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CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
NÚCLEOS DE ESTUDOS AMBIENTAIS E RURAIS
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em
assentamento no Médio São Francisco.
REJANE ALVES DE OLIVEIRA
SALVADOR
2010
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CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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REJANE ALVES DE OLIVEIRA
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em
assentamento no Médio São Francisco.
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia, como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre em
Ciências Sociais.
Orientadora:
Profª. Drª. Lídia Maria Pires Soares Cardel
SALVADOR
2010
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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TERMO DE APROVAÇÃO
REJANE ALVES DE OLIVEIRA
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em
assentamento no Médio São Francisco.
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em
Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, pela seguinte banca examinadora:
Profª. Drª. Lídia Maria Pires Soares Cardel – Orientadora ___________________________
Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais.
Profª. Drª. Ely Souza Estrela – Professora Convidada ______________________________
Universidade Estadual da Bahia – Departamento de Ciências Humanas/Campus V,
Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local.
Profª. Drª. Alicia Ruiz Olalde – Professora Convidada ___________________________
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – Centro de Ciências Agrárias, Biológicas
e Ambientais.
Salvador
2010
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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Dedicatória:
Dedico este trabalho a meus pais, Joel (em memória) e Odércia, por propiciarem a mim
uma experiência de vida no mundo caipira repleta de cores, gostos e trabalho.
Seu mundo camponês está em mim. Gratidão, lembranças e saudades.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho começou há muito tempo, quando percebi que o mundo de meus
pais (e consequentemente meu) me intrigava e estimulava intelectualmente. Durante
este tempo, muitas pessoas apareceram no percurso, e não poderia aqui, nominar todas
elas. Agradeço, conjuntamente, a todos que compartilharam as minhas inquietações e
experiências durante estes anos, contribuindo de forma direta e indireta para este estudo.
Agradeço ao PPGCS - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, pela
oportunidade de desenvolver essa investigação.
À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,
pela concessão de bolsa de estudo. Sem este auxílio dificilmente realizaria a pesquisa.
À Professora Drª Custódia Selma Sena do Amaral (professora da UFG), pela
dedicação de anos, pelo carinho, pela paciência e por me mostrar os possíveis caminhos
das Ciências Sociais. Uma referência, sempre.
À Professora Drª Lídia Cardel, (minha orientadora), que não só, generosamente,
colocou à minha disposição sua imensa bagagem de conhecimento e experiência, mas
igualmente me proporcionou uma orientação permeada de confiança e estímulo, sempre
reservando do seu tempo para debater questões teóricas e percalços da vida acadêmica.
A ela devo toda a minha formação em sociologia rural. Pois os possíveis deméritos
deste trabalho são de minha total responsabilidade.
Aos colegas do NUCLEAR, e especialmente aos que se reúnem no Grupo de
Estudos
coordenado
pela
Profª
Lídia,
meus
sinceros
agradecimentos,
por
compartilharem de seus conhecimentos e me enriquecerem com suas observações e
experiências de trabalho.
À minha família, irmãos e sobrinhos. Eu sempre os busquei em minhas
memórias e revivências. Particularmente, a Manoel Napoleão, um instigador e alguém
que, como eu, traz lembranças de dor e alegria da vivência caipira. Ambos somos
marcadamente apaixonados pela riqueza mística, pela beleza ecológica e pela vastidão
bucólica que envolve o sertão. Eu sempre ouvi sons onde havia silêncio mútuo.
Sou grata, de maneira especial, a minha mãe, Odércia Vitalina de Lima, pelas
longas conversas à beira do fogão e pelo afeto regado a boas comidas e boas
lembranças. A labuta familiar com o pequeno plantio e com os animais permeia meu
imaginário, orienta minhas leituras e meus sonhos. A ela (e a meu pai) devo meu amor
pela terra e também meu olhar crítico sobre a vida no campo.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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Meus agradecimentos finais, aos quais quero dar particular ênfase são dirigidos
aos “sujeitos” protagonistas desta pesquisa, homens e mulheres lavradores e pescadores
artesanais, que demonstraram confiança, disposição e paciência ao me receberem em
suas roças, quintais e cozinhas, compartilhando comigo seu modo de vida, suas
experiências e seu precioso tempo. Sem a generosidade e a disponibilidade oferecidas,
este trabalho não seria possível. Com eles contraí uma dívida inestimável.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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RESUMO
Este trabalho tem a proposta de apresentar o modo de vida de um grupo social
camponês, localizado em um assentamento no interior do Estado da Bahia, e sua
história de constantes intervenções. Os sujeitos sociais a que nos referimos oscilam
entre diversas atividades, das quais as principais são o trabalho com a terra e com a
pesca artesanal. Assim como não existe uma atividade exclusiva, também não há uma
identidade única no grupo. O grupo social assentado apresenta sociabilidade e relação
familiar distintas. Os grupos domésticos, do mesmo modo, possuem origens distintas. A
precedência dos grupos familiares, gera conflitos. Conflitos internos que se
potencializam e dificultam a implementação de projetos intervencionistas. Este
exercício acadêmico busca pensar esta prática e as contradições desse processo. Pois, em
paralelo à incorporação de novos elementos, existem contradições expostas na prática
dos grupos domésticos, que podem ser vistas como resistência ao que é “estranho”.
Palavras-chave: campesinato, assentamento, identidade, sociabilidade, mediadores.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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ABSTRAT
This work has to the proposal to present the life of a social group peasant, located in a
settlement within the State of Bahia, and its history of constant interventions. Th e
social subjects we are talking about ranging between many activities, of which the main
ones are the work with the land and with fishing. As well as there is no exclusive
activity, there is a single identity in the group. The social group settled presents
sociability and relation family distinct. The groups domestic, likewise, have different
origins. The precedence of family groups, creates conflicts. Internal conflicts which
potentiate and hinder the implementation of projects interventionist. This exercise
academic seeking think this practice and contradictions that process. Therefore, in
parallel with the incorporation of new elements, there are contradictions exposed in the
practice of domestic groups, which can be seen as resistance to what is "stranger".
Key words: peasantry, settlement, identity, sociability, intermediate.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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LISTA DE FOTOS
Foto 01 – Agrovila de Canudos
50
Foto 02 – Morador que se identifica como pescador
85
Foto 03 – Moradora colhendo mamona para vender a um atravessador
86
Foto 04 – Foto demonstrativa do estado de depredação do maquinário da Casa
de Farinha Coletiva e Eletrificada
128
Foto 05 – Foto da frente da construção da Casa de Farinha Coletiva e
Eletrificada, quando ela já apresentava algumas falhas no telhado
129
Foto 06 – Foto da frente da construção da Casa de Farinha Coletiva e
Eletrificada quando ela já apresentava falta quase total do telhado, e falta das
duas áreas circundantes
130
Foto 07 – Região das roças de sequeiro
158
Foto 08 – Ilhas ou Coroas do São Francisco e as roças de lameiro
159
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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LISTA DE MAPAS
Mapa 01 – Espacialização da Concentração de Terras – Índice de Gini
Mapa 02 – Inadimplência de Municípios com o Pronaf
40
154
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Cultura por Município
41
Tabela 2 – Efetivo de Animais por Município
43
Tabela 3 – Projetos propostos para a coletividade pela ONG Brejos da Barra
136
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ANCARBA: Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural.
APPRC: Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Canudos
CAR: Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional
CEAS: Centro de Estudos e Ação Social
CEB: Comunidades Eclesiais de Base
CESP: Companhia Energética de São Paulo
CHESF: Companhia Hidrelétrica do São Francisco
CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNCV: Comissão Nacional de Combate a Violência no Campo
CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CODETER: Colegiado de Desenvolvimento Territorial.
CODEVASF: Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba
COELBA: Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia
CONDER: Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia
CONTAG: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CPT: Comissão Pastoral da Terra
EBDA: Empresa Bahiana de Desenvolvimento Agrícola S/A
EMBRAPA: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
ET: Estatuto da Terra
ETR: Estatuto do Trabalhador Rural
FETAG: Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado da Bahia
FUNDIFRAN: Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco
GeografAR: Geografia dos Assentamentos Rurais/Grupo de Pesquisa/UFBA
IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IGEO: Instituto de Geociências
INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MEC: Ministério da Educação
MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário
MME: Ministério de Minas e Energia
MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
NIEAIS: Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Ações Integradas no Semiárido
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CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
NUCLEAR: Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais/Núcleo de Pesquisa
ONG: Organização Não Governamental
PCT: Projeto Cédula da Terra
PDSA: Plano de Desenvolvimento Sustentável de Assentamento
PNCF: Programa Nacional de Crédito Fundiário
PNRA: Plano Nacional de Reforma Agrária
PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PROALCOOL: Programa Nacional do Álcool
PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PTDRS: Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Velho Chico
SDT/MDA: Secretaria de Desenvolvimento Territorial/MDA
SEBRAE: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas.
SEI: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia
UFBA: Universidade Federal da Bahia
UFG: Universidade Federal de Goiás
UHE: Usina Hidrelétrica de Energia
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CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
15
CAPÍTULO I - EM MEIO À TERRA E À ÁGUA: do Médio São Francisco
a Canudos
21
1. ESPAÇOS DA PESQUISA
22
1.1. A problemática do assentamento de Canudos
22
1.2. Breve histórico do Médio rio São Francisco à cidade de Barra
22
1.2.1. Mudanças no modos vivendi do beradero e no acesso à terra
31
1.3. Barra: Encantos e desencantos
36
1.3.1. Localização e índices sociais do município de Barra
36
1.3.2. Características do meio ambiente e a produção agropecuária do município
41
1.3.3. Barra: Construções e feiras
44
1.4. A comunidade de Canudos
47
1.4.1. O entorno da comunidade de Canudos
47
1.4.2. A Criação e implantação do assentamento de Canudos
50
1.4.3. O espaço planejado da agrovila de Canudos
51
1.4.4. Problemas frente a um projeto de mudanças e modernização
56
CAPÍTULO II - CAMPESINIDADE E O MODUS VIVENDI CAMPONÊS
62
1. A CAMPESINIDADE E SEUS CAMINHOS
63
2. IDENTIDADE CAMPESINA EM CANUDOS
65
2.1. Terra, trabalho, família, hierarquia, estratégia
65
3. TERRITÓRIOS SOCIAIS
76
3.1. Territórios sociais e o Estado
76
3.1.1. Territórios sociais, simbólicos e a relação de pertencimento
81
4. ASSENTAMENTOS RURAIS, CONFLITOS E IDENTIDADE
89
4.1. Lei das Terras, Estatuto do Trabalhador e Estatuto da Terra
91
4.2. Disputas de terra e violência
93
4.3. Identidade fragmentada
96
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
14
CAPÍTULO III - “A CHEGADA DO ESTRANHO”: DESLOCADOS,
IGREJA E ESTADO
105
1. “ESTRANHO” MEDIADOR: UMA CATEGORIA DE DESENCONTROS
106
2. UMA ESTRANHA EM CANUDOS
110
3. DESLOCADOS: ESTRANHOS, MAS NÃO TÃO ESTRANHOS ASSIM
112
3. IGREJA: MEDIAÇÃO, PROJETOS COLETIVOS E COMUNITÁRIOS
120
4. ESTADO: POSTURAS ESTRANHAS AO IMAGINÁRIO CAMPONÊS
131
CAPÍTULO IV - ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA,
POLÍTICAS PÚBLICAS E RESISTÊNCIA
144
1. DESAPROPRIAÇÃO, REGIME DE PROPRIEDADE E ESTRÁTEGIAS
145
2. SISTEMA PLURIATIVO: a caracterização das famílias em Canudos
147
2.2. Atividades agrícolas e produção
155
2.3. Cultivo, extrativismo vegetal e o destino da produção
161
2.4. Animais domésticos e pesca artesanal
165
2.5. Atividades pluriativas
172
2.6. O papel das políticas redistributivas
175
3. PRÁTICAS COTIDIANAS DE RESISTÊNCIAS?
177
3.1. Maledicências, boicotes, furtos e sabotagem
181
CONSIDERAÇÕES FINAIS
186
REFERÊNCIAS
196
ANEXOS
203
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
15
INTRODUÇÃO
“Perto de muita água tudo é feliz.”
Guimarães Rosa.
Por campesinato, geralmente, entende-se o modo de vida de um grupo social de
base familiar, que se utiliza de mão de obra familiar para garantir a reprodução da
unidade doméstica, comumente ligada a atividades agrícolas. Da mesma forma, o termo
camponês foi primeiramente relacionado ao labor com a terra, e só posteriormente
ganhou uma amplitude maior – ribeirinhos, beraderos1, agricultores familiares. É
vinculada a uma definição mais ampla e heterogênea que nos propomos a estudar o
modo de vida de um grupo social camponês que apresenta várias particularidades, e não
apenas o trabalho com a terra. Os sujeitos sociais a que nos referimos realizam várias
atividades, mas nenhuma delas é exclusiva. Os camponeses, protagonistas desta
pesquisa, oscilam entre atividades com a terra seca (caatinga), a terra molhada
(lameiro), e a cadência das águas do Velho Chico. Do mesmo modo que não há uma
atividade exclusiva, não há uma identidade única no grupo. Os sujeitos sociais possuem
pluri-identidades – trabalhador rural, atravessador, lavrador, pescador artesanal,
pescador/lavrador e vice-versa. Neste trabalho, procuramos caracterizar o modo de vida
de uma comunidade2 de pescadores artesanais e agricultores familiares, beraderos do
Médio São Francisco, e sua história de constantes intervenções governamentais.
O assentamento de Canudos3, situado no município de Barra, localizado no
noroeste do Estado da Bahia, a 700 km de Salvador, aparenta ser uma comunidade
camponesa típica do semiárido nordestino. No entanto, as ações oriundas de políticas
públicas implementadas em uma área de assentamento e a instalação de famílias com
históricos de sociabilidades distintas alteraram sua constituição. A produção científica
sobre campesinato nos mostra que as estruturas de sociabilidades, alianças, parentesco,
1
Conforme Estrela (2004): ser beradero é ser um indivíduo que possui um saber fazer específico; é tirar
do rio diretamente ou indiretamente o seu sustento; é ser representado pelo trabalho por meio da rede ou
da canoa; ser beradero é trabalhar na chuva e na vazante; é saber viver entre a caatinga e o lameiro; é
praticar a agricultura de sequeiro e de ilha; é viver entre o ir e vir entre os espaços de vida e de trabalho;
ser beradero é ter todo o seu sistema produtivo ligado a esse ecossistema; “beradero” é comer, beber,
plantar, pescar, festejar e se locomover pela cadência das águas do rio.
2
O conceito de comunidade é usado no decorrer do texto, respeitando uma denominação dos informantes,
enquanto uma reestruturação da área rural para o sistema de agrovila (modelo espacial urbano). O que não
significa que desconhecemos as implicações que seu uso pode sugestionar: falsa ideia de homogeneidade
e coesão.
3
Planta herbácea ornamental de 1 a 3 m de altura, tóxica, de ocorrência em áreas de pastagens localizadas
nas margens de rios, lagoas e brejos. Nomes comuns: glória do amanhecer, canudo, algodão bravo, matacabra, capa-bode. O nome do assentamento tem relação com o alto índice da planta nas proximidades.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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compadrio e amizades são basilares para a reprodução do modo de vida camponês.
Entretanto, no assentamento de Canudos, este arcabouço não se estrutura. Há uma baixa
organização estrutural entre os seus grupos domésticos. Durante o trabalho de campo 4,
constatamos que vários projetos institucionais foram implantados nessa localidade, mas
as ações e intervenções governamentais não foram incorporadas pelo grupo como
elementos agregadores de valores materiais e simbólicos. O que se pôde perceber foi
que os moradores de Canudos, mesmo compartilhando determinadas sociabilidades, não
tornaram possível o desenvolvimento de ações conjuntas frente aos projetos promovidos
por políticas públicas governamentais e institucionais.
Instigada pela relação conflitual entre os assentados oriundos de localidades
distintas, procurou-se averiguar a motivação dos conflitos internos5 e problematizar a
crença dos mediadores de que os grupos rurais centenários que vivem em condições
difíceis esperam ansiosamente por intervenções institucionais. Em muitos casos não
existe uma preocupação prévia com a incorporação dessas medidas, pois os mediadores
acreditam que não haverá resistência frente a projetos que tragam melhorias. Nesse
sentido, esta dissertação tem a proposição de averiguar como o conflito se instalou, por
que ele ainda se mantém e como isto influencia a assimilação ou não de políticas
públicas intervencionistas na comunidade rural de Canudos.
Assim sendo, procuraremos desvendar as características antropossociológicas
que determinam a continuidade e a descontinuidade das formas de organização familiar
dentro deste assentamento do INCRA, descrevendo quais são os elementos constitutivos
da produção camponesa nos territórios de terra e água, além das peculiaridades deste
grupo social. Por conseguinte, abordaremos o modo como este grupo específico de
lavradores e pescadores artesanais enfrenta o desafio de resistir aos mecanismos de
políticas públicas que destoam de sua realidade empírica (imposição de projetos
4
A experiência inicial com este grupo social foi propiciada pelo trabalho de campo no Projeto
“Semiárido: Superação da Pobreza pelo Desenvolvimento Autossustentável”, desenvolvido pelo NIEAIS
e pelo NUCLEAR. O Projeto trabalhou com três comunidades do semiárido baiano, no período de
2007/2008, caracterizando de forma participativa os sistemas de produção dos agricultores familiares,
comparando seus níveis de renda agrícola e não agrícola, identificando seus problemas locais e
compreendendo a identidade das comunidades envolvidas, objetivando a elaboração de uma proposta de
estruturação e fortalecimento dos arranjos produtivos locais e dos recursos naturais existentes, como
estratégias de superação da fome e da pobreza extrema. A pesquisa de campo que apresentamos abarca
uma dessas três comunidades – a comunidade de Canudos. Sobre esse assunto, ver: RELATÓRIO
TÉCNICO ANALÍTICO - EDITAL COMBATE À POBREZA/FAPESB - Nº. PET0025/2005.
5
Lembrando que a etimologia da palavra conflito vem do Latim. E é composta do prefixo co com o verbo
flictum. O prefixo co explicita correlação (de forças) e o verbo flictum denota choque, embate, oposição
de forças.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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coletivos e subordinação ao direito positivo). E, por meio deste enfoque, buscaremos
mostrar, por outro lado, que existe por parte destes sujeitos a incorporação racional de
certas ações de políticas públicas modernas e primordiais (como o Programa Bolsa
Família e as aposentadoria rurais e especiais), que garantem a sobrevivência dos grupos
domésticos, alterando a sua própria reprodução social e a configuração da comunidade
de Canudos.
Segundo alguns estudiosos desta temática (CARVALHO, 1999), a criação de
um projeto de assentamento é o produto formal de um ato administrativo, expresso no
decreto de desapropriação de uma área rural e, por outro lado, é o resultado de lutas
sociais para a redistribuição da posse da terra. Portanto, no momento da criação de um
assentamento rural, se encerraria um processo político-social onde o monopólio da terra
e o conflito social pela posse da terra estariam superados, e imediatamente se iniciaria
outro, também de grande complexidade. Este segundo momento é o período do
parcelamento da terra; da construção de novas estradas; da seleção dos locais para a
edificação das casas; da extensão da rede de eletrificação rural; da destinação de áreas
para uso social comum; da liberação de créditos e da construção de cercas e apriscos,
currais ou escolas, igrejas e campos para jogos; da compra de animais e de implementos
agrícolas; do início dos plantios e das criações. Entretanto, conforme a apreciação de
Carvalho, não é apenas a infraestrutura produtiva e de uso social ou o processo de
produção que se inicia. Nesta ocasião, desencadeia-se, também, o desenvolvimento de
novos ajustes e adaptações de experiências política, social e ideológica, correspondentes
à nova organização social que ali se plasma empiricamente. Dá-se a criação de
associações, de cooperativas ou de grupos de trabalho, como também inicia-se a
formação de grupos de lazer e o estabelecimento de novas relações de vizinhança, de
afinidades religiosas, políticas e ideológicas, que poderão ser ora objetos de consenso e
ora de dissenso.
De acordo com Martins (2003), em um assentamento rural, as relações de
vizinhança e amizade, a construção da memória coletiva, a formação de grupos de
trabalho ou o sentimento de comunidade não se desenvolvem tão facilmente quanto
Carvalho supõe, principalmente, se o assentamento não é fruto de lutas gestadas por
movimentos sociais, como é o caso de Canudos. Ou seja, não havendo, anteriormente,
uma identidade de mobilização ou de acampamento, a identidade grupal não se gestará
facilmente. Neste sentido, a concepção de um assentamento não segue a dinâmica e as
possibilidades do mundo camponês, e os desencontros de orientação dos agentes de
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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mediação estimulam conflitos internos e potencializam o débito de sociabilidade,
gerando conflitos reais e ideológicos. Estes conflitos demonstram os processos de
negociação dos trabalhadores rurais e camponeses frente a uma situação social
completamente diferente daquilo que eles conhecem e do que eles desejam, já que o
assentado passa a conviver não só com os benefícios da modernização, mas com as
dilacerações que a modernização impõe a todos aqueles que procedem da sociedade
concebida como tradicional. Ser um assentado é viver a esquizofrenia da inserção social,
baseada em ações de resistência e de adaptação ao mesmo tempo. Por outro lado, como
argumenta Martins, o sujeito nasce também das mediações conflitantes desta trama
introduzida pela ação e pelas concepções de outros protagonistas, como o Estado e as
organizações mediadoras representativas. Apesar destas contradições, e por mais que nos
pareça incompreensível à primeira vista, é por meio deste referido sujeito conflitual que
a agricultura familiar brasileira persiste, insiste e se reconfigura na atualidade.
Este exercício acadêmico busca pensar esta prática e as contradições desse
processo. Trata-se aqui de superarmos a concepção de que o mundo rural possui uma
ordem social harmônica. Ou, como afirma Martins, “começar a pensar o presente como
um conjunto de contradições que, ao se resolverem, engendram novas contradições,
novos desafios, renovações da prática” (MARTINS, 2003: p.19). Contradições que
foram renovadas, não apenas com a criação de um espaço físico artificial e civilizador,
mas foram positivadas com o assentamento de famílias centenárias e grupos domésticos
de outras regiões, inclusive da área de Sobradinho6. A fixação de grupos domésticos,
com sociabilidades e relações familísticas distintas, criou categorias e distintividades,
baseadas na precedência de um grupo familiar sobre outro.
