testa. Mi senti? Stati
ferma o ti spacco la faccia. Talìami, mi capisci?”. (1995:123)114
Após levar Agatina até o quarto e mostrar-lhe os cadáveres da irmã e do
amante, na cama, o delegado a questionou sobre a duração do relacionamento
que Concetta e Gáspano Inclima mantinham; porém, chegaram à conclusão que
aquele teria sido o primeiro e último encontro do casal, e refletiam sobre aquela
fatalidade, pois a jovem viúva pagara com a vida o seu encontro secreto, após
cinco anos de viuvez, e o pior ainda estava por vir, pois teria sua honra denegrida.
O delegado ponderou que poderia evitar que a imagem da viúva fosse maculada:
Tornò nella cammara da letto, s’avvicinò ai due morti, allungò una
mano e toccò i corpi. Erano ancora morbidi e cedevoli, si vede
che il calore dei fumolizzo aveva ritardato la legnosità della morte.
Si levò la giacchetta, i pantaloni, la cammisa: rimase in mutande e
maglia di lana. Tirò un lungo sospiro e si mise all’opera.
(1995:126)115
Terminada a arrumação do quarto, chamou Agatina e disse-lhe que a cena
que ela veria era a “oficial”, a que deveria ser descrita a todos, como sendo a
encontrada no momento em que entrara na casa da irmã:
Nella cammara la scena era completamente cangiata. Sul letto,
non più nuda ma in fodetta, ci stava Concetta, ed era come se
stesse tranquillamente dormendo. Il piccioto invece era
stinninchiato per terra, completamente vistuto, i piedi rivolti verso
il finestrone e un braccio sopra il letto. Stava a facciabocconi.
(1995: 126)116
114
Mas era justamente isso que Puglisi, dada a sua natureza, não era capaz de aguentar: os gritos e as
lágrimas das mulheres. Violento e imprevisto, o tabefe do delegado fez Agatina virar o rosto para um só lado
e a jovem bater de econtro a uma parede. Ao mesmo tempo, Puglisi chegou sobre ela com todo o corpo,
imprensando-a.
"Fique quieta. Não se mova, não grite. Pare, ou vou ter que lhe dar outra bofetada de arrebentar a cabeça.
Está me entendendo? Fique parada ou te quebro a cara! Olhe para mim, está me entendendo?" (2004: 124)
115
Voltou para o quarto de dormir, aproximou-se dos dois cadáveres, estendeu a mão e tocou os corpos.
Estavam ainda macios e cediam à pressão, via-se que o calor da fumaça tinha retardado a rigidez da morte.
Tirou o casaco, as calças e a camisa: ficou em cuecas e camiseta de lã, deu um longo suspiro e pôs mãos à
obra. (2004:126-7)
116
No quarto a cena estava completamente mudada. Na cama, não mais nua, e sim de combinação, estava
Concetta, como se estivesse dormindo tranquilamente. O rapaz, ao contrário, estava estendido no chão,
completamente vestido, os pés virados para o lado do janelão e um braço sobre o rosto. Estava de bruços.
(2004: 127)
106
O delegado gostava de Agatina, e talvez, por isso, ou porque achasse
mesmo uma injustiça a viúva ser difamada por uma única noite de amor, segundo
suas próprias palavras “E io tutto questo tiatro lo sto facendo solo perché non mi
pare di giusto e poi perchè me l’hai addimandato tu” (1995: 127)117, resolveu
alterar a cena e assim salvar a honra da falecida. No cenário criado, os amantes
tornaram-se vítimas inocentes do incêndio: ela, morta por não ter conseguido
escapar das chamas; ele morto heroicamente ao tentar salvar a viúva.
O sentimento de justiça, ou a interpretação do que seria mais justo,
também é característica de Montalbano. Podemos observar tal semelhança na
atitude do comissário em La forma dell’acqua, descrita em L’incantesimo di
Camilleri:
Montalbano è uno che non sopporta le sopraffazioni e le
ingiustizie sociali [...]
Contro di essi si batte come uomo, prima che come poliziotto.
Perciò non disdegna, per arrivare allo scopo, di adoperare
metodi non sempre ortodossi dal punto di vista dell’applicazione
della legge. Per esempio, in La forma dell’acqua, non esita a
patteggiare con l’avvocato Rizzo, un potente di sottobosco
mafioso implicato in un omicidio, per procurare una soluzione a
un testimone recalcitrante, che a rigore dovrebbe essere
perseguito: costui ha tentato di vendere un oggetto prezioso
trovato per caso, forse una prova, perchè ha il figlioletto malato,
è povero e non può permettersi il costo delle cure per il bambino.
Montalbano fa in modo che a pagare le cure sia proprio
l’avvocato Rizzo, e non importa se bisognerà falsificare una data.
(2005: 93)118
Podemos observar que tanto Montalbano quanto Puglisi recorrem a
métodos questionáveis para fazer valer seu senso de justiça. Porém o autor
consegue articular os “deslizes” da verdade nua e crua, do estritamente legal e
verdadeiro, sem comprometer o caráter ou a capacidade investigativa de ambos.
O leitor sempre sabe o real motivo de tais atitudes.
117
"Estou fazendo toda esta encenação só porque não me parece justo, e também porque você me pediu."
(2004:128)
118
Montalbano não suporta as opressões e injustiças sociais. [...]
Contra essas, luta como homem, mais do que como policial. Por isso, para alcançar seus objetivos, não hesita
em utilizar métodos pouco ortodoxos do ponto de vista legal. Por exemplo, em La forma dell'acqua, não
exita em estabelecer um pacto com o poderoso dvogado Rizzo, de passado mafioso, envolvido em um
homicídio, na tentativa de encontrar uma solução para uma testemunha desobediente, que deveria ser
rigorosamente perseguida: essa pessoa tentara vender um objeto precioso que achara, talvez uma prova,
porque tinha o filho doente, e, sendo pobre, não podia arcar com o custo do tratamento do menino.
Montalbano faz que o próprio advogado Rizzo pague o tratamento, e não importa se precisará falsificar uma
data. (Tradução da autora)
107
Puglisi, assim com outros investigadores, não se encaixa no perfil clássico
do investigador frio e calculista, focado exclusivamente na solução do enigma,
cuja vida particular e sentimentos são totalmente ignorados. Por gostar da irmã da
jovem viúva, interferiu na realidade, criou, como ele mesmo disse, um teatro, no
qual se encenou uma ficção sobre a morte de Concetta e Gàspano. O delegado,
inclusive, acabou se deixando seduzir por Agatina, ainda na casa incendiada, ato
cujo desdobramento se verifica mais adiante na trama.
Por fim, ele chama seu assistente, o investigador Catalanotti, que percebeu
imediatamente que havia algo de errado na cena da morte dos amantes, cuja
disposição dos corpos lhe pareciam “pupi finti”, bonecos criados por alguém:
“Puvireddri! Puvireddri tutti e dù” li compassionò Catalanotti che
non mancava intanto di taliàre d’attorno con gli occhi di bravo
sbirro quale era. C’era qualcosa che non lo faceva persuaso, ma
non la sapeva individuare. (1995: 128)119
A farsa engendrada pelo delegado durou pouco, pois Catalanotti não
concordou com a explicação oferecida por seu chefe. Quando Puglisi falou sobre
a possibilidade de o jovem morto ter subido por uma rampa e quebrado a janela,
na tentativa de salvar a viúva, foi interrompido por seu subordinado, que mostrou
a janela intacta, o que provava que tinha sido Concetta quem a teria aberto.
A observação do jovem investigador deixou o delegado desconcertado:
“Puglisi si sentì come un picciliddro scoperto mentre dice una farfantarìa, non
fosse stato per quello che aveva fatto con la fìmmina, non si sarebbe lasciato
pigliare in castagna come un principiante” (1995: 129)120. Porém, a aflição do
delegado por ter tido ao cometer um erro primário durou pouco, pois Catalanotti
apresentou uma solução para o “problema”:
Fece quattro passi, scansò il morto, arrivò all’altezza dei vetri, li
raprì, niscì sul finestrone sotto la pioggia battente, un vero
sdilluvio, tirò fuori dalla sacchetta un fazzolettone a quadri rossi e
bianchi, vi avvolse la mano dritta, dette un pugno al vetro più
119
"Coitado! Coitados dos dois!" disse, com pena, Catalanotti, que não parava, contudo, de olhar ao redor
com olhos de bom policial que era. Algo ali não o convencia, mas não sabia precisar o que era. (2004: 129)
120
Puglisi sentiu-se como uma criança apanhada inventando uma mentira; se não fosse por aquilo que tinha
feito com a mulher não se teria deixado apanhar de surpresa, como um principiante. (2004: 130)
108
vicino alla maniglia facendo in modo che i pezzi cadessero tutti
all’interno, ritrasì nella cammara.
“Continuassi, diligà”, disse sornione. “Ora il vostro discorso fila
che è una billizza”. (1995:129)121
Neste episódio, verifica-se uma inversão de valores: o detetive, por
definição, é aquele que trabalha sempre em busca da verdade, mas, no caso em
análise, é ele que a mascara, com a ajuda de seu assistente, que coopera para a
construção da farsa.
Mas, esse não é o último acontecimento narrado no capítulo, nem a última
colaboração de Catalanotti, que encontra, sob a montanha de sal, o corpo do
médico Gammacurta. Num primeiro momento, o assistente avista o que parecia
ser apenas uma mancha no monte de sal, uma espécie de bola rosa e preta; mas
se tratava de uma cabeça, que a chuva torrencial que caía descobre: “È una
testa, diligà. È la testa di un catafero” fece Catalanotti che nelle occasioni solenni
gli pigliava di parlare in quello che riteneva essere italiano. “La testa di un catafero
messo in salamoia”. (1995: 130)122
Enquanto mandava seu assistente acompanhar a senhora Agatina, e
também, pedir ao outro colega, Burruano, para avisar ao magistrado sobre a
descoberta que tinham feito, o delegado Puglisi decidiu verificar o corpo
encontrado sob a montanha de sal; tratava-se do cadáver do médico, que, apesar
de estar ali desde o momento em que fora alvejado, ainda vivia, mas não por
muito tempo:
“Dottore! Dottore! “ chiamò privo di speranza.
E invece capitò una specie di miracolo. Gammacurta raprì gli
occhi, lo taliò fisso, lo riconobbe.
“Ah, è lei?” articolò con difficoltà ma chiaramente. “Buongiorno”.
Calò la testa di lato, chiuse gli occhi e morì. (1995: 130-1)123
121
Deu quatro passos, afastou o morto, chegou à altura dos vidros, abriu-os, saiu pelo janelão, debaixo da
chuva que caía, um verdadeiro dilúvio, tirou do bolso um lenço quadriculado em vermelho e branco,
envolveu nele a mão direita, deu um murro no vidro, perto da maçaneta, fazendo com que os pedaços
caissem todos no interior, voltou a entrar no quarto.
"Continue, delegado", disse com um sorriso maroto. "Agora seu relato se encaixa perfeitamente." (Idem)
122
"É uma cabeça, delegado. É a cabeça de um cadáver", disse Catalanotti, que em ocasiões solenes resolvia
falar em algo que julgava ser italiano. "A cabeça de um cadáver conservado em salmoura." (2004: 131)
123
"Doutor! Doutor!", chamou, sem esperança.
E aconteceu, contudo, uma espécie de milagre. Gammacurta abriu os olhos, olhou-o fixamente, reconheceuo.
"Ah, é o senhor", articulou com dificuldade, mas claramente. "Bom dia."
Inclinou a cabeça para os lados, fechou os olhos e morreu. (2004: 131)
109
O décimo quinto capítulo, “Nell’accingermi alla descrizione” (Ao prepararme para descrever), é construído como se fosse um coro, onde diversas vozes,
embora dissonantes, tratam do mesmo tema. A fala de três autoridades é
intercalada com as vozes populares, anônimas, que através de cartas
demonstram
seus
sentimentos
sobre
os
acontecimentos
que
Vigàta
experimentava nos últimos tempos.
A primeira voz é ser ouvida é a do prefeito Eugenio Bortuzzi, que através
de um longo e detalhado relatório narra os últimos acontecimentos da cidade,
tece comentários sobre a situação política da ilha: sobre a inauguração do teatro
e a polêmica em torno da encenação de Il birraio di Preston, opina que os fatos
havidos na noite da inauguração representavam uma sublevação popular contra
sua autoridade de Representante do Estado; afirma que a escolha da ópera tinha
sido meramente casual:
Mi venne allora, del tutto casualmente, di formulare un titolo,
quello del Birraio di Preston, opera da me goduta in anni più verdi
e precisamente alla sua prima esecuzione trionfale avvenuta in
Firenze nell’anno 1847. Feci quel titolo certamente non per
ragioni personali, ma perchè ritenevo che quell’opera, nella sua
vaga leggerezza, nella sua semplicità di parola e di musica, fosse
atta alla ritardata comprensione dei siciliani, e dei vigatèsi in
particolare, per ogni superno manifestarsi dell’arte. (1995: 134)124
O prefeito esclarece que sua sugestão não tinha tido o objetivo de impor
sua autoridade perante a população, mas visava ajudá-la, uma vez que se tratava
de pessoas com pouco acesso a eventos culturais. Supõe que o repúdio à ópera
se devesse ao fato de ter sido ele a sugeri-la:
Alcuni componenti del Consiglio d’Amministrazione, frammassoni
e mazziniani in combutta con frammassoni e mazziniani di Vigàta,
saputo che il suggerimento da me proveniva, fieramente e per
puro partito preso s’opposero, spargendo in malafede la voce che
124
Ocorreu-me, então, por mero acaso, mencionar um título, o do Birraio di Preston, ópera que eu apreciei
em meus verdes anos, exatamente quando de sua primeira e triunfal execução, acontecida em Florença, no
ano de 1847. Citei aquele título evidentemente não por motivos pessoais, mas porque julgava que aquela
ópera, por ser algo bem leve e de grande simplicidade en termos de letra e música, seria adequada à lerda
compreensão dos sicilianos, e dos vigatenses em particular, em relação a toda e qualquer superior
manifestação de arte. (2004: 134)
110
trattavasi non di un mio umile parere ma di un mio preciso ordine.
125
(1995: 134)
Na sequência do relatório do prefeito a seu superior, um documento
redigido em italiano, de maneira polida, são apresentadas duas pequenas cartas
à autoridade local, escritas por populares, nas quais pode ser observado o largo
uso do dialeto siciliano, porém com grafia incorreta, e identifica-se, especialmente,
a presença do coro, um dos elementos caracterizadores do melodrama:
“Al signor profeto Bortuzziiccillenza
Montelusa
“Caro Profetto, tu si na grandi testa di cazzo. Pirchì non te ne torni
a Forenze? Tu non sì un profetto na uno strunzo ca feti e uno
sasìno. Tieni tre morti sopra li spaddri per il foco del tiatro. Tu sì la
peju sdilinquenzia. Nun ai cuscienza. Firmato un citatino”.126
“A Sua Cillenza Bortuzzi prifeto di Montelusa
“Non ci scassare la minghia ai vigatèsi. L’opra che tu vuoi no si
farà. Lascia perdire, ca è meglio pi tia. I vigatèsi”. (1995: 135)127
Em ambas as cartas, podemos verificar a oposição que a população, de
fato, fazia ao prefeito. Outro ponto interessante é que, assim como na
organização da própria narrativa, as duas cartas tinham sido escritas em tempos
diferentes, a primeira após o incêndio, a segunda antes da noite da inauguração.
A próxima autoridade, o padre, faz uma exortação aos seus párocos para
não iemr ao teatro, pois, em sua opinião, “il tiatro è la casa preferita dal diavolo”.
Na tentativa de convencer os fiéis, o padre cita Santo Agostinho, exemplificando:
Conta Tertulliano che una volta una fimmina divota, onesta e
bona matri di famiglia, s’intestò a tutti i costi che voleva andare a
125
Alguns membros do Conselho de Administração, franco-maçons e mazzinianos, de comum acordo com
franco-maçons e mazzinianos de Vigàta, ao saber que a sugestão partira de mim, orgulhosamente e por puro
parti pris, foram contra, difundindo, de má-fé, o boato de que se tratava não de um humilde parecer meu, mas
de uma terminante ordem minha. (Idem)
126
"Ao Senhor Profeto Bortuzzi Cilenza
Montelusa
"Caro profeto, você é um grande cabeça de merda. Por que não volta para sua Florença? Você não é um
profeto, você não passa de um bosta que fede e um burro. Tem três mortes nas costas por causa do incendio
do teatro. Você é um criminoso da pior raça. Não tem conciência. Assinado - Um cidadão." (2004: 135)
127
"A Sua Cillenza Bortuzzi, Prifeto di Montelusa.
Não encha o saco dos vigatenses. A ópera que tu tá querendo não vai ser levada. Esquece isso, que é melhor
pra tu.
Os vigatenses." (2004: 135)
111
tiatro. Non ci poté né marito, né patre, né madre, né figli. La
fìmmina tistarda taliò lo spittacolo, ma quando niscì non era più la
stissa. Biastimiva, diciva parulazzi, vuliva che ogni mascolo che
incontrava la cavarcasse sulla strada stissa. A forza marito e figli
si la purtarono ni la casa e chiamarono un parrino di corsa. Il
parrino vagnò con l’acqua biniditta la fìmmina e disse al diavolo
di nèsciri fora. E sapete che arrisponnì il diavolo?
“Tu, parrino, non t’intricare in una cosa che è mia! Io questa
fìmmina mi pigliai pirchì issa di sua volontà vinni dintra di la me
casa, che è u tiatro!”. (1995: 136)128
O padre, aparentemente, não tinha motivos para exigir tanta fidelidade do
povo, pois uma carta com revelações lhe fora enviada. Mais uma vez os cidadãos
se manifestavam e novamente o coro aparece na obra:
“Reverendissimo canonico
“G. Verga – Chiesa Matrice – Vigàta
“Ero in chiesa aieri a sentire la sua predica contro il tiatro. E mi
scappa una dimanna: la fimmina che vossia si è tenuta in
parrocchia e dintra il letto per vent’anni e dalla quali ha avuto un
figlio mascolo di nome Giugiuzzo di anni quindici, a quale
categoria di buttane appartiene? Fìmmina di tiatro, fìmmina di
Sodoma, fìmmina di Gomorra o troia semplice? Un parrocciano
che crede alle cose di Dio”. (1995: 137)129
Há uma sequência de correspondências, como o relatório do Coronel
Armando Vidusso, versando sobre os eventos ocorridos na noite, uma carta
endereçada ao Presidente do Tribunal de Montelusa, onde é levantada a suspeita
da existência de favorecimento à família do prefeito com a apresentação do
Birraio, além de uma carta de Villaroel endereçada a Bortuzzi, informando sobre a
pintura de uma parede onde fora feita uma inscrição de ofensa à Excelência.
Finalmente, há o relato do delegado Puglisi, informando o Superintendente sobre
128
Tertuliano conta que uma vez uma mulher devota, honesta e boa mãe de família teimou que queria ir ao
teatro. Não houve marido, nem pai, nem mãe, nem filho que fizessem ela desistir. A cabeçuda da mulher viu
o espetáculo, mas, quando saiu de lá, já não era mais a mesma pessoa. Blasfemava, dizia palavrões, queria
que todo macho que encontrava cavalgasse ela ali na rua mesmo. O marido e o filho levaram ela à força pra
casa e chamaram correndo um padre. O padre banhou a mulher com água benta e mandou o diabo sair fora
dela. E sabem o que o diabo respondeu? 'Padre, você não se meta com uma coisa que é minha! Eu me
apossei dessa mulher porque ela por vontade própria entrou na minha casa, que é o teatro!' (2004: 136-7)
129
"Reverendíssimo cônego
G. Verga - Igreja da Matriz - Vigàta"
"Eu estava na igreja ontem e ouvi seu sermão contra o teatro. E me deu vontade de lhe fazer uma pergunta: a
mulher que o senhor manteve na paróquia e em sua cama durante 20 anos, e com a qual teve um filho macho,
de nome Giugiuzzo, de 15 anos, a que categoria de puta pertence? É uma mulher de teatro, uma mulher de
Sodoma, uma mulher de Gomorra, ou pura e simplesmente uma piranha?
Um paroquiano que crê nas coisas de Deus." (2004: 137)
112
os acontecimentos, número de mortos e feridos. O delegado porém, demonstra
acreditar que aquele evento tenha sido premeditado, “dato che la cosa appare ai
miei ochhi complicata assai e tale da portare pregiudizio alle Alte Autorità dello
Stato”. (1995: 139)130
E como aconteceu nos dois casos precedentes, lemos cartas, ou bilhetes,
escritos por cidadãos que permanecem no anonimato. O primeiro, endereçado a
Puglisi:
“Al tilicato Puglisi
“che cumanna lo sbirrame di Vigàta
“Sei un omo di merda che si profita di li fìmmini”.
(1995:140)131
Além dese bilhete, onde aparentemente o segredo do delegado com Agatina
parece não ser tão secreto assim, há outra carta, endereçada a Totò Pennica, o
marido traído, alertando-o sobre os acontecimentos ocorridos na casa da falecida
cunhada, desde o fato de a morta ser considerada uma mulher sem “honra”, até o
de sua própria mulher ter-se comportado de modo suspeito, tendo em vista sua
reação anormal à notícia da morte da irmã, sem “fare voci e svìniri, comu fannu
tutti li fìmmini do munnu”132, além de permanecer por um longo tempo trancada
com o delegado Puglisi.
Verificamos, assim, que o coro, sabedor de fatos aparentemente secretos e
ocultos, começa a se fazer ouvir.
Mais uma cena se fecha.
No capítulo que se abre, “Oh che bella giornata!” (Oh, que belo dia!) nos são
apresentados novos aspectos da personagem que representa o superintendente
de Montelusa, já citado nos discursos do delegado Puglisi e do prefeito Bortuzzi.
O capítulo é inaugurado com a fala de Everardo Colombo, que se mostra
maravilhado com a bela manhã que se desenha diante de seus olhos.
