tony bellotto victoria philpott lenise pinheiro og pozzoli
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TONY BELLOTTO | VICTORIA PHILPOTT | LENISE PINHEIRO | OG POZZOLI REVISTA DO ITAÚ PERSONNALITÉ N O 26 | ANO 7 TONY BELLOTTO “Os escritores se levam a sério demais. Gente de banda não tem isso” março | abril | maio VICTORIA PHILPOTT LENISE PINHEIRO OG POZZOLI EXEMPLAR DISTRIBUÍDO NAS AGÊNCIAS PERSONNALITÉ OFICIAL DA MARINHA FAZ MEDIÇÕES EM CARTA NÁUTICA DURANTE TRAVESSIA DE 50 MINUTOS ATÉ A ILHA RASA (RJ) A BORDO DO AMORIM DO VALLE EDITORIAL U MARCELO CORREA m dos maiores ídolos do rock nacional e também escritor já consagrado; um colecionador de 170 carros antigos que se orgulha de contar minúcias da “vida” de cada um; uma jovem inglesa que viaja pelo mundo e abastece um blog de turismo que é referência na Europa; a mais importante fotógrafa de teatro do Brasil. Ao observar o sumário e deparar com o rosto do nosso quarteto principal, formado por Tony Bellotto, Og Pozzoli, Victoria Philpott e Lenise Pinheiro, você vai concluir, de cara, que a diversidade permeia a nossa 26a edição. Conseguimos reunir histórias distintas que têm, como ponto de intersecção, uma palavra que dá norte ao nosso garimpo jornalístico: experiência. Mais do que simplesmente apresentar tais histórias, o desafio (para um título que já tem sete anos) é como apresentá-las. No perfil de Tony Bellotto, por exemplo, ao lado do texto que fala da produção literária dele, colocamos um outro, em dourado, sobre Bellini, detetive protagonista de seus livros. Para fechar, contamos em história em quadrinhos a evolução da banda Titãs, que deve lançar novo disco em maio. Já com a Lenise, em vez de editarmos um longo artigo, pedimos que ela fizesse uma seleção de fotos fundamentais de sua carreira: dessa forma, compreendemos a relevância da produção dela e também vemos a atuação dos principais atores do país. Com Og Pozzoli, tivemos o privilégio de conhecer uma das coleções automotivas mais significativas do país e destacamos quatro carros com um design e um estilo que não se encontram mais nos modelos modernos. E, para acompanhar o perfil de Victoria Philpott, reunimos em uma página os cafés da manhã que mais chamaram a atenção em suas andanças e pesquisas pelo mundo. Nos textos que acompanham o quarteto de personagens, alcançamos um conjunto bem eclético. Apresentamos Torres del Paine, um parque nacional no extremo sul da Patagônia chilena, pouco conhecido no Brasil, mas considerado um dos lugares mais lindos do mundo. Contamos a saga do cineasta Samir Abujamra na África: ele estava em um jipe que explodiu durante a gravação de um documentário no Saara Ocidental – e sobreviveu para narrar como isso alterou seu jeito de ver a vida. Entrevistamos três frequentadores da Sala São Paulo e três musicistas da Osesp (que está em festa graças à celebração de seus 60 anos) para entender melhor qual é a emoção da música clássica ao vivo. Escalamos o escritor Ruy Castro para contar os detalhes de uma partida de futebol de praia no Rio de Janeiro que deu o que falar na década de 1940. Ainda no Rio, visitamos a Ilha Rasa, fechada para o público e endereço de um dos faróis mais emblemáticos da costa brasileira. Reportagens e histórias de vida muito interessantes que inspiram nossas próprias escolhas e deixam esta edição atraente do começo ao fim. Um abraço e boa leitura, André Sapoznik Itaú Personnalité COLABORADORES O jornalista RUY CASTRO, 66 anos, é autor de biografias como O anjo pornográfico (sobre Nelson Rodrigues), Carmen – Uma biografia (Carmen Miranda) e Estrela solitária (Garrincha). Apaixonado por música do século 20, escreveu Chega de saudade: A história e as histórias da bossa nova. Em 2013, lançou Letra e música, coletânea de crônicas escritas para a Folha de S.Paulo. Nesta edição, narra a pelada no Leblon que reuniu a nata da cultura nacional nos anos 40. “Conheço os detalhes dessa história – é tudo verdade.” Aos 35 anos de idade, o fotógrafo DANIEL ARATANGY tem 26 atrás das lentes. Nascido em Boston (EUA) e criado em São Paulo, ele fez o primeiro curso de fotografia aos 9 anos. “Na adolescência, clicava as ruas de dia e revelava à noite.” Profissional desde 1998, hoje colabora para revistas como Marie Claire e Playboy. Para esta edição, Daniel enquadrou Tony Bellotto para a capa. “Mesmo tímido, o cara é tão gente boa, generoso e comprometido que as fotos fluíram muito bem”, conta Aratangy. Paranaense de Assis Chateaubriand, LUIZ MAXIMIANO, 35 anos, entrou no mundo da fotografia por acaso, em 2006, quando morou em Amsterdã para ser missionário de uma ONG cristã. Começou a registrar os projetos sociais em que se envolvia e, no ano seguinte, ganhou o Canon Prize, na Holanda, como “revelação”. Ano passado, recebeu o prêmio Abril (melhor retrato) com uma série de boxeadores. Hoje colabora para Veja, Rolling Stone, GQ e revistas internacionais. Nesta edição, fotografou Og Pozzoli, colecionador de carros. DIVULGAÇÃO / LAURA ANCONA / PEPÊ SCHETTINO / ARQUIVO PESSOAL Natural de Campina Grande (PB), o cineasta, ator e escritor SAMIR ABUJAMRA, 44 anos, se considera “um nômade pelo mundo”. Em janeiro, ele esteve no Saara Ocidental filmando o documentário El desierto del desierto e, junto à sua equipe, foi surpreendido ao passar de carro sobre uma mina antitanque. Ele fez fotos e o relato em primeira pessoa dessa aventura, que você confere na matéria “Tinha uma mina no meio do caminho”. EXPEDIENTE COLABORADORES ARQUIVO PESSOAL / OTAVIO SOUSA / ARQUIVO PESSOAL / ARQUIVO PESSOAL Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretor de Núcleo Tato Coutinho Diretor Financeiro Agenor S. Santos Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba Diretor de Redação Décio Galina Editora Lia Bock Produtora Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente de Produção Juliana Carletti Departamento Comercial Supervisora de Projetos Especiais e Planejamento Comercial Ana Carolina Costa Oliveira Assistente Comercial da Diretoria Gabriela Trentin Assistente de Arte Marketing Publicitário Fabiana Cordeiro Gerentes de Contas Paulo Paiva e Roberta Rodrigues Assistente de Tráfego Comercial Aline Trida Para anunciar [email protected]. br Representantes Internacionais Sales Multimedia, Inc. (USA) [email protected] BA Romário Júnior DF Alaor Machado MG Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller RJ Juliana Rocha RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/SC Ado Henrichs SE Pedro Amarante SP Interior Daniel Paladino Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz (coordenação) Bibliotecário Daniel de Andrade Estagiárias Gabriela Fraga e Janaína Mattos Produção Gráfica Walmir S. Graciano Produtor Gráfico Cleber Trida Tratamento de Imagens Roberto Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação), Janaína Mello, Jaqueline Couto e Marcos Visnadi Projetos Especiais e Eventos Coordenação Regina Trama Analista Mariana Beulke Trade e Circulação Diretora Daniela Basile Analista de Trade Renata Vilar Coordenadora de Assinaturas Andrea Fernandes Gerente de Circulação Adriano Birello Analista de Circulação Vanessa Marchetti Projetos Digitais Diretor de Mídias Eletônicas de Custom Publishing Beto Macedo Editores de Arte Débora Andreucci e Diego Maldonado Assistente de Arte Julia Vargas Editora Executiva Site Clarissa Beretz Redatora Site Carla Braga Gerente de Negócios Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo Coordenação Ana Rosa Sardenberg Assistente de Produção e Finalização Viviane Gualhanone Editor de Vídeo Pitzan Oliveira TV Trip Direção Joana Cooper Diretora Assistente Anice Aun Editora Daniela Guimarães Relações Públicas Taís Neri Assistentes de RP Rafael dos Santos e Monalisa de Oliveira Colaboram nesta edição: Vanina Batista (direção de arte), Kiki Tohmé (designer), Carlos Messias e Edmundo Clairefont (edição de texto), Barbara Heckler, Carol Sganzerla, Décio Galina, Eduardo Duarte Zanelato, Fausto Salvadori Filho, Juliana Carletti, Kelly Cristina Spinelli, Luciana Lancelotti, Luis Patriani, Ruy Castro, Samir Abujamra, Tato Coutinho (texto), Camila Fontana, Carol Quintanilha, Daniel Arantangy, Felipe Pagani, Luiz Maximiano, Marcelo Correa, Marcos Vilas Boas, Nelson Mello, Zeca de Sousa (foto), Mauricio Pierro, Pedro Franz, Veridiana Scarpelli (ilustração), Omar Bergea (make) Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon, André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Camila Carneiro e Elisangela Bonamigo Colaboradores DPZ Propaganda Marcello Barcelos e Elvio Tieppo Capa e quarta capa Daniel Arantangy Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité. Endereço para correspondência: rua Cônego Eugênio Leite, 767, 05414-012, São Paulo, SP. E-mail: [email protected] www.tripeditora.com.br A Trip Editora, consciente das questões ambientais e sociais, utiliza papéis Suzano com certificado FSC (Forest Stewardship Council) para impressão deste material. A Certificação FSC garante que uma matéria-prima florestal provenha de um manejo considerado social, ambiental e economicamente adequado. Impresso na Pancrom – Certificada na Cadeia de Custódia – FSC Formada em arquitetura e urbanismo pela USP, a paulistana VERIDIANA SCARPELLI abandonou os desenhos de móveis e objetos em 2007, para se dedicar à ilustração. Colabora com o jornal Folha de S.Paulo e com revistas como GOL Linhas Aéreas Inteligentes, Wine e Viagem & Turismo. Para a Revista Personnalité, recriou o jogo que reuniu a nata da cultura nacional no Leblon, em 1945. “Não quis reproduzir um registro fotográfico e, sim, dar um empurrão para que cada um imaginasse essa pelada, curiosa e engraçada como deve ter sido.” Os cliques do paulistano FELIPE PAGANI, 34 anos, podem ser vistos tanto em publicações nacionais, como Serafina e Vogue, como em estrangeiras: Sunday Times, GQ China e Men’s Uno Hong Kong. Para esta edição, o fotógrafo, residente em Londres, realizou os retratos da inglesa Victoria Philpott, a jovem blogueira de turismo que está sempre em trânsito. “Embora estivesse atrasada para embarcar para a Austrália, ela foi bem legal e garantiu boas fotos”, ele relembra. O paulistano CARLOS MESSIAS, 32 anos, é mestre em literatura pela PUC-SP e jornalista especializado em cultura pop. Edita o site de música da Red Bull e colabora para as revistas Audi, GOL Linhas Aéreas Inteligentes, Veja SP e para o caderno “Ilustrada”, da Folha de S.Paulo. Ele uniu o fascínio pelas letras e a paixão pelo rock ao escrever sobre Tony Bellotto e Remo Bellini, o principal personagem do titã. “Li o primeiro livro com ele ainda na adolescência e sempre cultivei um carinho pelo detetive”, diz Messias. Com 14 anos de experiência em jornalismo, FAUSTO SALVADORI FILHO, 35, é repórter da revista Apartes, uma publicação da Câmara Municipal de São Paulo. Seu trabalho lhe rendeu uma menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos do ano passado. O grande talento de Fausto é contar histórias humanas e isso está evidente no perfil que ele fez do colecionador de carros antigos Og Pozzoli para esta edição. SUMÁRIO 10 Cá entre Nós Música, cinema, gastronomia, viagem – dicas de quem sabe viver bem 15 Prestígio NÃO É SÓ FACHADA Premiado fotógrafo de moda e de publicidade, Bob Wolfenson 16 recorda a exposição com imagens de São Paulo que o inseriu nas galerias de arte 16 “O MELHOR TRABALHO DO MUNDO” Entre um desembarque da Tailândia e um embarque para a Austrália, Victoria Philpott nos recebeu em um café de Londres para contar como é a vida de uma blogueira de turismo 22 PRAZER, TORRES Considerado um dos lugares mais lindos do mundo, Torres del Paine, no extremo sul da Patagônia chilena, ainda é pouco conhecido no Brasil 32 MUDANÇA DE HÁBITO A discrição é a marca maior do trabalho de Lenise Pinheiro, uma das mais importantes fotógrafas de cena do teatro brasileiro. Por que então ela apareceu de freira para a sessão de fotos de Revista Personnalité? 40 AOS SEUS LUGARES Três músicos da Osesp e três frequentadores da Sala São Paulo falam da emoção de estar diante da principal orquestra do país 32 FELIPE PAGANI / DANIEL ARATANGY / LUIZ MAXIMIANO / MARCOS VILAS BOAS 50 76 50 CORAÇÃO ROCK’N’ROLL 76 AUTO FALANTE Entre o guitarrista e o escritor, o ídolo de rock e o detetive policial, Quando está ao lado de um de seus 170 carros antigos, o Tony Bellotto recupera o “espírito de garagem” que marca colecionador Og Pozzoli dispara a contar a história de cada um o melhor de sua produção com entusiasmo. É como se os automóveis falassem, revelando papas desobedientes e princesas ameaçadas de morte 60 AVISO AOS NAVEGANTES Uma viagem à Ilha Rasa, no Rio de Janeiro, cujo farol, desde 84 TINHA UMA MINA NO MEIO DO CAMINHO a inauguração em 1829, segue o mais importante dos 7.400 O cineasta Samir Abujamra entrou para uma rara estatística: quilômetros de costa brasileira sobreviveu à explosão de uma mina antitanque no Saara Ocidental, onde filmou o documentário El desierto del desierto 68 A PIOR PELADA DA HISTÓRIA Foi em 1945, na Praia do Leblon, o embate entre Copacabana e Ipanema. Envolveu Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino... — craques da literatura, mas pernas de pau no futebol 90 Primeira Pessoa “NÃO FAÇO ESTARDALHAÇO” A chef Carla Pernambuco escolheu uma batedeira que a representa: “Faço mil coisas ao mesmo tempo e não tenho tempo para a fadiga” CÁ ENTRE NÓS VIAGEM, GASTRONOMIA E CULTURA – CONVIDADOS ESPECIAIS ABREM SUAS PREFERÊNCIAS _ DAN STULBACH, ator PASSE A PASSE Corintiano doente, Stulbach recorda a virada da seleção sobre os soviéticos na estreia da Copa do Mundo da Espanha (1982) e destaca golaço de Sócrates POR LUIS PATRIANI 10 FICHA TÉCNICA BRASIL 2 X 1 União Soviética Segunda, 14/6/1982, estádio Ramón Sánchez Pizjuán, Sevilha. BRASIL Waldir Peres, Luizinho, Oscar, Leandro, Júnior, Sócrates, Falcão, Dirceu (Paulo Isidoro), Zico, Serginho Chulapa, Éder. Técnico: Telê Santana. UNIÃO SOVIÉTICA Dasaev, Chivadze, Sulakvelidze, Demianenko, Baltacha, Bessonov, Bal, Daraselia, Blokhin, Gavrilov (Susloparov), Shengelia (Andreev). GOLS Bal aos 34 minutos do 1º tempo; Sócrates aos 30 e Éder aos 43 do 2º tempo. DIVULGAÇÃO / FOTO DE ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO “O gol da seleção brasileira que mais me marcou foi o golaço de empate que o Sócrates fez na vitória por 2x1, contra a União Soviética, na estreia da Copa do Mundo da Espanha, em 1982. Eu era um garoto de 11 anos, torcedor do Corinthians, e aquela era a Copa dos meus sonhos. Perdê-la significaria, assim como se mostraria depois, a maior derrota da vida. Em campo, mais do que jogadores, havia heróis, legítimos personagens saídos dos álbuns de figurinha que transitavam entre a fantasia e a realidade. E o maior ídolo de todos era o Doutor Sócrates. O ícone do meu Timão. O jogo começa e, aos 31 minutos do primeiro tempo, a URSS abre o placar numa falha do goleiro Valdir Peres. A possibilidade da derrota me assustou. Era terrificante. Um pesadelo. Até que, aos 29 minutos do segundo tempo, a zaga soviética se atrapalha e a bola sobra para o rei do calcanhar, que domina a pelota, dá um drible seco no primeiro, desvia do segundo e emenda um canudo de fora da área, no ângulo direito do gigante Dasaev. Apesar da desclassificação diante da Itália e da amarga experiência infantil, aquele lindo gol ficará na minha memória como uma obra de ficção, a pura demonstração do poder de um super-herói.” CÁ ENTRE NÓS _A MENSAGEM DA GARRAFA ADRIANA BARRA, estilista Da viagem para a Sicília, na Itália, em 2013, Adriana guarda uma garrafa muito especial: Ben Ryé Passito di Pantelleria 2011 POR LUCIANA LANCELLOTTI O NOME Em árabe, a expressão Ben Ryé significa “filho do vento”. A ilha é árida, ventosa e de árvores pequenas. A produção vinícola fica nas encostas vulcânicas. Já Donnafugata, em italiano, quer dizer “mulher em fuga”, uma alusão à história da rainha Maria Carolina. Com a chegada de Napoleão, em 1800, ela fugiu de Nápoles para a Sicília, onde estão os vinhedos da família produtora. DIVULGAÇÃO / ALAMY/LATINSTOCK / DIVULGAÇÃO “Em maio de 2013, fui para a Sicília e fiquei apaixonada por uma vinícola, a Donnafugata, em Pantelleria, uma ilha bem pequena. Foi onde conheci este vinho delicioso e muito específico. O fato de ser doce não o restringe às sobremesas. Ele é tomado sempre, em taças grandes, acompanhando as refeições. Foi tão marcante que comprei vários. Trouxe uma garrafa que guardo até hoje a sete chaves, pois sei que é difícil achar no Brasil.” O RÓTULO A ilustração de Stefano Vitale marca a terceira versão da etiqueta, que comemora o 20o aniversário da primeira colheita. Impressos, os símbolos da ilha: as vinhas e as paredes de pedra dos dammusi, como são chamadas as casas típicas da ilha. Destaque para o logo da vinícola, uma mulher com cabelos esvoaçantes. A SAFRA Em 2011 os vinhedos de Pantelleria tiveram um ano ensolarado e quente, produzindo vinhos de excelente qualidade. A edição de 2014 do Gambero Rosso (guia de vinhos italianos mais respeitado do mundo) classificou o Ben Ryé 2011 com sua cotação máxima, os Tre Bicchieri. O PRODUTOR Fundada em 1983, a vinícola Donnafugata tem no comando a família Rallo, com tradição de mais de 150 anos na produção de vinhos Marsala e vinhedos em três partes da Sicília: Marsala, Pantelleria e Contessa Entellina. Um dos ícones do resgate do prestígio dos vinhos sicilianos. A UVA 100% Moscato de Alexandria, conhecida localmente como Zibbibo, colhida de vinhas centenárias, em 11 vinhedos diferentes. O nome Passito vem do fato de as uvas ficarem como passas, ao ar livre, durante um mês. Com a redução da água, o açúcar concentrado da fruta produz vinhos doces e encorpados. 