A Sociologia Rural explica este mundo como uma realidade à parte, como um
universo sui generis que perpassa temas, como identidade camponesa, campesinidade,
assentamento, deslocamento, conflito, mediadores e pluriatividade. E será por meio da
apropriação do pensamento de autores como Queiroz, Velho, Heredia, Godói, Sigaud,
Elias, Martins e Woortmann que guiaremos a discussão sobre a prática e as contradições
deste universo. Foi a partir destas leituras etnográficas e sociográficas e da relação com o
campo empírico que este trabalho foi sendo construído. Desta forma, por meio de um
6
A construção da Usina ocorreu nos anos de 1972 a 1978; seu reservatório atingiu 300 Km de
comprimento e teve 5.400 Km desocupados. Atingiu os municípios baianos de: Pilão Arcado, Remanso,
Casa Nova, Xique-Xique, Sento Sé e Juazeiro. Várias sedes distritais e dezenas de povoados foram
atingidos. Foram deslocadas aproximadamente 72 mil pessoas. Sobre este assunto ver: Daou; 1988;
Martins-Costa; 1989 e Estrela; 2004.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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processo reflexivo entre a empiria e a teoria, autores específicos e conceitos chaves
foram sendo incorporados à medida que o trabalho de campo foi sendo realizado e foram
contribuindo para a análise do objeto de estudo, o qual se encontra dividido em quatro
capítulos.
No primeiro capítulo, “Em meio à Terra e à Água: do Médio São Francisco a
Canudos”, vamos mostrar um breve histórico sobre a ocupação do Médio São Francisco
e da cidade de Barra. São discutidos alguns problemas e conceitos chaves, como: a
caracterização da produção do município; a concentração de terras na região e a
violência entre fazendeiros e beraderos pelo uso da terra; a concepção espacial
modernizante do assentamento e a implantação de medidas que se contrapõem à
regulação baseada no direito costumeiro, seguida da descrição dos territórios e da
relação dos grupos familiares com os espaços de trabalho e de vida.
No segundo capítulo, “Campesinidade e o Modus Vivendi Camponês”, iremos
tratar das linhas teóricas que desvelam o imaginário e o cotidiano da comunidade de
Canudos. Trataremos da identidade camponesa transversalizada pela relação com a terra
(e com a água), com o trabalho e com a família, e do entrelaçamento entre as ações e o
sentimento de pertencimento, bem como da fragmentação identitária que os
assentamentos rurais podem potencializar, por se tratarem de um espaço artificializado,
gestado por mediadores que desconhecem o ideário camponês e interpretam as
demandas do mundo rural de forma equivocada. O princípio crítico que perpassa a
discussão deste capítulo é o de que o sujeito social da reforma agrária é diferente do
sujeito coletivo que os mediadores almejam, pois este indivíduo social tem uma
identidade própria, complexa e pouco política. Enfim, partimos da hipótese que este
“sujeito da reforma agrária” é um ente coletivo, cuja coletividade não coincide com o
coletivismo ideológico dos mediadores construtores dos processos políticos e
executivos da luta pela terra.
No terceiro capítulo, “A Chegada do Estranho: Deslocados, Igreja e Estado”, a
discussão está pautada no tema do deslocamento e suas consequências no espaço dos
assentamentos. Por meio dos estudos de Lygia Sigaud e de José de Sousa Martins,
vamos mostrar que o assentamento implementado com famílias de outras localidades e
a estruturação de novas concepções espaciais e ideológicas são assimiladas com
estranheza pela população local. A chegada do Estado, impondo nova regularização dos
espaços e dos direitos, e a mediação da Igreja e de agências de financiamento para a
execução de projetos coletivos apenas evidencia o desencontro entre as concepções de
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
20
intervenção dos mediadores e o modo de vida camponês. A implementação e o fracasso
dos projetos de intervenção reavivaram conflitos e agravaram a situação de
pauperização das unidades familiares, o que acabou por criar e aumentar seus saldos
devedores frente às agências de financiamento.
O quarto capítulo, “Estratégias de Sobrevivência, Políticas Públicas e
Resistência”, trata da adesão por parte das unidades domésticas ao sistema pluriativo7.
Em Canudos, de acordo com a nossa observação, constatamos que a pluriatividade é
uma estratégia fundamental na reprodução econômica e social do grupo, e que há uma
relativa adequação entre as atividades agrícolas (agricultura itinerante, pecuária, pesca
artesanal e extrativismo vegetal) com estratégias não
agrícolas (comércio,
aposentadoria, programas de transferência de renda, serviço publico). Neste sentido,
almejamos demonstrar, por meio da nossa pesquisa, que a presença do Estado através de
políticas públicas que permitem o acesso aos benefícios, como a aposentadoria para
trabalhadores rurais e para pescadores artesanais, ou programas assistenciais, como o
Bolsa Família, são fundamentais para a sobrevivência de muitas unidades familiares,
principalmente nos períodos de baixa produtividade. Por outro lado, vamos pontuar que
ao mesmo tempo em que os grupos adotam e incorporam mudanças prescritas como
“modernas”, existem consequências destas mudanças que parecem atingir diretamente
os jovens da localidade. Ao lado das mudanças incorporadas pela comunidade,
observamos que há um movimento ou uma “prática cotidiana de resistência”, que
denominamos de microelementos de resistência, e que tornam os confrontos abertos
desnecessários. Esta resistência infiltrada no cotidiano não está relacionada aos
movimentos políticos ou ideológicos, mas se plasma em atitudes aparentemente
individualizadas e veladas, resultando num processo de quase anomia grupal, que gera
um forte sentimento de repúdio às intervenções locais, realizadas pelos Mediadores e/ou
pelo Estado.
Em suma, esta pesquisa pretende, por meio de um estudo de caso, repensar os
papéis sociais e históricos dos três agentes sociais responsáveis pela luta por uma
reestruturação fundiária equânime no Brasil: o papel do campesinato histórico
pauperizado, o protagonismo dos Mediadores, e a mão intervencionista do Estado.
7
A pluriatividade ocorre quando parte dos membros de uma família do meio rural passa a se dedicar a
atividades não agrícolas.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
21
CAPÍTULO I
EM MEIO À TERRA E À ÁGUA: do Médio São Francisco a Canudos
RIOS, CANTOS E ÁGUAS
As léguas de Serra azul
estórias , cantos e rios
um canto na madrugada
marujo pífanos se ouviu
são cantos que vem das casas
das beiradas desses rios.
Corre Velho Chico de tantos mistérios
que mata a sêde de tantos Sertões
levando lamurias, trovas e rimas
rompendo e molhando os calos no chão
Paraguaçú desce manso
leva folhas, flores a fio
leva minha cantoria
poemisa o teu perfil
violeiro da esperança
cantador de desafio
Corre velho Chico de águas profundas
levando beleza e tristeza também
e aquele olhar da pele morena
que ver seu amante partir pro além
Tu é o bem da chapada
garimpeiro plantador
matando a sede e a fome
canoeiro pescador
ainda é poesia e tema
suspiros do meu amor
Corre velho Chico
sem ter paradeiro
gaiolas adeus, adeus canoeiro
povo barranqueiro, terras e versos
adeus meu amor, adeus meu amor,
adeus meu amor.
IVAN SOARES
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
22
1. ESPAÇOS DA PESQUISA
1.1. A problemática do assentamento de Canudos
Embora o assentamento de Canudos aparente ser uma comunidade de
pescadores artesanais e agricultores familiares beraderos típica do Médio São
Francisco, sua história de constantes intervenções governamentais, venda e revenda das
terras da comunidade para especulação imobiliária (entre as décadas de 1950/1980);
desapropriação da área para assentamento de grupos domésticos e famílias oriundas de
várias regiões – inclusive de famílias atingidas indiretamente pelas obras de Sobradinho
–, mudou seu rumo original. Sua organização social encontra-se, hoje, extremamente
fragmentada. Com o trabalho de campo foi possível perceber que as ações
governamentais implementadas na última década, o invés de produzir uma via para o
desenvolvimento local dos agricultores e pescadores artesanais, produziram um
processo de deterioração das relações sociais destes grupos. A despeito dos projetos
levados para Canudos, esta comunidade se mostra empobrecida, com uma baixa
organização estrutural entre os seus grupos domésticos e uma extrema insegurança
alimentar, devido à desestruturação de seus vários sistemas produtivos e uma forte
desintegração de sua rede social interna.
Não há como evidenciar elementos do modus vivendi dos assentados de
Canudos, bem como suas categorias socioeconômicas - agricultores e pescadores
beraderos do rio São Francisco - e os desacertos entre agentes do Estado, da Igreja e
dos beraderos, sem antes caracterizar o universo em que estão inseridos. Inicialmente
trataremos de assinalar o bioma onde estão fixados, bem como a caracterização histórica
da região.
1.2. Breve histórico do Médio rio São Francisco à cidade de Barra
As regiões semiáridas do vale do rio São Francisco são caracterizadas pela
aridez do clima, pela imprevisibilidade das chuvas e pelo aspecto pobre dos solos. Estas
características do bioma estabelecem uma relação dialética e única com a forma
sociocultural com que os homens arranjam esse espaço e pela forma que dispõem desses
recursos. Do ponto de vista socioeconômico, o semiárido também é marcado por
contradições e injustiças sociais. Indicadores que expressam esta iniquidade podem ser
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
23
apresentados se analisarmos a alta concentração da estrutura fundiária e a
vulnerabilidade social a que a população do semiárido está exposta. Foi por meio das
águas que correm no leito do rio São Francisco que o território foi desbravado e
ocupado. Este rio tem uma importância histórica pelo seu poder civilizatório.
Entretanto, a ocupação dessa região também significou a dominação sociopolítica, por
parte de uma pequena elite regional, de um amplo território e de uma vasta população,
vulnerável economicamente, que vivia sob o jugo dominador de coronéis, como
agregados, meeiros ou posseiros.
O povoamento do vale do São Francisco começou no século XVII, com a
criação de gado de corte em grandes latifúndios, a maior atividade econômica da região
até o século XX. A demora para a ocupação do espaço do semiárido, após a chegada dos
portugueses, deu-se pela falta de interesse colonial em ocupar uma terra que não
produzia tantas riquezas quanto o litoral (produção açucareira). Havia uma
contraposição entre um nordeste voltado para os canaviais e um nordeste voltado para a
produção de gado. Durante muitos anos, o gado de corte produzido no interior foi
levado para o litoral para servir ao abastecimento de cidades como Salvador, enquanto
animais de tração eram encaminhados para fazendas de engenhos. No vale do rio São
Francisco, que também ficou conhecido como “Rio dos Currais”, além da pecuária de
latifúndio, havia, ao mesmo tempo, pequenas propriedades que mantinham a
policultura, produzindo gêneros alimentícios em agricultura de sequeiros e nas várzeas
das margens do rio São Francisco. O rio foi um provedor de alimento, água, lazer, um
meio de navegação para barcos e vapores vindos de Pirapora/MG – que deslocavam os
habitantes estabelecidos em suas imediações e transportava produtos comerciáveis –,
sendo, posteriormente, um gerador de energia. Para efeito de estudo, o vale do São
Francisco foi dividido pela comunidade científica em quatro áreas: alto São Francisco,
que vai da nascente até a cidade de Pirapora/MG; médio São Francisco, que abrange da
área de Pirapora à cidade de Remanso/BA (área da pesquisa empírica); submédio, entre
Remanso e Paulo Afonso/BA; e o baixo São Francisco, de Paulo Afonso até a foz do
rio.
A ocupação da área do semiárido no vale do rio São Francisco passou por
dificuldades frente à aridez do ambiente, à presença de grupos indígenas,
posteriormente dizimados, à falta de interesse econômico e à concentração fundiária
estabelecida pela estrutura coronelista e patrimonialista da elite local. Entretanto, na
medida em que a atividade pecuária foi se solidificando, e a expansão demográfica, por
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
24
meio da descoberta de minas no alto São Francisco, ocorreu, o vale teve um grande
impulso.
[...] o Vale do São Francisco foi ocupado por duas grandes famílias que,
estabelecidas no território baiano, formaram dois imensos impérios de terras,
poder político e de polícia. A primeira família foi a de Garcia d´Ávila, que
chegou à Bahia em março de 1549 na comitiva de Tomé de Souza, que
constituiu o seu morgado na Casa da Torre, em Salvador. Partindo da Bahia,
essa família expandiu os seus domínios para o Sergipe, Piauí, Ceará e
Maranhão. Espalhando fazendas de gado por todo o vale, pelo lado esquerdo
até Sento Sé e pelo lado direito até Carinhanha (1659). Patrocinou diversas
bandeiras baianas pelo sertão adentro. Declarou guerra aos índios nativos da
terra, escravizou e roubou suas terras e suas mulheres. Os nativos resistiram
bravamente. Mas vencidos por causa da inferioridade das armas, refugiaramse, e muitos deles romperam para a Amazônia. A Casa da Torre declarou
guerra também contra as aldeias dos Jesuítas. O padre Antônio Pereira,
herdeiro da Casa da Torre, falava em alto e bom som, para seus inimigos,
que “as fronteiras das suas terras estavam nas patas do seu cavalo”. A
segunda família latifundiária surgiu a partir da distração da Casa da Torre,
pois não conseguia fiscalizar o seu imenso latifúndio. Quando seus
integrantes perceberam, Antônio Guedes de Brito – mestre de campo, já
havia montado oito currais de gado no Sertão da Bahia e titulado aquelas
terras em seu nome. Estabeleceu no Morro do Chapéu o Quartel General,
com o nome de Casa da Ponte, rival da Casa da Torre. A avidez por terra
destas duas famílias não conhecia limites. Por causa de suas conquistas
receberam da Coroa muitos privilégios, sesmarias, capitanias hereditárias,
títulos honoríficos, postos de comando, patentes... “Tão forte já se tornaram,
que decidiram pacificamente, repartir entre si o domínio do sertão”.
[...] o Vale do São Francisco começou a ser desbravado em 1553, quando
tiveram início as “entradas” para o interior da colônia, orientadas à obtenção
de mão-de-obra escrava para o trabalho nos canaviais e engenhos, empresa,
mais tarde, fortalecida pelo interesse na exploração das riquezas minerais
que começavam a ser descobertas. O processo de ocupação colonial ocorreu
a partir do começo do século XVII e foi ligado à expansão da atividade
pecuária. A conquista foi realizada basicamente pela iniciativa privada, não
constituindo um processo contínuo, seja devido à resistência indígena ou à
vastidão dos sertões que dificultava a sobrevivência em tão inóspita área.
Assim, as frentes pioneiras partiram dos limites paulista e baiano em direção
ao Brasil central, alcançando a bacia do rio São Francisco, em seus cursos,
alto e médio. Rapidamente o Vale do São Francisco viu-se transformado em
área de colonização, baseado na criação extensiva de gado, atividade que,
muito antes de subordinar-se às condições físicas regionais, articulava-se aos
objetivos coloniais canavieiros nas áreas litorâneas. Com a descoberta de
minas no Alto São Francisco, a economia de todo o vale teve um grande
impulso, sendo que as minas passaram a constituir um atrativo mercado de
demanda para o gado.
A corrida para as minas determinou o surgimento de vários núcleos de
povoamento em toda extensão do vale, constituídos em torno dos “currais”
ao longo do rio. Estes núcleos foram responsáveis pelo estabelecimento de
ativos mercados de gado e de produtos vegetais que serviram,
posteriormente, como pontos de escoamento para os principais centros
urbanos do Norte, Nordeste e Sul da colônia. Até fins do século XVII, o
gado constituiu a base da riqueza regional.
Por outro lado, o rio São Francisco, pela sua localização entre a região
aurífera e a capital da colônia (Salvador), desempenhou o papel de grande
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
25
caminho. Este fato lhe atribuiu a denominação de rio da “integração
nacional”. Mais tarde, com a mudança da capital para o Rio de Janeiro
(1763) e o esgotamento da produção aurífera, o impulso inicial de
colonização da área se viu arrefecido. Assim, o comércio de Minas voltou-se
para o mar, o rio perdeu o papel de grande caminho e a região do Médio São
Francisco sofreu um retrocesso, embora o rio mantivesse durante muito
tempo um papel importante na comunicação nacional. “Desde cedo o rio
São Francisco canalizou fluxos migratórios da região para São Paulo,
principalmente como conseqüência das secas periódicas que assolavam a
região”. O Médio São Francisco foi uma zona de fortes coronéis e um dos
lugares onde este fenômeno mais se prolongou no tempo. Além do
isolamento e do tipo de colonização, os fenômenos do mandonismo e da
violência estão diretamente associados à concentração da posse da terra.
Uma região que se fechou sobre si mesma, desenvolvendo uma cultura local
com tipos sociais característicos, como o cabra, o coronel, o cangaceiro, o
vaqueiro, o barqueiro, o pescador e outros, que muitas vezes se confundiam
numa mesma pessoa, de acordo às circunstâncias e às necessidades (MDA;
8
2008: p. 23 a 25).
Deste modo, o vale do rio São Francisco teve seu território reocupado e
reconfigurado por outros homens e outros interesses, por meio da extensa atividade de
criação de gado, da mineração e da navegação pelo rio São Francisco, caminho de águas
que ligava as regiões auríferas a Salvador. Como não poderia ser diferente, a cidade de
Barra nasceu e igualmente foi influenciada por estas intercorrências socioeconômicas. O
município de Barra surgiu da implantação de uma fazenda de gado na incidência entre o
rio Grande e o São Francisco, região que inicialmente pertencia a Pernambuco. A
trajetória histórica, política e econômica da cidade de Barra está, particularmente, ligada
à história do poder monárquico do Brasil. A Vila de Barra foi representada por várias
vezes em cargos relacionados aos ministérios do império, senado e governo de
província. Os dois troncos genealógicos mais eminentes da Vila foram a família de João
Maurício Wanderlei, conhecido como Barão de Cotegipe, e a família de José Mariani. 9
Estas famílias mantiveram o poder político da localidade por muitos anos. Para se ter
uma ideia, de 1890 a 1955, Barra teve seis prefeitos da família Mariani no poder.
Depois deste período, os seus descendentes diretos parecem ter se distanciado dos
8
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Plano Territorial de Desenvolvimento Rural
Sustentável do Velho Chico/PTDRS, 2008. Documento construído por meio de participação coletiva e
democrática de atores como: SDT/MDA, FUNDIFRAN, CODETER do Velho Chico, Grupo
GeografAR/UFBA, associações, e a análise de documentos importantes, como: o Plano Safra
Territorial/PST, a Memória do Território e outros, elaborados pela SEI, IBGE e PNUD.
9
João Mauricio Wanderley (1815-1889), natural da Vila da Barra de São Francisco, além de
agropecuarista foi magistrado, Ministro da Marinha, da Fazenda, dos Negócios Estrangeiros, Ministro do
Império dentre outros. Exerceu por várias vezes o mandato de Deputado Provincial, Geral e Senador. Foi
um ferrenho opositor da abolição da escravatura, no período que antecedeu a assinatura da Lei Áurea.
José Mariani (1800-1875), natural de Vila da Barra, foi magistrado, agropecuarista, governador,
desembargador e Ministro do Tribunal de Justiça no período do Império.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
26
cargos políticos para se dedicarem a outras atividades, mas este clã ainda é considerado
uma família importante no Estado da Bahia. Na cidade de Barra, os Mariani ainda detêm
grandes extensões de terra10 e povoam o ideário tradicional da cidade – ruas, praças e
hospitais os homenageiam com o uso dos nomes de seus ascendentes.
Também encontramos a descrição do contexto histórico da cidade de Barra,
minuciosamente tratada na dissertação de Cardel (1992), intitulada "Os Olhos que
Olham a Água: Parentes e herdeiros no 'mundus' camponês", uma etnografia que teve
como foco central as relações de parentesco e o processo de herança em uma
comunidade camponesa brejeira (Olhos-d’Água), localizada no município de Barra.
[...] Entre 1670 e 1680, o sesmeiro Francisco Dias de Ávila Pereira, chefe da
Casa da Torre, assentou no local em que o Rio Grande deságua no São
Francisco, uma fazenda de gado. Por estar instalada na foz do afluente, foi
batizada com o nome de Fazenda da Barra do Rio Grande do Sul [...]. Na
década seguinte, 1680 e 1690, religiosos Franciscanos Alcantarinos
levantaram uma capela em homenagem ao Santo que empresta seu nome ao
rio, a capela de são Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande do Sul,
que serviu de base para a catequese das tribos indígenas da Nação Tapuia.
Este nome perdurou até a elevação da localidade a Vila [...]
Este imenso território se integrou completamente ao Ciclo do Gado,
atividade econômica que se adaptou muito bem aos pastos nativos, às ilhas
do São Francisco junto dos currais e ao sistema hidroviário de transporte.
[...] Com as cartas régias de novembro e dezembro de 1698, o arraial foi
elevado à Povoação de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande
do Sul, distrito da Vila Cabrobó, da capitania de Pernambuco. [...]
Entretanto, em 1734, outra carta regia passa a povoação para justiça da
Ouvidoria ou Comarca de Jacobina. Em 23 de agosto de 1753, Henrique
Corrêa Lobato, Ouvidor e Corregedor da Comarca de Jacobina, instalou a
Vila de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande do Sul,
acompanhado pelos “homens bons”, vigários, tendo o povo como platéia.
Abriu-se a praça do Pelourinho, mediu-se as léguas quadradas das terras
patrimoniais e redigiu-se o Código de Posturas, baseado nos costumes da
época. Desta forma, ficava a vila desligada do Julgado de Cabrobó, elevada
a município autônomo e termo sede até o Rio Carinhanha. [...]
Em 1820, sob o reinado de Dom João VI, criou-se a comarca do Rio São
Francisco, sediada na cidade da Barra. [...] Durante, portanto, 30 anos,
verificou-se uma espécie de vazio legal do discurso do qual se expande a
posse, para ser ameaçada ao fim do período. [...] Os grandes criadores de
gado, perante a nova (dês)ordem social entraram em conflito com os
agricultores pobres nas ilhas do rio. A situação se agravou para estes
pequenos proprietários de lameiros das margens e das ilhas que tiveram suas
plantações invadidas por bois e cavalos de propriedade dos “homens
bons”[...].