130
pois a coisa a meus olhos parece bastante complicada, podendo vir a prejudicar Altas Autoridades do
Estado. (2004: 140)
131
"Ao diligado Puglisi que comanda os tiras de Vigàta"
"Tu é um home de merda que se aproveita das mulheres." (2004:140)
132
Gritar e desmaiar, como todas as mulheres do mundo. (2004: 140)
113
O superintendente, que residia na ilha há nove meses, se defrontava
sempre com um tempo chuvoso, que, aliás, lhe era bastante familiar, uma vez que
era milanês, e “a Milano la pioggia fosse persona di famiglia”133. Porém, o
luminoso dia contrastava com o tempo que fazia dentro de sua casa, onde uma
tempestade, que há muito se formara, começava a desabar. Sua esposa decidira
dar um fim repentino à vida do casal, uma dura pena que Everardo Colombo
pagava por negar-lhe a ida ao tão esperado evento ocorrido na cidade:
Pigliò a pugni il muro. La questione con so moglieri durava oramai
da una decina di giorni, da quando le aveva comunicato che
all’inaugurazione del nuovo teatro di Vigàta loro due non
sarebbero andati.
“E perché?”.
Cossa te fottet? Ragioni mie”.
“Ma come? Mi sono fatta un vestito apposta! Lo capisci,
desgraziaa?”.
“Bogna avè giudizi, Pina. Questa storia che el prefett ha con la
gente di Vigàta me pias no. Alla larga di so persecuzion, di so
intrigh! Bortuzzi l’è un matt! Con lui, bene che vada, ti trovi tra el
cess e la ruera. Lassa perd”. (1995:143)134
O superintendente dirigiu-se para seu escritório, e novamente encontramos
o coro na narrativa, não apenas subentendido pelo leitor, mas explicitado no
próprio texto, na voz daqueles que, desde cedo, esperavam pela “autoridade”:
“Buongiorno, Eccellenza” fecero in coro. (1995: 144)135 Meli, o secretário, começa
a transmitir os diversos assuntos a sua excelência, até chegase referir a um
grave fato, ocorrido em Vigàta:
133
e a chuva é como um membro da família (Tradução da autora)
Deu socos na parede. O problema com sua mulher já estava durando uns 10 dias, desde o momento em
que lhe havia comunicado que os dois não iriam à inauguração do novo teatro de Vigàta.
134
"E por quê?"
"Que te importa? Tenho cá minhas razões."
"Mas como? Mandei fazer um vestido para essa data! Não entende, desgraçado?"
"Eu preciso ter cuidado, Pina. Essa história do prefeito com o pessoal de Vigàta não me agrada. É feita só de
perseguições, de intrigas! Esse Bortuzzi é um louco! Com ele, mesmo que as coisas andem bem, a gente fica
entre a cruz e a caldeira. Esquece a ópera." (2004: 142-3)
135
"Bom dia, Excelência", disseram em coro. (2004: 144)
114
“Che altro c’è?”.
Meli esalò un altro angosciato sospiro.
“C’è che il delegato Puglisi di Vigàta ci ha segnalato la presenza
in paese del pericoloso repubblicano romano Traquandi Nando,
per il quale c’è un mandato di cattura emesso dal Ministero”.
“Quel fiocul d’ona baltroca del Mazzini è stato segnalato a Napoli.
Si vede che vuole venire nell’isola per creare rebelòtt e intanto
manda in rondera qualcuno a tastare il terreno. Puglisi ha
scoperto chi dà ricetto al Traquandi?”.
“Sissignore. Abita in casa di don Giuseppe Mazzaglia, che non
ammuccia certo come la pensa”. (1996: 146)136
Diante da revelação da presença do já conhecido mazziniano na cidade e
de que um cidadão vigatense o estava hospedando, o superintendente ordena a
prisão de ambos. Porém, a notoriedade de dom Giuseppe Mazzaglia e a reação
negativa que a prisão de uma figura tão querida pelos vigatenses poderia
provocar fazem que a ordem seja modificada: somente o romano deveria ser
preso, e no dia seguinte ao espetáculo de inauguração do teatro. Tal ordem não
poderia ser descumprida.
Embora o superintendente de Montelusa não soubesse, a ordem que dera
assinou a sentença de morte do teatro e também selou o destino de algumas
personagens, entre elas a do próprio investigador da trama, o delegado Puglisi,
conforme veremos adiante.
A esposa do superintendente volta à cena logo a seguir, quando recebe
seu amante: “Tano Barreca, giovane rappresentante della parlemitana casa di
136
"E o que mais houve?"
Meli exalou outro suspiro angustiado.
"O delegado Puglisi, de Vigàta, registrou a presença no povoado do perigoso republicano romano Nando
Traquandi, para o qual existe um mandato de captura emitido pelo ministério."
"Aquele filho-da-puta do Mazzini foi visto em Nápoles. Vê-se que está querendo vir à ilha para armar uma
rebelião e antes manda alguém na frente para sondar o terreno. Puglisi descobriu quem está dando guarida ao
Traquandi?"
"Sim, senhor. Está na casa de don Giuseppe Mazzaglia, que certamente não confessa o que pensa."(2004:
145-6)
115
profumi e cosmetici ‘La Parisiense’”. (1995:147)137 O encontro dos dois acontece
em sua própria casa, no quarto do casal, a cada quinze dias.
Na cena final, percebemos que havia algo a mais na decisão de Everardo
Colombo adiar a prisão de Nando Traquandi. Tratava-se de uma jogada política
com a qual, segundo seu julgamento, se sairia bem após a inauguração do teatro,
não importando o que acontecesse. Explica à esposa:
[...] Allora, per farle apparire quello che era, si mise a contare la
storia del mazziniano Traquandi. Non l’aveva fatto arrestare
subito, spiegò, perché lui, il superintendente, poteva tirarci il suo
tornaconto. E difatti: se l’opera imposta dal prefetto ai vigatèsi
fosse andata male, lui poteva guadagnare un doppio punto di
vantaggio sull’altro rappresentante dello stato facendo arrestare il
pericoloso agitatore. Se invece l’opera andava bene, poteva
sempre pareggiare il conto mandando in galera, e con grande
scalpore, quel resiatt del mazziniano. Insomma, Traquandi
rappresentava un vero asso nella manica, da giocare al momento
opportuno. (1995: 149-50)138
O que ele não imaginava, porém, é que a execução da ópera iria mal, o
evento se transformaria em uma tragédia, e que o mazziniano de forma alguma
seria um às em sua manga; muito pelo contrário, o colocaria em uma situação
difícil, uma vez que ele sabia da presença do mazziniano e nada havia feito.
Mais uma vez voltamos ao teatro, ao momento em que Il Birraio estava em
execução no palco.
Novo capítulo, “Quanto durerá ancora” (Quanto tempo ainda demora?). A
narrativa começa com a indagação do comendador Restuccia que, impaciente,
olha o relógio e planeja escapar do teatro com a esposa assim que o segundo
ato, em curso, terminasse. Porém, o que acontece na sequência não apenas
137
Tano Barreca, jovem representante da casa palermitana de perfumes e cosméticos La Parisiense. (2004:
147)
138
Então para fazer ver sua importância, começou a contar-lhe o caso do mazziniano Traquandi. Não havia
mandado prendê-lo imediatamente, porque ele, o superintendente, podia tirar alguma vantagem disso. De
fato, se a ópera imposta pelo prefeito aos vigatenses fosse mal, ele poderia ganhar um duplo ponto de
vantagem sobre o outro representante do Estado, mandando prender o perigoso agitador, se, contudo, a ópera
tivesse êxito, podia pelo menos ficar quite mandando para a cadeia, com grande alarde, aquele mazziniano
cretino. Em suma, Traquandi representava um verdadeiro às de baralho na manga, a ser jogado no momento
oportuno. (2004: 149)
116
impede o comendador de realizar seu plano, como também causa tumulto e
confusão.
Os espectadores fazem sua participação no espetáculo. O coro mais uma
vez aparece, tanto nas vozes e ações, que demonstram insatisfação e
reprovação, quanto no que acontece no palco com relação ao desconhecimento
do espetáculo teatral, materializado na violenta reação de Lollò Sciacchitano, que
só se acalmou com a intervenção do delegado Puglisi, a quem explica o motivo
de sua ira:
“Questi del tiatro. Dice che ci sono due Fratelli gemelli, uno che di
nome fa Giorgio e l’autru Daniele! Non è vero, diligatu, privo di la
vista di l’occhi! È sempri la stessa pirsona ca si cangia d’abito e
finge d’essiri ora uno ora l’autro! Ma io sugnu d’occhio fino!”.
“Scusami, Lollò, ma a tia che te ne fotte?”.
“Comu che me ne fotte? Io pagai un biglietto pi vidìri due gemelli!
E Imbeci è sempre uno che fa la finta! Non ci cridete? Vossia li
chiami in palcoscenico tutti e due insèmmula e vedrà che solo
uno se n’appresenta”. (1995: 152)139
Esse tumulto era apenas um dos muitos que se desenvolviam no momento.
Assim que o segundo ato terminou, antes mesmo dos acordes finais da orquestra,
a plateia tentou levantar-se, porém foi impedida pelo capitão Villaroel, que evocou
o até então desconhecido decreto baixado pelo prefeito:
“D’ordine di Sua Eccellenza il prefetto Bortuzzi, allo scopo di
evitare pubblico disordine, si fa comando a tutti quelli che qui
stanno di continuare a starci. Cioè, voglio dire, che non si può
uscire manco nei corridoi. Ognuno ha l’obbligo di restare al posto
suo”. (1995: 153)140
139
"Esses caras do teatro. Dizem que tem dois irmãos gêmeos, um que se chama Giorgio e o outro, Daniele.
Não é verdade, delegado! Que eu fique cego! É sempre a mesma pessoa que troca de roupa e finge ser ora
um, ora outro. Mas eu tenho olho vivo!"
"Perdão, Lollò, mas que lhe importa isso?"
"Como que me importa? Eu paguei uma entrada para ver dois gêmeos. E é sempre o mesmo imbecil
fingindo! Não está acreditando em mim? Pois o senhor chame no palco os dois juntos e vai ver que só
aparece um." (2004:151-52)
140
"Por ordem de Sua Excelência, o prefeito Bortuzzi, e com o objetivo de evitar uma desordem pública,
ordenamos a todos que aqui estão continuem onde estão. Isto é, quero dizer que não se pode sair nem para os
corredores. Todos estão obrigados a permanecer em seu lugar."(2004: 152)
117
Tal ordem não foi bem aceita pelo público, que começou a provocar um
barulho, um coro de vozes que o delegado “Capì che si trattava del mormorio
minaccioso del pubblico”141. (1995: 153)
A autoridade de Villaroel, no entanto, não tida em consideração, tanto que se
viu como protagonista das piadas do público ao tentar sair do palco. Isso
acontecia enquanto o delegado entrava em ação, para manter a ordem, e impedir
as vaias dos espectadores. Simultaneamente, a curiosa cena protagonizada pelo
capitão se desenrolava no palco:
E intanto alle orecchie gli arrivò un coro poderoso, composto non
dagli artisti cantanti, ma dagli spettatori stessi:
“Acqua! Acqua! Acqua! Foco!”.
Tálio strammato verso il palco. Villaroel non ce la faceva a trovare
la spaccatura centrale del sipario che gli avrebbe permesso di
nèsciri.
Si spostava ora a dritta (acqua! acqua!), ora a mancina (acqua!
acqua!), e solo quando si trovava in mezzo sentiva che la gente
gli gridava “Foco! Foco!”. Ma se con le mani tentava di dividere il
velluto pesante, quello mostrava di consistere solo di pieghe
abbodanti, senza mai rivelare una qualsiasi apertura.
(1995:155)142
A confusão continuava por toda parte. Com a proibição de sair de seu
lugar, o já exaltado e enganado Lollò Sciacchitano ameaçou urinar na plateia,
caso não conseguisse chegar ao toalete, o que fez que vários outros
espectadores manifestassem a mesma necessidade. O comendador Restuccia
precisou ameaçar o soldado com sua bengala-estilete, a fim de que sua senhora
conseguisse ir até o reservado. Finalmente as pessoas tiveram permissão para ir
ao toalete.
141
"Entendeu que se tratava do murmurar ameaçador do público." (Idem)
142
Enquanto isso, chegou a seus ouvidos um coro vigoroso, composto não pelos cantores, mas pelos próprios
espectadores.
"Está frio! Está Frio! Está quente!"
Olhou, desnorteado, para o palco. Villaroel não conseguia encontrar a abertura da cortina para poder sair, e,
como num jogo de cabra-cega, ora puxava para a direita (está frio!), ora para a esquerda (está frio!), e só
quando se encontrava no meio ouvia as pessoas gritarem (está esquentando!). E se tentava com as mãos
dividir o pesado veludo, este mostrava apenas consistir de dobras abundantes, sem nunca revelar uma
abertura qualquer. (2004: 154)
118
Começa o terceiro ato, sem maiores problemas. O cenário novamente
havia sido trocado e os cantores, antes cervejeiros e depois soldados, agora se
vestiam de nobres. Lollò Sciacchitano, para alívio do delegado, não percebeu
nada por estar brigando com alguém sentado ao seu lado. O clima dentro do
teatro estava mais calmo. No camarote real estavam dom Memè, o prefeito e sua
esposa, além do prefeito da cidade que não estava exatamente acompanhando o
espetáculo “Il sindaco, l’ultimo ospite del palco reale, si teneva la testa tra le mani
e muoveva silenziosamente le labbra. Pregava”. (1995: 157)143
Nos bastidores, ao contrário do que se observava na plateia, naquele
momento, o clima era de total nervosismo. Pilate Spadolini, o empresário da
ópera e sobrinho do prefeito, suava. Estava preocupado com Madalena, a
soprano que fazia o papel de Effy, a noiva do “birraio” (cervejeiro), que já havia
desmaiado, no intervalo, por causa do clima de guerra instaurado no teatro
durante todo o tempo da apresentação da ópera. Parecia adivinhar o que estava
por vir.
No palco acontecia um dueto entre Effy e Anna, rival da noiva do “birraio”
quando a bomba explodiu.
Durante o dueto, quando estava por completar a frase “Vi do un consiglio
per vostro ben”144, a soprano parou antes do “bem” e encheu de ar os pulmões,
Quando disparou o agudo para completar seu canto, sua voz não foi o único som
ouvido pelos presentes, pois uma fração de segundo antes, o militar Tinuzzo
Bonavia, cochilando, se descuidou e deixou sua arma disparar atingindo-lhe o
nariz. O barulho do tiro alarmou todos os que se encontravam no teatro; Bonavia
sangrava e gritava; o susto fez que o “ben" da soprano saísse como uma sirene
de navio, ou como o silvo de uma baleia dos mares do Norte, quando é arpoada.
A tudo isso se somou o berro da senhora Restuccia que, despertada pelo barulho,
soltou um de seus famosos gritos. Não havia o que fazer, nem o prefeito, nem
Villaroel, Puglisi ou quem quer que fosse poderia evitar o que imediatamente
aconteceu:
143
O prefeito da cidade, o último espectador do camarote real, mantinha a cabeça entre as mãos e movia
silenciosamente os lábios. Rezava. (2004: 156)
144
Dou-lhe um conselho para o seu bem. (2004: 158)
119
La somma dello sparo, le grida del milite ferito, il terrorizzante
“ben” della soprano, la vociata della signora Restuccia,
scatenarono il panico incontrollato, anche perché nessuno dei
presenti stava guardando il palcoscenico: se l’avessero fatto,
avrebbero potuto farsi conto e ragione, invece cosi quel
tutt’insieme li pigliò di sorpresa. Tutti si susìrono dai loro posti,
impressionati, poi bastò che il primo si metesse a correre perché
altri facessero lo stesso. Gridando, biastemiando, vociando,
piangendo, supplicando, prigando, alcuni si precipitarono fora
dalla sala di corsa, scontrandosi con l’opposizione dei militi.
Intanto la soprano che aveva stonato cadeva con un botto sordo
sulle tavole del palcoscenico, priva di sensi. (1995:160)145
Esse capítulo, dentre os que tiveram como cenário o teatro no momento da
apresentação da ópera, é o que traz maior riqueza de detalhes sobre o que
ocorreu no interior do prédio na sua primeira e última noite. Finalmente o leitor
entende porque, no primeiro capítulo do romance, quando o engenheiro Hoffer
indaga sobre o que teria provocado o incêndio, ouviu que o motivo teria sido o
desafino da soprano.
Aqui termina, considerada a diegese do romance, a exibição dos fatos
ocorridos no teatro Re d’Italia na noite de sua inauguração.
O cenário muda de forma mais evidente, com o capítulo “Sono un maestro
di scola elementare” ( Sou um professor primário), protagonizado por Minicuzzo
Adornato, o filho do marceneiro, preso injustamente por ter emitido uma opinião
contrária à encenação de Il birraio di Preston, conforme vimos anteriormente.
A narrativa começa com Minicuzzo tentando justificar sua omissão, ou não
reação quanto à prisão de seu pai, pois, sendo um professor primário, pouco
poderia fazer para tirar o marceneiro da cadeia, e ainda poderia pagar caro, caso
tentasse alguma reação:
145
A soma do disparo, dos gritos do soldado ferido, do aterrador "bem" da soprano, dos berros da Senhora
Restuccia desencadeou um pânico incontrolável, até mesmo porque nenhum dos presentes estava olhando
para a cena: se o estivessem feito, teriam podido dar-se conta do que havia, mas, ao contrário, tudo aquilo
junto os pegou de surpresa. Levantara-se de seus lugares, assustados, e depois bastou que o primeiro se
pusesse a correr para que os outros fizessem o mesmo. Gritando, xingando, berrando, chorando, suplicando,
rezando, alguns se precipitaram para fora da sala, na maior correria, indo de encontro à oposição dos
soldados.
Enquanto isso, a soprano que tinha desafinado caía com um baque surdo nas tábuas do palco, desmaiada.
(2004: 159)
120
“Io, commendatore, non ho putiri, sono una cosa di niente, una
pezza da piedi. E il fatto che ho famiglia significa che appena mi
muovo, mi catamino, m’arrimino, appena protesto o faccio voci, lo
Stato me la fa pagare col palno e la gnutticatùra, ci mette il buon
peso, il giorno dopo, mi trovo a insegnare come si scrive la parola
Italia in un perso paese di Sardegna. Mi spiegai?”. (1995:161)146
No entanto, a justificativa do professor não convence o Comendador
Restuccia, que o repreende por não defender o pai, como talvez defendesse a
sua mulher e filhos.
A ajuda do comendador, porém, não é gratuita. Ele decide auxiliar o
marceneiro em parte por ser grato ao professor que, com dedicação e muito
esforço, conseguira educar o aparentemente perdido neto de Restuccia, Mariolo,
criado pelos avós depois da morte de seus pais e, em parte, porque aprovava a
atitude de dom Ciccio em relação ao Birraio. Além disso, fica evidente o valor que
o comendador dá à família e aos sentimentos que Minicuzzo manifestou quando,
ao receber a notícia da prisão de seu pai, se pôs a chorar diante de sua classe.
“È vero. E ho subito domandato scusa ai miei addrevi che erano
rimasti impressionati. Non dovevo farlo”.
“Lo doveva fare, imbeci. Ha dimostrato cosi che suo padre fa
parte della sua famiglia. Ed io per questo sono qua. Maestro, so
patri don Ciccio è un galantomo specchiato che si è trovato contro
una cacata, salvando la faccia di chi mi sente, come il prefetto
Bortuzzi, solo per avere detto pubblicamente come la pensava su
questa minchiata del Birraio di Preston. E io mi sono pigliato la
libertà di provvedere. Ho scritto due righe sulla quistione
all’onorevole Fiannaca. (1995: 163)147
E foi na antesala de Paolino Fiannaca que Minicuzzo Adornato estava às
oito horas. Quando finalmente os dois se encontraram, Minicuzzo precisou ainda
146
"Eu, comendador, não tenho poder, sou um joão-ninguém, um nada. E o fato de ter família significa que,
se eu pensar em me mover, me mexer, me levantar, assim que esboce um protesto, ou um grito, o Estado me
fará pagar a conta com juros, e juros altos, o que o Estado quiser. E eu, no dia seguinte, vou me encontrar
ensinando como se escreve a palavra Itália em um vilarejo perdido da Sardenha. Está explicado?" (2004:160)
147
"É verdade. Mas logo depois pedi desculpas a meus alunos, que tinham ficado impressionados. Eu não
deveria ter feito isso."
"Ao contrário, tinha que fazer. Demonstrou assim que seu pai faz parte de sua família. E é por isso que eu
estou aqui. Professor, seu pai, don Ciccio, é um homem de bem, respeitado, e que escorregou em uma
cagada, livrando a cara de quem me ouve, como o prefeito Bortuzzi, só por ter dito publicamente o que
pensava a respeito desta cretinice do Birraio di Preston. E eu me dei a liberdade de tomar providências:
escrevi duas linhas ao deputado Fiannaca. (2004: 162)
121
responder a uma pergunta que, embora parecesse um tanto óbvia, dado que ele
tinha a carta do comendador, era de fundamental importância. Sua resposta
poderia salvar ou arruinar o pai encarcerado.
“Io vorrei parlare...”.
“Con l’avvocato Fiannaca?” interrupe pronto l’altro.
“Con Fiannaca sì, ma non con l’avvocato” disse Adornato
ricuperando una certa lucidità.
“Con l’onorevole Fiannaca, allora?”
Minicuzzo restò incerto. Fiannaca decise d’aiutarlo.
“È questione politica?”.
“Nonsi. Almeno non credo”.
La faccia dell’onorevole s’illuminò.
“Allora lei vuole parlare col Fiannaca presidente della Società di
Mutuo Soccorso Onore & Famiglia?”.
“Con lui” fece Adornato che tanto stronzo non era. (1995: 16465)148
Podemos constatar como o autor constrói esta personagem, pela primeira
vez apresentada ao leitor, e rapidamente lhe confere profundidade na narrativa,
pois, embora seja sabido que o ser humano Fiannaca seja apenas um, existem ao
menos três Fiannaca diferentes, exercendo papéis diversos, como se fossem
pessoas distintas. E que atuam em palcos diferentes, conforme o Fiannaca
presidente da Sociedade de Mútuo Socorro Honra & Família afirma quando diz:
“In questo caso dobbiamo nèsciri da qua, questo è lo studio dell’onorevole”. (1995:
165)149
148
"Eu queria falar..."
"Com o advogado Fiannaca?", interrompeu prontamente o outro.
"Com Fiannaca sim, mas não com o advogado", disse Adornato, recuperando ump pouco a lucidez.
"Com o deputado Fiannaca, então?"