11 CÁ ENTRE NÓS _MEU CANTO EDUARDO LEME, galerista Da poltrona à mesinha, do cachorro à cabra, é tudo arte no escritório do proprietário da Galeria Leme, em São Paulo POR KELLY CRISTINA SPINELLI MOBILIÁRIO BRASILEIRO “Coleciono mobiliário brasileiro. Estas poltronas da Lina Bo Bardi [1914-1992] são lindas. Acho que comprei em um leilão há uns cinco anos.” HEREDITARIEDADE “Ganhei esta Nossa Senhora da minha mãe, e ela herdou do meu avô. É linda e tem valor sentimental importante por já ter passado por várias gerações da família.” PEQUENO GIGANTE “Este cachorrinho é inspirado no famoso cachorro balão do escultor [norte-americano] Jeff Koons, originalmente enorme.” 12 DESIGN DIFERENTE “Não comprei esta mesinha de Giuseppe Scapinelli [1911-1982] pelo valor comercial, mas porque acho que ela tem um design diferente, que me agrada. Devo ter encontrado em um antiquário.” SOM DE CABRA “Sobre a mesa tenho esta peça do português João Pedro Vale. Gostei muito da ideia dele, de usar guizos de cabras na obra. O resultado é ótimo.” CAMILA FONTANA PRESENTE DE ARTISTA “Adoro esta escultura dos caquinhos. Ganhei de David Batchelor, um artista que representamos e expôs aqui na galeria. É muito bacana, e não muito comum, ser presenteado pelos artistas.” CÁ ENTRE NÓS _TRILHA SONORA PATRICIA PALUMBO, produtora cultural À frente do programa Vozes do Brasil, pela Eldorado FM, a jornalista paulista seleciona de jazz a rock, de Thelonious Monk a Karina Buhr POR JULIANA CARLETTI 1 2 3 1. “SPIRIT IN THE DARK”, ARETHA FRANKLIN “Era criança e descobri este disco de 1970 com meu tio. Ali eu vi que é possível louvar a Deus mexendo os quadris. A faixa homônima é uma que não pode faltar quando a festa é para dançar.” 2. “RUBY, MY DEAR”, THELONIOUS MONK “Recorro a esta coletânea [Monk alone: The complete Columbia solo studio recordings – 1962-1968] toda vez que preciso descansar minha cabeça de tanto ouvir música. A dinâmica do pianista tem muito silêncio, cheia de pausas e vazios.” DIVULGAÇÃO / DIVULGAÇÃO 3. “CAMINHOS CRUZADOS”, JOÃO GILBERTO “O som [do álbum Amoroso, de 1976] dialoga com os standards do jazz norte-americano. Foi a primeira música mais adulta que ouvi na vida.” 4. “SEDUZIR”, DJAVAN “Quando tinha 15 anos, meus amigos e eu passávamos dias inteiros na praia, em São Sebastião, ouvindo o disco Seduzir [1981] e pensando nos romances que ainda não tínhamos vivido.” 5 6 7 4 5. “UM MÓBILE NO FURACÃO”, PAULINHO MOSKA “No final dos anos 90, as coisas estavam um pouco repetitivas em termos sonoros e o disco Móbile [1999] deu uma boa mexida rítmica no cenário.” 7. “AZUL DA COR DO MAR”, TIM MAIA “O disco [homônimo, de 1970] foi uma contribuição marcante do meu pai à minha formação em música pop. A gente ouvia muito essa canção em casa, na vitrolinha.” 6. “MANIA DE VOCÊ”, RITA LEE “Tinha 14 anos. A faixa vinha nessa onda de amor explícito que definia o álbum Rita Lee, de 1979. A música embalava a brincadeira da tarde. Eu levava as minhas irmãs pra andar de patins e pensava naquelas letras deliciosas, mas ainda não decifrava tudo aquilo.” 8. “EU MENTI PRA VOCÊ”, KARINA BUHR “Em 2010 a Karina fez um disco com o mesmo nome dessa canção. É um trabalho muito roqueiro sem nenhuma guitarra. Assim, ela trouxe o que eu acho de mais interessante na música brasileira de todos os tempos, que é a mistura.” 13 8 CÁ ENTRE NÓS _ÁGUA NA BOCA ANDRÉ CASTRO, chef POR KELLY CRISTINA SPINELLI Ele é carioca na certidão, mas não no sotaque. O acento de André Castro vem de Brasília, onde morou a partir dos 4 anos de idade e aprendeu a jogar capoeira. Depois, mudouse para Salvador e tomou gosto pela cozinha abrindo e administrando bares como o Casa Amarela. Ele também rodou pela Europa, de onde trouxe expressões como cuisine à la minute e a precisão técnica que hoje aplica no D’Olivino, famoso pela variedade de azeites, do leve ao frutado, que entram em cena para acompanhar delícias como o Tagliatelle Nero Alla Pescatora, que ele ensina aqui. TAGLIATELLE NERO ALLA PESCATORA Ingredientes Molho 120 g de polvo pré-cozido 120 g de lula cortada em tiras ou anéis 180 g de camarão limpo e eviscerado 50 ml de azeite de oliva extravirgem 3 colheres (sopa) de manteiga gelada 100 ml de vinho branco de boa qualidade 100 ml de caldo de peixe 16 tomates cereja cortados em quatro 2 dentes de alho finamente picados 1 colher (sopa) de cebola finamente picada Ervas frescas picadas – salsa, manjericão, tomilho e alecrim Sal e pimenta-do-reino moída na hora Modo de preparo Molho: Aqueça o azeite, adicione o alho, a cebola e, assim que ele liberar seu aroma, adicione os frutos do mar previamente temperados com sal e pimenta. Após 2 minutos, adicione o vinho e o caldo de peixe, que irão finalizar o cozimento dos frutos do mar. Salpique as ervas picadas e junte o tomates, reservando alguns para a finalização do prato. Tempere com sal e pimenta-do-reino. Finalização: Cozinhe a massa em água fervente salgada. Assim que a massa estiver no ponto certo, leve-a à panela com molho fervente, junte a manteiga e salteie até montar o molho. Corrija os temperos se necessário. Leve ao prato, regando com um fio de azeite extravirgem, e finalize com cerefólio e tomate cereja. Rendimento: 4 porções. Tempo de preparo: 30 minutos. 1. UM INGREDIENTE INDISPENSÁVEL. Um abstrato ou um concreto? Abstrato: energia. Concreto: azeite. Tenho também uma tatuagem referente à capoeira. Mas sou professor de capoeira, não posso dizer que é um hobby. 2. COMEÇO NA COZINHA. Foi a cozinha que me escolheu. Nunca tinha pensado em ser chef. Primeiro fui administrador. Comecei abrindo um barrestaurante em Salvador, depois outro, até que decidi ir estudar e me aperfeiçoar mais. 4. SABOR DE INFÂNCIA. A galinhada de parida da minha mãe. Sabe o que é isso? Um ensopado caseiro da galinha que se fazia para engrossar o leite das mulheres que tinham bebê. Por isso é “de parida”. Experimente D’olivino R. Haddock Lobo, 1.159 São Paulo (SP) Tel.: (11) 3068-9797 3. UM HOBBY. A música. Tenho uma clave de sol tatuada na mão. O violão é minha válvula de escape. 5. A SUA COZINHA. A cozinha do D’olivino é o que se chama de à la minute. É tudo artesanal e feito na hora. O D’Olivino faz parte do Menu Personnalité. Conheça os pratos em: itau.com.br/personnalite/experiencia 14 Leia no tablet a receita da massa negra NELSON MELLO Por trás da cozinha mediterrânea do D’Olivino, um chef brasileiro com formação internacional — e boas doses de energia e azeite PRESTÍGIO | BOB WOLFENSON POR Kelly Cristina Spinelli _ NÃO É SÓ FACHADA ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO BOB WOLFENSON Premiado fotógrafo de moda e de publicidade, Bob Wolfenson recorda a exposição com imagens de São Paulo que o inseriu nas galerias de arte É difícil escapar dos rótulos. Se um ator é bom comediante, ele está fadado a fazer sucesso com suas piadas, mas terá dificuldade em conseguir papéis dramáticos. Não é diferente com músicos, dançarinos e fotógrafos – Bob Wolfenson, por exemplo. Aos 60 anos, ele está há mais de três décadas no mercado. Primeiro, consagrou-se como um dos grandes nomes de ensaios de moda e produções publicitárias. Colecionou prêmios. Na Playboy, fez história enquadrando celebridades como Maitê Proença e Cleo Pires. Em 2004, Wolfenson decidiu mostrar outras facetas de seu trabalho. “Um dos grandes turning points da minha carreira aconteceu quando fiz a exposição AntifaRETRATO DO EDIFÍCIO COPAN, EM SÃO PAULO, PARTE DA EXPOSIÇÃO ANTIFACHADA, DE BOB WOLFENSON chada e Encadernação dourada na Faap [Fundação Armando Alvares Penteado]”, conta. “Até então, eu era o Bob Wolfenson da moda, das mulheres, da publicidade. A partir desse trabalho, consegui ter uma inserção maior entre as galerias.” A mostra reuniu dois ensaios que não representavam nem a moda nem os comerciais. Antifachada englobava cerca de 40 fotos de São Paulo, cidade onde o fotógrafo nasceu e cresceu. Encadernação dourada era composta de 70 fotos de situações circunstanciais, algo como um álbum de fotografias da trajetória de Bob em seus caminhos de rotina. “Eu tinha essa inquietação interior, trabalhos que queria mostrar”, relembra. 15 “Rubens Fernandes, curador de fotografia da Faap, conseguiu um mês para eu expor – e com dimensões grandiosas. Foi quase um trabalho muralista.” “Antifachada são fotos de São Paulo que remetem a paisagens da minha infância [cresceu no bairro Bom Retiro], esse amassado de concreto, essa certa decadência da região central. E Encadernação dourada é um livro de memórias, quase um caderno de notas. A partir desses trabalhos fui aceito em outro circuito. Desde então, fiz umas quatro ou cinco exposições, publiquei livros e desenvolvi muito esse meu outro lado.” Tudo isso sem sair de cena do mundo da moda e da publicidade. Baixe a Revista Personnalité no tablet e assista ao vídeo com Bob Wolfenson POR Eduardo Duarte Zanelato, de Londres FOTO Felipe Pagani “O MELHOR TRABALHO DO MUNDO” No primeiro e-mail que trocamos, Victoria Philpott respondeu do Vietnã. Na semana em que aceitou nos receber, acabara de voltar da Tailândia. Na entrevista em um café de Londres, planejava o embarque para a Austrália. Viajante profissional, a inglesinha de 28 anos vive mapeando trilhas e destinos pelo mundo em um dos mais concorridos blogs do Reino Unido PERSONNALITÉ N a Gâmbia, um pequeno país na costa africana, há um hotel tão tranquilo que os ocupantes dos apenas nove chalés, com deques para um lindo rio, são, na verdade, coadjuvantes. Os verdadeiros hóspedes do Mandina Lodge são as 580 espécies de pássaros que vivem ali, nas cercanias de um paraíso natural, a floresta Makasutu. Em Cienfuegos, no litoral cubano, um restaurante pequenino oferece uma grande experiência gustativa. Pouca gente haverá de negar que comer um camarão vivo no Noma, em Copenhagen, é mesmo um momento inesquecível. Mas quem não quiser aguardar a longa fila de espera para experimentar a iguaria em um dos mais famosos restaurantes do mundo e preferir dar uma chance às lulas cozidas e aos camarões empanados da cozinha do El Tranvia, guardará a certeza de que há tanto ou mais prazer na simplicidade de um bom e velho prato feito à moda caseira. Esqueça Berlim, Nova York, Miami ou São Paulo. Uma grande e desconhecida arte de rua povoa os muros da pequena cidade africana de Kubuneh. Um dos bairros mais charmosos e coloridos do planeta chama-se Bo-Kaap, na Cidade do Cabo. Em Londres, o creme do novo rock inglês (e internacional, claro) ocupa o palco do Village Underground, sob os arcos pelos quais passam os trilhos que levam à estação de Shoreditch. Falando em música, existem poucos festivais tão peculiares quanto o que celebra os laços entre Japão e Vietnã. Acontece em agosto, em Hoi An, uma linda e histórica cidade do sudeste asiático. UMA ROTINA INCOMUM Sentada em um café da estação de Waterloo, em Londres, Victoria Philpott lista uma série de dicas de viagem tão fora do âmbito dos guias de turismo que é quase natural a fama que conquistou em tão pouco tempo. Aos 28 anos, Vicky é uma das blogueiras de viagem mais comentadas da Inglaterra. Seu blog, Vicky FlipFlop Travels (As viagens de Vicky Chinelo de Dedo, numa tradução livre; o apelido, dado por amigos, é uma corruptela do sobrenome), constrói uma ponte entre a vontade de conhecer o mundo e a ciência de como fazê-lo bem. Por conta de suas experiências, a inglesa acabou convidada a gerenciar o conteúdo de uma importante rede social, a GapYear, dedicada a quem pretende tirar sabáticos ou mochilar. Victoria é também a responsável pela equipe de especialistas do site Roundtheworldexperts, o principal da Inglaterra na oferta de passagens e planos a quem quer jornadas que circulem o globo. Ela ainda escreve para revistas e jornais, como o gigante Daily Mail. Por fim, é consultora de grandes companhias do continente. VICTORIA PHILPOTT “VIROU UMA OBSESSÃO. EMENDEI UM PERÍODO DE MUITAS VIAGENS ALEATÓRIAS” Em 2010, a RailEurope, maior empresa do mundo na venda de bilhetes de trem, enviou Vicky para uma viagem de cinco meses pela Europa. “O melhor. Trabalho. Do mundo!”, ela diz, com a exclamação e as pausas todas. Sua missão: mapear destinos que a agência pudesse explorar. Nessa toada, Victoria passa ao menos três meses por ano viajando. E, a cada quatro semanas, uma se dá longe de casa. Nosso encontro ocorreu em um fim de tarde no meio do caminho entre o escritório onde trabalha, na região sudeste, e sua casa, nas cercanias de Abbey Road. O local, escolhido por ela, permitiria minutos a mais de papo numa semana de preparativos para a viagem seguinte: Austrália. “O que me motiva é um negócio bem simples: amo visitar novos lugares”, diz. “E amo fazer coisas diferentes, o máximo possível.” TURNÊ EUROPEIA ARQUIVO PESSOAL Victoria nasceu em Barton-under-Needwood, um vilarejo de 5 mil habitantes no interior inglês. Aos 18 anos, entrou na faculdade de jornalismo. Nas férias, atravessou o Atlântico e trabalhou em acampamentos de verão em Nova York. “Conheci tanta gente interessante, e de toda parte”, diz. “Fui percebendo que não era muito aberta para o mundo.” Daí por diante, definiu o que queria da vida. “Virou uma obsessão. Emendei um período de muitas viagens aleatórias. Fui à Austrália. Conheci todo o resto do meu país, visitei a Espanha.” Quando se formou, em 2007, Victoria se mudou para Londres. Por algum tempo, trabalhou em editoras de revistas. Ao juntar dinheiro suficiente, empacotou as coisas e, com o namorado, partiu em um mochilão. O casal ficaria quatro meses rodando por Espanha, França, Itália, República Tcheca, Sérvia e Eslovênia. Entre os espanhóis, Vicky ensinou inglês e pintou casas em troca de moradia. Fez o mesmo na Itália. “A forma como nos relacionamos com as pessoas dessas cidades pequenas foi a melhor parte da viagem”, conta. “É completamente diferente de só ficar visitando os pontos turísticos, o que também fizemos, evidentemente. Mas percebi nisso um jeito de mesclar as experiências e ter uma ideia mais real da cultura de um país.” Foi aí que Vicky decidiu transformar turismo em ganhapão. Ao voltar a Londres, conseguiu um emprego no site Hostel Bookers. Parte do trabalho era acompanhar blogs e publicações impressas para pescar dicas de viagem para os clientes do portal. “Lia tudo aquilo e pensava: ‘Também posso fazer isso!’.” Nesse ponto, decidiu criar seu blog. DE CIMA PARA BAIXO, RODA-GIGANTE NA FEIRA DE ABRIL EM SEVILHA, ESPANHA; TRÂNSITO DE GÔNDOLAS EM VENEZA. NA PÁGINA AO LADO, A ROTINA SELVAGEM OBSERVADA POR VICTORIA DURANTE SAFÁRI NO SERENGETI NATIONAL PARK, NA TANZÂNIA, EM 2012 19 PERSONNALITÉ _ Volta ao mundo em 10 cafés da manhã Para Victoria Philpott, a comida é parte fundamental de uma viagem. Ela listou em seu blog as refeições matinais mais significativas (e curiosas) de alguns países 2 1 3 4 9 8 5 6 7 10 1. ESCÓCIA “Uma alternativa ao café britânico é essa opção em que o bacon, os ovos e o feijão vêm acompanhados por Haggis, iguaria grossa] gigante mergulhado no mel. Não quentinha de noodles misturado com ovos, típica recheada por vísceras de ovelha.” conseguia parar de comer!” vegetais e temperos picantes?” 