10
Sobre o assunto, ver o documentário “O Massacre da Lagoa da Serra”. O documentário aborda a
situação de conflito entre fazendeiros (Família Mariani) e posseiros na comunidade da Lagoa da Serra na
década de 1970. O conflito resultou na perda da produção e na expulsão das famílias posseiras. As ações
violentas ficaram impunes, e o caso do massacre da Lagoa da Serra nunca foi julgado.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
27
Com as prerrogativas do Ato Adicional de 1834, a comarca passou
inteiramente à influência da Bahia sendo que o primeiro deputado barrense
nomeado para a assembléia Provincial foi João Maurício Vanderlei, depois
Barão de Cotejipe (1840), o segundo foi José Carlos Mariani (1864),
membro de uma família ainda hoje muito importante do Estado da Bahia, e
por último, João Neiva (1882).
O Império encontrou a via com características bem definidas. “Os
dominadores, da família Mariani, sobrenome que sobrepujou outros com que
se entrelaçara, centralizavam o prestígio da sua ‘casa grande’, construção de
1808. Era notável a influência e força moral das senhoras, respeitadas até
pelo terrível comendador Militão, do Pilão Arcado.” (IBGE-Ba, p. 10)
Através das influências destas eminentes famílias na corte, o vice-presidente
da Província, José Eduard Freire de Carvalho, em junho de 1873,
transformou a vila em cidade Florescente da Barra do Rio Grande, mais
tarde alterada para Barra do Rio Grande e finalmente para Barra, pelos
decretos estaduais números 7.455, de 23 de junho de 1931 e 7.479, de 03 de
junho do mesmo ano (CARDEL; 1992: p. 48 a 53). 11
Outra pesquisa de importância histórica inigualável, que discorre sobre o valor
do rio São Francisco e o contexto da cidade de Barra, é a viagem de campo retratada no
livro “O Rio de São Francisco e a Chapada diamantina”, escrito por Theodoro Sampaio
12
, quando participou da Comissão Hidráulica do Império, no final do século XIX. A
missão foi montada com o objetivo de estudar os melhoramentos do Porto de Santos e a
navegação pelo interior do país. A Comissão iniciou os estudos da navegação no
interior do país pela exploração do rio São Francisco devido a sua posição geográfica
em relação à zona litoral, e por servir como via de comunicação entre as regiões centrais
e norte do país. A viagem percorreu a ligação do rio São Francisco, da foz, em Alagoas,
até a cidade de Pirapora, em Minas Gerais. O interesse pelo conhecimento do rio São
Francisco residia na necessidade de realizar um sistema de viação pelo interior do país
que ligasse os portos ao rio. Durante o trabalho, o engenheiro Theodoro Sampaio foi
incumbido de realizar a travessia pela Chapada Diamantina e pelos sertões que se
estendiam pelo território baiano, anotando aspectos naturais e colhendo informações
11
Partindo dos mitos de origem que fundam a identidade deste grupo camponês, considerou-se o
parentesco como uma linguagem de inserção e exclusão dos indivíduos no patrimônio familiar. Além
disso, a dinâmica socioeconômica da região, processada por meio da agropecuária, de produtos agrícolas
para o abastecimento local (como a rapadura e a cachaça), produzidos nos terrenos úmidos dos brejos, e o
incremento da cidade também foram retratados nesse trabalho de pesquisa. CARDEL, L. Os Olhos que
Olham a Água: Parentes e herdeiros no 'mundus' camponês. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação em Antropologia, Universidade de Brasília. 1992.
12
Theodoro Fernandes Sampaio foi engenheiro, geógrafo e escritor, nascido em Santo Amaro da
Purificação no ano 1855, falecido no Rio de Janeiro em 1937. Sampaio nasceu no Engenho Canabrava,
hoje localizado no município de Teodoro Sampaio/Ba. Era filho da escrava Domingas da Paixão do
Carmo e do padre Manuel Fernandes Sampaio. Foi levado pelo pai para São Paulo e depois para o Rio de
Janeiro. Em 1879 integrou "Comissão Hidráulica", nomeada pelo imperador Dom Pedro II, sendo o único
engenheiro brasileiro entre vários homens estudiosos estadunidenses.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
28
sobre a produção e a população local. Durante a expedição, ele registrou suas
impressões escrevendo e desenhando em seus diários, realizando uma minuciosa análise
morfológica e social dos lugares visitados. Apesar do crescimento populacional de
Barra e da sua elevação à condição de vila, conforme expôs Cardel (1992), Theodoro
Sampaio descreveu a cidade em 1879 com muito pouco entusiasmo.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
29
13
Os relatos trazidos aqui podem parecer antagônicos, tendo em vista a riqueza
natural do vale do rio São Francisco, a opulência de algumas famílias barrenses e o
estado de miserabilidade exposto pelo engenheiro ao descrever as habitações e as
atividades agrícolas da cidade de Barra. Mas, para compreender esta contradição,
devemos salientar que todos os relatos destacam a importância da navegação no Rio São
Francisco para a região de Barra, uma vez que a sua situação geográfica favorecia o
comércio com outras regiões. Era, portanto, natural que houvesse uma queda
significativa do comércio entre as áreas auríferas e a cidade de Salvador após 1763,
período em que a capital da colônia foi transferida para a cidade do Rio de Janeiro. Esta
mudança na geografia política e econômica do país favoreceu a decadência da
13
SAMPAIO, Theodoro. O Rio de São Francisco e a Chapada diamantina – trechos de um Diário de
Viagem.
São
Paulo:
Escolas
Profissionais
Salesianas.
1905.
Disponível
em:
<http://biblio.etnolinguistica.org >. Acesso em: 25 de maio de 2010.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
30
localidade e transparece na descrição feita por Theodoro Sampaio, aproximadamente
115 anos depois, precisamente em 1879.
Neste processo, Barra foi sendo desarticulada como centro regional. De um
entreposto importante do vale do rio São Francisco e da Bacia do rio Grande, a cidade
de Barra passou à condição de insulada, e, na década de 1960, entrou em decadência.
Podemos mapear alguns fatores potencializadores da desarticulação desenvolvimentista:
o detrimento da navegação de comércio; o insulamento do município – que só no ano de
1997 teve asfaltada a estrada Barra-Ibotirama, e, em 2000, a de Barra a Xique-Xique; as
grandes enchentes do rio São Francisco, que inundaram a sede, os distritos, os povoados
e as fazendas em 1906, 1926, 1949 e 1979; a transferência de companhias e instituições,
como a Capitania dos Portos, a Caixa Econômica Federal, o IBGE, a CODEVASF14, a
FUNDIFRAN15; e a migração constante de pessoas para outras localidades.
Esta situação de decadência permeia até hoje o imaginário da população local. A
ideia de desenvolvimento, levantada por alguns interlocutores na cidade de Barra (setor
comercial e hoteleiro) durante a pesquisa, traz implicitamente a preocupação com a
valorização do modo de vida urbano, uma vez que tais indivíduos explicitaram
embaraço frente ao fato de grande parte da população do município pertencer ao meio
rural. Em muitos relatos coletados, é patente o incômodo da pequena classe média
urbana local com relação à ausência da lógica mercantil moderna imposta pelo modo de
vida camponês, que impera tanto no imaginário como na realidade prática dos atuais
barrenses. Meus interlocutores citadinos referiam-se, portanto, à falta de infraestrutura
associada a um status quo local que impossibilita a exploração das riquezas naturais.
Este status quo está intimamente ligado às representações socioculturais tipicamente
rurais da região.
14
CODEVASF é uma empresa pública, vinculada ao Ministério da Integração Nacional, que promove o
desenvolvimento e a revitalização das bacias dos rios São Francisco e Paranaíba com a utilização
sustentável dos recursos naturais e a estruturação de atividades produtivas para a inclusão econômica e
social. Disponível em: < http://www.codevasf.gov.br >. Acesso em: 28 de maio de 2010.
15
FUNDIFRAN: “Criada pela Igreja Católica em princípios de 1971, a entidade visava a promover
políticas nos campos da medicina preventiva, da educação, da comunicação social, bem como de projetos
de cunho comunitário [...]. Nesse sentido, a Fundifran implementou uma política que combinava ações
assistencialistas e de cunho formativo, contando com o apoio de agências internacionais, sediadas em
vários países da Europa, dos Estados Unidos e do Canadá [...] com a chamada abertura política (19791985), as atividades assistenciais perderam espaço e a entidade se voltou para ações de caráter
político/formativo, apoiando as demandas dos camponeses e colocando-se ao seu lado nos vários
confrontos em que se envolveram-se contra o avanço do agronegócio, dos latifundiários e dos grileiros”
ESTRELA, E. O papel da Fundifran nos conflitos fundiários no Médio São Francisco baiano. [s.n.].
Disponível em:
< http://www.uesb.br/ivencontroanpuhba/default.asp?site=st/08.html > Acesso em: 20 de junho de 2010.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
31
1.2.1. Mudanças no modos vivendi do beradero e no acesso à terra
Conforme aponta Germani (2007), na região do médio São Francisco,
desenvolveu-se, através dos anos, um modo de vida estreitamente vinculado à utilização
do rio. Como é padrão de ocupação no semiárido, também neste caso a população se
concentrou às margens do rio. O São Francisco, no período de cheias, deposita em suas
margens matérias férteis onde se realizam os cultivos, vencendo, desta forma, as
dificuldades impostas pelo clima do semiárido e pelos períodos de seca. Este modo de
vida transumante é complementado com o trabalho sazonal em grandes fazendas de
criação de gado, criando uma complexa rede de estratégias pluriativas do campesinato
local. Assim, a agricultura de vazante ou lameiro combinada com a agricultura de
sequeiro, com a pesca artesanal e a criação de animais pelo modo tradicional
atravessaram quatro séculos de colonização sem grandes transformações.
[...] era muito frequente a figura do morador sob o regime da agregacia que
morava com a família na fazenda do patrão, em pequeno terreno cedido para
fazer uma roça para sua sobrevivência, além dos posseiros. Alguns membros
da família trabalhavam para o patrão, recebendo ou não diária, e nos dias
“livres” trabalhavam por conta própria. Além disso, também era frequente a
modalidade das roças arrendadas por uma quantia ou por um contrato de
meia, ou de terça e até de quinta parte da produção. Esse sistema de meia era
comum entre os pequenos lavradores, que não tinham condições para
comprar a semente e outros insumos. Todos estes acordos sempre se
realizaram oralmente, sem mais garantia para o lavrador do que a promessa
do proprietário. No caso da pesca, a maioria sempre trabalhou por conta
própria, mas são relatados casos de pagamento com meia produção, ou com
um terço, quando eles pescam em lagoas da grande propriedade (CEAS,
1973 apud GERMANI, 2007: p. 6)
A apreciação de nossos interlocutores, no entanto, não pontua os impactos
negativos a que muitos habitantes das zonas rurais estão expostos ao sofrerem
intervenções diretas de ações desenvolvimentistas. Tais ações são para eles a única
alternativa para que a cidade de Barra volte ao seu passado de glória. Mas, segundo o
trabalho de Sobrinho (2006), existem especificamente algumas medidas governamentais
que impactaram violentamente a vida de muitos beraderos do vale do Rio São
Francisco, que, ao serem implantadas, foram apresentadas como ações altamente
positivas para o crescimento da região. Como o próprio autor ressalta, depois da década
de 1970, o governo voltou a programar novas ações de intervenção na região, e isto vem
sendo feito até os dias atuais, através de incentivos estatais que atraíram investimentos
privados. Assim como o governo, empresas públicas, como a CODEVASF, também
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
32
vêm desenvolvendo projetos nessa região nas áreas de educação, saúde, transporte e,
sobretudo, agricultura irrigada. Todavia, a empresa tem sido acusada nos últimos anos
de beneficiar grandes empresas com a alegação de incentivarem o crescimento
econômico e a qualidade de vida para a população do vale do rio São Francisco por
meio das Parcerias Público-Privadas/PPPs. Parte das políticas de infraestrutura e
desenvolvimento tecnológico apresentadas no médio São Francisco são arquétipos desta
realidade. Por esta razão, Sobrinho (2006) observa que, apesar dos diferentes graus da
presença do Estado, é possível perceber que a infraestrutura instalada (linhas de créditos
para grupos empresariais, fomento ao desenvolvimento de tecnologias, grandes
barragens destinadas à geração de energia e irrigação, construção de canais e estradas)
se dá inicialmente expropriando-se as comunidades do direito de acesso à terra, através
da expulsão ou da desapropriação por valores irrisórios.
No caso das barragens, o plantio em áreas de várzeas e a própria agricultura
praticada no sequeiro foram imensamente prejudicadas pela CHESF – Companhia
Hidrelétrica do São Francisco, com a construção das Barragens de Três Marias, na
década de 1940, e de Sobradinho, na década de 1970, e com o advento da agricultura
irrigada, que passou a ocupar as áreas agricultáveis. A construção dessas obras
regularizou o regime do rio e pôs fim aos períodos de cheias, quando as populações
beraderas se beneficiavam da fertilidade deixada pelas águas com o adubo natural para
seus cultivos.
Outras pesquisas também apontam (GERMANI, 2006; 2007) que as novas
ações de intervenção por parte do governo, empresas e fundações levaram, nas últimas
décadas, a um processo intenso de reestruturação produtiva no Médio São Francisco, o
que alterou profundamente as relações de produção na agricultura. Reestruturação que
não mais comporta o antigo morador, o agregado e o meeiro. Estas pesquisas também
advertem para a grande alteração na valorização das terras do Médio São Francisco, o
que gerou, ao mesmo tempo, mais cobiça e conflito de terras na região. Segundo
Germani (2007), este processo de valorização produtiva e fundiária, após a década de
1970, colocou em cheque as formas precárias de acesso à terra e criou novas formas de
acessibilidade, a exemplo de projetos de reforma agrária e de crédito fundiário.
A importância do município de Barra frente a estas novas formas de luta e de
acessibilidade se prova por meio da implantação do primeiro assentamento de reforma
agrária do Médio São Francisco, que foi criado em 1988, no município de Barra.
Atualmente o relatório participativo, elaborado para o MDA, intitulado “Plano
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
33
Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Velho Chico (2008)”, aponta que
o município de Barra, presentemente, possui um projeto PCT, três projetos PNCF16, sete
comunidades quilombolas, nove assentamentos rurais criados pelo INCRA, com 1517
famílias assentadas e várias comunidades tradicionais na região dos Brejos. Os
assentamentos são: Angico, Antônio Conselheiro, Barro Vermelho/Canudos (espaço
empírico pesquisado), Fazenda Itacutiara, Fazenda Santana, Fazenda Vale do
Boqueirão, Ferradura, São Francisco e Sítio Novo.17
Em Canudos este processo foi um pouco diferente. A criação do assentamento
em uma área privada não foi conflitual, no sentido explícito de geração de conflito
armado, mesmo tendo gerado outras formas de conflitos que serão posteriormente
analisadas. Conforme o informante F.A.S., nascido em Canudos,18 as terras onde as
famílias se instalaram, antigamente, pertenceram à família Mariani. Esta é a versão
corrente sobre a história recente desta comunidade. Segundo informações de J.R.V.,
morador do assentamento desde 1975, depois das terras terem sido revendidas para
outras pessoas, a antiga fazenda dos Mariani foi vendida a Carlito Santos (Carlos Souza
Santos, prefeito da cidade de Xique-Xique de 1983 a 1988). Este, ao vistoriar as terras,
teria feito uma reunião com os moradores da comunidade para avisar que eles ficariam
no local, mas seriam criadas cercas de divisas que os isolariam do restante de sua
propriedade. Revoltados, os moradores foram ao sindicato dos trabalhadores rurais de
Barra, e como se recusavam a abrir mão de suas benfeitorias, foram orientados a não
aceitarem o acordo proposto pelo suposto proprietário. Após a retirada da madeira para
a venda e com o cerceamento dos moradores em uma área específica, Carlos Souza
16
A partir da suposição de uma queda nos preços da terra e da existência de uma oferta, o governo
orientou-se pela obtenção de terras no mercado. A princípio, o programa de estímulo ao acesso à terra via
mercado (financiado pelo Banco Mundial) foi implementado sem maiores debates. No entanto, entidades
como a CONTAG reiteraram a defesa da desapropriação por interesse social, aceitando a proposta como
um mecanismo complementar de acesso à terra. O Projeto Cédula da Terra/PCT foi implementado em
1997. Seus sucessores foram o Banco da Terra (1998) e o Programa Nacional de Crédito Fundiário/PNCF
em (2003). Tanto o PCT como o PNCF garantiam o acesso de agricultores à terra e destinavam recursos
para a implantação de infraestrutura na propriedade (casa, energia elétrica, abastecimento de água,
estradas), a estruturação da unidade produtiva (assistência técnica, insumos para a produção) e projetos
comunitários.
17
Os dados numéricos das comunidades e dos projetos apontados no relatório elaborado para o MDA –
intitulado “Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Velho Chico (2008)” – trazem
alguns elementos formatados pela base de dados de instituições como o INCRA e a SEI, o que não
corresponde aos dados empíricos levantados por Cardel (1992), onde várias comunidades brejeiras
poderiam ser categorizadas como comunidades de fundo de pasto, pois a gestão da terra e de outros
recursos naturais articula terrenos familiares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à
solta em pastagem nativa. Dados da SEI apresentam 10 assentamentos em Barra, e não nove, como foi
apresentado. Além dos nove assentamentos listados no plano territorial, existe o assentamento Uirapuru.
18
Segundo declarou, seu avô e sua mãe eram de Remanso e migraram no final da década de 1950, antes
da Usina de Sobradinho ser construída, pois sabiam que teriam que sair cedo ou tarde da região.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
34
Santos optou por vender as terras a João Luiz Camandaroba, fazendeiro, médico e
prefeito de Barra entre os anos de 1984 e 1989.19
A fazenda de João Luiz Camandaroba ficou a cargo de um administrador. A
relação entre este preposto e os moradores de Canudos foi tensa, já que a situação criada
com relação à posse e à propriedade das terras locais sempre foi obscura. Por esta razão,
segundo os moradores, todos os acertos que precisavam ser feitos entre os habitantes de
Canudos e o administrador eram intermediados por F.X.S., morador de Canudos desde
1974. Muitos entrevistados disseram que F.X.S., além de intermediar questões como a
autorização para a retirada de lenha em área vetada à população local, servia como uma
espécie de “olheiro” do administrador para assuntos internos da comunidade. João
Camandaroba, segundo F.A.S., só foi a Canudos para conversar sobre a possibilidade de
desapropriação por parte do INCRA em 1997. Neste período, após um processo pouco
esclarecido pelos informantes, o proprietário da fazenda, junto com alguns moradores,
encaminhou, de comum acordo com estes, um documento ao INCRA afirmando
estarem interessados na desapropriação da fazenda20.
Sobre esta temática, Elias (2003) traz uma distinção importante entre terras
públicas e privadas e o tempo de implantação de um assentamento rural. A autora
pontua que existe uma distinção importante entre a concessão de uso e o título de terra,
que agiliza ou dificulta o processo frente aos órgãos competentes. Na concessão de uso,
que é um contrato firmado entre o Estado e os assentados de terras públicas (devolutas),
o assentado tem o direito de usar a terra para a produção agrícola. Mas ela nunca irá ser
titulada, pois a terra será sempre do Estado. Em terras particulares ocorre a
desapropriação por interesse social. Em relação aos procedimentos para a titulação, o
processo judicial de desapropriação, como a definição sobre o valor da indenização que
deverá ser pago ao ex-proprietário, é o primeiro passo para a propriedade ser transferida
para o INCRA. A titulação depende, primeiramente, do fim da ação judicial em relação
ao ex-proprietário que, na maioria dos casos, leva anos para se completar. Com o fim da
19
A família Camandaroba descende de um antigo funcionário (vaqueiro) responsável por um preposto da
família Mariani. Os Camandaroba também são uma família influente na cidade de Barra. Assim que os
Mariani se afastaram dos cargos políticos locais, os Camandaroba entraram na disputa e, de 1960 a 1989,
foram eleitos para três mandatos para a prefeitura. Alcançaram outros cargos públicos importantes, como
a direção do Hospital Ana Mariani. Os descendentes da família foram levados pelo caminho da política
ainda jovens. O neto de João Camandaroba, João Luiz Camandaroba Neto, apesar de ser um adolescente
participa de um site (www.plenarinho.gov.br) onde aprende a elaborar projetos para uma câmara de
deputados fictícia. Disponível em www.plenarinho.gov.br. >. Acesso em: 16 de maio de 2010.
20
O fato da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Canudos (APPRC) ter sido fundada em 1996,
um ano antes da abertura do processo no INCRA, demonstra que a comunidade estava organizada para se
transformar em um assentamento.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
35
ação na justiça, é necessário emitir as matrículas dos lotes a partir da matrícula original
da terra transcrita ao INCRA. De acordo com o processo judicial, o cartório de registro
de imóveis deve verificar os documentos registrados em cartório e comparar as
matrículas anexadas ao mandato de registro de domínio expedido pelo juiz, para só
depois fazer o registro oficial no nome do instituto. Além da lentidão deste processo, em
muitos casos o cartório pede a retificação da descrição da área desapropriada, o que
aumenta ainda mais o processo de titulação dos assentados.
No caso de Canudos, a desapropriação por interesse social e o processo de
indenização do proprietário foram agilizados porque houve, inicialmente, um acordo
entre os interessados. Não havia um conflito de interesses frente à terra desapropriada.
Segundo os próprios moradores, o único conflito foi com a comunidade do Barro
Vermelho, assentamento criado 5 km à frente de Canudos, sobre a demarcação da
estrema, um corredor para animais que dividiria as áreas das duas comunidades. Era
comum naquele período os fazendeiros usarem grandes extensões de terras de baixo
valor de mercado como hipoteca para altos empréstimos bancários. Quando isso deixava
de ser lucrativo, muitos fazendeiros se beneficiavam com a venda de terras, impróprias
para plantio em larga escala, para projetos de assentamento do INCRA21.