Minicuzzo ficou indeciso. Fiannaca decidiu ajudá-lo.
"É uma questão política?"
"Não, senhor. Pelo menos não creio que seja."
A cara do deputado iluminou-se.
"Então o senhor quer falar com o Fiannaca presidente da Sociedade de Mútuo Socorro Honra & Família?"
"Com ele", disse Adornato, que não era tão tolo assim. (2004: 163-64)
149
"Nesse caso, temos que sair daqui. Este é o gabinete do deputado." (2004: 164)
122
O detalhamento da personagem Fiannaca nos remete ao escritor e
dramaturgo siciliano Luigi Pirandello e à sua personagem Vitangelo Moscarda,
que reconhece ser “uno, nessuno, centomila”.150
Fiannaca e Adornato passam pelo portãozinho onde podia ser vista uma
placa com a inscrição “PAOLO FIANNACA, AVVOCATO”. Chegam finalmente à
“sede” da “SOCIETÀ DI MUTUO SOCCORSO HONORE & FAMIGLIA”. Ao
entrarem, Minicuzzo observou que lá não havia papel ou documentos; tudo era
feito de palavras. E foi com palavras que o professor explicou ao presidente da
sociedade a injustiça que seu pai sofrera, tendo sido preso por ordem do prefeito
Bortuzzi, com a colaboração do capitão Villaroel e de dom Memè Ferraguto.
Minicuzzo Adornato descobre que a simples menção ao nome de Memè
Ferraguto bastava para que ele conseguisse o que quisesse de Fiannaca, que
chamou seu assistente, Gaetanino, pedindo ao filho do marceneiro para repetir o
que acabara de dizer. Mesmo sem entender onde isso o levaria, Minicuzzo não
apenas repetiu como acrescentou um toque pessoal em sua afirmação: “Lo ripeto
magari davanti a Cristo. Il prefetto ha mandato in galera mio padre con l’inganno e
la complicità del capitano Villaroel e di quel gran cornuto di dom Memè
Ferraguto."151 (1995: 166-7)
Minicuzzo conquistara a simpatia de Fiannaca. Fora corajoso o suficiente
para manter suas palavras e, assim, vencer o prefeito e, principalmente, dom
Memè que, naquela mesma tarde, recebeu a visita de Gaetanino, que lhe
transmitiu a mensagem não do presidente da sociedade de mútuo socorro honra
& família ou do advogado, mas do deputado Fiannaca: “Ordini? Sempre preghiere
umilissime. L’onorevole ci vole fare assapere che per la facenna del falegname
fatto arrestare sicuramente ci fu errore. Errore suo di vossia, don Memè”.
(1995:168-9)152
150
"um, ninguém, e cem mil"
151
"Repito até diante de Cristo. O prefeito mandou meu pai para a cadeia sem razão e com a cumplicidade do
Capitão Villaroel e daquele grande corno de Memè Ferraguto."(2004: 165)
152
"Ordens? Não, apenas um humilde pedido. O deputado quer que Vossa Senhoria saiba que, no caso do
marceneiro que foi preso, com certeza houve um erro. E erro seu, de Vossa Senhoria, don Memè." (2004:
167)
123
Os Lumìa, após ouvirem o que tinha a dizer dom Memè, chamaram o
capitão Villaroel e a senhora afirmou que todo o incidente não passara de um
terrível engano. Explica que Santo Antonio a havia iluminado e feito recordar onde
as joias estavam; afirma que, inclusive, estava disposta a reparar o engano,
indenizando o carpinteiro.
Um diálogo entre o prefeito e o carpinteiro, agora recém-saído da cadeia
fecha a cena. Após felicitá-lo por sua inocência e libertação, o prefeito pergunta a
dom Ciccio: “perché siete tanto hontrario alla rappresentazione del Birraio di
Preston?” (1995: 170)153
O carpinteiro, após pensar, responde a pergunta. Neste momento o leitor
encontra, nesta narrativa onde a música está tão presente, sendo motivo de
tantas brigas, um relato de alguém que fora arrebatado pela beleza da música e
que tenta mensurar com palavras o sentimento experimentado. Dom Ciccio conta
mais uma vez como a música entrou em sua existência, algo que muito raramente
fazia, conforme vimos no capítulo Tutti orama’ lo conoscevano:
Dopo manco cinco minuti che l’orchestra sonava e i cantanti
cantavano, a mia sicuramente mi principiò una febbre àuta. U cori
mi batteva forti, ora sentiva càvudo càvudo ora friddo friddo, la
testa mi firriava. Didopu, come si fossi addiventato un palloneddro
di acqua saponata, di quelli liggeri e trasparenti che i picciliddri
fano per jocu con una cannuzza, accominzai a volare. Sissignura,
a volari. Cillenza, mi deve crìdiri: volava! E prima m’apparse il
tiatro da fora, poi la piazza cu tutte le persone e l’armàla, po’la
citate intera ca mi parse nica nica, poi vitti campagni virdi, li
sciumi granni do Nord, li deserti gialli ca dìcino che ci sono in
Africa, poi tutto il mondo intesso vitti, una palluzza colorata come
a quella che c’è dintra a l’ovo. Dopu arrivai vicino a u suli,
acchianai ancora e mi trovai in paradisu, con le nuvole, l’aria
fresca pittata di blu chiaro, quarche stella ancora astutata. Poi la
musica e lu canto finero, io raprii gli occhi e vitti che dintra o tiatro
era arrimasto solo. Non aveva gana di nèsciri di fora, ancora
dintra di mia sentiva la musica. Pigliai sonno e m’arrisbigliai,
svenni e arrivenni, arrisi e chiangii, nascii e murii.
[...]
Dopu quella jurnata io vado a sentiri musica e òpire, piglio macari
il trenu e cerco, cerco, cerco sempre senza trovare mai.
“Che hosa cercate?” Domandò il prefetto che senza rendersene
conto si era alzato in piedi”
153
"Pode me expli'ar por que o senhor é tão 'ontrário à representação do Birraio di Preston?" (2004: 169)
124
“Una musica, cillenza, che mi facesse provare la stessa felicità,
ca mi facissi vìdiri com’è fatto u cielu. [...] (1995: 171-2)154
O marceneiro deixou o prefeito sem resposta, e este não teve outra
alternativa a não ser encerrar o assunto. Com seu discurso, dom Ciccio oferece
ao leitor a explicação daquilo que ficara incompleto no supracitado capítulo,
centrado exatamente no carpinteiro, onde pudemos saber mais sobre sua relação
com a música.
O poder que a música exerce sobre o homem é um tema trabalhado por
Camilleri em mais de um romance. Em La voce del violino, romance pertencente à
saga da mais notória personagem do escritor, o comissário Montalbano, publicado
em 1997, ocorre algo semelhante. A música do violino é uma espécie de
protagonista do romance, já que, assim como em o Birraio, exerce o papel de
motivador do crime; age de forma tão poderosa que o faz sentir a melodia
entoada no funeral da jovem morta por causa daquele instrumento e consiga unir
os elementos, e, através do raciocínio estimulado por seu som, desvendar o crime
e descobrir o assassino.
Voltemos, então, ao Il birraio di Preston, cuja narrativa agora já começa a
caminhar para seu desfecho, tendo os próximos capítulos a função de finalizar as
muitas cenas já apresentadas, de oferecer um final coerente às várias histórias
que compõem o romance, que entrelaça tantas personagens a partir da trama do
incêndio do teatro di Vigàta.
154
"Depois de nem cinco minutos que a orquestra tocava e os cantores cantavam, eu comecei com certeza a
ter uma febre alta. O coração batia forte, ora eu me sentia quente, quente, ora frio, frio, e com a cabeça
fervendo. Depois, como se eu fosse virando uma bolha de sabão soprada, daquelas leves e transparentes que
os meninos fazem de brincadeira com um canudo, eu comecei a voar. Sim senhor, a voar. Celenza, acredite
em mim: eu voava. E primeiro me apareceu o teatro pelo lado de fora, depois a praça com todas as pessoas e
animais, depois a cidade toda, que eu achei bem pequenininha, e depois vi os campos verdes, os rios grandes
do Norte, os desertos amarelos que dizem que tem na África, depois todo o mundo, o mundo inteiro, eu vi,
um globinho colorido como aquele que está dentro do ovo. Então eu cheguei perto do sol, subi mais e mais e
me vi no paraíso, com as nuvens, o ar fresco pintado de azul-claro, umas estrelas ainda apagadas. Aí a música
e o canto acabaram, eu abri os olhos e vi que tinha ficado sozinho no teatro. Não tinha vontade de sair fora,
ainda sentia a música dentro de mim. Caí no sono e despertei, desmaiei e recuperei os sentidos, ri e chorei,
nasci e morri. [...] Depois daquele dia, eu gosto de ouvir música e ópera, pego até o trem e procuro, procuro
sempre, sem nunca mais encontrar.
"E o que você procura?", perguntou o prefeito, que, sem se dar conta, se havia posto de pé.
"Uma música, Celenza, que me faça exprimentar a mesma felicidade, que me faça ver como que é feito o
céu." (2004: 169-171)
125
O detetive retorna à cena, e, dessa vez, com um novo auxiliar, temporário,
para ajudá-lo em sua missão de elucidar o delito através da análise da cena do
crime. O capítulo “Un giovanotto dall’aria semplice” (Um rapaz com ar simples)
começa na delegacia, onde o delegado mantém um acalorado diálogo com o filho
do falecido médico Gammacurta, pois não entendia como nem o filho, nem sua
mãe tinham ido procurá-lo após o desaparecimento do médico, tendo sido a
parteira, que ambos – mãe e filho – sabiam ser a amante de Gammacurta, quem
tinha ido até o delegado.
A seguir, Puglisi recebe um jovem, Mario Filastò, perito da Fondiaria
Seguros de Palermo, que afirmava ter como provar que o incêndio era de caráter
criminoso, e não acidental, como lhe teria sido dito no momento de sua chegada à
Vigàta. Enquanto os dois se dirigiam para as ruínas do teatro, trata de apresentar
sua experiência em assuntos de incêndio:
“Mi stia a credere” disse Filastò. “Io sperienza di foco ne ho
assai. So come nasce, come cresce, com’è capriccioso, quanto
basta un niente a fargli cangiare Idea, direzione, forza. Il foco nel
teatro principiò dalla parte di dietro, da darrè, e non dal salone
dove stava la gente”.
“Su questa storia di dove il foco pigliò, magari io ci avevo fatto
una mezza pensata” disse Puglisi. (1995: 176)155
O delegado ouve do perito informações precisas sobre a direção do fogo,
como se espalhou, tudo exatamente ao contrário daquilo que aparentemente
havia acontecido. O processo de investigação seguiu nos moldes do romance
policial tradicional, onde o raciocínio puro e simples é capaz de elucidar um crime,
ao estilo de Dupin e Lecoq. A análise da cena do crime e dos elementos ocupa
papel fundamental na elucidação do caso.
Os dois continuam a analisar a cena, quando Filastò mostra ao delegado
restos de um objeto. Num primeiro momento, Puglisi deduziu que se tratasse de
155
"Pode crer em mim", disse Filastò, "tenho bastante experiência no que se refere a fogo, sei como nasce,
como cresce, o quanto é caprichoso, como basta um nada para fazê-lo mudar de ideia, de direção, de
intensidade. O fogo no teatro começou atrás, na parte posterior, e não no salão em que estava o público."
"Sobre essa história de onde o fogo começou eu também já andei pensando um pouco", disse Puglisi.
(2004:175)
126
um recipiente para se colocar água, mas logo vê que o objeto seguramente tinha
outro fim.
“Non è un bummolo né una quartarella. Non è fatto per tenerci
dentro l’acqua, lo taliasse bene”.
“È un Caruso, un sarbadanaro” fece Puglisi stupito.
“Giusto” fece Filastò. “E altri pezzi diun secondo sarbadanaro si
trovano più in là, dove ci stavano i costumi della compagnia”.
(1995: 177)156
Além disso, os restos dos cofrinhos cheiravam a querosene, un sinal de
que esse objeto merecia especial atenção; era suspeito o fato de um porquinho
de barro, destinado às economias de alguém, ter cheiro de querosene e ser
encontrado no local do incêndio.
O perito pergunta ao delegado quem cormeciava aquele tipo de objeto e
ambos seguem para a casa de dom Pitrino. No caminho, Puglisi parabeniza o
rapaz por sua eficiência. A resposta do jovem, no entanto, tem uma significação
especial dentro do contexto do romance policial:
“Ci vuole occhio, si. Ma è come un joco, una scommessa. Uno
talìa tutto il danno che il foco ha fatto, talìa attento, talìa e ritalìa e
poi dice: c’è qualche cosa che non quatra. E ritalìa di bel nuovo
nuovamente fino a quando non scopre che è quello che non
quatra”. (1995: 178)157
Quando chegam à casa de dom Pitrino, descobrem aquilo que o leitor já
sabia: dois daqueles cofres haviam sido roubados no dia anterior. Após se dar
conta do prejuízo sofrido, dom Pitrino atendeu o pedido do perito, que fez uma
espécie de reconstituição, a fim de confirmar suas suspeitas em relação ao fim
dado aos cofrinhos roubados.
[...] Allora Filastò domando che il Caruso venisse riempito di
pitroglio, che era merce venduta nella putìa. Zu Pitrino, per
156
"Não é nem uma ânfora nem uma moringa. Não serve para pôr água dentro. Olhe bem o que é."
"É um cofrinho, um porquinho de barro", disse Puglisi, estupefato.
"Exato", disse Filastò. "E outros pedaços, de um segundo porquinho, que se encontram mais para lá, onde
estavam os figurinos da companhia."(2004: 176)
157
"É preciso olho vivo, sim, mas é como um jogo, uma aposta. A pessoa olha todo o dano causado pelo
fogo, olha atentamente, olha e volta a olhar, e depois pensa: há alguma coisa aqui que não condiz. E volta a
olhar de novo, mais uma vez, até que descobre o que não estava condizendo."(2004: 177)
127
quanto la richiesta fose tramma, non fece domande, si limitò a
eseguire con qualche difficoltà. Filastò si fece magari dare un
pezzo di pezza. Puglisi pagò e uscirono. A una decina di passi
dalla casuzza del Vecchio, già era campagna aperta. Filastò fece
praticamente vedere al delegato come funzionavano il caruso, il
pitroglio e il pezzo di pezza. Dopo si allontanarono che alle loro
spalle i cippa, i legnetti e gli sterpi che il giovanotto aveva
ammucchiato per gettarci contro il caruso, ancora abbrusciavano
malgrado fossero assuppati di pioggia. (1995: 179)158
Filastò explica ao delegado que sua empresa, por ser grande e abrangente,
estava acostumada a lidar com casos de fraude em relação aos seguros e que,
inclusive, dois agentes haviam relatado casos parecidos, os agentes de
Nápoles e Roma.
A menção à cidade de Roma chamou imediatamente a atenção do
delegado Puglisi, talvez porque já suspeitasse de Nando Traquandi, o romano
mazziniano que se encontrava na cidade. Na verdade, Nápoles já fora
mencionada pelo superintendente Everardo Colombo, quando, em uma
conversa com seu secretário, ele informara que Mazzini tinha sido visto
naquela cidade. E suas suspeitas aumentaram, pois ele não acreditava na
possibilidade de que um vigatense fosse capaz de esperar a cidade voltar à
calma após o espetáculo para só então atear fogo ao teatro, pois já não havia
dúvidas sobre a dolosidade do incêndio, tampouco sobre o período em que o
fogo começou, conforme o perito da seguradora garantiu: “Non c’è dubbio:
l’incendio è stato appiccato a freddo, dopo qualche ora che a Vigàta era tornata
la calma”. (1995: 180)159
Não restava outra coisa a fazer: o delegado decidiu falar com o
superintendente. Ao chegar lá, sujo, molhado, tendo caído do cavalo devido ao
extremo cansaço, machucado por causa da queda, logo foi barrado por Meli, o
secretário, pois não demonstrava se encontrar em condições de ter uma
158
[...] Então Filastò pediu que o porquinho fosse enchido de querosene, que era também mercadoria à venda
na casa. Seu Pitrino, embora o pedido fosse inusitado, não fez perguntas, limitou-se a executar, com alguma
dificuldade, o pedido. Filastò pediu também um pedaço de pano. Puglisi pagou e sairam. A uns dez passos do
casebre do velho já era campo aberto. Filastò fez para o delegado a demonstração de como funcionavam o
porquinho, o querosene e o pedaço de pano. Depois se afastaram, porque às suas costas os pedaços de
troncos, as achas de lenha e os gravetos que o rapaz tinha ajuntado para jogar contra eles o porquinho
estavam ainda queimando, apesar de molhados de chuva. (2004: 178)
159
"Não há dúvida: o incêndio foi ateado premeditadamente, algumas horas depois de o povoado de Vigàta
ter voltado à calma." (2004:179)
128
audiência com a autoridade. Além disso, Meli explicou a Puglisi que o
superintendente estava irritado com ele, por causa da mensagem que recebera
do delegado, conforme acompanhamos no capítulo “Oh che bella giornada!”,
repreendendo-o por ter sido indiscreto e insinuado que a investigação
mencionada no bilhete poderia ter como resultado o envolvimento de altas
personalidades. Naquela ocasião, Puglisi denunciara a presença do romano e
informara que Giuseppe Mazzaglia o estava escondendo, sendo que o
envolvimento deste, um notório cidadão vigatense, fizera que Everardo
Colombo retardasse a prisão do Traquandi, a fim de não envolver Mazzaglia na
confusão, causando uma revolta popular. Esse fato agora estava se voltanto
contra o superintendente, conforme podemos acompanhar no diálogo entre
Puglisi e Meli:
“Ecco, dato che ci siete: fate sapere al superintendente che
quando scrissi alte personalità io usavo il plurale per mantenermi
largo ma pensavo solo al prefetto. Ora mi sono persuaso che il
plurale era giusto”.
“Ci sarebbero altre personalità implicate?”
“Sissignore”.
“Per esempio?”
“Per esempio la persona con la quale andrete a parlare tra un
momento”.
[...]
“Vi rendete conto di quello che state dicendo?”.
“Perfettamente. Perché non mi avete dato subito l’ordine
d’arrestare il mazziniano venuto da Roma?”.
“Muto!” intimò Meli. “Venite nel mio ufficio!”. (1995: 181)160
160
"Olha, já que tocou no assunto, faça saber ao superintendente que quando escrevi Altas Personalidades eu
usava o plural para falar de modo geral, mas pensava apenas no prefeito. Agora estou ficando convencido de
que o plural estava correto."
"Ah, haveria outras personalidades implicadas?"
"Sim, senhor."
"Por exemplo?"
"Por exemplo, a pessoa com a qual o senhor vai falar dentro de um momento."
[...]
"Deu-se conta do que está dizendo?"
"Perfeitamente. Por que não me deram imediatamente a ordem de prender o mazziniano vindo de Roma?"
"Cale a boca!", intimou Meli. "E venha a meu gabinete!"(2004: 180)
129
A firmeza das afirmações do delegado espantou Meli. Já no escritório do
secretário, mais calmo, Puglisi perguntou novamente porque não lhe tinham dado
ordem para prender o mazziniano. Meli revelou que o superintendente ordenara
que a prisão fosse adiada até a inauguração do teatro, o que provocou a imediata
reação do delegado:
“Che bella pensata che ha avuto il signor cavaliere! Se me lo
facevate arrestare a tempo, capace che quello non ce la faceva ad
abbrusciare il tiatru”.
“Siete convinto che sia stato lui?”.
“Certezza ancora non ne ho. Ma appena l’agguanto, mi faccio
contare tutto e vedrete che ho ragione io. Datemi l’ordine scritto e
datato”. (1995: 182)161
Neste ponto da narrativa fica claro que o delegado já solucionou o crime,
como um legítimo investigador. Fica evidente, também, que o superintendente
está com um grave problema nas mãos, fato que ele percebe assim que seu
secretário o informa da presença de Puglisi na superintendência:
“Cavaliere, nel mio ufficio c’è Puglisi”.
“Cossa ‘l voeur?”
“Vuole subito l’ordine di cattura per quel mazziniano nascosta a
Vigàta, Traquandi”.
“Fateglielo”.
“Sissi, ma la difficoltà è che il delegato pensa che a dare foco al
teatro sia stato proprio Traquandi”.
“E allora?”.
“Cavaliere, se è stato il romano, e Puglisi raramente sbaglia,
saremo da Puglisi stesso incolpati di non averlo fatto arrestare
prima”.
“Oh cazzo!” fece il superintendente che finalmente aveva capito.
(1995: 182)162
161
"Que bela ideia teve o senhor cavaliere! Se me mandassem prendê-lo em tempo, talvez aquele sujeito não
tivesse conseguido incendiar o teatro."
"Está convencido de que foi ele?"
"Certeza ainda não tenho, mas no momento em que o pegar, farei com que me diga tudo e verá que tenho
razão. Dê-me a ordem por escrito, e datada."(2004:181)
162
"Cavaliere, Puglisi está no meu gabinete."
"O que é que ele quer?"
"Quer sem demora uma ordem de prisão para aquele mazziniano que está escondido em Vigàta, o
Traquandi."
130
O superintendente ainda tenta responsabilizar Meli, insinuando que talvez
ele não tivesse entendido bem sua ordem e, acidentalmente, retardado a prisão
do romano. Mas o rapaz não se deixou envolver, em virtude da gravidade da
questão. No final do capítulo, encontramos os dois pensando, debatendo,
sussurando uma solução para o impasse.
Neste ponto da narrativa policial, já observamos a conclusão de quase
todas as partes essenciais do romance: o crime foi executado, a investigação
realizada e o investigador solucionou o quebra-cabeças; e, ademais, além de
descobrir as causas do incêndio, já sabe quem é o culpado. Mas resta, ainda, a
punição.
O próximo capítulo Se una notte d’invernata tinta (Se em uma noite de
inverno um viajante), com título que faz menção ao clássico de Italo Calvino, inicia
também com o mesmo estilo narrativo:
Se una notte d’invernata tinta, già di per suo, con pioggia troniate
lampi e vento, un viaggiatore fosse venuto a passare per la
chiazza dove sorgeva il tiatro novo di Vigàta, a vedere il danno in
cui si trovava in mezzo, lampioni divelti, aiole distrutte, vetri rotti,
militi a cavallo che correvano strata strata, carrozze che
andavano e venivano con persone ferite o signore svenute e a
sentire spari lontani, vociate ora lamentose ora arraggiate,
prighiere, domande d’aiuto, biastemie, subito avrebbe dato di
sprone al cavallo per scapparsene alla larga da quello che
avrebbe con ragione creduto un novello quarantotto. Mai e po’mai
avrebbe potuto immaginare che quella minnitta, quel disastro,
quella rovina fosse stata causata dalla stonatura di un soprano.