2 INGLATERRA 5. BAHAMAS 8. PORTUGAL “Poucos digerem bem a mistura de ovos “Os grãos dão tom ao desjejum local. Essa “Em estilo art nouveau, o Café Majestic, no mexidos, bacon, salsicha, torradas e, acre- espécie de canjica surge com cobertura de Porto, é experiência gastronômica farta. dite, feijão com molho de tomate logo no carne ou camarão para reforçar o sabor.” Provei o café continental com champanhe.” desjejum. Mas é uma das marcas do país.” 6. JORDÂNIA 9. EUA 3 JAPÃO “Homus, falafel e a coalhada seca labneh “Panquecas com bacon, melado e mirtilos “Tofu com peixe, arroz e molho de soja. Um servidos ao lado de azeite, salsicha de são um delicioso golpe nas coronárias.” prato leve e tradicionalíssimo.” cordeiro, geleias e manteiga.” 4. MARROCOS 7. MALÁSIA “Pão de centeio, queijos, cereais, salame, “Provei um crumpet [espécie de panqueca “Que tal abrir o dia com uma tigela presunto, patês, mel e chocolate.” 10. DINAMARCA 20 VICTORIA PHILPOTT hienas, é uma coisa fantástica.” A visita à Cidade de Pedra, Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, é uma parada que a blogueira recomenda. Ainda na lista de destinos prediletos, a jornalista aponta para Cuba. Compartilha uma dica: “Cuba pode ser conhecida de dois jeitos: existe a Cuba do [escritor americano Ernest] Hemingway, com todos os locais em que ele viveu, bebeu, escreveu. E tem a Cuba de quem se hospeda nas ‘casas de particulares’ [quartos em residências de cubanos]. É uma maneira única e confortável de entrar em contato com a cultura local.” Até hoje, Cuba resume as experiências latino-americanas de Victoria Philpott. A blogueira reconhece o furo e pretende tapá-lo. México, Costa Rica e Colômbia devem virar textos em breve. “E tem o Brasil, claro. Mas sempre me vem à cabeça aquela imagem de mulheres exuberantes andando pela praia e devo confessar que me assusto com a ideia de ser comparada a elas”, brinca. Pergunto, por fim, se dentro dessa rotina sem rotina há espaço para os planos da vida comum: comprar um apartamento, ter filhos. “Ah, eu ia adorar viajar com crianças. Vai ser mais difícil, mas vou fazer funcionar. É muito melhor dividir esses momentos.” Tendo pisado em quase 40 países, ela tem uns 150 pela frente. Chão para percorrer não falta. ARQUIVO PESSOAL SOZINHA EM UMA ILHA AFRICANA Na volta de seu mochilão, continuou trabalhando do jeito que pôde, mas o primeiro passo para engrenar na carreira era ser inflexível: toparia apenas serviços em empresas relacionadas à sua paixão. Nos intervalos, mais viagens. Passou a buscar um olhar distinto da concorrência. Victoria distribuía dicas para pessoas que não querem “largar tudo e viver viajando”. Ela explica: “Não concordo com essa visão de que as pessoas só terão suas vidas mudadas se passarem três meses longe de casa. Acredito em outra coisa: ter experiências transformadoras aproveitando as férias, do tamanho que for”. A visão pragmática encontrou um bom público. “Entendo que a maioria das pessoas goste de viajar, mas nem todas querem abandonar suas vidas para fazer isso.” Mas faltava fôlego financeiro ao blog. Ela, então, recorreu a concursos culturais. Venceu três, que lhe renderam passagens pela Tanzânia, pelo Egito e pela Holanda. A viagem a Amsterdã foi a mais “convencional”. No Egito, visitou o balneário de Sharm-el-Sheikh, um destino de praias paradisíacas e mergulho de qualidade. A experiência mais recompensadora surgiu em Zanzibar, um conjunto de ilhas na Tanzânia. Sob efeito colateral de remédios contra malária, Vicky tinha sonhos que amplificavam a experiência de cruzar a região sozinha. “Talvez por isso eu tenha me impressionado com os sons dos animais durante a noite. Ouvem-se leões, NO ALTO: VICKY OBSERVA A PAISAGEM EM FEZ, NO MARROCOS 21 FOTO: DÉCIO GALINA CLÍMAX DA CAMINHADA DE 18 QUILÔMETROS PARA A BASE DAS TORRES EM DEZEMBRO DE 2014. QUANDO O TREKKING É FEITO DOIS MESES ANTES, A SUPERFÍCIE DO LAGO AINDA ESTÁ CONGELADA POR Décio Galina, de Puerto Natales, Chile PRAZER, Considerado um dos lugares mais lindos do mundo, Torres del Paine, no sul do Chile, ainda é pouco conhecido no Brasil TORRES – Já foi para Torres del Paine? – Desculpa, pra onde? São três pernas de pouco mais de 4 horas de viagem: voo São Paulo-Santiago, conexão para Punta Arenas (banhada pelo Estreito de Magalhães, quer dizer, no fim do mundo) e van até o parque nacional. Mesmo famoso mundialmente graças aos lagos, glaciares e montanhas lindas de morrer, poucos turistas visitam o lugar: de março de 2012 a fevereiro de 2013 foram 155.952 – só 6.349 (4%) brasileiros. A região atrai principalmente pelas caminhadas para 23 todos os níveis de condicionamento – de trekkings de 1 hora em trilhas planas até percursos de mais de 8 horas, com bastante aclive e terreno acidentado. A dramaticidade do relevo é temperada por fortes rajadas de vento e repentinas mudanças climáticas. É possível se hospedar dentro e próximo ao parque ou na cidade de Puerto Natales (a 147 quilômetros de Torres). A Revista Personnalité apresenta os destaques do parque da perspectiva de três de seus melhores hotéis: The Singular, Tierra Patagonia e Patagonia Camp. THE SINGULAR “Atenção, silêncio. Estamos na casa dele – e nem sequer fomos convidados.” Ficamos, então, quietos, agachados, como arbustos no topo do Cerro Benítez (550 metros), equilibrando o corpo entre rajadas de vento e a visão da Laguna Sofia, lá embaixo. Mais próximo, porém, a uns 40 metros, um casal de condores (símbolo chileno), curte a brisa, sem grandes planos de bater asas dali. Enorme a expectativa de assistir de perto (e de cima) ao voo do bicho que pode ter 1,10 metro de altura e uma envergadura de 3,20 metros. Vinte minutos de espera e... nada. No que pensamos em nos mover para ir embora, o condor se atira – e parece que vamos juntos a ponto de sentir frio na barriga. Sem bater as asas ne- nhuma vez, ele plana, enfrenta a fúria do vento com desdém e usa as correntes para voltar ao ninho. O show se repete mais duas vezes para os quatro hóspedes liderados por dois guias do hotel The Singular. O ápice das 4 horas e meia de trekking é como um desses filmes que grudam na memória e você não esquece nunca mais. Na van para o hotel, o silêncio mostra que todos ainda estão na companhia do condor. Os alicerces do Singular são centenários. O hotel ocupa o antigo frigorífico Bories, construído pela La Sociedad 24 Exploratora de Tierra del Fuego de 1905 a 1915. Durante 70 anos, o Bories processou e exportou a produção ovina da Patagônia para a Europa. O prédio em estilo vitoriano foi declarado Monumento Histórico Nacional em 1996, passou por uma reforma de mais de dez anos (o maquinário inglês foi preservado) e abriu como hotel de luxo em novembro de 2011. História à parte, uma nova ala, de três andares, foi erguida para acomodar 54 quartos (45 metros quadrados) e três suítes (70 metros quadrados) – as janelas panorâmicas, com vidro do chão ao teto, são espetaculares nos dois casos: 6 e 12 meACIMA, THE SINGULAR, ANTIGO FRIGORÍFICO QUE VIROU HOTEL DE LUXO, A 5 QUILÔMETROS DA CIDADE DE PUERTO NATALES; AO LADO, BIKE NOS ARREDORES DA LAGUNA SOFIA E CAIAQUES NO GLACIAR SERRANO DIVULGAÇÃO Arquitetura secular e maquinário inglês tros de comprimento. A vista é a mesma para todos: oceano Pacífico com o fiorde Última Esperança ao fundo. Do píer em frente ao hotel, sai a embarcação com dois motores de 250 cavalos, exclusiva para hóspedes, para conhecer (ou pelo menos tentar...) os glaciares de Serrano e Balmaceda, no Parque Nacional Bernardo O’Higgins, o maior do Chile. Na primeira tentativa, a navegação de 1 hora e 15 minutos teve que ser abortada graças a uma repentina mudança de vento e de elevação das ondas. No dia seguinte, deu não só para se emocionar aos pés dos glaciares como, na volta, para pedalar até Puerto Natales e provar a cerveja artesanal Baguales, produzida pelo escalador Daniel Darrigrandi. “Baguales são os cavalos selvagens que ficam em uma área remota de Torres. A palavra virou verbo: depois da temporada, quando descíamos da montanha após trabalhar, nós, guias, gostávamos de farrear, beber com os amigos, bagualizar...”, explica Daniel. Algumas cervejas mais tarde, com um baita vento contra na cara, foi impossível pedalar para o hotel. Hora de andar e notar como são especiais as nuvens que desenham o céu patagônico. AARQUIVO PESSOAL DIVULGAÇÃO / GETTY IMAGES “SE O VENTO SOPRAR FORTE DEMAIS, DEITEM NO CHÃO” TIERRA PATAGONIA Inspirado no vento, hotel some na paisagem “Se o vento soprar forte demais, vou gritar para deitarmos no chão. Por favor, obedeçam na hora e só levantem quando eu disser.” As palavras do guia Carlos Miranda Toledo, 29 anos, nascido em Punta Arenas, com 13 anos de experiência em Torres del Paine, fazem parte das instruções para a realização do trekking mais emblemático (e difícil) do parque: a Base das Torres, caminhada puxada de 18 quilômetros. São cerca de 8 horas de pernada por três trechos bem distintos: aclive suave, mas constante, por terreno árido, aberto e sujeito a rajadas capazes de derrubar a pessoa; bosque sombreado predominantemente plano e, para fechar, um aclive íngreme, de pedras soltas e sem proteção dos ventos. A ventania deu as caras, mas não a ponto de nos jogar no chão – foi preciso, porém, em três ocasiões, fazermos uma espécie de “trenzinho”, agarrando um nas costas do outro, para evitar sair voando como uma folha de papel penhasco abaixo. O guia Carlos (especializado em birdwatching) é desses craques que sabem dar a dose exata de informação, mesclando curiosidades da flora e da fauna com histórias dos nomes que batizam as atrações locais, como o lago Nordernskjöld, sobrenome do geólogo sueco Otto (1869-1928), da Universidade de Uppsala, explorador polar que fez importantes mapas da região. Esse extremo cuidado com a formação da equipe de funcionários e guias é um dos diferenciais do Tierra Patagonia 26 Hotel & Spa, aberto em dezembro de 2011 e que já tem os turistas brasileiros como segundo principal mercado (30%) – só perdem para os norte-americanos (35%). Faz toda a diferença também realizar a subida à Base das Torres com um guia exclusivo. Ao atingir o objetivo (o início do trekking é a 135 metros de altitude; o fim, a 886 metros), ainda engasgado com a emoção causada em ver de perto os três picos de granito que dão nome ao parque (Torre Sur, 2.850 metros; Central, 2.800 metros e Norte, 2.243 metros), com um lago em primeiro plano e o céu azul como pano de fundo, Carlos saca da mochila DIVULGAÇÃO “SE O VENTO SOPRAR FORTE DEMAIS, DEITEM NO CHÃO” algumas surpresas: sopa (quentinha) de tomate, espeto de legumes, azeitonas e vários tipos de queijo (como se não bastassem os sanduíches de salmão, de rosbife e os chocolates que recebemos no início da caminhada). Como um bom guia, Carlos sabe sair de cena no momento certo. Ficamos ali, mais de 1 hora, acompanhando a sombra das nuvens ligeiras sobre a superfície verde do lago. Tontos, não por falta de ar, mas pela beleza acachapante. Ao voltar de uma aventura como essa tudo o que se deseja é AO LADO, O HOTEL TIERRA PATAGONIA, PARECE QUE NÃO ESTÁ NA FOTO, MAS É ELE ALI, ENTRE OS ARBUSTOS E O LAGO SARMIENTO. NO ALTO, ICEBERGUES NO LAGO GREY chegar logo ao hotel – e aí a vantagem de hospedar-se no parque: evitar cerca de 3 horas de traslado (ida e volta) até Puerto Natales. Retornar ao Tierra, no entanto, não significa ficar longe da natureza. Pelo contrário. À margem do lago Sarmiento, os 40 quartos, distribuídos em dois andares, são voltados para o Maciço del Paine, bem como toda a área comum, dividida entre o restaurante, lareira e ambientes aconchegantes de leitura (ou para fazer nada, só olhar as montanhas!), debruçada sobre uma enorme parede de vidro que 27 dá a impressão de ser uma tela de cinema transmitindo o dia inteiro um especial da National Geographic (até a piscina aquecida coberta tem parede inteira de vidro). O hotel foi idealizado para desaparecer no cenário natural. “Ele é inspirado no vento patagônico. Nasceu como mais uma duna na paisagem”, comenta o diretor executivo do Tierra, Miguel Purcell. “O projeto arquitetônico de Cazu Zegers, Rodrigo Ferrer e Roberto Benavente não deixou o hotel como protagonista da área, mas, sim, como mais um elemento.” _ Parque Nacional Torres del Paine MAURÍCIO PIERRO Local tem trilhas para trekking, cavalgada e contemplação da natureza 28 PATAGONIA CAMP DIVULGAÇÃO Cabana da Mongólia debruçada sobre o lago Normalmente, não é simples chegar a um ger (lar, em mongol) – a cabana redonda típica da rotina nômade da Mongólia. Ainda mais se ela estiver perdida em uma estepe com cães de guarda fazendo a segurança do rebanho. Talvez por isso seja surreal avistar os 18 gers às margens do lago Toro (sem nenhuma dificuldade de acesso ou cachorros pulando na sua canela): são as cabanas de luxo do Patagonia Camp. Com 20 metros quadrados de área, 8 metros quadrados para banho e 25 metros quadrados de terraço, cada ger é ligado ao hotel por passarelas suspensas de madeira que cruzam o bosque de coigues. Diferentemente dos gers mongóis, que não têm janelas, esses possuem verdadeiros mirantes do lago e de parte do Maciço del Paine. Deitado na cama, as estrelas aparecem de brinde pela cúpula transparente no topo do aposento. Vento e chuva são ouvidos (e sentidos) com mais intenNO ALTO, QUATRO DAS 18 CABANAS DO PATAGONIA CAMP ÀS MARGENS DO LAGO TORO sidade – mas nada que comprometa o conforto e o prazer de se hospedar aqui. Decidir por um hotel dentro do parque ou próximo à entrada, como é o caso do Patagonia Camp, potencializa a experiência de deparar com animais como guanacos e nhandu – sem contar a expectativa de ver um puma, o que é raro, mas acontece. Para não ser pego de surpresa pelos pumas, um grupo de guanaco sempre deixa um dos seus no topo do morro, observando. Veja bem. O fato de estar em Torres facilita a realização de passeios de longa duração, como a volta de 3 horas de catamarã pelo lago Grey até as paredes de gelo do glaciar Grey: 6 quilômetros de largura e cerca de 40 metros de altura. No percurso, icebergues que se desprendem do glaciar. Vale a pena ir sem pressa e ter tempo para caminhar pela praia de areia fofa e escura antes do embarque. 29 Entre as cavalgadas disponíveis no parque, a no Sector Serrano dá a chance de ver o encontro da água cinza do rio Grey com a azul do rio Serrano, em um passeio de 3 horas. Os trekkings, claro, também são facilitados quando o hotel está próximo ao coração do parque. O do Vale do Francês tem 17 quilômetros, mas é bem menos puxado do que o da Base das Torres e começa com uma maravilhosa ( juro que gostaria de evitar esses adjetivos) travessia do lago Pehoé. Mais tranquilo ainda é o percurso de 8 quilômetros do Mirador Cuernos, uma clássica vista do parque. Menos visitada, mas não menos incrível, é a laguna Azul. Se você der sorte, pegará um dia com pouco vento, fenômeno raro que transforma a superfície do lago em um espelho das Torres. Fica bonito demais. Bonito a ponto de nem querer explicar exatamente quanto, só para não parecer exagero da nossa parte. Baixe a Revista Personnalité no tablet e assista ao vídeo de Torres del Paine VICTORIA PHILPOTT PERGUNTA: QUANDO FEZ A FOTO QUE MAIS CAPTOU A ATMOSFERA DO PALCO? 30 LENISE PINHEIRO RESPONDE: Acredito que a atmosfera do espetáculo seja apreendida na maioria dos trabalhos que executo. Talvez esse seja o componente mais importante e o que mais varia de um trabalho para outro. Presto muita atenção nas informações que os atores, os diretores e os técnicos me passam. Um detalhe que poderia passar desapercebido pode fazer toda a diferença. 