parc royal: um magazine na modernidade carioca
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parc royal: um magazine na modernidade carioca
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL - CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS PARC ROYAL: UM MAGAZINE NA MODERNIDADE CARIOCA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC como requisito parcial para a obtenção de grau de Mestre em História, Política e Bens Culturais MARISSA GORBERG Rio de Janeiro Março 2013 2 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV Gorberg, Marissa Parc Royal : um magazine na modernidade carioca / Marissa Gorberg. – 2013. 148 f. Dissertação (mestrado) - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Orientadora: Helena Bomeny. Inclui bibliografia. 1. Moda. 2. Modernidade. 3. Consumidores. 4. Comércio. 5. Comunicação. 6. Rio de Janeiro (RJ) – Usos e costumes - Séc. XIX. I. Bomeny, Helena, 1948- . II. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. III. Título. CDD – 306 3 4 AGRADECIMENTOS À minha família. À Mauro Fainguelernt, companheiro. À Professora Helena Bomeny. A todos os Mestres com quem convivi e aprendi. 5 SUMÁRIO RESUMO, 5 LISTA DE IMAGENS, 7 APRESENTAÇÃO, 10 CAPÍTULO 1 – A INFLUÊNCIA EUROPEIA NA MODA E NOS MODOS DAS ELITES NO RIO DE JANEIRO, 14 1.1 A chegada da Corte em 1808 e a europeização dos costumes 14 1.2 Georg Simmel e a Filosofia da Moda: função distintiva, fenômeno urbano 16 1.3 A difusão da moda no Rio de Janeiro 21 1.4 As reformas urbanas na Capital da República no início do século XX 22 CAPÍTULO 2 – AU PARC ROYAL: UMA CASA PORTUGUESA, COM NOME FRANCÊS, 25 CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA DA PUBLICIDADE DO PARC ROYAL: UMA PERSPECTIVA METODOLÓGICA, 42 CAPÍTULO 4 – PRÁTICAS DE COMÉRCIO DO PARC ROYAL, 55 4.1 As lojas de departamento 55 4.2 O Parc Royal: características de um modelo de varejo 59 CAPÍTULO 5 – IMAGENS E REPRESENTAÇÕES NA COMUNICAÇÃO DO PARC ROYAL, 71 5.1 Referenciais de modernidade num projeto comercial 71 5.2 Estratégias de comunicação do Parc Royal 89 CAPÍTULO 6 – CONCEPÇÕES DE GÊNERO, INDUMENTÁRIA E RITUAIS DE SOCIABILIDADE NA PUBLICIDADE DO PARC ROYAL, 102 6.1 Moda e gênero 102 6.2 O traje é o homem 103 6.3 A moda é a beleza da mulher, a mulher é a beleza da vida 111 6.4 Moda e sociabilidade 128 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 134 EPÍLOGO: EM CHAMAS, 142 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 145 6 RESUMO Este estudo versa sobre o Parc Royal, uma loja de departamentos que existiu no Rio de Janeiro entre 1873 e 1943. A pesquisa foi delimitada por um recorte temporal que abrange o período da belle époque (1898-1914) e os anos 1920, um período onde ocorreu um complexo processo de transformações nas esferas da moda, do comércio, da comunicação, das sociabilidades, em pleno curso da modernidade urbana. Vislumbramos o objeto da presente dissertação como pretexto que permite entrever questões mais amplas, tais como a adoção de padrões estrangeiros de civilidade, a disseminação da cultura das aparências e do consumo de bens icônicos, a evolução da indumentária e do arquétipo feminino. Como opção metodológica, contemplamos a análise das representações construídas na publicidade do magazine, em anúncios publicados em diversos periódicos da época. Sob o comando do imigrante português José Vasco Ramalho Ortigão, a atuação do Parc Royal é analisada como um veículo para o entendimento da lógica de funcionamento de parte da sociedade do Rio de Janeiro no início do Século XX, desvelando a adoção de valores, usos e costumes que expressavam os interesses de um determinado grupo social. Palavras-chave: consumo, comércio, comunicação, moda, modernidade. 7 ABSTRACT This dissertation recounts the history of the Parc Royal, a department store that existed in Rio de Janeiro between 1873 and 1943, a time span that included the Belle Époque (1898-1914) and the 1920s, both of which were periods of complex transformations in style, commerce, communication and social mores. Besides examining these changes, the object sheds light on questions such as the adoption of foreign habits of civility, the dissemination of the culture of appearances and consumption of iconic goods and the evolution of ideas of feminine beauty and women’s role in society. The study is based on research of primary sources, consisting mainly of publicity material and news stories about the store at the time. Under the guidance of its main owner, Portuguese immigrant José Vasco Ramalho Ortigão, the picture that emerges from Parc Royal performance provides insight into the values, habits and customs that reflect the interests of the social groups from which the store’s customers were drawn. Keywords: consumption, commerce, communication, fashion, modernity. 8 LISTA DE IMAGENS Fig. 1. Anúncio n’O Malho Nº 738 – Novembro 1915. p. 9. Fig. 2. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 29. Fig. 3. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 29. Fig. 4. Anúncio Revista Careta Nº 72 – Outubro, 1909. p. 38. Fig. 5. Anúncio Revista Careta Nº 146 – Março, 1911. p. 38. Fig. 6. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 61. Fig. 7. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 61. Fig. 8. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 63. Fig. 9. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 64. Fig. 10. Coluna Notas Artísticas da Revista Fon-Fon Nº 29 – Julho, 1911. p. 65. Fig. 11. Página de catálogo publicada na Revista Careta Nº 344 – Janeiro, 1915. p. 69. Fig. 12. Página de catálogo publicada na Revista Fon-Fon Nº 3 – Janeiro, 1915. p. 69. Fig. 13. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 70. Fig. 14. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 74. Fig. 15. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 129 – Outubro, 1919. p. 75. Fig. 16. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 127 – Outubro, 1919. p. 76. Fig. 17. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 124 – Setembro, 1919. p. 77. Fig. 18. Anúncio na Revista da Semana Nº 36 – Outubro, 1918. p. 81. Fig. 19. Anúncio na Revista Careta Nº 769 – Março, 1923. p. 83. Fig. 20. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 87. Fig. 21. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 93. Fig. 22. Anúncio n’O Malho Nº 797 – Dezembro, 1917. p. 95. Fig. 23. Capa da Revista da Semana Nº 38 – Setembro, 1922. p. 98. Fig. 24. Capa do progama do Theatro Municipal - Temporada oficial de 1920. p. 99. Fig. 25. Anúncio na Revista Careta Nº 357 – Abril, 1915. p. 101. Fig. 26. Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 130 – Novembro, 1919. p. 104. Fig. 27. Fotografia de Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ. p. 107. Fig. 28. Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 77 – Outubro, 1918. p. 108. Fig. 29. Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 79 – Novembro, 1918. p. 108. Fig. 30. Anúncio na Revista da Semana Nº 19 - Junho, 1918. p. 110. Fig. 31. Anúncio na Revista da Semana Nº 10 – Março, 1921. p. 110. 9 Fig. 32. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 109 – Junho, 1919. p. 110. Fig. 33. Anúncio n’O Malho - Nº 9 – Novembro 1902. p. 112. Fig. 34. Anúncio na Revista Fon-Fon Nº 12 – Março, 1908. p. 113. Fig. 35. Anúncio na Revista Careta Nº 189 – Janeiro, 1912. p. 113. Fig. 36. Anúncio na Revista Careta Nº 254 – Abril, 1913. p. 114. Fig. 37. Anúncio na Revista Careta Nº 205 – Maio, 1912. p. 114. Fig. 38. Anúncio na Revista Fon Fon Nº 4 – Maio, 1908. p. 115. Fig. 39. Anúncio na Revista Careta Nº 237 – Dezembro, 1912. p. 115. Fig. 40. Anúncios publicados na Revista Careta entre Setembro e Novembro, 1912. p. 116. Fig. 41. Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo Nº 4 – Setembro, 1917. p. 118. Fig. 42. Anúncio na Revista da Semana Nº 21 – Maio, 1921. p. 120. Fig. 43. Anúncio na Revista da Semana Nº 25 – Junho, 1921. p. 123. Fig. 44. Capa da Revista da Semana Nº 47 – Novembro, 1922. p. 126. Fig. 45. Capa da Revista da Semana Nº 49 – Dezembro, 1922. p. 127. Fig. 46. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 90 – Janeiro, 1919. p. 129. Fig. 47. Anúncio na Revista da Semana Nº 4 – Janeiro, 1921. p. 131. Fig. 48. Anúncio na Revista da Semana Nº 23 –Junho, 1921. p. 132. Fig. 49. Anúncio na Revista da Semana Nº 13 - Março, 1922. p. 132. Fig. 50. Anúncio na Revista da Semana Nº 50 – Janeiro, 1920. p. 132. Fig. 51. Anúncio na Revista Careta Nº 469 – Junho, 1917. p. 132. Fig. 52. Anúncio n’O Malho Nº 888 – Setembro, 1919. p. 133. Fig. 53. A Noite Ilustrada - 13/07/1943. p. 143 10 Fig. 1. Anúncio n’O Malho Nº 738 – Novembro 1915 11 Apresentação Às gerações contemporâneas, que já nascem numa sociedade enredada em sofisticada cadeia de consumo, pode parecer simples e natural receber estímulos gerados pela publicidade onipresente, dirigir-se ao shopping center mais próximo e adquirir qualquer peça de vestuário com grife nacional. Contudo, ao investigarmos o processo de desenvolvimento do comércio carioca, com suas redes varejistas sintonizadas no modelo capitalista liberal globalizado, encontraremos evidências históricas de uma atividade impulsionada por estabelecimentos e comerciantes pioneiros que, há mais de um século, desbravaram caminhos que, entre avanços e retrocessos, resultaram na teia consumista atual. A influência do comércio estendeu-se para além da prática mercantil e concorreu para a formação de gostos, desejos e aspirações das elites durante a Primeira República, num período de profundas transformações ocorridas na capital do país. É o caso do Parc Royal, um grande magazine que existiu no Rio de Janeiro entre 1873 e 1943, cujo apogeu verificou-se nas primeiras décadas do Século XX sob o comando do empresário português José Vasco Ramalho Ortigão, filho do renomado escritor José Duarte Ramalho Ortigão - um dos principais integrantes do grupo conhecido como Geração de 1870, movimento gerado por intelectuais portugueses que bradavam revoluções políticas e culturais em seu país. A loja, que comercializava roupa feminina, masculina e infantil, além de acessórios, presentes e artigos para casa, marcou sua posição no imaginário coletivo como sinônimo de elegância e qualidade aliadas a preços competitivos; um local onde se poderia encontrar o que havia de melhor à disposição daqueles que ambicionavam produtos impregnados de novidade, beleza, requinte e modernidade. Em meio à verdadeira revolução que imprimia novas aspirações e códigos de conduta social, o Parc Royal mostrou-se no compasso dos novos tempos que se apresentavam, acompanhando a evolução da moda e dos hábitos da elite, tornando-se um dos atores notáveis da belle époque carioca. Além dos endereços do Largo de São Francisco e da Avenida Central, ambos no Rio de Janeiro, também possuía filiais em Belo Horizonte e Juiz de Fora, e um escritório em Paris, situado na Rue de Trevise nº 41. A trajetória do magazine, incluindo traços biográficos de seu principal sócioadministrador, apresenta-se como um veículo que permite compreender diversas dimensões possíveis da lógica de funcionamento do comércio e da sociedade no Rio de Janeiro, bem como o comportamento e o conjunto das reações da elite no período em questão, num 12 ambiente onde se faziam presentes o avanço tecnológico, o aumento das comunicações, a crença otimista no progresso e a aspiração por ideais de civilidade, importados dos países centrais europeus. A partir dessas noções, ao resgatarmos a história do Parc Royal, nossa intenção é compreender aspectos do mercado da demanda e da oferta, do vestuário, da publicidade, como elementos que tecem conexões com as estruturas socioculturais de uma determinada época, e em que medida também podem ter concorrido para a construção de um modo de vida que encontra ressonâncias na contemporaneidade. Sob um olhar mais detalhado, voltado para um determinado estabelecimento comercial, pretendemos aprofundar o entendimento de sua dimensão social, como uma trajetória que se entrelaça com outras práticas da sociedade. Na direção apontada por Gilberto Freyre, nosso esforço é no sentido de, a partir do estudo de “símbolos e ritos sociais, (...) regras de conduta, modas de trajo e penteado”, além dos outros aspectos já citados, “tentar surpreender e interpretar o que houve de mais íntimo no caráter de uma época”.1 Nosso objeto fornecerá uma perspectiva possível para a análise do processo de mudança dos cenários e comportamentos ocorrido entre o final do século XIX e o início do século XX, provocado pela introdução das novas técnicas e modos de vida. Não ignoramos que a realidade nacional, paradoxal e diversificada, vinha sendo erigida sobre um dilema social que remonta à herança das estruturas escravistas, com sistemas de privilégio e opressão; uma cisão que torna, ainda, parte da população excluída e impedida de fruir plenamente sua cidadania, gerando numa mesma sociedade grupos distintos, vivendo em condições sociais diversas. A análise que empreenderemos está voltada para as representações imbricadas na existência de um comércio elitista, na arquitetura e na localização do empreendimento, nos produtos que ofereciam, na sua mensagem publicitária, na moda e nos hábitos de sua clientela, incluindo o ato de comprar. Nesse sentido, é importante ressaltar que as coordenadas para nossa investigação do modo de organização da sociedade dizem respeito às perspectivas verificadas a partir de um de seus grupos integrantes, qual seja a burguesia carioca. Ao interpretarmos as representações inerentes às suas escolhas, suas afecções e experiências, observaremos como se forjou o estilo de vida de parte daquela coletividade. Em que pesem as referências teóricas utilizadas como subsídios para o aprimoramento da compreensão da época, articularemos nossas análises com fontes, fatos e fotos que dizem respeito especificamente ao Parc Royal. Como fontes primárias de 1 FREYRE, G.Ordem e progresso, pp. XVIII. 13 investigação da presente pesquisa foram utilizados os periódicos Careta, Fon-Fon, FrouFrou, Revista da Semana, D. Quixote, A Noite Ilustrada, O Cruzeiro, Parc Royal Magazine, os almanaques Eu Sei Tudo e Tico-Tico, programas do Theatro Municipal/RJ, memorabilia encontrada em coleções particulares, além de registros do Almanaque Laemmert, Arquivo Nacional, Associação Comercial do Rio de Janeiro e da Jucerja. Uma expressiva quantidade de fotografias do Parc Royal produzidas por Augusto Malta foi encontrada nos acervos do Museu da Imagem e do Som/RJ e no acervo George Ermakoff, corroborando, novamente, a visibilidade e a evidência do desempenho da loja no cenário econômico e social da capital. Nomeado pelo Prefeito Pereira Passos fotógrafo oficial do Distrito Federal (então no Rio de Janeiro) entre as décadas de 1900-1930, o alagoano Malta registrou as transformações ocorridas na cidade no início do século XX, documentando fatos como a inauguração da Avenida Central, a demolição do Morro do Castelo, as Exposições de 1908 e 1922, as obras urbanísticas em geral, além de registros da vida cotidiana e de várias de suas manifestações culturais, entre elas o Carnaval. O Parc Royal não foi o único estabelecimento comercial clicado pelo fotógrafo na época em que esteve na atividade, mas recebeu destaque em meio a toda a sua produção; há imagens da primeira loja no Largo de São Francisco, da segunda loja, na Avenida Central, e da inauguração da nova sede, também no Largo de São Francisco, em 1911, com várias tomadas externas e internas, revelando-se objeto do olhar fotográfico profissional voltado para as eminentes instituições de seu tempo. Além das matrizes escritas, a pesquisa também incluiu entrevistas com membros da família proprietária da loja; tive a oportunidade de obter o depoimento de José de Barros Ramalho Ortigão Junior, sobrinho-neto do ex-proprietário José Vasco Ramalho Ortigão; mesmo atingido por um AVC, José de Barros, enquanto hospitalizado, concedeu um depoimento a sua filha, que foi intermediadora da entrevista, apontada por ela como um estímulo que foi capaz de reavivar a memória de seu pai. Entendemos que a análise da atuação desse estabelecimento, bem como de seu administrador, afigura-se um canal precioso para a compreensão dos modos e estilos de vida das elites urbanas no período da belle époque e na década de 1920, durante a implementação da modernidade, um momento fundamental onde lançaram-se as bases de um modelo de consumo de moda que, em muitos sentidos, continua atual. A proposta desta pesquisa envolve a análise do significado dos anúncios publicitários do Parc Royal veiculados em mídia impressa da época, entendidos como um campo fecundo de representações propício ao entendimento da lógica do sistema a que 14 pertenciam. Minha hipótese é que os anúncios podem se constituir em pistas fecundas para identificarmos o público a que se destinavam, que elementos da estrutura social reproduziam ou glorificavam, quais aspectos de ruptura ou continuidade de padrões suscitavam. O percurso do magazine informa, através da iconografia integrada por seus reclames, as transformações dos referenciais de indumentária e do lugar da mulher na sociedade, além de permitir também o exame de práticas do comércio varejista da cidade, suas estratégias de venda e comunicação, desvelando a construção do hábito do consumo de moda como função social; mudanças de valores, convenções e desejos permeados pela presença de um magazine protagonista do período entre o final do Séc XIX e as primeiras décadas do Séc. XX, testemunha do processo modernizador do Rio de Janeiro. 15 1 – A influência europeia na moda e nos modos do Rio de Janeiro A transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808 foi um ponto de virada, na direção de relevantes mudanças culturais, econômicas e sociais no âmbito colônial. Novos valores, usos e costumes causaram impacto em vários setores da cidade, promovida a sede da Monarquia. Na época da chegada de D. João VI, o Rio de Janeiro possuía as feições de uma quase aldeia, restrita a uma pequena área central suja e insalubre. O comércio era incipiente e a vida social praticamente inexistente, exceto algumas obrigações religiosas. A cidade não exigia muitas variações nos trajes de seus habitantes, portanto cuidar da vestimenta não se incluía entre as preocupações das famílias coloniais; imperava a rusticidade nos costumes. Na descrição de Gilberto Freyre, a indumentária caseira das mulheres de “boa sociedade” aproximava-se daquela utilizada pelas escravas: um “cabeção e chinelo sem meia”.2 Nas raras vezes em que saíam, utilizavam uma mantilha que escondia todo o corpo, sobre saia e camisa. As roupas rebuscadas dos membros da Corte causaram, simultaneamente, estranheza e admiração nos habitantes da cidade. Com a abertura dos portos decretada pelo monarca em 1808, várias inovações convergiram para diminuir a distância entre os padrões de vestuário nobiliárquicos e aqueles de iaiá e ioiô. Uma das reformulações que repercutiu, gradativamente, na evolução da moda, foi a liberação pelo Príncipe Regente da criação de indústrias no Brasil em abril daquele mesmo ano, decretando a suspensão do alvará de 1786 que estabelecia a proibição. Se durante os tempos coloniais a família real portuguesa havia frustrado qualquer iniciativa de construção de uma manufatura têxtil no Brasil - mandando inclusive destruir teares e exigindo até dos governadores o uso de tecidos e couro de sapatos exportados pela metrópole – não havia mais esse impedimento. Os teares brasileiros estavam, portanto, alforriados para fabricar outros tecidos além das fazendas grossas de algodão que destinavam-se em sua maioria ao uso dos negros, única hipótese de produção admitida até então. Na prática, num primeiro momento, a maioria dos tecidos aqui utilizados continuou a ser importada, dessa vez não da metrópole, mas da Inglaterra, que foi muito beneficiada comercialmente com o fim do Pacto Colonial, usufruindo de incentivos fiscais para que pudesse exportar amplamente seus produtos. A população no Rio de Janeiro crescia em 2 FREYRE, G. Sobrados e mucambos, p. 98. 16 ritmo acelerado, e o contingente que habitava a sede do governo – figuras da nobreza, ministros, funcionários burocráticos - criava uma demanda por produtos importados, alavancando o comércio ligado à moda e a itens de luxo. Nos anos subsequentes, um sem número de profissionais franceses fixou-se na cidade, aproveitando a oportunidade de mercado e incentivados pelos tratados de amizade celebrados com a França após o fim do Período Napoleônico (1816). E em 1822, o tratado de abertura comercial estendeu-se às outras nações, inserindo o Brasil num mercado mundial, em proveito dos países europeus que vivenciavam os efeitos da Revolução Industrial. Além do fomento do comércio, a vinda da Corte provocou o fenômeno da europeização dos costumes no Rio de Janeiro, alterando os padrões de sociabilidade, comportamento e vestuário com a adoção de valores estrangeiros. O contato com a aristocracia portuguesa e a burguesia industrial europeia provocou nas classes senhoriais brasileiras uma aspiração à equiparação com aquelas camadas sociais. A adoção da moda e dos modos europeus serviria a dois propósitos; seria um fator de integração, já que, através da aparência, poderiam nivelar-se aos europeus e seria também um fator de distinção, na medida em que evidenciaria diferenciações internas em relação ao restante da população, o “povo miúdo”. Para isso, não bastaria obter sinais de riqueza como dinheiro, propriedades ou o número de escravos: as “boas maneiras”, a adequação no ato de vestir, o cuidado com a aparência e com a higiene tornavam-se referência para uma parte da população que visava a obter sinais distintivos, obedecendo uma espécie de ideologia moral da decência, da respeitabilidade e do bom gosto. Nas palavras de Frédéric Mauro, esse desejo “estava ligado à vontade de diferenciar-se do escravo negro e até do índio, de guardar o selo da Europa, da civilização. Era a marca de um complexo de inferioridade inconfesso e inconfessável em relação ao europeu”.3 A elite passaria a consumir e exibir moda de origem europeia como instrumento de realização de suas aspirações socias; a aquisição e uso de mercadorias fetichizadas seriam o passaporte para a demonstração de um status superior. Essa interpretação vai ao encontro da análise do sociólogo alemão Georg Simmel desenvolvida no ensaio “Filosofia da moda”, publicado em 1905. Simmel considera a moda um fenômeno cultural que condensa duas tendências antagônicas dos indivíduos: a necessidade de pertencimento e inclusão, e a necessidade de diferenciação e auto-afirmação. Para ele, as duas funções básicas da moda seriam justamente unir e diferenciar: 3 MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de D. Pedro II (1831-1889), p. 41. 17 As condições vitais da moda como uma manifestação constante na história da nossa espécie podem assim descrever-se. Ela é imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de apoio social, conduz o indivíduo ao trilho que todos percorrem, fornecem um universal (...). E satisfaz igualmente a necessidade de distinção, a tendência para a diferenciação, para mudar e se separar. E este último aspecto consegue-o, por um lado, pela mudança dos conteúdos, que marca individualmente a moda de hoje em face da de ontem e da de amanhã (...), consegue-o ainda de modo mais enérgico, já que as modas são sempre modas de classe, porque as modas da classe superior se distinguem das da inferior e são abandonadas no instante em que esta última delas se começa apropriar. Por isso, a moda nada mais é do que uma forma particular entre muitas formas de vida, graças à qual a tendência para a igualização social se une à tendência para a diferença e a diversidade individuais (...). (SIMMEL, 2008: 24) Simmel chama atenção para a moda como um produto da divisão de classes, cuja dupla função seria formar um círculo social fechado e, ao mesmo tempo, isolá-lo dos outros: “a moda significa, pois, por um lado, a anexação do igualitariamente posto, a unidade de um círculo por ela caracterizado, e assim o fechamento deste grupo perante os que se encontram mais abaixo, a caracterização destes como não pertencendo àquele” (SIMMEL, 2008: 25). Alargando a discussão sobre o tema, Simmel percebeu a relação estreita entre a vida nas cidades, o individualismo e o desenvolvimento da moda. Inserido na vida metropolitana, o homem desenvolve uma inclinação à busca pela diferenciação individual, ainda que ancorado em determinados parâmetros, a fim de atrair a atenção da esfera social. Para o sociólogo, quanto maior a movimentação de pessoas em círculos sociais mais vastos, quanto mais ampla a participação do indivíduo na vida social, mais acentuada será a necessidade da expressão de sua subjetividade, o desejo de afirmação da personalidade, da auto-realização. A vida moderna, com a sua cisão individualista em meio a múltiplas esferas sociais, acentuaria a exigência por estímulos diferenciadores, acelerando as mudanças da moda no mesmo ritmo da aceleração de seu tempo. Posto que a moda possa ser entendida como um fenômeno interligado à vida nas cidades, no campo imperavam ainda outros valores e marcas de distinção. Como observa Gilda Mello e Souza: 18 Enquanto no grande centro urbano é através do consumo de bens e do requinte de maneiras que julgamos a respeitabilidade de uma classe, o indivíduo tendo necessidade, para atingir um círculo social mais vasto, de acentuar as diferenças sociais nos elementos passíveis de observação direta – como a vestimenta -, no campo, onde o vínculo é comunitário e o grupo suficientemente pequeno, é através do conhecimento efetivo da história de cada um – de sua história familiar, econômica ou social – que situamos o indivíduo nesta ou naquela classe. Os valores preponderantes são, por conseguinte, outros: a ostentação da riqueza espelha-se – como diz Gilberto Freyre, referindo-se ao Brasil, -“nos cavalos ajaezados de prata...no número de escravos e na extensão de terras. (MELLO E SOUZA, 2009: 118) É preciso levar em conta, ainda, a conjuntura do desenvolvimento da moda e do comércio na esfera internacional durante o século XIX. Na Europa pós-Antigo Regime, prevaleceram certos valores aristocráticos que criavam na burguesia uma insegurança em relação à sua posição social, uma vez que não gozavam das prerrogativas decorrentes de regras nobiliárquicas; a moda, o gosto e o modo de vida adotados é que poderiam dar indícios de distinções sociais àqueles que almejavam ser equiparados aos aristocratas. A cultura material assumiu uma importância crescente na cultura burguesa em função dessa identificação de classe, destacando-se o vestuário como um de seus campos que tornava bem evidente o culto às mercadorias como símbolos de status pessoal. Em plena era industrial, o advento da máquina a vapor e as conquistas técnicas aumentaram a capacidade de produção, aumentando a oferta de roupas com menor custo, consequentemente provocando a estruturação de um mercado produtor e distribuidor. A inauguração dos grands magasins veio atender a essa conjuntura da modernidade, quando a dinâmica dos negócios relacionados ao vestuário ganhou uma nova dimensão. O acesso à moda deixou de ser um privilégio de castas e passou a ser difundido junto à classe em ascensão, de acordo com novos valores baseados no êxito individual, e não mais na hereditariedade de títulos da nobreza. Com maior mobilidade e abrangência, a moda passava a atingir um maior número de pessoas, da pequena e média burguesia europeia até as elites abastadas do Rio de Janeiro, que tinham acesso às novidades estrangeiras. Essa espécie de democratização da moda, contudo, não significou uma uniformidade ou igualdade na aquisição e utilização dessas prerrogativas, mantendo-se as diferenças que marcavam abismos em função do domínio do dinheiro, do poder, da aparência, do prestígio e do estilo 19 de vida. A moda passou a ser consumida por um maior contingente populacional, mas ainda estava inserida no universo dos privilegiados. No Brasil, uma sociedade hierarquizada e excludente, a grande massa da população – incluindo-se escravos e seus descendentes, trabalhadores rurais, empregados domésticos, pequenos artesãos, vendedores ambulantes, por exemplo - não tinha acesso à difusão da moda que ocorria na capital nacional, privilégio de “banqueiros, grandes negociantes, políticos, empresários, todos eles de alguma forma proprietários”. 4 Numa escala global, o desenvolvimento tecnológico ocorrido na Europa durante a Segunda Revolução Industrial reforçou laços neocoloniais e consagrou a hegemonia dos indicadores europeus de usos e costumes face aos demais países. Ainda durante o período imperial brasileiro, lançaram-se as bases para a adoção de um modelo europeu de civilização incorporado pelas elites que se alinhavam a uma visão etnocêntrica da cultura europeia. Em relação aos padrões de vestuário e comportamento trazidos pela Corte após a chegada de D. João VI, há que se destacar a inspiração no modelo francês de bom gosto e elegância como influência decisiva. Não só a nobreza portuguesa, mas boa parte do mundo admirava o estilo parisiense, identificado como expressão máxima da civilização, beleza e luxo desde o reinado de Luís XIV, considerado um modelo de refinamento ambicionado por muitos, verdadeiro ideal a ser atingido. A adoção da moda europeia como índice de civilidade perdurou mesmo após a Independência, em 1822; de fato, a inspiração francesa manteve forte influência na fantasia de identificação das elites até a Segunda Guerra Mundial, quando cedeu espaço a outro modelo estrangeiro, dessa vez o norte-americano. O fascínio pelos artigos franceses resultou no predomínio de profissionais daquela nacionalidade nas atividades ligadas à moda. Modistas, chapeleiras, floristas, alfaiates, camiseiras, cabelereiras, joalheiros e até lavadeiras e engomadeiras franceses encontravamse à disposição das classes abastadas. A confecção de vestidos, antes feita por escravas ou pelas próprias senhoras que iriam usá-los, aos poucos passava às mãos de especialistas competentes, conferindo à atividade um caráter profissional. Esses craques da moda francesa elegeram a Rua do Ouvidor para seu domicílio, onde ofereciam de tecidos a perucas, incluindo essências, leques, cosméticos, sabonetes, esponjas, espelhos, pentes e tudo o mais que fosse necessário ao exercício da vaidade e do aprumo da aparência, que conduziriam à aprovação externa e consequente inserção social. Com lojas caras e artigos de luxo, confeitarias, casas de música e livrarias, a burguesa Rua do Ouvidor foi apelidada por 4 NEVES, Margarida de Souza. As vitrines do progesso, p. 11. 20 Machado de Assis de “via dolorosa dos maridos pobres”.5 Principal ponto comercial da metrópole que crescia, o trecho que mimetizava um pedacinho de Paris no Rio recebeu calçamento em 1829 e a inédita iluminação a gás em substituição ao óleo em 1857. O surgimento da imprensa no Brasil, fenômeno também tributável à chegada da Corte em 1808, foi outro fator de peso na propagação da moda no Rio de Janeiro. Os jornais dirigidos ao público feminino exerciam papel preponderante na formação de uma atitude em prol da moda, através da sua divulgação e até da sua justificação. Dirigidas às classes afortunadas, periódicos como O Espelho Diamantino, Jornal das Senhoras, O Recreio do Belo Sexo, Recreio das Moças e A Estação, juntamente com manuais de etiqueta e civilidade que circulavam na cidade, reforçavam o desejo consumista da moda europeia, e o comércio se retro-alimentava. As elites brasileiras acompanhavam, assim, os modismos surgidos no Velho Mundo através da mídia impressa e das vitrines de produtos importados, mas isso não foi suficiente para que a capital se tornasse um espelhamento sofisticado das matrizes. Como lembra Lilia Moritz Schwarcz, ao comentar o período do reinado de D. Pedro II: Não se enganem, portanto, aqueles que pensam que o Rio de Janeiro é Paris. A corte era uma ilha cercada pelo ambiente rural, por todos os lados, e a escravidão estava em qualquer parte. No fundo, a elegância europeia e calculada convivia com o odor das ruas, o comércio ainda miúdo e uma corte diminuta, e muito marcada pelas cores e costumes africanos. (SCHWARCZ, 1998: 116) Se, por um lado, não devemos perder a noção das marcas da realidade nacional à época, é preciso também reconhecer que, guardadas as devidas diferenças, no período imperial houve uma série de alterações na conjuntura da cidade que provocaram o desenvolvimento do comércio e do uso da moda. Ampliaram-se as possibilidades de socialização, antes restrita aos eventos religiosos e às reuniões familiares. Os rituais da Corte, repletos de cerimoniais, festas e recepções, requisitavam a presença feminina nos salões e associavam cada vez mais o ato de vestir e os “bons modos” protocolares à demonstração de riqueza, posição social e poder. Os “cidadãos civilizados” passaram a incluir na agenda compromissos agregadores como festas e saraus nas residências, frequentar restaurantes e teatros e fazer compras nas ruas elegantes da 5 A expressão cunhada por Machado de Assis figura em seu conto “O Lapso”, publicado em 1884. 21 cidade, com pausa para o chá ou sorvete nas belas confeitarias em estilo art-nouveau. Essa nova sociabilidade resultou no processo de exteriorização da mulher. O horizonte social feminino era, até então, deveras restrito; considerada frágil e limitada física e intelectualmente, ela deveria circunscrever-se ao lar, à procriação e às tarefas domésticas, à sombra do cônjuge. Mas sua imagem pública, agora mais exposta nas incipientes oportunidades sociais, operava como um parâmetro da posição social do marido e revelava a condição da família como um todo. O comportamento da mulher nas festas e salões poderia ser um catalisador de prestígio, influenciando inclusive a carreira política ou econômica do marido. O espartilho, armação rígida usada para moldar o corpo da mulher, traduzia fisicamente um aspecto de contenção da atuação feminina, e reforçava a imagem de um ser estático, comprimido e dependente. As peças que compunham a toilette possuíam um corte intricado, repletas de detalhes como rendas, bordados e fitas. Podemos deduzir uma série de outros significados subjacentes à complicação dos trajes femininos: a dificuldade de vestirse pressupunha a ajuda de serviçais, enquanto a pouca mobilidade evocava uma vida sem grandes esforços físicos. Os trajes adotados configuravam-se extremamente inadequados à temperatura dos trópicos, ao corpo das brasileiras e à falta de infra-estrutura da cidade. Algo como tentar caminhar sob o sol de verão nas ruas de Paraty usando um chapéu com abas enormes enfeitado com muitas plumas e flores, sapatos de cetim e saias farfalhantes e compridas, feitas de tecidos pesados e armadas por crinolina,6 que deveriam ser seguradas com uma das mãos para que não arrastassem a volumosa cauda no chão, além de carregar uma sombrinha rendada e uma bolsinha pequena com dinheiro e lenço, tudo isso com gestos elegantes, enquanto esforçavam-se para respirar com os pulmões esmagados nos espartilhos compressores. Para os homens, várias camadas de roupas de lã sob fraques de casimiras inglesas quentíssimas, com cores escuras e sombrias; ceroulas, coletes, camisa de manga comprida com colarinho alto e apertado, luvas, cartola e polainas. Conforto, praticidade e brasilidade não estavam na moda. Inserida num contexto onde o pertencimento a determinado grupo dependia do uso da indumentária obedecendo a regras e padrões estratificados, crescia no Rio de Janeiro uma sociedade de consumo de moda, financiada sobretudo pelo capital proveniente das exportações de café. A partir de 1840, verificou-se a instalação na cidade de indústrias tanto brasileiras como estrangeiras ligadas ao consumo de luxo, que fabricavam itens diversos 6 Estrutura para aumentar o volume das saias. 