A grilagem de terras na região do vale do rio São Francisco, associada de forma
escusa aos incentivos governamentais, não é uma novidade. Fato característico nesta
região foi a grilagem de terras de “fundo de pasto” no município de Casa Nova, região
de Sobradinho, na década de 1970, quando a empresa Camarujipe conseguiu recursos
do PROALCOOL para produzir álcool a partir da mandioca. Denúncias apontaram a
iniciativa como parte de um esquema para apropriação de empréstimos estatais e
seguros agrícolas, sob alegação de que a seca destruía as plantações. O escândalo
ganhou notoriedade quando Pedro Jorge de Melo e Silva, procurador que investigava o
caso, foi assassinado em Olinda/PE. Famílias denunciavam a sobreposição com áreas de
pastoreio. Com o abandono do empreendimento, na década de 1980, as terras foram
21
Essa era uma prática corrente, mas ainda ocorre nos dias de hoje, pois existe uma relação intrínseca
para as elites locais e regionais, mesmo no semiárido, entre concentração fundiária e terra como reserva
de valor. Situação retratada, por exemplo, no filme “Árido Movie” (2006). Árido Movie fala da trajetória
de Jonas, que é apresentador do tempo em São Paulo. O inesperado assassinato do pai obriga-o a fazer
uma jornada de retorno as suas origens (interior de Pernambuco). Jonas desconhece o verdadeiro motivo
de sua volta, solicitada pela avó, forte matriarca que o escolhe para vingar a morte do pai e lavar a honra
da família. Ao chegar à cidade natal, Jonas encontra um clima de vingança pairando no ar. É aí que Jonas
descobre o seu infortúnio: o peso de ser o herdeiro de uma realidade que já julgava não ser mais a sua.
Enfim, o diretor nos mostra uma terra seca, carregada de situações e personagens férteis, onde gente
faminta e beata convive com justiceiros, plantadores de maconha e concentração fundiária.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
36
ocupadas utilizando o sistema de fundo de pasto. Os conflitos ressurgiram quando, em
2006, empresários adquiriram, do Banco do Brasil, os direitos sobre a dívida da
Agroindustrial Camaragibe e, posteriormente, em acordo com os representantes da
companhia, obtiveram os títulos das terras como pagamento. Em 2008, policiais
entraram na localidade para cumprirem decisão da Justiça que determinava a retirada de
alguns moradores (posseiros). Mas depois de idas e vindas, o despejo dos moradores foi
suspenso no final de 2008. Na ocasião, o laudo expedido avaliando a validade dos
registros fundiários confirmou a grilagem.
Essa não é uma situação isolada, antagônica ou irreal. A desapropriação das
terras para a implantação do assentamento de Canudos também sofreu o mesmo
processo. A fazenda foi vendida por um grileiro a João Camandaroba que, de acordo
com os próprios moradores, nunca teve a intenção de explorar a terra, o que justifica o
fato de nunca ter estado na fazenda, antes de assentir pela desapropriação. A compra da
fazenda foi apenas um subterfúgio para que ele pudesse ter acesso às benesses dos
processos de desapropriação por meio de recebimento de verbas públicas federais.
1.3. Barra: Encantos e desencantos
1.3.1. Localização e índices sociais do município de Barra
Barra é um município do noroeste do Estado da Bahia, localizado na
mesorregião do Vale do São Francisco, na latitude 11º05´22"S, longitude 43º08´30"W,
a 700 km de Salvador (capital do Estado). A área territorial do município estende-se
pela margem esquerda do rio São Francisco e pelas duas margens do rio Grande,
totalizando, segundo o IBGE22 uma área de 11.333 km², com uma população de 44.203
habitantes, sendo que, desse total, 19.641 residem na zona urbana e 24.562 pessoas na
zona rural. O município apresenta uma densidade demográfica de 3,50 hab/km² e faz
divisa ao norte com Buritirama e Pilão Arcado, a oeste com Buritirama, Cotegipe,
Mansidão e Wanderley, ao sul com Muquém de São Francisco e ao leste com XiqueXique, Morpará e Ibotirama. Barra possui três distritos: Igarité (1º distrito), Ibiraba (2º
distrito) e Barra (sede do município), e mais de quarenta pequenos núcleos
populacionais: os povoados Pau-d`Arco, Sambaíba, Canudos (local da pesquisa de
campo), Barro Vermelho, Wanderley, Brejos do Limoeiro, do São Gonçalo, Brejo do
22
IBGE. Resultados da Amostra do Censo Demográfico 2000 - Malha municipal digital do Brasil:
situação em 2001. Rio de Janeiro: IBGE, 2004.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
37
Saco, de São José, Banguê, Olhos-d´Água, Povoados Santo Antônio, Baixão da
Aparecida e outros.
Quanto aos indicadores sociais do município, Barra apresenta um índice de
esperança de vida de apenas 65 anos, ou seja, mais baixo que a média do Estado, que é
de 71,2 anos, e menor que a média nacional, que, atualmente, é de 73 anos de idade. O
município apresenta um IDH de 0,586, enquanto a média do Estado da Bahia é de 0,742
e a média nacional é de 0,81323. A renda per capita do município é de R$ 56,374 e a
renda média nacional é de R$ 883,00. O Coeficiente de Gini do município de Barra,
segundo o IBGE, quando associado à renda, é de 0,39 e, quando associado à
distribuição de terras, chega a 0,95924. A incidência de pobreza no município de Barra
foi medida em 53,22%25.
Observando os índices dos indicadores sociais, podemos ressaltar pelo menos
dois pontos importantes. Primeiro, mesmo que os indicadores possam guardar uma
relação com as especificidades históricas e sociais da região, os índices demonstram a
necessidade do poder público local buscar junto ao poder estadual e federal ações mais
eficazes de implementação de políticas públicas redistributivas e de reconhecimento,
pois os impactos da má gestão das políticas públicas voltadas às populações locais são
visíveis. Em face desta realidade, constatamos que as políticas públicas redistributivas
não alcançam a maioria da população pobre, que, em muitos momentos, não conseguem
ter acesso às políticas de créditos ou a programas assistenciais (programa Bolsa Família
e programa Luz para Todos, por exemplo). Do mesmo modo, a população mais pobre,
exemplificada aqui como a população do semiárido ou a população das comunidades
rurais do município de Barra, tem sofrido por parte dos poderes públicos e privados
ações intervencionistas e de desapropriação, que solapam, em muitos casos, cada vez
mais o seu modo de vida e a sua condição de sobrevivência – o que evidencia a falta de
políticas redistributivas e de reconhecimento que englobem o ideário dessas
comunidades. Políticas redistributivas que não são acompanhadas por políticas de
23
Índice de Desenvolvimento Humano é uma maneira padronizada de avaliação e medida do bem-estar
de uma população. É uma medida comparativa que engloba três dimensões: riqueza, educação e
esperança média de vida. Os dados foram retirados do Atlas do Desenvolvimento Humano. Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/2000).
24
O Coeficiente de Gini é comumente utilizado para calcular a desigualdade de distribuição de renda mas
pode ser usada para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à
completa igualdade de renda e 1 corresponde à completa desigualdade. Os dados trazidos foram retirados
do GeografAR. A Geografia dos Assentamentos na Área Rural. A Leitura Geográfica da Estrutura
Fundiária no Estado da Bahia. Banco de Dados. Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em
Geografia. IGEO /UFBA/CNPq. Salvador, 2003.
25
IBGE, Censo Demográfico 2000 e Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF 2002/2003.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
38
reconhecimento de um modo de vida particular, como o modo de vida beradero, só
criam condições de dependência.
Um segundo ponto revela que o município de Barra apresenta uma alta
concentração de terras. Barra é um dos maiores municípios em extensão do Estado da
Bahia e da região do Médio São Francisco e, mesmo assim, é um dos municípios que
apresenta o maior índice de concentração de terras e disputas fundiárias. Os conflitos
entre fazendeiros, posseiros e beraderos, que utilizam terras próximas a pequenos
afluentes ou lagoas e ilhas26 do Velho Chico para plantarem durante a vazante, sempre
existiram, conforme relato de Cardel (1992), e ainda perduram até os dias de hoje. As
principais denúncias relatam que fazendeiros envolvidos nestes conflitos coagem
posseiros e beraderos, soltando gado em suas plantações de lameiro e aprisionando suas
parcas criações, sob a alegação de que invadem suas propriedades. Atualmente, a região
vem sendo retratada como uma região de violência e grilagem de terras, não mais
patrocinada por coronéis, e sim por herdeiros e empresas de capital estrangeiro (grupo
sul-coreano de fármacos/Celltrion), envolvidas com o plantio de cana para a produção
de etanol e açúcar, além de outras oleaginosas. Este caso, em particular, tem sido
relatado pela Comissão da Pastoral da Terra/CPT (Regional Bahia) e pela Comissão
Nacional de Combate à Violência no Campo/CNCV, que tem apresentado denúncias
sobre ações ilegais sofridas por mais de 10 comunidades ou 400 famílias na região dos
Baixões, município de Barra. Segundo denúncias apresentadas em Brasília, os
camponeses/posseiros têm sofrido ameaças de morte, destruição de benfeitorias e ações
policiais sem mandados judiciais. De fato, a grilagem de terra ganhou, nos últimos anos,
uma nova aparência, pois, em muitos casos, ela parece estar relacionada ao incentivo
governamental à produção de biocombustíveis, denominado hoje no Governo do Estado
da Bahia como Projeto Bahiabio. Os camponeses dos Baixões lutam de forma homóloga
às comunidades de “fundo de pasto” no município de Casa Nova, quando em disputa
com a empresa Agroindustrial Camaragibe, e ambos ainda sofrem com ameaças de
morte e destruição de benfeitorias27.
No mapa a seguir, podem-se observar os índices de concentração de terra no
Médio São Francisco. Procuramos, por meio do recurso visual, considerar as diferenças
de concentração de terra por municipalidade. Observando o mapa, é possível
visualizarmos que os municípios de Barra, Sítio do Mato e Malhada apresentam um
26
27
As ilhas na região de Barra também são denominadas de coroas do São Francisco ou montas.
Sobre esse assunto ver: <http://www.cptba.org.br >. Acesso em: 12 de junho de 2010.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
39
índice altíssimo de concentração de terras, o maior índice do Médio São Francisco
(entre 0,901 a 1,000); os municípios de Buritirama, Morpará, Muquém de São
Francisco, Ibotirama, Brejolândia, Oliveira dos Brejinhos, Bom Jesus da Lapa, Riacho
de Santana, Matina, Igaporã, Feira da Mata e Iuiú apresentam um índice alto, porém
menor que os índices dos três municípios anteriores (entre 0,701 a 0,900); Brotas de
Macaúba, Paratinga e Carinhanha apresentam um índice médio de concentração (entre
0,501 a 0,700); e o município de Serra do Ramalho apresenta o menor índice de
concentração de terras (entre 0,250 a 500).
MAPA 1
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
Fonte: http://www.geografar.ufba.br/imagens/GINI_msf.pdf
40
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
41
1.3.2. Características do meio ambiente e a produção agropecuária do município
As formas do relevo e de vegetação de uma determinada região sempre refletem
o uso que o homem imprime ao cenário que ele ocupa. Nesta região é possível encontrar
uma diversidade de formas do relevo, que conforme Barreto (2002) tem relação com
processos erosivos, surgimento de depressões, sedimentação e com a influência do
clima (evidenciado por resquícios vivos de vegetação e aridez do solo, comprovada
pelas dunas existentes entre a Serra do Estreito e o Rio São Francisco). De acordo com
os dados da SEI, as unidades geomórficas classificadas no município de Barra são as
seguintes: campos de areias do médio São Francisco, depressões do São Francisco,
serras setentrionais do Planalto do Espinhaço, várzeas e terraços aluviais. O clima da
região é semiárido, com altas temperaturas e pluviosidade irregular concentrada nos
meses de verão. E a vegetação predominante é a caatinga arbórea densa (com palmeiras
e sem palmeiras). Quanto ao uso do solo para o plantio de alimentos, o município de
Barra cultiva uma variedade maior de alimentos do que a lista apresentada nas tabelas
da SEI. Os dados listados nas tabelas abaixo retratam mais os produtos comercializados
como matéria-prima e os que serão processados para, posteriormente, serem
comercializados, do que o plantio de produtos para o consumo local. No entanto, a
listagem dos gêneros e o efetivo de animais demonstram que a atividade agropecuária
tem importância na economia do município, apesar dos dados da SEI estarem
subestimados28.
TABELA 1- Cultura por Município.
Ano
Cultura
Arroz (em casca)
Banana
Cana-de-açúcar
28
Município
Barra
Barra
Barra
2008
Área
Plantada
(ha)
15
18
100
Área
Colhida
(ha)
5
18
80
Quantidade
Produzida (t)
3
198
4.800
Unidade
tonelada
tonelada
tonelada
Valor (R$ 1.000 )
2
119
1.200
Baseado nas tabelas dos dados de campos apresentadas em anexo e na leitura de etnografias (CARDEL,
1992) e estudos de caso (VIANA, 2009), acreditamos que os dados do IBGE apresentados pela SEI não
condizem com a realidade empírica. A produção agropecuária apresentada é pífia frente a um município
que apresenta tão grande extensão fundiária. Seria interessante o cruzamento de dados entre postos de
trabalho no meio rural e urbano. Provavelmente este cruzamento demonstrasse que o município tem forte
vocação agrícola e é subestimado pelas políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. Contudo,
apesar de saber da importância de se analisar este descompasso, concluímos que esta não é a finalidade
deste exercício acadêmico microanalítico.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
Castanha de caju
Coco-da-baía
Feijão (em grão)
Laranja
Mamona (baga)
Mandioca
Manga
Milho (em grão)
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
120
14
1.500
18
400
200
307
600
70
14
1.500
18
400
150
220
250
21
57
900
180
360
1.800
2.200
125
tonelada
1000 Frutos
tonelada
tonelada
tonelada
tonelada
tonelada
tonelada
42
13
20
1.800
70
108
270
660
44
Fonte: SEI e IBGE (Pesquisa Agrícola Municipal e Pesquisa Pecuária Municipal)
A economia do município gira em torno da agricultura, da pesca e da extração.
A produção de Barra sempre se articulou entre a agricultura nos brejos, na caatinga, nas
roças de ilha/coroas, nos espaços da beira de rio, e nas atividades da pesca e da coleta de
frutos e de lenha. Entretanto, os dados apresentados na primeira tabela retratam apenas
os produtos agrícolas comercializados como matéria-prima (mamona, coco da baía,
manga, laranja) e os produtos que serão processados para serem comercializados (cana
de açúcar, que dá origem à famosa rapadura e à cachaça produzida nos brejos, e a
mandioca, que dá origem à farinha e ao beiju) mais do que os produtos voltados para o
consumo ou para o pequeno comércio das feiras livres (peixe, abóbora, batata, melancia,
melão, feijão de arranque, tomate, castanha de buriti, saeta, fumo). É perceptível que
para estes institutos e órgãos governamentais, a produção não ligada ao grande
comércio - que em Barra é representado pela mamona, pelo feijão e pelo gado - tem
pouca importância para a economia. Mas são exatamente os excedentes dos produtos
produzidos para o consumo e os produtos voltados especificamente para a
comercialização nas feiras livres, como peixe, abóbora, tomate, pepino e feijão de
corda, que não só dinamizam o comércio local, como, em alguns casos, fomentam a
identidade de grupos sociais voltados para este tipo de produção. Em Viana (2009),
encontramos um estudo de caso realizado no município de Barra que permite
visualizarmos a importância deste comércio de feiras livres para o modo de vida
camponês e da agricultura familiar, através do processo de visibilização do trabalho
feminino em uma comunidade ribeirinha. Este estudo foi realizado em uma comunidade
rural denominada Pau-d´Arco, onde algumas mulheres organizadas numa associação
feminina mantêm uma horta comunitária que contribui para a dinamização da
reprodução social do grupo e do comércio local. Além dos aspectos econômicos e do
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
43
caráter inclusivo deste projeto, os resultados positivos desta ação estabeleceram uma
identidade social positivada entre agentes sociais envolvidos29.
TABELA 2 - Efetivo de Animais por Município
Ano
Tipo de Animal
Asininos (jumento)
Bovinos (boi e vaca)
Caprinos (bode e cabra)
Eqüinos (cavalo e égua)
Galinhas
Galos, Frangas, Frangos e Pintos
Muares (burro e mula)
Ovinos (carneiro)
Suínos
Município
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
Barra
2008
Quantidade (Cabeça)
1.500
34.400
5.200
1.600
15.500
25.000
700
5.300
6.900
Fonte: SEI e IBGE (Pesquisa Agrícola Municipal e Pesquisa Pecuária Municipal)
Os dados da SEI trazidos na segunda tabela retratam com mais clareza a
produção animal municipal, pois Barra ainda é um grande criador de gado de corte. Os
bodes, apesar das restrições da vigilância sanitária, ainda podem ser encontrados sendo
vendidos em restaurantes e pequenos açougues, enquanto galinhas e frangos são
encontrados diariamente nas feiras livres. Os jumentos ainda são animais indispensáveis
na vida diária de uma unidade familiar, pois é o animal responsável pelo transporte de
lenha, de água para as roças de caatinga e dos produtos cultivados para o espaço de
morada. Curiosamente, o pescado não foi incluído na tabela. Existe uma forte produção
de pescado na região de Barra, que pode se confirmar se verificarmos a importância dos
pescadores artesanais no imaginário da região, assim como existe uma larga tradição
deste comércio na feira principal da cidade. A prática da pesca artesanal é tão intensa,
que existe em Barra uma associação de pescadores artesanais e uma cooperativa que
congregam vários pescadores. A associação e a cooperativa de pescadores trabalham
não só com a pesca artesanal no rio São Francisco e no rio Grande, como também com
peixes criados em reservatórios.
29
A horta comunitária feminina da comunidade de Pau-d´Arco é responsável pelo abastecimentos diário
do mercado central da cidade de Barra. Antes, o abastecimento de hortaliças e frutas era realizado por
produtores dos municípios de Xique-Xique e Irecê.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
44
1.3.3. Barra: Construções e feiras
A cidade de Barra é uma cidade antiga, que ainda mantém estruturalmente
alguns prédios datados do século XIX. A maior parte das construções antigas se perdeu
por falta de manutenção ou recuperação por parte do poder público frente às grandes
enchentes dos rios Grande e São Francisco. Dentre os prédios mais antigos, podemos
destacar: o prédio da antiga Prefeitura Municipal (1904), do Mercado Municipal
Cotejipe (1917), o Palacete Dr. Pinto (1919) e o conjunto do Palácio Episcopal (1932).
Ruas calçadas de paralelepípedos e praças da cidade ainda trazem a marca de suas
famílias ilustres cravadas em suas placas de identificação (Rua Mariani, Praça Barão de
Cotejipe), mantendo viva a ideia de um tempo de prosperidade, distinto e distante, em
seus habitantes. Reminiscências não conflitantes, frente ao desejo de modernização e
desenvolvimento, demonstram que a separação entre o tradicional e o moderno é um
paradoxo, mesmo para nossos interlocutores locais. Nos dias atuais, o conceito de
“tempo” experimentado nas grandes cidades ainda não chegou à cidade de Barra.
Enquanto alguns moradores pregam a necessidade de modernização da cidade, ao
caminhar por suas vias percebe-se um tempo de viver a vida que é diferenciado, pois
apesar do comércio de Barra funcionar das 08h às 18h, todo ele permanece fechado das
12h às 15h para que todos descansem dos afazeres e do calor estafante do semiárido.
Nesse período não é possível encontrar sequer os serviços de moto-boy sem hora
marcada.
Apesar do comércio de Barra funcionar a partir das 08h da manhã, a feira
realizada no Mercado Municipal Cotejipe, localizado na praça central, em frente ao cais
do porto, começa antes do sol nascer e é um acontecimento à parte. A feira é o lugar
onde os agricultores da região comercializam seus produtos, como também é um espaço
principal da vida econômica do município. Moura (1988) salienta que o lugar do
mercado tem um papel fundamental para a economia e a vida local. Esta autora ressalta
que os agricultores familiares dependem dessa comercialização e pontua que, em muitos
momentos, o controle da produção escapa de quem produz, e passa para os
atravessadores – questão que também acontece em Barra. Outra autora que pontua a
importância dessa relação entre campo/cidade é Queiroz, ao afirmar que “o camponês
traz à cidade os produtos que consome e, por sua vez, adquire na cidade produtos de que
necessita (1973: 23). Tal colocação leva a duas questões: primeiro, é preciso refletir
sobre a concepção de separação entre rural e urbano. Segundo, as comunidades rurais
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
45
não podem ser vistas como localidades isoladas. Neste mesmo sentido, Garcia Jr
também renega a ideia de isolamento ou de autossuficiência:
[...] há uma esfera de consumo doméstico que pode ser abastecida
diretamente do roçado para a casa, de produtos que podem ser auto
consumidos ou vendidos. Este é particularmente o caso da mandioca. São
produtos que têm a marca da alternatividade. Alternatividade entre serem
consumidos diretamente, e assim, atender às necessidades domésticas de
consumo, e serem vendidos, quando a renda monetária que proporcionam
permite adquirir outros produtos também de consumo doméstico, mas que
não podem ser produzidos pelo próprio grupo doméstico, como o sal, o
açúcar, o querosene, etc. (GARCIA, 1989: p. 117).
Na feira do mercado municipal encontramos vários produtos comercializados
pelos agricultores locais: aipim, milho, verduras, feijão de corda, castanha de buriti,
pães caseiros, farinha, fumo de corda, vassouras, chapéus artesanais feitos com folha de
buriti e carnaúba, cachaça, rapadura e frutas como o pequi e o murici. Itens como a
farinha, a rapadura e a cachaça são produzidos em alambiques e em casas de farinha
artesanais na região dos brejos. Produtos extrativistas como a saeta também são
comercializados por brejeiros, mas itens como mel, geralmente, são comercializados por
apicultores ribeirinhos. Estas mercadorias são de várias localidades e podem ser
encontradas quase todos os dias, porém os dias com mais movimento são sexta e
sábado. Nestes dias é possível perceber um número de pessoas que comparecem à feira
do mercado, não para fazerem compras, mas para manterem longas conversações com
feirantes ou fregueses do lugar. Existe uma sociabilidade entre os frequentadores, nem
sempre ligada à compra de produtos, que é contagiante.