31 POR Carol Sganzerla FOTOS Marcos Vilas Boas MUDANÇA A discrição é a marca maior do trabalho de Lenise Pinheiro, uma das mais importantes fotógrafas de cena do teatro brasileiro. Por que então ela apareceu de freira para a sessão de fotos da Revista Personnalité? A resposta vale o retrato DE HÁBITO PERSONNALITÉ A ansiedade que aparentava em cima do palco remetia à Lenise Pinheiro da década de 80, época em que começou a retratar grandes nomes do teatro, como Antonio Fagundes e Bete Coelho. Hoje, tida como a melhor fotógrafa do gênero, a paulistana tem passe livre nas coxias e nos camarins do país. Com toda essa bagagem, porém, ela sobe nervosa ao tablado. Não se trata de uma estreia. Mas de um reencontro com o próprio passado. No mesmo ambiente em que seria fotografada para a Revista Personnalité, o Colégio Maria Imaculada, em São Paulo, Lenise encenou, aos 14 anos, sua primeira peça. O rapto das galinhas ganhou os aplausos dos pais dos alunos, mas a aversão da direção da escola. “Sem querer, eu tocava em tabus”, diz. “Falava da rejeição do aluno que atrasava a mensalidade, da questão do gênero, umas meninas faziam papel de homem. Reproduzi na peça que escrevi o que eu passava.” Acabou expulsa um ano depois e nunca mais voltou à escola. O reencontro se daria agora, na locação escolhida por ela. O que ninguém sabia é que Lenise trazia na mala um hábito de freira e assim apareceria para as fotos. Ela conta que desenvolveu tamanha fixação pelo tema que passou a colecionar a vestimenta – possui meia dúzia. Fantasiada, participou de campanhas publicitárias da Shell e da Honda indicada por agentes de casting que a conheciam. As atuações a levaram ao cinema: uma freira no longa-metragem O corpo (1987), ao lado de Antonio Fagundes e Marieta Severo. Seria natural Lenise seguir a profissão de atriz. Mas a história designou a ela outro papel. “O teatro é uma arte efêmera, nada fica além do que provoca em você. Por isso, a foto de uma peça é tão especial: é tudo o que guardamos dela”, diz a atriz Debora Bloch. “A Lenise é um bicho de teatro. Sabe tanto quanto nós, atores, por conta disso o trabalho dela é tão sensível e fiel à linguagem de cada espetáculo.” Aos 54 anos, ela contabiliza quase 90 mil fotografias, arquivadas em seu apartamento em Higienópolis. Centenas dessas imagens ilustram seu primeiro livro, Fotografia de palco (ed. Senac e Sesc Edições, 2008). O segundo volume está programado para 2016, quando celebrará 30 anos ininterruptos de carreira. “Viver de fotografia de teatro é um luxo”, solta Lenise. Por ano, registra, em média, 300 espetáculos. Boa parte desses retratos é reproduzida na Folha de S.Paulo, para onde colabora de forma fixa desde 1998, e no Cacilda, blog do periódico que mantém em parceria com o jornalista Nelson de Sá. Foi na Folha que teve sua primeira foto publicada, em 25 de janeiro de 1984 – embora considere 86 o momento em que engrenou na profissão. A peça se chamava Laços e o diretor, Odavlas Petti (1929-97), foi um grande incentivador. “Ele viu as imagens e falou: ‘Lenise, quase não há profissional de fotografia no teatro. Por que não se profissionaliza?’.” Era o estímulo que faltava para largar a faculdade de arquitetura – antes, tentou publicidade, cinema e rádio e TV. “JEITO CATIVANTE E DESASTRADO” Foi Odavlas Petti que a levou para a Escola de Arte Dramática (EAD), da Universidade de São Paulo, onde ampliou seus contatos. Nos primeiros 15 anos de estrada, vendia suas fotos pessoalmente a atores e diretores. Com a entrada na Folha e a orientação da produtora cultural Íris Cavalcanti, 43 anos, sua mulher há 16 e empresária há 15, a carreira decolou. Na EAD, também conheceu o amigo e fundador do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa. “O Zé Celso mudou a minha condição de existência. Ele é daquelas pessoas que fazem o seu caminho ser outro.” O dramaturgo retribui as palavras. “Em seu trabalho criador há uma valorização extraordinária do poder da atriz / do ator, quer dizer: da pessoa humana, transumana, e do contato com e entre elas.” Ainda em 2014, Lenise vai lançar um livro com mais de 20 anos de registros do Oficina. “Tive duas mudanças importantes na vida: quando conheci o Oficina e a Ópera Seca”, diz, referindo-se à companhia do diretor Gerald Thomas. “A Ópera me transformou, influenciou até no jeito de me vestir, fiquei mais dark. Usava as roupas da Bete [Coelho].” Amigas há mais de 30 anos, chegaram a dividir apartamento. “A Lenise é extremamente bem-humorada, emotiva, ri e chora com facilidade. Tem um humor inteligente que pode se tornar crítico e ácido. Ela é incansável em suas metas ao mesmo tempo em que pode irritar com sua teimosia”, entrega a atriz. “Tem um jeito cativante e desastrado, pode quebrar objetos na sua casa. Mas, quando fotografa, tem total domínio espacial, concentração e silêncio.” A discrição para fotografar é a sua marca. “Venho da escola [do filme] de 36 poses. A natureza do trabalho não permite um show de cliques, desconcentra o ator”, diz Lenise, nunca vista nas primeiras fileiras dos teatros. “Não gosto de fotografar o buraco do nariz dos atores. A minha missão é conseguir uma imagem envolvente, que seduza o olhar. Acho a fotografia, por capturar uma fraçãozinha de instante, um milagre.” Nove exemplos de seu estilo ilustram as páginas a seguir. 34 LENISE PINHEIRO 1 _ “Lenise é como nós, do teatro” 1. BETE COELHO E GERALD THOMAS Um processo (1988) | Texto e direção: Gerald Thomas Por Gerald Thomas, diretor de teatro ARQUIVO PESSOAL Teatro Ruth Escobar, São Paulo A Lenise é muitíssimo misteriosa. Não é à toa que ela escolheu “Lembro que já tinha feito o ensaio uma vez, mas o negativo não ficou com a revelação que eu queria, então fui de novo”, conta Lenise. “Mas estava gripada, com febre, saí da cama para fazer. Nessa época eu tomava uísque para sarar, só que piorava. Esta foto é carregada de significados. Para a peça, para a relação deles e para a minha relação com o trabalho, porque a Ópera Seca me transformou. Gosto muito do Gerald, ele é um diretor muito esteta. O personagem da Bete, o Joseph K., era visceral, suscitava as emoções da plateia. Foi muito importante, ela ganhou muitos prêmios. Esta foto tinha tudo a ver com a verdade deles daquela hora.” A atriz Bete Coelho relembra: “A montagem de Gerald foi um marco na história teatral do país. Coube a mim interpretar o personagem masculino. Deu trabalho para desenvolver por exigir inúmeros graus de intensidade, densidade e precisão, mas me deu muitas alegrias pela receptividade das plateias. Nesta foto, a Lenise conseguiu captar o melhor movimento do ator, que é o movimento interno. Quando ela fotografa a cena, encena junto. Percebe o ritmo, a respiração, e sabe quando se aproximar e clicar”. o palco para fotografar. Não é à toa que entrou pelos camarins adentro para clicar os atores se maquiando. Existe fetiche mais bizarro? Teatro é um bicho muito estranho e avesso a fotos ou vídeos e filmes. É uma arte em 3-D desde os gregos até nós, os Troyanos! No entanto, de vez em quando (raro, muito raro!) surge alguém que aparece e consegue a interlocução. A Lenise é “clumsy”, assim como nós, do palco. Clumsy significa trapalhona, aquela que esbarra nas coisas, pede mil perdões, ri de tão sem graça. Ela é assim como nós, do teatro, quando estamos fora do teatro. Então, a arte maravilhosa de Lenise Pinheiro é justamente esta: ela, como um “Puck” do Sonho de uma noite de verão, entra pelos nossos invernos tenebrosos e consegue extrair deles os melhores momentos. Os momentos mais dark, mais íntimos e mais medrosos. O que há de mais terrível do que alguém que se olha no espelho por horas antes de se expor no palco para se destruir, se degolar e desconstruir toda a pintura de cara e olhos e bocas que foram tão cuidadosamente esculpidos? Lenise é o anti-Francis Bacon de hoje. Viva Lenise Pinheiro! 35 PERSONNALITÉ 2 3. MARCO RICCA E HÉLIO CÍCERO Hamlet (1997) | Direção: Ulysses Cruz Teatro Caetano de Campos, São Paulo “O Marco Ricca foi o primeiro ator que me contratou, lá por 1985. Me telefonou e disse: ‘Quanto você cobra?’. Porque existia um aspecto onírico no trabalho, aquela coisa de ‘vem aí fazer umas fotos’. Eu pensava: ‘Como vou viver disso?’. Não queria ser grosseira com as pessoas. Mas o Marco tratou isso de uma maneira muito profissional. O monólogo em questão era Bakunin, um texto russo, montagem dele. Na época ele tomava conta do Teatro do Bexiga, tinha esse espaço para ensaiar. Ele sempre foi um bravo. Nesta foto, foi Hamlet. O ‘ser ou não ser’ dele era fazendo a barba. Eu achava legal, mas não sei o que Shakespeare acharia.” 3 2. TEATRO OFICINA: ANA GUILHERMINA, AURY PORTO E SAMUEL COSTA Os sertões: a luta 1 (2005) | Direção: Zé Celso Martinez Corrêa Teatro Oficina, São Paulo “Os sertões é um épico. Esta foto compõe com as artes plásticas. Nunca conversei isso com o Zé [Celso], mas tenho a nítida impressão que ele se inspirou no quadro A liberdade guiando o povo, do [Eugène] Delacroix. Essa montagem resultou numa filmagem de 30 horas, dividida em cinco capítulos. Fui diretora de fotografia de Homem 2, que o Marcelo Drummond [um dos principais atores da companhia] dirigiu. Foi um exercício maravilhoso. O Oficina é um teatro intelectualmente muito rico.” 36 LENISE PINHEIRO 5. JOELSON MEDEIROS E EDUARDO MOSCOVIS Por uma vida um pouco menos ordinária 4 (2007) | Direção: Gilberto Gawronski Teatro Folha, São Paulo “Esta foto une atributos que gosto de reverenciar. A coragem do ator Eduardo Moscovis de conciliar projetos comerciais com experiências profundas em teatro; o texto da Daniela Pereira da Rocha, que é uma jovem autora carioca, com muita imaginação. E a direção do Gilberto Gawronski, que tem a própria companhia e trabalha com atores conhecidos e desconhecidos. Sabe aquela peça que você não sabe para onde vai e de repente um tiro muda tudo?” Moscovis assume que não gosta de ser fotografado: “Mas quando é um bom fotógrafo, que não atrapalha a encenação, tudo certo! E a Lenise é mestra!”. 5 4. LÍGIA CORTEZ Cheque ou mate (1997) | Direção: Roberto Lage ARQUIVO PESSOAL Teatro Sala São Luis, São Paulo “A Lígia é minha parceira, somos amigas há anos. Ela fez essa peça com o pai [Raul Cortez]. Ao mesmo tempo em que tem essa herança genética, que toca os projetos de teatro que a família começou, ela tem uma independência. Quando o Teatro Fecomercio, em São Paulo, ganhou o nome de Raul Cortez, depois da morte dele [em 2006], Lígia teve que subir no palco para falar. Sabe que história contou? ‘Meu pai tinha um carro conversível que era o que mais gostava na vida. Um dia ele me levou para passear e me perguntou: ‘Filha, é bom ter cabelo?’.” Com essa lembrança, Lígia arrancou risadas do público. “O Raul era um lorde, transbordava charme”, prossegue Lenise. “Era um sucesso e sabia disso. Ele falava que não era chique ter muito trabalho, dizia: ‘Você não está muito chique quando está correndo’. Quando levei a Lígia para fazer Cacilda [no Teatro Oficina], falei: ‘Quer ficar menos chique? Vamos fazer o Oficina?’. Ela foi, descobriu que estava grávida da Clara, mas não se abateu, continuou.” 37 PERSONNALITÉ 6. DEBORA BLOCH Brincando em cima daquilo (2006) | Direção: Otávio Muller 7 Teatro Municipal de Niterói, Rio de Janeiro “Era a pré-estreia de Brincando em cima daquilo, um monólogo. Eu estava focada porque faria o cartaz da peça e acabei usando um elemento de medir a distância. Só que esse recurso acendia uma luzinha que atingia a Debora. Fiquei chocada, porque ela olhou pra mim e falou: ‘Por favor, pare!’. Com uma voz trêmula, disse: ‘Mas, Debora, sou eu’. Fiquei esperando por ela no fim do espetáculo, a gente se abraçou, nos desculpamos, na hora já ficou tudo bem”, conta Lenise. “Achei que era alguém da plateia que estava fotografando”, recorda Debora. “Morri de vergonha quando ela veio contar que era ela.” 6 8 7. FERNANDA TORRES Don Juan (1995) | Direção: Gerald Thomas Teatro Guairinha, Curitiba 8. FERNANDO TORRES E FERNANDA MONTENEGRO Felizes para sempre (1996) | Direção: Jacqueline Laurence Teatro Sesc Anchieta, São Paulo “Acho estas duas fotos de camarim muito fortes. Eles parecem uma família de circo. Você via aquelas pessoas e pensava: ‘Será que eles moram num trailer em Ipanema?’”, diz Lenise, aos risos. “Eles têm um jeito muito teatral, envolvido, têm um traquejo muito especial com o teatro. Seja no manuseio das coisas do palco ou 38 LENISE PINHEIRO 9. PINA BAUSCH Ensaio no camarim do Theatro Municipal (1988), São Paulo “Acompanhei todas as vindas da Pina Bausch ao Brasil. Ela fazia questão de sempre trazer o elenco principal. No aeroporto, no Maksoud Plaza, no Instituto Goethe, na coletiva, lá estava eu. Eles adoravam as caipirinhas, as praias, sempre iam para o litoral norte no fim da temporada. A Pina tinha aquele jeito aristocrático, mas era brincalhona. Às vezes, me convidavam para o aquecimento, cheguei a fazer um trabalho de corpo maravilhoso. É um teatro-dança. O trabalho deles é muito forte, ele é a foto pronta, qualquer máquina faz.” ARQUIVO PESSOAL / AGRADECIMENTO: CMISP – COLÉGIO MARIA IMACULADA – SP 9 na naturalidade. Neste momento, a Fernanda Montenegro estava me apresentando ao Fernando Torres e acabando de se arrumar. Ele era um sujeito especial, atencioso, fazia perguntas filosóficas, era uma pessoa muito interessante. Na minha percepção, essa foi a montagem definitiva de Felizes para sempre, do Samuel Beckett. A Fernanda ficava enterrada na areia, só com a cabeça pra fora. Infelizmente, não vi muito os dois no palco. Mas sei das histórias do Teatro dos Sete, quem pôde fotografar se esbaldou. E a Fernandinha [Torres] está nesse camarim de Curitiba, numa montagem de Don Juan, do Otávio Frias Filho. Ela tem uma verve, é uma mulher que dá conta de tudo, sempre que a gente solicita alguma coisa ela faz. Ela tem a voltagem parecida com a minha.” POR Barbara Heckler FOTOS Carol Quintanilha AOS SEUS Três músicos da Osesp e três frequentadores da Sala São Paulo falam da DIVULGAÇÃO LUGARES emoção de estar diante da principal orquestra do país FÁBIO PEIXOTO, frequentador há nove anos “Ao rever os programas das temporadas da Osesp passa um filminho em minha cabeça. Frequento a Sala São Paulo desde 2005. Fui levado por uma amiga para assistir à Orquestra Filarmônica de Israel, sob a regência de Zubin Mehta. Não esqueço da minha impressão: era um conjunto de arquitetura e acústica impressionantes – e no meu país! Senti-me privilegiado. Resolvi virar assinante na temporada de 2007. Ter uma companhia para partilhar as emoções de uma obra passou a ser essencial. Por isso, no ano passado, resolvi comprar duas assinaturas: uma para mim, outra, sem nome definido. A intenção era ter um acompanhante diferente a cada concerto. Em todos esses anos, proporcionei a diversas pessoas essa incrível experiência de ver a Osesp, na Sala São Paulo. Como a Nona sinfonia, de Beethoven [1770-1827]. Por mais famosa que essa obra seja, quando a ouvi, em 2007, fiquei paralisado, tamanha emoção. Existe essa mágica do instantâneo, a certeza de que a orquestra nunca mais irá repetir a forma com que tocou naquela noite.” 42 “AO F CONCERTO, OLHEIDSFA DSFAS DFASD D PARA UM AMIGO E ESTÁFSDFSTOS” _ “Vamos celebrar o legado da Osesp” Regente titular, Marin Alsop divide a emoção de conduzir a temporada comemorativa Como se sente diante de 60 anos de Osesp? É um momento maravilhoso. Tenho muito orgulho de fazer parte dele. Vamos comemorar o legado da orquestra, ao mesmo tempo em que almejamos, ansiosamente, as próximas conquistas. Quando conheceu a orquestra? Foi Tim Walker, que dirigia a Filarmônica de Londres e era consultor da Osesp. Ele me pediu para que pensasse a respeito de ser uma regente convidada. O que a fez aceitar o convite de vir ao Brasil? O desejo dos músicos em melhorar e fazer música de excelência. Sempre admirei a administração e o conselho da Osesp. Eles DIVULGAÇÃO trabalham de forma incansável. Todo esse EMMANUELE BALDINI, violinista conjunto é a receita do sucesso. “Uma antiga estação de trem transformada em uma sala de concerto? Com uma orquestra de músicos internacionais? Confesso que a descrição do maestro John Neschling me soou inventiva. Naquele momento, ele me convidava a fazer um teste como spalla [primeiro violino] na Osesp, em 2003. Saí da minha cidade, Trieste, na Itália, e vim ‘pagar para ver’. E não é que ele estava falando sério? Quando pisei na Sala São Paulo, foi amor à primeira vista. Mesmo como estrangeiro, sinto a responsabilidade de representar o Brasil. Entendi esse sentimento ao tocar no festival londrino BBC Proms, em 2012. Ao surgirem bandeiras brasileiras na plateia, me emocionei. Outro momento único foi quando o maestro britânico Frank Shipway gravou conosco em 2012. Ele extraiu sons que raramente ouvi da Osesp. Ao escutar a gravação, pergunto-me: ‘Eu estava ali mesmo?’. Para mim, há concertos bons, ruins e outros que são uma experiência de vida. E são esses que busco quando subo ao palco. Como um monge que passa a vida atrás do seu nirvana.” É diferente reger uma orquestra brasileira? 