22 como chapéus, charutos, cigarros, apenas para citar alguns. E a partir da segunda metade do século XIX, iniciou-se no Rio de Janeiro um processo de modernização, com a introdução das ferrovias, dos bondes, de sistemas de água e esgotos, além da inauguração da iluminação a gás. A elite brasileira, ainda bastante ligada ao meio rural, paulatinamente começava a transferir-se do campo para a cidade; os descendentes dos senhores de engenho, depois de formados bacharéis e médicos, se recusavam a voltar para a roça (FREYRE, 1961), e o senhorio rural, que havia se consolidado nas casas-grandes de fazenda, começava a ceder sua posição de influência para uma nova elite urbana que se fortalecia na capital. O crescimento urbano, o desenvolvimento dos transportes, a paulatina transferência da elite brasileira do campo para a cidade, a europeização da vida social, o fomento do comércio, as novas formas de sociabilidade e consequente ampliação da mobilização da mulher, aliados à propagação de informações e valores pela imprensa feminina, podem ser destacados como fenômenos que impulsionaram a difusão da moda no Rio de Janeiro durante o século XIX, dentre o rol de mudanças percebidas sobretudo em dois momentos significativos: o período após a chegada da Corte e o processo de modernização que se iniciou a partir de 1850. Os dados do Almanaque Laemmert - o mais antigo almanaque brasileiro, fonte de registros nacionais de ordem comercial, financeira e social – dimensionam o crescimento das atividades relacionadas ao vestuário na cidade: em sua listagem das fábricas, oficinas, artesanatos e lojas registradas no município constavam 22 lojas de moda na Rua do Ouvidor em 1850; em 1880, o número já tinha subido para 110 lojas.7 Em fins do Séc. XIX, tanto a Abolição (1888) quanto a Proclamação da República (1889) contribuíram para que houvesse uma alteração no quadro de forças políticas e econômicas, alterando a composição das elites, bem como seus valores morais. Com o declínio da economia cafeeira e o aumento das atividades comerciais, o patriarcado rural começou a perder prestígio. Negociantes e burgueses habitantes das cidades, que desenvolviam seu patrimônio desvinculados da propriedade de terras, passaram a compor a elite econômica. Essa nova camada urbana, dissociada das tradições da aristocracia rural, era guiada pelo pensamento racional e positivista, baseada na crença científica e tecnológica, e almejava uma cidade moderna, capaz de se tornar um grande centro cultural e econômico. Afinal, apesar da Abolição e da República consubstanciarem “reformas redentoras” propagadas pelos intelectuais da época, ainda faltava muito para se atingir o nível de civilização idealizado por eles, i.e., para que a sociedade e a cultura brasileiras se 7 RAINHO, Maria do Carmo. A cidade e a moda. Brasília: UNB, 2002, p. 53 23 equiparassem às europeias, ingressassem na marcha do progresso e da civilização e obtivessem um reconhecimento perante as nações centrais do mundo ocidental. Nesse mesmo período, verificou-se um incremento vertiginoso da imigração portuguesa no Brasil. Vários fatores impulsionavam a emigração lusa: em seu país de origem, os portugueses sofriam com a crise agrária provocada pela mecanização do campo, que acarretou o declínio do padrão de vida dos pequenos proprietários rurais e da mão-deobra camponesa. No Brasil, o regime republicano, aliado ao fim do regime escravista e à oferta de melhores salários nos centros urbanos - sobretudo no Rio de Janeiro, onde tinha início a industrialização – criava uma conjuntura que estimulava a imigração dos portugueses. Tudo isso aliado às vantagens de possuírem mesma língua e religião. Na verdade, a política imigratória brasileira havia sido iniciada logo após a Independência (1822), e desde então os portugueses compuseram o fluxo migratório mais duradouro, com auge nas três primeiras décadas do século XX. Enquanto muitos desses imigrantes partiam atraídos pelo sonho de riqueza, outros conterrâneos já se encontravam em situação abastada em terras brasileiras, e ofereciam trabalho a parentes ou patrícios menos afortunados. O período entre 1898-1914 no Rio de Janeiro foi marcado por reformas urbanas e pelo apogeu do afrancesamento da cidade; na denominada belle époque carioca ocorreram fenômenos inéditos, fruto de um potencial de mudança significativo próprio daquele período, ao passo que se mantiveram, paralelamente, tendências de longa duração. Num processo de continuidade, o país reafirmou sua condição colonial sob o comando dos representantes das elites: fazendeiros, comerciantes, financistas e empresários do setor agroexportador. Mas o desejo da elite intelectual e econômica, cada vez mais impactada por ideologias e modelos de comportamentos europeus, era inscrever o país na marcha da Civilização e do progresso, determinando assim, profundas mudanças na Primeira República (1889-1930), entre elas a instauração do processo modernizador na capital do país; se as transformações foram efetuadas pelo Estado, as ideias que as norteavam estavam baseadas no apoio de setores da sociedade que naquele momento constituíam sua elite. De fato, desde a segunda metade do século XIX, a sociedade brasileira essencialmente ruralista e estratificada entre senhores ou escravos, obedecendo a uma ordem latifundiária voltada para o abastecimento do mercado internacional – passou a incorporar uma crescente classe mediana formada por profissionais liberais, funcionários públicos, empregados dos escritórios e pequenos lojistas. O Rio de Janeiro afirmava-se cada vez mais 24 como entreposto urbano, principal porto exportador e importador, e núcleo de uma concentração populacional que aumentava progressivamente. O desenvolvimento do transporte coletivo e a intensificação da vida comercial foram alguns dos fatores provocadores de alterações na configuração da cidade. Mas à medida em que crescia, o Rio de Janeiro padecia de um sistema eficiente de abastecimento de água e esgoto; pelas ruas esburacadas conviviam lixo, carroças e vendedores ambulantes, muitas vezes acompanhados de burros, vacas, galinhas ou peixes, em péssimas condições de higiene. Boa parte da população vivia em cortiços e favelas, mas independentemente do tipo de moradia, epidemias mortíferas como febre amarela, varíola, cólera e peste bubônica ameaçavam a todos. Características coloniais ainda moldavam as feições urbanas e arquitetônicas, e aos problemas de infraestrutura, habitação e de saúde, somava-se o aumento da criminalidade decorrente do descompasso entre o aumento populacional e a oferta de emprego. Se a escravidão e o Império haviam sido deixados para trás, os ideais de humanitarismo cosmopolita que permeavem o arcabouço de grupos intelectuais formados por homens como Machado de Assis, Olavo Bilac, Monteiro Lobato e Silvio Romero não haviam sido ainda atingidos. A necessidade de uma reforma urbana mobilizou, no início do século XX, o poder público, escritores, a imprensa, e a elite que reunia burgueses, comerciantes, arrivistas da especulação financeira e cafeicultores do Sudeste. O pensamento da modernidade, guiado pelo racionalismo, pelo cientificismo e pelas noções de evolução e progresso, face às descobertas tecnológicas que faziam crer no domínio do homem sobre a natureza, foi o combustível que impulsionou as ações daqueles que poderiam tomar decisões. Os dirigentes republicanos desejavam afirmar o Brasil como integrante das nações modernas, visando a atrair empréstimos e investimentos estrangeiros e fomentar a imigração. Para isso, era imprescindível realizar uma reforma urbana que apagasse o indesejado atraso colonialista e inscrevesse a nação no caminho do desenvolvimento. O Rio de Janeiro deveria tornar-se um grande centro cultural e econômico que pudesse absorver e irradiar ao resto do país as grandes transformações que já ocorriam na Europa. O governo Campos Sales (1898-1902) marcou o início de uma era; uma vez atingida a consolidação política, reafirmou as exigências de um tipo de desenvolvimento sob moldes europeus, e suas intenções no sentido de encorajá-lo. Foi sucedido por Rodrigues Alves, que cumpriu mandato entre 1902 e 1906 e levou a cabo as reformas urbanas na capital da 25 República, “como vitrine do regime e das ligações mais eficientes de uma ressurgente economia neocolonial”. (NEEDEL, 1993: 54). O então presidente, Rodrigues Alves, que havia perdido um filho que contraíra febre amarela no Rio, concentrou suas forças na reforma do porto e no saneamento da cidade; nomeou Pereira Passos prefeito e Oswaldo Cruz diretor da saúde pública. A cidade, sede do governo, passaria por uma transfiguração radical, assumindo o papel de metrópole-modelo da modernidade, influindo sobre o modo de vida, comportamentos, novas modas e sistemas de valores. Para fazer seu plano de ação, Pereira Passos inspirou-se nas reformas que GeorgesEugène Haussmann, Prefeito de Paris entre 1853 e 1870, havia concluído na capital francesa. Além da reforma do porto, delegada a Francisco Bicalho, contratou o engenheiro Paulo de Frontin para cuidar do centro, priorizando o alargamento das ruas, o aumento da iluminação e da ventilação, o saneamento da cidade, a execução de jardins nas praças e a edificação de construções em estilo eclético, expressão arquitetônica da École de Beaux-Arts francesa. Lauro Muller, ministro dos Transportes, foi responsável pelo traçado da rota da Avenida Central, símbolo-mor daquela nova era urbana. (NEEDEL, 1993: 62). Cortando as construções coloniais da Cidade Velha, o bulevar com perfil monumental irrompia de maneira ampla e retilínea, em contraste com as antigas vielas estreitas, escuras e fétidas. A avenida foi ocupada de ponta a ponta por prédios majestosos que refletiam o máximo de bom gosto existente e exteriorizavam a grandeza do país. O conjunto de edifícios públicos impressionava: o Theatro Municipal (1909), a Biblioteca Nacional (1910), a Escola Nacional de Belas-Artes (1908) e o Palácio Monroe (1906), esse último destruído em 1976. E os particulares, também impactantes, tiveram seus projetos submetidos à aprovação de um júri, obedecendo a um critério seletivo para manter a unidade visual das fachadas. Com guarnições de ferro fundido e vidro, essas construções formavam um grande monumento ao progresso do país, de acordo com a fantasia neocolonial indexada aos padrões europeus. Havia edifícios de empresas estrangeiras e nacionais, destinados a atividades comerciais e de infra-estrutura, a instituições vinculadas à literatura e belas-artes, a órgãos governamentais, à recreação e ao consumo de produtos importados. O Parc Royal estava entre eles, personificando a “grande vitrine da Civilização”. 26 2 - Au Parc Royal: uma casa portuguesa, com nome francês Au Parc Royal foi inaugurado em 1873 no Largo de São Francisco por Francisco Fernandes da Silva Vianna, começando por um pequeno armarinho no prédio nº 12,8 no lado oposto à igreja de São Francisco de Paula, entre a Rua dos Andradas e o Beco do Rosário. E de acordo com os registros do Almanaque Laemmert, foram várias as composições societárias responsáveis pelo negócio, até a solidificação sob o comando da Vasco Ortigão & Cia., estabelecida em 1911. Ainda durante a gestão da F. Vianna & Cia. (integrada por Hermeterio de Moura Ferro, além do próprio Francisco F. S. Vianna), em 1883, o estabelecimento expandiu-se para o nº 10.9 No ano de 1889 passou à propriedade da M. Nunes & C., formada por José Antonio Marques Nunes, José Vasco Ramalho Ortigão, Manoel Vaz Osorio e Sebastião Lopes da Cruz e, em pouco tempo, ocupou não apenas um, mas quatro prédios: números 8, 10, 12 e 14.10 No nº 8 ficava a seção de camisaria e artigos masculinos; no nº 10 os artigos de armarinho, vestuário e roupas brancas (i.e., roupas íntimas) para senhoras e meninas; no nº 12, o estoque de tecidos como lã, algodão, atoalhados, seda pura e cretone e, no nº 14, a seção de calçados, com variados tipos, modelos e procedência. No livro O Rio de Janeiro em 1900, o jornalista Ferreira da Rosa fez uma espécie de inventário da cidade, descrevendo em pormenores algumas de suas instituições e estabelecimentos comerciais; um dos capítulos foi dedicado ao Parc Royal. O lançamento dessa obra editorial foi destaque em jornais como O Paiz, A Imprensa, O Diário de Notícias, A Tribuna e o Jornal do Commercio, dentre uma atmosfera otimista e ufanista que visava a propagação dos “progressos materiais, o estado da civilização, o movimento industrial, commercial, artístico, em summa, tudo que diz respeito à nossa vasta e rica Capital”.11 Nesse contexto, é possível pensar a inclusão da loja na seleção feita por Ferreira da Rosa como um atestado de reconhecimento do seu desempenho como protagonista no cenário de desenvolvimento urbano, figurando entre os melhores e mais importantes estabelecimentos que corporificavam um adiantamento comercial, num livro cujo conteúdo poderia “tornar o Brasil conhecido no estrangeiro”12, devido ao seu “alto valor como trabalho de propaganda 8 FERREIRA DA ROSA. O Rio de Janeiro em 1900. Rio de Janeiro: edição do autor, 1900. p. 245. Almanaque Laemmert 1883, p. 545. 10 Almanaque Laemmert 1889, p. 887 11 Jornal do Commercio, 14 de Janeiro de 1899, in FERREIRA DA ROSA, O Rio de Janeiro em 1900, 2ª. Edição, p. VIII. 12 A Tribuna, 29 de Janeiro de 1899, in FERREIRA DA ROSA, O Rio de Janeiro em 1900, 2ª. Edição, p. XI. 9 27 em favor do nosso país”.13 O autor enumerou dados como o número de empregados da loja (42), a quantidade de pessoas que a visitava por dia (650 a 700) e a média diária de compradores entre 1898-1899 (279). Numa narrativa que não poupava elogios e exaltação ao magazine, retratava, em suas próprias palavras: É vistoso, bem sortido e bem frequentado. Largas portas, amplas vitrinas, tudo está sempre repleto de amostras de tecidos, artefactos, artigos de moda, objectos de vestuario, guardados por um alpendre envidraçado que parte da soleira das janellas do 1º. Andar, e d’onde pende em horas de sol, comprido store de linho listrado.[...] A freguezia da casa Au Parc Royal é constituida por pessoas de todas as classes sociaes, desde o presidente da Republica até o mais modesto cidadão, porque no seu formidavel sortimento ha mercadorias para todos os preços, ao alcance de todas as bolsas. [...] Tendo adquirido justa e lisongeira fama, é esforço principal dos proprietários do estabelecimento Au Parc Royal manter os seus créditos e para isso não poupam sacrifícios. Em Paris, como em todos os grandes centros fabris, possue esta casa dedicados correspondentes que não deixam escapar uma só novidade [...].Ainda outra circunstancia a distingue: é a de não ter dois preços para a sua fazenda; no Rio de Janeiro foi esta a segunda casa que adoptou preço fixo. [...] Com taes elementos, e administrada com escrupulo, a casa não podia deixar de figurar entre as de primeira ordem. É uma alfandega bizarra, contendo tudo quanto de util, duravel e elegante se pode cubiçar dentro dos limites de suas especialidades. Parabens a quem vê a sua intelligencia, trabalho e capital recompensados por uma clientela que em certas horas de certos dias disputa o direito de adquirir o que ahi a seduz ou pelo preço ou pela qualidade. (ROSA, 1900: 245) O tom do autor promove reflexões sobre a construção do papel do comércio e do consumo como uma espécie de fruição, lazer e fonte de satisfação, revestido da aura de hábito civilizado. Grandes magazines já faziam sucesso em países centrais do mundo ocidental, como as inglesas Harrod’s e Selfridges, as francesas Bon Marché, Samaritaine, BHV e Printemps, e as americanas Macy’s e Bloomingdale’s. Mas a divisão por departamentos não era uma prática comum entre as lojas cariocas; além do Parc Royal, a pioneira Notre Dame de Paris, inaugurada em 1848, marcava sua posição na Rua do Ouvidor como outro estabelecimento com essa configuração. Os nomes desses magazines 13 O Diário de Notícias, Manaus, 4 de Abril de 1900, in FERREIRA DA ROSA, O Rio de Janeiro em 1900, 2ª. Edição, p. XI. 28 brasileiros são um indício da francofilia que predominava no universo do comércio de moda. O mercado elegante se expandia, além da Ouvidor, para as ruas adjacentes Uruguaiana, Gonçalves Dias, 1º de Março e Ourives (atuais Miguel Couto e Rodrigo Silva); nos quarteirões próximos ao Largo de São Francisco, onde situava-se o Parc Royal, havia cafés, restaurantes, e também lojas especializadas em artigos dernier bateau, fortalecendo aquela área como o circuito encantado dos fashionistas. As gôndolas14 da Companhia Fluminense faziam no Largo de São Francisco seu ponto de parada, o que contribuía para o aumentar a circulação na área que já começava a se impor como uma das mais movimentadas do centro da cidade. No Rio de Janeiro, o capital comercial, incorporado pelos recursos financeiros oriundos do café, propiciava o fomento do grande comércio atacadista e varejista, incluindo lojas de produtos importados e os primeiros bancos do país. Grande parte desses empreendimentos pertencia a portugueses que ocupavam posições de destaque nesses setores; entre eles, a família Ramalho Ortigão, proprietária do Parc Royal e de vários outros negócios. O mais notório membro do clã talvez seja José Duarte Ramalho Ortigão (18361915), que permaneceu na terra natal e não emigrou para o Brasil. Nascido no Porto, primogênito de nove irmãos, tornou-se afamado escritor; casou-se com Emília Isaura Vilaça de Araújo Veiga, com quem teve três filhos, todos nascidos na freguesia de Cedofeita, também no Porto: José Vasco (1860), Maria Feliciana (1862) e Berta (1863). Dois de seus irmãos, Joaquim da Costa Ramalho Ortigão e Francisco Duarte Ramalho Ortigão, estabeleceram-se no Brasil. Não sabemos exatamente a motivação que levou parte da família a emigrar, mas é possível que se possa associar ao contexto da grave crise econômica vivenciada em Portugal na segunda metade do século XIX, onde, além da precária situação agrária, a dívida pública, a proletarização do país, os riscos do serviço militar, e certo descompasso em relação às novas ideias das sociedades modernas europeias tornavam o ambiente desfavorável. No Rio de Janeiro, os irmãos Ramalho Ortigão foram bem sucedidos no ramo comercial, tornando-se homens de posses, poderosos e influentes, incorporados à colônia portuguesa local. Joaquim da Costa Ramalho Ortigão chegou ao Rio em 1855, com 14 anos incompletos.15 Casou-se com a carioca Rita Pereira de Souza Barros,16 filha dos Barões de 14 15 Veículos de transporte coletivo com dois andares, puxados por burros. Dados do Museu da Emigração e das Comunidades. 29 Engenho Novo, com quem teve oito filhos. Prosperou no comércio de café e adquiriu o título de Comendador;17 fundou em 1878 a casa comercial Ortigão & Cia. - Comissários de café, da qual foi administrador.18 Foi também Presidente do Real Gabinete Português de Leitura entre 1885-1888,19 diretor do Banco do Brasil, presidente do Centro de Lavoura e Comércio, e presidente da Caixa de Socorros D. Pedro V.20 Francisco Duarte Ramalho Ortigão, por sua vez, casou-se com a brasileira Maria Amélia da Cunha, tiveram dois filhos. E, segundo depoimento que obtivemos de José de Barros Ramalho Ortigão Junior, foi ele, Francisco, quem convidou o sobrinho José Vasco Ramalho Ortigão a também tentar a sorte nos trópicos, onde viria a construir um império comercial. No comando do Parc Royal, José Vasco Ramalho Ortigão promoveu a expansão do estabelecimento inaugurado no Largo de São Francisco, posteriormente ampliado e presentificado em outros canais de venda. Em 1906, em virtude da inauguração da Avenida Central, o magazine abriu uma filial naquele logradouro. A nova loja ocupava a parte térrea do prédio de números 130-132, onde localizava-se a sede do jornal O Paiz (FERREZ, 1906); Os Armazéns do Parc Royal – Secção Avenida reafirmavam a inclusão da empresa no grupo seleto do comércio de primeira linha que exibia, agora na Avenida Central, o auge dos referenciais de beleza, requinte, modernidade e civilidade. A Rua do Ouvidor manteve seu comércio elegante, mas o imenso bulevar inaugurado em 1905 desbancou seu posto de único polo comercial mais chique da cidade. Ancorando lojas mais espaçosas, instaurou um novo centro de prestígio para o comércio de luxo, atraindo consumistas e amantes do footing em geral, que celebravam a cultura eurófila exibindo-se nos redutos burgueses por excelência. Disponível em: http://www.museu-emigrantes.org/ramalho-ortigao.htm BARATA, Carlos Almeida e BUENO, Antônio Henrique Cunha. Dicionário das Famílias Brasileiras. São Paulo, Ed. Árvores da Terra: 2001. p. 2128. 17 BARATA, Carlos Almeida e BUENO, Antônio Henrique Cunha. Dicionário das Famílias Brasileiras. São Paulo, Ed. Árvores da Terra: 2001. p. 1869. 18 ARQUIVO NACIONAL (Brasil), Contrato de Sociedade Mercantil de Ortigão & Cia., Rio de Janeiro, 1402-1889. 19 Dados do Real Gabinete Português de Leitura. Disponível em: http://www.realgabinete.com.br/portalweb/Home/Presidentes/tabid/69/language/ptPT/Default.aspx 20 Cadernos do CHDD / Fundação Alexandre de Gusmão, Centro de História e Documentação Diplomática Ano III, No. 5. – Brasília, DF: A Fundação, 2004. P. 97. 16 30 Fig. 2. Senhoras olham vitrines do Parc Royal na Av. Central Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ O provável êxito das vendas culminou na inauguração de novas e imponentes instalações em Fevereiro de 1911: mantendo-se no mesmo Largo de São Francisco, o Parc Royal transferiu sua sede do trecho entre a Rua dos Andradas e o Beco do Rosário para o lado oposto, passando a ocupar um quarteirão inteiro. O prédio da nova loja acompanhava toda a extensão da rua que hoje leva o nome da família, Ramalho Ortigão (ex-Travessa São Francisco de Paula), desde a Rua do Teatro até a Rua Sete de Setembro, com “140 janelas, 48 vitrines externas, 5 portas de entrada e 32 seções de venda” (DUNLOP, 1963: 25). No mesmo local, antes havia um prédio construído em 1814 para o hospital da Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, demolido para a edificação do Parc Royal. Fig. 3. A nova sede do Parc Royal inaugurada no Lgo. S. Francisco em 1911 Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ 31 Além do Rio de Janeiro, a loja tinha filiais em outras cidades, igualmente em logradouros nobres. Em Belo Horizonte, o Parc Royal situava-se no prédio projetado pelo arquiteto Luís de Morais, inaugurado em 1921 na Rua da Bahia nº 894. O edifício, em estilo eclético, está protegido desde 1994 pela Secretaria Municipal de Cultura e hoje é ocupado pela Caixa Econômica Federal. A filial mineira inclusive marca presença no poema A tentação de comprar, de Carlos Drummond de Andrade: Com anúncios de página inteira (coisa nunca vista nos sertões) inaugura-se na Rua da Bahia o fabuloso Parc Royal. Três andares das mais finas futilidades vindas diretamente da Rue de la Paix. Seu Teotônio Caldeira, gerente, manipula novas técnicas de vender As virgens loucas compram compram compram e as mães das virgens loucas, outro tanto. Pais de família, em pânico, vêem germinar no solo imáculo de Minas a semente de luxo e desperdício. Nada podem fazer, cruzam os braços: O Parc Royal tem como padroeira nada menos que Nossa Senhora da Conceição. - Meu pai, posso botar na sua conta três camisas de seda, um alfinete de gravata? - Até você, meu filho, até você?! (ANDRADE, 1986: 207) Em Juiz de Fora, a loja Parc Royal situava-se na Rua Halfeld nº 807; e havia ainda um escritório em Paris, na Rue de Trevise nº 41, responsável pelo envio das mercadorias importadas sob encomenda, compradas diretamente no centro da moda mundial. Conforme anúncio na Revista Fon-Fon: Todas as mercadorias estrangeiras são compradas pela sua succursal de Paris, a dinheiro à vista, directamente dos fabricantes. A perfeita 32 organisação d’esta succursal offerece como vantagens immediatas para os freguezes do Rio, a melhor escolha possível de todas as mercadorias, a remessa immediata de todas as novidades, e o barateamento successivo dos preços que naturalmente decorre da ausencia de comissões a intermediarios, e muitas outras despezas que oneram as compras feitas por outros processos.21 No romance Clara dos Anjos, Lima Barreto externa sua crítica à segregação e ao preconceito racial e social, numa minunciosa crônica da cidade e do seu tempo, durante o início do século XX. Nessa obra, o autor faz menção ao Parc Royal durante a incursão do vilão Cassi Jones ao centro, quando descreve a área nobre do comércio elegante da cidade. O magazine figura como epicentro do sonho de consumo no Rio de Janeiro, provocando a admiração de seu personagem: Entrou pela rua Sete de Setembro e, daí em diante, foi admirando as roupas feitas - por toda a longa fachada do Parc Royal, foi parando diante das vitrines, onde havia roupas e outras peças de vestuário, para homens. Viu fraques, viu suspensórios, viu ligas, viu colarinhos, viu camisas... Que coisas lindas! (BARRETO, 2012: 258) Rubem Fonseca, por sua vez, cita o Parc Royal nas memórias autobiográficas que escreveu para seu sítio na Internet, na coluna Lado B: Pensamentos imperfeitos, sob o título José – uma história em cinco capítulos,22 publicada em 2004. Posteriormente, o conjunto dessas crônicas integrou também as coletâneas O romance morreu23 e José.24 O autor - cujo nome completo é José Rubem Fonseca - reconhecidamente avesso a entrevistas, relembra episódios da sua infância e juventude, e inclui o magazine, que fora local de trabalho de seu pai: O pai de José, Alberto, e sua mãe, Julieta, dois jovens imigrantes portugueses, haviam se conhecido no Rio de Janeiro, quando Alberto trabalhava no magazine Parc Royal e Julieta em A Moda, uma elegante loja de roupas femininas. 21 Revista Fon-Fon Nº 15 - Abril 1909 Disponível em: http://www.portalliteral.com.br/blogs/pensamentos-imperfeitos-jose-uma-historia-em-cincocapitulos-2 23 FONSECA, Rubem. O romance morreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 24 FONSECA, Rubem. José. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 2011. 22 33 O Parc Royal fora fundado em l875, pelo português Vasco Ortigão, filho do conhecido escritor português Ramalho Ortigão, e tornara-se em pouco tempo o mais importante estabelecimento comercial do Rio, com inovações que cativaram os consumidores, como a exibição dos preços de todas as mercadorias e a distribuição de catálogos ilustrados. O prédio da loja, que ocupava um quarteirão inteiro da rua que um dia se chamou Rua das Pedras Negras e depois receberia o nome de Ramalho Ortigão, entre a rua Sete de Setembro e o largo São Francisco, possuía 140 janelas, 48 vitrines externas e 5 portas de acesso. Alberto, que era muito trabalhador, como a maioria dos imigrantes, e sendo particularmente dedicado à firma, alcançou na mesma o posto de gerente, certamente com alguma participação nos lucros, o que lhe permitiu economizar o suficiente para estabelecer o seu próprio negócio. (FONSECA, 2007: 168). A referência ao magazine encontrada nas citadas obras da literatura brasileira, efetuada por autores representativos da produção nacional, contribui para delinear a importância e o lugar que o Parc Royal ocupava no imaginário coletivo de todos os que, de alguma forma, tiveram pontos de contato com sua existência. O processo de “Regeneração” do Rio de Janeiro, calcado na ideia do “bota-abaixo”, afetou toda a população, mas de maneira desigual, acentuando a cisão social que instauravase como efeito constitutivo da nova ordenação republicana. Enquanto alguns ascendiam na escala social e se beneficiavam da reforma urbanística, outros eram expulsos para os morros e cortiços, segregados e identificados como foco de problemas que ameaçavam a cidade moderna, tais como epidemias, sujeira, ócio, criminalidade, ignorância e “cultura primitiva”. As reformas eram calcadas em crenças e fantasias acerca da Civilização através da europeização, mas traziam em si uma negação de antigas tradições, bem como uma condenação de aspectos raciais e culturais da realidade nacional associadas pela elite a um passado colonial que deveria ser deixado para trás. A importância crescente do papel da cultura franco-inglesa na esfera das instituições domésticas da elite carioca não está dissociada de um processo contínuo de influência estrangeira no Brasil; contudo, se os eflúvios da cultura europeia sempre ecoaram em terras nacionais desde o descobrimento, a vinculação do país com um mercado mundial centrado no hemisfério Norte foi decisiva para o apogeu da absorção dessas práticas culturais na virada do século XX. As mudanças sócio-econômicas que ocorriam no Rio de Janeiro durante aquele período, bem como a complexidade dos hábitos da alta sociedade, não 34 podem ser compreendidos fora do âmbito das relações neocoloniais em que se estabeleciam. Nesse contexto, à medida em que se expandiam a riqueza e as possibilidades de comunicação, ganhava força a tendência de longa duração da identificação aos referenciais estrangeiros como elemento essencial na cultura e sociedade de elite. O desenvolvimento do comércio de moda sofisticada na época em questão é um elemento no desenvolvimento mais amplo da economia na capital, cujo crescimento ocorria paralelamente à urbanização e às transformações tanto concretas quanto simbólicas. Os interesses da classe dominante visavam à adoção de padrões civilizatórios que as inscrevesse, assim como o país, no “concerto das nações” consideradas de alto desenvolvimento humano, e a moda estava inserida entre as manifestações estéticas que faziam parte desse processo. Mais do que uma função de proteção ou pudor, o ato de vestirse e a maneira de construir a aparência constituem atribuições de significação, capazes de traduzir um estilo de vida, uma posição social, uma geração, ideias e sentimentos; a moda evolui associada às correntes artísticas e arquitetônicas, aos princípios morais, ao código social de determinado espaço-tempo e às suas estruturas. Na capital moderna, o ato de fazer compras nas vias de comércio sofisticado assumia, no início do século XX, um caráter de lazer; a Rua do Ouvidor e arredores, assim como a Av. Central, personificavam um espaço de sociabilidade da “elite civilizada”. O consumo de moda, especificamente, além de preencher o horário disponível das “senhoras elegantes”, consolidava outras funções sociais, uma vez que a exibição de determinada indumentária em conformidade a códigos estrangeiros representaria um índice de civilidade e uma estratégia de deferenciação caras às altas camadas da sociedade carioca. Ao poder distintivo da moda, capaz de incluir ou excluir os indivíduos em círculos sociais, somava-se ainda um crescente interesse pela novidade no compasso dos tempos modernos; uma legitimação das inovações a partir da ruptura com a valorização de tradições passadas, uma exaltação “moderna” do Novo em contraposição à reprodução do passado coletivo de feições coloniais. A atuação do Parc Royal no Rio de Janeiro ilustra esses aspectos de modo paradigmático – a edificação de um templo de consumo que era local de encontro e exibição da alta sociedade, um centro de produtos imbuídos de atributos simbólicos, capazes de exercer funções distintivas na esfera socio-cultural a partir de sua cobiça, aquisição, posse e exibição. No magazine encontrava-se a moda que corporificava o referencial europeu, ao qual eram atribuídas feições de Civilização e modernidade, além de acessórios e artigos para casa que acompanhavam os novos padrões. A loja anunciava reiteradamente a importação 35 das “últimas novidades de Paris”, uma seleção que indicava o quanto a elite carioca estava permeada pela fetichização de mercadorias baseada numa fantasia de identificação europeia. Entendido como o revestimento dos objetos destinados à venda com valores ideológicos,25 o fetichismo de mercadorias esteve presente desde o século XIX na cultura burguesa que emergia sob o capitalismo europeu como um meio de reprodução da cultura aristocrática franco-inglesa. Ainda que isso pareça contraditório, após a Revolução Francesa a ascensão da burguesia não significou um rompimento com valores aristocráticos; pelo contrário, a estrutura de classe menos rígida criou entre a burguesia certa ansiedade em relação ao seu status social, já que não possuía uma legitimidade estabelecida como a nobreza. Os preconceitos de classe permaneceram na sociedade, assim como uma necessidade de distinção; os burgueses, apesar da destruição da antiga corte, cultivavam um desejo de equiparação à aristocracia e buscavam a afirmação de um status superior. Para se distinguirem no anônimo cenário urbano e afirmarem sua condição “respeitável”, as camadas mais altas da burguesia adotariam um modo de vida e um gosto distintos, semelhantes aos padrões aristocráticos, como forma de promoverem sua asserção social. O uso de determinado vestuário incluía-se como uma das formas simbólicas de consagração entre os “melhores” nas sociedades ainda dominadas por referenciais da nobreza. Além da permanência desses valores, a crescente industrialização, as mudanças na capacidade da indústria têxtil e a formação de um mercado urbano concorreram para impulsionar o “motor” da moda na cultura burguesa. Os efeitos da chamada Revolução Tecnológica (1870) foram sentidos nas alterações no padrão do comportamento e no quadro de valores da sociedade ocidental, quando o mundo assumiu uma configuração do modo de vida semelhante à que presenciamos na atualidade. Em meio ao impacto causado pela aceleração da vida moderna e o crescimento das cidades, os sinais externos passavam a ser a forma mais rápida e direta de identificação interpessoal. Nicolau Sevcenko chama atenção para esse aspecto do consumo como decorrência das novas sensibilidades e percepções geradas na modernidade, onde a visão e a aparência externa assumem uma proporção maior no julgamento de outrem: As pessoas são aquilo que consomem. O fundamental da comunicação – o potencial de atrair e cativar – já não está mais concentrado nas qualidades humanas da pessoa, mas na qualidade das mercadorias que ela ostenta, no capital 25 O conceito de fetichismo da mercadoria aparece nas obras de MARX “The fetichism of commodities and the secret thereof” (p. 215-25) in NEEDEL, 1993: 187. 36 aplicado (...) em vestuário, adereço e objetos pessoais. (...) Em outras palavras, sua visibilidade social e seu poder de sedução são diretamente proporcionais ao seu poder de compra. (SEVCENKO, 2009: 64). A ascensão do magazine nas décadas de 1910 e 1920 sob a administração de José Vasco Ramalho Ortigão pode ser pensada em termos de uma combinação de investimento, localização, sortimento, divulgação, custo e gestão eficientes, e no encontro entre a oferta e a demanda dos produtos oferecidos; uma conexão entre o que estava à disposição e os desejos daqueles que o podiam adquir. É mais fácil entender a expansão da loja se ela for encarada como um microprocesso inserida no macroprocesso de transformação do Rio de Janeiro, onde se instaurava a “marcha do progresso” regida por matrizes estrangeiras sob um modelo liberal capitalista, onde o florescimento do consumo e da moda ecoavam a reprodução de um ideal de Civilização universal baseado na cultura franco-inglesa. A duplicação desses fenômenos foi possível dentro das limitações sócio-econômicas verificadas na capital brasileira; embora houvesse uma difusão do culto às mercadorias importadas, o luxo não era para todos. Na crônica “As mariposas do luxo”, o escritor João do Rio descreve o encanto de moças humildes face às vitrines repletas de artigos de moda; podemos imaginar as “mariposas”, por exemplo, diante do Parc Royal. O desejo de consumir, o fascínio pelos produtos e toda a frustração diante da impossibilidade de sua aquisição deixam transparecer incongruências da realidade brasileira: A rua não lhes apresenta só o amor...Apresentalhes o luxo. E cada montra é a hipnose e cada rayon de modas é o foco em torno do qual reviravlteiam e anseiam as pobres mariposas. (...) Quanta coisa! Quanta coisa rica! (...) Morde-lhes a alma a grande vontade de possuir, de ter o esplendor que se lhes nega na polidez espelhante dos vidros. (DO RIO, 2007: 126) A “Feira das Tentações” estava acessível apenas àquela parcela da população com condições financeiras de arcar com o desejo consumista adornado por joias, plumas, rendas e flores, as camadas mais altas da sociedade. Para elas, o Parc Royal proporcionava o acesso à cultura eurófila através de suas mercadorias importadas; poder consumir naquela loja era considerado um privilégio, em função da identificação cultural que atribuía ao ato de flanar, 37 comprar e vestir itens da “última moda” a gratificação da dignidade de um padrão civilizatório. Ao anunciar seus produtos, o Parc Royal ressaltava reiteradamente as prerrogativas de “elegância”, “distinção”, “beleza” e “novidade”, bem como a origem europeia dos modelos e/ou tecidos utilizados. A eleição do magazine torna evidente o apreço dos membros da elite pelos produtos importados de luxo e a absorção dos paradigmas francoingleses na moda carioca. Entre os grupos abastados, e também para as camadas médias que emergiam na cidade, havia uma demanda por um estilo de vida que correspondia àquele oferecido pela loja através de seus artigos à venda; consumir e exibir a moda do Parc Royal ía ao encontro dos padrões de comportamento e de sentimento de parte da sociedade daquela época, motivando o sucesso comercial do estabelecimento. Paralelamente à evolução dos seus negócios, José Vasco Ramalho Ortigão, assim como seu tio Joaquim da Costa, revelava-se atuante em associações portuguesas e na sociedade carioca. O movimento associativo português esteve presente no Brasil desde o período colonial e ganhou projeção no Rio de Janeiro, à medida em que a capital consolidava seu perfil mercantil. Instituições beneficentes e filantrópicas, culturais e recreativas colaboravam na manutenção da coesão e da identidade da comunidade portuguesa, e contavam com o empenho de personalidades pró-ativas para sua organização e consolidação. Na investigação de traços biográficos de José Vasco R.O., foram encontradas evidências de sua participação em diversos eventos da esfera luso-brasileira, corroborando a hipótese de sua notoriedade e influência social. Nesse sentido, podemos pensar em seu comportamento como exemplar de uma biografia modal nos termos da definição de Giovanni Levi,26 ou seja, um percurso individual que ilustra uma forma típica de status. O sócio-administrador do Parc Royal era um imigrante português bem sucedido, comerciante, inscrito na vida social do seu tempo, membro da nova elite urbana que, entre outras práticas distintivas (por exemplo, a preocupação com a aparência e o uso de signos específicos), afirmava seu poder através da capacitação profissional e do fomento às atividades estéticas e culturais. O historiador americano Jeffrey Needell, ao descortinar o comportamento e os valores socio-culturais da alta sociedade carioca no período da belle époque, resgata 26 FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p. 175. 38 percursos individuais de personalidades pertencentes àquela camada como uma via enriquecedora para a produção de conhecimento histórico: Neste exame das trajetórias dos membros do “alto mundo” da belle époque, foram delineadas as bases e a natureza de grande parte deste mundo. Cada uma dessas pessoas contribuiu para fazer da alta sociedade o que ela era: uma existência de luxo e requinte que se baseava preponderantemente em modelos culturais estrangeiros. Elas assim o fizeram, no entanto, como parte de carreiras inseparáveis da realidade nacional na qual estavam imersas, (...), ao longo do período em que se registrava o surto de expansão da economia urbana, quando se criava a infraestrutura do país e se promoviam as reformas urbanas do Rio (...).