Apesar de várias comunidades estarem representadas na feira do mercado de
Cotejipe através de produtos e feirantes, a comunidade de Canudos (localizada a 22 km
da sede) não mantém um comércio regular com a feira. Comunidades brejeiras que se
localizam em distâncias maiores (a comunidade do Brejo do Saco dista 37 km da sede)
trazem produtos para serem vendidos porque vivem em um ecossistema distinto – os
brejos produzem todo o ano
30
. Canudos, no entanto, apesar de ser uma comunidade
ribeirinha, vive uma grave situação de insegurança alimentar, e os produtos que mais
são comercializados – mamona (Ricinus communis L.) e pescado – são vendidos por
atravessadores. Mesmo assim, sempre que os moradores de Canudos vão a Barra, é
30
Sobre o modus vivendi de comunidades brejeiras, ver: Cardel (1992).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
46
possível encontrá-los pela feira adquirindo produtos ou conversando com os
frequentadores.
A feira que acontece no mercado ocupa cinco lugares distintos – a rua em frente
à entrada principal do mercado; o interior do mercado; as lojas dispostas do lado direito;
a rua atrás do mercado municipal; e as lojas dispostas do lado esquerdo do mercado. Em
frente à entrada principal, os feirantes revendem produtos hortifrutícolas, verduras,
doces, rapaduras, cachaça e bruacas. A grande maioria destes comerciantes são ou têm
parentes ou fornecedores na região dos brejos e nas comunidades próximas, como a
comunidade de Pau-d´Arco. As mulheres associadas à horta comunitária de Pau-d´Arco
caminham todos os dias por 4 km, com cestas repletas de hortaliças para venderem na
feira do mercado31. Dentro do mercado encontramos o pão caseiro, grãos, fumo de
corda, trançados e artesanato em argila – na maioria panelas de barro. As lojas dispostas
transversalmente à entrada principal do mercado são reservadas para a venda de carnes
bovinas, bodes e peixes, comprados anteriormente dos pescadores. Na rua do fundo do
mercado, entre vasilhames de plástico e caixas pequenas de isopor sem gelo,
encontramos peixes dispostos sobre papelão pelo chão, com preços mais acessíveis, pois
são os próprios pescadores que comercializam. Os peixes são vendidos ao gosto do
freguês, que, se for um velho conhecido, não paga a limpeza das escamas e entranhas. É
neste local que, em dias excepcionais, é possível encontrar bodes vivos para serem
comercializados. As lojas dispostas do lado esquerdo parecem chamar a atenção de
outro público, menos interessado em peixes ou bodes, e mais voltado para conversas
sobre a cidade. Nesses estabelecimentos são vendidos fumo de corda, vassouras, esteiras
e bebida alcoólica industrializada.
Entretanto, existe uma diferença entre estes cinco ambientes do mercado e,
consequentemente, a feira. As lojas do mercado, dispostas do lado direito e esquerdo,
são de pequenos comerciantes que participam da feira, mas continuam com os seus
estabelecimentos abertos quando a feira termina. Eles apenas aproveitam o movimento
da feira para venderem, mas não são feirantes. A feira do mercado agrega, não só
pessoas que vivem do seu comércio direto, fregueses ou transeuntes interessados em
uma boa conversa, mas agrega também outros comércios. O movimento de pequenos
comércios na proximidade da feira (mercearia, sorveteria, restaurante, loja de
31
Sobre esse assunto, ver: Viana (2009).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
47
acessórios) também é maior durante o seu funcionamento. Por seu caráter de cooptação,
a feira criou um sexto ambiente em suas proximidades, próximo do cais do porto. Neste
ambiente encontramos atravessadores de mamona e frentistas em suas camionetes C-10,
dispostos a fecharem negócios ou viagens de frete. Entre uma transação e outra é
possível encontrá-los conversando com moradores e pescadores, quase sempre sobre
pequenos negócios e histórias de pescarias. Existe ainda outra feira, também muito
movimentada, que acontece na sexta-feira em frente à área da rodoviária. Essa feira
especializou-se na venda de produtos de Xique-Xique, Irecê e outras localidades, como
roupas e calçados, produtos contrabandeados do Paraguai e DVDs e CDs piratas.
Entretanto, com a destruição da rodovia que liga Barra à cidade de Xique-Xique, seu
comércio foi abalado e as vendas sofreram forte queda. De qualquer forma, ela não é
uma feira tão comentada e frequentada quanto à do mercado.
1.4. A comunidade de Canudos
1.4.1. O entorno32 da comunidade de Canudos
O assentamento de Canudos é uma comunidade localizada na margem esquerda
do rio São Francisco e encravada a 22 km da sede do município de Barra. Como já foi
colocado, a comunidade teve a área da fazenda onde se instalava desapropriada pelo
INCRA e transformada em um assentamento com uma agrovila. Este assentamento é
uma das diversas comunidades existentes nas margens do rio São Francisco e que tem
seus territórios disseminados em vários ecossistemas. Esta localidade está circunscrita
entre extensões de serra, caatinga, rio, dunas33, barrancos e ilhas/coroas do São
Francisco.
Este enorme município apresenta diversos ecossistemas: matas, caatingas
altas e ralas, tabuleiros, areias, dunas, barrancos, brejos e alagados
recortados pelas serras. Este imenso território se integrou completamente ao
Ciclo do Gado, atividade econômica que se adaptou muito bem aos pastos
nativos, às ilhas do São Francisco junto dos currais e ao sistema hidroviário
de transporte. A carnaúba também fez parte da economia da região, sendo
muito utilizada pelas indústrias extrativas vegetais para a produção de cera.
A pesca ajudava, como ajuda até hoje, na economia de subsistência da
população pobre ribeirinha (CARDEL; 1992: p 49).
32
Croqui do entorno ver: anexo 1.
A sua relevância advém, não só da sua extensão (cerca de 7.000 km²) e espessura (mais de 100 m), mas
também como testemunho de antigos climas mais secos que o atual, que interferiram fortemente na
evolução da fauna e flora lá viventes. Sobre este assunto ver: Barreto (2002) e Brasil (2001-2002).
33
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
48
Como afirmei anteriormente, a experiência de pesquisa que fundamenta a
descrição de Cardel (1992) está vinculada à etnografia realizada entre as décadas de
1980 e 1990, em Olhos-d´Água, uma comunidade brejeira do município de Barra. Neste
período, a exploração da carnaúba (Copernicia cerífera ou Copernicia brunífera) para a
produção de cera era um elemento importante na economia do município. Hoje este
aspecto não se aplica a Canudos. Atualmente, apesar de existirem pequenas reservas do
espécime carnaúba, seus moradores não trabalham mais com a extração de cera. Mas
esta atividade foi relatada como um elemento agregador de renda naquele período34.
Embora as terras do assentamento estendam-se por territórios desenhados em
ecossistemas distintos, a caracterização do clima e da precipitação de chuvas feita por
Rodarte (2008) define o clima nas proximidades do assentamento como quente e
semiárido. A sua temperatura média é superior a 25°C e as chuvas estão distribuídas de
forma irregular ao longo do ano, com precipitação média anual de 653,8 mm. O período
mais chuvoso estende-se dos meses de dezembro a abril, e o mais seco, de junho a
outubro.
O entorno da comunidade é caracterizado por vegetação nativa, áreas
agricultáveis, pastagens e solo desnudo. Na margem direita do rio São Francisco e na
margem esquerda, onde a comunidade se instalou, é possível verificar a presença de
alguns espécimes de mata ciliar degradada35, como a quixabeira, o juazeiro, o
umbuzeiro e a carnaúba. Nas ilhas situadas em frente à agrovila e nas margens do rio, o
fenômeno do desbarrancamento é visível e preocupante. O desmoronamento tem
relação com a degradação da mata ciliar e a oscilação das águas, em parte provocada
pela criação do lago e da Usina Hidrelétrica de Sobradinho (anexo 2). Margeando a
comunidade, tanto pelo lado direito como pelo esquerdo, encontramos áreas de
pastagem para o gado, que é criado na larga36, e áreas agricultáveis com roças de beira
de rio. A caatinga, que é subdividida pelos moradores em duas áreas (boca da caatinga e
34
Caminhando pela boca da caatinga, nos deparamos com uma área repleta de espécimes de carnaúba.
Uma informante, ao ser questionada sobre a extração de cera, afirmou que o Sr. João Camandaroba
ganhou muito dinheiro com a extração naquela região. De acordo com o seu relato, a extração nos
arredores da comunidade era feita pelos moradores de Canudos por preços muito pequenos, porém a
informante não soube precisar os valores.
35
Mata ciliar é a formação vegetal nas margens dos córregos, lagos, represas e nascentes. Também é
conhecida como mata de galeria ou mata de várzea.
36
Área de criatório de animais de médio e grande porte, também denominada de solta; lugar onde os
animais são criados sem cuidados específicos com sua alimentação.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
49
Serra do Barro Branco), encontra-se mais afastada da localidade, e é nela que o cultivo
da mamona é feito.
Informações relevantes sobre o uso da terra e a vegetação na área do
assentamento de Canudos também foram apontadas no relatório elaborado pela ONG
Distrito Brejos da Barra, denominado “PDSA - Plano de Desenvolvimento Sustentável
do Projeto de Assentamento Barro Vermelho/Canudos (2002)”. O INCRA, por meio do
Projeto LUMIAR, terceirizou o serviço de levantamento de dados e propostas de
projetos de desenvolvimento para a ONG Brejos da Barra.37 O relatório elaborado por
profissionais das áreas de agronomia, agrimensura e sociologia, contratados pelo
Projeto Distrito Brejos da Barra, foi o único documento, além da Relação de
Beneficiários/RB, que o INCRA alegou possuir sobre a criação do assentamento e
disponibilizou para a minha pesquisa documental.
[...] a pecuária e a agricultura são as formas mais tradicionais de exploração
da terra, utilizando a mão-de-obra familiar. Ocorre em vastas áreas à solta na
caatinga [...] quando a pecuária é associada à agricultura, o criatório é feito
em cercados [...] o Rio São Francisco [...] fertiliza suas várzeas, permitindo
o desenvolvimento das culturas de vazantes [...]
Levando em consideração as condições ecológicas florísticas, climáticas e
fisiológicas, a Fazenda Barro Vermelho e Canudos possui como vegetação a
Savana Estépica (caatinga) segundo o sistema internacional de classificação.
A caatinga é característica da zona semiárida [...] grande parte da caatinga
hiperxerófita é relativamente densa, arbustiva/arbórea (DISTRITO BREJOS
DA BARRA; 2008, p.35/Anexo 2).
Utilizando toda a área da comunidade e seus ecossistemas, os moradores de
Canudos estrategicamente criam formas de sobrevivência com características próprias,
em tempos e áreas diferenciadas. Dentro de territórios distintos e com divisões de
trabalho pautadas em gênero e geração, seus moradores transitam entre atividades de
extração de lenha, carnaúba, frutos e ervas; agricultura em roças de caatinga e vazante;
pesca artesanal; migração sazonal e migração circulatória. A migração sazonal é
desenvolvida por indivíduos que saem da comunidade para realizarem atividades
temporárias em fazendas da região de Barreiras. A migração circulatória ocorre com
O Projeto LUMIAR é um Projeto do Governo Federal, realizado pelo INCRA, destinado aos serviços
de assistência técnica e capacitação às famílias assentadas em projetos de reforma agrária. A equipe local
do Projeto Lumiar, de forma participativa com os assentados, elabora um Plano de Desenvolvimento do
Assentamento (PDA), que irá nortear todas as ações de investimento. No entanto, este trabalho foi
terceirizado para o Distrito Brejos da Barra, uma ONG ligada a CODEVASF e criada por várias
associações de comunidades brejeiras, ribeirinhas e de sequeiros, com a finalidade de obterem recursos
por meio de entidades como a CODEVASF, MEC, EMBRAPA, Exército Brasileiro, Banco do Brasil para
investimentos em educação, eletrificação rural, estradas e habitações.
37
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
50
pessoas que desenvolvem atividades na região sul e sudeste, por vários anos, ou por
toda a vida e só voltam à comunidade nos períodos de férias ou depois de anos de
trabalho. No entanto, estes indivíduos sempre enviam dinheiro para a família.
1.4.2. A Criação e implantação do assentamento de Canudos
Canudos é uma comunidade centenária que teve as terras da fazenda onde se
instalara desapropriadas após a abertura de um processo no INCRA, em 1997. As terras
foram regularizadas por meio do Decreto nº 631197 de 07/10/1997, e a emissão de
posse foi oficializada em 08/10/1998. O projeto de assentamento desenvolvido pela
Superintendência Regional do Estado da Bahia/SR 05 indicava a implantação de dois
assentamentos por meio do mesmo processo denominado Projeto BA 0158000/PA
Barro Vermelho/Canudos. O assentamento de Barro Vermelho foi instalado a 5 km à
frente do assentamento de Canudos, na margem esquerda do rio São Francisco. A área
para a implementação do projeto de assentamento foi de 4.997,22 hectares, dos quais
391,82 ha eram para reserva ambiental, 850,69 ha para preservação permanente, e
3.754,71 ha para área de projetos agropecuários. A capacidade de famílias assentadas
nas duas localidades era de 250 famílias.
Com a intervenção do INCRA, a área de Canudos teve assentadas não só
pessoas nascidas na comunidade, descendentes das famílias mais antigas da localidade –
Ramos, Lopes e Sotero – como também famílias oriundas de regiões como Remanso,
Pilão Arcado, Xique-Xique e Brejos. Ao ler o relatório elaborado pelo Distrito Brejos
da Barra denominado “PDSA - Plano de Desenvolvimento Sustentável do Projeto de
Assentamento Barro Vermelho/Canudos (2002)”, é possível perceber que a principal
função do plano de desenvolvimento era estimular o associativismo e o cooperativismo
entre os habitantes da comunidade e elaborar, em conjunto, um programa de
desenvolvimento sustentável para a localidade. Conforme o relatório, Canudos tinha
104 famílias assentadas, vivendo da agricultura e da pesca. Ainda, de acordo com este
relatório, as atividades agrícolas tinham um calendário fixo: a partir de outubro, o
plantio, e nos meses de abril ou maio, a colheita. A atividade da pesca foi relatada no
PDSA como uma prática de subsistência, sem grande importância econômica. A
infraestrutura criada para o assentamento de Canudos pelo INCRA e citada no PDSA
descreve a existência de equipamentos e instalações comunitárias, como: escola, aprisco
comunitário, igreja, centro comunitário, sede da associação, trator e batedeira.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
51
Conforme relata o documento, a maioria das moradias eram pequenas construções
rudimentares, que não dispunham de acabamento, banheiros ou fossas sépticas. O
diagnóstico feito pelo PDSA desvela uma situação de extrema pobreza no
assentamento. Para tanto, basta enfatizar que a renda média familiar declarada foi em
torno de R$ 50,00 por mês.
1.4.3. O espaço planejado da agrovila de Canudos
Foto 1: Agrovila de Canudos (foto retirada do programa Google Maps, 2010)
Canudos atualmente é uma agrovila composta por 115 famílias, tendo
presentemente 458 habitantes38; destes moradores, 235 são do gênero masculino e 223
feminino. Conforme a informante M.F.S., agente de saúde local, das 115 famílias da
comunidade, apenas 104 são assentadas e 11 aguardam vaga para serem assentadas. No
assentamento de Canudos foram assentadas, tanto pessoas que haviam nascido na
fazenda Barro Vermelho/Canudos há muitas décadas, quanto famílias oriundas da
região de Remanso, Pilão Arcado, Xique-Xique e Brejos. Estas famílias foram se
deslocando pela região antes e depois da década de 1970, e muitas delas podem ser
consideradas como atingidas e deslocadas indiretamente pelo reservatório de
38
Dados obtidos através da Ficha de Cadastro da Agente de Saúde da Comunidade de Canudos, M.F.S.
Essas informações foram coletadas no dia 23 de março de 2010, mas esse número pode variar conforme
os moradores deixam à localidade (por mudança, migração, mortalidade) ou são incorporadas novas
famílias.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
52
Sobradinho, pois são famílias que deixaram a região de Remanso ou Pilão Arcado, por
ouvirem falar da construção da usina e por acreditarem que, como não detinham o título
de propriedade da terra, seriam retirados sem nenhuma forma de indenização.
Para ser assentado em Canudos, é preciso que uma família desista do
assentamento, ou que o assentado venha a falecer, sem deixar um cônjuge legalmente
cadastrado no programa. Quando um grupo familiar desiste do assentamento, ele não
pode vender o lote, nem a casa que lhe foi repassada. Entretanto, esta norma não é
seguida, e muitos assentados costumam vender seus lotes por preços irrisórios para
famílias que buscam ser assentadas ou para famílias assentadas que desejam aumentar
seus espaços de produção. Se o assentado for um viúvo ou desquitado e vier a falecer,
os terrenos onde trabalhava terão suas divisas respeitadas, até que um filho que
demonstre interesse tenha seu nome aprovado em assembleia, e a associação da
comunidade envie nome e documentos ao INCRA. Não havendo cônjuge ou filhos, o
INCRA é avisado da vaga, mas a associação, geralmente, indica o nome de alguém que
já vive na localidade e que já adquiriu as benfeitorias antecipadamente.
As 115 famílias residentes no assentamento possuem algum parentesco com uma
ou mais famílias da comunidade, pois, afinal, antes de ser um assentamento, Canudos
era uma comunidade centenária. O parentesco entre assentados e famílias ainda não
assentadas é uma das questões apontadas por vários pesquisadores (SIGAUD, 2005;
LOERA, 2006), pois as redes de informação e benefícios distribuídos pelo INCRA são
inicialmente formadas entre parentes e amigos. Segundo Rebouças (1997), a
importância dos grupos domésticos nos assentamentos pode ser observada na
construção de puxados e casas fora do padrão, construídas por parentes e agregados que
se unem às famílias contempladas, na esperança de um dia também serem
contempladas. Os puxados e as casas fora do padrão também são comuns na
comunidade de Canudos. Das 157 construções existentes, 133 são habitadas e as demais
são vendas, centro comunitário, escola, igreja, casa de farinha, casas abandonadas fora
do padrão ou puxados. Das construções habitadas, 90 são de tijolo ou bloco, 42 são de
taipa ou adobe e 01 de madeira. As casas construídas com adobe ou taipa de mão são
habitadas por famílias que ainda não foram contempladas por residências construídas
pelo INCRA e pela CAR, ou são de famílias que esperam ser assentadas. As
construções variam de três a seis cômodos, sendo a maioria de três e quatro divisórias.
Em regra, a casa com três cômodos possui quarto, sala e cozinha (à qual serve de copa,
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
53
pois o fogão a gás quase nunca é utilizado)39. Os cômodos das casas descritas por
Rebouças (1997) não se distanciam das casas da comunidade de Canudos. Existe
sempre uma janela que dá para o quarto mais amplo, geralmente do casal. Quase todos
os quartos possuem janela de alumínio com divisória de vidro e basculante. Na sala e na
cozinha também existem janelas e, na parede do fundo da casa, há sempre uma porta
que leva ao quintal. Em Canudos, a cobertura das residências e dos anexos é feita com
telha de barro. O chão das casas, geralmente, é de cimento, mas em algumas casas
encontramos cerâmicas; os “puxados” são sempre de terra batida. “Puxados”, como a
cozinha, são, em sua maioria, feitos com taipa de mão/barro jogado. É no “puxado” que
encontramos, geralmente, o fogão a lenha, visto que a cozinha foi recriada no anexo da
casa. Contudo, para Rebouças (1997), dentro deste modelo construtivo do INCRA,
adaptado por empresas como a CESP (Companhia Energética de São Paulo), há um
elemento perturbador – o banheiro.
Nos assentamentos tratados por Rebouças (1997), a CESP construiu várias casas
com banheiro e, na grande maioria delas, eles não foram usados e acabaram tendo outro
fim. A autora chama a atenção para a relação feita pelos moradores entre a utilização do
banheiro e as noções de sujeira e limpeza, e de espaços secos e molhados. Segundo esta
autora, a separação do banheiro do restante da casa é perfeitamente compreensível se
pensarmos na oposição entre limpo e sujo ou seco e molhado e na organização espacial
do sujeito impactado. O banheiro é o lugar onde se eliminam as impurezas e, por isso,
deve estar fora da casa. Para os seus informantes, no lugar onde se eliminam as
impurezas, não se deve tomar banho, pois o banho representa limpeza. A casa é um
lugar que deve permanecer seco, e por essa razão as atividades que envolvem água,
como lavar, defecar ou mesmo tomar banho, devem ser realizadas fora de casa.
Woortmann (1983), em seu trabalho intitulado “O Sítio Camponês”, realça a oposição
entre a utilização do banheiro no espaço da casa e os termos “dentro e fora”. Segundo a
autora, tradicionalmente a área utilizada como banheiro foi a área plantada de palma. A
palma geralmente é plantada em um semicírculo nos fundos do quintal. A poluição das
fezes, portanto, não contamina a casa. Em Canudos, banheiros são minorias. De todas as
residências, apenas 44 possuem banheiros semiconstruídos, já que muitos deles não
39
O fogão a lenha é muito utilizado em Canudos. Além das mulheres admitirem que prefiram usá-lo
devido ao menor tempo de cozimento dos alimentos, há sempre a reclamação de que o valor do gás
revendido em Canudos não é acessível.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
54
possuem canos ou caixa d´água. Algumas casas usam fossas, mas a maioria das pessoas
tem o costume de defecar a céu aberto, na caatinga.
Quanto à questão de transporte, o assentamento de Canudos dispõe de uma linha
de ônibus regular/particular, que faz o trajeto para Barra de segunda a sexta, às 04h da
manhã, pelo valor de R$ 4,00 por pessoa. Os moradores também contam com o
transporte alternativo de carros particulares todos os dias da semana, mediante o
pagamento de R$ 3,00 a R$ 5,00 dependendo das condições do veículo. Para
transportarem sacas de mantimentos, o preço cobrado é de R$ 3,00 por saca. Pessoas
que, por motivo de doenças, precisem ser transportadas fora dos dias de viagem, pagam
R$ 60,00, se a viagem for diurna, e R$ 80,00, se a viagem for noturna (ida e volta). Para
o transporte “interno”, Canudos dispõe, basicamente, de quatro meios de locomoção:
jumento, barco, bicicleta e moto. O jumento é utilizado para o carreto. O barco é usado
tanto na pesca, quanto no transporte de pessoas, de pequenos animais e produtos da
comunidade para as roças de ilha e vice-versa. A bicicleta parece ser o transporte mais
utilizado pelos jovens, rapazes e homens adultos que buscam se locomover pela
comunidade e para as roças de caatinga. A moto ainda é um meio de locomoção caro
para os moradores do assentamento. Como o uso de motocicletas em Canudos é
pequeno, existe no assentamento apenas uma casa que disponibiliza a venda de
gasolina.