43 O Brasil é animado e otimista. Essa atitude reflete no espírito da orquestra. É ótimo! Quais foram os concertos mais marcantes? Todo concerto é especial. Ser capaz de apresentar obras como a Sinfonia do italiano Luciano Berio [1925-2003] para um público interessado é muito inspirador. Ou fazer uma apresentação na praia da cidade de Santos para 20 mil pessoas e outra para uma Sala São Paulo lotada. Cada um desses momentos faz de cada concerto um evento especial. FERNANDO OLIVEIRA, frequentador há mais de 18 anos “Cheguei a arriscar tocar piano, violão e violino. Mas me dei conta de que sou melhor como plateia. Acompanho a Osesp desde que as apresentações eram realizadas no Memorial da América Latina, nos anos 90. Segui os passos da orquestra de perto, por pura adoração à música clássica. Mudei de teatro junto com ela. Saía de Santo André, onde nasci e cresci, para ir ao Theatro São Pedro, casa que abrigou o grupo em 1998. Mas quão grande foi a minha surpresa ao entrar na Sala São Paulo, pela primeira vez. Eu estava lá, em julho de 1999: o concerto de abertura da Sala. Ali, me dei conta: ‘Temos uma grande orquestra nesta cidade’. Como esquecer a força da Sinfonia no 2 – A ressurreição, de Gustav Mahler [1860-1911]? Nunca me emocionei tanto quanto na apresentação regida pelo maestro britânico Frank Shipway, em 2009. Ao final da Sinfonia no 2, de Jean Sibelius [1865-1957], olhei para um amigo e estávamos aos prantos. São momentos assim que me fazem voltar. Compartilhar uma boa música é tão bom quanto escutá-la.” 44 “AO FINAL DO CONCERTO, OLHEI PARA UM AMIGO E ESTÁVAMOS OS DOIS AOS PRANTOS” SORAYA LANDIM, violinista “Alguns colegas brincam que sou um dos ‘patrimônios’ da Osesp. A anedota existe porque toco há 14 anos na orquestra. Entrei meses antes de ela pertencer à Sala São Paulo. Eu tinha 22 anos. Antes, era integrante do Theatro Municipal. Mas, quando passei na audição, não pensei duas vezes. Nasci numa família de músicos. Meu pai é luthier [especialista em construir instrumentos] e me dava aulas aos 6 anos. Minha mãe é pianista. Sinto-me honrada em fazer parte de uma orquestra que alcançou o respeito internacional. A Osesp possui uma identidade sonora. Dela, pode-se extrair um som completo, homogêneo, cheio de vida e cor. Quando um regente consegue fazer soar os instrumentos dessa forma, é transcendental. O britânico Frank Shipway é um exemplo. Ele tirou o nosso melhor na gravação da Sinfonia alpina, de Richard Strauss [1864-1949]. A música é muito mais do que nota, melodia e ritmo. É como demonstro a minha alma. Sempre que toco e chego à essa aura, a sombra da rotina se esvai. Agradeço o privilégio de estar sentada ali no palco.” 45 SARAH CASEIRO, frequentadora há quatro anos ÉDERSON FERNANDES, violista “Lembro de ter ido pela primeira vez a um concerto aos 10 anos. Foi no Theatro Municipal de São Paulo. E, mesmo fazendo aulas de violino, não gostei da experiência. Era uma criança e senti sono. O despertar veio com um pedido de aniversário de minha mãe: ao completar 52 anos, em 2010, queria os cinco filhos com ela, em um concerto da Osesp na Sala São Paulo. Não recordo da peça executada, mas lembro de ter achado o lugar especial. Fiquei olhando para cima reparando nos detalhes da construção. Minha mãe tomou gosto e fez uma assinatura. Resolvi acompanhar minha mãe uma vez. E, depois, mais uma. E outra... Peço sempre para ela ir com ombreiras, para eu encostar a cabeça. Tenho um ritual. Sempre dou uma cochiladinha na primeira parte. Ali, no ombro dela. Não penso em mais nada. Só a deixo entrar em mim, enquanto esvazio a mente e me acalmo. Gosto de ficar no coro para ver a execução da Orquestra. Reparo nos dedos precisos ao piano, ou na delicadeza da moça da percussão ao posar as baquetas com cuidado, para não fazer barulho. Descobri Heitor Villa-Lobos e suas lindas ‘Bachianas brasileiras’. Hoje, aos 25 anos, percebo que, mais do que qualquer descobrimento musical, encontrei, nos concertos, uma relação linda com a minha mãe.” “Às vezes não acredito que tenho uma cadeira na Osesp. Foi tudo tão do acaso. Nasci na periferia de Fortaleza. Um dia, acompanhando uma amiga, me matriculei em aulas de viola. Para minha surpresa, afeiçoei-me ao instrumento. Mais do que isso, tinha facilidade em tocá-lo. Então, vim a São Paulo, aos 16 anos. Dois anos depois, fiz o teste para a Academia da Osesp. Entrei para a orquestra com apenas 20 anos e até hoje sou o mais novo. Com meus colegas, participei da primeira vez em que uma orquestra latinoamericana tocava no Festival BBC Proms, em Londres. Tive a mesma emoção com um concerto em Fortaleza, em 2008. Voltar a minha cidade e tocar para o meu povo foi uma emoção única.” Baixe a Revista Personnalité no tablet e assista à rotina de Emmanuele Baldini 46 _ Série Osesp Personnalité 2014 Dentre os destaques da temporada, a Sinfonia nº5 em mi menor, de Tchaikovsky, regida por Marin Alsop; concerto com a obra de Heitor Villa-Lobos e, para fechar a temporada, Carmina Burana, de Carl Orff 17 MAI SÁB 16h30 Mogno 21 NOV SEX 21h Sapucaia Marin Alsop regente Frank Shipway regente Olga Kern piano Stephen Hough piano ANNA CLYNE ROBERT SCHUMANN Night Ferry Concerto para piano em lá menor, Op. 54 SERGEI RACHMANINOV WILLIAM WALTON Concerto no 1 para piano em fá Sinfonia no 1 sustenido menor, Op. 1 ROBERT SCHUMANN Sinfonia no 2 em dó maior, Op. 61 22 MAI QUI 21h Pau-Brasil Eivind Gullberg Jensen regente Mari Eriksmoen soprano WOLFGANG A. MOZART A flauta mágica, KV 620: Abertura 26 ABR SÁB 16h30 Jequitibá A flauta mágica, KV 620: Ach, ich fühl’s (Ária Isaac Karabtchevsky regente de Pamina) Nikolai Lugansky piano Vorrei Spiegarvi, oh Dio, KV 418 5 DEZ SEX 21h Paineira SERGEI RACHMANINOV Exsultate, Jubilate, KV 165 Celso Antunes regente Concerto no 3 para piano em ré menor, Op. 30 JEAN SIBELIUS John Snijders piano PYOTR I. TCHAIKOVSKY o Sinfonia n 5 em mi bemol maior, Op. 82 14 AGO QUI 21h Carnaúba GYÖRGY KURTÁG Marin Alsop regente Stele, Op. 33 3 MAI SÁB 16h30 Ipê Timothy McAllister saxofone HEITOR VILLA-LOBOS Arvo Volmer regente ANTONIO CARLOS GOMES Rudepoema Jeremy Denk piano Lo Schiavo: Alvorada BÉLA BARTÓK ROBERT SCHUMANN JOHN ADAMS O mandarim maravilhoso, Op. 19 Genoveva, Op. 81: Abertura Concerto para saxofone [co-encomenda com WOLFGANG A. MOZART Sidney, Baltimore e Northwestern University. 18 DEZ QUI 21h Jacarandá Concerto no 21 para piano em dó maior, KV 467 Estreia latino-americana] Marin Alsop regente JEAN SIBELIUS PYOTR I. TCHAIKOVSKY Edna d’Oliveira soprano Sonhos de inverno O bardo, Op. 64 o Sinfonia n 5 em mi menor, Op. 64 Luciano Botelho tenor Licio Bruno baixo-barítono Sinfonia no 3 em dó maior, Op. 52 DIVULGAÇÃO Coro da Osesp Naomi Munakata regente Sinfonia no 1 em sol menor, Op. 13 – 4 OUT SÁB 16h30 Imbuia Coro da Osesp 9 MAI SEX 21h Paineira Marin Alsop regente Naomi Munakata regente Marin Alsop regente Nathalie Stutzmann contralto Coro acadêmico da Osesp Nadja Salerno-Sonnenberg violino Coro da Osesp Marcos Thadeu regente LUDWIG VAN BEETHOVEN Naomi Munakata regente Coro infantil da Osesp Abertura Leonora no 3, Op. 72b Coro acadêmico da Osesp Teruo Yoshida regente SAMUEL BARBER Marcos Thadeu regente ARVO PÄRT Concerto para violino, Op. 14 Coro infantil da Osesp Mein Weg SERGEI PROKOFIEV Teruo Yoshida regente Salve Regina Sinfonia no 3 em dó menor, Op. 44 GUSTAV MAHLER CARL ORFF o Sinfonia n 3 em ré menor 47 Carmina Burana LENISE PINHEIRO PERGUNTA: APÓS LITERATURA, QUADRINHOS E MÚSICA, VAI ESCREVER PARA TEATRO? 48 TONY BELLOTTO RESPONDE: Lenise, já tentei escrever alguma coisa para teatro, mas não fui adiante. Não posso dizer que não tentarei de novo, pois gosto muito de teatro, e autores como Samuel Beckett, Eugene O’Neill e Sam Shepard me fazem muito a cabeça. Tomarei sua pergunta como um estímulo, obrigado. 49 POR Carlos Messias, do Rio de Janeiro FOTOS Daniel Aratangy QUADRINHOS Pedro Franz CORAÇÃO ROCK’N’ROLL Entre o guitarrista e o escritor, o ídolo de rock e o detetive policial, Tony Bellotto recupera o “espírito de garagem” que marca o melhor de sua produção PERSONNALITÉ BELLOTTO BELLINI M O arço de 2006, 19ª Bienal do Livro de São Paulo. O guitarrista e escritor Tony Bellotto – pai do detetive Remo Bellini (leia perfil ao lado) – está sentado ao lado de uma lenda dos romances policiais, o norte-americano Lawrence Block, autor do clássico Quando nosso boteco fecha as portas (1986). Os dois realizam uma palestra no Salão das Ideias sobre a literatura de suspense. Em meio a divagações sobre sequências narrativas e construção de personagens, Block vira para Bellotto e faz uma pergunta sincera: “Eu tenho amigos músicos. Eles passam a noite inteira tocando e se divertem muito. Isso é algo que você nunca vai ouvir de um escritor. Escrever é exaustivo e entediante. Então, Tony, me responde: por que você escreve?”. O titã deu uma risada. Dezembro de 2013, apartamento de Tony Bellotto em Ipanema, Rio de Janeiro. A reportagem de Revista Personnalité repete o questionamento de Block. Tony, desta vez, responde sem rodeio: “Essa pergunta é ridícula, nem deveria ser feita. É óbvio que tocar dá muito mais prazer. Escrever é uma sensação muito pequena perto do prazer que é tocar para 50 mil pessoas cantando uma música que você fez. Mas é um impulso interior, uma coisa de realização pessoal, de você se resolver consigo e dizer: ‘Ah, consegui fechar um livro’”. A resposta se torna ainda mais intrigante diante de um guitarrista que já era bem-sucedido aos 20 e poucos anos e só aos 32 atinou de começar em paralelo uma carreira literária, atividade exigente e solitária. Hoje, com uma prateleira de sua biblioteca particular destinada às cópias dos livros que escreveu — já soma sete títulos, todos pela Companhia das Letras —, Bellotto retoma seu primeiro personagem, o detetive particular Remo Bellini, que protagonizou três romances. Ainda neste primeiro semestre, lança Bellini e o labirinto, o quarto livro da série, nove anos depois de Bellini e os espíritos. Em 2015, quando Bellini e a esfinge, o livro de estreia de Tony na literatura, completa 20 anos, o personagem ganhará traços em uma história em quadrinhos com ilustrações de Pedro Franz. “A HQ foi uma ideia nossa e serviu de impulso para o Tony escrever o novo romance”, diz André Conti, editor da Companhia das Letras. Bellotto lembra de ter sido cobrado a reavivar o detetive canastrão. “O próprio Luiz [Schwarcz, presidente da editora] falou: ‘Pô, você precisa trazer de volta cruzamento das estradas 61 e 49, no município de Clarksdale, no delta do rio Mississippi, Estados Unidos, é o mítico local onde o guitarrista de blues Robert Johnson (1911-1938) supostamente vendeu sua alma para o demônio. Em troca, o músico pedia pleno domínio do instrumento. Apreciador convicto do gênero musical, o detetive particular Remo Bellini lembrou-se dessa lenda quando chegou ao interior de Goiás, onde fora conduzir uma investigação sobre o desaparecimento de um membro de uma dupla sertaneja. A resolução do mistério, que se passa entre São Paulo e Goiânia, poderá ser lida em Bellini e o labirinto, que deve ser publicado pela Companhia das Letras até junho. O blues é um parceiro fiel na vida solitária do investigador. Desde o início dos anos 80, quando vivia com um walkman a tiracolo, costumava escutar mestres como Muddy Waters, Howlin’ Wolf e B.B. King. “Tomei uma dose de Jack Daniels e dormi ao som da voz grave de John Lee Hooker”, narrou – como sempre, em primeira pessoa – no romance Bellini e a esfinge (1995), o primeiro registro da existência do personagem, quando tinha 30 e poucos anos. “O Bellini tem problemas de relacionamento”, diz seu criador, Tony Bellotto. “Ele está sempre atrás das mulheres e, talvez por isso, nunca consiga sair da solidão.” O uísque é outra das companhias fiéis do detetive, seja nos encontros casuais com suas investidas amorosas ou investigando crimes em casas de shows eróticos, como a Cocktail, na região do Baixo Augusta, em sua encarnação decadente, décadas antes de virar um polo moderninho da noite paulistana. “Ele é um personagem noir no sentido mais clássico do termo”, define André Conti, editor da Companhia das Letras. Não se pode esquecer do humor ácido e da canastrice do indivíduo. Fora de forma, Bellini se sente incomodado com as “indesejáveis protuberâncias gordurosas” que alargam sua cintura. Pudera. Sua dieta varia basicamente de acordo com o menu do bar Luar de Agosto (nome tirado de um estabelecimento real que funcionava no centro de São Paulo, na década de 70). Ali, bebe o expresso e come o pão na chapa de todas as manhãs. É também por lá que costumava encontrar o delegado Bóris para almoçar PFs e discutir um caso. A apenas um quarteirão dali está o que Bellini entende por lar: uma 52 TONY BELLOTTO 53 PERSONNALITÉ o Bellini. Os autores que, como você, escrevem livros de outros gêneros, não ficam tanto tempo sem lançar um título de série’.” No início do ano passado, Bellotto enfrentou o desafio. “A ideia amadureceu e achei que era a hora”, explica. “Porque tem isto também: sempre tenho medo de não conseguir trazer o Bellini de volta. Mas dou uma relida nos outros, aí começo a sentir a voz e o ritmo do personagem, e é como se ele baixasse em mim.” Em janeiro deste ano, o original estava nas mãos de André Conti. O ALTER EGO Imagine-se Tony Bellotto por um dia. Você acorda na sua cobertura dupla (com dois apartamentos integrados) em Ipanema. A primeira imagem que vê é Malu Mader (com quem é casado há 25 anos). Toma café da manhã, preparado pela governanta, ao lado dos seus dois filhos com a atriz de 47 anos – João e Antonio, 18 e 16 anos. Em seguida, vai fazer cooper na lagoa Rodrigo de Freitas, a apenas dois quarteirões do seu prédio – ou na praia de Ipanema, a cinco. Volta e diante de si tem duas possibilidades. Uma é ensaiar com a banda, uma das mais estáveis do rock brasileiro, que mantém há 32 anos com os seus amigos de infância. A outra é trancar-se no seu estúdio-escritório, com acesso pelo terraço da cobertura, e passar horas desenvolvendo ficção ou compondo músicas com a guitarra em alto volume. Então, findo o ensaio ou encerrada a escrita, passa um tempo com a família, assiste a um DVD em um potente home-theater Bose e vai dormir com os anjos. Diante de uma realidade dessas, com o que você fantasiaria? No caso de Tony Bellotto, com indivíduos menos afortunados, com vidas destroçadas, com cenários decrépitos, com Remo Bellini. “O fracasso e a solidão são coisas que enxergo como uma possibilidade muito próxima”, conta. “Sempre senti uma tendência muito grande a ficar só, acho que até me viraria muito bem vivendo assim. Mas alguma coisa em mim me impeliu para o lado oposto. Desde garoto, sempre tive namorada. Aí me casei com a Ana Paula e depois com a Malu.” Tony se prepara para dar boas-vindas ao segundo neto. Nina, 32 anos, sua filha mais velha, a única do casamento com a arquiteta Ana Paula Silveira, é mãe de Francisco, 2 anos, e está grávida de Antonio, esperado para junho. “Acho que a literatura é fundamental para o Tony exercitar o lado menos família dele”, diz o cantor Branco Mello, seu colega de Titãs. Ao ressuscitar sua criação mais célebre, Bellotto teve de remontar a atmosfera decadente que também sobrevoa os personagens das outras obras do autor, tal qual Teo Zanquis, o guitarrista fracassado e mulherengo de No buraco (2010). O in- 54 TONY BELLOTTO quitinete mequetrefe no prédio Baronesa de Arary, localizado na esquina da Paulista com a rua Peixoto Gomide. Também não muito longe está o Edifício Itália, onde fica a Agência Lobo de Detetives, capitaneada pela destemida Dora Lobo. Foi lá, certa vez, que o Dr. Rafidjian bateu à procura dele, em busca de sua filha desaparecida, a prostituta Ana Cíntia Lopes. Ao desvendar seu paradeiro, como costuma fazer, Bellini misturou negócios e prazer. Atrás de pistas, acabou se envolvendo com a misteriosa dançarina Fátima. Não perdoou nem a sua assistente, a angelical Beatriz. A história de Bellini e a esfinge foi adaptada para o cinema em 2001, com Malu Mader encarnando Fátima e Fábio Assunção na pele do detetive canastrão. O galã global repetiu o personagem em Bellini e o demônio (2008), baseado no segundo livro com o detetive, de 1997. Na trama, Bellini está falido e aceita dois casos: localizar um manuscrito perdido de autoria de ninguém menos que Dashiel Hammett, o grande mestre da literatura policial; e investigar o assassinato da estudante Silvia Maldini. O detetive acaba descendo ao submundo do tráfico de drogas e dá suas escorregadas no uso de entorpecentes. PEIXE CRU DIVULGAÇÃO Felizmente, o caso seguinte acabou contribuindo com a sua saúde. Conforme narrado em Bellini e os espíritos (2005), o detetive foi contratado por um cliente