(NEEDEL, 1993: 127-128). Entre as figuras notórias investigadas, o autor incluiu Rui Barbosa, Inglês de Souza, Bebê Lima e Castro, Pinheiro Machado, Laurinda Santos Lobo e Ataulfo de Paiva. Analogamente, nossa intenção no resgate da história do Parc Royal e de José Vasco Ramalho Ortigão é iluminar pontos de análise da elite carioca, levando-se em conta aspectos que podem colaborar para o entendimento de um modo de vida. Afinal, ainda que o foco seja sobre apenas uma parte da sociedade, o próprio Needel destaca o alcance de suas ações: A aparente frivolidade perceptível em muitos aspectos da cultura da elite não deve obscurecer o processo no qual ela desempenhou importante papel. Nos limites deste pequeno mundo manifestava-se a dinâmica da transformação do país. (NEEDEL, 1993: 129). A imprensa e as revistas mundanas contribuíam na determinação dos costumes e hábitos que corporificavam uma sociedade civilizada e cosmopolita. Entre os novos parâmetros, a visibilidade e a exposição pública eram ao mesmo tempo divulgadas e vigiadas por esse veículos da mídia; os colunistas sociais poderiam reforçar ou denegrir a imagem dos atores que participavam do desfile social. A presença da família de J.V.Ramalho Ortigão nas colunas dos periódicos Careta e Fon-Fon reforça sua identificação como uma reconhecida personalidade da cidade; ter uma foto de corpo inteiro era um indício de homenagem às pessoas de prestígio social. Entre os exemplos encontrados na pesquisa iconográfica, há uma foto de sua filha Maria Amélia, pomposamente vestida, em pleno flagrante da Careta do footing na Av. Central: 39 Fig. 4. Revista Careta Nº. 72 – Outubro, 1909 Na ocasião da inauguração da nova sede no Lgo. S. Francisco em 1911, os sócios e membros da família ocuparam uma foto de página inteira no mesmo periódico, posando nas escadarias da loja: Fig. 5. Revista Careta Nº. 146 – Março,1911 Em diversas ocasiões que mobilizavam a cidade, o Parc Royal se fazia de alguma forma presente e, consequentemente, destacava-se no noticiário. Entre outros exemplos, no 40 funeral do Barão do Rio Branco em 1912, o magazine ofereceu uma coroa de flores, e ganhou uma foto na revista Fon-Fon.27 No tricentenário da morte de Camões (1880), “uma plêiade de portugueses do Rio de Janeiro, de sólida formação intelectual e de grande prestígio, como [...], José Vasco Ramalho Ortigão e outros, resolve fazer da participação da “colonia” nas celebrações camonianas um contraponto às disputas e à mesquinhês de além-mar”.28 O grupo do Real Gabinete Português de Leitura fez questão de comemorar ostensivamente a efeméride, sublinhando uma posição contrária ao desdém que Portugal, naquele momento, reservava à saga dos descobrimentos e ao poeta. Além de deixar entrever seu posicionamento político, José Vasco Ramalho Ortigão parecia valorizar também manifestações artísticas e culturais, e era reinvindicado para integrá-las. Em 1903, fez parte da comissão de Conselheiros convidados por Pereira Passos para realizarem a Batalha das Flores29 no jardim da Praça da República (Campo de Santana), até então pouco frequentado. O prefeito visava, além da reforma física do espaço, oferecer outras oportunidades de lazer, numa tentativa de regulamentar e conter a manifestação popular que era o carnaval. Tratava-se da remodelação dos costumes, voltada para formas de cultura e religiosidade que não se encaixassem nos novos parâmetros de civilidade. Afinal, a reforma urbana que caracterizou o período da belle époque (1898-1914) visava não somente à promoção de mudanças práticas de saneamento, planejamento urbanístico e arquitetura, mas igualmente mudanças simbólicas, através da implementação de signos de civilização manipulados pelo poder público e pelas elites de modo a causar impacto na população. A Batalha das Flores era uma tradição francesa, consistia no desfile de carruagens integradas por moças e rapazes, que atiravam flores uns contra os outros, e também contra os espectadores. Era necessário pagar pela entrada, e também por assentos,30 o que tornava a festa mais elitista. Na comissão de Conselheiros, figuravam nomes de peso, além do próprio José Vasco: Souza Aguiar, Ataulpho de Paiva, Paulo de Frontin, Eugênio Gudin e Hermes da Fonseca, entre outros. No Rio de Janeiro, a Batalha das Flores ocorreu durante alguns anos, mas nas décadas seguintes não se impôs à maneira carioca de comemorar espontaneamente o carnaval. 27 Revista Fon-Fon - Nº 11, Março/1912 COSTA, Antonio Gomes da. “Catedral da Cultura Portuguesa” in Revista Camões no. 11, Centro Virtual Camões / Instituto Camões – Portugal, 2000. p. 52 29 DUNLOP, Charles. Rio Antigo – Vol. I. Rio de Janeiro: Rio Antigo, 1963. p. 25. 30 DUNLOP, Charles. Rio Antigo – Vol. I. Rio de Janeiro: Rio Antigo, 1963. p. 26. 28 41 Em 1908, o empresário foi convocado também por José Veríssimo para a formação de uma outra comissão, dessa vez para a edificação de um monumento a Machado de Assis, que havia falecido em 29 de Setembro daquele mesmo ano; o convite foi formalizado em sessão da Academia Brasileira de Letras.31 Naquele mesmo ano, a Exposição Nacional em comemoração ao centenário da abertura dos portos (1808) mobilizava autoridades e a população. Promovida pelo Governo Federal entre janeiro e novembro, a mostra pretendia exibir ao mundo o desenvolvimento nacional, em pontos selecionados como a urbanização realizada por Pereira Passos, Lauro Müller, Paulo de Frontin e o saneamento promovido por Oswaldo Cruz, incluindo as novidades industriais. A Praia Vermelha, na Urca, sediou grandes pavilhões palacianos, quase todos demolidos anos depois, que representavam os estados brasileiros e Portugal, país convidado. Numa estrutura que incluía, além dos pavilhões, restaurantes e teatro, o progresso era revelado e entregue ao público como prova das conquistas promovidas com o ideal positivista. O Parc Royal ocupava uma sala do Palácio das Indústrias da Exposição, ampliando ainda mais sua visibilidade junto à frequência que lotava os espaços, ao mesmo tempo em que agregava ao magazine e seus produtos uma imagem de modernidade, inovação e estado da arte. A loja foi contemplada com medalha de prata na categoria “Chapéus para homens, senhoras e crianças”, além de obter o Grande Prêmio nas categorias “Produtos de alfaiate e costureiras” e “Roupas brancas para homens, senhoras e crianças.”32 José Vasco Ramalho Ortigão mantinha, ainda, ligações com o universo musical. Promoveu performances e saraus no interior de sua loja;33 anunciava no verso de partituras e nas capas dos programas do Theatro Municipal, imprimindo um valor cultural à marca, enquanto atingia o público-alvo requintado que frequentava os espetáculos. Ocupou a presidência do Clube Euterpe, localizado no sobrado da Rua do Teatro nº. 33, onde teve a oportunidade de alavancar talentos. Foi ele quem fez uma proposta-convite à musicista Chiquinha Gonzaga para que ela se tornasse sócia-honorária,34 garantindo sua presença nas reuniões, soirées lítero-musicais e concertos organizados pela agremiação. Chiquinha, por 31 Ata da sessão de 14 de novembro de 1908. Almanaque Laemmert, 1909, p. 2384. 33 Em 1911, a cantora francesa Eugénie Buffet apresentou Les Grimaces num tablado colocado na sede do magazine, acompanhada de piano, diante de uma plateia que lotou os dois andares para prestigiar o evento, conforme registro da Revista Fon-Fon - Nº 29 – Julho 1911. 34 DINIZ, Edinha. Chiquinha Gonzaga, uma história de vida. Rio de Janeiro: Ed.Rosa dos Tempos, 1991. p. 174 32 42 sua vez, quando tornou-se sócia e diretora de concertos do Clube, dedicou a ele em 1899 a valsa “Falena”, de sua autoria.35 Em relação à vida privada de José Vasco Ramalho Ortigão, alguns detalhes foram expostos em relato concedido por José de Barros Ramalho Ortigão Junior, seu sobrinhoneto: José Vasco era casado com uma espanhola, mas apaixonou-se por Amélia Marques, funcionária da loja, e separou-se para viver com ela. Segundo ele, essa atitude, considerada escandalosa na época, causou o afastamento de outros membros da família Ramalho Ortigão. Tiveram dois filhos, José Duarte Ramalho Ortigão Junior (1886) e Maria Amélia Ramalho Ortigão (1893). Considerando o citado aspecto matrimonial, José Vasco Ramalho Ortigão personificaria um caráter de exceção, numa sociedade onde o distrato conjugal não era comum, nem visto com bons olhos; não obstante, pela sua trajetória, podemos concluir que suas escolhas pessoais não foram impeditivas de êxito. 35 Dados do “Acervo digital Chiquinha Gonzaga”. Disponível em: http://www.chiquinhagonzaga.com/acervo/partituras/falena_piano.pdf 43 3 – Análise de discurso crítica da publicidade do Parc Royal: uma perspectiva metodológica Durante o processo de investigação, o conjunto do material publicitário do magazine levantado na pesquisa iconográfica evidenciou algumas especificidades que destacaram-se a priori: a quantificação, a diversidade de veículos escolhidos pelo anunciante e a identidade visual dos reclames ilustrados por Manoel de Mora. Em relação aos seus mais evidentes concorrentes nas décadas de 1910 e 1920, Casa Colombo, Á Brasileira e Notre Dame de Paris, localizados respectivamente na Av. Central, no Largo de São Francisco e na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, o Parc Royal excedia os demais competidores em investimentos publicitários; apuramos 317 anúncios da loja publicados no período, nos periódicos Careta, Frou-Frou, O Malho, Revista da Semana, D. Quixote, Fon-Fon e almanaques Eu Sei Tudo e Tico-Tico, uma quantidade e um sortimento de veículos expressivos, superiores aos encontrados dos outros magazines. Além das propagandas em revistas, foram resgatados também reclames em capas de programas do Theatro Municipal e no verso de partituras musicais, cartões-postais personalizados bem como outras formas de divulgação que detalharemos no capítulo a seguir. No presente momento, faz-se mister esclarecer os motivos da opção metodológica que contempla o exame do material publicitário do Parc Royal como um meio capaz de permitir a observação de uma época e a derivação de contextos, mormente o que diz respeito ao entendimento do consumo de moda e acessórios de luxo como um processo sociocultural. A investigação dessa produção de propaganda pode clarificar aspectos de uma lógica cultural que orientava a reprodução daquela sociedade. Ao promover um debate em torno das razões simbólica e prática, Marshall Sahlins afirma que “a efetividade material somente existe na medida e na forma projetada por uma ordem cultural” (SAHLINS, 2003: 184), e demonstra que produção e consumo não são resultado somente de determinações objetivas, mas sim de uma razão cultural que incorpora a esfera da intencionalidade subjetiva. Para além da influência de uma razão prática e utilitarista, nossas formações sociais são atravessadas por nossos simbolismo, mitologia, totens e magias (ROCHA, 2010: 194). O consumo nas sociedades modernas é uma questão cultural: “[...] as chamadas necessidades básicas são inventadas e sustentadas na cultura. Esse é o esclarecimento, a grande descoberta da antropologia” (DOUGLAS ISHERWOOD, 2009: 15). e 44 Além dos autores acima citados, Colin Campbell também promoveu investigações teóricas acerca do consumo simbólico, desenvolvendo uma visão que associa consumo e prazer; em função de atributos e significados intangíveis atribuídos aos produtos pela publicidade, eles tornam-se capazes de provocar uma satisfação potencial e oferecer a experimentação de prazeres criados pela imaginação: “(...) imagens e significados simbólicos são tanto uma parte “real” do produto quanto os ingredientes que os constituem”. (CAMPBELL, 2001: 74). Há uma manipulação viabilizada pela publicidade por meio da emoção envolvida na compra, onde o aspecto afetivo passa a ser mais crucial para o consumo do que uma decisão de cálculo. Para Campbell, o Romantismo proporcionou uma dinâmica fundamental para o consumismo moderno, na medida em que a sensibilidade e a imaginação puderam predominar sobre a razão. O desejo de adquirir um determinado objeto pode então ser pensado não a partir de um espírito materialista, mas sim de um desejo de experimentar, na realidade, emoções experimentadas em devaneios; é como se o produto proporcionasse a possibilidade de realizar essa ambição, numa interação dinâmica entre ilusão e realidade. A publicidade favorece esse jogo onde o consumo seria uma forma de concretizar o que se deseja ter e ser, criando um discurso associativo que reforça a ideia de recompensas, tais como sensações positivas, satisfação do ego ou projeção social. Esse tipo de comunicação baseia-se numa ficção narrativa que, além de transmitir informações objetivas sobre os produtos, reflete valores, estilo de vida e sensibilidades reconhecíveis e desejáveis pelo consumidor-alvo, alimentando suas fantasias enquanto ritualiza situações comuns e complementa os acontecimentos, investindo em novos significados. Os anúncios publicitários, um fenômeno típico das sociedades modernas, industriais e capitalistas, se prestam a uma análise capaz de traçar paralelos com as categorias mito e ritual presentes nas sociedades, evidenciando uma forma de se discorrer sobre a realidade com base nas práticas sociais que correspondem a esse sistema conceitual. Pretende-se realizar, assim, uma análise das mensagens contidas nos anúncios do magazine, entendidas como manifestações de um sistema de significação que é estruturante. Na medida em que as noções de utilidade, valor e função de produtos são relativas a um esquema cultural, a comunicação publicitária do Parc Royal apresenta-se como um indicador dos processos sociais ligados às escolhas materiais do público consumidor. A publicidade, desenvolvida paralelamente à evolução do mercado urbano e dos meios de comunicação, é uma estratégia que tem como objetivo primordial a venda de produtos e a abertura de mercados; para isso, busca atrair e cativar seus receptores 45 dirigindo-se a eles, falando deles, transmitindo mensagens e formulando conceitos que corporificam um sistema simbólico. Sua capacidade de influenciar comportamentos vai além do incentivo ao consumo, transformando hábitos, informando, educando, construindo identidades e reforçando valores. Trata-se de um discurso alinhado ao sistema capitalista e sua permanência, propagando o estilo de vida de forças dominantes. O universo dos anúncios é calcado numa dimensão ideal da vida, um mundo “mágico”, onde as experiências humanas são bem sucedidas, recompensadas, atreladas ao consumo como projeto existencial. Não obstante esse caráter de idealização, as situações retratadas nos reclames refletem aspectos da sociedade e, mais especificamente, do grupo ao qual se dirigem, sacralizando momentos do cotidiano e manipulando símbolos, numa relação complexa com a realidade na qual estão inseridos. O antropólogo Everardo Rocha, ao empreender uma discussão sistemática da publicidade, ressalta sua capacidade de contribuição para o conhecimento de certos sistemas de ideias, representações e do pensamento de uma sociedade.36 Em seus próprios termos: Os anúncios publicitários se constituem, pois, num foco de estudos rico de possibilidades como via de acesso a determinadas questões da sociedade que os produz. Neles, em imagens e textos, em seu discurso, enfim, abre-se um espaço que permite e incentiva toda uma grande especulação. Ali se apresentam certos problemas relevantes quanto ao papel e função do “mundo de ideias” que o anúncio carrega consigo e que fixa junto ao corpo social. (ROCHA, 2010: 31) A produção publicitária do Parc Royal, volumosa e constante nas décadas que compõem o recorte temporal dessa pesquisa, retrata uma série de representações, e remete a padrões de interação, de ambições e sentimentos que podem ser depreendidos a partir de uma análise que se propõe a surpreender certos fenômenos da sociedade. Na primeira metade do século XIX surgiram as primeiras lojas de departamento na França e na Inglaterra, estabelecimentos que vendiam não apenas tecidos, mas diversos artigos manufaturados e acessórios diversos. Caracterizadas por vitrines de vidro, compras por atacado e venda a preços mais baixos, preços fixos e divisão em setores, essas lojas ampliaram o conceito da compra como uma aventura divertida para os ricos; a circulação 36 ROCHA, Everardo. Magia e Capitalismo: um estudo antropológico da sociedade. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2010. p. 34 46 naqueles espaços plenos de novidades e exibição esmerada de produtos tornavam a aquisição de bens uma experiência de prazer. O valor dos objetos não residia apenas no seu uso, mas no que representavam socialmente; comprar determinada mercadoria seria, de certa forma, adquirir um passaporte para o ingresso na esfera aristocrática. A vida elegante, identificada com padrões nobiliárquicos, havia sido corporificada nas mercadorias à venda nas vitrines. Walter Benjamin, analogamente ao conceito de fetichização de mercadorias contemplado por Marx em sua crítica ao sistema capitalista, ressalta a fantasmagoria como uma categoria inerente à cultura moderna derivada das abstrações da produção daquele mesmo sistema (BENJAMIN, 2009: 23). Ao analisar a cultura material no século XIX, o filósofo trata de temas como ruas, flânerie,37 lojas de departamentos, panoramas, exposições universais, tipos de iluminação, moda e reclames, entre outras manifestações urbanas surgidas à época. Benjamin fez uma apreciação da ambiguidade própria das relações e dos produtos sociais da modernidade, ressaltando as ilusões e as promessas contidas nas formas de vida condicionadas pela produção de mercadorias. A função de fantasmagoria descrita por Benjamin seria uma função de transfiguração, pela qual o valor de troca, idealizado, se sobrepõe ao valor de uso de um objeto. Em sua observação: A multidão é o véu através do qual a cidade familiar acena para o flâneur como fantasmagoria. Nela, a cidade é ora paisagem, ora sala acolhedora. Ambas são aproveitadas na configuração das lojas de departamentos, que tornam o próprio flanar proveitoso para a circulação de mercadorias. A loja de departamentos é a última passarela do flâneur.(BENJAMIN, 2009: 47) Basicamente, a empatia pela mercadoria é a empatia pelo próprio valor de troca. O flâneur é o virtuoso dessa empatia. Leva a passeio o próprio conceito de venalidade. Assim como o grande magazine é seu derradeiro refúgio, assim sua última encarnação é o homem-sanduíche. (BENJAMIN, 1994: 53) Ele chama atenção igualmente para o caráter ilusório do Novo como valor supremo da modernidade por excelência, aliado à ideia do progresso. O Novo também seria uma qualidade independente do valor de uso da mercadoria, “é a quintessência da falsa consciência cujo agente infatigável é a moda” (BENJAMIN, 2009: 48). Ainda: “A moda 37 Ato de deliberadamente e descompromissadamente vagar pelo espaço urbano, em busca de detalhes escondidos ou imperceptíveis aos olhos mais apressados; perambulação. 47 prescreve o ritual segundo o qual o fetiche, que é a mercadoria, deve ser adorado. (...) Ela acopla o corpo vivo ao mundo inorgânico. O fetichismo que está assim submetido ao sex appeal do inorgânico é seu nervo vital.” (BENJAMIN, 2009: 58) Na virada do século XXI, à medida em que se consolidava o relacionamento neocolonial entre o Brasil e as nações centrais do hemisfério norte, as instituições domésticas indicavam uma crescente absorção dos paradigmas culturais europeus, atraentes para os interesses da classe dirigente. O desenvolvimento do comércio de luxo e da moda conforme esses padrões valorizados pela elite são indicadores desse processo, embora as condições brasileiras deixassem marcas de incongruência entre desejos particulares e o cenário social. Nesse contexto do desenvolvimento capitalista, onde a moda assumia uma importância cada vez maior na cultura burguesa, a publicidade passou a exercer um papel crucial diretamente relacionado aos fenômenos da fetichização/fantasmagoria dos bens produzidos pelo sistema econômico, contribuindo para a manutenção de sua engrenagem. Vejamos de que forma. O circuito mercantil é baseado em dois domínios fundamentais: produção e consumo, cada qual com características próprias. No seu exame da economia burguesa, Marx detectou no processo da produção uma exclusão da marca humana individualizada; entre materiais e máquinas, qualquer força de trabalho pode ser aceita indiferentemente, e o produto será indistinto independentemente de qualquer particularidade do trabalhador que vendeu sua força de trabalho. É o conjunto da maquinaria que determina o ritmo, a ordem e o movimento do processo de produção, e não o trabalhador que a opera. O homem, nessa etapa, é uma mera força motriz facilmente substituível, e não deixa impressões pessoais reconhecíveis no produto final, seriado e anônimo; ele (o produto) perde a propriedade distintiva da humanização. A outra fase da trajetória social do produto – o consumo – é oposta ao domínio da produção, na medida em que os produtos deverão ser consumidos por seres humanos particulares; deverão ter nome e identidade para encontrar um lugar em vidas singulares. No domínio do consumo ocorre uma troca que envolve homens e objetos, produzindo significações e distinções sociais. Através do consumo, os objetos passam a exercer uma função de diferenciação dos homens entre si, como um sistema de classificações. Conforme análise de Everardo Rocha: 48 O consumo é, no mundo burguês, o palco das diferenças. O que consumimos são marcas. Objetos que fazem a presença e/ou ausência de identidade, visões de mundo, estilos de vida. (...) Enfeites e objetos os mais diversos não são consumidos de forma neutra. Eles trazem um universo de distinções. São antropomorfizados para levarem aos seus consumidores as individualidades e universos simbólicos que a eles foram atribuídos. (ROCHA, 2010: 85) No universo econômico, as esferas de produção e consumo se complementam, mantendo contudo suas diferenças e oposições caracerísticas. A função da publicidade é justamente mediar esses dois campos, omitindo por um lado os processos de produção e a história social do produto, enquanto reifica, por outro lado, o “bem de consumo”, atrelando os objetos à venda a fantasias e imagens com força classificatória e distintiva. Jean Baudrillard, em seu estudo sobre a publicidade (BAUDRILLARD, 1973: 184) constatou essa dissociação entre o trabalho e o produto na sociedade industrial, percebendo a publicidade como um elemento que corrobora essa separação. Em razão de sua operação, o produto não só deixa de evocar a realidade contraditória da sociedade, como se transforma num bem imerso em fábulas e sentidos que poderá ser adquirido para produzir diversas distinções. O discurso publicitário atua exercendo uma função nominadora, atribuindo conteúdos, representações e significados aos produtos; através dessa categorização, opera como um instrumento seletor do mundo, diferenciando grupos sociais. Essa ação de individuação realizada pela publicidade remete a uma ação totêmica – uma articulação de diferenças – no sistema cultural das sociedades industriais e capitalistas. O totemismo pode ser definido como um sistema de significação que promove uma complementaridade entre natureza e cultura a fim de exercer uma lógica distintiva; nas sociedades tribais, o totemismo identificava os seres humanos com determinados elementos da natureza, produzindo dessa forma uma diferenciação entre eles. Cada grupo social era identificado a um animal ou planta distintas - como resultado dessa operação, num conjunto onde todos são seres humanos, a sua associação a elementos da natureza diferentes entre si servia para diferenciar os indivíduos. Conforme exemplo enunciado por Roberto Da Matta (DA MATTA, 1981:134): numa sociedade, se o clã A é aliado do urso, o B, da águia e o C, da tartaruga, na medida em que todos esses animais são diferentes entre si, os clãs a eles associados também passariam a ser percebidos como diferentes uns dos outros. O totemismo 49 é uma forma de classificar o mundo que permite, assim, que iguais sejam vistos como distintos. Nas sociedades moderno-capitalistas, o sistema totêmico é exercido, de certa forma, pela publicidade, através da substituição de espécies naturais por espécies de objetos para fins de associações distintivas: A publicidade – enquanto narrativa do consumo – estabelece uma cumplicidade entre a esfera da produção com sua serialidade, impessoalidade e sequencialidade e a esfera do consumo com sua emotividade, significação e humanidade. (...) A publicidade, parafraseando Lévi-Strauss, pode ser vista como uma espécie bem verdadeira de “totemismo hoje”. Ela é o território do “simbólico” encravado no reino da razão prática. (ROCHA, 1995: 154) As propagandas promovem uma complementaridade entre pessoas e produtos que, aliados a nomes, identidades, situações sociais e estilos de vida, são classificados, nos classificando. Trata-se de uma construção ideológica que permite a inserção do consumidor numa determinada região simbólica a partir da aquisição de um determinado produto, estabelecendo diferenças a partir da correspondência entre consumidores e as imagens e personalidades atribuídas a esses produtos. Desse modo, o exame do conjunto de anúncios do Parc Royal veiculados nas décadas de 1910 e 1920 revela-se um tipo de interpretação que buscará determinar alguns dos seus significados, a quais interesses serviam, quem eram e como viviam seus destinatários, que associações entre pessoas e produtos promoviam, quais representações e identidades reforçavam ou construíam. Os anúncios vinculam diversos atributos ao nome/marca de um produto – no caso, aos produtos de um determinado estabelecimento visando à identificação de um público alvo com as definições de tais características. As situações encenadas na propaganda particularizam emoções, atitudes, momentos, tipos de pessoas, ora reforçando concepções pré-concebidas, ora sugerindo deslocamentos significativos. A publicidade, ao espelhar a cultura que a hospeda, também recria essa mesma cultura a partir do modelo de seu conteúdo. Entendemos que a criação dessas representações permite pensar a identidade do público a quem se dirigiam, seus desejos, aspirações e valores, bem como as forças dominantes que orientavam suas escolhas. As mensagens contidas nos anúncios do Parc Royal desvelam elementos do sistema de significações onde 50 encontravam-se inseridos, e suscitam reflexões sobre o que simbolizam em termos das relações entre fantasia e consumismo, que se estendem, em grande medida, à cultura de consumo contemporânea. Ressalte-se que no início do Século XX as revistas ocupavam papel preponderante no universo editorial brasileiro, personificando o canal ideal para a divulgação publicitária. A riqueza visual que ofereciam, aliada ao caráter incipiente da população em matéria de cultura letrada,38 são alguns dos motivos que concorreram para a penetração dessas publicações no imaginário brasileiro. Durante o vasto período de sua primazia, ocuparam o posto de veículo de comunicação por excelência, lugar cedido posteriormente ao rádio e à televisão. Com ampla distribuição e circulação, as revistas atingiam um considerável público leitor, gozando um status privilegiado aliado à boa recepção de seu conteúdo. As publicações eleitas pelo Parc Royal para a impressão de seus anúncios são exemplos da longevidade desses periódicos: a Revista da Semana circulou entre 1900-1959, O Malho entre 1902-1954, Fon-Fon! entre 1907-1958, Careta entre 1908-1960, Eu Sei Tudo entre 1916-1957, apenas para citar algumas. Com conteúdo diversificado, as revistas de variedade abrangiam o cotidiano na cidade, com artigos sobre comportamento, moda, ciência, comércio, política, literatura, artes e esportes, entre outros. As charges, caricaturas, fotogravuras (posteriormente, fotografias) e os reclames ocupavam espaço considerável nessas publicações, que valorizavam o humor e a sátira irreverente para cativar o público, ao passo em que exerciam uma crítica social. Algumas possuíam cunho mais elitista, como O Malho, Fon-Fon e Frou-Frou; outras mais ecléticas, como a Careta, visavam um público mais variado, mas, na interseção de seus leitores, todas atingiam a elite burguesa letrada carioca. Inovadoras no plano gráfico e no modelo editorial, as revistas utilizavam-se dos novos artefatos de impressão e ilustração, destacando-se por seu relevo literário, iconográfico e informativo. Símbolos de modernização e representativas de uma nova realidade técnica, versavam sobre a temática urbana, exaltando o progresso e o cosmopolitismo. As revistas tratavam de forma favorável as transformações executadas pelo poder público no início do século XX, bem como as civilidades importadas da Europa que eram adotadas na metrópole, atuando como uma espécie de plataforma de divulgação da modernidade. 38 MARTINS, Ana Luiza. Revistas na emergência da grande imprensa: entre práticas e representações. (1890-1930). In: ABREU, Márcia & SCHAPOCHNIK, Nelson (org.). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2005. p. 248-251. 51 Em que pesem suas características estéticas e literárias, o surgimento e a consolidação das revistas ilustradas podem ser entendidos no contexto mais amplo da reurbanização posterior à consolidação da República, onde verificava-se o crescimento da sociedade burguesa, da população letrada e o aumento da disponibilidade dos bens de consumo. Inseridas no sistema cultural da época, essas publicações eram porta-voz das novidades ansiadas por um público ávido por um novo estilo de vida; Nicolau Sevcenko informa como sua leitura tornou-se hábito entre as elites: Novas técnicas de impressão e edição permitem o barateamento extremo da imprensa. O acabamento maisapurado e o tratamento literário e simples da matéria tendem a tornar obrigatório o seu consumo cotidiano pelas camadas alfabetizadas da cidade. Esse “novo jornalismo”, de par com as revistas mundanas, intensamente ilustradas e que são o seu produto mais refinado, torna-se mesmo a coqueluche da nova burguesia urbana, significando o seu consumo, sob todas as formas, um sinal de bom-tom sob a atmosfera da Regeneração. (SEVCENKO, 2003: 119) Nas colunas que versavam sobre moda e comportamento, os jornalistas tratavam de detalhes da vida cotidiana, determinavam quais eram os referenciais de elegância e distinção, opinando sobre a vida mundana e demais questões ligadas à cidade. Havia uma dimensão educativa e disciplinar nesse discurso, que também operava como difusor do ideário da modernidade. As classes dominantes, por seu turno, valorizavam informações que personificassem um estilo de vida consoante seus devaneios europeizantes, e consumiam esse jornalismo incorporando os modelos de prestígio e de bom gosto por ele proclamados. Obedecendo regras precisas, a correção na maneira de vestir era exposta por textos e imagens impregnados de literalidade, que não exigiam de seus leitores um esforço de interpretação adaptativa para traduzir “conceitos” em “roupas usáveis”; os modelos de roupas, acessórios e penteados eram acompanhados por minunciosas instruções de uso - em qual ocasião e local deveriam ser usados, sob qual condição, para qual faixa etária, gênero, enfim – e serviam como matriz a ser copiada pelos leitores. As colunas faziam a crônica da moda e dos modismos sociais, ditando parâmetros de “certo” e “errado” em matéria de vestuário e comportamento. Em meio a esse manancial de referências, figuravam nas revistas anúncios diversos entremeados com o conteúdo editorial; na primeira década do século XX, os produtos 52 divulgados com mais frequência eram alimentos, bebidas, remédios, mobiliário, pianos, perfumaria, calçados e roupas – acrescidos, nos anos 1920, por reclames de automóveis, máquinas fotográficas, máquinas de escrever e alguns aparelhos elétricos como refrigeradores, fonógrafos, rádios e radiolas. O desenvolvimento econômico promovia um crescimento urbano capaz de ancorar diversas atividades profissionais e setores de negócios que necessitavam comunicar sua existência ao mercado. Em relação à moda, a maior parte da publicidade era veiculada por empresas de comércio varejista, geralmente localizadas nas Ruas Ouvidor, Uruguaiana, Largo de São Francisco e Av. Central. Não havia anúncios de determinadas marcas de roupa; a indústria nacional era ainda incipiente, e as lojas que faziam importação preferiam destacar seu próprio nome, ao invés de alguma grife. Desse modo, o nome da loja era a própria marca a ser consumida, e a frequência naquele lugar, onde poderia-se adquirir seus produtos expostos, é o ato que seria capaz de aferir a seu adquirente os desdobramentos simbólicos por ele almejados. O Parc Royal obedecia a essa lógica, e reforçava nos anúncios sua identidade como “o” local onde se poderia comprar vestuário masculino, feminino e infantil, fossem modelos importados de Paris ou confeccionados nas próprias oficinas com tecidos estrangeiros, e também acessórios e artigos para a casa. O conjunto dos reclames alinhava-se com as informações contidas nas publicações e complementava o ideário de modernidade, oferecendo, na prática, produtos que seriam utilizados pelos leitores que desejassem vivenciar aquele estilo. As formas de sociabilidade eram documentadas nas páginas das revistas, e as propagandas que se seguiam ofereciam os trajes apropriados para serem usados naquelas ocasiões. Essa relação sintônica é ilustrada pelo Parc Royal; no período examinado na presente pesquisa, encontrava-se reiteradamente no corpus editorial fotos de eventos frequentados pela elite carioca, tais como bailes e chás dançantes em salões de clubes ou hotéis (geralmente nos Hotéis Glória e Copacabana Palace), reuniões beneficentes, flagrantes de footing na Avenida Central ou à saída da missa na Praça Duque de Caxias (atual Largo do Machado). A “audiência elegante” marcava presença também nas competições de esportes náuticos, como convidados, para assistirem as provas na barca do Club Boqueirão do Passeio ou do Club Internacional de Regatas, além do Pavilhão de Regatas, localizado na Praia de Botafogo; o turfe, outro esporte muito popular à época, era igualmente acompanhado pelo desfile social dos espectadores no Jockey Club e Derby Club. Fotos de banhistas na Avenida Beira Mar, e na década de 1920 também em Copacabana e na Praia de Icaraí, contribuíam para difundir a praia como nova modalidade de lazer; e o 53 Carnaval também era amplamente divulgado, tanto nas versões mais elitizadas dos bailes fechados em clubes e do corso, como nos populares blocos de rua e banhos de mar à fantasia. As imagens dos hábitos sociais da alta sociedade ocupavam parte considerável das revistas de variedade, que auxiliavam na propagação dos valores cultuados pela dominante elite urbana e burguesa, atualizando constantemente mudanças estéticas e informando o que seria considerado de bom gosto. Nesse contexto, o Parc Royal oferecia em seus anúncios “tudo moderno e chic”,39 as “últimas novidades da moda”,40 um sortimento que “distinguese pela modicidade, elegância e variedade, inteiramente novo e notável pelo bom gosto, pela qualidade e excepcional barateza dos preços”.41 Nos rol dos anúncios, as palavras “distinção” e “elegância” eram as que apareciam com mais frequência, na medida em que o magazine reiteradamente lembrava a seu público a necessidade de manter essas faculdades como meio de aprovação social e satisfação individual no âmbito das classes abastadas. A elaboração da aparência, incluindo-se aí roupas, acessórios, gestos e comportamentos, delineava o status pessoal, materializando uma expressão do devaneio de identificação da elite em relação à cultura europeia. No discurso das propagandas do Parc Royal, a tarefa de vestir-se “com elegância” era equiparada a uma “batalha”42 ou “um difícil problema”43 que seria resolvido por aqueles que comprassem mercadorias no magazine. Nesse sentido, os anúncios traziam uma proposta de intervenção na vida de seus consumidores através da utilização de “objetos mágicos” – os produtos comprados no Parc Royal – que teriam a capacidade de transformar, positivamente, sua realidade. Essa “função mágica” conferida aos objetos corresponde à ideia de mito, uma vez que há uma supressão da distinção entre natureza e cultura; um produto inanimado é dotado de “poderes” para solucionar dificuldades, e o seu uso resultaria na solução do impasse cotidiano retratado no anúncio. O paralelismo entre mito e publicidade encontra-se também nas mensagens comerciais do magazine que não apresentavam problemas a serem solucionados, mas sim uma narrativa de rotina ideal nivelada pelos padrões da elite dominante, situações de felicidade e prazer numa plenitude mágica que não apresentava imperfeições incômodas: “O anúncio é onde tudo se resolve. 39 Anúncio na Revista Frou-Frou Nº 3 – Agosto 1923 Anúncio na Revista Frou-Frou Nº 4 – Setembro 1923 41 Anúncio na Revista Careta Nº 210 – Junho 1912 42 Anúncio na Revista Careta Nº 469 – Junho 1917 43 Anúncio na Revista D. Quixote Nº. 78 – Novembro 1918 40 54 Como no sonho, no mito, no conto de fadas, a lógica é a do desejo, (...), o registro o do imaginário” (ROCHA, 2010: 173) Em relação à sua recepção, a publicidade evoca ainda a noção de ritual; há uma alteração na perspectiva das categorias presentes no mundo diário, combinadas de forma particular de modo a produzir um momento ritualizado. Os anúncios da loja destacavam aspectos específicos da realidade que, recontextualizados, eram imbuídos de novos significados; para o público alvo do Parc Royal, comprar um produto naquele local significaria ter acesso ao universo apresentado em seus reclames. Uma vez mais vale a pena reproduzir a análise de Everardo Rocha: (...) fica claro o tipo de trabalho e o esforço de conhecimento que a publicidade introduz de forma privilegiada na vida social. O que ela faz é classificar produtos conjugando-os com situações sociais, relacionamentos, lugares, estados de espírito (...). Todos estes elementos configuram tipos de pessoas, grupos sociais, desejos (...) no afâ de exercer o poder regulador do seu discurso e da sua função classificadora. Dessa maneira, seu papel de operador totêmico quer fazer ver a sociedade segundo uma certa ótica. Para fazer crer na verdade da classificação de objetos e pessoas, o sistema publicitário é constrangido a apresentar uma visão de mundo particular. (ROCHA, 2010: 181) O consumo de moda era estimulado como uma ação que inscreveria seus agentes no universo da civilização sob parâmetros estrangeiros; assim, o ato de fazer compras no Parc Royal facilitaria distinções gratificantes, correspondentes a reprodução pública da vida aristocrática franco-inglesa que reverberou entre as camadas sociais mais altas no Rio de Janeiro. O material publicitário do magazine, numa primeira observação, é capaz de ilustrar, através da sua visualidade, mudanças estéticas, alterações nas composições imagéticas, nos discursos, nos tipos, que remetem às transformações vertiginosas verificadas no Rio de Janeiro nas décadas de 1910 e 1920. Um exame mais profundo, por seu turno, permite descortinar um universo de significações e elementos próprios da estrutura social da época, desvelando visões de mundo, instituições e formas de relações que de certa forma foram sedimentadas em nós através de mecanismos de legitimação e retificação; contudo, o caráter construtivo desses valores e relações vem à tona na análise dessa publicidade, desnaturalizando modos de vida, favorecendo uma ótica de relativização e questionamento à 55 medida em que percebemos a edificação de um modelo de comportamento atrelado ao consumo. 