Stonatura terribili e orrenda, è vero, che parse a tutti come se un
papòre, sonando la sirena di nebbia, fosse di colpo entrato nel
tiatro, ed è pure da considerare il fatto che quarcheduno,
contemporaneamente, aveva magari sparato un colpo di
moschetto. (1995: 184)163
"Dê."
"Sim, senhor, mas o problema é que o delegado acredita que foi ele quem incendiou o teatro."
"E daí?"
"Cavaliere, se foi mesmo o romano - e Puglisi raramente erra -, seremos acusados pelo próprio Puglisi de não
termos mandado prendê-lo antes."
"Ih, que merda!", disse o superintendente, que finalmente entendera. (2004: 181)
163
Se em uma noite de inverno, já por si escura, com chuva, trovoadas, relâmpagos e ventania, um viajante
viesse a passar pela praça em que se erguera o novo teatro de Vigàta, vendo o estrago em meio ao qual se
encontrava - lampiões arrancados do solo, jardineiras destruídas, vidros quebrados, soldados a cavalo
correndo de um lado para o outro, carruagens indo e vindo com pessoas feridas ou senhoras desmaiadas - e
131
Além de ser levado ao romance Se una notte d’inverno un viaggiatore, de Italo
Calvino, o leitor também viaja até o início do romance, mais precisamente ao
primeiro capítulo, num diálogo entre o engenheiro Hoffer e um homem que vinha
passando, vindo de Vigàta na fatídica noite:
“Kosa essere successo?” spiò l’ingegnere.
“Dove?” spiò a sua volta l’uomo con fare gentile.
“Kome dofe? A Figàta, kosa essere successo?”.
“A Vigàta?”
“Sì” fecero tutti in una specie di coro.
“Pare che ci sia un incendio” disse l’uomo taliando verso il paese
in basso quasi a ottenere conferma.
“Ma kome è stato? Lei sa?”.
L’uomo calò le braccia, se le mise darrè la schiena, si taliò la
punta delle scarpe.
“Non lo sapete?”.
“No. Nessuno kvi lo sa”.
“Ah. Pare che la soprano a un certo punto stonò”.
E detto questo si rimise in cammino, ripilgiando la posizione di
mano in alto.
“Che minchia è la soprano?” Spiò Tano Alleto, il cocchiere.
“È una donna ke kanta” spiegò Hoffer scuotendosi dallo stupore.
(1999: 15-6)164
Nesse capítulo, o leitor já conhece completamente o que aconteceu no
teatro, a confusão iniciada com o tiro acidental e o desafino da soprano, e que
ouvindo tiros ao longe, gritos ora queixosos ora raivosos, rezas, pedidos de socorro, blasfêmias, teria
imediatamente esporeado o cavalo, a fim de fugir para bem longe do que julgaria, com razão, ser uma nova
revolta. Pois jamais, em momento algum, poderia imaginar que todo aquele espalhafato, aquele desastre,
aquela ruína tivesse sido causada pela desafinação de uma soprano. Desafinação terrível, pavorosa, não há
dúvida, que deu a todos a impressão de que um vapor, tocando a sirena em meio à neblina, estaria
imprevistamente entrando no teatro, no momento mesmo em que, simultaneamente, alguém disparava um
tipo de fuzil. (2004: 183)
164
"Que koisa acontecerr?", perguntou o engenheiro.
"Onde?", perguntou, gentilmente, olhando em torno.
"Koma, onde? Em Figàta, que koisa acontecerr?"
"Em Vigàta?"
"Sim", disseram todos, em uma espécie de coro.
"Parece que está havendo um incêndio", disse o homem olhando para o povoado abaixo como se buscasse
confirmação.
"Mas como isto acontecerr? A senhor sabe?"
O homem abaixou os braços, colocou-os atrás das costas e olhou para as pontas dos sapatos.
"Não sabe?"
"Não. Ninguém daqui saberr."
"Ah! Parece que em certo momento a soprano desafinou."
E dizendo isso, retomou seu caminho, voltando à posição anterior, com as mãos erguidas.
"Que porra de soprano é essa?", perguntou Tano Alletto, o cocheiro.
"É um mulherr que kanta", explicou Hoffer, refazendo-se da estupefação. (2004:13-14)
132
terminou com o incêndio. Não obstante, os dois eventos não tiveram qualquer
relação, a não ser a esperteza de Nando Traquandi que, com a cumplicidade de
Decu Garzia, aproveitou toda a polêmica da inauguração do teatro para incendiálo, na intenção de que este fosse o estopim para uma revolta popular contra a
autoridade instituída.
Voltando ao capítulo, nele se continua narrando os fatos ocorridos durante
a apresentação, porém de uma maneira mais descritiva, mais organizada e
detalhada, como se fosse uma compilação geral dos fatos ocorridos dentro do
teatro, a partir do momento em que a confusão geral fora deflagrada, após o tiro
acidental, que provocou o desafino da já muito nervosa soprano, e assim por
diante.
Observa-se, também, a pronta reação de dom Memè, que percebendo que
a situação fugira completamente do controle prontamente se encarregou de retirar
de dentro do teatro a esposa do prefeito, além do próprio Bortuzzi.
Os militares ainda insistiam em seguir a ordem inicial, de não deixar os
espectadores sairem de seus lugares, apesar da situação incontrolável que se
desenhava, pois a plateia, até então obediente às ordens, apesar da irritação,
agora buscava fugir, tentanto arrombar as portas dos camarotes.
Os homens colocaram as mulheres desmaiadas em um canto e iniciaram
sua revolução, enfrentando os militares e, a seguir, a cavalaria que fazia guarda
do lado de fora.
Por fim, e à custa de muito esforço, dom Memè conseguiu retirar o prefeito
e a esposa do local. As pessoas, aproveitando o espaço aberto para a passagem
das autoridades, conseguiram escapar, o que foi possivel graças aos que,
estando do lado de fora, arrancaram os lampiões, deixando a praça às escuras.
O único a permanecer inerte durante toda a ação foi o delegado Puglisi. O
homem da lei se mostrou sem ação exatamente no momento em que deveria agir.
Talvez por saber que sua interferência seria inútil, uma vez que nem mesmo o
exército conseguiria conter a multidão. “Fin dal principio del burdello si era
133
assittato sconfortato su una seggia della platea e si era pigliato la testa tra le
mani”. (1995: 193)165
A partir desse ponto, o teatro, ao menos fisicamente, já não aparecerá na
narrativa. Chegamos aos quatro últimos atos, onde os destinos das principais
personagens de Il birraio di Preston serão definidos e apresentados ao leitor.
Executado o seu plano, Traquandi vai dormir na casa de Decu Garzia. E,
antes de entrar no mundo dos sonhos, traz novamente à memória o fogo, não
como crime, mas como espetáculo que o encantou e que ele gostaria de
novamente encenar:
Era una gioia appicià er foco, su questo non ce stava dubbio
gnuno, ma a vedello cresce, annarsene sempre più arto,
guadambiare spazio, magnasse cantando tutto quelo che je se
parava avanti, la gioia poco a poco si mutava in piacere e te
l’arritrovavi duro come quanno stavi a chiavà.
“Bigna che ce riprovi” si disse Traquandi [...]. (1995: 194)166
Mais tarde, naquela noite, os dois incendiários foram acordados por
Girlando, primo de Decu, um policial que trabalhava na superintendência. Após
convencer o romano que se tratava de uma pessoa de confiança, finalmente
Garzia abriu a porta e o policial começou a explicar ao primo e ao romano porque
estava ali:
“Allura?” Spiò Decu.
“È una cosa complicata” fece Girlando. “Complicata a spiegari e a
capiri”.
“Me te voi inculà?” fu la domanda brutale di Traquandi che non
aveva capito la cerimonia.
“No” fece lo sbirro isando una mano. “No. Anzi”.
“E allura spiegati, cugino!”.
“Decù, si tu sei nirbuso, lo sono magari io. Perché se in questura
vengono a sapiri che io sono venuto a trovarvi, mi fotto come
165
Desde o começo da confusão, tinha-se sentado, abatido, em uma cadeira da plateia, e ali permanecera com
a cabeça entre as mãos. (2004: 192)
166
Era uma alegria atear o fogo, quanto a isso não tinha a menor dúvida, porém, ao vê-lo crescer, subir cada
vez mais, ir cada vez mais alto, ganhar espaço, comer, cantando, tudo o que aparecia à sua frente, a alegria
pouco a pouco se transformava em prazer e dava tanta excitação como quando se estava trepando.
"Precisamos experimentar isso de novo", disse a si mesmo Traquandi [...]. (2004: 193)
134
mínimo la carriera. Questo dev’essere chiaro. Ragiunamo,
vediamo come stanno le cose. Dunque, quella minchia di prifetto
di Montelusa decide che a Vigàta il nuovo tiatro dev’essere
incignato da un’opera di merda. E ci arrinesce, mettendosi contro
tutti. E l’opera finisce come doviva finire, a cazzo di canne. Siamo
tutti d’accordo? (1995: 196-67)167
e Girlando continua sua explicação, expondo um detalhe que alarmou os
criminosos:
“E che succedi?” proseguì lo sbirro. “Succedi che passate due ore
che tutto é tornato sireno dopo il bordello successo in tiatro, il
tiatro piglia foco. E questo è strammo”.
[...]
“A nuautri vigatèsi ci accanoscino tutti. E tutti sanno che siamo
capaci delle peju cose, ma sul momento, a sangue càvudo, faccia
a faccia. Mai faremmo una cosa di questo genere alla scordatina,
due ore dopo, belli e arriposati. Noi non ci ripensiamo dopo, come
fannu i cornuti. Quindi ad abbrusciare il tiatro non è stato un
vigatèse, ma un forasteri. Questo è il preciso concetto del diligato
Puglisi che manco due ore fa è andato a contalra al
superintendente questa sua pinione.
“Secondo Puglisi cu fu?” spiò aggiarniato Decu.
“Secondo Puglisi fu quel mazziniano venuto da Roma e che si
trovava in paisi da quattro giorni”.
“Io?” disse spavaldo Traquandi. (1995: 197)168
167
E então?", perguntou Decu.
"É uma coisa complicada", disse Girlando. "Complicada para explicar e para entender."
"Mas você está querendo nos foder?", perguntou asperamente Traquandi, que não entendera o ritual.
"Não", disse o tira, levantando uma das mãos. "Não, pelo contrário."
"Então explique, primo."
"Decu, se você está nervoso, eu também estou, porque se na superintendência vierem a saber que eu vim
aqui, no mínimo minha carreira está fodida. Isso tem que ficar claro. Vamos pensar bem. Ver como estão as
coisas. Ora, aquele bosta de prefeito de Montelusa resolveu que, em Vigàta, o novo teatro tinha que ser
inaugurado com uma ópera de merda. E conseguiu isso, contra tudo e contra todos. E a ópera terminou como
tinha que terminar, do pior jeito possível. Estamos todos de acordo?" (2004: 195-96)
168
"E o que acontece?", continuou o tira. "Acontece que duas horas depois de tudo ter voltado ao normal,
depois de toda a confusão que ocorreu no teatro, o teatro pega fogo. E isso é estranho."
[...]
"É que nós, vigatenses, nos conhecemos muito bem e sabemos que somos capazes das piores coisas, mas ali,
na hora, com o sangue quente, e cara a cara. Nunca que íamos fazer uma coisa daquele jeito, às escondidas,
belos e descansados, duas horas depois. Nós não pensamos a pensar nas coisas duas horas depois, como
fazem os cornudos. Por isso, quem incendiou o teatro não foi um vigatense, e sim um forasteiro. É
exatamente essa a ideia do delegado Puglisi, que há menos de duas horas foi levar essa sua conclusão ao
superintendente de polícia.
"Segundo Puglisi, quem foi?", perguntou, pálido, Decu.
135
Agora já não adiantava disfarçar, pois os dois haviam sido descobertos, e
restava apenas pensar numa saída para a situação.
A solução arquitetada pelo primo de Decù era engenhosa e poderia dar
certo. Ele disse ter outra opinião, que imediatamente se tornou na esperança de
os dois se salvarem. A culpa pelo incêndio deveria ser atribuída a Cocò
Impiduglia, um louco de Vigàta, que era conhecido por tacar fogo em qualquer
coisa. Porém, Traquandi não se convencera e queria mais explicações, pois já
estava nervoso por ter sido descoberto. Girlando precisou acrescentar mais um
detalhe ao plano, que o tornava ainda mais perigoso:
“[...] Puglisi non solo è pirsuaso che chi desi foco al tiatro, e fici du
morti, è il mazziniano arrivato da Roma, ma ebbe il coraggio di
dire al superintendente che se iddru ci dava l’ordine d’arrestarlo
immediatamente, a questo romano, quello non avrebbe avuro né
modo né tempo d’abbrusciarlo, questo santo tiatro. E quindi di
consequenzia puro il superintendente è, sempri seconno Puglisi,
risponsabile del burdello. E questa è cosa seria assa. Puglisi è
uno secco gessaro”. (1995: 198-99)169
Assim, a única solução que restava ao romano era fugir imediatamente,
pois o delegado não deixaria que sua responsabilidade pelo incêndio e
consequentemente a negligência do superintendente passassem despercebidas.
Apesar da resistência inicial, Traquandi aceitou a proposta e a ajuda que Girlando
lhe oferecia.
Após a saída do romano, o policial assegurou que estava tudo bem ao
primo Decu e que este lhe devia um favor: “L’amico romano ora è nella mano
giusta. E tu mi devi ringraziare. Perché se non era per questa pensata mia, tu
domani a matina ti trovavi nel càrzaro e tirarti fora sarebbe stato difficile assa. Ci
"Segundo Puglisi, foi aquele mazziniano vindo de Roma e que há quatro dias estava no povoado."
"Eu", disse arrogantemente Traquandi. (2004: 196)
169
"[...] Puglisi não só está convencido de que quem tocou fogo no teatro e provocou duas mortes foi o
mazziniano que veio de Roma, como teve a coragem de dizer ao Superintendente de Polícia, que, se tivesse
dado ordem de prender de imediato esse romano, ele não teria tido nem tempo nem meios para queimar esse
bendito teatro. Portanto, ainda segundo Puglisi, o superintendente também é responsável por toda essa
confusão. E isso é coisa muito séria. Puglisi é um burro com antolhos." (2004:197)
136
sono due morti, Decuzzu, non te ne scordare”.170 (1995: 200). Em seguida,
instruiu Garzia sobre como se comportar, quando, inevitavelmente, o delegado
viesse atrás dele e do romano: “[...] A Puglisi ci dici che non sai nenti di questo
romano, che non l’hai mai visto, che sulla storia del tiatro sei ’nnuccenti come a
Gesù bammino”. (1995: 200)171
A despedida dos primos acontecia quase que simultaneamente à chegada
do delegado Puglisi à casa de dom Pippino Mazzaglia, que inicialmente acolhera
o romano, e que não passava bem de saúde. Mas, por fim, resolveu receber
Puglisi. O delegado, vendo o estado em que dom Pippino se encontrava, fez-lhe
uma única pergunta:
“Lo saccio che da vossia il romano non c’è, perché vossia non
dava ricetto in casa a uno che è capace di dare foco a un tiatro e
ad ammazzare, senza starci a pinsari, due poveri ‘nnuccenti.
Vossia non è persona capace di queste cose. E io sugnu qua per
spiare: unni è ammucciato ques’assassino?” (1995: 202)172
Dom Pippino, com sua voz fraca, prontamente disse que não sabia, mas o
delegado, que conhecia a ligação entre os dois, conforme vimos anteriormente,
citou o nome de Mazzaglia na superintendência, quando foi denunciar a presença
do mazziniano na cidade, e só não conseguiu a ordem de prisão por causa do
envolvimento de dom Pippino.
Puglisi continuou seu interrogatório, demonstrando ter amplo conhecimento
dos nomes envolvidos com Nando Traquandi:
“Vossia non parlassi, che parlo io. Io mi sono fatto conto e
ragione. Vossia non si mette con una carnetta come questo
Traquandi, e non ci si mette manco don Ninì Prestìa, che è un
galantomo come vossia. E, ci pozzo mettiri la mano sul foco, non
ci si mise manco Bellofiore. E allora, di tutti voi mazziniani, resta
170
"O amigo romano está agora em boas mãos. E tu tem que me agradecer. Que se não fosse essa minha
ideia, amanhã de manhã tu ia tá em cana, e te tirar de lá ia ser muito pior. Tem dois mortos, Decuzzu, não te
esqueça disso."(2004: 199)
171
"E tu diz ao Puglisi que não sabe nada desse tal de romano, que nunca viu ele, e que nessa história de
teatro tu é tão inocente como o Menino Jesus." (2004:199)
172
"Sei que o romano não está em sua casa, porque o senhor não daria guarida a uma pessoa que é capaz de
incendiar um teatro e de matar, sem pensar nos pobres inocentes. O senhor não é capaz de tais coisas. E eu
estou aqui para perguntar: onde está escondido esse assassino?" (2004:201)
137
solamente un nome. Quello di Decu. Mi sto sbagliando?”. (1995:
203)173
Quando, por fim, perguntou se o romano estava na casa de Garzìa, obteve
a confirmação através do silêncio de dom Pippino. Encontramos no delegado
Puglisi a característica clássica de um investigador, a perspicácia, a agudeza de
raciocínio, a habilidade para correlacionar os fatos.
Chegamos, finalmente, aos últimos três capítulos da trama, compostos de
dois atos finais da história da inauguração do teatro de Vigàta, e um último
capítulo, saído diretamente das anotações do escritor (ou seria dramaturgo? Isso
veremos adiante), que é exatamente Gerd Hoffer, o menino que, muitos anos
antes, numa noite, viu, da janela do banheiro, um clarão que vinha do teatro Re
d'Italia, a se consumir em chamas.
Dentre as muitas revelações já acontecidas até este ponto da narrativa,
surge uma que, talvez, não fosse esperada pelo leitor: o porquê de o prefeito
Bortuzzi ter escolhido a ópera Il birraio di Preston para a inauguração do teatro de
Vigàta. Sobre essa escolha, duas hipóteses foram cogitadas ao longo da trama: a
primeira sugeria que, sendo ele a autoridade instituída pelo governo,
provavelmente queria mostrar seu poder ante à população ao anunciar a sua
escolha e, apesar da enorme oposição por parte de praticamente todos os
moradores da cidade, manter a decisão até o fim; a segunda, talvez parte da
primeira, é de que um parente seria o diretor da ópera, um bom motivo que,
acrescido ao anterior, mais importante, justificaria a irreversibilidade da escolha.
Mas uma reviravolta acontece nesse caso e desfaz ambas as hipóteses.
A explicação para a escolha de Bortuzzi é a mais inesperada possível, mas
justifica todo o seu empenho para a apresentação da ópera. Não se tratava de
uma questão de poder, mas de amor, como se esclarece no capítulo que
examinaremos a seguir.
173
"O senhor não fale, deixe que eu falo. Eu pensei bastante a respeito. O senhor não se envolve com um
malfeitor como esse Traquandi, como não se envolve com ele don Ninì Prestìa, que é um homem de bem
como o senhor. E, ponho a mão no fogo, Bellofiore também não se envolveu. Então, de todos vocês,
mazzinianos, sobra apenas um nome: Decu. Estou enganado?" (2004: 201-02)
138
“Giagia mia cara” (Giagia, minha querida) é o título do capítulo e, também,
de uma carta de amor do prefeito à esposa, cuidadosamente escrita pelo marido
apaixonado, com o propósito de ser lida no dia da estreia do teatro:
“Giagia mia cara,
in questo giorno io vengo a rivelarti, adorata, un altro mio secreto.
Tanti di me tu ne possiedi, Giagia, e da me al tuo cuore
consegnati neli anni di questo nostro comune cammino, sicché
essi pendono come collana di perle rare attorno al suo collo
erbuneo [...]. (1995: 204)174
E continua, expondo os problemas que enfrentou ao escolher Il birraio di Preston:
“Molto lottai, adorata, affinché quest’opera venisse in Vigàta
rappresentata e ho dovuto affrontare con sereno spirito e franco
coraggio giorni bui, discussioni accese, vituperose macchinazioni
per raggiungere il mio fine. [...]175
“Devo, prima di rivelarti la secreta cagione della mia intromissione
in una decisione che solo avrebe dovuto riguardare, e in piena
libertà, i responsabili del nuovo teatro di Vigàta, fare di necessità
un passo indietro." (1995: 205)176
Ele continua a sua carta, relatando o quão sem sentido era a sua vida
muitos anos antes, em 1847, quando era apenas um jovem advogado. No entanto
tudo mudara, quando, uma noite, acompanhou um amigo ao Teatro della Pergola,
para assistir à primeira representação, na cidade de Florença, da ópera Il birraio
di Preston. Aquela noite mudaria completamente a sua vida, pois ambos se
conheceram no teatro. A descrição que Bortuzzi faz do sentimento que o invadiu
quando os olhares, dele e da esposa, se encontraram naquela noite se aproxima
da descrição feita pelo marceneiro quando este, ao ser interrogado pelo prefeito
sobre o porquê de se opor a Il birraio, explicou o que sentiu ao assistir a música
174
"Giagia, minha querida,
"Neste dia venho lhe revelar, adorada, um outro segredo meu. Você possui tantos, Giagia, que foram
entregues por mim a seu coração ao longo dos anos deste nosso caminho comum, que eles pendem como um
colar de pérolas raras em torno do seu colo ebúrneo. (2004: 203)
175
"Lutei muito, adorada, para que essa ópera fosse apresentada em Vigàta, e tive que enfrentar com espírito
sereno e ostensiva coragem dias sombrios, discussões inflamadas, vituperosas maquinações, para atingir meu
propósito. (...)" (2004:204)
176
"Devo, antes de revelar-lhe a secreta razão de minha interveniência em decisão que deveria ter cabido, e
com total liberdade, apenas aos responsáveis pelo novo teatro de Vigàta, dar necessariamente um passo atrás.