anônimo para desvendar a morte do advogado Arlindo Galvet, abatido sem explicações em plena corrida de São Silvestre. Ao descobrir correlações com a máfia chinesa, o herói passou a frequentar o oriental bairro da Liberdade — às vezes a pé. Assim, conseguiu alternar os contrafilés do Luar de Agosto com muito peixe cru. Em sua próxima encarnação, Bellini talvez encerre a carreira se aposentando em uma praia deserta de Florianópolis. Esse retiro será o pano de fundo da HQ Bellini e o corvo, prevista para 2015 e ilustrada por Pedro Franz. O título é uma referência ao poema “O corvo”, escrito em 1845 pelo pai da literatura de suspense, Edgar Allan Poe. Em uma manhã chuvosa, Bellini, já com 60 e tantos anos, observa a soturna ave sobrevoando a praia. O cenário o faz lembrar um caso que investigou 20 anos antes. A narrativa, então, alterna passado e presente. Na contramão da vida solar de seu criador, Tony Bellotto, o destino de Remi Bellini é triste. Até seu descanso numa praia paradisíaca se dá entre dias nublados. “Quis retratá-lo como um velho sozinho, alcoólatra, bem acabadão, no melhor estilo Charles Bukowski”, explica Bellotto, com a voz tranquila que o diabo deve ter usado ao oferecer seus serviços ao bluseiro Robert Johnson. Nunca foi fácil ter um mestre tão cheio de talentos. EM SENTIDO HORÁRIO A PARTIR DO ALTO: FÁBIO ASSUNÇÃO ENCARNA REMO BELLINI NA ADAPTAÇÃO DE BELLINI E O DEMÔNIO (2008); O DETETIVE, CONFORME SERÁ RETRATADO NA HQ BELLINI E O CORVO, EM DUAS VERSÕES MAIS VELHO E MAIS NOVO; E MALU MADER, MULHER DO AUTOR, COMO FÁTIMA, DANÇARINA DA BOATE COCKTAIL, NO FILME BELLINI E A ESFINGE (2001) primeiros 25 anos da banda. “Hoje a gente não tem mais aquela pegada sexo, drogas e rock’n’roll”, conta Branco Mello. Em 1985, Tony Bellotto foi preso por porte de heroína. Condenado, cumpriu a pena em liberdade. “Tivemos sorte por termos passado e sobrevivido a tudo aquilo e estarmos hoje aqui, vivos”, conta Branco. “Foram anos de muita experimentação e loucura, mas a gente traduziu aquela vivência em trabalho. Até hoje curtimos muito a companhia um do outro. Costumamos jantar juntos, tomar vinho, passar horas dando risada.” Os fortes laços afetivos, mantidos desde a adolescência, quando os músicos estudavam no colégio Equipe, em São Paulo, parecem ser o que ainda sustenta o grupo. De 1982 para cá, os Titãs passaram de um noneto a um quarteto. Nessa trilha, passaram por brigas, crises e morte. Tudo superado por conta da amizade. Jack Endino relembra um episódio ocorrido durante as sessões do disco A melhor banda de todos os tempos da última semana, que começaria a ser gravado no dia em que morreu o guitarrista Marcelo Fromer: 11 de junho de 2001. “Meses depois, quando o Tony já havia gravado as bases, ele chegou e me falou: ‘Jack, acho que está na hora de você tocar guitarra’. Ele não se sentiu no direito de substituir o amigo.” Depois da morte de Fromer, o baixista Nando Reis e o baterista Charles Gavin deixaram a banda, respectivamente em 2002 e em 2010 (Arnaldo Antunes, outro membro da formação clássica, partira em 1992). Agora, três décadas após o lançamento do disco de estreia, os Titãs soltam novo álbum, o primeiro com a formação atual (Tony, Paulo Miklos, Branco Mello e Sérgio Britto). Bellotto diz que a turnê comemorativa de 30 anos da banda, em outubro de 2012, na qual tocaram na íntegra o álbum Cabeça dinossauro (1886), foi fundamental para a retomada de uma sonoridade mais crua e pesada. “A melhor coisa que a gente fez foi dispensar os músicos de apoio, que nos acompanhavam desde que o Nando saiu. Parecíamos artista de MPB. Agora, o Branco está no baixo e o Paulo na guitarra. Isso traz um frescor, uma coisa meio imperfeita, que é justamente o espírito do negócio.” Portanto, não se surpreenda com uma boa dose de solavancos que possam vir a ser percebidos em futuras apresentações do grupo. Em cobertura de um festival no Rio em que os novos Titãs abriram para os norte-americanos do Red Hot Chili Peppers, o jornal O Globo iniciou a resenha da apresentação do grupo brasileiro da seguinte forma: “Sem alterar o seu jeitão banda de garagem, com mais disposição do que apuro…”. Tony Bellotto se diz lisonjeado com o comentário. “Um bando de cinquentão, depois de 32 anos juntos, soando como banda de garagem?”, comenta empolgado. “Pô, isso é uma glória.” teressante é que basta sentar por 5 minutos diante do artista para perceber como Tony Bellotto é tudo menos Remo Bellini, um indivíduo desiludido, cínico e por vezes arredio. “Sempre achei o Tony um sujeito muito bacana e fácil de lidar”, afirma André Conti. O engenheiro de som norte-americano Jack Endino, que descobriu a banda Nirvana e produziu cinco discos dos Titãs, tem outro punhado de adjetivos para classificar o guitarrista. “Ele é simplesmente um cara legal”, diz. “É um cavalheiro, um autêntico ‘sweetheart’ [a expressão em inglês quer dizer algo como coração mole].” Pois então: como um sweetheart desses consegue criar tramas tão nebulosas e sedutoras? — cada título vende, em média, 20 mil exemplares. Ou além: por que esse doce de coco, quando toma uma guitarra para escrever canções, o faz no máximo volume, com letras que gritam coisas como “bichos escrotos”? Nesse sentido, talvez Tony possa ser comparado a Lou Reed, de acordo com a autodescrição que o norte-americano cantou na faixa “Rock’n’roll heart”, de 1976: “Não sou de mensagens nem de coisas por dizer/ Gostaria que gente assim fosse posta para correr […] Pois bem lá no fundo, eu tenho um coração rock’n’roll”. É seguro dizer que Remo Bellini é o coração rock’n’roll que ainda pulsa no paulistano Tony Bellotto. Por meio do seu alter ego, o escritor elabora seus traços mais particulares — o lado “menos família”, como definiu o amigo Branco Mello... É como se a vida real, tingida com luzes tão douradas, obrigasse à imaginação um equilíbrio soturno. Em Bellini, Bellotto vê-se diante de um espelho desses que deformam. Há algo de terapêutico nesse processo. BONS COMPANHEIROS Ficcionista bem-sucedido, Tony Bellotto tem acesso ao circuito literário. Ao lado de Malu Mader, tem franqueada entrada nos eventos globais. Mas, entre uma coisa e outra, ele prefere ficar ao lado de seus colegas roqueiros. “Eu tenho amigos escritores, como o Marçal Aquino e o Reinaldo… como é o nome dele?”, pergunta. “Moraes?”, arrisca a reportagem. “Isso, o Reinaldo Moraes. Eles são caras divertidíssimos. Mas, no geral, não circulo muito nesse meio. Acho que, assim como entre atores, em que tenho poucos e bons amigos, existe muito uma coisa de ego. Fico mais à vontade com os meus amigos músicos”, diz. “Os escritores se levam a sério demais, e gente de banda normalmente não tem isso.” Uma boa radiografia da rotina dos Titãs pode ser vista no documentário A vida até parece uma festa, de 2009, dirigido por Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves. O filme cobre os 56 COORDENAÇÃO KIKA PEREIRA DE SOUSA / AGRADECIMENTO HOTEL UNIQUE (WWW.HOTELUNIQUE.COM) PERSONNALITÉ “OS ESCRITORES SE LEVAM A SÉRIO DEMAIS; GENTE DE BANDA NÃO TEM ISSO” PERSONNALITÉ O PULSO AINDA PULSA Uma história concisa dos Titãs em quadrinhos TONY BELLOTTO PERSONNALITÉ POR Tato Coutinho, de Niterói FOTOS Marcelo Correa AVISO AOS NAVEGANTES Às vésperas de completar 185 anos, o farol da Ilha Rasa, na costa do Rio de Janeiro, segue o mais importante dos 7.400 quilômetros da costa brasileira Silencioso cubo de treva; um salto, e seria a morte. Mas é apenas, sob o vento, a integração na noite. Nenhum pensamento de infância, nem saudade nem vão propósito. Somente a contemplação de um mundo enorme e parado. A soma da vida é nula. Mas a vida tem tal poder: na escuridão absoluta, como líquido, circula. Suicídio, riqueza, ciência... A alma severa se interroga e logo se cala. E não sabe se é noite, mar ou distância. Triste farol da Ilha Rasa. Carlos Drummond de Andrade P ara que serve um farol? Em “Noturno à janela do apartamento”, Carlos Drummond de Andrade, um dos muitos mineiros que foram morar a duas ou três quadras da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, oferece uma luz. A metáfora que se arma na cabeça do poeta é a escuridão absoluta, em que não se sabe mais “se é noite, mar ou distância”. Para a figura perdida, desesperançada na tormenta, o farol é a vida. O capitão de corveta Lacerda é mais pragmático. À sombra do passadiço no andar mais elevado do Amorim do Valle, a embarcação que nos leva à Ilha Rasa, ele sorri, com a mão à guisa de boné protegendo os olhos do sol: “E se tudo o mais falhar?”. A pergunta é retórica. Por “tudo o mais”, entenda-se a síntese representada pelo GPS. A Marinha, obviamente, não depende dos inconstantes serviços de telefonia móvel, mas e se os satélites forem derrubados ou uma tempestade magnética desorientar por um momento as bússolas do mundo? E se... A função de um farol é estar lá, inamovível a indicar sua posição geográfica, percebido a distância pela emissão de luz, sinal de rádio ou mesmo de um som – sino, buzina, tiro de canhão. “Lembro da alegria de avistar o farol de Garcia D’Ávila, na Praia do Forte [BA], ao final da travessia a remo do Atlântico [em 1984]”, conta o navegador Amyr Klink. Ele havia partido cem dias antes da Namíbia, na África, com o que havia de mais adequado para a segurança da navegação – com exceção do motor. Em viagens assim, Klink explica, não há garantias de que você vá chegar exatamente aonde planejou. “Ainda hoje, com todo o avanço da sinalização por boias, os faróis são marcos referenciais importantes.” Assim como para Drummond, o farol da Rasa aparece para nós tão logo a Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN), em Niterói, fica para trás e nos dirigimos à saída da Baía de Guanabara. Alvo e robusto, ele é o mais potente dos 213 faróis sob responsabilidade do Centro de Sinalização Náutica Almirante Moraes Rego (CAMR). Cabe à organização – expressão moderna de um serviço iniciado em 1698 com o acendimento do farol de Santo Antonio, em Salvador – supervisionar a manutenção e a operação de cada elemento de auxílio à navegação da Marinha ao longo dos 7.400 quilômetros de litoral e dos estimados 43.500 quilômetros de rios navegáveis. O comandante Lacerda, 35 anos, não esconde a satisfação de estar a caminho da Rasa pelo segundo dia seguido naquela semana. Na manhã anterior, havia participado da operação mensal de abastecimento da ilha, com combustível para o funcionamento de seus três geradores de energia e suprimentos para a guarnição permanente do farol – um faroleiro, um especialista em motores, um eletricista e um curinga, escolhido de acordo com alguma demanda pontual. O processo de seleção é organizado para a rendição de metade da equipe a cada três meses. Perguntado se a jornada pode ser considerada uma espécie de “licença” em meio à dura rotina da DHN, Lacerda sorri. A procura é sempre grande, cerca de 12 candidatos por vaga, mas a temporada está longe de ser tranquila. Além das obrigações específicas de cada um, é o pequeno contingente quem capina, varre, pinta, martela, cozinha – enfim, quem mantém a base em dia. E sem nem a chance de um mergulho, já que não há praias na rasa. CORSÁRIO ARGENTINO “Na noite de 31 de julho desse anno [1829] se illuminou pela primeira vez o pharol da Ilha Raza, situado fora deste porto (...), com altura de 441 palmos [101 metros] 62 A ESCADA DE ACESSO À ILHA, ESCULPIDA NA PEDRA POR ESCRAVOS. NO ALTO, O SUBOFICIAL LUZ COM OS CÃES MEL E JÚNIOR; E O NAVIO HIDROCEANOGRÁFICO AMORIM DO VALLE ACIMA, AS TRÊS CASAS DE ALOJAMENTO – UMA GRANDE CISTERNA DE ÁGUA DA CHUVA E O ESPAÇO CULTURAL DEDICADO À MEMÓRIA DO FAROL COMPLETAM O CONJUNTO DE EDIFICAÇÕES DA ILHA 63 64 AGRADECIMENTO: MARINHA DO BRASIL sobre o nível do mar e visível a 10 léguas da barra.” O tom protocolar da mensagem que a Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação enviou à Sua Majestade, o Imperador, não faz jus ao histórico aventuresco de sua construção. Desde antes da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, a mesma junta já mandava acender fogueiras ali, todas as noites. Com a elevação da colônia a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1815, a necessidade de uma sinalização mais efetiva se impôs. Registros apontam o tráfego de 1.460 embarcações pela costa da capital ao final da segunda década dos anos 1800 – quase um sexto dos 9.300 atracamentos no porto carioca em 2013, segundo a Companhia Docas. O alvará imperial autorizando as obras viria a 17 de setembro de 1819. Não bastassem as já difíceis condições de acesso ao lugar escolhido e as limitações da mão de obra, em sua maioria presos sentenciados, a empreitada ainda sofreria um duro golpe antes de sua inauguração. “Em 1826 a Junta do Commercio infor- mou ao imperador que esse pharol já estaria funccionando não fosse elle tomado por um corsario de Buenos Ayres ao chegar a este porto”, registra o Histórico de pharoes, em 1913, sobre a pilhagem do navio que trazia o maquinário encomendado da França. Da inauguração em 1829 aos dias de hoje, a Ilha Rasa viveria uma existência sem sobressaltos, com a lenta e progressiva modernização de seu equipamento luminoso até se tornar, em 1883, o primeiro farol elétrico da América do Sul. Ao longo desse período, viveria um único evento extraordinário: o naufrágio do Buenos Aires, no final do século 19. “Ao contrário do que diz o senso comum, a eficiência de um farol não se mede pelos navios que viu afundar, mas pelos que ajudou a passar ao largo”, diz Maurício Carvalho, criador do Serviço de Informações de Naufrágios (Sinau), um dos mais abrangentes bancos de dados do setor. Biólogo e instrutor de mergulho, Carvalho já registrou, desde 1995, 2.536 naufrágios 106 DEGRAUS LEVAM AO ALTO DA TORRE DE 26 METROS DE ALTURA. NO ALTO, SINO DE SINALIZAÇÃO; E O CABO FAROLEIRO MARKOS NO INTERIOR DO FAROL, AINDA COM AS LENTES ORIGINAIS DE 1833 65 “AINDA HOJE, OS FARÓIS SÃO MARCOS REFERENCIAIS IMPORTANTES”, DIZ AMYR KLINK “O TRABALHO DO FAROLEIRO É OFERECER UM CAMINHO DE VOLTA”, ENSINA O CABO MARKOS 66 NO ALTO, VISTA DA ENTRADA DO RIO DE JANEIRO TOMADA DA ILHA RASA EM MAPA FRANCÊS DE 1839. ACIMA, O SUBOFICIAL LUZ NO ALTO DO FAROL, A 101 METROS ACIMA DO NÍVEL DO MAR MAPA: REPRODUÇÃO ACERVO BIBLIOTECA DA MARINHA na costa brasileira, consolidando as informações em pelo menos duas fontes primárias – acervos de jornais, documentos da Marinha, depoimentos de testemunhas. A cada ano, o seu garimpo resgata do esquecimento cerca de 40 novos casos. “O Buenos Aires está entre os 106 naufrágios de importância histórica confirmados na costa da cidade.” O vapor alemão vinha de Hamburgo em direção a Buenos Aires quando se chocou com a Rasa, na madrugada de 24 de julho de 1890. Na aproximação para a escala no Rio, atingiu os rochedos da parte leste da ilha. Resgatados com a ajuda da brigada do farol, passageiros e tripulantes remaram em segurança rumo a Baía de Guanabara. “O que se sabe é que o tribunal marítimo da Alemanha inocentou o imediato que conduzia o navio na hora do choque”, diz o pesquisador. “O farol vinha modernizando seu sistema de iluminação. A tripulação pode ter sido afetada por isso. É fácil falar de imperícia da segurança da terra firme.” UM CAMINHO DE VOLTA Atracamos na Rasa ao final da manhã, do lado oposto ao afundamento do Buenos Aires, depois de 50 minutos de travessia. O Amorim do Valle é fundeado ao largo e fazemos a aproximação numa lancha de apoio. Do ponto onde desembarcamos, uma escada esculpida na pedra por escravos nos leva ao maciço principal da ilha, com 1.020 metros de comprimento e 390 em sua maior largura. A partir dali, a subida é íngreme e conta com um sistema de cabos e roldanas para auxílio nas missões de abastecimento. No último terço da caminhada, o farol desponta por trás da vegetação, que vai ganhando altura conforme nos aproximamos do platô, a única e pequena área de superfície plana. É uma construção de estilo colonial de base quadrangular, em cantaria bem 67 trabalhada e paredes de mais de 1 metro de espessura. Em contraste com as outras edificações da ilha, de arquitetura indefinida, a torre parece não acusar a passagem do tempo. “As lentes ainda são as originais da época de sua eletrificação”, diz o capitão de mar e guerra reformado e pesquisador Ney Dantas, 75 anos. Graças “à centenária engenharia ótica francesa”, sua assinatura – dois “relâmpagos” brancos e um vermelho a cada 15 segundos – pode ser percebida a quase 95 