56 4 – Práticas de comércio do Parc Royal 4.1 As lojas de departamento O Rio de Janeiro consolidou-se como principal entreposto comercial, porto de escoamento da produção nacional e de entrada de mercadorias importadas, desde os primórdios da colonização. A atividade mercantil foi fomentada na cidade com a implementação da indústria açucareira nos séculos XVI-XVII e a extração do ouro, cujo auge se verificou no século XVIII, fortalecendo sua posição como centro econômico e administrativo do país. Ainda no período colonial, a Rua Direita (atual Primeiro de Março), um dos primeiros eixos da cidade, concentrava igrejas, residências, trapiches e armazéns de gêneros alimentícios. Os hábitos de consumo no período colonial estavam, contudo, circunscritos às necessidades básicas das famílias, que viviam enclausuradas e mandavam escravos ou encarregados fazerem as compras; não havia o hábito de flanar pelas ruas para olhar vitrines, tampouco o consumo era revestido de um cunho de sociabilidade ou lazer. Os negociantes, por sua vez, acumulavam várias funções e não se empenhavam em reverenciar ou cativar a freguesia. Não havia uma preocupação com a disposição das peças e dos espaços de compra de modo a provocar a atração dos compradores; as mercadorias eram expostas de forma atabalhoada e confusa, empilhadas em balcões, penduradas nas paredes, ou “escondidas” em prateleiras protegidos da poeira e das mãos dos clientes, resultando num visual pouco atraente, em espaços desconfortáveis e mal iluminados. A vinda de D. João VI e sua entourage em 1808 foi decisiva para a ampliação do mercado consumidor. A explosão populacional que se seguiu, a suspensão dos antigos entraves tributários e proibições ao livre comércio impulsionaram o crescimento das atividades mercantis, beneficiadas ainda pelo aporte de capital derivado da exportação do café, da oferta de casas bancárias, da facilitação do crédito e do afluxo de imigrantes. À medida em que os novos paradigmas de identificação cultural europeia eram adotados pela elite carioca, o culto às mercadorias ganhava cada vez mais expressão, numa sociedade que incorporava a aferição da aparência na determinação de posições sociais. A cultura material se expandia na cidade, e o comércio de luxo que se estabeleceu inicialmente na Rua do Ouvidor, recriava, nos trópicos, aspectos das “Passagens” parisienses. As lojas na “galeria a céu aberto” obedeciam a formas estéticas mais elaboradas e atraentes do que os velhos depósitos ou lojas “pé-de-boi”, ainda afeitos a modos coloniais de venda e exibição de produtos. O espaço público, naquele trecho, ficava elevado à condição de cenário de uma 57 nova subjetividade em afirmação no inconsciente da coletividade; mais do que apenas um lugar para comprar, a rua do comércio de luxo passava a ser o local para ver e ser visto, para a cobiça de bens materiais, para a averiguação de status social e para a construção de um imaginário urbano inserido na nova ordem modernizante e cosmopolita. O historiador americano William Leach, que integra atualmente o corpo docente da Universidade de Columbia, é autor de diversas obras que investigam a formação da cultura moderna de seu país, entre elas Country of Exiles: The Destruction of Place in American Life (1999), True Love and Perfect Union: The Feminist Reform of Sex and Socitey (1980) e Land of Desire: Merchants, Power, and the Rise of a New American Culture (1993). Essa última particularmente nos interessa pela contribuição que pode oferecer à compreensão do desenvolvimento e do modo de funcionamento das lojas de departamento. Nesse livro, o autor investiga a formação de uma “cultura do desejo”, e para isso traz à tona a trajetória de alguns comerciantes americanos como John Wanamaker e Marshall Field, proprietários de grandes magazines, detalhando sua operação. Travamos conhecimento com obra de Leach ao pesquisarmos a bibliografia utilizada por Maria Claudia Bonadio, Doutora em História Social pela Unicamp, na sua Dissertação de Mestrado aprovada no IFCH da mesma instituição: Moda: costurando mulher e espaço público. Estudo sobre a sociabilidade feminina na cidade de São Paulo (1913-1929). Bonadio buscou demonstrar a importância das casas de moda na ampliação do espaço aberto à presença e movimentação da mulher na cidade de São Paulo, com foco nos anúncios do magazine Mappin divulgados à época no jornal Estado de S. Paulo como fonte de sua pesquisa. Nas décadas de 1870-1880, surgiram lojas de departamento não apenas na França e Inglaterra mas também em outras capitais europeias como Berlim (Wertheim) e Amsterdã (Bijenkorf); esse tipo de estabelecimento se desenvolvia ainda no Japão e nos Estados Unidos e juntamente com as cadeias de varejo e as vendas por catálogo impulsionaram o comércio no final do século XIX, ampliando um novo universo de fascínio consumista. Inicialmente, era comum a integração de vários elementos do processo econômico, desde a produção, a distribuição e o “marketing”, além da venda por atacado e varejo nas mãos de um mesmo empresário; muitos reinvestiam o capital na atividade comercial ampliando os negócios, oferecendo uma ampla gama de produtos sob o mesmo teto (LEACH, 1993: 2021). As lojas de departamentos realizavam grandes pedidos de compra às fábricas, cuja capacidade de produção havia aumentado na Segunda Revolução Industrial (circa 18501870). Ao mesmo tempo em que estimulavam a atividade manufatureira, as lojas 58 conseguiam abatimentos junto aos fornecedores em função da quantidade, o que lhes permitia oferecer as mercadorias aos consumidores finais com preços mais atraentes, acelerando a sua circulação. A moda, por sua vez, reforçava esse fluxo; o filósofo francês Gilles Lipovetsky, professor da Universidade de Grenoble, demonstra em sua obra O império do efêmero como um ciclo de semestralidade (inverno-verão) foi implantado no início da segunda metade do século XIX pela alta costura (LIPOVETSKY, 2011: 71-72), posteriormente popularizado pelos grandes magazines; estimulava-se o público a comprar, usar, e comprar novamente, não por conta da utilidade ou da durabilidade dos produtos, mas sim em função do seu apelo efêmero, decorrente do conjunto de associações e novos sentidos impregnados às mercadorias. As novas tecnologias de comunicação – telégrafo, telefone, rádio – permitiram a difusão de informações com maior celeridade, possibilitando a propagação das novidades da moda proveniente de Paris, divulgadas também nas propagandas das lojas. A característica primordial dos grandes magazines era a venda de uma grande variedade e quantidade de produtos com pequena margem de lucro, com preços fixos claramente marcados (SENNET, 1993: 181-183). A utilização de vitrines de vidro, divisão por seções em especialidades, oferta de serviços (roupas sob encomenda, por exemplo), a venda por catálogo e o investimento em publicidade somavam-se àquela feição original e propiciavam à prática do consumo uma aura de lazer. O conceito de compra assumia um caráter de diversão, uma forma de sociabilidade que ecoava a fantasia sociocultural da elite carioca de identificação ao padrão europeu de modernidade. Na verdade, essas casas comerciais incentivavam a aproximação do público com a mercadoria, sem necessariamente haver um compromisso de compra, uma prática até então pouco comum (LEACH, 1993: 73); os clientes poderiam “namorar”, experimentar os produtos e analisá-los antes da decisão pela sua aquisição (ou não), uma nova configuração no modo de vender que incentivava o passeio pelas ruas de comércio como um hábito prazeroso. Novas táticas de apelo às compras eram desenvolvidas paralelamente – os cartazes, os cartões-postais de propaganda, a decoração dos espaços, o design, a própria moda. Uma estética própria baseada no uso de vitrines de vidro, luz e cor, favorecia necessidades de mercado - exibir produtos em quantidades e variedades cada vez maiores - à medida em que se dava a expansão do capitalismo. Os espaços internos destinados à atividade comercial passavam a ser estruturados de uma nova forma; os negociantes começaram a fazer uso de diversas inovações tecnológicas incorporando-as em seus estabelecimentos a fim de atrair e 59 facilitar o movimento da clientela, como se trouxessem para dentro de suas lojas as mudanças que ocorriam no exterior, no espaço público. Eles aprimoraram o caráter social do meio comercial apropriando-se de estratégias teatrais na concepção, decoração e exibição das peças, integrando o “cenário” do local de venda aos emblemas de significado que imprimiam aos produtos e à própria atividade de consumo, para além das razões utilitárias; a ordem era mitificar as mercadorias (SENNET, 1993: 184). Gradativamente, a atenção, a aproximação dos consumidores e sua permanência na loja eram cada vez mais incentivadas; dentre os novos métodos utilizados pelas lojas de departamentos estavam a adoção de múltiplas entradas e janelas, a inclusão de elevadores e escadas, o uso aprimorado de espelhos e iluminação, num ambiente alegre e agradável, capaz de atrair os consumidores. A arquitetura dos magazines incorporou uma certa magnitude, facilitando a livre circulação pelos espaços e a visibilidade dos produtos, somados a uma impressão estética que causava admiração na clientela que desfrutava daquele local. As vitrines, incorporadas a partir da modernidade, provocaram impacto à época de sua disseminação, no final do século XIX. Ao mesmo tempo em que criavam uma “barreira” ao toque e ao olfato, ao contrário das barracas de feira, por exemplo, amplificavam o apelo visual dos produtos, transformando os passantes em potenciais clientes - o desejo dos bens passava a ser cada vez mais uma apelo democratizado, ainda que o acesso a eles fosse restrito. Numa época em que não havia televisão ou computadores, as vitrines ocupavam o lugar atrativo primordial com capacidade para capturar consumidores, eram indicadores visuais das novas dimensões que a economia e a cultura do consumo passavam a assumir. O arsenal de materiais e técnicas para exibição expandiu-se com a proliferação das vitrines, incluindo-se pedestais, tecidos como veludo e seda, e a utilização de manequins de corpo inteiro vestidas com as roupas à venda, em substituição gradativa aos manequins sem cabeças, braços ou pernas utilizados no comércio (LEACH, 1993: 63-66). As atividades de algumas publicações especializadas fortalecem a noção da importância que esse tipo de exposição passou a alcançar daquele momento em diante; em 1889, a publicação nova-iorquina The Dry Goods Economist, até então especializada em finanças, passou a dedicar-se a técnicas de venda a varejo, aconselhando seus leitores a investir na exibição dos produtos. E em 1898 foi criada também nos Estados Unidos a revista mensal The Show Window, que versava especificamente sobre um novo movimento de design de vitrines com o objetivo de estimular as vendas durante o ano todo (LEACH, 1993: 56, 60). 60 Uma outra inovação adotada pelo comércio varejista e pelas lojas de departamento especificamente foi a construção de um “mundo das crianças” separado e independente em relação aos adultos, como uma nova categoria de consumidores dentro da família, para os quais os comerciantes indicavam produtos, simbologias e metáforas, definiam cores e temas próprios. Essa mudança refletia o aumento na produção de toda uma nova linha de itens para crianças, assim como o reconhecimento de suas necessidades peculiares pela psicologia e outros campos do saber. É também a partir desse momento que a figura do Papai Noel passou a ser explorada pelo comércio no período das festividades natalinas (LEACH, 1993: 85-88). O Parc Royal reproduziu no Rio várias dessas mudanças que ocorriam no comércio de varejo em capitais de países centrais do hemisfério Norte e protagonizou, na capital brasileira, a implementação de um modelo de loja de departamentos num momento de alteração no consumo, na sociabilidade e no modo de vida, concorrendo para a formação de uma economia e de uma cultura imbricadas no culto à novidade, no investimento na significação simbólica dos produtos e na legitimação da moda. 4.2 O Parc Royal: características de um modelo de varejo À época de sua inauguração, no final do séc. XIX, os comerciantes do Rio de Janeiro já constituíam um grupo forte, próspero e respeitado, que formava, com a burocracia metropolitana e os proprietários rurais, a elite carioca (KESSEL, 2003: 13). A loja ficava num local estratégico, no movimentado largo que delimitava o quadrilátero chique nas cercanias da Rua do Ouvidor, descrito pelo historiador Luís Edmundo: A parte de maior animação e maior vida é a que se fixa entre os quarteirões que se estendem do Largo do S. Francisco, que então se chama Praça Coronel Tamarindo, até a Rua dos Ourives. Aí estão as lojas de mais requintado luxo e aparato, de melhor clientela e consideração. Todo um bazar de modas. [...] Nesse trecho, [...] é que palpita a vida elegante da cidade, trânsito obrigatório dos que chegam dos arrabaldes à parte central da cidade, a compras ou a passeio.” (EDMUNDO, 2003: 40) As lojas sofisticadas ofereciam itens importados, uma vez que não havia sido desenvolvida, ainda, uma manufatura consistente de produtos de luxo nacionais. Mas, embora houvesse algumas limitações impostas pelas circunstâncias materiais locais, a 61 natureza das mercadorias vendidas demonstrava a sensibilidade carioca em relação à moda europeia, principalmente no que dizia respeito ao vestuário: “Este aspecto do fetichismo da mercadoria se desenvolveu de acordo com o cronograma parisiense, mesmo que apenas para uma fração mínima da população. Na belle époque, a paixão por estar “em dia” com a moda europeia tornou-se quase tão feroz no Rio quanto na Europa.” (NEEDEL, 1993: 192) Vários concorrentes disputavam o mercado de moda de luxo com o Parc Royal. No início de suas atividades, Mme. Berthe, Raunier e Notre-Dame já tinham conquistado fama na Rua do Ouvidor. No Largo de São Francisco, À Brasileira era outro estabelecimento de peso, assim como À La Maison Rouge, Maison Blanche, Au Palais Royal, Paraíso das Crianças e Casa das Fazendas Pretas, situadas em endereços nas cercanias. Na Avenida Central, as vendas eram disputadas nas décadas de 1910 e 1920 com Ao 1º. Barateiro e Casa Colombo; além da Casa Sloper, outro renomado magazine. Para atrair os consumidores, o Parc Royal adotou diversas medidas administrativas. “Ações de marketing” originais provavelmente contribuiram para que alcançasse posição primordial no varejo de moda. A implementação da política do preço fixo, até então utilizada por apenas um estabelecimento na cidade (FERREIRA DA ROSA, 1900: 246), foi uma dessas importantes inovações. A prática do comércio carioca era não precificar as mercadorias e estipular o valor conforme a aparência do freguês, o que provavelmente dava margem à arbitrariedade do vendedor e à insegurança do comprador. Com o preço fixo, marcado em todos os produtos, o Parc Royal oferecia a certeza do valor da mercadoria no momento da compra, sem discriminações. E, por ser uma prática inovadora, era inclusive anunciada na sua publicidade: “Todos os preços visivelmente marcados são reduzidos ao mínimo possível e fixos”. 44 Na fachada da loja ostentava-se a frase “Preços fixos sem competência”. O que, numa leitura contemporânea, poderia sugerir preços “incompetentes”, significava, à época, preços sem concorrência, sem competição. 44 Anúncio na Revista Fon-Fon Nº14 – Junho 1908 62 Fig. 6. A primeira loja do Parc Royal, onde lê-se: “Preços fixos sem competência” Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ Em relação à organização espacial, havia uma preocupação em criar um ambiente no qual as mercadorias ficassem expostas de modo ordenado, dividido em várias seções, facilitando a visualização pelo cliente, numa nova concepção estética, o que fica evidenciado nas imagens das áreas internas da loja-matriz no Largo de São Francisco: Fig. 7. Interior do Parc Royal, com departamentos marcados por placas e sinalização do elevador Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ 63 No anúncio mais remoto encontrado na pesquisa,45 a diversidade de produtos da loja, que se auto-proclamava um “Importante Estabelecimento”, já era divulgado: “modas, fazendas, armarinho, roupas brancas, artigos para homens, calçado, grandes exposições de tecidos e artigos para verão”, o que reforça a noção da constituição sob a forma de departamentos. No mesmo periódico, em outro anúncio posterior,46 as seções foram descritas em detalhes; divididas em cinco categorias principais, cada qual contava com a respectiva linha de produtos: Senhoras – Tecidos de seda, lã algodão, roupas brancas, vestidos, chapéus, luvas, meias, calçados, blusas, saias, bolsas, golas, rendas, fitas, sombrinhas, leques, flores, plumas, echarpes, pentes, colletes, peignoirs, fourrures (casacos de pele). Homens – Alfaiataria, “casacos para automóvel”, manteaux, gravatas, colarinhos, punhos, roupas brancas, chapéus, binóculos de Lemaire, artigos para viagem, acessórios de toilette. Crianças – Vestidos, roupas para meninos, roupas brancas, calçados, chapéus, brinquedos. Noivas – Todo o enxoval. Casa – Roupa de cama e mesa, tapetes, cortinas, passadeiras, oleados, armações de bronze, reposteiros, brise-bise. A arquitetura, os materiais e as técnicas utilizadas nos edifícios comerciais, principalmente a partir da abertura da Avenida Central (1905), também estavam a serviço da atmosfera de modernidade que se desejava impregnar aos estabelecimentos e colaboravam para o exercício de sua função. A abertura daquela via pública colossal foi um marco do projeto de embelezamento e reurbanização da cidade que aprofundou o reconhecimento das vias do comércio de luxo como espaço de sociabilidade e eixo da vida mundana e cultural. A aquisição de mercadorias adquiria cada vez mais um caráter de recreação das elites e da emergente classe média, uma ocupação para seu tempo disponível. Frequentar os empórios elegantes - lojas, cafés, confeitarias, livrarias e jardins - fazia parte de um ritual de diversão urbana que se adequava ao desejo de espelhamento da metrópole carioca ao arquétipo europeu. Grandes espaços livres, bem iluminados e mobiliados, enriquecidos por ornamentos de ferro, constituiam a cenografia ideal para a circulação, a exibição pessoal e o despertar do desejo consumista. As vitrines, com objetos minunciosamente dispostos, 45 46 O Malho - Nº 9 – Novembro 1902 O Malho - Nº 848 – Dezembro 1918 64 ofertavam artigos importados para uma clientela ávida por novidades dernier bateau. Mais do que a utilidade da coisa em si, os objetos possuíam a qualidade intrínseca de equiparar seu possuidor à moderna sociedade europeia, e conferir aos consumidores o prestígio social que almejavam. Fig. 8. Vitrine do Parc Royal em mármore, vidro e estuque com manequins Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ A filial que o Parc Royal inaugurou na Avenida Central ocupava as lojas térreas do prédio sede do jornal O Paiz, projetado pelo arquiteto espanhol Morales de Los Rios,47 que participou intensamente do projeto de modernização republicana. E assim como a loja da Avenida Central, a nova sede do Parc Royal inaugurada no Largo de São Francisco em 1911, com proporções monumentais, também se enquadrava no novo modelo de comércio atualizado em relação ao que havia de “mais moderno” no velho continente. Dentre as inovações oferecidas para o conforto de seus clientes e a facilitação da mobilidade no seu interior, a loja contava com um elevador. As instalações desses “templos de consumo” configuravam-se tão importantes quanto as próprias mercadorias; havia um planejamento para criar um ambiente acolhedor 47 O arquiteto e urbanista Adolfo Morales de Los Rios y Garcia de Pimentel (Sevilha, Espanha 1858 - Rio de Janeiro RJ 1928) foi autor de vários projetos de edifícios residenciais, comerciais, institucionais, educacionais, religiosos e industriais nas cidades de Salvador, Recife, Maceió e Rio de Janeiro. Na então capital carioca, algumas de suas criações mais notórias são os edifícios do Supremo Tribunal Federal (atual Centro Cultural Justiça Federal), a Escola Nacional de Belas Artes (atual Museu Nacional de Belas Artes – MNBA) e o restaurante Assírio, no Theatro Municipal. 65 que ajudasse a tornar o ato de comprar numa experiência de prazer. Nesse sentido, serviços e comodidades eram oferecidos de modo a ampliar o tempo de permanência dos consumidores na loja. No Parc Royal do Largo de São Francisco havia um salão de chá que permitia aos clientes desfrutar daquele espaço exercendo outra atividade além da compra de produtos - de certa forma, um precursor da praça de alimentação. Fig. 9. Salão de chá do Parc Royal Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ Oferecendo outras possibilidades que extrapolavam a aquisição de produtos, o magazine inclusive promoveu apresentações musicais dentro da loja, conforme registro na seção “Notas Artísticas” da Revista Fon-Fon.48 Em duas fotografias publicadas durante uma dessas ocasiões, percebemos que a loja assumia uma configuração teatral, com vasto público sentado no primeiro e segundo andares, atento à exibição. Conforme descrição das duas legendas: “Aspecto da matinée oferecida pelo Sr. Vasco Ortigão, proprietário do Parc Royal, às freguesas dos seus vastos magasins, no domingo passado. Vê-se no tablado a cantora Eugénie Buffet49 no último couplet de Les Grimaces”; “Outro aspecto do Parc Royal, regorgitando de convidados, durante a bela matinée oferecida pelo Sr. Vasco Ortigão às famílias que compõem a sua distinta e numerosíssima freguesia”. 48 Revista Fon-Fon - Nº 29 – Julho 1911 Cantora nascida na Argélia (1866-1932) e radicada na França a partir de 1886, onde alcançou popularidade. Durante sua carreira, apresentou-se em diversos países estrangeiros. Informações disponíveis em: http://www.dutempsdescerisesauxfeuillesmortes.net/fiches_bio/buffet_eugenie/buffet_eugenie.htm 49 66 Fig. 10. Coluna Notas Artísticas da Revista Fon-Fon - Nº 29 – Julho 1911 Fotografia de Augusto Malta A promoção de um evento como esse, uma récita exclusiva de uma notória cantora francesa no próprio estabelecimento, para convidados, fortalece a construção da identidade da loja como uma instituição elitista, promotora da cultura eurófila. Não obstante, analisaremos na próxima seção uma certa ambiguidade no discurso publicitário do Parc Royal, entre o exclusivismo - evidenciado na reiteração de um estilo “distinto”, acessível a poucos – e a pretensa popularização desse mesmo estilo oferecido pela loja, que apresentava-se como um bastião de elegância disponível a um público mais amplo em função de seus preços baixos. Comprar os produtos do Parc Royal, vestir-se no Parc Royal, visitar e frequentar o ParcRoyal para conhecer as novidades ou checar os preços eram algumas formas de participar daquele universo mitificado pelos seus anúncios, um mundo atrelado ao estabelecimento e ao posicionamento de sua própria marca, seu próprio nome. Em relação aos itens à venda, o magazine não anunciava marcas específicas de produtos; as únicas exceções a essa regra encontradas na pesquisa foram os anúncios dos cosméticos Mme. Selda Potoka, veiculados com escassez nos anos de 1914 e 1915 (shampoo, sabonete, dentifrício, pó de arroz, loção adstringente, tônico para pele e cabelos, pó medicinal, pó e 67 creme de massagem) e dos “lindos modelos de chapéus das casas Antoinette, Lewis, Blanche Robert, Eliane, e de muitas outras que gozam da mais alta reputação em Paris”.50 A própria marca Parc Royal era construída em sua publicidade, como uma entidade que refletia valores, imagens, sentimentos e símbolos associados aos produtos ali adquiridos. A partir de 1914, figurou nos anúncios um logotipo composto pela letra “P” ornamentada dentro de um círculo sob uma coroa, e a partir de 1921 esse logotipo foi incorporado à logomarca e ao slogan “Parc Royal – A maior e a melhor casa do Brasil” utilizada nos anos subsequentes. A utilização do logotipo coincide com o aparecimento dos anúncios ilustrados assinados por Manoel de Mora (1884-1956), artista português que trabalhava no estúdio publicitário do Parc Royal,51 elaborando o layout de anúncios e catálogos do magazine até a década de 1930, daí porque podemos admitir que o logotipo e a logomarca também tenham sido sua criação. A valiosa contribuição de Mora foi um marco na identidade visual da loja, já que suas imagens as destacavam em meio à publicidade das casas comerciais concorrentes; a força e peculiaridade do seu traço eram reconhecíveis nas figuras e paisagens sofisticadas que compunham os anúncios do Parc Royal. Além da produção dedicada ao magazine, Mora ainda executou campanhas para outros clientes no final dos anos 1920 e 1930 (Quinado Constantino, meias Mousseline e sabonete Limol, por exemplo), ilustrou capas das revistas O Cruzeiro, ParaTodos, Cinearte e Revista da Semana, convites de bailes de carnaval do Theatro Municipal e cartões-postais, entre eles uma série em cores emitida pelo Departamento de Turismo da Municipalidade do Rio de Janeiro em 1934 para divulgar a cidade no exterior. A venda por catálogo foi outro recurso utilizado pelo Parc Royal para incrementar seus negócios. Desenvolvidos a partir de 1895,52 os catálogos de venda por correspondência podem ser considerados um emblema central da modernidade. Por meio da representação dos objetos, eles ofereciam a mercadoria “ausente” para espectadores que não teriam acesso facilitado à flânerie nas ruas de comércio dos centros urbanos, ou, ainda que não houvesse impedimento à visita presencial na loja, acenderiam o desejo dos receptadores, levando para os lares a atividade normalmente pública de consumo. 50 Anúncio na Revista da Semana Nº 8 – Fevereiro 1921 Informações em: CADENA, Nelson. O ilustrador desconhecido do O Cruzeiro. In: Almanaque da comunicação, 2010. Disponível em: http://www.almanaquedacomunicacao.com.br/o-ilustrador-desconhecidodo-o-cruzeiro. Acesso em 05 de setembro de 2011. 52 KELLER, Alexandra. Disseminações da modernidade: representação e desejo do consumidor nos primeiros catálogos de venda por correspondência. In: CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa. O cinema e a invenção da vida moderna. p. 185 51 68 Os primeiros registros que encontramos sobre essa forma de venda realizada pelo Parc Royal remontam a 1908: “Queiram reclamar o catálogo ilustrado para inverno a partir de 15 de maio”;53 “O catálogo ilustrado de inverno contendo as novidades desta estação será distribuído a partir de junho próximo. Pedimos às senhoras que lerem esta página e que não recebam habitualmente os catálogos do Parc, o obséquio de nos remeterem o seu endereço para lhes enviarmos diretamente pelo correio”;54 “Catálogo ilustrado para o inverno de 1908: está se distribuindo este magnífico catálogo ilustrado contendo todas as novidades. Peçam o catálogo ilustrado especial de blusas – sucesso sem precedente – 20 mil blusas em estoque, desde 3$900 a 25$000”.55 Essas referências ao catálogo de produtos da loja encontravam-se em letras miúdas, na parte inferior dos anúncios ilustrados. Havia, ainda, um direcionamento específico da venda por catálogo para os clientes do interior, em anúncios textuais de página inteira, transcritos a seguir: “Aos nossos clientes do interior. O Parc Royal convida V. Ex. a pedir ao: Parc Royal / Seção V / Rio de Janeiro todos os catálogos que porventura possa desejar. Por eles se convencerá de que vale a pena comprar no Parc Royal”;56 “Aos nossos fregueses do interior – Temos a satisfação de comunicar que se acha em distribuição o nosso Catálogo de Verão, contendo todas as novidades da estação e as mais populares e vantajosas ofertas que temos feito ao público. O catálogo não abrange o nosso importante sortimento de tecidos, mas enviaremos amostras com prazer, desde que nos comunique o gênero de tecidos desejado. O catálogo será também enviado sem demora, mediante o respectivo pedido”;57 “É muito desvanecedor registrar que a reforma a que acabamos de submeter a nossa Seção do Interior com o fim de dar-lhe uma amplitude correspondente ao aumento constante da nossa freguesia dos estados, tem-nos trazido um número considerável de encomendas dos nossos antigos fregueses e de muitos outros que agora, pela primeira vez, iniciaram com esta casa as suas transações. A uns e outros, bem como àqueles que porventura ainda não adotaram a mesma resolução, desejamos fazer presente que acabamos de publicar e temos em distribuição gratuita o nosso Catálogo de Verão, um folheto de cerca de 70 páginas nitidamente impresso, profusamente ilustrado e com artística capa a cores, contendo além da enumeração dos milhares de artigos que vendemos, com a designação dos seus preços, instruçõees claras sobre o modo de fazer encomendas ao Parc Royal. Damos assim, a todos quantos o pedem, o catálogo da maior e a 53 Anúncio na Revista Fon-Fon Nº 4 – Maio 1908 Anúncio na Revista Fon-Fon Nº 6 – Maio 1908 55 Anúncio na Revista Fon-Fon Nº 7 – Maio 1908 56 Anúncio na Revista Careta Nº 222 – Agosto 1912 57 Anúncio n’O Malho Nº 739 – Novembro 1916 54 69 melhor casa do Brasil, da que mais vende, uma casa que só considera vantajosas as transações que satisfazem plenamente os seus clientes, uma casa, finalmente, cujas tradições de integridade tem por alicerce um passado de trinta anos de transações honestas com o público”;58 “Aos nossos fregueses do Interior – Nesta época, em que se renovam os sortimentos de todas as nossas seções, lembramos aos nossos amigos do Interior a conveniência de nos enviarem com a possível brevidade as suas encomendas do Natal, o que oferecerá ocasião de atender a essas ordens com a maior brevidade e atenção”;59 “Acha-se em distribuição gratuita o nosso Catálogo de Verão, com ampla discriminação de todas as novidades da estação. Às pessoas do interior que desejarem recebê-lo, pedimos o obséquio de nos enviarem, devidamente preenchido, o cupom abaixo, e imediatamente lhes faremos a remessa desejada”.60 Lembre-se que a região do Vale do Paraíba vivenciou, até a década de 1930, uma pujança econômica derivada do ciclo do café, daí porque podemos supor que o magazine se dirigisse a potenciais compradores no interior do Rio de Janeiro, além de outros estados. Em vários anúncios ilustrados veiculados nas décadas de 1910 e 1920, mantiveramse “janelas” de texto que incentivavam os pedidos de catálogos. Não encontramos nenhum exemplar dos mesmos em nossa pesquisa, mas há anúncios que reproduzem páginas de alguns deles. Nesses casos, havia na margem inferior do reclame o seguinte tipo de informação: “É esta uma das páginas do catálogo ilustrado, de novidades para verão, que está agora em distribuição”.61 Nos exemplos que encontramos, observamos uma divisão por gêneros; ilustrados por Mora, os catálogos dispunham desenhos de várias mulheres ou homens, vestidos com as peças de indumentária à venda, associadas a um breve texto descritivo que fornecia informações sobre o tecido, os detalhes e o preço das mercadorias. 58 Anúncio n’O Malho Nº 800 – Janeiro 1918 Anúncio n’O Malho Nº 848 – Dezembro 1918 60 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº344 – Dezembro 1923 61 Anúncio na Revista Careta Nº 340 – Dezembro 1914 59 70 Figs. 11 e 12. Reproduções de páginas de catálogos do Parc Royal publicados na Revista Careta Nº. 344 e na Revista Fon-Fon Nº. 3, ambas em Janeiro de 1915. Havia ainda catálogos temáticos, destinados a ocasiões específicas; por exemplo, apenas com artigos para casamento - “Peçam o catálogo especial de Noivas”62 -, roupas para banho de mar63 ou produtos em remarcações – “Em distribuição, o catálogo especial de saldos”.64 Uma vez “cadastrados”, os clientes passariam a recebê-los daquele momento em diante, ainda que, de certo modo, à sua revelia: “Enviando-nos a sua direção, receberá periodicamente os nossos catálogos”.65 Os catálogos eram gratuitos, e levavam o mundo dos bens para a residência dos receptores, configurando uma arena propícia para a fetichização. Assim como os anúncios, que também “invadem” o campo visual do espectador, os catálogos propiciavam, por meio da sua propagação, a abordagem e a formação de um público consumidor. O destaque ao universo infantil, outra feição das lojas de departamento que já se verificava em países centrais (LEACH, 1993: 85), embora não fosse um costume em terras nacionais, foi encampado pelo Parc Royal; havia, na segunda loja do Largo de São Francisco, uma seção específica de brinquedos. Os itens para crianças eram particularmente anunciados: “Lembramos outrossim que estamos aparelhados com um sortimento monstro 62 Anúncio na Revista da Semana Nº 11 – Março 1921 Anúncio na Revista O Cruzeiro Nº 2 – Dezembro 1928 64 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 101 – Abril 1919 65 Anúncio na Revista O Cruzeiro Nº 22 – Abril 1929 63 71 de Brinquedos e Artigos para Crianças, e que tudo foi objeto de preços excepcionais ao alcance de todos”66 (grifos originais do anúncio); “Brinquedos modernos para crianças”.67 Fig. 13. Seção de brinquedos do Parc Royal Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ Com anúncios no Almanaque Tico-Tico, o Parc Royal atingia diretamente um público leitor infanto-juvenil, que por sua vez teria poder para influenciar a escolha de consumo dos seus responsáveis. Em reclames coloridos, de página inteira, investiam em sua imagem como depositário de itens desejados pelos consumidores mirins: “Esta casa vem de há muitos anos consolidando a sua reputação como o maior fornecedor de artigos para crianças. A recente ampliação da seção consagrada a esta classe da sua freguesia teve por objetivo conquistar, mediante boas ofertas e preços vantajosos, uma clientela cada vez maior entre as crianças de todo o Brasil, e incutir-lhes o duplo gosto de se vestirem bem e de se vestirem com economia. O ano de 1919 será consagrado a novos esforços com o fim de corresponder cada vez mais à honrosa preferência conferida pelo público ao Parc Royal”.68 O magazine carioca, ao adotar a demarcação de preços fixos, a divisão por seções, a arquitetura e a organização espacial de modo a facilitar a circulação de clientes e a visualização das peças, a utilização de vitrines de vidro, a oferta de serviços, a venda por catálogos e a caracterização de um universo infantil, implantou no Rio de Janeiro, de forma pioneira, um modelo de comércio próprio das lojas de departamentos, num período onde emergiram as bases formativas do consumo moderno. 