(2004: 204)
139
mais importante da sua vida: “non ridere Giagia adorata, in una bolla di sapone
che leggera leggera principiava a fluttuare nell’aria, volava, usciva fuori dal teatro,
sorvolava la piazza, s’innalzava fino a dever rimpicciolita la città tutta...”.
(1995:207)177
Ao mesmo tempo em que lemos a emocionada carta do prefeito à esposa,
assistimos a um último ato de intimidação de dom Memè. Tudo começou com os
dois forasteiros lendo o anúncio da ópera que, aliás, aparece pela primeira vez no
romance:
“Avviso straordinario” fece Cannizzaro “pel la sera di mercoledì
addì dieci dicembre. Inaugurazione festosa del novo teatro di
Vigàta nomato Re d’Italia. Unica recita dell’opera Il birraio di
Preston, del maestro Luigi Ricci napolitano.
Che cotanto trionfo ha ricevuto non solamente in Italia ma nel
Mondo Intero. Le opere sue, da La cena frastornata a Il
sonnambulo, hanno avuto il plauso di Re e Imperatori nonchè del
vasto e colto pubblico. Arra di sicuro successo in Vigàta ne sono il
tenore cantante Liborio Strano e l’attrice cantante Maddalena
Paolazzi che per l’occasione avranno l’effige dell’innamorato
birraio e della di lui bella fidanzata Effy. La rappresentazione,
adornata di variopinte scene e di magnifici costumi, avrà luogo
alle ore sei di sera precise. Rispettosi del pubblico, i cantanti tutti,
l’orchestra fatta di quattordici professori diretti dal Valente
Maestro Eusebio Capezzato, il Coro dell’Accademia Vocale di
Napoli, attendono con animo palpitante il plauso dell’intelligente
pubblico di Vigàta che il novo teatro Re d’Italia vorrà
graziosamente convenire”. (1995: 208)
O anúncio do espetáculo traz pela primeira vez ao leitor informações
precisas sobre o espetáculo – autor e nome dos músicos – e o elogio feito à
população da cidade que, sabemos, não condiz com a opinião daqueles que
impuseram a encenação da ópera, que consideravam os vigatenses ignorantes
no quesito música.
Voltando à trama, os dois forasteiros gracejaram da ópera, o que lhes
custou caro, pois dom Memè fez questão de reprimi-los, agredindo-os e
ameaçando-os, a fim de alertar os vigatenses sobre o que poderia acontecer aos
que manifestassem opinião contrária à ópera: “Voltò le spalle ai due e si allontanò.
Era contento, gli veniva di cantare: tutti avevano visto quello che capitava a
177
"não ria, Giagia adorada, em uma bolha de sabão que, leve, leve, começa a flutuar no ar, voava, saía do
teatro, sobrevoava a praça, e subia até ver em tamanho diminuto a cidade inteira..." (2004: 206)
140
sfottere l’opira. Il paìsi, del fatto, ne sarebbe stato informato in meno di un’ora”.
(1995:210)178
A narrativa focaliza a carta escrita pelo prefeito, no trecho em que revela
seus motivos para desejar a apresentação de Il birraio:
“[...] ecco perché ho voluto testardamente che a Vigàta
quest’opera si rappresentasse. Altra cagione no v’è e quale essa
sia stata niuno potrà mai scovrirla, essa si tien celata nell’intimo
del cuor mio e del tuo. Questa sera siederemo in teatro nel palco
Reale l’uno accanto all’altra, non più distanti come allora, e ti
stringerò fortemente la mano. Te la stringerò a rimembrare i
momenti più belli del nostro primo incontro. Godiamoci insieme,
adorata, questo regalo che il tempo e l’occasione m’hanno
permesso d’offrirti, arra di futura felicita. Ti bacia, con la dolcezza
che tanto ti piace, il tuo per la vita Dindino”. (1995: 210)179
O apaixonado Bortuzzi pendurou a carta estrategicamente ao espelho, para
que a esposa não deixasse de encontrá-la. Quando estavam a caminho do teatro,
ele perguntou a opinião da mulher sobre seu ato de amor, que os juntaria mais
uma vez diante de Il birraio. A resposta dificilmente seria mais surpreendente:
“Però te tu ti sbagli, Dindino”.
“Hosa sbaglio?”
“La data, Dindino. Io nun venni mi’a allo spettaholo di cotesto
birraio. Io un l’ho mai udito”.
“Stai scherzando?”.
[...]
“No, Dindino mio, mi’a scherzo. Io quella sera in teatro ‘un son
venuta. Son rimasta a ‘asa con la mi nonnetta. Avevo le mie hose,
Dindino, e stavo tanto male. Ne son certa, Dindino, sono andata a
riguardarmi il diario. Son rimasta a ‘asa”.
“Ma noi due non ci siamo visti per la prima volta alla Pergola?”.
“Certo, Dindo, al teatro della Pergola, ma sei gioni dopo. L’era
mi’a questo birraio, ma un’opera di Bohherini, mi pare si
chiamasse La Giovannina o qualche hosa di simile”.
“Si chiamava La Clementina, ora mi ricordo” disse torvo Bortuzzi
e quindi ammutolì. (1995:211-12)180
178
Deu as costas aos dois e afastou-se. Estava contente, com vontade de cantar: todo mundo tinha visto o que
acontecia com quem debochasse da ópera. O povoado seria informado do fato em menos de uma hora.
(2004:208-209)
179
"[...] eis por que quis teimosamente que em Vigàta se encenasse essa ópera. Não há qualquer outra razão, e
qual tenha sido ninguém poderá jamais descobrir, pois ela está escondida no âmago do meu coração e do seu.
Esta noite sentaremos no teatro, no camarote real, um ao lado do outro, não mais distantes como daquela vez,
e eu apertarei fortemente sua mão para lembrar os momentos mais belos de nosso primeiro encontro.
Gozemos juntos, adorada, esse presente que o tempo e as circunstâncias me permitiram oferecer a você,
como garantia de futura felicidade. Um beijo, com a doçura de que tanto você gosta, do seu para toda a vida,
Dindino." (2004: 209)
180
"Mas você está enganado, Dindino."
141
De apaixonado e exultante, o prefeito passou a frustrado, pois seu engano
ia além do âmbito matrimonial. A sucessão de desencontros tinha começado por
causa da ópera Il birraio di Preston: a oposição, a participação de dom Memè, o
interesse do mazziniano, o incêndio do teatro, as mortes, tudo que já havia
acontecido e aquilo que ainda estava por vir. Um ledo engano.
Último ato da história: “L’aranci erano più abbondanti” trata do destino das
principais personagens do romance, ou seja, dom Memè, Nando Traquandi e
Puglisi.
Logo no início do capítulo, lê-se que o delegado e Catalanotti estão de
guarda do lado de fora da casa onde se encontravam os dois criminosos,
aguardando o momento de agir. Puglisi caminha na direção da casa dos Garzìa e
bate à porta:
“Cu è?” spiò una voce impastata di sonno dall’interno.
Puglisi immediatamente si fece persuaso che quello che aveva
risposto stava facendo tiatro, si capiva che faceva finta di essere
stato arrisbigliato proprio in quel momento.
“Io sono, il diligato Puglisi. Vi devo parlari. Venite fora”.
“Ora vegnu, un minuto di pacienza” disse la voce non più
addrumisciuta ma vigile, attenta.
La porta si raprì e spuntò Decu in mutande e maglia di lana, una
coperta sopra li spaddri.
“Bongiornu, diligatu. Che c’è?”
“Unn’è il romano?”.
Decu sbattè le parpibre facendo mostra d’essiri sorpreso, ma
non sapeva recitari.
“Quali romano?”.
“Volete babbiare? Solo sugnu. Trasìte voi stesso e taliàte”.
(1995: 214-15)181
"Estou enganado em quê?"
"Na data, Dindino. Eu não estava no espetáculo desse cervejeito. Esse eu nunca vi. Nunca ouvi."
"Está brincando?"
[...]
"Não, meu Dindino, não estou brincando...Eu não fui naquela noite ao teatro. Fiquei em casa, com minha
avozinha. Estava menstruada e me sentindo mal. Tenho certeza disso. Fui rever no meu diário. Eu estava em
casa."
"Mas nós dois não nos vimos pela primeira vez no Pérgola?"
"Isso, Dindo, no Teatro della Pergola, mas seis dias depois. Não era esse Birraio, mas uma ópera de
Bocherini, acho que se chamava La Giovannina, ou algo parecido."
"Chamava-se La Clementina, a'ora me lembro", disse, perturbado, Bortuzzi. E a seguir emudeceu. (2004:210)
181
"Quem é?", perguntou do interior uma voz carregada de sono.
Puglisi imediatamente se convenceu de que aquele que havia respondido estava fazendo teatro, percebia-se
que estava fingindo ter sido despertado exatamente naquele instante.
"Sou eu, o delegado Puglisi. Tenho que falar com você. Venha cá fora."
"Saio já, um minuto de paciência", disse a voz, não mais adormecida, mas vigilante, atenta.
A porta se abriu e apareceu Decu, de cuecas e camiseta de lã, um cobertor sobre os ombros.
"Bom dia, delegado. Que foi que houve?"
"Onde está o romano?"
142
Porém, Decu, que não recitava bem a sua farsa, se traiu e determinou o fim
trágico, o seu e o do delegado:
Senza dire parola, Decu si assittò sul letto, si calo in avanti per
pigliare le scarpe. Era disposto a fare tutto quello che gli aveva
suggerito suo cugino, tanto contro di lui non c’era manco na
minchia di prova. Puglisi poteva andare a menarsela da qualche
altra parte. Ma mentre tastiava con la mano per affirrare le
scarpe da sotto il letto, le dita incontrarono l’azzàro freddo della
canna del revorbaro che aveva nascosto il giorno avanti e di cui
s’era scordato. Senza che il ciriveddro ci entrasse per niente
nella facenna, ma solo per puro istinto, impugno il ferro e sparò.
Pigliato in pieno petto, Puglisi sbatté contro il muro, l’arma gli
cadì dalla mano, poi sciddricò con le spaddri appujate alla
parete. (1995: 215)182
O delegado havia conseguido, em um curto espaço de tempo, através da
análise e da dedução, descobrir os culpados pelo incêndio do teatro, porém não
lhe foi dada a oportunidade de executar a punição dos criminosos. Sua morte
acaba acontecendo de maneira quase que banal, pois o principal criminoso, o
romano, estava longe dali, e Decu Garzìa já estava protegido pelo álibi oferecido
pelo primo. Podemos observar o contraste entre Puglisi e Garzìa. O primeiro,
usando a inteligência, obteve êxito em sua missão; o segundo não soube se
controlar, partiu para uma ação impensada, que lhe custou a vida. Quando
Catalanotti ouviu o disparo, correu para dentro da casa:
“Madonna santa!” sussurro Catalanotti, e capì, per troppa
spirenzia, che il suo amico e superiore era morto sul colpo,
astutato come fa un soffio sulla cannila.
“Non ci avevo intento” lastimo con un filo di voce Decu. “Non lo
volevo ammazzare. Mi scappò l’intenzione”.
Catalanotti lo tálio. Una cosa schifosa, biunnizza, di scarso pelo,
una specie di verme a forma d’omo. E si stava pisciando nelle
mutande che goccioliavano.
“Ti scappò l’intenzione?”.
“Sissi. Lo giuro”.
Decu pestanejou, dando mostras de estar surpreeendido, embora não soubesse representar.
"Que romano?"
"O romano que está com você."
"Está querendo me gozar? Eu estou sozinho. Entre e veja o senhor mesmo." (2004: 212-13)
182
Sem dizer palavra, Decu sentou-se na cama, curvou-se para a frente, para pegar os sapatos. Estava
disposto a fazer tudo que lhe havia sugerido seu primo, pois contra ele não tinham nenhuma porra de prova.
Puglisi que fosse se masturbar em qualquer outro lugar. Mas, enquanto tateava com a mão para pegar os
sapatos debaixo da cama, os dedos encontraram o aço frio do cano do revólver que tinha escondido no dia
anterior e do qual se tinha esquecido. Sem que o cérebro chegasse a participar do assunto, somente por puro
instinto, empurrou o ferro e atirou.
Ferido em pleno peito, Puglisi bateu contra a parede, a arma caiu-lhe da mão, e a seguir arriou, as costas
apoiadas na parede. (2004:213)
143
“Puro a mia scappò” disse Catalanotti e gli sparò in faccia. Poi
s’acculò allato a Puglisi, gli pigliò la testa tra le mani, lo vasò sulla
fronte, si mise a chiàngiri. (1995: 216)183
Assim se conclui a primeira cena do último capítulo: o herói morto como
principal evento e a punição do primeiro vilão, ainda que este tenha sido somente
coadjuvante na ação.
No parágrafo seguinte, o leitor encontra o segundo dos finais propostos,
com Laurentano e Traquandi, que continuam seu caminho para fora de Vigàta:
“Haiu a pisciare” disse.
“Puro a me me scappa” consenti Traquandi. [...] Il romano
s’avvicinò a un albero, si sbottonò, principiò a sgravasse. Ma
proprio davanti a lui, sospeso a un ramo basso, ce stava un
arancio ch’era una bellezza, num se poteva resiste.
Tenendo l’uccello con la sinistra Traquandi arzò la mano destra a
prenne er frutto. E proprio in quel momento Laurentano gli sparò
darrè il cozzo. Il romano se ne venne in avanti, sbattendo la testa
contro il tronco dell’àrbulo prima di cadere affacciabocconi.
(1995:216)184
No segundo final proposto a punição atinge um nível mais alto, porque,
embora não sendo o único vilão da história, Nando Traquandi e se mostrou
oportunista, aproveitou-se dos fatos ocorridos na cidade para agir em prol de seu
ideal mazziniano. Desde o primeiro momento demostrou não se importar com as
vidas que poderiam se perder por causa do incêndio. Foi ele que efetivamente
cometeu o crime.
Sua punição, a morte, não foi ocasionada pelo crime que cometera, mas
pela
conveniência
que
seu
desaparecimento
183
representava
para
o
"Virgem Santa!", sussurrou Catalanotti, entendendo, por toda sua experiência, que seu amigo e superior
havia morrido instantaneamente, apagado como uma vela soprada.
"Eu não tinha intenção", lamentou-se Decu, com um fio de voz. "Não queria matá-lo, foi sem querer."
Catalanotti olhou para ele: uma coisa nojenta, um lixo, quase sem pêlos, uma espécie de verme em forma de
homem. E estava se mijando nas cuecas que pingavam.
"Foi sem querer?"
"Sim, juro!"
"Então eu também não quis", disse Catalanotti, e deu-lhe um tiro na cara. Depois agachou-se ao lado de
Puglisi, pegou sua cabeça entre as mãos, beijou-lhe a teste e começou a chorar. (2004: 213-14)
184
"Tenho que mijar", disse.
"Eu também estou com vontade", concordou Traquandi. [...] O romano se aproximou de uma árvore,
desabotou a braguilha e começou a aliviar-se. Mas bem na sua frente, suspensa em um galho baixo, havia
uma laranja que era uma beleza, não dava para resistir.
Mantendo o caralho com a esquerda, Traquandi levantou a mão direita para pegar a fruta. E foi exatamente
nesse momento que Laurentano lhe deu um tiro na nuca. O romano caiu para a frente, batendo a cabeça
contra o tronco da árvore antes de cair de bruços. (2004: 214)
144
superintendente, que, com o assassinato do mazziniano, poderia esconder sua
responsabilidade nos fatos ocorridos: desconsiderou o pedido de Puglisi, de que
Traquandi fosse preso, dando-lhe a oportunidade de cumprir seu propósito. Neste
ponto, sabemos também que o primo de Decu foi até ele com dois objetivos: fazer
que Traquandi mordesse a isca rumo à morte e livrar o primo da condenação,
esforço que Garzìa desperdiçou quando atirou no delegado.
O maior dos vilões, porém, ainda não recebera sua punição, que começou
quando ele não foi recebido pelo prefeito, que alegou estar ocupado. Apenas
Vasconcellos, o chefe de gabinete, o recebeu, e para entregar-lhe um pacote de
livros:
Era sicuramenti la storia archeologica della Sicilia, quella che lui
aveva obbligato il notaro Scimè a dargliela per farne a sua volta
rigalo lo tálio fisso con gli occhiuzzi che parevano próprio quelli di
uno scorsone, un serpente, e sibilo:
“Buona quaresina, signor Ferraguto”.
Don Memè, che era soprappinsero, cadì nel trainello come una
pera cotta.
“Quaresima? A dicembri?”.
“Dicembre o gennaio, la carnevalata è finita”.
Ce l’aveva fatta, quel beccamorto di Vasconcellos a tirare fora il
nìvuro della seppia, la mozzicatura vilinosa della vipera. (1995:
218)185
Totalmente irado, dom Memè decidiu ir para uma casa sua, em Sanleone,
onde recebeu uma inesperada visita: "Tálio verso il cancello e vide che stava
arrivando Gaetanino Sparma, il cosidetto camperi dell"onorevole Fiannaca. Don
Memè gli ando incontro, com’era di giusto”. (1995: 219)186
Os dois se cumprimentaram, e começaram a conversar. Gaetanino disse
que fora enviado pelo deputado Fiannaca, que desejava falar-lhe. Em seguida,
começou a contar a história de um homem de Favara, que tinha aborrecido o
deputado naquela manhã, pois não sabia a diferença entre ser um prepotente
185
Era com certeza a história arqueológica da Sicília, que ele havia obrigado o tabelião Scimé a dar-lhe, para,
por sua vez, oferecê-la de presente ao prefeito. Ao pegar o pacote, Vasconcellos olhou-o fixamente, com
aqueles olhinhos que pareciam exatamente os de uma víbora, de uma serpente, e sibilou:
"Boa Quaresma, Senhor Ferraguto."
Don Memè, que estava distraído com outras ideias, caiu como um patinho na armadilha:
"Quaresma? Em dezembro?"
"Dezembro ou janeiro, o carnaval acabou."
Tinha conseguido, aquele cara de coveiro do Vasconcellos, pôr à mostra o negro da siba, a picada venenosa
da víbora. (2004: 216)
186
Olhou para a cerca de entrada e viu que estava chegando Gaetanino Sparma, o chamado homem de
confiança do deputado Fiannaca. Don Memè foi a seu encontro, como seria de esperar. (2004: 217)
145
qualquer e um homem com poder. Essa conversa deixou dom Memè alerta, e ele
perguntou qual seria essa diferença. Gaetanino se prontificou a explicar-lhe a
diferença como também a ajudá-lo na colheita de laranjas. E continuou:
“La differenzia” ripigliò il camperi “consiste non solo
nell’apparenzia, ma magari nella sostanzia. Questo signuri di
Favara, va a sapiri pirchì, s’è appaiato col diligato del paìsi. Sono
diventati culo e cammisa. E accussì s’è messo a fare lui, per
conto del diligato, quello che il diligato, ossia la liggi, non può fare
in proprio. Superchierie, infamità, vrigogne. Pigliari a uno a
pagnittuna sulla pubblica piazza, mannarlo in càrzaro senza
colpa, queste sono cose – dice l’onorevole – d’apparenzia. Ma
per farle senza perdere la faccia e soprattutto senza farla
perdere agli amici che ti danno fidúcia, ci vole la forza della
sustanzia. Se però si viene a scoprire che tu sustanzia non ne
tieni, che sei vacante di dintra, sei solamenti una frasca al ventro,
allura addiventi un servo pripotenti e, peju ancora, un servo
pripotenti di la liggi, che è una cosa storta di natura. Vossia è
d’accordo?”.
“Certo ca sugnu d’accordo”.
“Ora un pripotenti che si cridi ono d’onuri può fare dano, e danno
assai”. (1995: 220-21)187
A essa altura, dom Memè sabia que o tal prepotente era ele, que os delitos
eram os que cometera; sabia-se encrencado e tinha consciência de que devia
explicações sobre sua relação com o prefeito. Mas não teve tempo para dar
explicação a quem quer que fosse porque, segundos depois, Gaetanino pôs um
ponto final em sua vida:
Si calo per pigliare la sua coffa. E fu l’ultimo gesto della sua vita
perché Gaetanino, persuaso d’avergli dato tutte le ragioni possibili
per quello che era il compito suo, raprì il rasoio, pigliò don Memè
per i capiddri, gli tiro la testa narre e gli sgarrò la gola, facendo
nello stesso tempo un salto indietro per non allordarsi di sangue.
Nel maneggio del rasoio il camperi era maestro, magari se mai in
vita sua aveva fatto il varberi. Dopo, con la punta dello scarpone,
volto il morto a panza all’aria e gl’infilò tra i denti un foglio di carta
Bianca senza nessuna scrivuta ma intestato. L’intestazione
187
"A diferença", recomeçou o homem, "está não só na aparência, mas também na substância. Esse senhor de
Favara, sabe-se lá por que, se juntou com o delegado do povoado. Viraram unha e carne. E com isso ele se
meteu a fazer, em lugar do delegado, o que o delegado, ou a lei, não pode fazer ele mesmo. Abusos, infâmias,
coisas vergonhosas, Golpear uma pessoa em praça pública, levá-la para a cadeia, sem culpa, estas são as
coisas de aparência - diz o deputado. Mas para fazer estas coisas sem quebrar a cara, e sobretudo sem deixar
mal os amigos que têm confiança em você, é preciso a força da substância. Só que, quando se vem a
descobrir que você não tem substância, que você é vazio por dentro, que você não passa de folha solta no
vento, aí então vira um servo prepotente, e, o que é ainda pior, um servo prepotente da lei, que é uma coisa
torta por natureza. O senhor concorda?"
"Claro que concordo."
"Agora, um prepotente que pensa que é um homem de respeito pode causar dano, muito dano mesmo."
(2004: 218)
146
faceva: “Regia Prefetura di Montelusa”. Acussì, chi voleva capire,
capiva. (1995: 221)188
O terceiro, e derradeiro final se concluíra. O maior dos vilões também
recebera seu castigo e se tornara portador de uma mensagem. Endereçada a
quem? Como o prefeito deveria interpretar a morte de seu maior aliado?
Imputação de culpa ou um aviso? A narrativa termina aqui, mas não a história,
como veremos a seguir.