Na área da saúde, a comunidade de Canudos é assistida por uma agente de
saúde, pessoa responsável por manter cadastradas, junto à Secretaria de Saúde do
município, todas as famílias da comunidade e encaminhar, quando necessário, os
pacientes ao Sistema Único de Saúde para consultas médicas, odontológicas e exames.
Segundo nossa informante, não há um número pré-estabelecido de consultas médicas
durante a semana. Esse número fixo ocorre apenas no campo odontológico, onde dois
procedimentos são agendados por semana. Para a agente de saúde, os maiores
problemas em Canudos são a verminose e a hipertensão arterial. Fato também
preocupante é presença do barbeiro (Trypanosoma cruzi - transmissor do Mal de
Chagas), que, apesar de ter diminuído com as construções de residências com tijolos,
ainda é encontrado na região. O lixo inorgânico, questão séria em muitas comunidades
rurais, é recolhido duas vezes por semana pela prefeitura, mas mesmo assim a presença
de garrafas e sacos plásticos é uma constante no local. Outra questão problemática,
segundo a agente de saúde, é o fato dos moradores perderem consultas e exames porque
não dispõem de meios para se deslocarem. A Secretaria de Saúde Municipal só dispõe
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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de verba para o pagamento de deslocamentos com uso de transporte particular para
casos graves. No entanto, conforme nos relatou a agente de saúde, mesmo nos casos
graves, os motoristas que fazem o transporte particular sempre exigem o pagamento
adiantado por parte da família, tendo em vista que o ressarcimento via esse órgão é
burocratizado.
Quanto ao aspecto educacional, o assentamento de Canudos é beneficiado com
uma escola municipal, que permite que crianças e adolescentes possam cursar todo o
ensino fundamental sem serem deslocadas, cotidianamente, como ocorre em outras
localidades. Ingressam na escola municipal de Canudos crianças acima de cinco anos. A
escola, denominada de Escola Municipal Santa Clara, possui dois prédios instalados em
locais distintos. No segundo prédio, ministram-se aulas à 1a e 3a séries do ensino médio
pela manhã e, no período da tarde, para o 8º e o 9º ano. No prédio principal, ministram
aulas ao 2º e 4º ano pela manhã e, pela tarde, ao 6º e 7º ano. Essa instituição de ensino é
assistida por dez professores. Segundo informações, a escola assiste cerca de 150
alunos, entre crianças e jovens, e oferece merenda escolar. Os adolescentes e jovens que
querem terminar o ensino médio estudam em escolas na sede do município, que oferece
transporte nos turnos da manhã e da tarde.
Por meio de entrevistas e da observação, foi possível perceber duas formas de
lazer como reforço da sociabilidade entre os membros da comunidade de Canudos: o
lazer religioso (ligado às mulheres) e o laico (ligado aos homens). Em Canudos existe a
pequena Igreja de Santo Antônio, onde é comemorada a festa de Santo Antônio,
padroeiro da comunidade, no dia 13 de junho, e a festa de Todos os Santos, no dia 1º de
novembro. Conforme foi relatado, a comunidade tende a participar das duas festas. A
comemoração de Todos os Santos é iniciada com as novenas na igreja, as quais, em
regra, são realizadas por mulheres. A festa começa no dia 31 de outubro, com ápice no
dia 1º de novembro, por meio de missa e procissão. É neste período que casamentos e
batizados são realizados na Igreja de Santo Antônio, mediante a presença de um padre
da cidade de Barra. A missa celebrada pelo padre no dia de Todos os Santos custa à
comunidade R$ 50,00. Além das novenas, missas e procissões, em Canudos também se
comemora o Dia de Cosme e Damião, no dia 27 de setembro. O samba de Cosme e
Damião é realizado por uma informante chave. A festa é realizada em um barracão de
taipa, construído por ela e seu esposo, especialmente para essa festa, pois um de seus
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
56
filhos recebe neste espaço caboclos de mesa branca40. Nossa informante é quem
organiza todos os anos as missas e procissões de Domingo de Ramos e de Todos os
Santos. Em campo presenciamos uma destas procissões (Procissão de Ramos) e
pudemos perceber, por meio de suas falas, a existência de uma moral religiosa
camponesa que envolve quase toda a comunidade, principalmente as mulheres. Por
meio de um imaginário sincrético, as procissões, as orações na mesa branca, os ramos,
os cantos, os santos, as plantações, os orixás cultuados e o caboclo são elementos
relacionais que compõem uma relação religiosa sui generis deste mundo rural.41
De outro lado, como lazer laico, encontramos a prática do futebol de campo e a
reunião casual de homens em “vendas” e “botecos”. Estivemos em Canudos em meses
diferenciados e em anos distintos, e em quase todas as viagens a campo presenciamos
reclamações sobre brigas relacionadas ao consumo de bebida alcoólica. No entanto, em
conversa com alguns homens, enquanto esperávamos o café da tarde, servido à sombra
de um umbuzeiro na roça de caatinga, este divertimento era sempre apontado como algo
que reafirmava suas relações de amizade. Em todas as nossas viagens também
presenciamos jogos de futebol. Em Canudos existem três campos de futebol – dois
reservados para homens (adultos e jovens) e um reservado para meninas42.
1.4.4. Problemas frente a um projeto de mudanças e modernização
Na comunidade de Canudos existiram famílias originárias que optaram por não
serem assentadas. Estas famílias não moram mais em Canudos, pois explicitaram
descontentamento com a nova realidade e se recusaram a serem assentadas e,
posteriormente, deixaram a comunidade. Conflito como este, onde famílias inteiras
40
O jovem filho de uma informante, com dons mediúnicos, teve que se comprometer com seus mentores
espirituais a abrir uma casa de oração de mesa branca, para fazer orações em dias pré-definidos e para
realizar as festas dos santos e orixás que cultua. Assim, o casal de informantes chaves, pais do jovem,
resolveu construir um barracão de orações. O barracão fica no fundo do quintal, é feito de taipa jogada,
mas é forrado com telhas de cerâmica. Ele deve comportar pelo menos 40 ou 50 pessoas. Em seu interior
encontramos imagens de Nossa Senhora de Aparecida, de São Lázaro, de Santa Bárbara, de Preto Velho,
de Cosme e Damião, de Ogum e Yemanjá. Há também plantas, como Espada de São Jorge.
41
Além das manifestações católicas e da festa de Cosme e Damião, na noite de sábado sempre chega a
Canudos um ônibus vindo da Comunidade de Wanderley, com protestantes pentecostais (denominados
simplesmente como crentes), para realizarem seus cultos em casas particulares.
42
- Alguns pais citam como divertimento juvenil o uso de drogas ilícitas (maconha e crack) por parte de
jovens na comunidade. Quando este tema é levantado, ele sempre é, posteriormente, ligado ao aumento de
atos de vandalismo, como brigas e furtos. Um de nossos informantes alegou que existem plantações da
região, mas não na área do assentamento. Durante a conversa, demonstrou conhecimento quanto aos
valores, admitiu que já foi “convidado” a plantar, mas salientou que se sente mais à vontade plantando
mamona.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
57
abandonam a área de um futuro assentamento, foi retratado por Loera (2006), que
constatou que a proposta de trabalho coletivo e de plantio em áreas comunais teria feito
famílias cadastradas pelo programa, no interior de São Paulo, abandonarem a área onde
estavam vivendo provisoriamente para voltarem para uma área de acampamento e
buscarem nova oportunidade de serem contempladas em outra localidade. Silva (2004)
também aponta para esta questão e afirma que a coletivização dos lotes e a pressão para
a formação de cooperativas, imposta em vários assentamentos pelos mediadores, é uma
experiência fracassada. Em muitos casos, há uma recusa dos assentados ou das famílias
cadastradas frente às propostas de assentamento que quebrem e imponham bruscamente
um novo modo de vida, pautado na modernização das suas relações socioeconômicas,
por meio da criação de relações mais “civilizadas e desenvolvidas”.
Como em vários outros projetos de assentamento (REBOUÇAS, 1997;
ESTRELA, 2004) o projeto para a implantação do assentamento de Canudos obedeceu à
concepção de um espaço organizado em conformidade com um “projeto civilizatório”
idealizado pelo INCRA. A organização física do assentamento de Canudos privilegia a
visão da urbanidade. As residências da agrovila se alinham dentro de uma uniformidade
relativa (tamanho e traçado) e se distribuem por quatro ruas: Rua do Sossego, Rua das
Flores, Rua Principal e Rua Santo Antônio. Neste projeto civilizador há, não só uma
separação entre os espaços de morada e o ambiente de trabalho, que influencia o tempo
de trabalho nesse espaço de plantio, colheita ou pesca; mas existe, acima de tudo, um
traçado urbano (ruas, medidas de quintais) que interfere na sociabilidade dos
envolvidos. A divisão entre espaço de moradia e de trabalho é tão grave em Canudos,
porque apesar do assentamento existir desde 1997, até o momento, o INCRA não fez a
demarcação dos lotes. Portanto, algumas pessoas ainda plantam na beira do rio (área da
Marinha) e nas proximidades da agrovila. Mesmo assim, aqueles que plantam em lotes
mais distantes, com no mínimo uma hora de caminhada, reclamam do tempo gasto no
trajeto e dos frequentes roubos de ferramentas e produtos.
Woortmann (1991) chama a atenção para o aspecto negativo desta fragmentação
territorial, enfocando os problemas causados por esta separação física entre o espaço da
morada e o espaço do trabalho. Para a autora, o cercamento do espaço casa/quintal é
uma mudança altamente prejudicial, pois ao lado da sua redução real, não só se reduz a
atividade aí realizada, mas alteram-se as relações de vizinhança, o que por sua vez
aumenta as tensões entre as famílias vizinhas, criando-se verdadeiras guerras de cercas e
restringindo, sobremaneira, a criação de animais que colaboram para a economia de
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
58
consumo dos grupos domésticos. Em Canudos, os vizinhos discutem em função do
barulho de aparelhos eletrônicos, por roubos de pequenos animais nos quintais, por falta
de espaço para criarem porcos ou galinhas, como também, por causa dos animais que
invadem as roças de caatinga, já que estas nunca são cercadas.
Ao abordar esse assunto durante as entrevistas, os informantes reificaram a
existência destes conflitos43.
M.R.N: As pessoas acham que você não tem direito porque
você não é daqui. Aqui não pode ter criação no quintal, uma
galinha, uma cabra. O vizinho já está do lado falando. Mas se
você não criar, vai até morrer de fome. E plantar nesta roça de
caatinga é só a mamona mesmo. E a mamona é só pra quem é
sadio, trabalha no sol quente. 44
R.M.L: Ela não criava, só eu sozinha criava pra aborrecer ela.
Aí eu passei uma cerca no meio, entre eu e ela. Pra nós
ficarmos juntas eu fiz assim. Ela sempre viajava para São Paulo
e deixava as plantinhas. Aí ela saía e dizia: “Oh, Rita, cuida de
minhas plantas, olha minhas plantas”. Aí eu fui. No dia que ela
chegou, ela estranhou, que viu fechado. Disse: “Rita, quê que
foi que você passou a cerca?” Eu disse: “Olha, minha irmã, mas
o melhor que tinha foi eu passar a cerca, porque minhas galinha
ia pra lá ciscar as suas plantas e você viajava. Pra você chegar e
achar as suas planta quebrada, aí num dava.” Aí eu passei.45
A opção pela agrovila trouxe a possibilidade de espaços comerciais (vendas),
educacionais (escola), edificações comunitárias (centro comunitário e casa de farinha
coletiva), instalações de rede de água tratada e elétrica, mas trouxe também contendas
diretamente relacionas ao adensamento dessas famílias. O descontentamento subliminar
dos assentados de Canudos (pois não houve uma recusa ao projeto por parte da maioria
das pessoas) com o espaço e com o que ele gerou, lentamente parece ter levado os
próprios moradores a destruírem as áreas e os equipamentos comuns, como casa de
farinha, canos de irrigação, aprisco, bombas d´água e implementos agrícolas.
43
Optamos por transcrever a fala dos entrevistados no português corrente e não transcrever como foi
pronunciado, pois, neste contexto, o que interessa é o conteúdo da conversa, e não o regionalismo
característico da região. Porém, quando forem nomes de lugares, objetos, animais ou formas de plantio e
criação, manter-se-á a grafia registrada na entrevista.
44
Entrevista realizada em Canudos, em 2010, com assentada e lavradora que vive em Canudos há 17 anos
e tem 47 anos de idade.
45
Entrevista realizada em Canudos, em 2008, com assentada e lavradora nascida na comunidade, que tem
atualmente 55 anos
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
59
Experiência similar é retratada por Estrela (2006), quando esta afirma que, em
relação aos equipamentos comunitários, o Projeto de Serra do Ramalho implantou duas
novidades: a construção de lavanderias e a implantação de refeitórios públicos nas
agrovilas. Entretanto os equipamentos não conseguiram ser apropriados funcionalmente
e foram destruídos pelos próprios moradores. Conforme relata a autora, das edificações
instaladas restam apenas as ruínas. Vemos, desta forma, que a padronização das
comunidades camponesas em agrovilas mostrou ser uma faca de dois gumes.
Segundo Rebouças (1997), em seu estudo sobre reassentamento de populações rurais
deslocadas por construção de hidrelétricas no interior paulista, a ideia de oposição entre
rural-urbano influenciou a forma com que a CESP direcionou a criação dos
assentamentos sobre sua responsabilidade. A autora acredita que a ambição do projeto
da CESP, em sentido amplo, não é apenas a fixação do homem no campo, mas é inserir
as comunidades ribeirinhas no desenvolvimento do progresso. O projeto civilizador
apresentado por esta Companhia Estatal seria levar aos ribeirinhos os benefícios de
serviços e infraestrutura dos quais eram desprovidos: água, energia elétrica e serviços
sociais em núcleos habitacionais.
Voltando ao nosso estudo de caso, Canudos, do mesmo modo, teve acesso ao
sistema de água encanada e tratada implantada pela prefeitura de Barra46; no entanto,
atualmente, das 115 famílias que vivem em Canudos, apenas 45 dispõem de água
encanada, e as outras 70 famílias, que ficaram de fora deste benefício, utilizam a água
do rio para beber e cozinhar alimentos. Aqueles que possuem água encanada ainda
sofrem com a interrupção do fornecimento de água várias vezes durante a semana. A luz
elétrica também chegou à comunidade. Entretanto, das 115 famílias que moram no
assentamento, apenas 76 possuem a instalação e 39 ficaram fora das áreas beneficiadas.
Porém, muitas famílias que possuem luz elétrica estão com o fornecimento cortado por
falta de pagamento ou sofrem para manter o pagamento em dia47. A falta de água
46
A água encanada utilizada em Canudos é bombeada do rio São Francisco, coletada em uma
comunidade próxima, denominada Wanderley. A água é tratada manualmente em um reservatório e
depois distribuída para os reservatórios de Canudos e Barro Vermelho pelo sistema de distribuição de
água, gerenciado pela Prefeitura Municipal de Barra.
47
Em oficina realizada no dia 07/12/07, coordenada pela Profa. Dra. Lídia Cardel (UFBA), onde a
temática era o direito à tarifa social de energia elétrica (Lei nº 12.212) e o direito à água como um bem de
domínio público (Artigo 1º, inciso I, da Lei 9433/97), contamos com a participação de 98 famílias. A
tarifa social de energia discutida na oficina estabelece que famílias com o perfil do Programa Bolsa
Família, cuja renda per capita seja de R$ 140,00, e que tenham um consumo entre 80 e 220 kwh, têm
direito a uma tarifa de energia diferenciada. Até 30 kw/h, o desconto é de 65%; entre 31 e 100 kw/h, o
desconto é de 40%, e, entre 101 e 220 kw/h, o desconto é de 10%. A lei que define a água como um bem
público vem concretizar o disposto no Artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Nesta oficina,
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
60
também determina o trabalho excessivo de mulheres e crianças na beira do rio São
Francisco. Comumente encontramos mulheres e crianças lavando roupas de vestir e
utensílios domésticos nos horários mais quentes do dia.
Esta é a realidade que encontramos na comunidade de Canudos no período do
nosso trabalho de campo. De um lado, seus lugares de trabalho e de vida parecem,
momentaneamente, estarem desarticulados em função dos descompassos entre os
processos impostos pelas políticas públicas voltadas para áreas de assentamento; por
outro, parece haver um sentido por trás dos conflitos e dos processos vividos na história
recente deste grupo social, que nos remete à concepção de que os processos de
sociabilidades e de historicidades de grupos sociais impactados são, sempre, complexos
e ambíguos. Na atual conjuntura, esta realidade altamente fluida não é uma
característica apenas desta comunidade camponesa, na medida em que ela está inserida
numa realidade mais ampla, que a transversaliza constantemente.
Sendo assim, procuraremos representar o modo de vida desta população,
compreendendo o “conflito” como algo processual, e buscando mostrar que o seu
modus vivendi camponês, mesmo inserido em uma área de assentamento com disputas
internas entre os seus grupos sociais, ainda é latente e possui uma forma particular de
organizar e classificar o mundo desta comunidade. Ainda que os grupos domésticos de
Canudos sejam diferenciados, existem determinados aspectos que os definem e os
unificam, como, por exemplo, a utilização da mão de obra familiar, a produção voltada
para o sustento da família e a prática da policultura. Por essa razão, parto do princípio
de que os moradores desta comunidade se aproximam da concepção construída por
Woortmann (1990), qual seja, de que estes camponeses não veem a terra apenas como
um objeto mercadológico, mas como um patrimônio familiar, onde terra, trabalho e
família são elementos centrais. Esta representação social é inerente à cosmologia e à
cosmografia da comunidade de Canudos, onde o patrimônio do grupo doméstico é
verificamos empiricamente quatro problemas. Primeiro: ao analisar os valores tarifários de luz e água
cobrados pela COELBA e pelo município de Barra, constatamos que todos tinham problemas de
pagamento com um ou com outra empresa; segundo: verificamos que apesar de várias famílias fazerem
parte dos programas assistenciais do governo federal, os valores cobrados em suas contas de luz não
correspondiam aos valores (legalmente) estabelecidos para pessoas cadastradas nesses programas;
terceiro: os poucos eletrodomésticos (televisão, aparelho de som, geladeira e freezer) que os moradores
possuem são antigos e, consequentemente, o consumo de energia elétrica é muito maior; quarto: o
município cobra o dobro do valor tarifário da água para casas em que o mínimo consumido denominado
de cota social (10.000 litros) é excedido, esquecendo-se de que a região do semiárido deveria ter um
consumo mínimo diferenciado das residências urbanas.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
61
simultaneamente um lugar48 de moradia e de produção, e a família é a unidade de
produção e de consumo.
Destarte, o cotidiano dos moradores de Canudos, cadenciado entre água e terra,
entre o trabalho no lameiro, na vazante e na caatinga, está vinculado à prática de três
atividades principais: extrativismo vegetal, plantio e pesca. No assentamento de
Canudos, atualmente, a atividade de extração é realizada fundamentalmente na caatinga
e no entorno da comunidade; o plantio de alimentos se dá em quintais, roças da
caatinga, roças de beira de rio e em roças de ilha; e o pescado é obtido através da pesca
artesanal no Velho Chico. Essas atividades são realizadas em territórios distintos, em
momentos variados e por agentes diferenciados, uma vez que as divisões dos grupos,
assim como as divisões das atividades, são caracterizadas por uma divisão de gênero e
geração.
Dentro desta complexa teia de relações sociais, onde a vivência se entrelaça
entre as ações e as relações reificadas em territórios distintos, como roças de ilha, áreas
de pesca, roças de caatinga e roças de vazantes e quintais, a categorização de Canudos
por meio de um conceito único não nos parece algo simples de ser estabelecido. Na
discussão a seguir, procuraremos estabelecer linhas teóricas e empíricas que possam
desvelar o imaginário e o cotidiano desta comunidade.
48
“Um lugar não é um ponto localizável objetivamente num espaço-geográfico nem uma grade espacial
abstrata. É, sobretudo, uma âncora que sustenta, dá sentido e emoldura as interações sociais que se
desdobram num fluxo temporal entre pessoas e grupos [...]. A relação entre os lugares e os sentimentos de
pertencimento revela sempre a interdependência entre os termos” (FILHO, 2010: 5).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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CAPÍTULO II
CAMPESINIDADE E O MODUS VIVENDI CAMPONÊS
LAMENTO DIAMANTINO
Sou como mato estacado
Bem torto a trafegar
Em meio a uma campina
Camponês cumprindo a sina
Saudade é como cantar.
Era meia noite veia
E a lua bem descorada
Um estampido na estrada
O medo tragava o medo
Empinava coração.
Tal qual grandes menestréis
Os grilos em cantoria
Quebrando todo silencio
Daquela noite tão fria
A serra embranquecia
Soltando um ar preguiçoso
E o vento trazia uns gritos
Que vinham lá da rodagem
E o desafio do medo
Num tempo de grilagem.
E os homens plantavam a terra
pensando que a terra é sua
mas veio os donos da terra
jogou plantado na rua.
Eu saí da minha terra
Por armas de coroné
De alpercata e bocapiu
Eu mais a minha muié
Fui pra fazenda queimada
Dois dias de caminhada
Dois de andar a pé.
Cheguei pedí o capataz
Um trabaio de meeiro
Ele me disse de estalo
Só tem vaga pra roceiro
E eu sem ter opção
Joguei os trapos no chão
Caí logo no asseiro.
Trabalhava noite e dia
Pensando vida vencer
Mais hoje eu sou resto veí
Da vida colhi sofrer
E coroné sempre rico
de terras pra bem viver.
vou levando essa carga
inté a morte chegar
se Deus inda tá no céu
mió mim levar pra lá
Lamento Diamantino
na serra solto no ar.