66 Anúncio n’O Malho - Nº848 – Dezembro 1918 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 6 – Dezembro 1919 68 Anúncio no almanaque Tico-Tico de 1919 67 72 5 – Imagens e representações na comunicação do Parc Royal 5.1 Referenciais de modernidade num projeto comercial Percebe-se ao longo de toda a produção publicitária do Parc Royal a construção de um discurso com base em certos emblemas identificados com a loja, sintetizados no trecho a seguir: “A Moda - nas suas últimas criações; Os Sortimentos - na sua máxima variedade; Os Preços - no seu mais baixo limite”.69 Transparece a valorização pelo magazine daquilo que fosse a “última novidade”, com ênfase na moda, na originalidade, na diversidade de produtos oferecidos e seus respectivos custos vantajosos. O alarde dos preços baixos, constante na comunicação da loja, revela um apelo popularesco, que manteve-se em dualismo à edificação de uma imagem elitista: “Últimas novidades – Preços baratíssimos”,70 “O mais lindo e novo sortimento – Preços os mais baratos”,71 “É esta a casa que possui o mais completo e melhor sortimento e incontestavelmente, a que vende mais barato”;72 “A maior variedade, as melhores qualidades, os preços mais convenientes”,73 “Os nossos preços intimam a comprar – Quando deseja V. Exa. cumprir a intimação?”;74 “Tenha em mente que ninguém lhe pode fornecer artigos mais elegantes nem mais baratos do que nós lhe oferecemos”;75 “Exposição constante das últimas novidades marcadas pelos menores preços”,76 “Sortimentos enormes, Preços inconfundíveis”;77 “O que oferecemos: (...) Preços que representam o valor exato dos artigos que vendemos, e que assentam no nosso imutável propósito de trabalhar com uma margem de lucro reduzido”;78 “Ofertas e realidades – Os anúncios pomposos, oferecendo vantagens inverossímeis, só iludem os espíritos irrefletidos. As pessoas ponderadas, quando precisam comprar, preferem casas de responsabilidade, com uma longa tradição de honestidade, e que pela cifra das suas transações, estão naturalmente em condições de lhes oferecer melhores negócios. Outro não é o motivo porque compradores de todo o Brasil se abastecem no Parc Royal (...). Visitem os compradores as nossas vitrines e se certificarão de 69 Anúncio na Revista da Semana Nº13 – Maio 1921 Anúncio n’O Malho – Nº 9 – Novembro 1902 71 Anúncio na Revista Fon-Fon Nº 15 – Junho 1908 72 Anúncio na Revista Careta Nº 53 – Junho 1909 73 Anúncio na Revista Careta Nº 351 – Março 1915 74 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 34 – Janeiro 1918 75 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 84 – Dezembro 1918 76 Anúncio n’O Malho – Nº 888 – Novembro 1919 77 Anúncio na Revista da Semana Nº 51 – Janeiro 1920 78 Anúncio na Revista da Semana Nº 11 – Março 1922 70 73 que, pela barateza e honestidade com que vendemos, cada vez mais fazemos jus ao favor que o público sempre dispensou ao Parc Royal”.79 Na publicidade contemporânea, a insistência no baixo custo é comumente utilizada por estabelecimentos de apelo popular, cujo alcance se extende às classes menos favorecidas economicamente, enquanto os estabelecimentos de luxo não costumam divulgar o preço de seus produtos. Para o seleto público desses últimos, o custo da mercadoria não seria um inibidor, tampouco o fator que influenciaria na compra; os atributos metafóricos associados aos produtos e à sua marca que seriam determinantes na aquisição dos bens. No discurso comercial do Parc Royal, esses dois aspectos – a carga simbólica dos produtos e seus preços vantajosos – coexistem. De fato, a divulgação de preços vantajosos como chamariz para o público perpassou a publicidade do magazine durante todo período objeto da presente pesquisa. Embora não fosse uma regra, há vários anúncios em que os produtos são inclusive precificados, sobretudo em épocas de “Saldos e remarcações”, mas não necessariamente apenas nessas ocasiões. A demarcação de valores fixos, a constante referência aos preços baixos - que seriam oportunos em relação aos concorrentes - e às vantagens da relação custo-benefício de suas mercadorias, reforça a suposição que o magazine talvez se dirigisse a um público mais amplo e não apenas à elite endinheirada da capital. O Parc Royal se apresentava como “a maior casa do Brasil, é a única onde há de tudo e para todos, serve igualmente bem aos ricos e aos remediados. No Parc Royal se vende desde o mais modesto vestido à mais luxuosa toilette”.80 Para o amplo espectro de seu público-alvo, ressaltava que a loja seria o lugar “onde encontrarão, a par de preços especialmente fixados para atender a todos os orçamentos, uma variedade de sortimentos que nenhuma outra casas pode proporcionar à sua freguesia”.81 Contudo, percebe-se também no exame do conjunto dos anúncios que a loja não possuía um caráter essencialmente popular. O Parc Royal externava uma imagem de requinte, beleza e sofisticação que o tornava atraente às elites, ao mesmo tempo em que fazia um convite ao consumo extenso a todos. O funcionamento do Parc Royal era baseado na feição primeva das lojas de departamento – comprar grandes quantidades, marcar menores preços, vender mais – e seu modus operandi era divulgado nos anúncios: “Se muito vendemos, muito temos de comprar, 79 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 313 – Maio 1923 Anúncio na Revista da Semana Nº 383 – Outubro 1915 81 Anúncio n’O Malho – Nº 744 – Dezembro 1916 80 74 e as grandes compras – é bem intuitivo – permitem-nos fazer preços com que nenhuma outra casa pode competir”;82 “Qual a razão por que o Parc Royal vende mais barato do que as outras casas? Porque todas as mercadorias existentes nos seus grandes armazéns foram compradas e pagas a dinheiro com todas as reduções no custo original e todos os grandes descontos inerentes – Os fregueses do Parc Royal participam seguramente das incontestáveis vantagens desta organização excepcional”;83 “Os nossos departamentos, nas últimas semanas, tem regurgitado de freguesia. É que raras vezes nos é possível reunir artigos tão vantajosos e atraentes como os que agora estamos oferecendo ao público. É de grande utilidade para todos examinar os preços e conhecer os nossos grandes sortimentos de vestidos finos da moda, chapéus modernos, roupas brancas, artigos para crianças, artigos para homens”;84 “Levem as donas de casa as suas economias ao Parc Royal e ele as fará frutificar sob a forma de excelentes artigos da última moda para senhoras, para homens e para o lar, a preços que são o segredo do Parc Royal”;85 “Os nossos reclames batem as teclas da economia, da elegância e da alta qualidade dos nossos artigos, mas o público não tem obrigação de acreditar nos nossos reclames – Venha ver por seus próprios olhos”;86 “Os nossos sortimentos são tão completos e os tecidos por si mesmos tão novos e cheios de distinção, que não haverá quem, vendo os preços por que os vendemos, não se resolva a ser elegante sem ser explorado”;87 “As criações deste ano são de grande originalidade. O meio de realizá-las a preços módicos é há meses o objeto de um estudo especial do Parc Royal – Queira V. Ex. visitar na seção de Toillettes os últimos modelos de chapéus e vestidos – Verá a maneira sábia pela qual se consegue aliar a extrema elegância com a extrema barateza”;88 “Admirar os nossos artigos é uma prova de bom gosto. Comprá-los é uma prova de zelo pela própria economia”.89 82 Anúncio n’O Malho – Nº 845 – Novembro 1918 Anúncio na Revista Careta Nº 285 – Novembro 1913 84 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 95 – Março 1919 85 Anúncio na Revista da Semana Nº 50 – Dezembro 1922 86 Anúncio na Revista Careta Nº 202 – Abril 1912 87 Anúncio na Revista da Semana Nº 42 – Novembro 1917 88 Anúncio na Revista Careta Nº 291 – Dezembro 1913 89 Anúncio na Revista da Semana Nº 44 – Dezembro 1917 83 75 Fig. 14. Os estoques do Parc Royal Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ Proporcionar o consumo de produtos sofisticados a preços acessíveis era equiparado a um ato de sabedoria. E o ato de comprar naquela loja, por sua vez, equiparado a uma escolha de “bom gosto com economia”, um modelo a ser seguido: “V. Exa. Não se arrependerá se imitar o bom exemplo que lhe dão milhares de pessoas: comprar no Parc Royal”.90 Embora frisasse o proveito de seus preços, o Parc Royal reproduzia materialmente, na arquitetura de suas lojas e nos tipos de produtos que vendia, os padrões estéticos europeus que eram identificados pela elite carioca como ideais e desejáveis e em sua comunicação publicitária reforçava valores indexados às matrizes estrangeiras de modernidade, civilização e progresso almejados pelas classes dirigentes brasileiras. As representações construídas na sua publicidade, os locais e situações retratados e a moda adotada pelo Parc Royal estavam em sintonia com referenciais culturais admirados e propagados pela elite. “Elegância”, “Distinção” e “Beleza” afiguram-se como imperativos presentes na comunicação da loja durante as décadas de 1910 e 1920. Tais atributos integravam o campo perceptual do Parc Royal construído nos anúncios, identificados aos seus produtos e àqueles que lá comprassem. Conforme alguns exemplos a seguir: “Homens e Senhoras em toda a parte se fazem notar pela sua elegância quando se apresentam vestidos como sabe vesti-los o Parc Royal”;91 “Elegância e Moda: nos nossos sortimentos, sempre variados, sempre modernos, sempre renovados, congraçam-se a elegância feminina e masculina, proclamando 90 91 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 65 – Agosto 1918 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 79 – Novembro 1918 76 a vantagem inexcedível de vestir no Parc Royal”;92 “Um encantador ambiente de distinção, de beleza e de elegância envolve todas as senhoras que se vestem no Parc Royal”;93 “Parc Royal: Um grande mercado de elegância, onde todos – senhoras, homens, crianças – encontram o artigo de que precisam pelo preço que lhes convém”;94 “Para ser elegante visite V. Exa. a grande exposição de vestidos de verão do Parc Royal”;95 “Ser elegante é bem fácil, com o auxílio do Parc Royal”;96 “Senhoras e Homens elegantes, onde quer que apareçam, proclamam a vantagem de vestir com distinção e economia como os veste o Parc Royal”;97 “Dois focos para os quais convergem todas as atividades do Parc Royal: elegância masculina – elegância feminina”.98 A escolha do vestuário adquiria uma grande importância na exibição social, e exigia um saber específico - em conformidade com cânones estrangeiros de moda e modernidade, propagados nos periódicos e nos anúncios – cuja apreensão seria facilitada, com o auxílio do magazine. Fig. 15. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 129 – Outubro 1919 92 Anúncio na Revista da Semana Nº 10 – Março 1921 Anúncio na Revista da Semana Nº 40 – Outubro 1921 94 Anúncio na Revista Careta Nº 798 – Outubro 1923 95 Anúncio na Revista da Semana Nº 7 – Março 1920 96 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 120 – Agosto 1919 97 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 127 – Outubro 1919 98 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 129 – Outubro 1919 93 77 Fig. 16. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 127 – Outubro 1919 No que diz respeito ao seu público-alvo, “Parc Royal recebe diariamente a sociedade elegante do Rio de Janeiro”;99 “Invariavelmente elegantes são as nossas freguesas que por si mesmas proclamam em toda a parte o fino gosto, a novidade, a distinção, a modicidade das criações da moda do Parc Royal”;100 “Não há uma rua no Rio de Janeiro onde não passe uma senhora elegante. Não há uma senhora elegante que não seja freguesa do Parc Royal”;101 “No Rio de Janeiro pode-se sempre apostar com segurança que em qualquer grupo de senhoras elegantes metade pelo menos são freguesas do Parc Royal. Bem assim se pode apostar que em qualquer reunião de elegância as senhoras que se apresentam com a mais chic distinção são freguesas do Parc Royal”;102 “Senhoras e homens elegantes – onde quer que apareçam, proclamam a vantagem de vestir com distinção e economia, como os veste o Parc Royal”;103 “Vão ao Parc Royal porque são elegantes, são elegantes porque se vestem no Parc Royal”.104 Ou seja, o Parc Royal dirigia-se à “sociedade elegante” que recebia em suas lojas, e quem frequentasse suas lojas e comprasse seus produtos estaria inscrito na “sociedade elegante”. 99 Anúncio na Revista Careta Nº 458 – Março 1917 Anúncio na Revista da Semana Nº 3 – Fevereiro 1918 101 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 82 – Dezembro 1918 102 Anúncio na Revista da Semana Nº 7 – Março 1918 103 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 127 – Outubro 1919 104 Anúncio na Revista da Semana Nº 39 – Setembro 1923 100 78 A auto-qualificação da loja como um lugar único habilitado a oferecer aos consumidores um determinado padrão de elegância vem à tona, ainda, num anúncio que reproduz um diálogo entre um casal que observa e julga a aparência de dois homens à distância: “Dialogando... Ela – Por que serão assim tão diferentes dois homens vestidos com o mesmo apuro: um elegante com distinção, o outro ridicualamente elegante? Ele – Não é difícil saber: é que o primeiro veste-se no Parc Royal, o outro...o outro veste-se em qualquer parte...”.105 Fig. 17. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 124 – Setembro 1919 Ao passo em que alinhava-se com matrizes estrangeiras de modernidade e refinamento, o magazine apresentava-se como disseminador dessas prerrogativas, como se pudesse oferecer a um público amplo o estilo das elites: “Quereis ser elegantes? Vulgarizar a elegância é a nossa função principal”;106 “Andam por toda a metrópole carioca, de braço dado, a Elegância Feminina e a Elegância Masculina, atestado de sentimento estético que distingue a população desta cidade. Quando V. Ex. se pretender aliar a essa corrente não se esqueça de que o grande vulgarizador de elegância, entre senhoras, homens e crianças do Rio de Janeiro, é e será sempre o Parc Royal”;107 “Parc Royal: uma imensa organização que resolveu o problema de pôr a moda ao alcance de todos, e assim ganha milhões de clientes e 105 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 124 – Setembro 1919 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 120 – Agosto 1919 107 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 91 – Fevereiro 1919 106 79 milhões de amigos”;108 “Glória à organização portentosa que em todo o Brasil democratiza a moda, e a põe ao alcance de todos – ricos e pobres – indiferentemente!”;109 “Elegância Masculina / Elegância Feminina – Duas correntes de beleza que se encontram a cada passo nas ruas do Rio de Janeiro, impulsionadas pelas criações que vendemos, pela primorosa produção de nossos ateliês e oficinas, os mais valiosos auxiliares da Elegância Feminina e Masculina no tocante a artigos de vestuário para senhoras, homens e crianças”;110 “Um maravilhoso distribuidor de elegância, de beleza e de alegria: o Parc Royal”.111 Observe-se o destaque ao Rio de Janeiro como “metrópole carioca”, um modelo de cidade cosmopolita onde a população distingue-se por seus “sentimentos estéticos”, hábitos e valores próprios, onde habitam e circulam “pessoas elegantes”. Muitos anúncios eram ambientados em locais emblemáticos das reformas urbanísticas efetuadas na cidade: a Avenida Central, a Praça Marechal Floriano, a Avenida Beira-Mar, o Jardim da Glória, a balaustrada na Rua do Russel. A loja colocava-se como democratizadora do acesso à “Elegância” e à “Distinção”, como se pudesse oferecer, através da compra naquele estabelecimento, a possibilidade da ampliação do número de quem poderia ascender socialmente; ainda assim, mantinha-se norteada por referenciais de moda sofisticada e por uma maneira de viver vida adotada pelas classes mais altas da sociedade. A noção de “Elegância” estava relacionada às escolhas “corretas” da indumentária e ao modo de vida que seriam determinantes no posicionamento social; para distinguir-se no anônimo ambiente urbano, não bastaria apenas ser rico, o gosto é que poderia sugerir o status dos indivíduos com aspirações de identificação cultural à elite europeia. (NEEDEL, 1993: 186). A necessidade de ser elegante era descrita como “missão”, um “dever”, uma “lei”, “obrigação”, um “difícil problema”, uma “batalha” e até “questão de saúde”. Nesse último aspecto, os novos hábitos e a vestimenta que deveriam ser utilizados pelo público do Parc Royal ecoavam o movimento higienista que ocorreu entre meados do século XIX e início do XX no Brasil. Preconizando novas normas e propostas de intervenção, esse movimento visava a melhoria das condições de saúde coletiva e individual da população. É de se notar que, embora os referenciais de moda adotados no Rio de Janeiro desde a chegada da Corte em 1808 fossem originários de países europeus, cuja indumentária muitas vezes revelava-se 108 Anúncio na Revista da Semana Nº 8 – Março 1918 Anúncio na Revista da Semana Nº 52 – Fevereiro 1918 110 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 87 – Janeiro 1919 111 Anúncio na Revista da Semana Nº 52 – Dezembro 1924 109 80 inadequada ao clima tropical, há anúncios onde o Parc Royal faz uma inovadora menção expressa às altas temperaturas cariocas e à necessidade de uma vestimenta adequada ao calor em função da saúde: “O problema do vestuário é mais difícil de verão do que d’inverno. É preciso vestir com graça, com elegância, com distinção e com muita leveza, muito de acordo com a elevada temperatura que somos obrigados a suportar. O Parc Royal este ano, mais do em nenhum outro, conseguiu um sortimento de artigos de verão onde se avolumam as mais interessantes novidades, correspondendo tudo aos mais rigorosos preceitos da graça, da elegância, da distinção, do conforto e da higiene”;112 “O dever da elegância no verão – Ser Elegante, ser Bela, é uma imposição feita pelas convenções sociais a todas as senhoras em geral. No verão, porém, essa imposição adquire força maior, porque se alia então ao Dever de Elegância o dever de Higiene e de Saúde. Os nossos sortimentos, os nossos preços, suavizam a todas as senhoras o cumprimento desses deveres”;113 “As roupas frescas são um conforto no verão. Conforto ainda maior, é comprá-las no Parc Royal”;114 “Para não sentir calor: visitem os homens elegantes a exposição de artigos de verão no Parc Royal”;115 “Guerra ao calor! O Parc Royal oferece para a estação calmosa uma série vastíssima de artigos interessantes pela sua atualidade, bom gosto e reduzido preço, tais como: tecidos leves de algodão, bordados, cambraias e linhos de todas as cores, sedas finíssimas em padrões modernos, sombrinhas e novidades diversas para senhora (...).116 Embora os referenciais de moda masculina e feminina contemplassem o uso de tecidos de lã, peles de animais e peças de roupa impróprias para o clima carioca, num uso mimetizado que não vislumbrava críticas a modelos porventura inadequados às circunstâncias materiais brasileiras, a preocupação com a saúde externada nos anúncios do Parc Royal, relacionada ao clima e à vestimenta apropriada, denota uma incipiente iniciativa de adaptação de padrões estrangeiros à realidade nacional. O magazine chamava atenção para preceitos de higiene, para a importância do vestuário apropriado, e para a necessidade de se levar em conta as condições e o clima do país. Esse cuidado era extenso à esfera infantil, ensejando a oferta pelo Parc Royal de um vestuário adequado às tamperaturas tropicais e à mobilidade das crianças, enquanto não disfarçava a intenção de cativar, desde cedo, um potencial público consumidor futuro: 112 Anúncio na Revista Fon-Fon - Nº 50 – Dezembro 1915 Anúncio no Almanaque Eu Sei Tudo Nº 9 – Fevereiro 1918 114 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº43 – Março 1918 115 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº125 – Outubro 1919 116 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº344 – Dezembro 1923 113 81 “Cuidai das crianças – A criança é a graça, é a esperança, é a alegria da vida. Vesti as crianças com graça, com higiene, com alegria. O Parc Royal estuda continuamente o problema de vestir as crianças. As roupas desse gênero que vendemos refletem o resultado desse estudo: são fortes, resistentes, graciosas, higiênicas, adequadas ao nosso clima. As mães que nos tragam seus filhos, queremos consagrar-nos desde agora aos freguesinhos de hoje, aos nossos fregueses de amanhã”;117 “Todos querem seus filhos fortes e sadios – A roupa só se torna um fator dessa condição física perfeita, quando é construída em atenção a esse propósito. Por isso fazemos para as crianças roupas graciosas e elegantes, sim, mas arejadas, talhadas de sorte a permitir a elasticidade de movimentos, feitas de materiais resistentes, mas permeáveis ao ar e à luz. São roupas fabricadas para crianças, mas em que se teve em consideração o que requerem seus hábitos e as condições do clima do país. Roupas feitas no Brasil, para as crianças do Brasil”;118 “Estação de verão – Esta é a quadra em que as mães se devem manter vigilantes por tudo que diz respeito à saúde e ao conforto das crianças. A nossa seção de artigos para crianças, agora consideravelmente aumentada e fornecida de estoques colossais, oferece às afetuosas mamães, por preços convenientes, tudo que elas possam desejar em benefício da Elegância e da Saúde de seus filhos”;119 “Roupas para crianças – Preservai a saúde das crianças. Defendei os entesinhos tenros que por si mesmos não sabem se defender. Não vos esqueçais de que as boas roupas são a condição essencial da saúde dos pequeninos, e de que em parte alguma há roupas melhores, mais higiênicas, mais práticas e econômicas do que as vendidas pelo Parc Royal”;120 “Tempo de calor – Na quadra de verão, mães extremosas, nunca protegereis demais a saúde e o conforto de vossos filhos, de que são condição essencial as roupas próprias da estação. Para adquirilas nas melhores condições de bom gosto e economia, é de vosso interesse visitar a grande seção de artigos para crianças do Parc Royal”;121 “A lição da experiência: - Mamãe ainda não me comprou este ano as minhas roupas de verão! – Mas por quê? Lá em casa, Nhonhô, mamãe não se cansa de repetir todos os dias que para a saúde, o conforto e comodidade das crianças, não há como as roupas do Parc Royal”.122 A necessidade de se manter a “elegância” continuava a ser ressaltada, mas a preservação da saúde passava a ser levada em conta. Havia um apelo à comoção maternal e ao senso prático da dona-de-casa, na expressão da noção de conforto aliado à economia. 117 Anúncio na Revista Careta - Nº 218 – Agosto 1912 Anúncio na Revista Careta - Nº 219 – Agosto 1912 119 Anúncio na Revista da Semana - Nº 34 – Outubro 1918 120 Anúncio na Revista da Semana - Nº 39 – Novembro 1918 121 Anúncio na Revista da Semana - Nº 36 – Outubro 1918 122 Anúncio na Revista da Semana - Nº 40 – Novembro 1918 118 82 Fig. 18. Anúncio na Revista da Semana Nº 36 – Outubro 1918 Percebe-se, ao longo da verve publicitária do magazine, um caráter didático, que informava ao público objetivamente o que e como fazer em relação ao uso do vestuário feminino, masculino e infantil e também em relação à decoração do espaço privado – o lar – em instruções capazes de atingir, contudo, camadas mais profundas da subjetividade do receptor, moldando seu comportamento, formando um hábito de consumo, delimitando valores e padrões a serem seguidos como balizas de vivência social. A “elegância” é tratada ainda como uma “questão de princípios” incluída entre as premissas que norteavam as atividades da loja: “A elegância do traje masculino, só a complementam os seus acessórios (...) Os nossos artigos são escolhidos em obediência a esse princípio. O artigo bom, fino, elegante, encontra-se sempre no Parc Royal. Se é artigo que não reune esses predicados, o Parc Royal não o quer por preço algum. A perfeição da nossa organização, as nossas avultadas compras no país e no estrangeiro permitem-nos vender em condições que o público por força acolhe com simpatia. A comparação entre os preços vulgares e os nossos bastará para convencê-lo da sinceridade do conselho: Comprar no Parc Royal”.123 No entanto, ao mesmo tempo em que a “elegância” era considerada uma espécie de regra a ser observada, saber o que seria considerado elegante e como seguir determinados padrões de bom gosto não seria uma tarefa fácil, ao menos assim queria fazer crer o Parc Royal. Nos seus anúncios, enquanto reforçavam a necessidade do cumprimento de uma convicção prévia - “ser elegante” – apresentavam esse objetivo como uma função difícil e 123 Anúncio na Revista Careta – Nº216 – Julho 1912 83 árdua, mas que poderia ser efetuada com a ajuda da loja: “O seu vestuário é um problema – um problema que nós resolvemos para milhares de pessoas todos os dias”;124 “Problema resolvido – Vestir-se com elegância é um difícil problema que quotidianamente se apresenta a todas as senhoras e a todos os homens. Mas quem realmente deseja só vestir com elegância, mas também com economia, encontra a dupla solução do problema, vestindo-se no Parc Royal.”125 A equiparação das exigências do vestuário à ideia de um “problema” aparece ainda em outros momentos do discurso comercial, como o “problema de vestir as crianças”126 ou o “problema árduo” de encontrar colletes sob medida.127 Assim, o Parc Royal colocava-se como um auxiliar poderoso, capaz de solucionar esses “problemas”; para isso, o público deveria adotar a moda difundida pelo magazine, comprar produtos naquele local e usar as roupas e acessórios lá adquiridos. A competitividade no “desfile” social era ressaltada, na medida em que poderia ser um impulso ao consumo. Em anúncio ilustrado que retrata um casal em frente ao Theatro Municipal, um dos locais frequentados pela elite carioca, o texto incentivava a disputa: “Prelúdio da estação: a batalha anual da Elegância será ferida em breve no Municipal. Habilitem-se à Vitoria os combatentes dos dois sexos, sortindo-se no Parc Royal”.128 Adequar-se aos novos códigos e maneiras de se vestir seria um dever a cumprir para o êxito, tanto individual – uma vez que seria uma “questão de saúde” - quanto na vida em sociedade, uma verdadeira obrigação: “Prestigiar a Moda corrente é cumprir uma missão de elegância, preservando a própria saúde”;129 “A abertura da Estação de Festas vai obrigar todas as Senhoras Elegantes a alguma despesa com as suas toilettes”;130 “Suprema lei de Elegância: vestir no Parc Royal”.131 (grifos da Mestranda) 124 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº64 – Julho 1918 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº78 – Novembro 1918 126 Anúncio na Revista Careta - Nº 218 – Agosto 1912 127 Anúncio na Revista Careta – Nº 221 – Agosto 1912 128 Anúncio na Revista Careta Nº 469 – Junho 1917 129 Anúncio na Revista Careta Nº 769 – Março 1923 130 Anúncio no Almanaque Eu Sei Tudo Nº 11 – Abril 1918 131 Anúncio no Almanaque Eu Sei Tudo Nº 3 – Agosto 1920 125 84 Fig. 19. Anúncio na Revista Careta Nº 769 – Março 1923 Na figura do anúncio acima, a mensagem imperativa que associava a observância da moda a um dever de elegância e saúde é acompanhada por uma ilustração do portal de acesso da Exposição Internacional de 1922, promovida pelas elites do Rio de Janeiro em homenagem ao Centenário da Independência do Brasil, visando a exibir os avanços do país e afirmar a identidade da nação. Considerada o maior evento republicano do início do século XX, a Exposição de 1922 atraiu visitantes nacionais e estrangeiros e motivou uma série de transformações no espaço urbano; influenciou o movimento da modernidade brasileira, realçando elementos capazes de reforçar uma noção de urbe cosmopolita higiênica e ordenada, erigida sobre os princípios da razão e do progresso. Inspirada nas grandes exposições do século XIX, tratava-se de uma feira onde se promovia o culto às mercadorias; um espaço propício para a veneração do efêmero e a valorização das novidades técnicoindustriais. O Parc Royal, ao incorporar esse acontecimento em sua publicidade, atrelava o consumo de moda naquele local a esses referenciais, ampliando o alcance de suas proposições a um ideal modernista brasileiro. A utilização de outros “anúncios de oportunidade” - inspirados em fatos que eram notícia - pelo Parc Royal será analisada mais detalhadamente na próxima seção. 85 A loja contava com um escritório próprio em Paris para proceder à negociação dos produtos importados junto aos fornecedores: “Todas as fazendas, modas e em geral, todas as mercadorias existentes nos armazéns do parc Royal são compradas pela sua sucursal de Paris em condições excepcionais de novidade, qualidade e preço”;132 “O Parc Royal faz todas as suas compras na Europa, diretamente dos fabricantes a dinheiro à vista e por pessoal da casa (...)”; 133 “O sortimento que o Parc Royal expõe este ano, inteiramente adquirido pela nossa casa de Paris, excede tudo quanto se fez nos anteriores, não só pela variedade, bom gosto e alta elegância como pela extrema modicidade dos preços”;134 “O sortimento que o Parc Royal expõe este ano, todo adquirido pela sua casa de Paris e os preços marcados em todos os artigos justificam a sua fama tão legitimamente adquirida de que é a casa em todo o Rio de Janeiro que tem o melhor sortimento e que vende mais barato”.135 Paris ocupava, no início do século XX, o posto de capital cosmopolita mundial, um polo irradiador de uma ideia de modernidade que incluía a moda entre seus mais expressivos fenômenos; na qualidade de centro gerador de tendências, a cidade francesa era a matriz onde o mundo da moda iria buscar coordenadas para suas ações. Correspondentes de revistas especializadas e compradores de lojas de departamento dos Estados Unidos viajavam comumente a Paris para importar ideias e sugestões, na medida em tudo o que fosse parisiense era considerado uma garantia para consumidores interessados em moda (LEACH, 1993: 99). O afrancesamento desse universo ficava patente nos anúncios do Parc Royal, que além de divulgarem, como trunfo, a existência e atuação de seu escritório em Paris, reiteradamente utilizava expressões em francês no texto publicitário e incorporava, entre as principais qualidades de seus produtos, sua origem importada daquele país; “Quando V. Exa. quiser apenas um vestido, encontrá-lo-á em qualquer parte; mas quando V. Exa. fizer questão de adquirir uma toilette que seja a expressão da última moda de Paris, e por preço razoável e justo, não poderá deixar de comprar no Parc Royal”;136 “Paris eterno! Triunfando em suas dores, Paris acaba de enviar-nos um primoroso sortimento de toilettes para baile e para teatro, compreendendo as últimas novidades criadas para o triunfo da elegância 132 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 4 – Maio 1908 Anúncio no Almanaque Laemmert de 1908 134 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 6 – Maio 1908 135 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 5 – Maio 1908 136 Anúncio na capa do Programa do Theatro Municipal – Temporada oficial de 1918 133 86 feminina”.137 Nesse último anúncio, note-se a referência às “dores” decorrentes da Primeira Guerra Mundial. Outros exemplos de exaltação aos produtos da capital francesa: “Vestidos e chapéus recém-chegados de Paris para teatro, passeio, visita, etc.”;138 “Para as formosas cariocas: vestidos de Paris, últimas improvisações da moda; chapéus-modelos, criações das grandes modistas da cidade-luz”;139 “Robes de soir, chapeaux-modèles, um sortimento da mais fina escolha em que colaboraram as mais reputadas costureiras e modistas de Paris”;140 “Adquira V. Ex. uma das lindas criações da moda que acabamos de receber de Paris e inaugure assim com distinção e elegância a sua estação de verão”;141 “Acabamos de receber de Paris artigos supramente chics”;142 “Uma vez por semana partem da França grandes transatlânticos que transportam as últimas novidades da moda destinadas ao Parc Royal”;143 “Continuamos a fruir os benefícios de uma organização sistematizada com o objetivo de recebermos por todos os vapores as últimas novidades da moda expressamente escolhidas em Paris para a nossa elegante clientela feminina”;144 “Num vai-vem inalterável, todos os dias partem para Paris novos pedidos, todos os dias chegam ao Rio novos vapores, trazendo as últimas novidades da moda para os fregueses do Parc Royal”.145 Em 1926, a loja oferecia inclusive uma Seção de Luxo “sob a direção de Mme. Yvonne Labriet com os mais elegantes modelos dos grandes ateliês de Paris – luxuoso salão reservado no 1º. Andar”.146 O espelhamento francófilo propagado pela loja era evidenciado inclusive em anúncios redigidos totalmente em francês, como este a seguir: “Robes de théatre, toillettes de visite, manteaux et costumes – modèles de haute couture – Chapeaux – modèles des grands maisons parisiennes, soieries et draperies, porte-trésors, coilliers, bracelets et tous les mille petits riens qui complètent le charme de la femme élégante. Nous désirons faire savoir à nos élégants clientes que nous recevon de Paris, toutes les semaines, ces articles et les offrons a des pris sérieux”.147 Às roupas importadas de Paris, somavam-se peças de alfaiataria confeccionadas por encomenda, sob medida, nas próprias oficinas do Parc Royal inauguradas em 1908, conforme informações publicitárias: “Oficina Modelo de Tailleur de Dames: Acaba de ser 137 Anúncio na Revista da Semana – Nº 25 – Julho 1918 Anúncio na Revista da Semana – Nº 50 – Janeiro 1920 139 Anúncio na Revista da Semana – Nº 5 – Março 1920 140 Anúncio na Revista da Semana – Nº 28 – Julho 1921 141 Anúncio na Revista da Semana – Nº 41 – Outubro 1921 142 Anúncio na Revista da Semana – Nº 31 – Julho 1922 143 Anúncio na Revista da Semana – Nº 14 – Março 1923 144 Anúncio na Revista Frou-Frou – Nº 4 – Setembro 1923 145 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 132 – Novembro 1919 146 Anúncio na Revista da Semana – Nº 30 – Julho 1926 147 Anúncio na Revista Frou-Frou – Nº 2 – Julho 1923 138 87 montada esta oficina sob a direção de um artista de primeira ordem e com pessoal habilitadíssimo. Vestidos feitos e por medida. Modelos inéditos e exclusivos do Parc Royal. A organização deste novo ateliê sendo a mais completa possível, autoriza-nos a garantir às nossas clientes a perfeição absoluta dos trabalhos e a extrema modicidade dos preços, sistema habitual da casa (...); Duas grandes oficinas de vestidos, uma servindo as nossas clientes da seção da Avenida, outra fornecendo a extensa freguesia da casa do Largo de São Francisco”;148 “Dois grandes ateliês de vestidos. Executa-se desde o mais rico até o mais simples. Vestidos feitos. Modelos de Paris. Enxovais de casamento”;149 “Officina de Tailleur – Alfaiate para as senhoras; Esta nova oficina, montada em grande escala, executa por medida todo e qualquer modelo de vestidos ou confecções, gênero tailleur, garantindose a perfeição absoluta na forma e na mão de obra. Modelos novos, já feitos, em drap, casemiras, tecidos de lã e fantasia, desde 100$000 até...”;150 “Ateliê de 1ª. Ordem, montado sob a direção de um hábil alfaiate para a execução de todos os gêneros de vestidos tailleur e confecções de lã em geral. O sucesso desta oficina recentemente instalada, tem sido absoluto. Todos os vestidos entregues têm correspondido plenamente ao desejo dos clientes”;151 “O Parc Royal possui nove oficinas, perfeitamente organizadas, funcionando à electricidade, com um pessoal de duzentas operárias, executando grande numero de artigos que já são conhecidos nos mercados do Brasil pela sua perfeição”;152 “As nossas oficinas, dispondo de um pessoal numeroso e hábil, executam qualquer encomenda de vestidos, chapéus e confecções em geral, com toda a perfeição e grande rapidez”;153 “O ateliê de tailleurs e vestidos sob medida do Parc Royal oferece todas as vantagens e garantias: 1º. É dirigido por um francês da mais absoluta competência. 2º. O grupo de costureiras foi escolhido entre as melhores e mais habilitadas. 3º. Executa qualquer figurino seguindo sempre as indicações da moda. 4º. Emprega só tecidos e aviamentos de primeira qualidade. Os preços são sempre moderados”.154 Note-se que inicialmente, em 1908, informou-se que havia duas oficinas, uma para atender cada filial (Avenida e Largo de São Francisco), mas em 1909 o anúncio da loja denotava uma ampliação, contabilizando nove oficinas e o número de funcionárias que nelas trabalhariam. O Parc Royal divulgava a especialização dos ateliês, que poderiam atender 148 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 4 – Maio 1908 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 5 – Maio 1908 150 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 6 – Maio 1908 151 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 7 – Maio 1908 152 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 15 – Abril 1909 153 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 14 – Julho 1908 154 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 6 – Março 1915 149 88 encomendas de chapéus ou colletes, uma espécie de modelador um pouco mais flexível que o espartilho: “Oficina de chapéus de senhoras e meninas, dirigida por Mlle. Maillard, modista de Paris, contratada recentemente para o Parc. Os chapéus do Parc conquistaram o primeiro lugar nas rodas elegantes do Rio. Os modelos expostos nas vitrines da Avenida Central, esgotando-se sucessivamente, tem sido preferidos pelas senhoras mais elegantes. Os modelos são inéditos e não se reproduzem. Para facilitar às nossas clientes, confeccionarem elas mesmas os seus chapéus ou transformarem-nos, vendemos todas as guarnições, flores, plumas, formas, etc., por preços extremamente razoáveis”;155 “Atelier de colletes: 50 modelos a escolher. Executa-se por medida qualquer modelo e garante-se a perfeição absoluta na forma e na mão de obra”;156 “No nosso ateliê de colletes sob medida, dirigido por uma hábil parisiense, executamos qualquer modelo, tendo sempre em vista a elegância, a higiente, o conforto, a comodidade, a barateza, a qualidade. Colletes sob medida, com prova, desde 30$000”;157 “Somos fabricantes, temos grandes oficinas de colletes sob medida, fabricamos 6.000 colletes todos os meses e assim diariamente resolvemos para milhares de outras senhoras, problemas tão árduos como o de V. Ex. Respondemos pelo artigo que lhe vendemos: é duradouro, confortável e elegante. A experiência de V. Ex. valerá, porém, mais que a nossa afirmativa. Experimente e então se dará por convencida. Quando vem experimentar?”.158 A quantificação dos modelos disponíveis e da produção confeccionada pela loja indicava uma comunicação de superlativos capazes de impressionar os receptores dos anúncios e reificar a imagem do Parc Royal como “maior e melhor casa do Brasil”. Fig. 20. Ateliê de vestidos do Parc Royal Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ 155 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 4 – Maio 1908 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 5 – Maio 1908 157 Anúncio na Revista Careta – Nº 189 – Janeiro 1912 158 Anúncio na Revista Careta – Nº 221 – Agosto 1912 156 89 O magazine oferecia também o serviço de alfaiataria masculina: “Para a elegância dos homens, alfaiataria modelar, provida dos mais amplos e variados sortimentos de fazendas de todas as qualidades, com pessoal habilitadíssimo e oficinas que trabalham com rapidez e perfeição”;159 “Oficina primorosamente montada, dispondo dos mais conceituados cortadores. Encomendas executadas com a maior rapidez e perfeição. Visitem a alfaiataria do Parc Royal”.160 E, por fim, a loja disponibilizava serviços para a casa: “Possui o Parc Royal seções especiais de estofador e armador, atendidas por artistas peritos, capazes de executar com elegância, perfeição e rapidez, qualquer modelo de decoração doméstica que lhes seja indicado”;161 “Acabamos de ampliar o nosso departamento de móveis e tapeçarias e de sorti-los com um formidável estoque de artigos desse ramo. Dispõe esse departamento de excelentes artistas, aptos em todos os mistéres das profissões de armador, estofador e decorador, e fornece gratuitamente orçamentos a todos os que desejarem embelezar suas residências”.162 Numa certa medida, o diversificado serviço dos ateliês acompanhava a amplitude dos produtos oferecida pela loja de departamentos, atendendo a homens e mulheres, confeccionando modelos caros ou mais baratos de vestuário, incluindo a roupa de baixo (colletes), oferecendo chapéus já prontos ou a matéria prima para que o cliente pudesse fazê-lo, além dos serviços específicos referentes a decoração de ambientes; a moda aplicava-se também ao interior do lar. A grandiosidade das oficinas e a variedade do que se poderia encomendar são aspectos destacados na verve persuasiva que clamava conceitos de rapidez, praticidade, conforto, higiene, comodidade, organização e perfeição, noções emblemáticas próprias da modernidade. Chamava-se atenção para o funcionamento elétrico como um avanço tecnológico próprio daqueles “novos tempos”, assim como para o uso do telégrafo, outra invenção que marcou a época. Em reclame no Almanaque Laemmert de 1908, o Parc Royal informava seu endereço telegráfico no Rio (“PARC”) e em Paris (“PAROYJOS”), externando o vínculo parisiense do qual se ufanava e a modernidade de suas comunicações, impregnados da crença em uma ideia racional de progresso e civilização. 