“Capitolo primo” (Capítulo primeiro) é o título do último capítulo do
romance. Traz uma proposta de leitura dos fatos de maneira diferenciada. O leitor
se encontra uma vez mais com o filho do engenheiro, Gerd Hoffer, o menino que
dera o alarme do incêndio em Vigàta e se atribui o papel de testemunha ocular,
com o dever de reconstruir a história baseada na “verdade dos fatos”, com “atti
istruttorii, documenti, lettere, testimonianze”. (1995:223)189
A trama de Il birraio di Preston gira em torno da apresentação de um
melodrama, gênero que está na estrutura do próprio romance/rapsódia de
Camilleri, como tentaremos demonstrar no próximo item.
3.1 Em busca da melodia perdida.
Neste item tencionamos demonstrar que Camilleri faz uso das estruturas
do melodrama na compoisção da rapsódia Il birraio di Preston. Mas, antes de
iniciarmos o nosso discurso, queremos esclarecer que, embora não acolhamos a
classificação “romance histórico”, que comumente é atribuída à obra em questão,
reconhecemos em sua elaborada trama referências a fatos ocorridos em uma
época importante para a história da Itália: os Oitocentos e os movimentos do
188
Agachou-se para pegar seu cesto. E foi o último gesto de sua vida, porque Gaetanino, persuadido de terlhe dado todas as explicações possíveis para o trabalho que iria fazer, abriu a navalha, agarrou don Memè
pelo cabelo, puxou sua cabeça para trás e o degolou, dando ao mesmo tempo um pulo para trás, a fim de não
se sujar de sangue.
No uso da navalha o homem de confiança era mestre, embora nunca tivesse sido barbeiro. Com a ponta do
coturno, virou o morto de barriga para cima e enfiou-lhe entre os dentes uma folha de papel em branco, sem
nada escrito. Mas com um timbre: Real Prefettura de Montelusa. Quem quisesse entender que entendesse.
(2004: 219)
189
atos processuais, documentos, cartas, testemunhos. (2004: 221)
147
início do século, com ênfase ao movimento revolucionário da carbonária e de
Giuseppe Mazzini, a Sicília e seus aspectos políticos, sociais e culturais,
A incidência de fatos da história italiana e, especialmente, de aspectos da
cultura siciliana em Il birraio di Preston dão especial sabor a esse romancerapsódia que, como sinalizamos no início deste item, apresenta uma estrutura
próxima a do melodrama.
Melodrama. Vejamos as principais características desse gênero músicoteatral.
Este gênero músico-teatral surgiu na sequência de pesquisas
feitas no século XVI no sentido de ressuscitar a tragédia clássica.
Distingue-se da tragédia grega, na medida em que, nesta, a
primazia cabe à palavra, tendo características complementares a
dança e a música, ao passo que naquele a música é fundamental
e o texto se resume a um guião, embora minucioso. (Enciclopédia
Verbo Luso-Brasileira, vol. 19, p. 654)
Observamos que o melodrama surgiu da tentativa de se recuperar a
tragédia clássica. O século XVIII assistiu a polêmica criada em torno do gênero,
além da tentativa, no século seguinte, de dar a supremacia à palavra.
Entre os continuadores mencionam-se Pier Francesco Cavalli e
Mareontonio Certi, em quem já se verificam os primeiros sinais da
polêmica pela supremacia da música ou do drama que havia de
dominar o séc XVIII. Na primeira metade deste século, o Apostolo
Zeno tentou uma reforma do gênero no sentido de devolver à
palavra a importância que lhe cabia na tragédia grega.
(Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira, vol. 19, pp. 654-55)
Metastásio é considerado o maior poeta do gênero e de suas obras
ressaltamos Semiramide e La clemenza di Tito.
Depois o melodrama entrou em fase de decadência, embora os
românticos da fase descendente do movimento ainda o
cultivassem como gênero teatral, caracterizado por uma
exploração abusiva do patético. (Idem, ibidem)
A música, já introduzida neste trabalho através da apresentação do
romance La voce del violino, permeia toda a narrativa, iniciando pelo título do
romance em análise, Il birraio di Preston, que é também o título da ópera
encenada na narrativa, durante a inauguração do teatro Re d’Italia.
148
Na narrativa, no segundo capítulo, registra-se a discussão sobre que ópera
seria mais indicada para um evento da importância da inauguração do teatro da
cidade. Segundo o Circolo Cittadino di Vigàta, deveria ser uma ópera melhor do
que a de Luigi Ricci, a escolhida pelo prefeito. Talvez devesse ser uma peça de
Wagner, por exemplo.
O tema música introduz algumas personagens, como dom Ciccio, o
carpinteiro entendido de música, cuja opinião contrária ao possível êxito da
apresentação de Il birraio di Preston causou problemas para os intentos do
prefeito e de dom Memè, custando-lhe a liberdade.
A música está presente também durante a discussão do Circolo Cittadino
sobre a decisão do prefeito de encenar Il birraio di Preston e a consequente
resistência daqueles que julgaram tal ato como abuso de autoridade do
governante florentino.
“Però lei, cavaliere, ha ragione” ripigliò il canonico. “Ce n’è di
musica bella. E noi invece ci dobbiamo agliuttiri, volenti o nolenti,
una musica che manco sappiamo com’è solo perchè così vuole
l’autorità! Cose da pazzi! Dobbiamo fare soffrire le nostre orecchie
con la musica di questo Luigi Ricci solo perchè il signor prefeito
ordina così!”. (1995: 24)190
Nas palavras de dom Ciccio, o carpinteiro, homem respeitado por seu
talento musical, ao expressar o que a música representava em sua vida e explicar
o motivo de sua não aprovação à opera, respondendo à pergunta do prefeito.
(1995: 170)
E a música também foi protagonista de momentos patéticos, como, por
exemplo, no episódio em que se descobre o equívoco do prefeito em relação à
ópera apresentada no teatro La Pergola, na noite em que conhecera a esposa.
Assim como acontece em Il birraio di Preston, verificamos a presença da
música em outros romances do autor. Um inventário de todas as referências
musicais encontradas na produção de Andrea Camilleri, obra a obra, pode ser
acessado em http://www.vigata.org/musica/musica_camilleri.shtml.
190
"Porém o senhor cavaliere tem razão", voltou a dizer o cônego. "Há muitas músicas lindas. E nós, pelo
contrário, temos que engolir, querendo ou não querendo, uma música que nem sabemos como é, só porque
assim quer a autoridade. Coisa de loucos! Temos que deixar nossos ouvidos sofrerem com a música desse tal
Luigi Ricci só porque o senhor prefeito assim ordena!" (2004: 22)
149
Em La voce del violino, assim como acontece em Il birraio di Preston, à
música é atribuída tamanha importância, que poderíamos considerá-la uma
personagem. Durante a narrativa, observamos como a música é capaz de
conduzir o comissário Montalbano em sua busca pelo assassino da jovem
Michela Licalzi. É a música, ou melhor, a “voz” emitida pelo precioso violino de
Michela que traz à luz não apenas o assassino da jovem, mas a motivação que
culminou no crime. A música adquire voz, poder de revelar aquilo que estava
encoberto; é a testemunha do delito, que “fala” no momento crucial, mas que, no
entanto, só pode ser ouvida por aquele que é capaz de compreendê-la, no caso o
comissário Montalbano.
A música exerce papel paradoxal em toda a narrativa de Il birraio di
Preston. Se considerarmos a oposição drama versus comédia ou, como
preferimos chamar, ópera séria vs ópera bufa, e os elementos melodramáticos
que permeiam a narrativa, observaremos que a música está presente em ambos
os elementos, que se alternam na trama, fazendo-se presente nos momentos
mais sublimes e nos momentos mais patéticos, sendo veículo dos mais nobres e
dos mais obscuros sentimentos.
A respeito da definição do que seja melodrama, citamos: “O melodrama
leva alguns elementos do drama, especialmente as intrigas e as paixões, às
suas últimas consequências”. (Mirador, 7453)
Entre as intrigas presentes no romance camilleriano podemos ressaltar o
jogo de interesses protagonizado por dom Memè, conhecido mafioso que se
apóia na autoridade do prefeito para atingir seus objetivos. A outra “intriga” é a
representada pelo mazziniano, Nando Traquandi, que para pôr em prática seu
plano de desencadear uma revolta popular, não mede esforços, planeja e
executa o plano de incendiar o teatro, deixando evidente que não se importava
com a possibilidade de fazer vítimas inocentes, o que, de fato, aconteceu.
Entre as paixões levadas às últimas consequências, a do prefeito é a
mais intensa, uma vez que, desejando homenagear sua esposa, aproveita a
oportunidade da inauguração do teatro para encenar ali o espetáculo que ambos
tinham assistido no dia em que se conheceram. Porém, é traído pela memória e
150
provoca desnecessariamente toda a confusão narrada em Il birraio di Preston,
pois a ópera certa era La Clementina.
Voltanto à história do melodrama, a apresentação de Dafne, em Firenze,
no ano de 1594, é considerada o marco zero do gênero. Nascida da
necessidade da cultura renascentista em recuperar a tragédia grega, o
melodrama é a junção da poesia e da música. No artigo Il Melodramma e
l’Opera lirica encontramos uma definição para o signo melodrama: “Mèlos in
greco antico significa musica. Dramma da dràgma, indica la rappresentazione
teatrale in genere, con la voluta omissione della distinzione fra Tragedia e
Commedia, che si operava nel teatro greco”.191
Vale ressaltar que, diferentemente do que ocorria no teatro grego, no
melodrama havia espaço para que a tragédia e a comédia operassem em
conjunto, o que vem de encontro àquilo que observamos na tessitura de Il birraio
di Preston. O leitor se vê diante de cenas de forte dramaticidade e, na
sequência, encontra outras que provocam o riso.
Sobre o teor de um melodrama:
As obras-primas do melodrama são textos que vivem quase
exclusivamente graças à habilidade de construir intrigas
inesperadas ou dosar com eficácia as intrigas mais esperadas.
As principais qualidades do melodramaturgo são imaginação e
vivacidade, capacidade de criar personagens cheias de
inocência e virtude, ao lado de vilões diabólicos, assustadores,
encarnações do mal e das trevas. No melodrama, as
personagens são esquematizadas, estereotipadas, dotadas de
psicologia direta, sem mistérios. Estão divididas entre o campo
do bem e do mal: virtuosos ou criminosos, vítimas ou vilões.
(Mirador, 7454)
191
http://www.toscamoredisperato.it/index.php?option=com_content&view=article&id=93&Itemid=213
“Mèlos em grego antico significa música. Drama, de dràgma, indica a representação teatral em gênero, com
a omissão intencional da distinção entre Tragédia e Comédia, que se operava no teatro grego.” (Tradução
da autora)
151
Embora seja um romance construído de forma não linear, o leitor é capaz
de organizar a cronologia dos fatos apresentados em Il birraio di Preston. Cada
capítulo possui coerência interna e a maior parte deles apresenta uma temática
diferente daquela apresentada no capítulo anterior, correspondendo a uma cena
da obra. A junção dessas cenas dá forma a blocos, que podemos chamar de
atos, ou princípio, meio e fim da história.
Em seus primeiros anos, o melodrama era um espetáculo que, embora
gratuito, estava reservado apenas aos nobres; somente a aristocracia tinha
acesso aos espetáculos. Veneza ocupou um importante papel na difusão do
gênero, uma vez que lá surgiram os primeiros teatros públicos, sendo o mais
antigo deles o San Cassiano, fundado em 1637, ocasião em que foi encenada
L’Andromeda, de autoria de Francesco Minelli di Tivoli. A partir de então,
qualquer pessoa estava autorizada a assistir a um espetáculo, bastando para
isso que adquirisse um ingresso. Esse fato ocasionou o surgimento de outros
teatros abertos ao público pagante e o aumento do número de melodramas
apresentados. A partir da segunda metade do século XVII, e graças aos músicos
italianos, o melodrama se difundiu por toda a Europa.
A ópera francesa, a tragédie-lyrique, criada por Giovanni Battista Lulli,
florentino naturalizado francês, “si differenziava dal melodramma per la maggior
rigorosità nell’interpretazione musicale e la particolare attenzione verso le
coreografie, arrichite dalla presenza dei balletti.”192
Mas, foi a partir do século XVIII que o melodrama adquiriu maior
popularidade, porém sofrendo modificações, uma vez que parte da retórica
característica do gênero deu lugar à inserção da música em maior escala na
trama apresentada. Christoph Willibald Gluck e Wolfgang Amadeus Mozart são
exponentes desse movimento no melodrama. Dois clássicos exemplos de ópera
populares são Le nozze di Figaro e Il Dongiovanni, ambas de autoria de Mozart.
192
http://www.toscamoredisperato.it/index.php option=com_content&view=article&id=93&Itemid=213.
“Distinguia-se do melodrama pelo maior rigor na interpretação musical e a especial atenção dada às
coreografias, enriquecidas pela presença dos balés.“ (Tradução da autora)
152
Voltando à Itália, foram Alessandro Scarlatti e, principalmente, Pietro
Metastasio os responsáveis pela definição da ópera séria. Metastasio
estabeleceu a estrutura e a métrica das óperas, conferindo, assim, seriedade às
representações. A ópera bufa, por outro lado, nasceu em Nápoles. Era,
basicamente, a forma como as cenas do cotidiano se representavam entre os
atos de um espetáculo, e, em breve tempo, graças ao sucesso alcançado,
transformou-se em gênero.
Enquanto a ópera séria exigia o cumprimento, de maneira rigorosa, dos
esquemas e estruturas que a norteavam, a ópera buffa não se empunha tal
rigor: “i compositori si ispiravano a vicende legate alla vita di tutti i giorni che il
pubblico capisca con maggior facilità, riuscendo a identificarsi nei personaggi”.193
Nomes como Rossini, Bellini, Donizetti e Verdi estão relacionados à época de
ouro do melodrama, que nesse período passou a ser chamado de Ópera.
Voltando a Il birraio di Preston, assim como os próprios acontecimentos
que constituem a trama, o cômico e o trágico se intercalam durante toda a
narrativa. Em alguns momentos, essa alternância acontece de capítulo para
capítulo, outras vezes dentro de um mesmo capítulo.
O capítulo “Avrebbe tentado d’alzare la muschittera” exemplifica o que
pode ser considerado ópera séria. Nesse capítulo, é apresentada a história da
jovem viúva Concetta Riguccio, que conhece o jovem Gáspano e, durante uma
missa, marcam um encontro para aquela mesma noite, na casa dela. Tudo sai
conforme o combinado e os dois têm sua primeira noite juntos. Porém, aquele era
o dia em que ocorreria o incêndio, e a casa da viúva localizava-se ao lado do
teatro. E o incêndio toma proporções ainda mais trágicas, pois o jovem casal
morre durante a noite, sufocado pela fumaça produzida pelo fogo. Essa tragédia,
embora tenha sido consequência do incêndio, vitimou pessoas que não possuíam
193
http://www.toscamoredisperato.it/index.php option=com_content&view=article&id=93&Itemid=213.
"Os compositores se inspiravam em acontecimentos ligados ao cotidiano para que o público entendesse
com maior facilidade, conseguindo identificar-se nas personagens." (Tradução da autora)
153
ligação direta com as personagens principais da trama; no entanto, mais adiante,
esse fato ganhará importância, uma vez que trará desdobramentos para o
delegado Puglisi, que se encontrará diante da escolha de seguir estritamente as
suas funções como delegado e investigador ou fazer o que lhe parecia mais justo,
inteferir na cena. E, sabemos que ele escolheu a segunda opção, ao modificar o
quarto onde estavam os mortos e, assim, salvar a honra da falecida viúva.
Em contrapartida, no capítulo “Giagia mia cara”, predomina a ópera bufa. O
capítulo é ambientado na noite da inauguração do teatro Re d’Italia, quando o
prefeito finalmente revela, através de uma carta endereçada à esposa, a real
motivação da escolha da ópera Il birraio di Preston. Ele explica o porquê da
insistência em apresentar aquela ópera, enfrentando seus inimigos políticos e
correndo riscos. Mas, a resposta dada pela esposa não poderia ser mais
decepcionante, nem colocar o prefeito em situação mais patética, como vimos
anteriormente: ele se equivocara, porque a ópera que tinham assistido juntos, no
dia em que se conheceram, fora La Clementina.
Não somente na produção de Camilleri a música ocupa lugar de destaque.
Se examinarmos a obra de outros escritores, como a do brasileiro Rubem
Fonseca, verificaremos que a música também se faz presente em, pelo menos,
um de seus romances de sucesso: Agosto (1993).
Em Agosto, romance policial ambientado no Rio de Janeiro, na era Vargas,
a música participa da trajetória de vida do comissário Mattos, que desde a
juventude esteve envolvido com a ópera, tendo sido inclusive claqueur do Teatro
Municipal. E, mesmo na fase adulta, já policial de carreira, jamais se afastara da
música erudita, mantendo em sua casa discos e partituras de La Traviata e La
Bohème, por exemplo, tendo a ópera estado presente “fisicamente” em diversos
momentos importantes de sua existência. O comissário sempre ouvia os trechos
das óperas, e, tal qual o comissário Montalbano, em La voce del violino, refletia
sobre o crime investigado enquanto ouvia a música. Vejamos:
Naquele momento Mattos estava deitado no sofá-cama Drago,
ouvindo La Bohème. Ele acabara de ver uma foto na primeira
página da Tribuna da Imprensa que o deixara muito perturbado.
As desventuras amorosas de Rodolpho e Mimi, ainda que
continuassem sendo expressas com emoção pela Tebaldi e pelo
154
Prandelli, haviam cedido lugar às cogitações sobre o crime do
edifício Deauville. (FONSECA, 1993: 108)
O trecho citado revela, ainda, um traço da personalidade do comissário
Mattos, característica esta dissonante daquela exigida em um investigador, mas
que não interferia em seu raciocínio lógico, ao menos em sua opinião:
Mattos, conquanto reconhecesse ser emotivo e impulsivo em
demasia, acreditava ter lucidez e perspicácia suficientes para
escapar das clássicas ciladas da investigação criminal,
principalmente da “armadilha da lógica”. A lógica era, para ele,
uma aliada do policial, um instrumento crítico que, nas análises
das situações controversas, permitia chegar a um conhecimento
da verdade. Todavia, assim como existia uma lógica adequada à
matemática e outra à metafísica, uma adequada à filosofia
especulativa e outra à pesquisa empírica, havia uma lógica
adequada à criminologia, que nada tinha à ver, porém, com
premissas e deduções silogísticas à la Conan Doyle. Na sua
lógica, o conhecimento da verdade e a apreensão da realidade
só podiam ser alcançados duvidando-se da própria lógica e até
mesmo da realidade. Ele admirava o ceticismo de Hume e
lamentava que suas leituras realizadas na faculdade, não apenas
do filósofo escocês, mas também de Berkeley e Hegel, tivessem
sido tão superficiais. (Idem)
Voltando à música, essa foi de fato, companheira de Mattos durante boa
parte de sua vida. As páginas de Agosto vão ressaltando esse envolvimento do
comissário com a música erudita, sendo lembrado, inclusive por outras
personagens, como é o caso Alice, a namorada que o abandonara tempos atrás:
“Tenho um encontro às cinco e meia. Com o maestro. Lembra do
maestro?”
“Maestro?”
“O velho que chefiava a claque, o seu Emílio, lembra?”
Ela se recordava vagamente de Mattos ter contado que quando
estudante fizera parte da claque do Teatro Municipal para poder
assistir a óperas de graça, ganhando ainda alguns trocados.
(Idem)
A música esteve presente também nos momentos dolorosos da vida de
Mattos, como em seu rompimento com Alice. Nota-se que, a partir da música, o
autor constrói uma crítica à classe mais abastada e sua interação com as artes:
Algum tempo depois do rompimento com Alice, ele fora assistir a
La Bohème no Municipal, com Di Stefano e a Tebaldi. Estava
155
acostumado a ir na torrinha, por ser mais barato e também
porque era na galeria que a claque se postava e ele se
acostumara com o local. Mas naquela ocasião comprara uma
cadeira na plateia, próxima de uma frisa, onde havia um homem
e uma mulher que cochilavam o tempo todo. Notou também que
outras pessoas permaneciam dormindo em suas frisas, até
mesmo quando Di Stefano deu um fabuloso dó de peito na ária
Che gelida manina. Ficou profundamente irritado, já estava
sentindo, então, os primeiros sintomas de sua úlcera duodenal e
de seu ódio pelos ricos. Ir à ópera, aos concertos, aos museus,
fingir que liam os clássicos, tudo fazia parte de uma grande
encenação hipócrita dos ricos, cujo objetivo era mostrar que eles
– pensava principalmente em Alice e sua família – pertenciam a
uma classe especial de pessoas superiores que, ao contrário da
chusma ignara, sabia ver, ouvir e comer com elegância e
sensibilidade, o que justificaria a posse do dinheiro e o gozo de
todos os privilégios. (FONSECA, 1993: 50-1)
Aliás, a própria vida do comissário Mattos se assemelha aos temas dos
melodramas, que ele constantemente ouve e são objetos de seu desejo. Ele, um
homem formado em direito e comissário de polícia, é o que se pode chamar de
um bom policial, por se encaixar nos moldes de boa conduta. É um profissional
honesto, que se importa com os prisioneiros de sua carceragem e está sempre
preocupado em cumprir seu dever. Em sua vida pessoal, é um homem doente e
atormentado; sofre fisicamente por causa de uma úlcera duodenal e é infeliz no
amor – tendo sido abandonado por Alice, devido à sua condição social inferior, e
vivendo um romance inconsistente com Salete, que, apesar de ser apaixonada
por ele, vive com um homem rico e casado.
Os atributos pessoais do comissário parecem, no entanto, não lhe
renderem sucesso, seja profissional ou pessoal. É mais temido que respeitado
pelos colegas de trabalho, que o consideram um louco devido ao seu
comportamento:
“Com o senhor eu não discuto. O senhor é o meu chefe e tenho
pelo senhor o maior respeito.”
Na verdade Rosalvo tinha medo do comissário. Estava certo
que Mattos não regulava bem, as caretas que fazia, a greve
maluca que tentara promover, aquela coisa de sair desarmado
nas diligências, e principalmente a mania de não levar grana do
bicho – porra, o cara andava de lotação, nem automóvel tinha e
desprezava o levado dos banqueiros! Era preciso tomar cuidado
com o homem. (FONSECA, 1993: 45)
156
Embora Mattos transgrida a figura do detetive clássico em alguns
aspectos, ele conserva o da honestidade, sendo um policial exemplar, ou seja,
não se trata de um mau caráter ou criminoso conduzindo a investigação, fato
que vai se comprovando no decorrer do romance. Quando Ilídio, o bicheiro que
Mattos chutara e prendera, decide matar o comissário, Aniceto Moscoso
procurou intervir na decisão do colega:
“A gente não mata os policiais”, disse Aniceto, “nós compramos
eles.”