IVAN SOARES
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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1. A CAMPESINIDADE E SEUS CAMINHOS
Não obstante saber que uma extensa produção científica sobre comunidades
camponesas nos mostra que as estruturas de sociabilidades, alinhavadas pelas relações
de parentesco (reais ou imaginárias), compadrio, alianças e amizades são basilares para
a reprodução do modo de vida camponês, mesmo que se tenha conhecimento de que o
assentamento de Canudos apresenta fraturas na sua organização social, e ainda que se
tenha ciência de que a condição vivida no assentamento de Canudos decorre de uma
rede de processos complexos e conflituosos, sabemos que esse assentamento se
constitui, de fato, num lugar experienciado de reprodução do modus vivendi camponês
ou de campesinidade. Tal qual Woortmann em “Com parente não se neguceia: o
campesinato como ordem moral”, optamos por pensar Canudos por meio da ideia de
campesinidade no lugar da de camponês.
[...] concepções sobre a terra que chamo de morais (terra enquanto valor-deuso) com concepções utilitaristas mercantis. Não encontramos, então,
camponeses puros, mas uma campesinidade em graus distintos de
articulação ambígua com a modernidade (WOORTMANN, 1990:14).
Como este autor argumenta, não existe um camponês puro, e o conceito de
campesinidade, com todas as suas variações, explicaria os diversos caminhos que um
grupo como o de Canudos pode apresentar – estabelecidos ou chegantes, assentados ou
não assentados, pescadores ou lavradores. Assim, o que existe é uma campesinidade
comum a todos, mesmo havendo diferenças empíricas essenciais entre o campesinato
histórico brasileiro. Como frisou Weber (WEBER apud. VELHO, 1982), “de todas as
comunidades, a constituição social dos distritos rurais são as mais individuais, e as que
relação mais íntima mantêm com determinados fatos históricos”.
O campesinato, para muitos teóricos (QUEIROZ, 1973; HEREDIA, 1979;
GARCIA JR., 1983; MOURA, 1988; WOORTMANN, 1997; CANDIDO, 2001), possui
uma organização baseada na terra, no trabalho e na família, e na concepção do uso
destes bens materiais e imateriais como um valor. Para esses teóricos, a especificidade
deste grupo social não implica a negação de uma forma de subordinação à qual pode
estar submetido, nem sugere a negação de uma multiplicidade de estratégias por ele
adotadas diante de diferentes situações, de diferentes tempos ou lugares. Os grupos
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
64
sociais podem apresentam maior ou menor grau de campesinidade segundo a trajetória
histórica e social de cada um e a sua forma de integração à sociedade moderna. São
essas multiplicidades de estratégias que podem levar a uma maior ou menor reprodução
de campesinidade. De acordo com Woortmann (1990), a campesinidade está fundamentada por
uma ética camponesa,49 o que expressa a existência de uma “ordem moral, isto é, de uma forma
de perceber as relações dos homens entre si e com as coisas”. A campesinidade é uma
categoria encontrada em momentos e lugares diferentes, que expressa a importância de
valor da ética camponesa para pessoas ou para grupos sociais. Trata-se, portanto, de uma
característica presente, em maior ou menor grau, que é compartilhada.
Velho (1982) trata claramente de campesinidade ao expor a necessidade de
tentar fugir da ideia de contradição, quando se depara com uma multiplicidade de
situações empíricas não teorizadas, entre o ideário de um camponês sem terra e um
proletário com consciência camponesa. Foi teorizando o empírico que Velho criou a
hipótese de um continuum camponês-proletário. Na área estudada (sul do Estado do
Pará) existiam dois tipos sociais: um que vivia isolado com sua família na mata e outro
que vivia em pequenas comunidades. Dentre eles foi observado que poucos se
dedicavam exclusivamente à atividade agrícola, pois também trabalhavam nos
castanhais durante a safra. Eles tinham, portanto, dois papéis – agricultores e
apanhadores. A análise do empírico possibilitou ao teórico compreender e definir tipos
ideais. Tinha-se, segundo o autor, um camponês agricultor autônomo (produção quase
exclusivamente de subsistência, integração mínima no sistema nacional) atingindo um
grau máximo de autonomia; porém, se olhássemos para os trabalhadores dos engenhos
na Zona da Mata Pernambucana, tinha-se o máximo de dependência ou de
proletarização (terra escassa, mão de obra abundante e alta integração com o sistema
nacional). Os casos intermediários, existentes abundantemente no nordeste, de
parceiros, meeiros, arrendadores e outros, justificam a hipótese de um continuum
camponês-operário estabelecido por Velho, ou, como prefere Woortmann, justificam o
conceito abstrato de campesinidade.
Esse continuum, posteriormente, vai ser definido (SCHNEIDER, 2003;
DUFUMIER, 2007) como uma estratégia de sobrevivência, denominada, pluriatividade.
49
A ética camponesa apresenta terra, trabalho e família como valores morais e categorias intimamente
relacionadas entre si e tem como princípios norteadores a honra, a hierarquia e a reciprocidade. Para o
autor, ela forma uma ordem moral de forte inspiração religiosa, constituindo inclusive uma ideologia
tradicional oposta à ordem social da modernidade. Tanto que, no Brasil, a ética do catolicismo rústico se
confunde com a ética camponesa. Sobre esse assunto ver: Woortmann,1990 e Queiroz, 1976.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
65
São situações sociais em que os indivíduos que compõem uma família com
domicílio rural passam a se dedicar ao exercício de um conjunto variado de
atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à
agricultura ou ao cultivo da terra, e cada vez menos executadas dentro da
unidade de produção. (SCHNEIDER, 2003: 100 e 101)
Segundo Schneider (2003), a dinâmica da própria agricultura no espaço rural
vem sendo condicionada e determinada por outras atividades. Dessa mudança estrutural
temos o exemplo da expansão das unidades familiares pluriativas como uma estratégia
de reprodução social e econômica das famílias rurais. A noção de pluriatividade nos dá,
segundo o autor, a possibilidade de aprendermos melhor, não só as formas de trabalho,
mas também a renda das unidades familiares. A importância desta estratégia tem graus
variados de acordo com as regiões. No entanto, essa estratégia não significa um
rompimento com as particularidades do campesinato brasileiro, afinal, atividades não
agrícolas sempre foram realizadas no dia a dia desses grupos sociais. Como exemplo,
temos unidades familiares em Canudos onde a mulher é faxineira na escola municipal
da comunidade e, ao mesmo tempo, desempenha atividades no quintal e na roça de ilha
e caatinga do seu grupo familiar. A estratégia pluriativa mantém a unidade doméstica
enquanto um grupo produtor e consumidor, e não nega a reprodução social
tradicionalmente desenvolvida por meio de uma ética camponesa.
Segundo Wanderley (1996), a origem do conceito de camponês está relacionada
à realidade da idade média europeia, mas a formação do campesinato brasileiro guarda
grandes especificidades. No Brasil o campesinato é criado no seio de uma sociedade
capitalista e à margem de um latifúndio escravocrata. Em contraste com o forte
enraizamento territorial que caracteriza o camponês europeu, a trajetória do nosso
campesinato é marcada por uma forte mobilidade espacial. O predomínio de sistemas de
posse da terra tem resultado numa condição de instabilidade, que faz da busca de novas
terras uma importante alternativa de reprodução social. Assim, o seu modo de vida é
considerado como um patrimônio - mais do que a terra - e é ele que tem sido de fato
transmitido. Em função destas especificidades, Wanderley também usa, de forma mais
intensa, o conceito de campesinidade.
2. IDENTIDADE CAMPESINA EM CANUDOS
2.1. Terra, trabalho, família, hierarquia, estratégia
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
66
Para Queiroz (1973), no Brasil sempre houve um campesinato coexistindo com
fazendas de monoculturas e de criação de gado, que sempre foi o responsável pelo
abastecimento das fazendas e povoados. Segundo a autora, mesmo em regiões distintas,
algumas características da vida camponesa eram comuns a todas elas: autossuficiência;
interdependência em relação à economia urbana; estabelecimentos do tipo familiar;
poder de decisão concentrado no chefe da unidade de produção. Corroborando esta
análise, Woortmann (1990) e Moura (1988) definem o camponês pelo caráter familiar
do trabalho. Para ambos, o trabalho familiar caracteriza o vínculo social do camponês
com a terra, e o cultivo da terra marcará de modo decisivo as formas de organizar a vida
social. O grupo doméstico se insere no trabalho familiar em diferentes atividades
visando à reprodução física e social do grupo na terra.
O camponês é um cultivador de pequenas extensões de terra, as quais
controla diretamente com sua família. [...] Tal controle pode advir do
costume ou da propriedade privada [...]. O camponês é um produtor que se
define por oposição ao não produtor, não importando se planta a terra ou se
pesca no mar [...]. O camponês é constituído de cultivadores que se definem
em oposição à cidade [...] não a cidade [...] mas ao Estado. Este dispõe de
instrumentos [...] que disciplinam o camponês na obrigação de pagar
impostos, na obediência a códigos escritos que impõem uma verdade legal à
propriedade de terra, ao matrimonio e ao contrato (MOURA; 1988: p. 12 a
15).
Como afirmou Moura (1988), o camponês é um produtor, não importando se
planta a terra ou se pesca no mar. É no processo de trabalho com a terra ou a água que a
lógica do campesinato é gestada. É pelo trabalho que sua organização social e de
território são criadas. É pelo trabalho que o seu saber é construído e repassado. É por
meio do trabalho familiar que a relação com a terra é construída. É pelo trabalho que o
camponês se enraíza à terra, sendo ela uma terra real ou uma terra a ser conquistada. A
terra é um elemento fundamental para a reprodução social do camponês. Mas a terra não
é apenas um território onde se projeta o trabalho de um grupo doméstico; ela é, ao
mesmo tempo, um patrimônio familiar. A terra não é e não será uma mercadoria; ela é
um instrumento de reprodução do grupo familiar. Mais que uma herança, a terra
solidifica a família enquanto um valor. Na vida camponesa, tanto para o homem como
para a mulher, a relação com a terra é central. Terra, trabalho e família são a expressão
de uma moralidade. Trabalho, terra e família criam uma ordem moral – uma ética
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
67
camponesa. É uma forma particular de perceber as relações entre si e com o que o cerca.
Uma forma particular que agrega terra, trabalho e família como valores morais e
categorias intimamente relacionadas entre si e que tem como princípios norteadores a
honra, a hierarquia e a reciprocidade (WOORTMANN, 1990). A sua moralidade, seus
valores, suas “regras” de herança e suas estratégias de sobrevivência se compõem pela
relação conjunta de todos esses elementos.
A base desse modus vivendi desenvolvido pelos grupos domésticos camponeses
é o trabalho familiar. Mas o trabalho familiar não se concretiza por intermédio de um
grupo familiar fechado. Heredia (1979) define grupo doméstico como um conjunto de
indivíduos que vivem na mesma casa e possuem uma economia doméstica comum, pois
o grupo doméstico é a unidade de residência, e é dentro dele que tem lugar a reprodução
física e, em boa parte, a reprodução social de seus membros. Godói (1999) também
define grupo doméstico como um conjunto de pessoas que possuem em comum o local
de moradia e a participação em uma mesma economia doméstica. No entanto, se
retomarmos a discussão proposta anteriormente sobre pluriatividade, e se associarmos
esse conceito ao que acontece em Canudos e em outras localidades (GARCIA JR, 1989;
CARDEL, 1992; 2004), podemos afirmar que, quando os indivíduos componentes de
um grupo familiar migram circulatoriamente, a ideia de residência compartilhada não se
sustenta. As pessoas migram e desenvolvem atividades em regiões como o sul ou o
sudeste, por vários anos, ou por toda a vida, e só voltam à comunidade nos períodos de
férias ou depois de anos de trabalho. Esta migração, inclusive, é uma estratégia de
reprodução do grupo camponês pauperizado, uma vez que estes indivíduos migrantes,
muitas vezes, enviam dinheiro mensalmente para a família, participando da economia
doméstica do grupo.
Conforme Woortmann (1997), como o grupo familiar não é um grupo fechado,
ele se relaciona com outras unidades familiares por meio das relações sociais de
parentesco, compadrio e vizinhança. São essas relações e a sociabilidade estabelecida
entre os grupos domésticos que fundamentam o sentimento de pertença a um
determinado território, pois quanto maior o vínculo entre os grupos, maior sua
integração espacial. Para Queiroz (1973), as relações de compadrio, de parentela e de
grupos de vizinhanças são fundamentais, pois é por meio dessas relações que o
camponês estrutura a sua ideia de mundo e de espaço. Aparentados entre si, com
inúmeros casamentos no interior do mesmo grupo (endogamia), não há espaço para
preeminências de um grupo sobre o outro, na concepção desta autora. Entretanto, sobre
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
68
esta ótica, o grupo de camponeses do assentamento de Canudos se diferencia. Apesar
das várias famílias assentadas na comunidade terem chegado a esta localidade no final
da década de 1970 e durante as décadas de 1980/1990, e de já terem efetuado
casamentos entre si, ao ponto de se considerarem todos parentes, existe preeminência
entre os grupos familiares com relação ao status relacionado diretamente ao contexto
histórico do grupo. Os estabelecidos há mais tempo possuem lugares de plantio em
lugares mais bem localizados, da mesma forma que têm quintais em proporções
maiores.
As atividades de um grupo camponês diferenciam seus integrantes por gênero e
geração; é uma característica da família camponesa ser patriarcal e hierarquizada.
Dentro dessa perspectiva, a figura do pai tem uma posição de maior proeminência50. As
relações de gênero e de geração dentro no mundo camponês são extremamente
hierarquizadas e, por conseguinte, a direção do processo de trabalho e das atividades
mais importantes para a economia doméstica é determinada por estas hierarquias.
Definir a direção do deslocamento espacial do trabalho (terra para desmatar, terra para
descansar) indica que o “pai camponês” detém todo o saber do processo de trabalho,
saber esse que será repassado através do trabalho familiar, do saber fazer. Em estudo
realizado por Woortmann (1997) no espaço do roçado da propriedade familiar, a
mulher, os velhos, e os não adultos, em geral, não trabalham. As atividades intensivas
ou eventuais destes membros são definidas como ajuda. É no domínio casa/quintal que
a atividade feminina é considerada trabalho, definindo espaços determinados pelo
gênero. O pai, geralmente, é o responsável pelo acesso de todos os membros do grupo
aos bens de consumo coletivo. Como estes bens de consumo são fornecidos, em maior
parte, pelo plantio, pela pesca ou pelo extrativismo, é este “pai estrutural” quem
direciona as atividades realizadas nesses lugares.
Segundo Heredia (1979), desta maneira o lugar do homem é o lugar do roçado,
enquanto o lugar da mulher é a casa, o quintal e o terreiro. É a mulher que organiza e
controla as atividades vinculadas ao domínio do espaço privado. A oposição casaroçado delimita a área do trabalho e do não trabalho, demarcando os lugares femininomasculino. A categoria trabalho é relacionada ao pai, porque é ele o responsável pelo
50
Mesmo com as profundas mudanças sofridas nas últimas décadas com relação à inserção da mulher no
mundo do trabalho, como público-alvo de políticas públicas específicas através do Pronaf Mulher. Em
Canudos, ao questionar a razão de nomes de mulheres constarem como beneficiadas na lista do INCRA, a
resposta foi uma só: aos homens faltavam documentos. Ao perguntar se faziam parte da associação como
associadas ativas e efetivas, todas as respostas foram negativas.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
69
roçado, mesmo sendo um lugar de trabalho de todo o grupo doméstico. E mesmo
quando mulheres e filhos desenvolvem atividades semelhantes no roçado ou as mesmas
atividades, eles incorporam a categoria ajuda. Como as tarefas no roçado, quando
efetuadas por mulheres, perdem o caráter de trabalho e como o campo visível do
trabalho da mulher é a casa, considera-se assim, em geral, que a mulher não trabalha,
mas ajuda. Ou seja, o mundo rural do campesinato brasileiro é um mundo
marcadamente patriarcal.
O trabalho infantil também está situado na condição de ajuda, tanto nas
atividades agrícolas e nas atividades ligadas à criação de pequenos animais, quanto nas
tarefas domésticas da casa e do quintal. Muitas vezes, segundo Cardel (1996), o trabalho
realizado por crianças e adolescentes é fundamental para a manutenção social do grupo
doméstico, pois é por meio dessas atividades que o processo de socialização da criança
e do jovem se consolida para a reprodução do modus vivendi camponês – o saber fazer
se dá pelo trabalho familiar. Conforme afirma a autora, no mundo camponês, o trabalho
é uma ética e um processo socializador de transformação do indivíduo. Seguindo esta
mesma linha, Heredia (1979) salienta que em algumas comunidades, além do roçado
gestado pelo pai, existem roçados menores (roçadinhos), que são de usufruto individual
de jovens e crianças. Segundo esta autora, esses roçados são uma forma de socializar os
membros do grupo, mas, ao mesmo tempo, eles reificam o caráter de individualidade
que um homem camponês futuramente deve cultivar, já que se espera que um jovem
homem seja um futuro proprietário de seu próprio espaço de cultivo. Isso não ocorre em
Canudos, onde toda a renda das atividades é direcionada para a manutenção do grupo
doméstico e pessoas do mesmo grupo doméstico não trabalham em lugares
individualizados separadamente. Mas esse retrato reforça a singularidade de Canudos
enquanto um espaço de assentamento rural e, de forma paradoxal, retrata a importância
do trabalho como uma forma de aprendizagem.
Pautados na citação de Moura (1988), que fala da flexibilidade do tempo de vida
e de trabalho do universo camponês, vemos que:
A vida familiar, as relações de parentesco e herança, é regida por códigos
flexíveis o suficiente para adaptar as mais diversas relações entre parentes e
as inflexíveis realidades materiais (1988: p. 27).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
70
Neste sentido, chamamos a atenção para o lugar de trabalho ocupado pelas
mulheres da comunidade de Canudos. Apesar do trabalho na caatinga ser um trabalho
árduo e exercido usualmente por homens (adultos e jovens) existem várias mulheres que
trabalham nela. Mas a relação de trabalho das mulheres com áreas de plantio não é uma
característica particular de Canudos, é uma característica de comunidades pesqueiras.
Segundo Woortmann (1991), nestas comunidades os homens estão mais próximos ao
território de água, o que não significa que todos os trabalhos com a agricultura são
praticados por mulheres, mas significa que elas estão presentes em todos eles. As
mulheres estão presentes em diversas tarefas, porém o espaço privado da casa e do
quintal é necessariamente seu. Em Canudos, o trabalho feminino, reconhecidamente,
não é uma ajuda, pois em muitos casos o plantio, tanto no quintal, quanto na roça de
caatinga ou de beira de rio, é responsabilidade das mulheres casadas.
Esta mesma relação hierárquica é mantida na hora da comercialização dos
produtos gerados pelo processo de trabalho familiar. Segundo Heredia (1979), como o
roçado é reconhecidamente um domínio masculino, representado pelo pai de família, a
venda dos produtos também corresponde à esfera de seu controle. Conforme a autora, a
imagem do pai é hegemônica dentro do grupo familiar, pois ele é a pessoa responsável
por sua subsistência, e é esta imagem que deve ser apresentada ao mundo exterior. A
hierarquia do pai de um grupo doméstico também é reificada no âmbito do saber-fazer.
E como argumenta Woortmann (1997), quem governa o trabalho, governa o fazeraprender que surge do saber e de sua transmissão hierárquica.
Apesar de citarmos que a hierarquia paterna é mantida na hora da
comercialização dos produtos gerados pelo processo de trabalho familiar, convém
restabelecermos a concepção de que a lógica do processo de trabalho familiar se
mantém principalmente para o abastecimento das necessidades do grupo. Entretanto, em
um grupo familiar, a produção, além de ser para o consumo próprio, é destinada ao
mundo exterior. Conforme salienta Moura (1988), é praticamente inexistente o número
de agricultores familiares e camponeses que produzem apenas para o seu autossustento,
pois a sua produção escapa ao controle do grupo, propositalmente ou não, das mais
diversas formas, seja pela venda da produção na feira local (questão apresentada no
capítulo 1), seja pela atividade de atravessadores ou pelo escoamento para outros
municípios (no caso do assentamento de Canudos, com atravessadores de mamona e de
peixe). Para Wanderley (1996), atualmente, a economia camponesa não se identifica
simplesmente como uma economia de subsistência. Segundo esta autora, o modo de
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
71
produção camponês se adequa a uma forma particular de agricultura familiar com
determinadas particularidades: 1) por meio de um sistema de policultura-pecuária; 2)
através de estratégias para garantir a continuidade da unidade de produção (gerações
futuras); 3) pela autonomia relativa e pluriatividade.
Godói (1999) também não utiliza mais o termo “economia de subsistência” para
falar do processo de produção e reprodução da economia do campesinato, visto que
“economia de subsistência” traz consigo a ideia do binômio trabalho contínuo/
sobrevivência. Direcionada por uma construção de Sahlins, a autora opta por usar o
termo “economia de aprovisionamento”, pois esta “produção para o aprovisionamento”
fornece à família um “estoque de bens, tem seus limites na produção e não possui
propensão inerente para um trabalho contínuo”. Neste contexto, uma vez que a
plantação não é uma produção para o consumo direto, ela pode ser também uma forma
para alcançar o que se precisa indiretamente, por meio da troca ou da venda. De acordo
com Godói (1999), numa perspectiva materialista ortodoxa ligada à perspectiva da
troca, é o que o grupo doméstico necessita que direciona a sua produção, e não o lucro
que porventura possa ter. Da mesma forma, o interesse pela troca é um interesse de
consumo e não um interesse capitalista (SAHLINS, 1970 apud GODOI, 1999). Na
economia de aprovisionamento, a necessidade de se reservar parte de seus recursos ou
produção para as trocas ou vendas externas, de alguma forma incentiva a introdução de
elementos externos ao grupo, reforçando o que alguns autores (QUEIROZ, 1973;
MOURA, 1988) dizem sobre a importância das feiras e do comércio local. Apesar de
não ser movido pelo puro interesse capitalista de lucro, o mundo rural não é totalmente
autônomo frente às cidades, da mesma forma que não existe um isolamento de um para
com o outro.
A título de exemplo, encontramos em Lídia Cardel a seguinte passagem:
O camponês não é dono só da sua terra, mas de um patrimônio que o deixa
livre para expor a sua moralidade, que tem regras próprias de herança
(sucessão), de trocas matrimoniais e de trabalho, e que não são ditados pelo
capital. (CARDEL; 1992: 36).