159 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 96 – Março 1919 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 98 – Março 1919 161 Anúncio na Revista Careta – Nº 456 – Março 1917 162 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 97 – Março 1919 160 90 5.2 Estratégias de comunicação do Parc Royal Percebe-se no vasto discurso comercial da loja uma reiteração de certas mensagens, que comunicam pontos recorrentes: a vantagem de seus preços, divulgados como de baixo custo; a referência aos padrões parisientes de moda e novidade; a necessidade de se atender a padrões de “elegância” e “beleza” como parâmetros sociais distintivos; a acessibilidade a essas prerrogativas através do consumo no Parc Royal. Paralelamente, a autopromoção e a autoexaltação do magazine em relação às suas atividades e êxitos fica patente na sua mensagem publicitária; o Parc Royal divulgava, com detalhamento contábil, o número de funcionários, o número de clientes e o número de peças vendidas em determinado período: “A administração do Parc Royal desejava poder dirigirse individualmente a todas as pessoas que frequentam este estabelecimento para lhes desejar as Boas Festas e cumprimentá-las pela entrada do novo ano. Dá-se, porém, o caso que o Parc Royal foi frequentado durante o ano fundo por 720 MIL fregueses da capital e serviu 28 MIL compradores em todos os Estados da República. Diante da fabulosa quantidade de nomes que enchem os registros da casa, a administração reconheceu que lhe faltava o tempo materialmente necessário para cumprir esse dever de cortesia e de amizade”;163 “Durante o ano de 1912 visitaram o Parc Royal 1.610.000 pessoas, direta e indiretamente servidas por um pessoal abrangendo 1.055 pessoas em toda a organização comercial da casa. A todos esses nossos amigos que, uns e outros, têm poderosamente contribuído para o desenvolvimento deste estabelecimento apresentamos os nossos mais vivos desejos de prosperidade no ano de 1913”.164 Embora nossa pesquisa não tenha contemplado uma apuração estrita da veracidade desses índices, interessa-nos a construção da autoimagem da loja como protagonista do comércio na capital, como um estabelecimento de sucesso que propagava ideais de modernidade adotados pela elite carioca. Os anúncios do magazine ocupavam páginas inteiras das revistas; alguns deles utilizavam apenas mensagens textuais, enquanto a grande maioria era ilustrada, valendo-se de uma relação estreita entre a imagem representada e o texto que a acompanhava. Num e noutro casos, a linguagem adotada era própria da publicidade, direta e acessível, uma retórica com finalidade persuasiva e poder de convencimento do receptor. Levando-se em conta que o objetivo primordial da publicidade é a venda de produtos, eram propagadas ad 163 164 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº1 – Janeiro 1909 Anúncio na Revista Careta – Nº240 – Janeiro 1913 91 nauseam a qualidade e variedade dos mesmos, bem como sua vantajosa relação custobenefício. Havia, outrossim, uma preocupação em reforçar uma relação de proximidade, credibilidade e confiança entre os clientes e a loja. Isso fica evidenciado, por exemplo, em anúncio ilustrado pelo caricaturista Augusto Rocha, ainda sob a gestão da formação societária anterior à Vasco Ortigão & Cia., onde uma mulher segura um cartão de visita pessoal, com uma pequena dobra na ponta superior esquerda, onde lê-se: “Armazéns do Parc Royal – M. Nunes & C. e os seus empregados saúdam os seus fregueses e amigos, desejando-lhes Boas Festas e um novo ano feliz. Dezembro 1907”;165 nesse caso, não há propaganda específica de qualquer produto ou vantagem comercial, mas sim uma comunicação institucional onde a loja, representada pessoalmente por seus sócios e empregados, externa desejos cordiais a seus “fregueses e amigos”, um hábito próprio de relações interpessoais. Noutro caso, o anúncio faz crer na intimidade e na inserção da loja no cotidiano de suas clientes; sob uma ilustração requintada de uma jovem, que escreve uma carta numa escrivaninha de madeira, lê-se parte do texto da missiva: “Rio, 27/12/17 Querida Hortência, Sinto muito que ainda não pudesses vir passar uns dias comigo. Se soubesses o que estás perdendo! O Rio está lindo, a Estação em pleno apogeu. Por toda a parte homens afáveis e mulheres elegantíssimas. Os vestidos da moda são um enlevo. O Parc Royal tem os tido em tal quantidade que se tornou o templo predileto das mil novidades da moda. E que beleza de modelos! Que preços convidativos! É uma pena não aproveitares. Vê se podes...”166 A uma só vez, a loja reforça a noção da oportunidade do consumo, que não deve ser desperdiçada; a fruição da moda como atividade prazerosa; a imagem do Rio de Janeiro como um centro de beleza, requinte e civilidade; a presença do magazine na vida diária de seu público. Percebe-se também uma difusão acentuada do papel e da posição da loja como “a mais famosa”, “a preferida”, “a mais importante” e, como seu próprio slogan definia, “a maior e melhor casa do Brasil”. A loja definia, nos anúncios, as bases e os objetivos próprios de sua atuação, em transmissões detalhadas, edificando sua imagem perante o 165 166 Anúncio n’O Malho – Nº 276 – Dezembro 1907 Anúncio no Almanaque Eu Sei Tudo – Nº 8 – Janeiro 1918 92 consumidor: “Seriedade: O Parc Royal, cujas transações são sujeitas aos mais rigorosos preceitos da mais absoluta seriedade, ocupa, como o mais importante estabelecimento que é, o lugar de destaque que o público lhe destinou / Confiança: O Parc Royal, cuja organização inspira a mais absoluta confiança, é o estabelecimento preferido, sempre pronto a atender, da melhor vontade, a qualquer reclamação, trocando por outro ou restituindo a importância de qualquer artigo que não agrade / Superioridade: O Parc Royal deve à superioridade dos artigos que expões à venda, o grande desenvolvimento que atingiu, que é a compensação oferecida por o público a uma soma tão grande de esforços e a um trabalho tão aturado e persistente / Barateza: O Parc Royal é reconhecidamente a casa que vende os melhores artigos aos preços mais baratos, razão porque atingiu um elevado grau de simpatia, da parte do público, que nenhuma outra casa pôde conseguir”;167 Sem qualquer modéstia, o magazine apresentava-se como um estabelecimento de sucesso ímpar, numa argumentação expressa, por vezes fazendo uso de um tom exagerado. A própria loja repisava seu poder como como difusora da moda, do “bom gosto” e de novos hábitos de consumo. Como um reconhecimento recíproco, o magazine demonstrava respeito pelo espírito de economia e pragmatismo de seus clientes, e seu empenho para conquistá-los e oferecer-lhes motivos de satisfação: “Pelo lado prático, o Parc Royal só tem um meio significativo e eloquente de agradecer aos seus freguezes a amável preferência que lhe tem dado. Este meio consiste em servil-os cada vez melhor. De resto, a administração, vivendo na estreita intimidade do publico, bem conhece as difficuldades, cada vez mais pesadas que lhe oneram a economia doméstica, e faz tudo quanto pode para lhe facilitar os artigos do seu comércio, pelos mais baixos preços”;168 “Os nossos esforços pela conveniência do público visam conquistar tantos amigos quanto fregueses tem o Parc Royal”;169 “Todos os esforços da administração do Parc convergem para este duplo objetivo – oferecer à venda mercadorias da melhor qualidade possível pelos preços mais baratos. O resultado obtido tem sido do mais evidente sucesso. O Parc Royal é hoje a casa mais popular do Brasil pela grande extensão do seu sortimento e pela extrema barateza de seus preços”.170 Havia uma expressão de empatia pelo consumidor, um posicionamento de afinidade e compromisso visando ao consumo como um benefício para todos. No afã de cativar o público, o Parc Royal externava sua filosofia, por vezes adotando um quê de modéstia, com 167 Anúncio na Revista Careta – Nº 188 – Janeiro 1912 Anúncio na Revista Fon-Fon - Nº 1 – Janeiro 1909 169 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 63 – Julho 1918 170 Anúncio na Revista Fon-Fon - Nº 15 – Abril 1909 168 93 feição moralista: “Quem tudo quer, tudo perde. Por nos contentarmos de pouco, foi que conquistamos a grande freguesia de que muito se ufana o Parc Royal”.171 Em relação aos seus concorrentes, a loja não se intimidava e lançava provocações publicitárias: “A concorrência ao Parc Royal vai aumentando sempre e com isso todos podem lucrar porque assim vão aumentando as vantagens que ali são oferecidas aos seus fregueses”.172 Conforme o comércio de moda se expandia na metrópole, o magazine buscava consolidar seu lugar como o mais atraente e proveitoso. A loja oferecia aos seus clientes certos benefícios, como a possibilidade de troca ou até mesmo a devolução da mercadoria, numa valorização do cliente como aquele que “tem sempre razão”, a quem devem ser oferecidas “vantagens e garantias”. Os consumidores eram mimados com brindes exclusivos - como o espelho de bolsa com gravura em alto relevo -, sorteios de mercadorias e distribuição de cupons de desconto: “Grande sorteio do parc Royal. Condições do seu funcionamento: a firma Vasco Ortigão & C., proprietária dos grandes armazéns Parc Royal, ao Largo de S. Francisco, no Rio de Janeiro, resolveu instituir, de acordo com o decreto n. 12.475 de 23 de Maio de 1917, que regula a distribuição de prêmios por sorteios, um grande prêmio diário no valor de CEM MIL RÉIS em mercadorias, que será sorteado entre a clientela do PARC ROYAL por meio da Loteria da Capital Federal e na falta desta pela do Estado do Rio de Janeiro. Este sorteio é composto de 1.000 cupons devidamente numerados e autenticados, conforme o presente exemplar, os quais são distribuídos gratuitamente aos primeiros mil fregueses do PARC ROYAL no ato do pagamento de suas compras. Também são distribuídos estes cupons aos fregueses dos Estados que fazem suas encomendas por meio de correspondência, catálogos e amostras, acompanhando seus pedidos da respectiva importância. Os cupons consideram-se premiados quando o seu número equivaler à terminação do primeiro prêmio, interessando para este caso somente as terminações compreendidas entre 001 e 1.000. Não serão aceitos os cupons dilacerados ou defeituosos, cuja legitimidade não possa ser verificada”.173 Essas estratégias, a distribuição de brindes e a execução de sorteios, provavelmente contribuíam para fidelizar a clientela e estimular o consumo; e, provavelmente por esses motivos, são expedientes ainda adotados por redes de varejo nos dias atuais. Um outro tipo de promoção, também utilizada na contemporaneidade, é o patrocínio de times esportivos para divulgar a marca e associar sua imagem à competitividade e, 171 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 37 – Janeiro 1918 Anúncio na Revista Careta - Nº 377 – Setembro 1915 173 Anúncio na Revista da Semana - Nº 10 – Março 1923 172 94 preferencialmente, à vitória. Em sintonia com o despertar nacional pelos esportes e o processo de disseminação e popularização do futebol na década de 1910, o Parc Royal manteve um time próprio, que chegou a disputar o Campeonato Carioca de 1916 na 3ª divisão.174 No uniforme do time, havia a logomarca da loja, com a letra “P” sob uma coroa, inserida num escudo. Fig. 21. Time de futebol do Parc Royal Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ Ritos e momentos de passagem também foram incorporados pelo Parc Royal em seus anúncios; batizados, casamentos, ano novo e Natal eram temas de alguns reclames, que aproveitavam-se da potencialidade desses momentos para atrair consumidores: “Noivas! No dia que assinalar o termo de vosso noivado, oferecei à vossa juventude triunfal, à vossa explêndida beleza, a moldura de uma toillete que torne a vossa recordação imperecível no espírito daquele que houverdes preferido. E se desejardes enxovais de todo o gênero, enxovais de qualquer gosto, enxovais de qualquer preço, não procureis noutra casa o que só encotrareis no Parc Royal”;175 “Recepção do Ano Novo – A Moda recebe em seu templo as homenagens de todos os seus fiéis, a quem promete redobrar de vigilância no novo ano para que Senhoras, Homens e Crianças possam continuar a afirmar a tradição da Elegância Carioca, mediante a cooperação do Parc Royal”.176 O jornalista, publicitário e escritor Nelson Cádena, autor do livro Brasil, 100 anos de propaganda e responsável pelo sítio www.almanaquedacomunicação.com.br confere à 174 Disponível em: http://www.vascodagama.com.br/campanhas/segtercdiv.htm Anúncio na Revista da Semana – Nº 11 – Março 1921 176 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 138 – Dezembro 1919 175 95 campanha publicitária do Parc Royal as primeiras representações gráficas no Brasil da figura do Papai Noel criadas por Manoel de Mora, provavelmente inspiradas num modelo estético americano popularizado pela revista Harper’s Weekly. Com efeito, o registro mais remoto da utilização desse personagem, pelo magazine, data de 1915, quando a sua propaganda começou a dar forma e substância a rituais natalinos: “Extraordinária exposição de brinquedos, caixinhas com bonbons e artigos de fantasia para presentes de Natal e Ano Novo”;177 “Quantas contrariedades nesta ocasião de festas de Natal e Ano Novo para quem não sabe onde encontrar qualquer artigo, chique e gracioso, para fazer um presente. No entanto nada mais fácil, bastará para resolver esse difícil problema, percorrer as diversas seções do Parc Royal onde em belas exposições se pode ver tudo quanto há de mais novo e interessante”.178 Nos anúncios, havia um enaltecimento à religião cristã e uma certa manipulação do seu discurso: “Disse o Padre Eterno ao novo ano: - Recomendo-te muito especialmente o Parc Royal, sê para com ele muito carinhoso, porque ali se trabalha para a felicidade, o bem estar de muita gente! – Os proprietários do Parc Royal agradecem ao público a sua preciosa colaboração no engrandecimento desta casa e aproveitam o ensejo para comunicar que o ano de 1916 será um novo período de 366 dias, durante os quais o Parc Royal trabalhará pela defesa e confirmação de sua divisa: Para bem servir”. 179 Em outro reclame de Natal, a figura do Papai Noel aparece sobre o edifício monumental do magazine, rodeada por novidades tecnológicas, próprias daquele período, que acentuavam um ideário de modernidade, como bondes, automóveis, aeroplanos e postes de iluminação elétrica. O cenário fantasioso, rodeado por anjos, incluía também os presentes importados oferecidos pelo Papai Noel: carros e aeroplanos de brinquedo, bonecas, palhacinhos, cavalinhos e bolas, tudo isso diante de crianças embevecidas. No canto inferior esquerdo, havia ainda a figura de um peru; comê-lo no Natal era um hábito da cultura americana, que aparece aqui introduzido na publicidade nacional: “Nesta quadra de folguedos, as florinhas infantis, tem sonhos que são segredos das suas almas gentis...Já com nevados dedos, borda a aurora o seu matiz, que inda elas sonham brinquedos, de Nova Yorque e Paris! Papai Noel, nestes dias inspira-se em alegrias ao ditar as suas leis, comprar no Parc os presentes e a todos os inocentes faz felizes como reis!”180 177 Anúncio na Revista Fon-Fon – Nº 52 – Dezembro 1915 Anúncio na Revista da Semana – Nº 45 – Dezembro 1915 179 Anúncio na Revista da Semana – Nº 47 – Janeiro 1916 180 Anúncio n’O Malho – Nº 797 – Dezembro 1917 178 96 Fig. 22. Anúncio n’O Malho – Nº 797 – Dezembro 1917 A instituição “Família Brasileira” era enaltecida no texto publicitário, e com ela a loja buscava estabelecer uma aliança: “Este arco triunfal comemora os louros que colhemos em 1918 como grandes introdutores da Moda e foi nos levantado pela Família Brasileira, em benefício de quem criamos o gosto do bem vestir, a comodidade no comprar, a satisfação de gastar com economia”;181 “Quanto mais cresce uma família, mais crescem as vantagens que ela pode auferir, mantendo a sua freguesia ao Parc Royal”;182 “Oferecemos os serviços desta seção (de móveis e tapeçarias) em condições de preço que nenhuma outra casa pode igualar, e assim trabalhamos não só pelo conforto, mas também pela alegria e economia da família brasileira”.183 Há uma associação direta entre alegria e consumo, enquanto o Parc Royal assumia um papel quase paternal, de quem trabalhava pela satisfação e conforto de seus entes queridos. O magazine colocava-se como o gerador do interesse dos consumidores em vestirse com bom gosto e o propulsor do consumo como uma atividade cômoda e satisfatória. E quando manifestava o “sacrifício” que fazia “em benefício do público”, por vezes a loja assumía, em seu discurso, um caráter de instituição pública, uma orientação altruísta, quase como se não fosse uma empresa com fins lucrativos. Na sua comunicação com o público, a loja ainda tomava para si uma “responsabilidade” árdua e o dever moral da economia, quase adotando o papel de um chefe 181 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 86 – Janeiro 1919 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 38 – Janeiro 1918 183 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº 97 – Março 1919 182 97 de família burguês: “Sobre os nossos ombros pesa a responsabilidade de vestirmos as mais elegantes Senhoras e Homens do Rio de Janeiro. Daí a necessidade de termos sempre grandes sortimentos de tudo quanto aparece de mais bonito, de mais moderno, de mais chic. O público encontra porém neste estabelecimento, reunida a essa vantagem, a dos preços módicos que cobramos, obedecendo a norma básica da economia, sempre praticada pelo Parc Royal”.184 Algumas finalidades máximas a serem alcançadas pelo público eram enunciadas: “Para a beleza das senhoras, para a elegância dos homens, para o bem estar das crianças, para o conforto do lar”;185 frequentar e consumir naquele local eram ações descritas como praticadas em proveito próprio: “Legítima Defesa: é em benefício de si mesma que V. Exa. deve neste momento visitar a grande exposição de artigos de inverno no Parc Royal. Adquirindo qualquer daqueles artigos, V. Exa. prestará a si mesma quatro valiosos serviços: 1) Protegerá a sua saúde, 2) Garantirá o seu conforto, 3) Acrescerá à sua elegância e 4) Defenderá a sua bolsa”.186 Ao enumerar, de modo cartesiano, as razões pelas quais deveriase comprar no magazine, equiparando o consumo a um ato praticado em “legítima defesa” e a uma “questão de saúde”, o Parc Royal deixava entrever o alcance que desejava imprimir a suas pretensões. O investimento em “marketing” e na formação de opinião de seu público incluiu um recurso utilizado comumente por grifes da moda atual: a edição de uma revista própria, a Parc Royal Magazine, na década de 1920; em nossa pesquisa, encontramos dois exemplares no acervo da Biblioteca Nacional. Com tiragem quinzenal, a revista continha artigos de variedades sobre esportes, vida familiar e, naturalmente, moda, e contava com outros anunciantes. Alguns de seus textos eram de autoria do próprio dono da loja, José Vasco Ramalho Ortigão. O Parc Royal também veiculou anúncios na própria capa de outros dois veículos, a Revista da Semana e os programas do Theatro Municipal. Nos anos de 1922-1923, Manoel de Mora criou algumas capas da Revista da Semana; sob sua ilustração, na borda inferior, uma “caixa” retangular exibia um breve texto publicitário assinado pelo Parc Royal, que fazia menção à imagem da capa. Pelo volume dos anúncios criados por Mora veiculados em diversos periódicos, é provável que os leitores já identificassem seu traço com o Parc Royal; utilizar uma ilustração de sua autoria na capa da revista, já seria uma forma de trazer o 184 Anúncio na Revista da Semana – Nº 1 – Fevereiro 1919 Anúncio na Revista da Semana – Nº 39 – Setembro 1921 186 Anúncio na Revista D. Quixote – Nº106 – Maio 1919 185 98 magazine à imaginação dos leitores. Somado a isso, um breve texto publicitário assinado pela loja, na própria capa, destacava seu nome e sua mensagem, em local nobre e de maior visibilidade possível. A variedade dos temas não obedecia regras determinadas; a grande maioria das capas possuía ilustrações de mulheres em situações diversas, outras celebravam datas específicas (o Carnaval, o Centenário da Independência do Brasil, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, a criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino). Na medida em que o conteúdo publicitário fazia referência ao assunto da capa da revista, o Parc Royal ligava sua imagem aos acontecimentos notórios destacados pela Revista da Semana, ou à imagem feminina que desejava ajudar a construir. Os textos que figuravam sob as ilustrações, na capa, tinham seu caráter publicitário “disfarçado”, mesclavam-se ao próprio conteúdo editorial da revista, e assumiam a força de um posicionamento que parecia externado pelo próprio periódico, com grande poder de influência sobre os leitores. Para se ter uma ideia da expressividade dessa comunicação, enumeraremos algumas delas: “Não há duas opiniões, porque não há duas verdades: todos devem comprar no Parc Royal”;187 “Cada dia um bom pensamento, cada dia uma boa ação: comprar no Parc Royal”;188 “Conforto - Elegância – Distinção: prerrogativas que usufruem todas as boas clientes do Parc Royal”;189 “Riem uns e choram outros – Para rir sempre, vestir-se no Parc Royal”.190 Percebe-se a edificação de noções absolutas de “verdade”, “bondade”, “bom comportamento” e “felicidade” aliadas ao consumo naquela loja, divulgadas na capa de um dos semanários brasileiros de maior influência naquele período. 187 Anúncio na capa da Revista da Semana - Nº 19 – Maio 1922 Anúncio na capa da Revista da Semana - Nº 14 – Abril 1922 189 Anúncio na capa da Revista da Semana - Nº 33 – Agosto 1922 190 Anúncio na capa da Revista da Semana - Nº 7 – Fevereiro 1923 188 99 Fig. 23. Capa da Revista da Semana Nº 38 com anúncio do Parc Royal - Setembro 1922 Na figura acima, um exemplar da Revista da Semana com capa ilustrada por Manoel de Mora e anúncio do Parc Royal. Em homenagem ao Centenário da Independência, a imagem reproduz parte da bandeira nacional, com figuras de mulheres inseridas sobre as estrelas. Consoante o tema, o texto publicitário glorificava o sentimento nacionalista e, numa combinação simbólica, extendia o brilho das estrelas da pátria às clientes da loja: “Os luzeiros do céu iluminam o pendão glorioso da pátria e até lá se eleva, refulgente e linda, a imagem de outras estrelas – as elegantes freguesas do Parc Royal”. Os programas do Theatro Municipal, por sua vez, eram uma publicação interna, dirigida ao público seleto que frequentava seus espetáculos. Com a mesma estratégia utilizada na Revista da Semana, algumas de suas capas foram ilustradas por Manoel de Mora, e continham espaço destacado para o texto publicitário do Parc Royal. O magazine atrelava-se àquele universo cultural sofisticado e propagava àquela audiência elitista sua imagem como o local ideal para adquirir o que fosse necessário para a vivência de um estilo próprio da modernidade, que incluía as apresentações teatrais entre seus rituais de sociabilidade: “Duas artes - Na cena, a arte de representar em que é insuperável a França gloriosa; na sala, a arte de bem vestir em que é mestre o Parc Royal”;191 “Os grandes espetáculos de arte fazem da vida um sorriso consolador; é o mesmo sorriso que está nos lábios de todas as senhoras que se vestem no Parc Royal”.192 191 192 Anúncio na capa do Programa do Theatro Municipal – Temporada oficial de 1920 Anúncio na capa do Programa do Theatro Municipal – Temporada oficial de 1919 100 Fig. 24. Capa do progama do Theatro Municipal - Temporada oficial de 1920 Um outro recurso também utilizado pela loja, de forma pioneira, foram os chamados “anúncios de oportunidade”, inspirados em fatos que eram notícia. Em 1908, o Parc Royal dedicou um anúncio ao público de outros estados que vinham ao Rio de Janeiro visitar a Exposição Nacional organizada pelo Governo Federal em comemoração ao 1º. Centenário da abertura dos portos no Brasil: “Lembramos a todos os nossos fregueses que vierem ao Rio de Janeiro visitar a Exposição Nacional que os armazéns do Parc Royal estão preparados para os servir com um sortimento colossal de todos os artigos de vestuário e de uso. (...) Os viajantes que nesta ocasião vierem visitar a Capital Federal e que não conheçam o Parc Royal têm todas as vantagens em preferi-lo para as suas compras. (...) Solicitamos dos visitantes da Exposição Nacional a fineza de visitarem, no Palácio das Indústrias, a sala do Parc Royal”.193 O Centenário da Independência do Brasil e a Exposição Internacional de 1922, um evento de grandes proporções ocorrido no Rio de Janeiro em homenagem à efeméride, também foram tema de alguns reclames: “Quando a Pátria Brasileira se cobre de láureas ao completar cem anos de vida independente e livre, esta casa atinge brilhantemente cinquenta 193 Anúncio na Revista Fon-Fon - Nº 14 – Junho 1908 101 anos de labor interiamente consagrado a bem servir a grande massa de seus clientes, disseminados por todos os recantos desse incomensurável Brasil. Salve, Centenário! Salve, Brasil Glorioso e Eterno!”.194 A loja alinhava-se com uma ideia nacionalista de progresso da pátria e reconhecimento internacional. Feitos como a visita do Rei Alberto I da Bélgica ao Rio de Janeiro em 1920 e a primeira travessia aérea Lisboa-Rio de Janeiro, realizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, em 1922, foram temas de cartões-postais emitidos pelo Parc Royal. A terceira travessia aérea do Atlântico Sul - a primeira realizada sem escalas, efetivada no hidroavião Jahu por João Ribeiro de Barros - foi igualmente homenageada pela loja, em anúncio que elencava grandes aviadores brasileiros e portugueses: “Bartholomeu de Gusmão, Santos Dumont, Augusto Severo, Edu Chaves, Pinto Martins, Ribeiro de Barros – Homenagem do Parc Royal aos nautas gloriosos do Jahu pelo seu heróico valor!”.195 Os grandes reides transoceânicos eram, à época, desafios com alto grau de periculosidade, devido à precariedade da aviação, de seus meios e equipamentos. Quando bem sucedidas, as travessias desfrutavam de uma glorificação proporcional ao risco que haviam enfrentado. O Parc Royal, nesses anúncios, conectava a imagem da loja com acontecimentos ligados à ideia de conquistas heroicas e racionalistas. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a loja abordava as ocorrências mundiais em seus anúncios e posicionava-se frente ao público através de recados diretos e contundentes, buscando demonstrar uma empatia pelas dificuldades provocadas pela situação, bem como um esforço realizado para não cessar seu funcionamento comercial e a consequente relação oferta-demanda de produtos e consumidores: “A nossa casa de Paris, apesar da grande crise industrial provocada pela guerra, conseguiu mandar executar uma grande parte dos artigos indicados para constituirem a moda para esta estação”;196 “Graves consequências da guerra! Indústrias paralisadas! Fábricas destruídas! Comércio agonizante! Navios mercantes a pique! Apesar de todas estas calamidades o Parc Royal continua a manter em todas as suas seções completos sortimentos de todos os artigos”;197 “O Parc Royal é a única arma com que se pode contar para vencer a crise: todas as suas munições são de seguro efeito”;198 “A Guerra, que de dia a dia vai tomando proporçoes mais extraordinárias, a cada momento provoca novas dificuldades para o comércio...Os artigos escasseiam! Os preços sobem! O Parc Royal, fiel ao seu programma, de combinação com a 194 Anúncio na Revista da Semana - Nº 39 – Setembro 1922 Anúncio na Revista da Semana - Nº 29 – Julho 1927 196 Anúncio na Revista Careta - Nº 333 – Novembro 1914 197 Anúncio na Revista Careta - Nº 354 – Abril 1915 198 Anúncio na Revista Careta - Nº 357 – Abril 1915 195 102 sua casa de Paris, põe em pratica todos os seus recursos para continuar a manter, em todas as seções, os mais completos sortimentos de todos os artigos a preços sem competência.”199 Novamente a loja apresentava-se, em sua publicidade, como a solução de um problema. As ilustrações desses anúncios acompanhavam essa ideia, e possuíam uma carga metafórica que, na atualidade, seria provavelmente percebida como ingênua: num reclame, por exemplo, o prédio da loja é a base de um canhão, rodeado por mísseis nomeados “bons artigos”, “grande variedade”, “sortimentos completos”, “todas as qualidades”, “preços baratos”. O canhão atira um míssil nomeado “saldos” em direção a um monstro, por sua vez nomeado “a crise”. Ou seja, o Parc Royal, com suas características e recursos, valendo-se de um discurso populista, mostra-se capaz de enfrentar e alvejar a crise provocada pela guerra. Fig. 25. Anúncio na Revista Careta Nº 357 – Abril 1915 Nos reclames das lojas concorrentes veiculados nos mesmos periódicos, verificamos algumas características semelhantes àquelas encontradas nos anúncios do Parc Royal, tais como a conjunção de ilustração e texto, a sazonalidade da moda em função de temporadas de Inverno e Verão, o aviso sobre a abertura de liquidações (denominadas à época “saldos” ou “remarcações”), o chamariz para preços competitivos dos seus produtos; mas nenhum outro varejo de roupas demonstrou, naquele período, no Rio de Janeiro, uma atuação publicitária com a mesma constância, o mesmo volume, a mesma diversidade de mídias, tampouco o discurso prolixo construído na publicidade do Parc Royal, entre outras práticas que provavelmente cooperaram para o seu êxito comercial. 199 Anúncio na Revista Careta - Nº 362 – Maio 1915 103 6 – Concepções de gênero, indumentária e rituais de sociabilidade na publicidade do Parc Royal 6.1 Moda e gênero O fenômeno da moda, adaptando-se à realidade, evoluiu a partir das profundas mudanças que ocorreram em ritmo vertiginoso no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Os papeis feminino e masculino, a imagem do corpo, os estilos de vestimenta, bem como a noção de “bom gosto”, acompanharam, num processo de transformação, as alterações mais vastas e complexas do modo de sentir e pensar da sociedade carioca. De acordo com os ideais da elite urbana e burguesa que substituía os valores de uma sociedade rural e patriarcal por outros, individualistas e cosmopolitas, influenciado por matrizes europeias, verificou-se uma alteração radical na estrutura das roupas, em sintonia com novos hábitos e comportamentos. Os parâmetros de distinção de classes e diferenciação dos gêneros, iniciados no século anterior, foram mantidos. Desde o século XIX, as vestimentas de homens e mulheres se distinguiram na forma, no tecido e na cor, num dimorfismo estético bem marcado. Novamente recorremos a Gilda Mello e Souza, que demonstra a acentuação desse conjunto de desigualdades: O século XIX, porém, será um divisor de águas e o princípio de sedução ou atração, que é o princípio diretor da roupa feminina, estará nestes últimos cem ou cinquenta anos, quase inteiramente ausente da vestimenta dos homens. Enquanto o traje feminino (...) se lançou numa complicação de rendas, babados e fitas, a indumentária masculina partiu, num crescente despojamento, do costume de caça do gentil-homem inglês para o ascetismo da roupa moderna. (MELLO E SOUZA, 2009: 60) Eis em traços rápidos um apanhado da evolução da moda no século XIX. Mais do que nas épocas anteriores, ela afastou o grupo masculino do feminino, conferindo a cada um uma forma diferente, um conjunto diverso de tecidos e cores, restrito para o homem, abundante para a mulher. (MELLO E SOUZA, 2009: 71) 104 Essa oposição refletia a segregação dos grupos feminino e masculino na divisão do trabalho, na atribuição de tarefas e no duplo padrão de moralidade que os regia. Para a mulher do século XIX, o casamento era a única oportunidade de realização permitida, o que levou a um desenvolvimento da arte de sedução, que se valia da indumentária como ferramenta essencial; os homens, por outro lado, possuíam outras formas de afirmação social e prestígio que dependiam menos da vestimenta e mais das qualidades pessoais e do talento individual. O despojamento da roupa masculina não significava, no entanto, um completo abandono do cuidado com a aparência; ao contrário, elementos como chapéus, luvas, bengalas e charutos eram valorizados como sinais sutis de poder e erotismo, dignidade e competência. O Parc Royal, conforme sua divisão em departamentos, veiculava em seus anúncios itens de moda masculina, feminina e infantil; alguns reclames possuíam destinação específica a apenas um desses grupos, e detalhavam as peças de vestuário, calçados e complementos oferecidos pela loja que seriam necessários para a elaboração de um figurino completo, no rigor da “última moda”. Os anúncios sugeriam, também, características, particularidades e qualidades desejáveis a um e outro gêneros, explícita ou tacitamente, através de representações das identidades feminina e masculina, retratadas em diversas situações. 6.2 O traje é o homem Embora a moda trilhasse caminhos opostos para cada um dos gêneros, o magazine reforçava para todos a exigência do cuidado com o apuro visual, o que tornaria o consumo de moda indispensável para ambos os grupos. Nos anúncios que se dirigiam ao público masculino, evidenciava essa necessidade: “O traje é o homem - A elegância do traje masculino, só a completam os seus acessórios; uma gravata, um par de luvas de mau gosto, estragam o efeito da melhor toilette”;200 “Detalhes da toilette – As roupas brancas, a gravata, os suspensórios, etc. são pequenos acessórios que, não sendo bem escolhidos, comprometem toda a toilette masculina. Todos os homens de gosto encontrarão porém com que satisfazer as exigências frequentando a grande seção de artigos para homens do Parc Royal”.201 Ainda que voltados a um público específico, os anúncios mantinham características presentes em toda a comunicação publicitária da loja, como o destaque aos preços 200 201 Anúncio na Revista Careta - Nº 217 – Julho 1912 Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo - Nº 15 – Fevereiro 1918 105 competitivos, aos catálogos de produtos, à ampla gama de itens oferecida e à noção de “Elegância” como objetivo primordial a ser atingido. A representação do universo masculino destacava ainda o “bom gosto”, “bom senso”, “inteligência”, “exigência” e “ser chic” como virtudes assertivas, diretamente entrelaçadas ao consumo no Parc Royal: “Não esquecer que o Parc Royal é o grande abastecedor da Elegância Masculina, ao serviço da qual tem os maiores sortimentos de artigos para homens que existem no Rio de Janeiro. A nossa alfaiataria, pelo seu lado, trabalha para milhares de pessoas de bom gosto, mas que zelam os seus interesses e não gostam de pagar o que compram senão pelo preço equitativo”;202 “O calçado e o chapéu são os dois pontos extremos da Elegância Masculina. Visitem os homens de gosto e de bom senso os nossos mostruários, e neles encontrarão uma infinita variedade desses artigos para todos os usos e em todos os modelos, e marcados por preços que são uma prerrogativa exclusiva do Parc Royal”;203 “Vestir no Parc Royal é uma afirmação de inteligência. Nenhuma outra casa veste a sua freguesia com mais elegância nem com mais economia”.204 Comprar e usar as roupas do magazine equivaleria a obter um benefício, um ganho: “Para se vestir com vantagem escolha, sem hesitação, o Parc Royal”.205 Fig. 26. Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 130 – Novembro 1919 A vestimenta masculina destacava-se menos pela variação das formas e mais pelo corte, acabamento, tecido e bom caimento, além dos acessórios. Assim, o serviço de alfaiataria sob medida e os detalhes complementares eram o que se salientava nos anúncios: 202 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 81 – Novembro 1918 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 88 – Janeiro 1919 204 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 130 – Novembro 1919 205 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 117 – Agosto 1919 203 106 “Alfaiataria modelar, provida dos mais amplos e variados sortimentos de fazendas de todas as qualidades, com pessoal habilitadíssimo e oficinas que trabalham com rapidez e perfeição. Acessórios da toilette de todo o gênero, com artigos do último rigor da moda e sortimentos especiais em roupas brancas, colarinhos, punhos, gravatas, meias, chapéus – numa palavra, tudo quanto para a sua toilette um homem não pode dispensar. Visitem os Homens Elegantes o Parc Royal”;206 “Corte elegantíssimo, confecção perfeita, durabilidade garantida, sob medida”;207 “É pela visita habitual ao nosso estabelecimento e pela consulta cotidiana do nosso catálogo que os homens elegantes se podem melhor convencer de que 1º. Temos os melhores sortimentos da cidade; 2º. Oferecemos as mais sólidas garantias aos nossos fregueses; 3º. Vendemos a preços mais baixos do que ninguém”. 