“Esse puto não se vende.”
“Todos têm o seu preço. Falo de cadeira, estou nesse negócio
há mais tempo que você.”
“O cachorro me humilhou, a cidade inteira está rindo de mim.
Ele tem que morrer, para eu poder olhar novamente para a cara
dos meus filhos.”
“Maior vingança será comprar o sujeito.”
“Esse filho da puta não tem preço; ele é maluco. Todo mundo
sabe disso.” (FONSECA, 1993: 122)
E, naturalmente, a personalidade incorruptível do comissário, conforme
vimos acima, lhe rendeu poucos amigos, uma vez que ele se colocava contra
todo um sistema onde muitos eram corruptos, conforme comprovamos ao ler a
conversa havida entre o bicheiro que queria matá-lo e aqueles que queriam
dissuadi-lo da ideia:
“Você sabe que sou uma pessoa que procura se informar bem
antes de tomar qualquer decisão, mesmo que seja uma coisa
simples. Eu me informei sobre esse comissário. Os colegas não
gostam dele, os chefes não gostam dele.” (FONSECA, 1993:
123)
Assim, estamos diante de um homem de vida amorosa e pessoal
atribulada e saúde debilitada. Esses são os conflitos vividos por Mattos, que,
embora sonhe com a aprovação em um concurso para juiz federal e assim poder
melhorar sua condição profissional, não deixa de exercer seu cargo com
compromisso e seriedade.
157
Durante toda a narrativa a música se contrapõe aos elementos clássicos
do romance policial/noir, a violência exercida tanto pela polícia quanto pelos
bandidos,
o
detalhismo
das
cenas
de
assassinato
e
até
mesmo
esquartejamento, além da personagem complexa que é o comissário Mattos.
A música representa uma releitura da sua própria trajetória com Alice, a
ex-namorada e agora esposa de Pedro Lomagno: “Mattos colocou o disco na
vitrola. A música da ouverture inundou a pequena sala: identificou logo a
melodia de um e a do outro, amor e ódio, Isolda e Tristão, Alice e Alberto, o
paradoxo e a loucura”. (FONSECA, 1993:220)
Até mesmo no momento derradeiro do comissário, nos instantes que
precederam sua morte, o drama cantado deu o tom final à sua amargurada vida.
Antes de seguir para o hospital, pois finalmente estava sofrendo a hemorragia
estomacal que exigiria imediata intervenção cirúrgica, Mattos pede à Salete, a
companheira que escolhera para dividir sua vida dali para a frente, que pusesse
um disco especial na vitrola:
Mattos voltou a fechar os olhos. Continuava suando muito. Mas o
estômago não doía. Nem mesmo azia sentia.
“Pega o disco que está em cima da vitrola, por favor, e põe para
tocar. Está escrito Elixir de amor na capa. Me deu vontade de
ouvir um pouquinho, antes de sairmos para o hospital.”
(FONSECA, 1993: 341)
[...]
Subitamente
intensidade.
o
som
da
vitrola
aumentou
fortemente
de
Mattos virou-se e viu Chicão ao lado da vitrola apontando um
revólver para ele.
“Diga adeus à sua garota”, gritou Chicão, para ser ouvido acima
do som da vitrola.
Mattos olhou para Salete. Foi a última coisa que viu. Caiu ao
chão, morto pelo disparo de Chicão. (FONSECA, 1993: 342)
Retornando a Il Birraio di Preston, reproduzimos abaixo um trecho que
trata do teatro em Camilleri, retirado do livro L’incantesimo di Camilleri:
158
Il teatro è l’anima del percorso letterario di Camilleri. Nella
palestra del deatro e in quella dell’esperienza televisiva il
Camilleri scrittore mette a fuoco – e da parte – i procedimenti del
congegno narrativo.
Egli stesso racconta, nell’intervista concessa a Cinzia Tani per il
programma di Rai Educational Rewind - Visioni private, di aver
studiato a lungo come operava Diego Fabbri quando costriva la
sceneggiatura televisiva di Maigret. Fabbi comprava un libro, ne
sforbiciava materialmente le pagine, poi le disponeva per terra a
una a una in ordine non sequenziale, come in un mosaico,
secondo l’intreccio che via via gli si rivelava funzionale
all’efficacia del racconto televisivo.
Da scrittore, non solo per i polizieschi ma anche per i romanzi
storici, Camilleri ha proceduto esattamente così. (2005: 23)194
Esse procedimento é observado na escrita e, em nosso corpus de
análise, é um dos alicerces que compõem a estrutura do romance. Il birraio di
Preston possui essa estrutura mosaica; os capítulos aparentemente soltos, sem
uma conexão rígida, dão forma e significado ao romance. O autor orquestra os
capítulos, num contínuo avançar-retroceder, no qual o leitor acompanha e
observa o mosaico que é a história do incêndio do teatro Re d’Italia, em forma
de flashback. Ao palco da narrativa sobem as mais diversas personagens,
trazendo a sua história, algumas diretamente relacionadas à trama, outras
distantes e aparentemente sem qualquer conexão. A vida privada de muitas das
personagens vêm à tona, segredos são revelados, caráteres são desenhados.
Não se revela simplesmente um mistério, sua investigação e desfecho, pois o
texto vai além, ao pormenorizar a sociedade envolvida na história narrada, com
suas dores e alegrias, qualidades e defeitos, momentos cômicos e trágicos,
onde outros paradoxos como verdade-mentira, justiça-injustiça, crime-castigo
desenham a Sicília pós-unificação e a insere na Itália recém-criada.
194
O teatro é a alma do percurso literário de Camilleri. No teatro e na experiência televisiva, o Camilleri
escritor põe à prova - e a parte - os procedimentos do engenho narrativo. (Tradução da autora)
Ele conta, na entrevista concedida a Cinzia Tani para o programa da Rai Educational Rewind - Visioni
private, ter estudado durante muito tempo como operava Diego Fabbri quando construia a dramatização
televisiva de Maigret. Fabbri comprava um livro, cortava as páginas, depois as dispunha no chão uma a
uma, em ordem não sequencial, como em um mosaico, segundo o enredo que pouco a pouco se revelava
funcional à eficácia da narrativa televisiva. (Tradução da autora)
Como escritor, não somente de romances policiais mas também com os romances históricos, Camilleri
procedeu extatamente assim.
159
O trecho abaixo se refere à figura de Montalbano, mas pode ser aplicado,
também, a Il Birraio di Preston:
I racconti si basano su omicidi da ricostruire, e il genere letterario
praticato è senza dubbio il giallo: ritmi e modi della costruzione
rivelano pertinente, magistrale professionalità. La suspense tiene,
densissima, fino all’ultima pagina.
Non è questo, però, il merito principale delle storie. Il loro potere
di fascinazione sta soprattutto in quell’imbastire intorno al lettore
un universo di relazioni umane, un trionfo di familiarità
accattivante fino all’inglobamento, in cui, a un certo punto, si
inseriscono alcune note squilibranti e insidiose. (PALUMBO,
2005: 95)195
Além das estruturas do melodrama presentes na narrativa de Il birraio, já
mencionadas anteriormente, como capítulos em forma de atos, outro aspecto
importante a ser observado, no que diz respeito aos capítulos, é o fato de cada
um começar por uma frase que remete a uma obra da literatura mundial. Ou seja,
cada um dos capítulos de Il birraio di Preston é inspirado em um título literário,
sendo o primeiro – Era una notte che faceva spavento – uma referência a Era una
notte buia e tempestosa, de Snoopy, e o penúltimo, L’aranci erano più
abbondandi, baseado em Gli aranci erano più abbondanti, de L. Durrell. Tal
referência reforça a tese de que cada capítulo poderia representar um ato do
melodrama, que forma, em nossa opinião, a estrutura do romance.
Além disso, essa escolha do autor, de nomear cada capítulo com
referência a um romance da literatura universal, também nos remete à rapsódia,
uma vez que vários temas estão reunidos em uma única história.
O valor melodramático de Il birraio di Preston ultrapassou as páginas do
romance, que é consideradao por muitos o seu capolavoro: foi adaptado para o
teatro, transformada literalmente em melodrama. O espetáculo teatral Il birraio di
Preston, dirigido por Giuseppe Dipasquale, é classificado como uma comédia, ou
195
As histórias são baseadas em homicídios a serem reconstruídos, e o gênero literário praticado é sem
dúvidas o policial: ritmos e modos da construção revelam pertinência, magistral profissionalismo. O
suspense se mantém, densissimo, até a última página.
Não é esse, porém, o mérito principal das histórias. O poder delas de fascinar está sobretudo no alinhavar ao
redor do leitor um universo de relações humanas, um triunfo de familiaridade envolvente, no qual, em um
certo ponto, se inserem algumas notas destoantes e pérfidas. (Tradução da autora)
160
como preferimos chamar, ópera bufa. Abaixo transcrevemos o resumo do
espetáculo, que tem duração de duas horas, contando-se o intervalo:196
Da un capolavoro di Andrea Camilleri, un irresistibile ritratto
della provincia siciliana nella seconda metà dell’Ottocento.
Siamo nella seconda metà dell’Ottocento, in una piccola città
della provincia siciliana, quella Vigàta dove Camilleri ama
ambientare tutte le sue storie ancora un secolo e mezzo prima
dell’arrivo di Montalbano.
Si deve inaugurare il nuovo teatro civico. Il prefeito Bortuzzi –
fiorentino e perciò “straniero” - s’intestardisce ad aprire la
stagione lirica com Il birraio di Preston, melodramma di Ricci di
scarso valore, di nulla fama e di oggettiva idiozia. In realtà
nessuno vorrebbe la rappresentazione di quell’opera, ma il
prefetto obbliga a dimettersi ben due consigli di amministrazione
del teatro, pur di far passare quella che lui considera una
doverosa educazione dei vigatesi all’Arte. Tra i siciliani,
visibilmente irritati dall’autorità esterna, si insinua il “bombarolo”
mazziniano Nando Traquandi, venuto da Roma per creare
scompiglio all’apertura della sala […] Tra mafiosi veri e presunti,
brucianti storie d’amore, morti ammazzati per volontà e per
accidente, lazzi di un loggione indisciplinato, si dipana una storia
dalla perfetta architettura narrativa.(O grifo é do autor)197
A escolha da capa de A ópera maldita, versão brasileira do romance
camilleriano, também remete ao melodrama, literalmente. Trata-se da pintura
Mélodrame, de Honoré Daumier, que ilustra a capa do livro publicado pela Editora
Rocco.
196
http://www.piccoloteatro.org/spettacolo_sch.php?stepdx=Sxpet&AcRec=768. De uma obra-prima de
197
De uma obra-prima de Andrea Camilleri, um irresistível retrato da província siciliana da segunda metade
dos Oitocentos. Estamos na segunda metade do século XIX, em uma pequena cidade da província siciliana,
aquela Vigàta onde Camilleri ama ambientar todas as suas histórias ainda um século e meio antes da chegada
de Montalbano. (Tradução da autora)
Deve-se inaugurar o novo teatro cívico. O prefeito Bortuzzi - florentino e por isso "estrangeiro" - se obstina
em abrir a estação lírica com Il birraio di Preston, melodrama de Ricci de pouco valor, de nenhuma fama e
de objetiva idiotice. Na realidade ninguém queria a representação daquela ópera, mas o prefeito obriga a
destituição de dois conselhos de administração do teatro, para fazer passar aquela que ele considera uma
necessária educação dos vigatenses à Arte. Entre os sicilianos, visivelmente irritados pela autoridade externa,
se insinua o "bombarolo" mazziniano Nando Traquandi, vindo de Roma para criar desordem na abertura da
sala [...] Entre mafiosos verdadeiros e presumidos, incendiantes histórias de amor, mortos assassinados
premeditadamente ou por acidente, gracejos de uma torrinha indisciplinada, se enovela uma história de
perfeita arquitetura narrativa.
161
Ratificando o fato de que toda a criação literária de Andrea Camilleri tem
como ponto de partida um fato real, comprovamos o teor da ópera através do
libreto do espetáculo teatral Il birraio di Preston. O melodrama jocoso em três
atos, de Luigi Ricci, com libreto de Francesco Guidi, foi apresentado pela primeira
vez em Florença, no Teatro della Pergola, no dia 04 de fevereiro de 1847, dados
condizentes com os encontrados no romance de Camilleri.
Assim, Il birraio di Preston representa três obras criadas de maneira
sequencial e que apresentam ciclicidade. A primeira foi a ópera de Luigi Ricci, de
1847, que serviu de inspiração para a criação do homônimo romance de Andrea
Camilleri, de 1995 que, por fim, foi devidamente adaptado para o teatro,
transformando-se, assim, no espetáculo dirigido por Giuseppe Dipasquale.
Entre as resenhas escritas sobre o espetáculo de Dipasquale, citamos a
que foi assinada por Carmelo La Carrubba,198 que trata da questão linguística e
exalta a capacidade que possui o autor de fazer reviver a oralidade das
personagens:
Tutti conosciamo le doti di affabulatore di un narratore che
sembra far rivivere l’oralità del racconto – come nel “cuntu” – in
cui si innesta una lingua creata per la bisogna dove è possibile
giocare e divertire l’interlocutore. E in ciò consiste la “teatralità”
del racconto di Camilleri che però sulla scena può mantenere la
sua piacevole leggerezza se è rappresentata nei tempi scenici
comico-umoristici di cui sopra.199
E, tratanto especificamente do conteúdo, Carruba exalta as características
do texto literário camilleriano tranpostas para o texto teatral de Giuseppe
Dipasquale. Na resenha são elencados diversos aspectos presentes no romance,
já tratados neste estudo, como o paradoxo, as relações de poder, além da
coexistência do trágico e do cômico:
Ma affrontiamo il contenuto de “Il birraio di Preston” una tragicommedia dai risvolti paradossali che nasce dalla banalità di un
ricordo frainteso all’origine, un errore conservato nella memoria
come un fatto specifico: il prefetto di Montelusa, un fiorentino
cocciuto e ottuso interpretato da Gianpaolo Poddighe, impone di
198
http://www.cataniaperte.com/teatro/articoli/birraio_preston.htm
199
Todos conhecemos os dotes de fabulador de um narrador que parece fazer reviver a oralidade da narrativa
- como no "cuntu" - no qual se insere uma língua criada pela necessidade com a qual é possível brincar e
divertir o interlocutor. E nisto consiste a "teatralidade" da narrativa de Camilleri, que, no entanto encenado
pode manter a sua agradável leveza, se é representada nos tempos cênicos cômico-humoristicos. (Tradução
da autora)
162
rappresentare a Vigàta al Teatro civico “Re D’Italia” l’opera lirica
di tal Ricci “Il birraio di Preston” nella convinzione che alla prima
di quell’opera al Teatro La Pergola di Firenze vi avesse
conosciuto la moglie, la quale, rinfrescando l’ormai spenta
memoria del marito, precisa che lei non era presente alla prima
ma assistette – dopo giorni – allo spettacolo “Clementina”. E il
marito aveva scatenato una rivoluzione assurda, una vera guerra
civile con incendio e tre morti in scena per colpa della
improbabile opera di Luigi Ricci. Per cui essere governati in
Sicilia in quel 1877 significava avere un Potere che ignorava le
esigenze di una popolazione e il suo malessere sociale. Ma a
Camilleri che ama il gusto del paradosso e della sorpresa
creando altresì una poetica dello stupore in cui si racconta il
senso del ridicolo che investe il personaggio e che è attratto dalle
situazioni incandescenti, interessa e si serve di una lingua dai
toni e colori caldi con cui egli può scorazzare come un bambino
malizioso che trova la sua giustificazione nella risata. Altro
elemento è l’ironia dell’autore che gli consente di avvicinarsi ai
fatti da narrare; è il suo primo approccio che poi si sviluppa nel
paradosso, nel linguaggio sapido del sesso, nella conflittualità
che però, alla fine, si risolve e si dissolve nella risata. O, anche,
quando rivisita un giudizio di Sciascia sulla vedova riaffermando
nella creazione del personaggio di Agatina e Concetta Riguccia
interpretato efficacemente con malcelato candore da Mariella Lo
Giudice che essa è “l’animale che tiene il becco sottoterra”. 200
A questão da língua é um argumento amplamente explorado por Andrea
Camilleri em seus romances. O dialeto siciliano usado pelo autor confere à sua
obra uma singularidade, e quase sempre provoca dificuldade na tradução do texto
como, por exemplo, observamos na nota dos tradutores à edição brasileira de Il
birraio di Preston, cujo título em português é A ópera maldita. Abaixo
200
Mas enfrentemos o conteúdo de Il birraio de Preston, uma tragicomédia de desdobramentos paradoxais,
que nasce da banalidade de uma lembrança mal interpretada na origem, um erro conservado na memória
como um fato específico: o prefeito de Montelusa, um florentino cabeçudo e obtuso, interpretado por
Gianpaolo Poddighe, impõe a representação em Vigàta, no Teatro civil "Re D'Italia", a ópera lírica do tal
Ricci, Il birraio de Preston, com a convicção de que, na estreia daquela ópera, no Teatro La Pergola de
Florença, tivesse conhecido a esposa, a qual refrescando a já apagada memória do marido, esclarece que ela
não estava presente na primeira, mas assistira - dias depois - o espetáculo "Clementina". E o marido tinha
desencadeado uma revolução absurda, uma verdadeira guerra civil com incêndio e três mortes em cena por
culpa da improvável ópera de Luigi Ricci. Pelo qual ser governante na Sicília, em 1877, significava ter um
Poder que ignorava as exigências de uma população e o seu mal-estar social. Mas a Camilleri, que ama o
gosto do paradoxo e da surpresa, criando outrossim uma poética do estupor na qual se conta o senso do
ridículo que investe a personagem e que é atraído pelas situações incandescentes, interessa e se serve de uma
língua de tons e cores quentes com a qual ele pode descouraçar como menino malicioso que encontra a sua
justificativa na risada. Outro elemento é a ironia do autor que permite a aproximação aos fatos a serem
narrados; é a sua primeira investida, que depois se desenvolve no paradoxo, na linguagem saborosa do sexo,
no conflito que, porém, no final, se resolve e se dissolve na risada. Ou, também, quando revisita um juízo de
Sciascia sobre a viúva, reafirmando na criação da personagem de Agatina e Concetta Riguccia, interpretada
eficazmente com indissimulada candura por Mariella Lo Giudice, que essa é "o animal que tem o bico
debaixo da terra”. (Tradução da autora)
163
reproduzimos a advertência dos tradutores, onde reafirmam as dificuldades de
tradução, dadas as escolhas linguísticas do autor:
Levando a alto grau de refinamento o trabalho com a linguagem
– que é uma das características do autor -, nesta obra ele não só
precisa, através da linguagem, a situação culturea, social e as
características psicológicas dos personagens, como usa
diferentes dialetos – o romano, o milanês, o piemontês., o
toscano – para identificar cada um e chega até a buscar a
transcrição fonética do falar de um deles.
Na impossibilidade de reproduzir na tradução as diferenças
dialetais, limitamo-nos a assinalá-la em alguns momentos do
texto. (CAMILLERI, 2005: 5)201
A dificuldade em traduzir Camilleri e o trabalho realizado pelos tradutores
Giuseppe D'Angelo e Maria Helena Kühner nos induziram a utilizar a versão
brasileira na tradução às citações feitas a partir do texto original em italiano.
A dificuldade de leitura apresentada pelos textos de Camilleri estimulou a
pesquisa e publicação do livro Piccolo vocabolario per i lettori di Camilleri, em
siciliano-italiano, de autoria de Gianni Bonfiglio, publicado no ano de 2002 pela
editora Fermento, e parte integrante da coleção Percorsi della memoria. Abaixo
reproduzimos a apresentação ao Piccolo vocabolario, encontrada no site da
editora:202
Questo volume vuole essere un compendio della lingua siciliana,
un piccolo vocabolario, utile strumento per i lettori di Andrea
Camilleri e Mario Di Bella e per coloro che incontrano termini
siciliani. È rivolto anche a tutti i "siciliani di mare" che, vivendo da
molti anni lontano dalla Sicilia, hanno forse dimenticato molti dei
vocaboli fondamentali della loro lingua madre. In chiusura, è stato
inserito un prontuario composto da una serie di frasi tipiche, che
potrà essere utilizzato per pronto accomodo da tutti quelli che si
recheranno in Sicilia o che avranno voglia di scoprire un
linguaggio nuovo e diverso da quelli finora conosciuti.203
201
Convém assinalar que interferimos em certas traduções, quando divergimos da solução encntrada pelos
tradutores.
202
http://www.fermento.net/catalogo/libro.php?id=55
203
Este volume quer ser um compêndio da língua siciliana, um pequeno vocabulário, útil instrumento para os
leitores de Andrea Camilleri e Mario Di Bella e para aqueles que encontram termos sicilianos. É voltado
também a todos os "sicilianos de mar" que, vivendo há muitos anos longe da Sicília, tenham talvez esquecido
164
Podemos observar nos romances de Camilleri a coexistência da língua
italiana e dos dialetos, especialmente o siciliano que faz parte do estilo do autor. A
língua constitui traço idenditário na obra, sendo elemento capaz de moldar as
personagens. Enquanto a língua italiana é utilizada nos momentos públicos,
oficiais, nos diálogos formais, o dialeto é a escolha dos momentos mais íntimos,
pessoais, nos diálogos populares. Podemos exemplificar essa diferença de uso
com trechos do próprio Birraio, observando as diferenças entre a linguagem dos
relatórios às autoridades e as cartas de populares.