quilômetros de distância. “É até hoje o mais importante farol da costa brasileira.” O zelo com que o cabo faroleiro Markos, 28 anos, retira a cobertura do equipamento em descanso para as fotos, ao final da manhã, comprova a reverência renovada a cada nova rendição da equipe. Ele e o suboficial Luz, 46 anos, o encarregado de motores da vez, preparavam o desembarque no final de março dos veteranos da guarnição, o eletricista Amaro e o curinga Estrela, professor de educação física. Em breve, receberão os novos calouros para ambientá-los na rotina militar, que inclui, além da manutenção do farol e de seus geradores, a tomada diária dos dados da estação meteorológica que funciona na ilha, para a atualização de boletins da Marinha. Os dois não disfarçam que, mal completado o primeiro mês de seu turno, já começam a sentir falta da Rasa, por antecipação. “Com a internet, o contato com a família é diário e a saudade não chega a ser um problema”, diz Luz. “A distância é até boa para o relacionamento”, argumenta Markos, também casado, pai de um garoto de 5 anos. Perguntados se, quando estiverem de volta ao Rio, sentirão mais falta da ilha do que jamais sentiram de casa quando estiveram na Rasa, Markos se adianta com um quase enigma, dando a entender onde prefere estar: “O trabalho do faroleiro é oferecer um caminho de volta”. POR Ruy Castro, do Rio de Janeiro ILUSTRAÇÃO Veridiana Scarpelli A PIOR PELADA DA HISTÓRIA Foi em 1945, na praia do Leblon, o embate entre Copacabana e Ipanema. Envolveu Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino... — craques da literatura, mas pernas de pau no futebol N elson Rodrigues passou a vida escrevendo sobre futebol – na Última Hora, na Manchete Esportiva, no Jornal dos Sports, no Globo. Foi o maior cronista do futebol e também quem definiu a seleção como “a pátria em chuteiras”. Mas é impossível imaginá-lo jovem, calçado com as próprias e disputando uma pelada, mesmo que de alto a baixo com as cores do Fluminense. Por quê? Porque Nelson não teve tempo para ser jovem. Já aos 17 anos, em 1929, defrontou-se com a tragédia – o assassinato de seu irmão Roberto, que o condenou prematuramente à vida adulta. Da mesma forma, o rubro-negro José Lins do Rego. O grande romancista, autor de Fogo morto e Menino de engenho, era também cronista esportivo e, de 1945 a 1957, escreveu diariamente sobre futebol no Jornal dos Sports, falando quase que exclusivamente do Flamengo. Mas, na vida real, ninguém jamais viu Zé Lins matando uma bola no peito, trazendo para a coxa e emendando de primeira. O mesmo quanto ao vascaíno Carlos Drummond de Andrade, o botafoguense Otto Lara Resende, o americano Marques Rebelo e o banguense José Mauro de Vasconcellos. Nunca se soube que, um dia, eles tenham trocado as calças por calções para bater uma bolinha. Aposto até que nenhum deles conseguia fazer uma embaixada com mais de dois toques. E era bom que fosse assim – porque a recíproca também deve ser verdadeira. Alguém consegue imaginar um romance escrito pelo Cafuringa, pelo Dadá Maravilha ou pelo Ronaldinho Gaúcho? Mas pode crer: houve um dia em que alguns dos maiores craques da poe- 70 sia, da crônica e da literatura brasileira entraram em campo no Rio para disputar uma pelada. Pelada de praia, bem entendido. E com mais mulheres do que homens na torcida. Mas, pela categoria dos nomes envolvidos, era como se estivessem em campo Pelé, Garrincha, Tostão, Zico e Romário. O DONO DA BOLA Foi em dezembro de 1945, e consistiu num jogo Copacabana x Ipanema, reunindo intelectuais e artistas moradores de um bairro ou de outro. O fato de muitos já usarem óculos, terem pernas finas e passarem o dia com uma certa quantidade de álcool no sistema devia comprometer seu rendimento atlético. Mas, como todos estavam mais ou menos na mesma condição, as coisas se equilibravam. A ideia foi do influente poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, então com 39 anos, e havia um motivo secreto. Era o único jeito de ele chegar perto do seu sonho: o de vestir em campo a camisa do Botafogo. E Schmidt tinha uma bonita camisa listrada do seu clube, com a competente estrela solitária ao peito, além de um calção branco que lhe vinha ao meio das canelas. Como ninguém no Botafogo era maluco para deixá-lo sequer entrar em campo com os profissionais, o jeito era inventar uma pelada da qual ele fosse a estrela. Não por acaso, era também possuidor de uma bola Superball nº 5, oficial, o que o tornava dono do jogo, com poderes até para escalar os times. Foi assim que, para formar o escrete de Copacabana, Schmidt convocou o pintor e goleiro Di Cavalcanti, 48 anos; o jornalista e cronista Rubem Braga, 32; o publicitário e escritor Orígenes Lessa, 42, então mais conhecido como criador do slogan da Coca-Cola “Isto faz um bem...”; o escultor José Pedrosa, 30, ainda pouco cotado na 71 O FATO DE USAREM ÓCULOS E TEREM PERNAS FINAS EQUILIBROU O JOGO praça; os jornalistas Moacir Werneck de Castro, 30, e Newton Freitas, 36; e os jovens críticos mineiros Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, respectivamente 23 e 22 anos – recém-chegados de Belo Horizonte, mas cujo charme já os integrara às rodas literárias cariocas. Fernando, aliás, era o único ali que poderia ser remotamente chamado de atleta – fora campeão mineiro de natação ou coisa parecida, embora isso só lhe valesse naquele momento se fosse uma competição de polo aquático. Por Ipanema, adentraram a areia, entre outros, o poeta e diplomata Vinicius de Moraes, 32 anos, já quase de partida para Los Angeles como cônsul; o desenhista e publicitário Carlos Thiré, 28, então tão ocupado em desenhar histórias em quadrinhos para O Globo que mal lhe sobrava tempo para sua jovem mulher, a linda Mariinha, tão desejada por tantos – e olhe que ela ainda nem tinha se tornado Tonia Carrero; o escritor Aníbal Machado, 51, em cuja casa na rua Visconde de Pirajá reuniam-se, aos domingos, todos os grandes nomes da literatura brasileira ou mundial, de visita ao Rio; o diplomata Lauro Escorel, 36; o trotskista Carlos Echenique, 32; e um médico calvo que ninguém sabia bem quem era, mas que se revelou o melhor do time e levou uma traulitada do viril zagueiro Rubem Braga, para deixar de ser assanhado. Mas a grande sensação da praia era a torcida, concentrada nos degraus de cimento do Leblon. Ali estavam Mariinha, loura, de olhos azuis e toda toda; Tati, O JOGO DUROU TRÊS TEMPOS E IPANEMA PERDEU POR 3 A 1 a admirada mulher de Vinicius; a bela Elsie, mulher de Orígenes e mãe de Ivan, todos Lessa; Zora, mulher de Rubem Braga; Miriam Etz, a gata alemã, modelo de propaganda e pioneira do duas-peças no Arpoador e no Brasil; e outras que os cronistas daquele prélio não registraram. Lindas de morrer, com seus shortinhos brancos e curtos ou saias rodadas e vaporosas, chupando melancias, e rindo tanto quanto torcendo. Ah, sim, o jogo em si. Foi o que menos interessou. Não havia juiz, e o goleiro Di Cavalcanti decretou que, se uma bola lhe passasse um palmo acima da cabeça, seria tiro de meta. Como Di tinha pouco mais de 1,5 metro, pode-se imaginar. Schmidt, logo ele, deu o pontapé inicial e, com 1 segundo de jogo... contundiu-se! Saiu e foi para trás de um dos gols, formados por bolinhos de camisas coloridas. Pouco depois, com 2 minutos de bola rolando, Vinicius também saiu mancando. “Senti o menisco”, alegou, e foi alegremente juntar-se às moças. Com algumas jogadas de efeito e outras de delicioso ridículo – pés que ficavam presos na areia, bolas sem querer entre as canetas e atletas com súbi- 73 tas dores nos rins –, o jogo durou três tempos, ao fim dos quais registrou-se a vitória de Copacabana por 3x1. Mas, no futuro, Paulinho Mendes Campos a classificaria como uma vitória de pirro, porque, já então, quase todos os copacabanenses daquela jornada tinham se tornado cidadãos de Ipanema. Essa pode ter sido a pior pelada de todos os tempos, mas nenhuma a supera em textos que a cantaram. Em épocas diferentes, os três maiores cronistas brasileiros escreveram a seu respeito: Rubem Braga, em seu livro Um pé de milho; Fernando Sabino, na coletânea Gente 1; e Paulo Mendes Campos em Os bares morrem numa quarta-feira (relançado com o título Murais de Vinicius e outros perfis). Três pequenas obras-primas da crônica brasileira, e cada uma melhor que a outra. (Mentira: a de Rubem Braga é disparado a melhor.) Fico imaginando uma pelada, hoje, nas areias do Leblon, entre escritores, músicos e outros, residentes no bairro ou em Ipanema. Os craques seriam Nelsinho Motta, João Ubaldo Ribeiro, os veteraníssimos Rubem Fonseca e Zuenir Ventura, o jornalista Sergio Augusto, os cantores Fagner e Zé Renato, o compositor Guinga, o ex-craque Paulo César Caju, o presidente do Ibope (e ex do Botafogo) Carlos Augusto Montenegro e que tais. Entre os quais, eu – para você ver a que nível chegou o nosso futebol. É verdade que o artilheiro Fred, do Fluminense, também mora nos nossos quarteirões. Mas, como vive machucado, decidimos não contar com ele. TONY BELLOTTO PERGUNTA: POR QUE VOCÊ PREFERE OS CARROS ANTIGOS? 74 OG POZZOLI RESPONDE: O que acontece é que os automóveis antigos eram feitos numa prancheta. Não eram feitos por um computador. Hoje, eles são quase idênticos. Quando você olha um automóvel japonês, um americano, um alemão, são todos praticamente iguais. Os antigos têm mais autenticidade. Cada carro é um carro. Vamos pegar, por exemplo, um Packard. Você sabe que é um Packard. Um Rolls-Royce: você tem certeza que é um Rolls-Royce. Tudo isso faz a alma do carro. Prefiro os antigos porque cada um deles tem seu DNA muito específico. 75 POR Fausto Salvadori Filho FOTOS Luiz Maximiano AUTO FALANTE Quando está ao lado de um de seus 170 carros antigos, o colecionador Og Pozzoli dispara a contar a história de cada um com entusiasmo. É como se os automóveis falassem, revelando papas desobedientes e princesas ameaçadas de morte. “Tudo aqui tem uma história” OG POZZOLI EM UMA DAS GARAGENS DE SUA CASA NA GRANDE SÃO PAULO AO LADO DO CHEVROLET 1932, MODELO CONFEDERADO. AOS 83 ANOS, O EMPRESÁRIO CRIOU O PRIMEIRO GRUPO DE COLECIONADORES DE CARROS ANTIGOS DO BRASIL PERSONNALITÉ uando o governo de São Paulo inaugura uma rodovia e quer estrear a pista com um automóvel à altura do evento, ou quando o Itamaraty recebe estrangeiros ilustres e precisa recebê-los em veículos capazes de impressionar príncipes e papas, sabem a quem recorrer. Nessas horas, ninguém melhor do que o empresário Og Pozzoli, dono da mais célebre coleção de carros antigos do Brasil. Og já emprestou seus automóveis para recepcionar o papa João Paulo II e a família real japonesa, inaugurar obras como o Rodoanel e a segunda pista da rodovia Imigrantes, além de participar de desfiles de Sete de Setembro e dos veteranos da Revolução de 32. “Faço apenas uma exigência: que eu seja o motorista”, conta. Os convites precisam ser feitos com antecedência. É que, para garantir que modelos fabricados há mais de 60 anos permaneçam como novos, os carros passam os dias assentados sobre cavaletes, sem gasolina, nem bateria, com radiador seco e os pneus vazios. Estão “hibernando”, diz Og. Para despertá-los, é preciso ir com cuidado. Tem que revisar os freios, limpar o cárter, lustrar algumas válvulas para remover inícios de ferrugem, movimentar aos poucos os pistões... Um processo que não leva menos de duas semanas. Os 170 carros da coleção, todos restaurados com as peças originais, estão distribuídos em duas chácaras de sua propriedade, uma no interior do estado e outra na Grande São Paulo, chamada Casa Vermelha, onde Og mora com a esposa. É na Casa Vermelha que estão os veículos mais raros, mas nem por isso favoritos. “Você tem um filho favorito?”, desconversa o pai de dois casais e avô de três netas. Dividida em cinco salões, a coleção da Casa Vermelha tem a organização de um museu, com placas nos carros indicando o ano de fabricação e avisos nas paredes para não tocar nas obras. “É um museu fechado, e não posso abrir porque moro nele.” Og afirma ter recusado ofertas de compradores que queriam levar sua coleção para o Oriente Médio. Sonha com o dia em que o poder público ou privado invista para transformar a coleção num museu aberto. “Espero que isso aconteça antes de ser chamado para o andar superior.” Aos 83 anos, Og vive mesmo em um museu. “Apaixonado por história”, enxerga o passado como uma fonte permanente de presentes. Até os vastos bigodes que cultiva desde sempre, entre os óculos grossos e o sorriso de homem bem vivido que tem sempre “uma história interessante” para contar, lembram um rosto de outro século. É com esse sorriso que o colecionador recepciona a equipe da Revista Personnalité, que chega à Casa Vermelha em um Toyota Corolla. “Esses japoneses ainda são novos em automóveis”, brinca. OG POZZOLI JÁ EMPRESTOU SEUS CARROS PARA PAPAS E PRINCESAS. A ÚNICA EXIGÊNCIA: “QUE EU SEJA O MOTORISTA” 78 REPRODUÇÃO DE ARQUIVO PESSOAL Q OG POZZOLI Em frente à sua casa, um canhão de quatro séculos enfeita o jardim. “Estava num navio afundado no litoral de Santa Catarina, em 1625”, conta. Depois de passar diante de uma bomba de gasolina retirada de um posto Shell de 1910, Og conduz a reportagem ao “salão de bagunças” da chácara, usado para festas e brincadeiras. Ali também o passado das tecnologias está por todos os lados: numa hélice de um avião Beechcraft mantida embaixo do piano, num tear manual transformado em peça de decoração ou em um motor de automóvel colocado numa mesa. Um motor que, aos olhos de Og, conta histórias sobre a industrialização do Velho Mundo. “Veja que o motor é um Peugeot e o magneto é Bosch. Mostra que a indústria europeia já estava se unindo”, explica. Os passos seguintes levam aos automóveis, e aí a memória não para mais de jorrar. “Tem uma história interessante” é um bordão que Og repete ao apresentar cada automóvel, para logo em seguida enumerar uma série de acontecimentos, datas e nomes relacionados aos veículos. A paixão do colecionador por esses objetos envolve não só a engenharia NA PÁGINA AO LADO, OG CONDUZ A PRINCESA JAPONESA MICHIKO E O PAPA JOÃO PAULO II. ACIMA, UM DOS QUATRO MERCEDES DO COLECIONADOR DIANTE DE UMA BOMBA DE GASOLINA RETIRADA DE UM POSTO SHELL DE 1910 dos motores de 12 cilindros e a arte das carrocerias, como também os eventos que evocam. É como se os automóveis falassem, contando sobre papas desobedientes, governadores ciumentos e princesas ameaçadas de morte. “Tudo aqui tem uma história”, diz. Uma dessas histórias conta que, logo após dar o golpe que implantou a ditadura do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas visitou o governador de Minas Gerais. Benedito Valadares comprara um Chrysler Imperial para receber o presidente. Sabendo disso, o governador paulista, Ademar de Barros, não quis ficar para trás. No ano seguinte, ao receber uma visita de Vargas, tratou de conduzi-lo num Lincoln K fora de série idêntico ao usado, na época, pelo presidente norte-americano Franklin Roosevelt. “Por coincidência, os dois carros estão hoje na minha coleção”, mostra Og (veja na página a seguir). O Chrysler Imperial 1937, lembra, foi também usado para conduzir a escolta da princesa japonesa Michiko, que visitou o Brasil, em 1978, cercada de seguranças. Já o Lincoln acabaria usado por Og para conduzir o papa João Paulo II na sua primeira visita ao Brasil, em 1980. 