208 Perfeição, rapidez, durabilidade e garantia eram aspectos valorizados no serviço disponibilizado pelo magazine que, nos moldes de sua ampla comunicação publicitária, se posicionava como um local para “solução de problemas” relativos, no caso, ao vestuário masculino: “Na toilette masculina, a gravata representa papel importantíssimo: exige bom gosto no comprar, arte no dar o laço, harmonia com o vestuário etc. Mas a escolha desse, como de qualquer outro acessório da toilette do homem chic, facilmente se resolve quando se têm `a disposição os sortimentos enormes, variados e vantajosos oferecidos pelo Parc Royal”.209 Para os homens, a imagem de austeridade que emergia sob várias camadas de lã, calcada no uso do fraque, da casaca, do colarinho e da cartola, começou a ser substituída, nos primeiros anos do século XX, por uma composição menos rígida, o terno, usado com acessórios, conforme a ideia de velocidade dos novos tempos, que exigiam agilidade e rapidez de movimentos. Os tecidos escuros de casimira inglesa continuavam a ser considerados sinônimo de elegância, apesar do desconforto que causavam em pleno clima carioca, mas o paletó claro passou a ser aceito, enquanto os sapatos adotaram formas mais largas e bicos mais arredondados, no “estilo americano”. Em 1910, o fraque ainda configurava-se o peça fundamental do traje a rigor masculino, mas o paletó também passava a ser contemplado entre as opções elegantes; os artigos masculinos oferecidos pelo Parc Royal já incluíam “costumes de linho, chapéus de palha, camisas mousseline, gravatas de seda e colarinhos de linho.”210 206 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 96 – Março 1919 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 111 – Março 1919 208 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº108 – Junho 1919 209 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 9 – Junho 1919 210 Anúncio na Revista Careta - Nº 200 – Maio 1912 207 107 O conforto das peças e o reconhecimento do clima tropical apareceram destacados em alguns anúncios: “Uma camisa ideal – Excelente na qualidade, elegantíssima no corte, perfeita no acabamento, agradável pelo conforto, admirável pelo preço”;211 “Para não sentir calor: Ternos de “Palm Beach” inglês, artigo delicado e agradável; chapéus panamá, diversos modelos; sapatos modernos, fôrma americana; camisas de seda, padrões variadíssimos, com 2 colarinhos”;212 “Homens! Não suporteis o calor: visitai a exposição de verão do Parc Royal”.213 Não obstante, a obediência ao padrão estrangeiro fazia com que os tecidos e peças oferecidos incluíssem “casemira de pura lã”,214 “camisetas de flanela e de lã”,215 “smoking de casemira de lã para quarto, ceroulas francesas de pura lã, sobretudos de lã, gaberdines de lã, capas de tecido quimicamente impermeabilizado”,216 e tudo “aquilo que de mais moderno se cria em Londres, Paris e Nova Yorque para complemento da toilette do homem elegante”.217 Em anúncios sazonais da temporada de inverno, há imagens que remetem ao frio do hemisfério Norte, com homens e mulheres diante da loja na Avenida Central em meio à neblina e penumbra, portando longos casacos, luvas e chapéus escuros. Mantendo um padrão publicitário, o Parc Royal revestia seus produtos masculinos com feições simbólicas de modernidade e distinção, enquanto insistia na democratização daqueles atributos, possibilitada através do consumo na loja: “vulgarizar a elegância é nossa função principal”, oferecendo “todos os artigos, desde o mais fino ao mais vulgar, desde o mais dispendioso ao mais barato”,218 “de tudo para o uso de todos”.219 211 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº119 – Agosto 1919 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº125 – Outubro 1919 213 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº126 – Outubro 1919 214 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº111 – Junho 1919 215 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº112 – Julho 1919 216 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº321 – Julho 1923 217 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº115 – Julho 1919 218 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 120 – Agosto 1919 219 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 115 – Julho 1919 212 108 Fig. 27. Os provadores de roupa masculina do Parc Royal Augusto Malta – Museu da Imagem e do Som/RJ Num anúncio prolixo, o magazine enuncia uma fórmula de sucesso: “Elegância: a aspiração e a conquista. Não é preciso gastar uma fortuna para ser elegante, ao contrário pode-se ser elegante com muito pouca coisa. Havendo discernimento na escolha do alfaiate, um pouco de intuição natural, o homem conquista a elegância sem sacrifício algum. O Parc Royal, justamente pela sua organização democrática moderníssima, faculta a todos a Elegância e destrói a lenda de que ela tinha de ser fatalmente a prerrogativa de um reduzido número de indivíduos. Para isso montou uma alfaiataria onde trabalham os mais conceituados profissionais do Rio de Janeiro. Para isso tem sempre em estoque uma variedade infinita de fazendas de toda a espécie, adequadas a qualquer obra. Para isso estipula seus preços pelo mínimo por que se pode vender, um mínimo de que só se pode concentrar uma grande casa como o Parc Royal”.220 Novamente a “Elegância” é manifestada como um ideal a ser alcançado pelo homem, uma tarefa facilitada pela loja que, “democrática” e “moderníssima”, exerceria um papel condutor, disponibilizando aquele estilo de vida a todo o público que lá consumisse. Há um duplo sentido implícito na “aspiração” e na “conquista”, que tanto pode ser da “Elegância”, quando do sexo oposto. A ilustração desse anúncio mostra um homem vestido formalmente com fraque, colete, gravata-borboleta e luvas, numa ambientação que sugere um salão, com ampla janela e coluna grega ao fundo; o homem ajeita o monóculo e olha numa direção fixa, enquanto duas mulheres aparecem sentadas em poltronas, com vestidos, colares e leques, numa sugestão de que seriam o alvo do interesse do homem. 220 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 77 – Outubro 1918 109 Fig. 28. Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 77 – Outubro 1918 Embora a grande maioria dos anúncios do Parc Royal utilizasse a mulher como tema, orientados à audiência feminina, há uma quantidade significativa deles dirigidos ao público masculino, e a própria loja frisava a atenção que lhe destinava: “Não esquecer que o Parc Royal é também o grande abastecedor da elegância masculina, ao serviço da qual tem os maiores sortimentos de artigos para homem que existem no Rio de Janeiro. A nossa alfaiataria trabalha para milhares e milhares de pessoas de bom gosto, mas que zelam os seus interesses e não gostam de pagar o que compram senão pelo preço equitativo”;221 “É um erro pensar que o Parc Royal só procura especializar-se em artigos de senhora. A nossa seção de artigos para homens tem tudo quanto se pode desejar e ao melhor preço que se pode desejar. Quem precisar qualquer desses artigos visite-nos e verificará que ninguém nos suplanta em artigos para homens”.222 Fig. 29. Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 79 – Novembro 1918 221 222 Anúncio na Revista da Semana Nº 50 – Janeiro 1918 Anúncio na Revista D. Quixote - Nº 79 – Novembro 1918 110 E, por vezes, dirigia-se diretamente aos “chefes de família”, como responsáveis pelas compras: “Para os tradicionais presentes de festas da quadra corrente, lembramos a todos os chefes de família uma visita ao nosso estabelecimento (...)”.223 Nas ilustrações dos reclames orientados a esse universo, os indivíduos são retratados em poses altivas, com ar garboso, em locais públicos (na Avenida Central, por exemplo), privados (em frente ao espelho ajeitando a gravata, lendo numa poltrona) ou sem ambientação espacial determinada, mas sempre vestidos de modo formal, com paletós ou fraques, portando vários acessórios - bengalas, chapéus, gravatas, suspensórios... Há uma série de reclames que apresentavam situações sociais onde homens e mulheres interagiam em vários contextos, ampliando a capacidade de atração da mensagem publicitária para ambos os grupos. As circunstâncias encenadas eram diversas, assim como as relações entre gêneros: ora havia casais aprumados que, juntos, usufruíam possibilidades de socialização e lazer no Rio de Janeiro, ora havia cenas de sedução entre homens e mulheres, com ênfase no poder de atração de ambos. Num anúncio intitulado “Duplo palpite”, a ilustração retrata uma mulher ricamente vestida com chapéu, echarpe de pele, luvas, salto alto, caminhando com seu cachorrinho na rua; ela olha para um homem que a observa, também vestido requintadamente, com terno, bengala, gravata, lenço e chapéu. “Quando acaso acontece cruzaram-se uma dama e um homem elegante em qualquer rua desta capital, logo, pelo trajar, um ao outro conhece. E diz: uma toilette assim, tão deslumbrante, só podia sair do Parc Royal”.224 A situação é footing e flirting; vislumbra-se a possibilidade de um encontro sedutor nas ruas do Rio do Janeiro - ao fundo, percebe-se o morro do Corcovado, enquanto o poste de iluminação elétrica dava o tom de modernidade metropolitana. Pela mensagem publicitária, vestir-se no Parc Royal seria um modo de tornar-se elegante, e uma chave para aproximar-se de alguém do sexo oposto com os mesmos atributos valorizados. 223 224 Anúncio n’O Malho - Nº 744 – Dezembro 1916 Anúncio na Revista da Semana- Nº 19 – Junho 1918 111 Fig. 30. Anúncio na Revista da Semana Nº 19 - Junho 1918 O cumprimento do beija-mão, a troca de olhares, amabilidades de salão ou flertes propiciados pelo footing ilustravam os reclames; a utilização do galanteio masculino e da corte homem-mulher na construção simbólica efetuada pela propaganda da loja contemplava a sedução como mais um motivo que justificaria o investimento na vestimenta. É de se frisar que, à época, isso não era uma prática comum; a publicidade até então exibia produtos ou pessoas isoladamente, mas a incorporação de situações onde a fascinação com o sexo oposto aparecia, às claras, era ainda incipiente. Fig. 31. Anúncio na Revista da Semana Nº 10 Fig. 32. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 109 Março 1921 Junho 1919 112 Nos anúncios anteriores, percebe-se insinuações de sedução: no primeiro, o homem cumprimenta a mulher numa ocasião formal, tomando-lhe a mão; no outro, o homem escolhe gravatas no Parc Royal e parece fitar os olhos da mulher, que ocupa o posto de balconista. A popularização de novas atividades recreativas no hemisfério norte (passeios de bicicleta, barco e automóveis) e dos esportes como natação, remo, tênis e vela, impulsionavam o desenvolvimento do vestuário em direção a menos formalidade e mais leveza; o reflexo desses hábitos repercutia na capital carioca e reconfigurava modos de vida, regidos sob ares de modernidade. Nas ilustrações dos anúncios do Parc Royal veiculados na mídia impressa nas décadas de 1910 e 1920, podemos acompanhar o desenvolvimento da moda durante o período e perceber a diferenciação na escolha de formatos, tecidos e cores que ocorreu paralelamente às alterações no comportamento e no cotidiano. 6.3 A moda é a beleza da mulher, a mulher é a beleza da vida Se durante o século XIX os padrões de vestimenta obedeciam a uma oposição entre os gêneros, no início do século XX a indumentária feminina experimentou mudanças notáveis que a conduziram em direção à redução desse antagonismo de formas; foi nesse período de transição que ocorreu o início da modernização do vestuário da mulher e a adoção de estilos que se parecem com os feitios reconhecíveis da moda contemporânea. Desde a década de 1850, as preocupações com saúde e higiene atingiram o uso do espartilho, conforme relato da historiadora Maria do Carmo Teixeira Rainho em seu livro A cidade e a moda (RAINHO, 2002), onde a autora caracteriza a evolução dos modos de vestir-se da “boa sociedade” do Rio de Janeiro desde a chegada da Corte portuguesa até o final do século XIX. Jornais de moda e manuais de etiqueta e civilidade divulgavam informações sobre os efeitos nocivos da “armadura” feminina, entre eles problemas respiratórios, aborto e até morte. E a partir dos anos 1890, silhuetas volumosas e pesadas sustentadas por armações como a crinolina, a “meia-crinolina” e a anquinha225 também começaram a cair em desuso. Assim como a cidade, a mulher passava a adotar ares mais cosmopolitas, e para isso necessitava de novas vestimentas que, ao invés de confinamento, permitissem algum movimento. 225 Armação de sustentação que proporcionava volume e estufava a parte traseira das saias das mulheres, utilizada no final do Século XIX. 113 Por volta de 1900, o estilo Art Nouveau influenciou a silhueta feminina, que assumiu uma forma em “S”, com o busto projetado para a frente e os quadris para trás. NJ Stevenson, formada pelo London College of Fashion, demonstra em seu livro Cronologia da Moda: de Maria Antonieta a Alexander McQueen o visual sinuoso, obtido sob o efeito de um espartilho curvado que a princípio era considerado saudável por retirar a pressão do abdome. A estrutura servia de base para roupas repletas de adornos, que estendiam-se aos chapéus e penteados, além de volume nas mangas e na bainha (STEVENSON, 2012: 72). O anúncio do Parc Royal ilustrado por K. Lixto226 demonstra como essa tendência foi absorvida pelo magazine: Fig. 33. Anúncio n’O Malho - Nº 9 – Novembro 1902 Um novo tipo de modelador corporal, conhecido como “espartilho científico” ou “anatômico”, reforçado com tecidos elásticos, oferecia um pouco mais de conforto do que o espartilho tradicional, e passou a substituí-lo. O Parc Royal anunciava, como novidade, o collete “Phrynêa”, também conhecido como Devant Droit-Erect Form: “Este novo collete (...) é de forma comprida, mas graças ao seu corte especial e a um novo sistema de colocação de barbatanas e principalmente ao tecido elástico de que é feita a parte inferior, 226 Calixto Cordeiro (1877-1957) ou K. Lixto, como costumava assinar suas obras, foi um ilustrador e caricaturista que participou da fundação do periódico O Malho e colaborou com inúmeras publicações no início do século XX, entre elas Tico-Tico, Ilustração Brasileira, Kosmos, Gazeta de Notícias e D. Quixote. 114 torna-se próprio para todos os tailles e todas as idades. É evidente que a moda atual impõe os coletes compridos, mas se esta nova forma não tiver qualidades excepcionais de leveza e flexibilidade, o seu uso terá sérios inconvenientes. O collete Phrynêa realiza admiravelmente este sonho de todas as senhoras verdadeiramente elegantes, conservar aos órgãos e aos movimentos toda a sua liberdade, assegurando-lhes todavia a soberana perfeição das linhas e o sedutor cachet da moda atual (...), pode ser usado com perfeita comodidade e bem estar. Confeccionado em linho liso nas cores rosa, azul e branco, o tecido da parte inferior é de tricô de fio d’Escócia muito consistente, tem 4 ligas”.227 Em outro anúncio, é oferecida “nova série de colletes fabricados nas nossas oficinas – Modelos americanos. No nosso ateliê de colletes sob medida, dirigido por uma hábil parisiense, executamos qualquer modelo, tendo sempre em vista a elegância, a higiene, o conforto, a comodidade, a qualidade, a barateza”.228 Embora prometesse liberdade, comodidade, conforto e bem estar, a imagem dos colletes contradiz essas propostas, ao menos para os padrões atuais: Fig. 34. Revista Fon-Fon Nº 12 – Março 1908 Fig. 35. Revista Careta Nº 189 – Janeiro 1912 A criação de novas formas e novos espaços de sociabilidade acompanharam as reformas urbanas verificadas no Rio de Janeiro no início do século XX. A mulher passava a ter outras opções de circulação, exibição e lazer além dos compromissos religiosos: nas ruas 227 228 Anúncio na Revista Fon-Fon - Nº 12 – Março 1908 Anúncio na Revista Careta - Nº 189 – Janeiro 1912 115 de comércio elegante, nos salões de chá, em eventos beneficentes, teatros, cinema... A preocupação com a aparência feminina como capital simbólico, representativo de status, era crescente, e impulsionou a difusão da cultura da beleza. Durante a década de 1910, ombros e colo passaram a ser exibidos, as saias subiram até os tornozelos (com rodas muito amplas) e a maquiagem passou a ser usada: pó de arroz e anilina, sem pintura nos lábios. O Parc Royal era revendedor dos produtos cosméticos Mme. Selda Potocka, destinados à pele e ao cabelo. Apliques de tranças e cachos também poderiam ser adquiridos para compor um visual requintado: Fig. 36. Revista Careta Nº 254 – Abril 1913 Fig. 37. Revista Careta Nº 205 – Maio 1912 No anúncio acima, à esquerda, lê-se: “O espelho é a imagem da Verdade. Nós somos a imagem da Moda. Este olhar de satisfação, de desvanecimento, de vaidade, é o que diariamente lançam ao seu espelho as senhoras que se vestem no Parc Royal, as que souberam comprar bom, comprar bonito, comprar barato”. A aquisição de produtos no Parc Royal seria o caminho - eficiente e econômico - para a obtenção da beleza, uma combinação entre consumo e resultados estéticos que promoveriam uma sensação de contentamento. A alteração de paradigma que liberou a mulher do uso do espartilho deveu-se tanto a mudanças de atitudes ocorridas numa sociedade urbana e cosmopolita - que contrastava com a geração anterior, rural e patriarcal -, quanto à influência dos estilistas franceses, por sua vez permeados pelas inovações artísticas de sua época. Em Paris, a chegada dos Ballets Russes de São Petersburgo em 1909 repercutiu sobre diversos movimentos, contagiando pintores, escritores e costureiros com suas novas matrizes visuais (STEVENSON, 2012: 78- 116 79). O estilista francês Paul Poiret (1879-1944) captou as tendências de vanguarda e afrouxou os contornos da silhueta feminina, acenando com uma forma mais fluida e solta, em vestes retas e alongadas, impregnadas de elementos orientais; suas criações estabeleceram novos parâmetros que ecoaram na moda em âmbito global. Numa observação comparativa entre anúncios do Parc Royal de 1908 e 1912, é possível perceber a flagrante mudança no estilo e nos contornos da roupa feminina; da cintura marcada pelo collete, usado com saia de roda ampla, aos chamados “Costumes de Tussor”, mais retos, a mulher parece ganhar espaço para se mover. Fig. 38. Revista Fon Fon Nº 4 Fig. 39. Revista Careta Nº 237 Maio 1908 Dezembro 1912 Note-se que o anúncio à direita obedece à distinção sazonal, oferecendo modelos para o verão; o leque, um acessório próprio da estação, é utilizado no layout como moldura para as mulheres que ilustram o anúncio. O referencial de moda europeu determinava mangas compridas e saias longas para a temporada solar carioca. Para a “estação calmosa”, recomendava-se “vestidos de nanzouc, com entre-meios de bordados, golas de mol-mol, corpinho e saia guarnecida de cassa bordada, gola de renda de Irlanda, bordados à mão [...] com jaquetinha guarnecida a cores e rendas”.229 Nos anúncios do Parc Royal, a seguir, todos veiculados na Revista Careta entre setembro e novembro de 1912, transparece a influência exótica nos trajes ofertados às clientes cariocas. A rigidez do espartilho dá lugar a modelos mais amplos no torso, com túnicas e casacos em forma de casulo ou blusas mais frouxas 229 Anúncio na Revista Careta Nº 233 – Novembro 1912 117 utilizadas sobre saias afuniladas, de comprimento longo; sob os chapéus, cabelos mais curtos e anelados. Fig. 40. Anúncios publicados na Revista Careta entre Setembro e Novembro, 1912. O magazine se dirigia ao público feminino, enaltecendo a primazia de sua escolha: “Vistam com graça, vistam no Parc Royal. Falamos às senhoras que ainda não se vestem no nosso estabelecimento. As outras, as que já nos preferiram uma vez, nunca mais deixaram de ser nossas freguesas”.230 Em anúncios textuais, sem ilustrações, a publicidade tecia associações diretas entre a beleza e o uso da indumentária adquirida na loja: “Que linda moça! É uma interjeição que se ouve frequentemente. Quantas vezes, entretanto, o que faz a moça bonita é principalmente o chapéu! Os chapéus saídos dos ateliês do Parc Royal distinguem-se por um toque de graça, de elegância, de novidade, que os tornam inconfundíveis”. 231 A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) provocou alterações de grandes extensões no âmbito do vestuário feminino. Nos países do hemisfério norte a mulher passou a ocupar os postos de trabalho vagos pelos homens enviados à luta, assumindo diversas tarefas masculinas, o que exigia roupas mais práticas e confortáveis, criando novos padrões estéticos que repercutiram internacionalmente. Excessos e luxos foram substituídos por cortes e tecidos mais simples, em sintonia com a austeridade prescrita pela guerra; tornou- 230 231 Anúncio na Revista Careta Nº 224 – Setembro 1912 Anúncio na Revista Careta Nº 291 – Dezembro 1913 118 se comum para as mulheres o uso do tailleur, um conjunto inspirado no vestuário masculino, formado por saia e casaco com gola. O Parc Royal exortava, para as mulheres, “os preceitos da graça, da elegância, da distinção, do conforto e da higiene”,232 buscando atender “os gostos mais variados, os desejos mais exigentes das Senhoras Elegantes do Rio de Janeiro”.233 O magazine se dirigia “às nossas elegantes”, inscrevendo suas clientes nessa camada exclusiva, enquanto atribuía à mulher um papel bem específico: “A mulher nasceu para ser elegante. Essa inspiração, nós a facilitamos pondo à disposição de todas as senhoras o que se cria de mais elegante, e vendendo-lhe por preços conscienciosos”.234 A combinação entre a propagação de um padrão europeu esmerado de “elegância” e a indicação de que esse modelo poderia estar ao alcance dos seus consumidores devido aos preços vantajosos que oferecia era característica do magazine. Para as mulheres, essas recomendações atingiam seu paroxismo: “A ambição da Elegância é essencialmente feminina. Mas de sobra se justifica essa ambição quando simultaneamente se podem obter ELEGÂNCIA e ECONOMIA como as faculta o Parc Royal”.235 (grifos originais) Nessa mensagem, há um reforço de que a ambição máxima da mulher seria “ser elegante”. A união do consumo ao valor da poupança é apresentada como um “salvo-conduto” que moralmente defenderia o desejo de adquirir produtos naquele local, necessários para atingir o objetivo visado. A partir de 1917, verificamos o uso da cor nos anúncios ilustrados, inicialmente naqueles veiculados no almanaque Eu Sei Tudo, conferindo novo poder de impacto e atração à mensagem publicitária. A representação da mulher assume também uma nova configuração, com um ar sensual, portando profundos decotes, em poses enigmáticas: “Triunfando pela elegância, formosura, ela afirma a incontestável soberania das criações de moda do Parc Royal”.236 232 Anúncio na Revista Fon-Fon Nº 291 – Dezembro 1915 Anúncio na Revista Careta Nº 449 – Janeiro 1917 234 Anúncio na Revista da Semana Nº 27 – Agosto 1918 235 Anúncio na Revista da Semana Nº 25 – Julho 1919 236 Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo Nº 4 – Setembro 1917 233 119 Fig. 41. Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo Nº 4 – Setembro 1917 À mulher caberiam as qualidades de “formosura” e “elegância” para que “triunfasse” na sociedade, mas o recato das décadas anteriores é substituído por um poder de atração. A “soberania incontestável” enunciada no texto publicitário poderia induzir a uma dupla aplicação, ainda que implícita: não somente as “criações de moda” do Parc Royal se valeriam dessa condição, mas a própria mulher - antes submissa, agora soberana. Os encantos femininos eram comparados às maravilhas das estações, da natureza e do Rio de Janeiro, em reclames ricamente ilustrados por Manoel de Mora, onde as mulheres apareciam ao ar livre, em parques e jardins: “As galas da natureza mais se realçam pela cooperação da formosura feminina que lhes empresta vida e alegria. Nestes dias de sol, concorra V. Exa. com o seu quinhão para o encanto da deslumbrante cidade em que vivemos (...)”;237 “Verão: dias claros de sol, dias palpitantes de vida e alegria! Dias que são um incitamento ao deleite da existência e que nos fazem viver vibrante e intensamente no quadro das maravilhas que a estação multiplica em volta de nós! Mais perfeita de todas as maravilhas, a Mulher, flor dileta da Criação, sempre sedutora e diversa na transfiguração constante que lhe emprestam as Modas! E mais brilhantes, entre todas as Modas, as que encerram as extasiantes coleções da exposição de verão do Parc Royal”;238 “Nestes dias dourados, em que o sol é um grande estímulo de vida e empresta às próprias coisas um relevo novo, tornando-as mais belas nas suas formas, mais atraentes nas suas cores, a mulher é sempre a mais aquinhoada como fonte de eterna beleza e graça inexaurível. Estes 237 238 Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo Nº 5 – Outubro 1917 Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo Nº 7 – Dezembro 1917 120 dotes preciosos, que as damas patrícias possuem em tão elevado grau, com pouco custo se emolduram agora no rigor da moda, mediante uma simples visita às grandes exposições de verão do Parc Royal”;239 “Prenúncios da primevara – Março, o mês que serve de prelúdio, em cada ano, à grande quadra em que mais se enaltece a Natureza pela pompa das flores, pela beleza das mulheres! O mês em que as Senhoras Elegantes preparam para o enlevo dos nossos olhos os deslumbramentos prodigiosos da Moda (...)”;240 O papel feminino, “flor dileta da Criação”, seria o de se exibir com o vestuário disponibilizado pelo Parc Royal, fazendo uso do consumo de moda para serem notadas e apreciadas em espaços públicos por sua beleza e sedução. A mulher é representada como um objeto de culto, equiparada à paisagem e à vegetação, como um ser passível de contemplação. Além das relações com a natureza, a crença religiosa e um certo ufanismo nacionalista também eram utilizados nas mensagens comerciais visando a associações que culminavam na promoção da mulher brasileira - e consumidora do magazine – que, obedecendo aos parâmetros de beleza, formosura, elegância e distinção, seriam glorificadas: “Quando Deus criou a luxuriante Natureza do Brasil, foi para que tivessem condigna moldura a Elegância e a Distinção das formosas Senhoras do nosso país – clientes habituais do Parc Royal”;241 “O culto da beleza – Honrai, Senhoras, as tradições da beleza brasileira, praticando a elegância com o concurso do Parc Royal”.242 Em relação à sua indumentária, desenvolveu-se uma especialização das roupas, que deveriam ser trocadas inúmeras vezes durante o dia conforme a ocasião em que seriam usadas. Ao acordar, um robe de chambre seria indicado, e os compromissos que porventura surgissem – um passeio, um almoço, o footing pela cidade, a atividade das compras, uma visita, um jantar, uma soirée no teatro – exigiam modelos apropriados. O Parc Royal incentivava essa diferenciação, oferecendo nos anúncios roupas para circunstâncias específicas; quanto maior a especialização, maior a necessidade de consumo. E, ao trazer para sua comunicação publicitária as atividades de sociabilidade e lazer que passavam a integrar o modo de vida da elite e das camadas médias cariocas, como “a Estação de Festas - bailes, teatros, soirées”,243 o magazine ampliava seu poder de empatia 239 Anúncio na Revista da Semana Nº 41 – Novembro 1917 Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo Nº 10 – Março 1918 241 Anúncio na Revista da Semana Nº 1 – Janeiro 1921 242 Anúncio na Revista da Semana Nº 12 – Março 1921 243 Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo Nº 11 – Abril 1918 240 121 junto ao público, enquanto reforçava paralelamente, através de suas representações, a inserção desses rituais na sociedade. Os acessórios acompanhavam essa adaptação, e seguiam códigos de moda que determinavam as variações possíveis para cada momento: “Pomos à disposição de todas as Senhoras Chics do Rio de Janeiro uma infinita coleção desses pequenos “nadas” que são o complemento de uma toilette elegante. São mil coisas diversas, de um poder de sedução irresistível, e que marcamos por preços ao alcance de todos”.244 A crescente popularização dos esportes e das danças de salão demandavam roupas mais leves e maleáveis, contribuindo para a valorização do corpo e suas formas, da aparência saudável, do aspecto jovial. Paulatinamente, a ideia de contenção da mulher, impregnada na sua vestimenta, era substituída pela facilidade de movimentos, mais adequadas à rotina das mulheres mais abonadas da capital. Passear de carro, bicicleta ou subir num bonde exigia roupas menos pesadas e limitantes. O desenvolvimento da indumentária no Rio de Janeiro se manteve condicionado ao espelhamento do modelo de moda estrangeiro. Esse aspecto tornava-se ainda mais manifesto durante a estação de inverno carioca, quando as lojas comercializavam itens de vestuário próprios dos países de clima temperado e continental. O Parc Royal propiciava às consumidoras as “últimas novidades da moda para o inverno (...), peles e fourrures, casacos e manteaux, chapéus-modelo, tecidos de lã”.245 Na capital tropical, era comum o uso de casacos e acessórios de pele de animais, importados das nações com clima temperado. Fig. 42. Anúncio na Revista da Semana Nº 21 – Maio 1921 244 245 Anúncio no almanaque Eu Sei Tudo Nº 14 – Julho 1918 Anúncio na Revista da Semana Nº 21 – Maio 1921 122 Nos anúncios divulgados durante o verão, contudo, o Parc Royal demonstrava uma constatação do desconforto causado pelas temperaturas extremas, dirigindo-se ao público e, nesse caso, às mulheres, com empatia: “Em pleno verão – Não se esqueça V. Exa. de que no Parc Royal há de tudo com que atenuar o sofrimento destes dias de rigoroso verão. De tudo moderno, de tudo elegante, de tudo bom, de tudo barato”;246 “O footing é o grande refrigério das senhoras elegantes do Rio de Janeiro nestes dias caniculares de agora. Mas o footing é incomparavelmente mais agradável com os lindos vestidos de verão – leves, confortáveis, elegantes, modernos, à venda por preços tão convidativos no Parc Royal”.247 Mantendo sua permanente retórica, na aliança “elegância-preço”, a loja adaptava-se às condições cariocas e desenvolvia peças específicas para os tempos de calor, utilizando o reconhecimento das especificidades do verão para atrair o consumo. No período pós-guerra, uma atmosfera de entusiasmo, otimismo e vivacidade contagiou a sociedade brasileira como reflexo de um fenômeno global; o espírito do tempo era iconoclasta e desafiador de convenções. O papel da mulher ainda estava atrelado ao dever-ser esposa/mãe/dona de casa, sem acesso a voto, mas algumas pioneiras do feminismo no Brasil começavam a sair em campo pleiteando igualdade de direitos. A imprensa e o cinema exerceram influência decisiva na alteração dos padrões de comportamento; alguns periódicos, como A Revista Feminina, abriam cada vez mais espaço para questionamentos e ampliavam a defesa dos direitos da mulher. E o cinema, cada vez mais disseminado com a energia elétrica gerada em larga escala, era uma janela para novas possibilidades de identidade feminina, onde personalidades exibiam-se em papeis urbanos e arrojados, valorizando o corpo, ao invés de negá-lo e escondê-lo. Os anos 1920 anunciavam uma época de prosperidade e liberdade, com tendência a atitudes mais informais, embalada pelo som do jazz, charleston, fox-trot, shimmy, ragtime e, no Rio de Janeiro, também por modinhas, valsa brasileira, chorinhos e maxixe. A dança exigia liberdade de movimentos tanto no vestuário feminino quanto no masculino; paletós mais amplos e calças mais frouxas para eles, saias mais curtas para elas. A mulher já se permitia a ousadia de mostrar parte das pernas, o colo, as costas e a nuca, usando saias acima dos joelhos, grandes decotes e cabelos curtos, à la garçonne. Os vestidos, leves e confortáveis, possuíam estrutura tubular, com cintura baixa, facilitando os movimentos; a boca, os olhos e as sobrancelhas bem marcadas, emolduradas por chapéu cloche, enterrado até os olhos, completavam o charme da melindrosa, modelo dessa persona 246 247 Anúncio na Revista da Semana Nº 9 – Janeiro 1918 Anúncio na Revista da Semana Nº 45 – Dezembro 1917 123 feminina livre e desimpedida típica da segunda metade da década de 1920, personificada no traço de caricaturistas nacionais como Belmonte e J. Carlos. As ilustrações dos anúncios do Parc Royal evidenciam a mudança da imagem, do lugar e do conjunto de reações que diziam respeito à mulher na sociedade, desde o recato e a imobilidade típicos do século XIX até a persona sedutora em evidência nos anos 1920; um contraste entre a passividade e o confinamento no lar e um papel um pouco mais ativo nas relações de gênero, aliado a uma maior mobilidade. Essa nova concepção de feminilidade externada nos reclames não significava um abandono dos ideais de beleza e elegância baseados em matrizes estrangeiras; foram mantidos os parâmetros referenciais de moda e estética, bem como a preocupação com a aprovação social, permeada pelo uso de determinada indumentária. A imagem das clientes projetada nos anúncios do Parc Royal eram de mulheres sofisticadas, sedutoras, com olhar desafiante, cujo poder de sedução era reconhecido e incentivado pelo magazine. À essa mulher, projetada nos reclames, eram concedidas novas formas de se tornar atraente e fascinante ao sexo oposto. A expressão dessas novas representações pode ser percebida no texto do anúncio a seguir: “Onde quer que apareçam, as formosas senhoras que nós vestimos ratificam o triunfo do seu sexo e submetem a dura prova a fragilidade do coração do homem”.248 O Parc Royal tratava as relações entre gêneros, em certa medida, como uma competição; a mulher que consumisse e usasse seus produtos “triunfaria” sobre o sexo masculino, submisso pela fraqueza de suas emoções diante de figuras femininas tão poderosas: “Onde quer que ela aparece, escraviza o coração dos homens, acorda a inveja das mulheres, impõe-se à admiração de todos! É uma freguesa do Parc Royal”.249 À consumidora da loja eram garantidos, pelo anúncio, um domínio dos homens e uma ascendência sobre outras mulheres; o discurso de propaganda que cobrava delas atributos ideais de beleza e elegância, lhes autenticava a potência da sedução nas relações entre gêneros. 