No trecho do relatório enviado pelo prefeito, no qual explica os motivos
“oficiais” para a escolha da ópera a ser apresentada, lemos:
Mi venne allora, del tutto casualmente, di formulare un titolo,
quello del Birraio di Preston, opera da me goduta in anni più verdi
e precisamente alla sua prima esecuzione trionfale avvenuta in
Firenze nell’anno 1847. Feci quel titolo certamente non per
ragioni personali, ma perchè ritenevo che quell’opera, nella sua
vaga leggerezza, nella sua semplicità di parola e di musica, fosse
atta alla ritardata comprensione dei siciliani, e dei vigatèsi in
particolare, per ogni superno manifestarsi dell’arte. (1995: 134)204
E, na carta de populares endereçada ao prefeito:
“Al signor profeto Bortuzziiccillenza
Montelusa
“Caro Profetto, tu si na grandi testa di cazzo. Pirchì non te ne torni
a Forenze? Tu non sì un profetto na uno strunzo ca feti e uno
sasìno. Tieni tre morti sopra li spaddri per il foco del tiatro. Tu sì la
peju sdilinquenzia. Nun ai cuscienza. Firmato un citatino”.205
muitos dos vocábulos fundamentais de sua língua mãe. No final, foi inserido um prontuário composto de uma
série de frases típicas, que poderão ser utilizadas prontamente por todos aqueles que irão para a Sicília ou que
terão vontade de descobrir uma linguagem nova e diferente daquela até agora conhecida. (Tradução da
autora)
204
Ocorreu-me, então, por mero acaso, mencionar um título, o do Birraio di Preston, ópera que eu apreciei
em meus verdes anos, exatamente quando de sua primeira e triunfal execução, acontecida em Florença, no
ano de 1847. Citei aquele título, evidentemente, não por motivos pessoais, mas porque julgava que aquela
ópera, por ser algo bem leve e de grande simplicidade em termos de letra e música, seria adequada à lerda
compreensão dos sicilianos, e dos vigatenses em particular, em relação a toda e qualquer superior
manifestação de arte. (Tradução da autora)
205
Ao Senhor Profeto Bortuzzi Cilenza
Montelusa
"Caro profeto, você é um grande cabeça de merda. Por que não volta para sua Florença? Você não é
um profeto, você não passa de um bosta que fede e um burro. Tem três mortes nas costas por causa do
incemdio do teatro. Você é um criminoso da pior raça. Não tem conciência. Assinado - Um cidadão."
165
3.2 O espetáculo interrompido
O paradoxo está presente em toda a narrativa de Il birraio di Preston.
Todorov escreveu “A tipologia do Romance Policial”, capítulo de Poética da
Prosa (1971), editada em português pela editora Martins Fontes, em 2003, no
qual define a tipologia do romance policial; discorre sobre as tentativas de
adequação em um gênero, as peculiaridades deste tipo de narrativa, e, sobretudo,
trata das características essenciais que devem existir em um romance para que
ele possa ser classificado como policial. No início de nosso trabalho, utilizamos o
livro O mundo emocionante do romance policial, de Paulo de Medeiros e
Albuquerque, para traçarmos uma linha do tempo detalhada do gênero policial,
desde o seu surgimento até a contemporaneidade.
Sobre o romance policial clássico, que Todorov chama de “romance de
enigma” é dito:
A primeira história, a do crime, termina antes que a segunda
comece. Mas o que acontece na segunda? Poucas coisas. Os
personagens dessa segunda história, a história da investigação,
não agem, só tomam conhecimento. Nada pode acontecer com
eles: uma regra do gênero postula a imunidade do detetive. É
impossível imaginar Hercule Poirot ou Philo Vance ameaçados
por algum perigo, atacados, feridos, e, com mais razão ainda,
mortos. As cento e cinquenta páginas que separam a descoberta
do crime da revelação do culpado são dedicadas a uma lenta
aprendizagem: examina-se indício após indício, pista após pista.
O romance de enigma tende, pois, para uma arquiterura
puramente geométrica: Assassinato no Expresso do Oriente (A.
Christie), por exemplo, apresenta doze personagens suspeitos; o
livro consiste em doze, mais uma vez doze interrogatórios,
prólogo e epílogo (ou seja, descoberta do crime e descoberta do
culpado). (TODOROV, 2003: 66-7)
A partir da citação acima, observamos o seguinte: Il birraio di Preston,
assim como diversos outros romances policiais, rompe com várias das regras
citadas acima, sobretudo no que diz respeito à atuação do detetive. Afinal, o
delegado Puglisi não apenas se expõe a toda sorte de perigo durante a narrativa,
como acaba sendo assassinado, ainda que acidentalmente, ao final dela. O
comissário Mattos, personagem de Rubem Fonseca, é outro exemplo desse novo
tipo de detetive. Ao percorrer as páginas de Agosto, o leitor conhece a trajetória
166
de vida do comissário, suas desilusões, seu relacionamento com Salete, uma
prostituta, os problemas que enfrenta em seu trabalho. O mesmo acontece em
Lupo Mannaro, de Carlo Lucarelli, no qual temos dois investigadores, o
comissário Romeo e a jovem Grazia, que protagonizará outros romances de
Lucarelli, e que também protagoniza, junto ao comissário Montalbano, o romance
Acqua in bocca, escrito a quatro mãos pelos romancistas italianos, Camilleri e
Lucarelli. Assim, como acontece com o comissário Montalbano, todos esses
detetives citados vão na contramão daquilo que se definiu como detetive clássico:
o comissário Romeo termina afastado da polícia por estar doente, sendo
substituído por Grazia; o comandante Mattos é assassinado pelo próprio
criminoso do delito que investigou e elucidou, sem sequer ter a chance de prendêlo; e, por fim, o comissário Montalbano, talvez por protagonizar uma considerável
quantidade de romances, se expõe de maneira mais intensa e profunda ao leitor.
Os medos e as paixões experimentados por esses homens e mulheres
constituem parte importante dos romances que protagonizam. Eles não são
infalíveis, porém seus objetivos sempre são alcançados, preservando assim a
fundamental regra do romance policial, os crimes sempre são elucidados e, ainda
que no âmbito narrativo a elucidação não seja revelada, para o leitor nunca
restam dúvidas quanto a autoria dos crimes.
Assim, observamos que a estrutura contemporânea do romance policial
difere bastante da original. A história do crime e a da investigação já não
constituem os únicos pilares em que se sustentam a narrativa. Novos elementos
foram inseridos e fazem parte da trama. Se tomarmos como exemplo o
comissário Montalbano, verificaremos como essa personagem está enraizada nas
narrativas que protagoniza. Sua vida está estreitamente vinculada à história
narrada. A paixão do comissário pela terra onde vive, pela gastronomia local, o
seu conturbado relacionamento com Lívia, sua eterna noiva, seu senso de justiça
e seus valores estão presentes de forma bastante abrangente nos romances.
Todorov trata das duas histórias existentes no romance policial, a do crime
e a da investigação, ou de como se tomou conhecimento do delito, citando os
formalistas russos, através da fábula e do tema.
Na fábula, não há inversão no tempo, as ações seguem sua
ordem natural; no tema, o autor pode nos apresentar os
resultados antes das causas, o final antes do começo. Essas
167
duas noções não caracterizam duas partes da história ou duas
histórias diferentes, mas dois aspectos de uma mesma história,
são dois pontos de vista sobre a mesma coisa. Como, então, o
romance policial consegue tornar ambos presentes, colocá-los
lado a lado? (TODOROV, 2003: 66)
O autor segue explicando como esses dois elementos se fazem presentes.
Retomando nosso corpus, podemos então questionar como a fábula, isto é, o
incêndio do Teatro Re d’Italia caminha lado a lado com o tema, a narrativa.
Para explicar esse paradoxo, é preciso lembrar inicialmente o
status particular das duas histórias. A primeira, a do crime, é na
verdade a história de uma ausência: sua característica mais
precisa é a de não poder estar imediatamente presente no livro.
Em outras palavras, o narrador não pode nos transmitir
diretamente as réplicas dos personagens envolvidos nelas, nem
nos descrever seus gestos: para fazer isso, tem necessariamente
de passar pela intermediação de um outro (ou do mesmo)
personagem que relatará, na segunda história, as palavras
escutadas ou os atos observados. O status da segunda é, como
vimos, igualmente excessivo: é uma história que não tem
nenhuma importância em si mesma, que serve exclusivamente
de mediador entre o leitor e a história do crime. Os teóricos do
romance policial sempre concordaram em dizer que o estilo,
neste tipo de literatura, tem que ser prefeitamente transparente,
inexistente; a única exigência à qual obedecer é simples, claro,
direto. (TODOROV, 2003: 68)
Em Il birraio di Preston, não há essa divisão em duas histórias, pois o
formato teatral da trama rompe com essa característica. O leitor toma
conhecimento dos fatos no momento em que eles acontecem. É como se
estivéssemos sentados numa plateia e, a cada abrir e fechar das cortinas,
víssemos surgir diante de nós os fatos, em forma de uma nova cena. O leitor
toma conhecimento da motivação, planejamento e execução do delito pelo próprio
criminoso; não há intermediários nessa ação, assim como em toda a trama, não
apenas o crime, tampouco a investigação.
Cabe ressaltar, no entanto, que, embora a organização de Il birraio di
Preston seja diferente, a estrutura interna da narrativa se mantém. É como se,
para as personagens, o romance seguisse a ordem natural dos fatos, os pontos
de vista de que falamos acima, mas para o leitor fosse concedida uma visão “de
cima”, onisciente. O leitor está em todos os lugares: ele conhece tudo porque
quase nada se oculta aos olhos daquele que lê.
Todorov (2003: 68) prossegue:
168
No romance de enigma, há portanto duas histórias: uma ausente
mas real, a outra presente mas insignificante. Essa presença e
essa ausência explicam a existência de ambas na continuidade
da narrativa. A primeira comporta tantas convenções e
procedimentos literários (que nada mais são do que o aspecto
“tema” do relato) que o autor não pode deixá-los sem explicação.
Note-se que esses procedimentos são essencialmente de dois
tipos, inversões temporais e “visões” particulares: o teor de cada
informação é determinado pela pessoa que a transmite, não
existe observação sem observador; o autor não pode por
definição ser onisciente, como era no romance clássico.
Eis mais um aspecto do romance policial tradicional que é transgredido
pela narrativa em Il birraio di Preston. A existência das duas histórias citadas por
Todorov de fato se comprova; ambas estão presentes e são relevantes na
estrutura do romance; vão sendo construídas ao longo da narrativa. Não se trata
da pura e simples observação de uma personagem, na verdade de nenhuma
personagem em especial. As duas histórias são contadas aos poucos, tomam
forma na medida em que cada cenário é construído. A estrutura da narrativa em
atos oferece muito mais que a simples elucidação do crime. Através dela o leitor
toma conhecimento de múltiplas histórias, entre as quais a do crime e da
investigação. Além disso, verifica-se outra transgressão no que diz respeito ao
narrador, que é onisciente: vê tudo e sabe tudo. Apenas o último capítulo, o
“Capitolo primo”, é narrado por uma personagem, Gerd Hoffer, o rapsodo, que
assume o papel de conservar e transmitir os fatos ocorridos.
Para ilustrar esses dois tipos de romance, podemos citar, em comparação
a Il birraio di Preston, outro romance de Camilleri, La voce del violino, já
referenciado, no qual, a partir de um acidente, o comissário Montalbano chega até
uma vila e encontra o corpo de Michela Licalzi. Durante toda a narrativa,
Montalbano seguirá as pistas e seu poder de dedução, a fim de chegar ao
criminoso, e o faz, desvendando inclusive os motivos que levaram o amante de
Michela a cometer o crime.
Em termos de dinâmica da narrativa, Il birraio di Preston se encaixa nos
moldes de um subgênero que é desdobramento do policial, o romance noir, que
teve origem nos Estados Unidos da América. Sobre ele, Todorov escreve:
O romance noir é um romance policial que funde as duas
histórias ou, em outras palavras, suprime a primeira e dá vida à
segunda. Não nos relatam mais um crime anterior ao momento
169
da narrativa, a narrativa coincide com a ação. Nenhum romance
noir é apresentado sob a forma de memórias: não há um ponto
de chegada a partir do qual o narrador abarcaria os
acontecimentos passados, não sabemos se ele chegará vivo ao
final da história. A prospectiva substitui a retrospectiva.
(TODOROV, 2003:69-70)
E é exatamente o que acontece em Il birraio di Preston: temos uma visão
ampla, detalhada da história, ou das histórias ali presentes. As coisas vão
acontecendo, os fatos vão se sucedendo. E esse gênero rege, dá vida a uma
nova estrutura:
Não há história para adivinhar; e não há mistério, no sentido em
que estava presente no romance de enigma. Mas nem por isso o
interesse do leitor diminui: percebe-se aqui que existem duas
formas de interesse totamente diferentes. A prmeira pode ser
chamada de curiosidade; ela vai do efeito à causa: a partir de um
certo efeito (um cadáver e alguns indícios) é preciso encontrar
sua causa (o culpado e aquilo que o levou a cometer o crime. A
segunda forma é o suspense, e aqui se vai da causa ao efeito:
mostram-nos primeiro as causas, os dados iniciais (gângsteres
que preparam golpes), e nosso interesse é mantido pela
expectativa do que vai acontecer, ou seja, dos efeitos (cadáveres,
crimes, brigas). Esse tipo de interesse era inconcebível no
romance de enigma, pois seus personagens principais (o detetive
e seu amigo, o narrador) estavam, por definição, imunizados:
nada podia acontecer-lhes. A situação se inverte no romance
noir: tudo é possível, e o detetive põe em risco sua saude e até
sua vida. (TODOROV, 2003:70)
Assim, verificamos que Il birraio di Preston dialoga em muitos aspectos
com a definição de romance noir, uma vez que temos a fusão das duas histórias
que compunham o romance de mistério, ou romance policial tradicional, em uma,
a troca da curiosidade em se descobrir o assassino pelo suspense em saber qual
a próxima ação do assassino e consequentemente do detetive, como em um
tabuleiro de xadrez nada está definido, a expectativa está presente em todos os
momentos.
Fatos inesperados e que não necessariamente pertencem ao âmbito da
investigação acontecem. A morte do médico e, especialmente a do comissário,
que é assassinado de forma totalmente inesperada, quase que acidentalmente,
pelo cúmplice do criminoso principal, surpreendendo o leitor, “um gênero novo
cria-se em torno de um elemento que não era obrigatório no antigo” (TODOROV,
170
2003: 70). Il birraio di Preston parece se encaixar nessa definição, de romance
noir, nesse subgênero do romance policial.
A fim de embasar nossas afirmações sobre o romance noir e,
especialmente, sua aplicabilidade em Il birraio di Preston, citamos mais uma vez
Todorov (2003: 74):
O leitor fica interessado não só pelo que aconteceu antes, mas
também pelo que acontecerá mais tarde, ele se pergunta tanto
sobre o futuro quanto sobre o passado. Ambos os tipos de
interesse se encontram reunidos aqui: há a curiosidade de saber
como os acontecimentos passados se explicam; e há também o
suspense: o que vai acontecer com os personagens principais?
Lembremos que esses personagens gozam de imunidade no
romance de enigma; aqui arriscam o tempo todo a vida. O
mistério tem uma função diferente da que tinha o romance de
enigma: é antes um ponto de partida, o interesse principal vem da
segunda história, aquela que se desenrola no presente.
Embora a divisão rígida entre passado e presente praticamente não exista
em Il birraio di Preston - a ordem em que os fatos se apresentam tem uma
estrutura teatral, onde a história é contada em forma de atos, sem obediência à
estrutura princípio, meio e fim, e com as partes da história se intercalando – é o
noir o gênero que mais se aproxima daquele encontrado no romance.
Naturalmente, essa é apenas uma tentativa de classificação desse romance
policial ou rapsódia.
Todorov, enfim, sintetiza a relação entre os três tipos de romance (de
mistério, noir e de suspense):
Mas é bastante notável que a evolução do romance policial em
suas grandes linhas tenha seguido precisamente a sucessão
dessas formas. Poderíamos dizer que, num dado momento, o
romance policial sente como um peso injustificado as restrições
de tal ou qual gênero e livra-se delas para constituir um novo
código. A regra do gênero é percebida como uma restrição a
partir do momento em que se torna pura forma e não se justifica
mais pela estrutura do conjunto. [...] O romance de suspense que
nasceu depois da grande época do romance noir sentiu esse
meio como atributo inútil, e conservou apenas o próprio
suspense. Mas ao mesmo tempo foi preciso reforçar a intriga e
restabelecer o antigo mistério. (TODOROV, 2003:76)
Assim, podemos afirmar que, diante da análise da narrativa à luz da teoria
aqui apresentada, trata-se de um romance noir, ou melhor, de uma rapsódia noir,
171
uma vez que as características desse subgênero do policial prevalecem no
decorrer da história, ou, utilizando o termo dos formalistas russos, do tema.
Ao começarmos a caminhar para as considerações finais, devemos
sublinhar que a rapsódia Il birraio di Preston está, de fato, baseada em fatos reais,
extraídos da obra Inchiesta sulle condizioni della Sicilia del 1875-76. Ou seja, a
trama se desenrola na Itália recém-unificada, já com a Sicília anexada ao território
italiano.
Na verdade, como afirmamos anteriormente, Camilleri parte sempre de um
fato real para arquitetar seus romances. E, na obra em exame, embora alguns
fatos pertençam à história cronológica da Itália, esses servem somente como
motivação inicial.
172
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Começamos as considerações finais confessando nosso embaraço na
classificação da obra que examinamos nesta tese, Il birraio di Preston, que é
frequentemente inserida no rol de romances de Andrea Camilleri que são
classificados como históricos. A narrativa, de fato, parte de um importante
momento da história da Itália, pois a ação principal, o incêndio do teatro Re
d’Italia, acontece na noite de 10 de dezembro de 1874, pouco tempo após a
Unificação da Itália. Mas, ter como ponto de partida um fato histórico para
desenvolver a trama é condizente com o estilo do autor, que, neste romance,
utiliza as informações contidas em Inchiesta sulle condizioni della Sicilia del 187576 para construir seu jogo ficcional, estabelecer um contrato narrativo com o seu
leitor. Parte somente do fato histórico.
Em Il birraio di Preston encontramos elementos caracterizadores do gênero
policial: o crime, que é o incêndio do teatro; a figura do detetive, representada
pelo delegado Puglisi, que conduz a investigação; e a solução do crime e
identificação dos culpados. Porém, como já afirmamos, a exemplo do que
acontece com Agosto, Quer Pasticciaccio brutto di via Merulana e Il giorno della
Civetta, não se realiza a punição consequente da descoberta do investigador, o
que fecharia o ciclo do romance policial. Nando Traquandi, o mazziniano, só é
assassinado para atender os interesses das autoridades que queriam ocultar o
próprio erro. Após a investigação conduzida por Puglisi apontar Traquandi como o
responsável pelo incêndio, as autoridades precisaram agir rapidamente e o
fizeram, eliminando o revolucionário e atribuindo o crime ao louco da cidade,
Cocò Impiduglia.
Il birraio di Preston se encaixa também nos moldes do romance noir,
subgênero do policial, pois o leitor acompanha toda a ação que ocorre na
narrativa, desde o planejamento do delito à solução. A história do crime e a da
investigação se fundem em uma única.
As estratégias narrativas utilizadas pelo autor conferem ao romance a
possibilidade de diversos níveis de leitura. O primeiro deles, e o mais visível,
como apontamos, é o giallo (policial), em virtude da estrutura da obra, associado
ao estilo do autor. O histórico é outro nível de leitura presente no texto de
173
Camilleri, que tem como cenário a Sicilia do século XIX, palco de disputas
políticas e sociais, anexada à recém-unificada Itália.
Mas, queremos classifica-lo como rapsódia, com a estrutura dos capítulos
representando cenas, ou atos da história sob o palco de Vigàta. É melodramático.
Através das narrativas dentro da grande narrativa, podemos abrir cortinas que nos
permitem o vislumbre de pequenas cenas do cotidiano, da vida privada dos
cidadãos vigatenses, com seus amores e suas dores, que se misturam, e mesmo
compõem a trama principal. Essas tramas inesperadas vão surgindo a cada
capítulo e, embora não possuam ligação direta, algumas delas não se liga nem
mesmo ao incêndio, completam o mosaico que é Il birraio di Preston, uma
rapsódia melodramática.
Em Macunaíma, Mário de Andrade reúne lendas indígenas, provérbios do
povo brasileiro, a diversidade religiosa, assim como as características de cada
região do nosso país, que retratam a sociedade brasileira de então, nessa
diversidade incluída a língua popular, na representação da oralidade. Il birraio di
Preston é, também, uma narrativa onde estão reunidos o modo de vida e os
costumes do povo siciliano do século XIX, as relações entre as autoridades e o
povo. Tal como acontece em Macunaíma, a língua possui papel importante nessa
e nas demais obras de Camilleri. A utilização do siciliano marca a identidade dos
vigatenses, pois a oralidade está presente em todos os momentos, o coro das
vozes populares se faz sentir em toda a trama, até mesmo nas cartas enviadas
pelos cidadãos comuns ao prefeito Bortuzzi.
O coro, elemento integrante do teatro grego, desde os seus primórdios,
presente no melodrama – que se originou como proposta de recuperação da
tragédia – é um dos elementos melodramáticos presentes em Il birraio di Preston.
É a voz do povo que anuncia, acusa e revela as injustiças.
O coro aparece na narrativa em momentos variados. Primeiro ele anuncia a
tragédia, o incêndio. Depois, no teatro – representado pelos espectadores que
falam durante toda a apresentação da ópera – demonstra ignorância musical e,
também, indignação contra o prefeito e sua ordem. No entanto, o trecho onde o
coro aparece de maneira mais eficaz é aquele no qual são publicadas as cartas
em que as principais autoridades de Vigàta, o prefeito, o padre e até mesmo o
delegado Puglisi, são acusados.
174
Apesar de não possuir o poder, o povo soube utilizar o único instrumento
que não podiam lhe tirar, a voz, e durante toda a narrativa exerceu o papel que
lhe cabia, informar e acusar.
A questão da língua italiana e da língua siciliana, os traços identitários do
siciliano permeiam toda a narrativa que dialoga com outras obras da literatura
italiana, principalmente.
Il birraio di Preston apresenta uma miríade de histórias encaixadas em uma
história maior e recusa moldes classificatórios: se estabelece sobre o gênero
policial, mas não é uma simples história de crime e punição; apresenta uma
estrutura condizente com a do melodrama: a construção dos capítulos que nos
remetem a atos, a presença do coro, anunciando, denunciando e protestando
contra os abusos de autoridade e as injustiças, o paradoxo entre a ópera séria e a
ópera buffa. Toda a narrativa é conduzida pelas linhas do delito e da investigação,
nesta rapsódia em giallo.
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