79 PERSONNALITÉ CHRYSLER IMPERIAL 1937 Em 1978, quando o Brasil comemorava os 70 anos da imigração japonesa, o carro conduziu a família real. A princesa Michiko seguiu num outro Chrysler Imperial, ano 1928, dirigido por Og FORD LINCOLN K 1938 Das cinco unidades fabricadas, restam duas. A de Og foi usada por Getúlio Vargas, pelo presidente Charles de Gaulle, pela rainha Elizabeth II e, em 1980, pelo papa João Paulo II OG POZZOLI PACKARD 1936 Carro que serviu ao presidente Eurico Gaspar Dutra é equipado para evitar atentados. O banco de trás é recuado em relação à janela, para atrapalhar a visão de um eventual atirador MOON 1918 Pertenceu ao então governador de São Paulo e futuro presidente Washington Luís. A Moon foi uma fabricante norte-americana de carros que faliu com a Grande Depressão, em 1929 PERSONNALITÉ O Lincoln desperta em Og a lembrança do arcebispo Paul Marcinkus, um norte-americano com 1,95 metro que atuava como chefe de segurança do papa, sempre com uma pistola Colt .45 embaixo da batina. Quando Og se preparava para levar João Paulo II a bordo do Lincoln para saudar a multidão reunida no estádio do Morumbi, as ordens de Marcinkus foram claras: “Dê um quarto de volta à direita e pare. Se Sua Santidade mudar qualquer coisa, não obedeça”. Quando o pontífice entrou no carro, pediu para virar à esquerda e dar duas voltas no estádio. Og obedeceu. Quando reencontrou Marcinkus, o chefe da segurança estava furioso e chamou o empresário de “irresponsável”. “Entre obedecer ao senhor e ao papa, eu obedeço ao papa”, respondeu Og com uma risada. PATRIARCA DO ANTIGOMOBILISMO Og já nasceu em trânsito. Neto de um engenheiro italiano que trabalhou nas obras da ferrovia Great Western, em Pernambuco, e filho de um engenheiro que também atuava como jornalista no Rio Grande do Norte, veio ao mundo em Itaboraí, no Rio de Janeiro, durante uma viagem do pai para cobrir a Revo- 82 lução de 30. A família voltou para Natal, onde Og morou até os 25 anos. Em 1956, saiu do estado “para começar a vida em São Paulo, com 54 cruzeiros e 30 centavos no bolso”. Fez um “rali do eu sozinho”, a bordo do seu primeiro carro, um Opel P4 de 1937, com o qual enfrentou 3.400 quilômetros, vários deles em estradas de terra, com poucos postos de gasolina, o que o obrigava a levar latas de combustível. Na nova cidade, o dinheiro encurtou e Og se viu obrigado a vender o Opel. Em 1958, criou uma empresa de engenharia, a Isoterma, que participou de obras da recém-nascida Brasília, incluindo o Palácio da Alvorada e o Congresso Nacional, das hidrelétricas de Jupiá e Ilha Solteira, no estado de São Paulo, e pelo mundo afora, na Argélia e na Mauritânia. Quando a empresa começou a fazer dinheiro, realizou “o sonho de todo brasileiro da época”. Comprou um Fusca. Comprou também um carro antigo, bem mais barato, um Lincoln Continental 1948, “só para brincar o Carnaval”. Passada a festa, ficou com pena de vender o carro. “Aí descobri que tinha um espírito de colecionador.” O Lincoln se tornou o primeiro carro da futura coleção de Og. Foi recostado nesse automóvel, durante o Carnaval de OG POZZOLI 1962, numa praia de Santos, que conheceu Lúcia, então com 18 anos. No ano seguinte, se casaram. “Estamos juntos há mais de 50 anos, sem arrependimentos”, diz. Junto com mais 11 amigos, criou em 1968 o primeiro grupo de colecionadores de carros antigos, o Veteran Car Club do Rio de Janeiro, do qual foi o sócio número 1. Hoje, tem título de sócio honorário em mais de 40 clubes filiados à Federação Brasileira de Carros Antigos, da qual já foi presidente. É por isso que outros colecionadores o chamam de “patriarca do antigomobilismo”. A esposa diz que compartilha da paixão de Og pelas antiguidades motorizadas e já acompanhou o marido em várias maluquices sobre quatro rodas, inclusive um rali de 9.600 quilômetros entre São Paulo e Valparaíso, no Chile, reunindo só carros com mais de 40 anos para enfrentar altitudes de 4.200 metros e temperaturas de 18 graus negativos na Cordilheira dos Andes. “Os carros antigos se comportam bem. Foram feitos para andar em estradas de terra, aguentar o diabo”, diz. O gosto pelo passado deve ajudar a encarar o presente, porque Og continua a levar uma rotina das mais ativas. Vai trabalhar todos os dias e não abre mão do gosto de dirigir o próprio O COLECIONADOR EM UMA DAS GARAGENS DE SUA CASA. ACIMA, JARDINEIRA DE 1914 COMPRADA DE UM FAZENDEIRO QUE TROUXE O VEÍCULO AO BRASIL EM 1918. NEM A MONTADORA FIAT POSSUI O ÔNIBUS EM SEU ACERVO carro, mesmo que isso signifique passar até 4 horas no trânsito. Nem é tanto tempo assim, se ele puder passar dentro de algum dos cinco caçulas da Casa Vermelha – quatro Mercedes e um BMW, todos com mais de 20 anos. Quanto vale uma coleção dessas? Og não sabe dizer, e nem tem muito interesse em descobrir – não pretende vender nenhum dos seus “filhos”. Nisso de viver cercado do que ama e fazer o que gosta, descobriu toda a felicidade que poderia querer. Uma vez (afinal, sempre há uma história para contar), Og foi posto à prova por Gianni Agnelli, principal acionista da Fiat. Em visita à Casa Vermelha, o italiano encantou-se com o veículo mais antigo da coleção de Og: um ônibus do tipo jardineira, fabricado pela Fiat em 1912. Ofereceu US$ 1 milhão por ela, mas Og não aceitou. Inconformado, Agnelli perguntou por quê. E o colecionador respondeu: “Eu sou um homem realizado. Se aceitar esse milhão, vou continuar morando na mesma casa, casado com a mesma esposa, bebendo o mesmo vinho, o mesmo uísque, e vou ficar sem a minha jardineira”. O italiano deu uma risada e concluiu: “O senhor é um filósofo”. 83 O “MURO DA VERGONHA”, QUE ISOLA O POVO SAHARAUI DO OCEANO TEXTO E FOTOS Samir Abujamra, de Lisboa TINHA UMA MINA NO MEIO DO CAMINHO O cineasta Samir Abujamra entrou para uma rara estatística: sobreviveu à explosão de uma mina antitanque no Saara Ocidental, onde filma o documentário El desierto del desierto 85 O nome não deixa dúvidas: o deserto do deserto é uma das regiões mais inóspitas do planeta. A autoproclamada república dos saharauis, também conhecida como Saara Ocidental, no noroeste da África, vive uma violenta disputa territorial com o Marrocos, envolvendo um muro levantado para impedir o acesso do povo do deserto ao oceano. Foi lá, em janeiro passado, que o carro que levava Samir Abujamra e o colega Tito Gonzales em direção ao mar explodiu ao passar por cima de uma mina antitanque. Samir ainda tenta entender como sobreviveu. Nas páginas que seguem, o diretor divide suas memórias e fotos dessa jornada. E retraça os passos que o levaram a encarar uma experiência-limite para contar o drama de um povo que o mundo pouco conhece. DOUGAJ, SAARA OCIDENTAL, 18 DE JANEIRO DE 2014 “Se eu morrer, estarei morrendo pelo meu país. E se vocês morrerem, estarão morrendo por quem?” As palavras do comandante Taleb, da 1ª Região do Exército Saharaui, proferidas em um espanhol perfeito, provocaram um longo silêncio na fria e escura sala do quartel de Dougaj. “SE EU MORRER, ESTAREI MORRENDO PELO MEU PAÍS? MAS E VOCÊS?” Dougaj, no sul do Saara Ocidental, é o último ponto antes de um sprint de três dias pela parte mais perigosa do país, uma estreita faixa junto ao Muro da Vergonha, com mais de 2.000 quilômetros de extensão, levantado pelo Marrocos para isolar o povo saharaui. A passagem é a única forma de alcançar o Atlântico a partir do território que sobrou aos saharaui – a porção mais inóspita do deserto do Saara, chamada de El Desierto del Desierto, título do nosso documentário. O comandante Taleb, enrolado em sua túnica, tinha o porte de um centurião romano. O militar lia e relia os papéis protocolares que solicitavam a nossa escolta de Dougaj até o mar. No canto da sala, uma televisão velha exibia um jogo de futebol. De repente, Taleb quebrou o silêncio. “Nós fazemos incursões regulares até os 30 quilômetros de litoral que estão sob nosso comando”, disse ele. “É uma área extremamente perigosa, com muitas minas. Desde o cessar-fogo de 1991, nenhum jornalista, nenhum estrangeiro sequer esteve lá.” E avisou: “Isso me parece uma loucura”. Naquele dia completávamos duas semanas de filmagem desde os campos de refugiados do Bojador, no sudoeste da Argélia. Para encerrar o roteiro que prevíamos para o filme, precisávamos que o comandante Taleb autorizasse nossa passagem e providenciasse uma escolta. Ele não parecia muito interessado. Na TV, o juiz marcou um pênalti. Foi aí que lembrei: eu tinha na mala um salvo-conduto que costuma ser eficiente em situações rígidas como aquela – camisas da seleção brasileira. “Comandante Taleb, a usted le gusta el fútbol?”, perguntei. “No. 86 No me gusta el fútbol, me gusta el combate...” A reunião acabou pouco depois. O militar comunicou que pensaria no assunto e nos dispensou. Fomos dormir sem saber se no dia seguinte partiríamos rumo ao nosso destino, o mar. MONTMARTRE, PARIS, 24 DE AGOSTO DE 2013 “Como nunca havia ouvido falar nessa história?”, me perguntava, no apartamento de um amigo, o cineasta francochileno Tito Gonzalez Garcia. Eu estava em Paris para participar, como ator, de um filme. Bebíamos vinho enquanto ele me mostrava as imagens que havia feito três meses antes, nos campos de refugiados do Bojador, onde vivem aproximadamente 200 mil saharauis expulsos de sua terra, ocupada pelo Marrocos. Tito havia estado lá durante as comemorações dos 40 anos da formação da Frente Polisario, a resistência constituída em 1973 para pressionar a saída da Espanha – o que acabou ocorrendo em 1975. Mas a saída espanhola acabaria piorando as coisas. Os europeus – que conviveram, ensinaram o castelhano e trabalharam com o povo saharaui por quase cem anos – fizeram um acordo para deixar a antiga colônia sob o comando do Marrocos e da Mauritânia. Em troca, exigiram garantia de continuidade na exploração de fosfato (a região possui as maiores reservas mundiais do mineral) e autorização para que mantivessem mil barcos de pesca na costa do Saara Ocidental, uma lucrativa zona pesqueira. Eu, que não sabia de nada disso, via atentamente o material bruto que Tito me mostrava. Tentava processar em minha cabeça a enxurrada de informação ACIMA, O DIRETOR SAMIR ABUJAMRA, DE TURBANTE, NOS CAMPOS DE REFUGIADOS. NA OUTRA PÁGINA, CENÁRIO DA EXPLOSÃO, NO SAARA OCIDENTAL: O QUE SOBROU DO JIPE DA EQUIPE DE FILMAGEM DEPOIS DE DETONAR UMA MINA TERRESTRE 87 MAPA: BRUNO ALGARVE que aquelas imagens traziam. Foi quando apareceu o depoimento de um saharaui dizendo que “la filosofia de los beduínos es combatir el dolor con más dolor”. “Eles falam castelhano?”, perguntei, incrédulo. Descobri ali que os saharaui são os únicos árabes que têm o espanhol (além do árabe, claro) como língua oficial. Foi o clique que me faltava. Minha família é sírio-libanesa e eu vinha de uma experiência intensa: vivera dois anos como um nômade moderno, viajando sozinho por 37 países em todos os continentes. A soma da minha origem com esse impulso de circular o mundo me fisgou. Como resistir diante daquela história de nômades que têm a sina de viver confinados? Dias mais tarde estava na sala de embarque do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Postei no Facebook: “Alguém aí tem 30 mil euros para investir em um documentário internacional?”. Doze horas depois, enquanto esperava minha bagagem no Rio, vi que alguém havia respondido: um publicitário. Não o conhecia pessoalmente. Ele queria financiar parte do filme. Quatro meses depois (e com a entrada de outros quatro investidores), eu embarcava com Tito para o Saara Ocidental. Nunca havia participado de um projeto de longa-metragem com tamanha celeridade. Parecia, perdoem-me o clichê, que aquela era uma história que estava pedindo para ser contada. GUERGUERAT, SAARA OCIDENTAL, 21 DE JANEIRO DE 2014 Naquela manhã despertei um pouco antes do nascer do sol. Era a segunda noite consecutiva que dormíamos no deserto. A temperatura média no inverno do Saara oscila entre 20 oC e 30 oC de dia. À noite, cai para 5 oC. Havíamos partido dois dias antes de Dougaj. O comandante Taleb finalmente autorizara nossa incursão até a costa, depois de receber uma chamada do presidente da Rasd, 88 República Árabe Saharaui Democrática. Aproximadamente 400 quilômetros, em linha reta, separam Dougaj do Atlântico, na costa de La Güera. O plano de ataque para alcançar o mar funciona da seguinte forma: viaja-se dois dias até um lugar chamado Sbara – apenas um ponto onde há um grande arbusto que serve de abrigo para passar a noite –, distante 30 quilômetros da costa. De lá, parte-se cedo rumo ao litoral, iniciando o trajeto inverso algumas horas depois, sempre à luz do dia. Partimos às 8h45. Nosso carro era um Toyota Land Cruiser fechado, com quatro homens – além de mim, estavam Tito, Chino (nosso assistente e tradutor) e Mouktar, um soldado que havia substituído Ahmed, nosso motorista, na condução por aquela que era a parte mais perigosa de todo o trajeto. Nós seguíamos o carro da escolta, um Land Crui- NO ALTO, O MOTORISTA DA EQUIPE, AHMED, DIANTE DA CARCAÇA DE TANQUE MARROQUINO CAPTURADO EM 1976. ACIMA, O COMANDANTE TALEB ser aberto, com dois soldados na frente e três homens na caçamba – Ahmed e outros dois militares. O percurso era feito muito lentamente. Na zona mais densamente minada, a velocidade caiu para menos de 10 km/h. Era necessário um cuidado extremo para evitar, a olho nu, as milhares de minas espalhadas. Os soldados conheciam bem a sinistra área, repleta de todo tipo de lixo militar, inclusive munição não deflagrada. Nosso carro tinha que acompanhar, milimetricamente, o traçado deixado na areia pelo carro da escolta. O silêncio era absoluto. Estava na frente, ao lado do motorista. Tinha minha câmera no colo, mas a tensão era tal que nem eu nem Tito gravávamos qualquer imagem. A uma certa altura, abri o vidro e aspirei o ar em busca de algum sinal de maresia. Poucos minutos depois foi como se o tempo parasse. Uma violentíssima explosão impeliu o carro para cima e para o lado. Fagulhas, areia e óleo diesel por todos os lados. Havíamos passado sobre uma mina antitanque. Saí do carro, atônito, e vi Tito já do lado de fora. “Estás bien?”, perguntei. Ele disse que sim. Meu estado de confusão mental era tamanho que indaguei em seguida: “E eu? Eu estou bem? Estou sangrando?”. Os homens do carro da escolta, uns 20 metros à frente, começaram a gritar desesperadamente. Pediam para que não nos movêssemos – todo o entorno do que sobrou do nosso carro estava salpicado de minas pessoais. Ao pisar em um desses explosivos você, no mínimo, perde uma perna. Por sorte ou milagre, não pisamos em outra mina e fomos embora no carro da escolta. Nos dias que se seguiram, durante o longo trajeto de volta para os campos de refugiados, e na semana subsequente, onde arrematávamos as filmagens por lá, fomos entendendo melhor a magnitude do que havia ocorrido. Os velhos soldados que estavam havia 40 anos na guerra, gente de várias associações e ONGs de apoio a vítimas de minas, especialistas e engenheiros militares – todos MURO DA VERGONHA As setas pretas indicam o caminho de Samir. A linha vermelha é o Muro da Vergonha, com 2.700 quilômetros de extensão. Erguido pelo Marrocos há 30 anos, ele impede que o povo saharaui acesse o oceano. Sete milhões de minas terrestres estão espalhadas ao longo de seu percurso, no maior campo minado contíguo do mundo. NO ALTO, CENA NÃO INCOMUM NO SAARA OCIDENTAL: MERCADORES TRANSPORTAM DROMEDÁRIOS DE CARRO 89 O DESERTO É REPLETO DE LIXO MILITAR POR TODO LADO foram unânimes: nunca haviam sabido de um caso em que quatro pessoas saíram com vida da explosão de um carro por uma mina antitanque. Entramos oficialmente para as estatísticas mundiais de vítimas de minas e para uma lista muito menor de quem saiu ileso dessa experiência. Vencer El Desierto del Desierto e chegar ao mar, ao espaço sem fronteiras, era o final planejado de nosso documentário. Mas, naquela fração de segundo em que a mina foi detonada, a apenas 800 metros da costa do Saara Ocidental – que nunca chegamos a ver –, o filme tomou outro rumo. A contraposição da esperança anterior com o impedimento causado pela explosão apareceu de forma gritante. As coisas assumiam outro sentido. De certa forma, o acidente, a barreira de explosivos, invisível e brutal, ao nos tolher a liberdade de seguir, ao nos ameaçar a carne, é a maior representação do Muro da Vergonha e da tônica da existência saharaui nos últimos 40 anos. Demos a volta, em direção ao deserto, para reescrever o final de nosso filme. O documentário, bem como nossa própria trajetória, ganhava um novo rumo, uma nova vida. Baixe a Revista Personnalité no tablet e assista ao vídeo com Samir Abujamra PRIMEIRA PESSOA | CARLA PERNAMBUCO _ “NÃO FAÇO ESTARDALHAÇO” TEXTO KELLY CRISTINA SPINELLI / FOTO ZECA DE SOUSA Entre os utensílios indispensáveis na cozinha, é com a batedeira que a chef Carla Pernambuco mais se identifica. “‘Multitarefeira’, silenciosa e rebolativa, é o símbolo de uma boa cozinheira. Me sinto assim: faço mil coisas ao mesmo tempo, não faço estardalhaço nem tenho tempo para a fadiga. E, convenhamos, para atuar nesse mercado é preciso saber rebolar.” A BATEDEIRA BRANCA KITCHENAID, QUE ELA TROUXE DE NOVA YORK EM 1994 E “AINDA NÃO MOSTRA SINAIS DE FADIGA”, COM O TEMPO GANHOU A COMPANHIA DE OUTRAS DUAS: UMA AZUL HORTÊNSIA E OUTRA VERMELHA 90 Baixe essa edição no seu tablet. A Revista Personnalité também está no tablet, com vídeos exclusivos, galeria de fotos, matérias interativas e muito mais. Acesse a loja, baixe o aplicativo gratuitamente e experimente.