248 249 Anúncio na Revista da Semana Nº 25 – Junho 1921 Anúncio na Revista da Semana Nº 31 – Julho 1921 124 Fig. 43. Anúncio na Revista da Semana Nº 25 – Junho 1921 A representação feminina calcada na aparência, no apuro da estética, no cultivo dos padrões de “distinção” disseminados entre as elites, no uso da vestimenta adequada para cada momento de sua vida, tudo isso através do consumo dos produtos oferecidos pelo Parc Royal, perdurou durante as décadas de 1910 e 1920. “Arte, Elegância, Beleza, Moda. As fadas bemfazejas dos encantos femininos têm o seu dourado abrigo no Parc Royal”;250 “A joia singela e nua – Para seu engaste esplendoroso, as lindas novidades de Paris apresentadas pelo Parc Royal”;251 “A moda é a beleza da mulher, a mulher é a beleza da vida. Lindas senhoras, as que vestem as lindas modas do Parc Royal”;252 “Criações da moda do Parc Royal – São elas o sonho, o enlevo das lindas Senhoras Cariocas que se tornam, elas próprias, um enlevado sonho de beleza, quando vestem as lindas criações da moda do Parc Royal”;253 “Escrínio permanente da Moda, ele é o servo da Mulher Elegante, a quem patenteia, nas suas vitrines e rayons, tudo quanto cria o espírito humano para glorificar a beleza da Eterna Rainha da Criação”;254 “A beleza é uma força soberana na mulher. Mais ainda, quando a realça uma das lindas criações do Parc Royal”;255 “Para as senhoras 250 Anúncio na Revista da Semana Nº 26 – Junho 1922 Anúncio na Revista da Semana Nº 34 – Agosto 1922 252 Anúncio na Revista da Semana Nº 41 – Outubro 1922 253 Anúncio na Revista Careta Nº 805 – Novembro 1923 254 Anúncio na Revista da Semana Nº 33 – Agosto 1927 255 Anúncio na Revista da Semana Nº 37 – Setembro 1927 251 125 elegantes, o Parc Royal é um templo, onde a beleza se requinta, a graça se sublima e a distinção se consagra”.256 Conforme a descrição publicitária acima, à mulher caberia o papel de “rainha da criação”, e para desempenhá-lo deveria investir no seu poder de atração. Beleza, moda, elegância e distinção apresentavam-se como manifestações que concorreriam para o alcance do objetivo máximo feminino: a conquista masculina e a reprodução. As ilustrações desses anúncios caracterizavam-se pelo requinte da figura da mulher, representada geralmente com o rosto levemente levantado, em pose de quem olha “de cima para baixo”, com ar sensual, “glorificada” como diva, objeto de contemplação e culto. Delas esperava-se “Simplicidade, elegância, graça, distinção. Atrativos que as Senhoras invariavelmente conquistam, quando as favorece a colaboração de elegância que oferece a todas as freguesas o Parc Royal”;257 “Crisálidas radiantes, as senhoras surgem deslumbrantemente transformadas quando vestem as lindas modas de Paris importadas pelo Parc Royal”258; “Em qualquer estação do ano, em qualquer estação da vida, triunfam as senhoras de bom gosto que se vestem no Parc Royal”.259 Conforme o arquétipo construído nas peças publicitárias da loja, a mulher deveria exibir-se portando as últimas novidades da moda, reforçando um estilo próprio de um estrato “elegante”: “É às senhoras que cabe a responsabilidade em manter bem altas, em todas as reuniões da moda, as brilhantes tradições da elegância carioca”.260 Ressaltava-se o caráter de competitividade e demarcação social vinculado ao uso da moda, como um jogo que exigia da mulher um empenho para afirmar seu posicionamento: “Ser chique é vencer a cada dia uma nova batalha de elegância, ser chique é vencer a cada dia uma nova batalha de distinção, ser chique é bem mais fácil às freguesas do Parc Royal”.261. Ou seja, “ser chique” não deveria ser tarefa simples, e a loja se apresentava como aliado das mulheres na construção da persona que, através do consumo, da utilização de certa indumentária e da exibição de uma aparência estudada, se revestiria de atributos simbólicos de pertencimento e valorização em determinado grupo, numa determinada cidade. A representação feminina como uma figura quase mitológica, em poses refinadas, remete a uma ideia de mulher cujo papel seria ser alvo de admiração e reverência - desde 256 Anúncio na Revista O Cruzeiro Nº 22 – Abril 1929 Anúncio na Revista Frou-Frou Nº 6 – Novembro 1923 258 Anúncio publicado na Revista Frou-Frou No. 5 – Outubro, 1923 259 Anúncio publicado na Revista da Semana No. 41 – Outubro, 1921 260 Anúncio publicado na Revista da Semana No. 30 – Agosto 1919 261 Anúncio publicado na Revista da Semana No. 4 – Janeiro 1922 257 126 que adotasse modos, modas e gostos próprios de um ideário de elegância. Se, por um lado, essa função reforça o caráter distintivo de uma parte da sociedade que não precisaria executar tarefas laborais, devendo dedicar-se ao consumo e ao aprumo da sua visualidade, por outro traz à tona o constrangimento a que as mulheres dessa mesma classe estavam sujeitas para ocupar o lugar a elas reservado. Embora a atmosfera sofisticada e elitista fosse predominante nos reclames dedicados à mulher, alguns também demonstravam uma preocupação como o espírito de economia das clientes, novamente reforçando a ideia divulgada pelo Parc Royal de que a loja seria um “democratizador de elegância” para todos: “Onde comprar? Levem as donas de casa as suas economias ao Parc Royal e ele as fará frutificar sob a forma de excelentes artigos da última moda para Senhoras, para Homens, para o Lar, a preços que são o segredo do Parc Royal”.262 Nesse anúncio, a mulher não é retratata em pose voluptuosa; ao contrário, aparece sentada com os cotovelos apoiados numa escrivaninha, com a mão no rosto, pensativa, como se tomasse uma decisão sobre onde comprar. Na série de propagandas do Parc Royal veiculadas nas capas da Revista da Semana, boa parte delas foi direcionada à representação feminina, algumas em alusão ao momento histórico que porventura fosse tema das publicações. Na comemoração do Centenário da Independência: “Rendem os potentados do mundo, oficialmente, suas homenagens ao Brasil. Mas a homenagem mais íntima e vibrante é a que os seus corações rendem à mulher brasileira, cuja beleza se ostenta, radiosa e fascinadora, graças à brilhante cooperação do Parc Royal”.263 Noutra capa, o Pão de Açúcar se transforma em um corpo de mulher: “Mulher! Eterno ideal dos poetas! Sonho constante dos artistas! Visão perturbadora das almas contemplativas! Existes na terra, na montanha, no mar, no céu! Palpitas no espírito dos que te amam e adoram! Vives no Parc Royal”.264 262 Anúncio na Revista da Semana Nº 50 – Dezembro 1922 Anúncio na capa da Revista da Semana Nº 42 – Outubro 1922 264 Anúncio na capa da Revista da Semana Nº 47 – Novembro 1922 263 127 Fig. 44. Capa da Revista da Semana Nº 47 – Novembro 1922 A imagem de mulher, bela e adorada, confunde-se com própria imagem do Rio de Janeiro, ambas valorizadas por seus encantos estéticos; essa mulher-cidade têm sua existência vinculada a um local de consumo, a loja do Parc Royal. Noutra capa, mais um exemplo de associação entre uma ideia de beleza das cariocas e o consumo naquele local: “Qual a mais bela das cariocas? A mais distinta e assídua cliente do Parc Royal”.265 Nos demais exemplares da Revista da Semana que possuíam ilustrações de mulheres na capa, somadas à propaganda do Parc Royal, as mensagens repercutiam as mesmas construções simbólicas dos anúncios do magazine publicados no interior dos periódicos, dotados de uma aura de sofisticação, uma valorização da aparência, da obediência à moda, e uma exaltação daquelas que se vestissem na loja: “A cada passo uma admiração, um elogio, um galanteio: é o que ganham as senhoras chiques que se vestem no Parc Royal”;266 “E assim vestida no rigor da moda, onde ela passa fica o perfume, o chique, a graça incomparável das criações da moda do Parc Royal”.267 Há uma edição daquele veículo que se destaca pelo tema e pelo posicionamento político do magazine: a Revista da Semana que trata, em sua capa, da questão do voto feminino. Nas primeiras décadas do século XX, o sufrágio feminino era a principal bandeira feminista; com a fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino em 9 de Agosto de 1922, liderada pela líder brasileira Bertha Lutz, a luta pela igualdade de direitos ganhou 265 Anúncio na capa da Revista da Semana Nº 28 – Julho 1922 Anúncio na capa da Revista da Semana Nº 17 – Abril 1923 267 Anúncio na capa da Revista da Semana Nº 50 – Dezembro 1923 266 128 maior repercussão. A Revista da Semana do mês de Dezembro daquele mesmo ano exibia, em sua capa, uma imagem de mulher colocando o voto na urna, com expressão sorridente e triunfante. Sob a ilustração, o texto publicitário: “Primeira aplicação do voto feminino: proclamar por grande maioria a superioridade imensa e soberana dos artigos de moda do Parc Royal”.268 A um só tempo, a loja apoiava a reinvindicação política feminina, reforçando a conquista da simpatia daquele público e posicionando sua própria imagem como entidade moderna, favorável a atitudes revolucionárias; ainda, apropriava-se das noções democráticas de soberania e superioridade da maioria para proclamar a valorização dos seus produtos. Fig. 45. Capa da Revista da Semana Nº 49 – Dezembro 1922 A instituição do voto feminino no Brasil ocorreu somente em 24 de fevereiro de 1932, através do Decreto-Lei No. 21.076, assinado pelo então Presidente Getúlio Vargas. 268 Anúncio na capa da Revista da Semana Nº 49 – Dezembro 1922 129 6.4 Moda e sociabilidade O Parc Royal introduziu em sua publicidade uma série de práticas de sociabilidade que passaram a integrar o cotidiano das elites nas primeiras décadas do século XX, aproveitando-se do surgimento de novos espaços de circulação e exibição pessoal para transmitir sua mensagem de incentivo ao consumo. Cada uma das novas ocasiões sociais exigiria uma indumentária apropriada - conforme o manancial de informações de moda que incluíam regras, críticas ou elogios divulgados na imprensa e na própria publicidade - e a loja apresentava-se como o melhor local para sua aquisição. O banho de mar foi uma das atividades que ganhou novo alcance na época, impulsionado pela abertura de túneis e pela urbanização da orla efetuadas por Pereira Passos, tornando-se um hábito mais corriqueiro entre as elites. Inicialmente vislumbrado apenas com fins medicinais e terapêuticos, o uso da praia como espaço público de lazer e opção de convívio social foi incorporado pela sociedade carioca, ainda que regulamentado por códigos de postura municipais, obedecendo horários restritos e exigindo vestimentas apropriadas. Os trajes das banhistas consistiam em touca, roupão, sapatos de tecido amarrados no tornozelo (usados às vezes com meia três-quartos preta) e vestidos feitos de sarja escura com comprimento no joelho, bem folgados para não marcar o corpo; no início da década de 1920 surgiram os primeiros maiôs, um pouco mais curtos e colantes, feitos de malha de lã. O Parc Royal dedicou boa parte de seus anúncios a essa temática, se presentificando no momento praiano: “Nas praias – A moda exige elegância mesmo nos banhos de mar. Mas esse despotismo da moda é fácil de se obedecer. Vejam os lindos e vantajosos sortimentos que temos à venda de artigos para banho de mar. Para Senhoras: costumes de banho, últimos modelos importados diretamente de Paris e New York, toucas elegantíssimas, sandálias, roupões de banho e todos os demais artigos indispensáveis. Para Homens: camisolas de todos os modelos e cores, calções, cintos, chapéus de lona”.269 O rol de peças de moda-praia incluíam ainda “costumes de tafetá de seda e cetim impermeáveis, capas de felpo, alpaca e cetim, sapatos de banho”,270 “costumes em sarja, maiôs em malha de algodão e de lã, capas de tecido felpudo, botas, salva-vida de cortiça e de borracha, camisas em malha de algodão e de lã, calções”,271 “camisolas lisas ou listradas com as cores 269 Anúncio na Revista D. Quixote Nº 90 – Janeiro 1919 Anúncio na Revista da Semana Nº 9 – Fevereiro 1921 271 Anúncio na Revista Careta Nº 761 – Janeiro 1923 270 130 de todos os clubes”.272 As competições esportivas de esportes aquáticos como remo, natação e saltos ornamentais eram as mais populares no Rio de Janeiro e contavam com ampla audiência, num período anterior à disseminação do futebol como preferência nacional; os clubes a que se referem o anúncio provavelmente seriam os Club de Natação e Regatas, Club Internacional de Regatas, Club de Regatas Boqueirão do Passeio, Club de Regatas Guanabara, Club de Regatas do Flamengo ou Club de Regatas Botafogo, cujas cores seriam estampadas nas roupas de banho listradas. Fig. 46. Anúncio na Revista D. Quixote Nº 90 – Janeiro 1919 O Carnaval foi outra manifestação cultural da cidade que teve destaque na propaganda do magazine. A festa momesca assumia diversas configurações, com bailes elitizados nos clubes e hotéis, o corso carnavalesco nas ruas (carros que desfilavam com pessoas fantasiadas igualmente), a batalha das flores e o popular carnaval de rua, que incluía o banho de mar à fantasia. O Parc Royal anunciava “pierrôs de cetim de seda pura, belos modelos franceses, em todas as cores, para homens e senhoras; pierrôs e pierretes de cetim de algodão, de 2 a 12 anos; lança-perfumes Rodo, confete, etc etc”;273 “quimonos japoneses 272 273 Anúncio na Revista da Semana Nº 51 – Janeiro 1920 Anúncio na Revista Careta Nº 449 – Janeiro 1917 131 de crepom, padrões vistosos”,274 “lindas fantasias que acabamos de receber de Paris, para senhoras, para meninas, para meninos”.275 Reiterando sua proposta de “democratização” do estilo que vendia, a loja abrangia em sua comunicação carnavalesca uma amplitude de possibilidades, oferecendo desde os modelos de fantasia importados, mais caros, até peças e acessórios mais em conta. Havia reclames dirigidos especificamente aos foliões que visavam uma comemoração mais popular: “Carnaval de rua! Divertir-se muito...gastando pouco! Para senhoras: pierrôs originais, vários tecidos, todas as cores, pierrôs de seda, feitios modernos, quimonos de crepom japonês, golas de filó em cores, máscaras diversas. Para homens: pierrôs de cetineta, camisas carnavalescas, calças de brim branco à americana, pijamas de zefir, bonés brancos. Para meninas: quimonos japoneses, bailarinas cetim e tarlatana, sombrinhas japonesas, carapuças com as cores dos clubes. Para meninos: pierrôs de cetim, calças de brim branco, camisas de esporte, pijamas de zefir. Tecidos e artigos carnavalescos de todos os gêneros, lenços alcobaças, lança-perfumes, confete, serpentinas, bolinhas, grande variedade de fantasias confeccionadas para senhoras, homens e crianças. Entregaremos em 24 horas qualquer modelo de fantasia que nos seja encomendado”.276 Todos os itens nesse reclame eram precificados, o que fortalece a hipótese de que o custo das mercadorias seria atraente para o público. O Parc Royal retratava o universo momesco com ênfase no aspecto da sedução, conforme a atmosfera da ilustração do reclame abaixo, onde se lê: “Convidamos todos os devotos de Momo a visitarem-no no Parc Royal, onde ele neste momento se ostenta com sua ruidosa corte de pierrôs, odaliscas, clowns e dominós. Aproveitem ao mesmo tempo a nossa grande venda de artigos de carnaval com 20% de desconto sobre todos os preços marcados”.277 274 Anúncio na Revista da Semana Nº 1 – Fevereiro 1920 Anúncio na Revista da Semana Nº 6 – Fevereiro 1921 276 Anúncio na Revista da Semana Nº 9 – Fevereiro 1922 277 Anúncio na Revista da Semana Nº 4 – Janeiro 1921 275 132 Fig. 47. Anúncio na Revista da Semana Nº 4 – Janeiro 1921 A “estação teatral” motivou uma outra série de reclames do Parc Royal. A frequência aos espetáculos, sobretudo àqueles encenados no Theatro Municipal, era retratada como um momento propício ao desfile social e à exibição de aparências, que por sua vez resultariam num incremento ao consumo. Recomendava-se as “últimas criações parisienses das grandes modistas de Paris, vestidos de baile, chapéus-modelo, meias de seda, calçados de luxo”,278 além de leques, colares, pulseiras, sombrinhas, bolsas, echarpes, golas e ornamentos para penteado. 278 Anúncio na Revista da Semana Nº 13 – Março 1922 133 Fig. 48. Revista da Semana Nº 23 Junho 1921 Fig. 50. Revista da Semana Nº 50 Janeiro 1920 Fig. 49. Revista da Semana Nº 13 Março 1922 Fig. 51. Revista Careta Nº 469 Junho 1917 A atividade de olhar vitrines nas ruas de “comércio elegante”, flanar pelas lojas e consumir seus produtos passou a integrar o rol de ações prazerosas praticadas pela elite e camadas médias da sociedade, aumentando as oportunidades de socialização. Houve um incremento nos lazeres associados ao consumo, impulsionado pelas alterações urbanas e pela ampliação do comércio de moda no Brasil, aliadas às novas concepções de feminilidade. A “mulher-mãe-dona-de-casa” passava a ser também consumidora, e fazer 134 compras se tornava, cada vez mais, um costume cotidiano para o grupo feminino, que aumentava sua participação no espaço público. A propaganda do Parc Royal inseriu em suas representações a atividade do consumo, como uma metalinguagem publicitária; a situação encenada no anúncio para estimular a compra dos produtos é a própria compra dos produtos. Na imagem do reclame, abaixo, há associações que ilustram a aquisição de objetos no Parc Royal como uma prática inerente a um ideário de modernidade. Elementos que ressoam uma urbe cosmopolita aparecem, ao fundo – o bonde, o poste de iluminação elétrica, os transeuntes – destacandose o automóvel vermelho onde um casal passeia pela Avenida Central. Sorridentes, levam consigo caixas e porta-chapéus da loja, como se tivessem acabado de fazer um programa familiar agradável, deslocando-se repletos de bens e de alegria. Fig. 52.O Malho Nº 888 – Setembro 1919 Em seu material de propaganda, a loja parecia desejar imprimir um “ar de modernidade” à sua imagem e ao exercício do consumo, apregoando um estilo de vida que seria capaz de legitimar um estatuto moderno e metropolitano almejado pelas elites cariocas, em ressonância aos hábitos das grandes cidades da Europa e dos Estados Unidos. 135 7 – Considerações Finais Na capital remodelada por Pereira Passos, a multiplicação de lugares de encontros e apresentações incentivou novas formas de socialização. Nas duas primeiras décadas do século XX, ver e ser visto tornavam-se práticas cada vez mais comuns; nos parques, nos teatros, nos bailes, salões de chá, nas competições aquáticas e corridas do Jockey Club e nas ruas de comércio elegante, os membros da “boa sociedade” integravam o desfile de aparências calcado no apuro estético de sua vestimenta e seus acessórios, nos seus modos e maneiras, no gosto e no gesto. O Rio de Janeiro, então centro político e administrativo do país, afirmava-se também como centro da moda, ancorando suas estruturas de divulgação, produção e comercialização. As revistas de variedade e os catálogos das grandes lojas atuavam como elementos essenciais da propagação de informações com instruções codificadas sobre o que, onde e como vestir. Num início de século em plena mutação e aceleração do movimento e da percepção do tempo, a atividade dos “bazares de novidade” conheceram um desenvolvimento sem precedentes. A mecanização e o aperfeiçoamento da máquina de costura aumentou a capacidade de produção têxtil, enquanto novos meios de locomoção permitiam o transporte das peças de maneira mais rápida e barata. A queda nos preços das roupas permitiu que um grupo maior de pessoas tivesse acesso a itens que se pareciam com os artigos caros executados por alfaiates ou estilistas particulares. A ascensão do grande comércio, protagonizado pelas lojas de departamento, ocorreu em meio ao nascimento da sociedade industrial-capitalista, introduzindo um sistema de vendas até então inédito; o florescimento desse novo comércio ocorreu em grandes metrópoles onde havia uma concentração burguesa com apego às aparências, interesse pelo que fosse novo e moderno, e uma permeabilidade à sedução publicitária que incitava o consumo. O escritor francês Èmile Zola, em seu romance O Paraíso das Damas, faz um relato documental-romanceado sobre o nascimento desses estabelecimentos que “vendiam barato para vender muito, vendiam muito para vender barato”. O autor faz uma descrição do mecanismo que movimentava o grande comércio moderno no final do século XIX: (...) o capital incessantemente renovado, o sistema de acúmulo de mercadorias, os preços baixos que atraem, a marcação em cifras conhecidas que tranquiliza. Era a mulher que os magazines disputavam, a mulher que capturavam na armadilha de seus preços, depois de tê-las 136 atordoado diante das vitrines. Os grandes magazines haviam despertado novos desejos na carne feminina, eram uma tentação constante, à qual a mulher sucumbia fatalmente, cedendo inicialmente a suas compras de boa dona de casa, conquistada em seguida pela vaidade, e finalmente devorada. Ao decuplicar suas vendas, ao democratizar o luxo, essas lojas se tornavam um terrível agente de gastos (...), tirando proveito da loucura da moda, cada vez mais cara. (ZOLA, 2008: 112) Na ficção de Zola há uma oposição entre o velho comércio de rua e os grandes magazines, a derrocada de um modelo como consequência exclusiva do sucesso de outro. Essa visão não considerava a percepção de que o sopro de virada nas direções ocorre em meio a um processo, que entre continuidades e rupturas sente o pulsar de aspectos tradicionais ou inovadores em teias mais complexas do que substituições simplistas. Ao invés de uma relação antagonista entre duas formas de mercantilização, percebemos as boutiques de pequena escala como representantes de um estágio de comércio anterior ao desenvolvimento das lojas de departamento que se sucedeu na modernidade. Embora o escritor “carregasse na tinta” maniqueísta, vale a pena reproduzir as intenções do personagem Mouret, dono da loja de departamentos cujo nome dá título ao livro: A única grande paixão de Mouret era triunfar sobre a mulher. Ele a desejava rainha em sua casa, e erguera esse templo para tê-la à sua mercê. Toda a sua tática era inebriá-la de atenções galantes, extasiá-la em seus desejos. (...) Mas sua ideia mais inusitada era para a mulher sem vaidade: conquistar a mãe pela criança; ele não perdia nenhum impulso, especulava sobre todos os sentimentos, criava seções para meninos e meninas, parava as mães que passavam oferecendo a seus bebês imagens e balões. (...) O grande poder do magazine era sobretudo a publicidade. (...) Era uma superabundância de mercadorias, o Paraíso das Damas saltava aos olhos do mundo inteiro, invadia os muros, os jornais, até as cortinas de teatro. Ele professava que a mulher não tinha forças contra o reclame, que acabava fatalmente seguindo a agitação. Além disso, (...) ele lhe preparava armadilhas inteligentes. Assim, descobrira que ela não resistia a um desconto, que comprava sem necessidade quando pensava estar fazendo um negócio vantajoso e sob essa 137 observação ele baseava seu sistema de diminuição de preços, baixando progressivamente artigos não vendidos, preferindo vendê-los com perda, fiel ao princípio de renovação rápida das mercadorias. Então ele penetrara ainda mais fundo no coração da mulher ao imaginar o sistema de “devoluções”, uma obra de arte da sedução jesuítica. (ZOLA, 2008: 283) As estratégias publicitárias utilizadas pelo protagonista se assemelham bastante às técnicas utilizadas hoje por grandes cadeias varejistas, supermercados e shopping centers. Mais do que mercadorias, o magazine oferecia um reino de ilusões. No romance de Zola, há uma opção explicitada pela mulher como público-alvo do Paraíso das Damas. Se, por um lado, esse exemplo não contempla a revolução no consumo que, em escala maior ou menor, atingiu a todos os gêneros, por outro traz à tona a profunda mudança que o comércio operou na esfera feminina, acelerando o processo de exteriorização da mulher, enquanto corporificava uma nova possibilidade de lazer e sociabilidade. A loja do Sr. Mouret ocupava um lugar considerável na vida cotidiana de mulheres com índoles variadas, desde aquela com sanha de gastar, comprando tudo o que via na frente, até aquela apertada de dinheiro, torturada pela cobiça; a que passeava horas sem jamais fazer uma compra sequer ou aquela prática e sensata, que tirava proveito das promoções; a elegante, que só comprava artigos selecionados, e até mesmo uma cleptomaníaca, que realizava furtos reiteradamente. Recorreremos uma última vez à obra do escritor francês, que faz menção ao consumo como uma “nova religião”, substituta de antigos hábitos e costumes que exigiam fidelidade feminina: Graças à sua renovação contínua de mercadorias, sua baixa de preços e suas devoluções, sua galanteria e sua propaganda (...) ele conquistara até as mães, ele reinava sobre todas com a brutalidade de um déspota cujos caprichos arruinavam lares. Sua criação trazia uma nova religião. As igrejas, que a fé vacilante fazia desertar pouco a pouco, eram substituídas por seu bazar nas almas doravante desocupadas. A mulher vinha passar em sua loja suas horas vazias, as horas intensas e inquietas que vivia outrora no fundo das capelas: gasto necessário de paixão nervosa, luta renascente de um deus contra o marido, culto sem cessar renovado do corpo, com o além divino da beleza. Se ele fechasse as portas, haveria uma insurreição na calçada, o grito desesperado das beatas às quais 138 estariam suprimindo o altar e o confessionário. (ZOLA, 2008: 485) Na caracterização de seu enredo, o escritor faz um diagnóstico severo dos grandes magazines tece previsões apocalípticas decorrentes do novo comércio; mas, de modo até otimista - ao contrário da maioria de seus outros romances - externa também, através da personagem Denise, a aceitação de uma nova ordem, da “festa urbana” e do imperialismo comercial como uma “força que varria tudo”, como uma “obra invencível da vida, que quer a morte para a nova semeadura”. (ZOLA, 2008: 446) O ponto que mais nos interessa nessa obra de Zola, para além das descrições pormenorizadas das configurações e atividades dos grandes magazines e do comportamento das mulheres, é a percepção da estreita ligação entre o novo modelo de comércio e de consumo e o processo de urbanização e modernização das cidades à luz do modelo de progresso europeu. Charles Baudelaire, outro escritor francês que versou sobre a modernidade na segunda metade do século XIX - e talvez tenha sido o mais influente – abarcou o fenômeno da moda como inerente à qualidade de transitoriedade que caracterizava a experiência urbana moderna. Para ele, as mudanças da moda espelhavam a variação dos ritmos de vida na capital, as alterações nas convenções culturais e sociais, numa movimentação constante em função da natureza própria da modernidade, marcada pela instantaneidade. (BAUDELAIRE, 2010) Ao escolhermos o Parc Royal como objeto de nossa investigação, vislumbramos um potencial para iluminar um contexto. A partir da investigação dos dados históricos referentes à sua atuação e da análise do conjunto de sua comunicação publicitária, é possível empreender uma reflexão sobre a cidade naquele momento e trazer uma discussão acerca da urbe, da elite e dos estilos de vida de pessoas destacadas por certo padrão de vida. Nas duas primeiras décadas do século XX, o Rio de Janeiro viveu um momento de efervescência, enquanto a nação buscava os rumos do moderno e da modernização. A cidade portuária ganhou ruas largas e iluminadas, com construções que tiravam proveito das estruturas de metal, do barateamento dos vidros e espelhos, e de invenções como o elevador. O surgimento de lojas com aparência luxuosa, que exteriorizavam riqueza em suas fachadas e investiam na decoração de seus interiores, fez parte de uma evolução econômica ligada às mudanças urbanas e financeiras ocorridas em escalas mais amplas, no caminho da modernização técnica do Ocidente. José Vasco Ramalho Ortigão, proprietário do magazine, se achava inscrito numa rede ascendente de empreendedores comerciais que operavam num contexto de transição 139 sendo, eles mesmos, atores dessa passagem. É notória a influência exercida por comerciantes portugueses na economia e na sociedade do Rio de Janeiro na virada do século XX. O Parc Royal não foi o único estabelecimento do ramo que se sensibilizou com as mudanças que se insinuavam. No entanto, é evidente sua marca no movimento de renovação ocorrido no varejo carioca, onde introduziu um tipo inédito de comercialização, baseada no modelo das lojas de departamento europeias. Se a expansão do transporte público, a influência da imprensa popular e as reformas urbanas propiciaram a formação de uma “nova era de compras”, o Parc Royal se mostrou bem sucedido na elaboração de um discurso publicitário convincente sobre consumo envolvendo a cidade, sociabilidades, sedução e novidades. A partir da leitura do magistral Mozart - Sociologia de um gênio, do filósofo social Norbert Elias, vislumbramos alguns caminhos possíveis de investigação. Percebemos como o estudo de um caso específico se torna revelador do conjunto, permitindo entrever a constituição daquela sociedade - e como a análise de certo padrão e estilo de vida se torna reveladora de uma época. O Parc Royal é uma boa lente para decifrar a moderna experiência cultural na capital da República e observar a malha de um mercado de consumo de moda em construção. Se adotarmos a adequação social como parâmetro para avaliação de suas ações, perceberemos como suas iniciativas, muitas delas pioneiras, foram executadas em entrosamento com a vida cultural e política da cidade. Seu administrador pôde dar curso a um espírito empresarial com sensibilidade para a cultura moderna carioca; no encontro entre suas qualidades subjetivas e uma determinada figuração de mundo, teve a oportunidade de empreender novos rumos ao seu tipo de comércio, ampliando seu campo de atuação mais além daqueles que baseavam suas condições de sobrevivência apenas na reprodução do passado. Num universo urbano em ebulição, a cultura das aparências e a propagação dos reclames abriam espaço na ordem estabelecida. Sobre esses aspectos, João do Rio, cronista carioca de seu tempo, fez um “retrato” contundente: - O reclame, meu caro, é o aproveitamento de um mal contempoâneo – o mal de aparecer. É o mal devorador, é a epidemia, é o flagelo açoitando todos os nervos, todos os cérebros, como um castigo dos céus. Que queres tu que se faça na ânsia da vida moderna, na neurose da concorrência, no desespero de vencer? Aparecer! Aparecer! (...) 140 Vê o mundo. O trabalho duplicou, decuplicou, centuplicou. O esforço para a evidência, para a personalização na grande feira humana, chupa os ossos, rasga os músculos, arranca os nervos, (...), mas a onda continua, impetuosa, irresistível, para além das forças concebíveis, atirando aos píncaros os vitoriosos – os vitoriosos de um instante que conseguem aparecer. (DO RIO, 2006: 67) Observa a sociedade, o torvelinho, o caos, o sorvedouro, o fiorde humano que é uma grande cidade. Vês aquele cavalheiro? É um valdevinos admiravelmente bem vestido. Não o era antes. (...) Conheces Mme. Praxedes, a mulher mais elegante do Rio? Tem trinta e cinco anos e um filho de dezoito. Suicidar-se-ía, se a proibissem de ir a uma soirée fashion, se faltasse a uma festa, a um raout qualquer de gente bem lançada. É preciso aparecer, não ser esquecida, conservar no público a ideia de sua beleza.” (João do Rio, 2006: 70) Na emergência de uma sociedade de massa mais igualitária, tributária dos valores da aristocracia, o Parc Royal perpetuava matrizes de refinamento e moda europeias, ao mesmo tempo que buscava promover a difusão desse estilo de vida. Afinal, desde o fim da aplicação das leis suntuárias, as escolhas individuais não eram mais subordinadas pelos laços sanguíneos aristocráticos; na sociedade individualista e de mercado, a ausência de códigos formais que determinassem status e estilo de vida equalizou os grupos sociais em termos de consumo. Status e modo de vida passaram a depender da renda, não mais da origem social. Todos podem ser consumidores – desde que possuam recursos financeiros para isso. Na ausência de grupos aristocráticos que servissem de inspiração para os segmentos de base na pirâmide social, o magazine cumpria um papel de referência e transmitia, em sua publicidade, uma mensagem de como a “sociedade refinada” deveria se portar. As representações de seus anúncios primavam pela permanência do caráter “distinto”, mas sinalizavam que o padrão poderia ser democratizado. O magazine insistia na formação de um modelo de “elegância” – por sinal, era essa a palavra mais repetida em seus anúncios – obedecendo a regras e exigências cuja dificuldade se resolveria com o auxílio da loja, que se apresentava como o lugar que dominaria esses critérios, e onde o consumo seria a maneira de atendê-los. A insistência nos preços baixos e a autopromoção como disseminador dessas prerrogativas demonstram que o Parc Royal não era restritivo na mensagem que manifestava a possibilidade do acesso a esse estilo de vida a todos que lá comprassem. 141 Em meio a um caos urbano em formação, era preciso chamar atenção na multidão; uma crescente cultura de exibição e afirmação social a partir de atributos estéticos e aferição de “índices de modernidade” nutria um terreno fértil onde o consumo germinou sua propagação, como forma de lazer, como meio de diferenciação social, como alavanca da economia liberal-capitalista que se tornou parte de uma maneira de sobreviver. José Vasco Ramalho Ortigão contribuiu para a construção de uma cultura pública voltada para o consumo, explorando os meios de comunicação de massa para divulgar o ato de comprar e se vestir como uma necessidade social e cultural, associando uma extensa gama de prazeres e obrigações ao consumo. O Parc Royal usou a imprensa e a publicidade de uma forma nova, utilizando em larga escala tecnologias de impressão e divulgação disponíveis, a exemplo dos americanos John Wanamaker e Gordon Selfridge, proprietários de lojas de departamento nos Estados Unidos e na Inglaterra, conforme relatado em “Uma nova era de compras”: a promoção do prazer feminino no West End londrino, 1909-1914 pela historiadora Erika D. Rappaport (CHARNEY e SCHWARTZ, 2004). Além de anunciar maciçamente utilizando reclames de página inteira que se beneficiaram da identidade visual criada pelo ilustrador Manoel de Mora e do original uso da cor, o Parc Royal também usou estratégias publicitárias que disfarçavam a distinção entre os anúncios e as seções editoriais, por exemplo divulgando sua mensagem na capa da Revista da Semana e dos programas do Theatro Municipal, além dos cartões-postais emitidos pela loja e da sua própria publicação, o Parc Royal Magazine. Conforme se ampliava a presença imagética na vida cotidiana moderna, o Parc Royal estabelecia uma parceria entre seu comércio varejista e nascentes publicações de massa, numa combinação que fazia amplo uso do apelo visual dos anúncios para reforçar suas mensagens, criando uma narrativa convincente. E na própria loja, o uso da arquitetura, da decoração e de técnicas teatrais nas vitrines a transformavam num ícone cenográfico imponente, onde as mercadorias eram revestidas de significados associados àquela imagem atraente, alterando o modo como as pessoas viam e percebiam os produtos. Uma cultura comercial em expansão interferia na redefinição das compras como atividade legítima e no lugar das mulheres no ambiente urbano e na sociedade. As representações do magazine promoviam uma nova noção da mulher, mais sedutora e ativa socialmente, autêntica representante da beleza, associada aos encantos naturais da cidade e do país, responsável por manter, através do consumo, os padrões desejáveis de “elegância”. A loja reiterou uma ideia de feminilidade que, mais tarde, o feminismo iria criticar, mas ela 142 própria pode, em algum momento, se alinhar com as reinvindicações pela igualdade de direitos ao apoiar na sua publicidade o sufrágio feminino. O Parc Royal personaliza uma face do processo de construção de uma sensibilidade moderna, como um pretexto que permite visualizar questões mais amplas. Por este estabelecimento comercial, buscamos reconstruir o ambiente do Rio de Janeiro nas duas primeiras décadas do século XX, destacando pontos que pudessem contribuir para uma sociologia de gênero, de elite e da metrópole moderna carioca. 143 8 – Epílogo: Em chamas A empresa prosseguiu com suas atividades nas décadas seguintes, até o fatídico incêndio que, em 9 de Julho de 1943, destruiu totalmente a sede da Rua Ramalho Ortigão. Eram os anos finais da Era Vargas, durante o período do Estado Novo. De acordo com o relato de Charles Dunlop (1963), às oito e meia daquela noite teve início o fogo que rapidamente se alastrou e tomou conta de todo o prédio. Às dez horas a fachada desabou, obstruindo completamente a Rua Ramalho Ortigão. Os veículos de mídia impressa deram destaque à notícia, entre eles a revista Careta:279 Era uma das casas comerciais de maior tradição na cidade, por isso o gigantesco incêndio que a destruiu, pelas suas trágicas proporções, agitou a população que, num gesto de irresistível curiosidade, se movimentou para ver as chamas que devoravam o conhecido “magazin”. A enorme fogueira era vista de quase todos os pontos do Rio. E porque se revestiu de circunstâncias dramáticas, o sinistro do Parc Royal foi o assunto da semana nesta capital. O periódico A Noite Ilustrada produziu uma extensa matéria sobre o assunto, com fotos documentais. Sob o título O incêndio do Parc Royal, lia-se o seguinte texto: O pavoroso incêndio irrompido sexta-feira, dia 9, no Parc Royal, tradicional estabelecimento do comércio carioca, destruindo totalmente o estabelecimento, é considerado um dos maiores, senão o maior já verificado no Rio de Janeiro. Cerca de quinze soldados, entre bombeiros e de outras corporações, foram atingidos durante o combate às chamas, tendo resultado todo esse heroico trabalho em vão. O estabelecimento foi destruído e o prédio em que funcionava igualmente, tendo ruído a frente que formava a Rua Ramalho Ortigão, o Largo de S. Francisco e a Rua Sete de Setembro. A gravura mostra o local do sinistro em uma visão impressionante, abrangendo toda a rua citada, desde o Largo de S. Francisco até a Rua da Carioca. Aí se pode apreciar a obra do fogo em toda a sua extensão. Texto e gravuras na página 8. (A Noite Ilustrada, 13/07/1943) 279 Revista Careta, Nº 1828, 17/07/1943, p. 22. 144 Fig. 53. Foto do incêndio, em matéria na Noite Ilustrada - 13/07/1943 Conforme noticiado pela A Noite Ilustrada, quando ocorreu o incêndio o Parc Royal não estava mais sob o comando da família Ramalho Ortigão, pois José Vasco R.O. havia falecido em 1932 e seu filho José Duarte R. O. Junior, que chegou a assumir a loja, também havia falecido, em 1942. Os donos do magazine em 1943 eram José Leite Cerqueira e José Ferreira Barcelos; suspeitos de provocarem o incêndio deliberadamente, os últimos sócios foram detidos para averiguações, e José Ferreira Barcelos autuado em flagrante como autor do ato criminoso. A seguir, a reprodução de outro trecho do relato do periódico: Às primeiras horas da noite de sexta-feira, 9 do corrente, verificou-se um dos maiores incêndios, senão o maior, e talvez mais trágico. Ardeu o Parc Royal, que era uma tradição do comércio da cidade e que fora até há pouco da família Ramalho Ortigão, estabelecida há longos anos na antiga travessa de São Francisco. Os prejuízos materiais são incalculáveis e há vítimas a lamentar, e, o que é pior, notícias corriam insistentes entre a grande multidão, que era contida a custo nas imediações, entre os inúmeros policiais presentes e até mesmo entre os bravos soldados do fogo, que o incêndio tinha tido origem criminosa, isto é, fora ateado propositadamente. (A Noite Ilustrada, 13/07/1943) A loja, que se autodenominava “a maior e melhor do Brasil”, protagonizou, segundo a imprensa, “o maior e talvez mais trágico” incêndio do Rio de Janeiro até então. O sinistro causou prejuízos aos proprietários e a terceiros. O calor das chamas partiu muitos vitrais do século XIX da Igreja de São Francisco de Paula. Foram atingidas também as fachadas das Casas Cruz e Mattos, além de uma confeitaria próxima. No segundo andar 145 do prédio, funcionava a sede da Sociedade Nacional de Agricultura e da Sociedade Brasileira de Química desde 1936; ambas perderam todo o seu acervo arquivístico e bibliográfico, que continha raridades como o livro Elementos de Química, escrito por José Coelho Seabra da Silva Telles em 1788.280 O terreno pertencia à Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula mas, diante da catástrofe, o então prefeito Henrique Dodsworth providenciou a sua aquisição, tornando-o logradouro público e possibilitando a retomada do controle de tráfego na área. Ari Barroso e Raul Brunini transmitiram, ao vivo, pela Rádio Tupi, os acontecimentos que mobilizaram o Rio de Janeiro, na sua primeira reportagem radiofônica direta.281 De acordo com o depoimento de José de Barros Ramalho Ortigão Junior - neto de Joaquim da Costa, que foi um dos sócios do Parc Royal e tio de José Vasco Ramalho Ortigão – o magazine encerrou suas atividades após o sinistro ocorrido na sede em 1943 e seus sócios seguiram adiante utilizando reservas pessoais. 280 281 O Incêndio da Sociedade Brasileira de Química, Rev. Soc. Bras. Quím., 1943, 12, 190. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001 146 Referências Bibliográficas ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo I. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1986. ASSIS, Machado de. Obra Completa, Vol. 2. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1959. BARATA, Carlos Almeida e BUENO, Antônio Henrique Cunha. Dicionário das Famílias Brasileiras. São Paulo: Ed. Árvores da Terra, 2001. 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