Essa colocação inevitavelmente nos remete à obra de Polanyi, intitulada “A
Grande Transformação” (2003). Quando este autor descreve o processo das Leis das
Terras na Inglaterra, ele evidencia o impacto causado pelo surgimento de uma economia
de mercado para a qualidade da vida social na Europa, através de uma comparação com
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
72
a vida das sociedades primitivas, usando os estudos etnográficos de Malinowski sobre a
sociedade Trobriandesa do início do século XX. Para Polanyi, a evolução dos sistemas
econômicos estabelecido pelas transformações históricas, econômicas e sociais do
século XVIII foi a grande responsável pela degradação da vida das pessoas comuns, que
se viram obrigadas a venderem sua força de trabalho para sobreviverem. Dentro dessa
perspectiva, o autor considera a “Revolução Industrial uma catástrofe que ameaçou a
vida e o bem estar da Inglaterra” (POLANYI, 2003: p. 56).
Imbuído de uma aguçada análise marxista, Polanyi reafirma que as mudanças
realizadas por meio de Leis de Cercamento das Terras, associadas às mudanças
acarretadas pelo surgimento das máquinas, levaram a uma mobilização humana antes
pautada na motivação da subsistência para a motivação do lucro. A partir de então, a
substância humana está comprometida com a busca da lucratividade pelos detentores
dos meios de produção e com a degradação da mão de obra em mercadoria. Para tanto,
o autor retorna à descrição de sociedade primitiva em defesa da sociedade ocidental
moderna, já que aquela não possui em sua essência a propensão à barganha, permuta ou
troca. A valorização do estudo das sociedades primitivas é importante, segundo Polanyi,
para compreender o homem como um ser social, ou seja, como um ser que age de
acordo com suas necessidades sociais e não de acordo com seus interesses particulares.
Para ele, o estudo das primeiras civilizações permite compreender que o homem em
seus sistemas produtivos age por motivações sociais e não econômicas. A ideia de lucro
não está presente em uma sociedade primitiva, e nesse ponto ele discorda de Adam
Smith, pois sem motivação de lucro não há propensão à barganha. Não existe o
princípio de se trabalhar por uma remuneração; as sociedades primitivas possuem, sim,
dois princípios de comportamento, não associados somente à economia: reciprocidade e
redistribuição (POLANYI, 2003). Segundo o autor, o princípio da reciprocidade diz
respeito ao dar e receber baseado na premissa de que se oferece hoje para se ganhar
amanhã. Uma comunidade primitiva desenvolve seu trabalho com o intuito de prover
todas as famílias que compõem essa sociedade, já que a ideia de bem-estar comum se
sobressai à ideia de bem-estar individual. Outro princípio praticado pelas sociedades
primitivas é o princípio da domesticidade, que possui a mesma essência dos outros dois:
produzir com vista ao bem comum. A domesticidade se difere dos outros por estar
ligada a grupos fechados, ou seja, na produção que visa a satisfazer as necessidades
internas do grupo. Assim, a grande transformação proporcionou a entrada do capital no
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
73
campo, o que gerou a subordinação das relações camponesas, entretanto, não fez com
que elas desaparecessem. Esta é uma das várias faces contraditórias do Capital.
Martins (1990), ao analisar a realidade brasileira, aponta para a mesma situação,
pois embora os camponeses possam estar subordinados ao mundo capitalista – afinal,
conforme pontuamos anteriormente, eles produzem para um mercado (local e/ou
regional) e adquirem mercadorias produzidas fora de suas comunidades –, eles
conseguem manter um imaginário de autorreprodução.
A minha hipótese é a de que o capitalismo, na sua expansão, não só redefine
antigas relações, subordinando-as à reprodução do capital, mas também
engendra relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias a
essa reprodução (MARTINS, 1990: 19 e 20).
Em consonância com o que é trazido por Polanyi (2003) e Martins (1990), o
modelo analítico de Chayanov, tratado em Wootmann (2001), aponta para a mesma
questão: a economia camponesa é diferenciada, mesmo estando subordinada à economia
capitalista. Segundo Chayanov, o campesinato é caracterizado interiormente, no seu
sistema produtivo, por duas questões centrais: ausência de salários e o fato da unidade
camponesa ser, ao mesmo tempo, uma unidade de produção e uma unidade de consumo.
A economia familiar, para Chayanov, é baseada idealmente na busca do equilíbrio entre
consumidores e produtores, ou melhor, entre a satisfação das necessidades familiares e a
penosidade. Quanto maior a razão consumidores/produtores, mais alta é a intensidade
do trabalho. Segundo o modelo analítico de Chayanov, a lógica da atividade econômica
camponesa está baseada no ajustamento da família com as suas necessidades e,
consequentemente, é oposta à economia capitalista. Contudo, Chayanov, ao formular
sua teoria sobre um tipo específico de economia – unidade familiar camponesa – não
considera aspectos exteriores à unidade familiar. A visão de Chayanov, como
economista, prioriza os aspectos econômicos, independente das condições exteriores.
Características como trabalho familiar e a não mensuração do tempo de trabalho
em horas trabalhadas fazem com que Martins (1990) afirme que não é possível
correlacionar camponeses à categoria de classe social. Para o autor, os camponeses são
um grupo social.51 A existência de um tempo autônomo da família, assim como o
51
Karl Marx em “Rascunhos da Carta à Vera Sassulitch de 1881”, traduzida por Edgard Malagodi e
Rogério Silva Bezerra, também define os camponeses como grupo social: “[...] As comunidades
primitivas não são todas talhadas segundo o mesmo padrão. Seu conjunto forma, ao contrário, uma série
de agrupamentos sociais que diferem de tipo e idade e que marcam fases de evolução sucessivas. Um
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
74
controle do processo de trabalho, são dimensões básicas da liberdade desse grupo
familiar, e conforme Wootmann (1990) é o controle sobre a terra, o trabalho e o tempo
que caracteriza o campesinato histórico como um grupo social. Embora às vezes,
temporariamente, o domínio sobre o tempo de trabalho seja perdido – já que o
camponês precisa desenvolver atividades remuneradas em outros lugares durante as
suas migrações sazonais ou circulatórias –, ele nunca se vê como um proletariado, pois
essa atividade é apenas uma estratégia de sobrevivência e de reprodução da unidade
familiar. Garcia Jr. (1989) trouxe subsídios sobre a temática de migração como
estratégia quando identificou o sul (urbano) como parte das estratégias de reprodução
das famílias agregadas da região da Zona da Mata pernambucana. Com limitadas
possibilidades de reprodução, quanto à possibilidade de adquirir lote na região de
origem, a alternativa para muitos destes lavradores, segundo seu estudo, foi o Sul, onde
o desenvolvimento industrial atraiu muitos camponeses que se tornaram operários, que,
através da permanência temporária, conseguiram adquirir dinheiro suficiente para
retornarem, posteriormente, para o nordeste, a fim de reproduzirem a sua condição de
camponês/agricultor.
Tanto quanto etnografias camponesas ou trabalhos teóricos de sociologia rural, a
literatura brasileira também pode ser uma fonte riquíssima para a apreensão de uma
realidade52 rural que retrata a existência de terras comuns (soltas, largas), sistema de
agregação e estratégia de migração.
A fazendola onde nasci e cresci meu pai montou-a na glebinha que herdara
de meu avô. As terras no chapadão eram “em comum” com vários outros
fazendeiros da beira da Serra do Cafezal [...] Meu pai não era nenhum
latifundiário embora suas terras lhe sobrassem, pois não cultivava nem a
metade delas [...] No caso de meu pai, de minha avó Maria Floriana e de
meu tio Ponciano Alves de Lima, havia um atenuante: eles jamais cobravam
renda da terra cultivada pelos agregados. Forneciam um leitinho quando, no
tempo das águas, havia fartura de leite. Permitiam que criassem uns
porquinhos para o gasto, galinhas, e podiam até ter no pasto um ou dois
cavalos de sela. Quando o agregado merecia, isto é, quando era um bicho no
serviço, era-lhe até permitido criar umas vaquinhas [...] Quando tudo corria
desses tipos, que convencionamos chamar de comuna agrícola compreende também o tipo de comuna
russa [...].”
52
A “realidade” trazida nesse estudo de caso é vista por intermédio da aplicação de um sistema de
métodos e cortes epistemológicos. Não ignoramos que o corte epistemológico fragmenta o objeto de
estudo de suas relações e nesse processo o modifica. Assim, o fenômeno estudado não é a “realidade
empírica” em si; o “objeto” de estudo não é objeto e sim “sujeito” dotado de complexidade. Dessa forma,
acreditamos em uma “realidade” projetada, não só por meio da observação direta, pela análise das
narrativas dos informantes, mas também por intermédio de fontes literárias.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
75
bem, iam vivendo como Deus era servido, mas se acontecia de caírem em
desgraça com o fazendeiro, tinham que sair da fazenda às pressas, iam
embora com uma mão adiante e outra atrás. Sem terem tempo de colher a
rocinha ou desmanchar a mandioca, largavam tudo e iam pedir agregação
em outra fazenda [...]
- Vocês vieram de que lugar da Bahia?
- Nós viemos do sertão. De um lugar chamado santo Antonhe das Tabocas,
perto de Sant`Ana do Brejo – respondeu uma delas. – Fica pra lá de
Barreiras. O meu marido é dos Cocos e o marido da minha irmã é de
Correntina [...]
- Como é que vieram pra Goiás? De Caminhão?
- Nós viemos foi uns de pé e outros em lombo de jumento, minha irimã. Foi
uma viagem dura, mas Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa ajudou e nós
conseguimo chegar.
- Como está lá o problema da seca?
- Viche, Nossa Senhora, minha irimã! Aquilo lá ta duro! Faz dois anos que
não chove e as águas dos rios tão secando tudo. Quem vive aqui nestas terras
do Goiás não pode nem maginar cuma é que anda lá pras bandas do meu
sertão da Bahia [...] (LIMA, 1988: p. 25, 50 e 85)
Sobre essa questão da migração, Woortmann (1990) salienta que essa estratégia,
em muitas ocasiões, pode não ser um movimento linear, mas uma reconstrução da
tradição.
Um movimento que se dirige a uma dimensão da modernidade pode ser, ele
mesmo, necessário para que haja um outro movimento, o de reconstruir a
tradição [...] o apego à tradição pode ser o meio para sobreviver à grande
transformação: manter-se como produtor familiar em meio ao processo mais
geral de proletarização ou de empobrecimento. A tradição, então, não é o
passado que sobrevive no presente, mas o passado que, no presente, constrói
as possibilidades do futuro (WOORTMANN; 1990: p. 16-17).
Migrar, para este autor, pode não ser apenas uma estratégia de sobrevivência,
mas uma forma de reprodução da unidade familiar, pela reconfiguração da tradição. A
reconstrução dessa tradição se fará, por exemplo, pela aquisição de instrumentos de
trabalho (enxada, barco) ou meios de produção (aluguel do trator para aragem de
lugares de plantio) que se estabelecerá pela compra em espécimes. Essa possibilidade de
reconstrução, ou seja, da produção para o sustento da unidade familiar, por meio do
trabalho familiar, se norteará para o comércio (em Canudos temos a mamona e o
pescado), que por sua vez sustentará o consumo de outros produtos. Cardel (1992)
também assegura que, em muitos grupos camponeses, a migração (rural/urbana)
temporária do herdeiro do patrimônio é necessária para a manutenção da condição
camponesa. A mesma autora, em estudo sobre uma comunidade camponesa do
semiárido baiano, indica a rota mais usual dessa migração:
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
76
A migração para o “Sul” do país, principalmente para a cidade de São Paulo,
foi a resposta encontrada pelos habitantes de Olhos d’Água para estas novas
necessidades (CARDEL; 2003: p. 4).
A migração sazonal e circulatória também acontece no assentamento de
Canudos. Muitas pessoas migram à procura de estudo, trabalho temporário ou sazonal,
principalmente para cidades como Barreiras/BA e São Paulo53. Em Canudos, a rota
indicada é São Paulo, mas algumas pessoas migram sazonalmente para a cidade de
Barreiras a fim de trabalharem no período da colheita da soja e do algodão. Entretanto, a
grande parte dos migrantes (filhos e cônjuges) migra em direção ao sul, e é com o envio
do dinheiro destes membros que a unidade familiar permanece no assentamento
complementando sua renda mensal, ou seja, efetuando a compra de produtos como
querosene, açúcar, sal, arroz, medicamentos, ou realizando melhorias na casa de
morada.
3. TERRITÓRIOS SOCIAIS
3.1. Territórios sociais e o Estado
Um autor que fala da problemática das políticas públicas que criam uma série de
territórios sociais que não correspondem aos anseios dos grupos rurais brasileiro é o
antropólogo Paul Little (2002). Na sua visão, a diversidade sociocultural do Brasil é
acompanhada de uma extraordinária diversidade fundiária – “terra de preto”, “terra de
índio”, “terra de santo”. Essa diversidade de formas fundiárias é mantida por
comunidades de babaçueiros, caboclos, caipiras, campeiros, jangadeiros, pantaneiros,
pescadores artesanais, praieiros, sertanejos e varjeiros. Deste leque de categorias temos
“populações”, “comunidades”, “povos”, “sociedades”, “culturas”, e cada uma tende a
ser acompanhada por um dos adjetivos: “tradicionais”, “autóctones”, “rurais”, “locais”,
“residentes”, os quais não correspondem à abrangência e à diversidade dos grupos que
engloba.
Ainda segundo Little, nos últimos vinte anos, outra reconfiguração agrária foi
colocada em prática: a demarcação e a homologação das terras indígenas, como também
o reconhecimento e a titulação dos remanescentes quilombolas, e o estabelecimento das
53
Que conforme Garcia Jr. pode significar a região sudeste e sul. Sobre esse assunto, ver: Garcia Jr.
(1989) e Cardel (2003).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
77
reservas extrativistas. E a reforma agrária original, da luta por uma distribuição mais
equitativa das terras produtivas por parte dos trabalhadores sem terra e outros
despossuídos, ficou estreitada. Para ele a reforma agrária deveria ser tratada pela
perspectiva fundiária e pela questão territorial desses grupos, ao invés dos enfoques
clássicos do campesinato, etnicidade ou raça, conceitos que engessam a existência
desses grupos a um único fator. Mesmo não ignorando suas diferenças, a perspectiva de
territorialidade pode mostrar semelhanças e vinculá-las às suas reivindicações e lutas
fundiárias. Para isso, Little (2002) sugere que a territorialidade deve ser vista como o
esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com
uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
território54. O que implica que qualquer território seja visto como um produto histórico
de processos sociais e políticos. Para analisar o território de qualquer grupo, portanto,
precisa-se de uma abordagem histórica que trate do contexto específico em que surgiu e
dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado. Questões como essa não foram
levadas em conta para a criação do espaço artificial do assentamento de Canudos. Essa
não é uma política adotada pelas instituições governamentais responsáveis pela reforma
agrária, quando o mérito da intervenção não é o enfoque da demarcação de um território
étnico.
Conforme alega o autor, se percorrermos os diversos processos de expansão de
fronteiras no Brasil colonial e imperial − a colonização do litoral no século XVI,
seguida por dois séculos das entradas pelos bandeirantes; a ocupação da Amazônia e a
escravização dos índios nos séculos XVII e XVIII; o estabelecimento das plantations
açucareiras e algodoeiras no Nordeste nos séculos XVII e XVIII; a expansão das
fazendas de gado ao sertão do Nordeste e Centro-Oeste e as frentes de mineração em
Minas Gerais e no Centro-Oeste, ambas a partir do século XVIII; a expansão da
cafeicultura no Sudeste nos séculos XVIII e XIX – poderemos entender como cada
frente de expansão produziu um conjunto próprio de choques territoriais, e como isto
provocou novas ondas de territorialização. Os processos de territorialização surgem em
“contextos intersocietários” de conflito. Quanto a Canudos, é interessante relembrarmos
que o projeto do assentamento foi implantado exatamente em uma área de intensa
54
Estamos pensando no conceito de território como uma extensão territorial, com recursos naturais, com
símbolos que representam a ocupação de longa data (cemitérios, roças antigas, caminhos, mitos e lendas);
elementos centrais para a produção e a reprodução social e simbólica do modo de vida das comunidades
centenárias. Território não como algo puramente real, mas imaginário e simbólico. Sobre esse tema, ver
Diegues (2005).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
78
concentração de terras e em um município onde houve e há fortes confrontos entre
fazendeiros, posseiros, comunidades centenárias55 e comunidades de fundo de pasto
pelo direito ao uso da terra.
A resistência ativa às invasões por parte da expansão das fronteiras representa
uma resposta comum: a história está repleta de casos de rebeliões, fugas, luta armada e
alianças entre quilombos e povos indígenas. Mas conforme Little (2002), se, por um
lado, existem múltiplas formas de resistência, por outro, existem também processos de
acomodação, apropriação, consentimento e influência mútua. Essa influência sobre
esses grupos também não significa que eles percam sua particularidade. Como exemplo,
no trabalho de Reis (2007), pode-se observar como os princípios de identidades estão
ligados às formas de apropriação dos espaços históricos e míticos em uma comunidade
de fundo de pasto denominada Capivara, localizada no Município de Monte Santo-BA,
onde as terras devolutas e os mananciais se transformaram em lugares de luta e de
reprodução social. As formas de uso comum da terra empregam uma lógica econômica
específica resistente/diferente da lógica do capitalismo. O significado disso, para a
autora, é que a sobrevivência de territórios como esse se deve, em parte, à estratégia da
invisibilidade, tanto simbólica quanto social. Mas a invisibilidade de territórios ou
grupos como esse também gerou a instalação hegemônica de formas de territorialidade
pensadas apenas pelo Estado Nação. No caso do assentamento de Canudos, o Estado
sobrepôs, em uma área de uma comunidade centenária, um território legal de
assentamento federal, com novas formas de uso da terra (área irrigada e coletiva) e de
espacialidade territorial (lotes e quintais demarcados). E conforme a própria autora
expõe, como os territórios tradicionalmente ocupados se fundamentam no arcabouço da
lei consuetudinária,56 raras vezes reconhecida e respeitada pelo Estado, as articulações
desses grupos são marginais aos princípios do Estado.
55
Usamos o termo comunidades centenárias em substituição ao conceito de comunidade ou sociedade
tradicional, por orientação da Profa. Dra. Lídia Maria Pires Soares Cardel, que salienta que o termo
tradicional engessa a possibilidade de mudança; mas ressaltamos que ambos os conceitos também acabam
engessados pela ideia de temporalidade. Particularmente, o conceito “centenária” tira a perspectiva de
congelamento trazido pelo conceito “tradicional” e adiciona historicidade às comunidades camponesas. É
neste sentido que a orientadora advoga que comunidades “centenárias”, para um país pós-colonialista, é
um conceito mais denso do que o conceito “tradicional”, que nos remete ao exotismo da atemporalidade.
56
A Lei Consuetudinária é um conjunto de normas não escritas, consagradas pelos usos e costumes
tradicionais do povo, praticado e sem ofensa à lei e à ordem pública. Ele é baseado na ideia de que a terra
e os frutos do trabalho pertencem a quem nela trabalha. O direito costumeiro vigente no imaginário desses
agricultores, segundo Martins (1993), tem relação com a concepção de “terra livre” onde o direito de usar
e o direito de ter eram separados. O direito costumeiro teve vigência até a promulgação da Lei das Terras,
e se baseava na precedência dos direitos do rei, que tinha a propriedade de todas as terras
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
79
Little (2002) chama a atenção para o fato de estarmos tratando de diversas
populações centenárias com variadas “formas comunitárias de apropriação de espaços e
recursos naturais” baseadas num “conjunto de regras e valores consuetudinários, da ‘lei
do respeito’, e de uma teia de reciprocidades sociais onde o parentesco e o compadrio
assumem um papel preponderante”. Entre as comunidades de ribeirinhos da Amazônia e
os pescadores artesanais do litoral, existem formas de apropriação articuladas em função
de seus usos, significados e conhecimentos das águas (DIEGUES, 1996 apud LITTLE,
2002: p. 9). No caso desses últimos, o usufruto coletivo de áreas determinadas estendiase para além da terra para incluir ‘territórios marinhos’. Para esses grupos, a marcação é
“um elemento fundamental à apropriação e ao usufruto do mar pelos pescadores. A
familiaridade de cada grupo de pescadores com uma dessas áreas marítimas cria
territórios que são incorporados à sua tradição. Na mesma medida em que é um recurso
ou um espaço de subsistência, o território passa também à noção de lugar mediante a
qual os povos marítimos definem e delimitam o mar” (MALDONADO, 1993 apud
LITTLE, 2002: p. 10) – elementos que fundamentam os territórios sociais e que muitas
vezes não são levados em conta pelas políticas públicas. Outro elemento fundamental
para pensarmos territórios sociais é a diferenciação entre espaço e lugar. Diversos
grupos sociais criam vínculos diferenciados com ambientes biofísicos, e existe uma
distinção entre o ‘espaço’, como uma categoria que traz a noção de abstrato e genérico,
e o ‘lugar’, que traz a ideia de concreto e habitado. Essa noção de lugar também se
expressa nos valores diferenciados que um grupo social atribui aos diferentes aspectos
de seu ambiente. Para Little (2002), ser de um lugar não requer uma relação com
etnicidade ou raça (que tendem a ser avaliadas em termos de pureza), mas é uma relação
com um espaço determinado. Ser de um lugar não passa pela noção de originalidade,
isto é, do fato de ser ou não o primeiro grupo a ocupar uma área. Ser de um lugar
significa pertencer a um lugar, significa que esse lugar representa sua verdadeira terra.
Os territórios dos povos tradicionais, conforme a vasta literatura sobre este tema,
se fundamentam em décadas ou séculos de ocupação efetiva, e a longa duração dessas
ocupações fornece um peso histórico às suas reivindicações sociais. No entanto, a
expressão dessa territorialidade não reside na figura de leis ou títulos, mas se mantém
viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora dimensões simbólicas e
identitárias na relação do grupo com sua área. A maneira específica como cada grupo
constrói sua memória coletiva dependeria, em parte, da história de migrações que o
grupo realizou no passado. Voltando ao nosso objeto de pesquisa, o grupo de moradores
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
80
de Canudos é formado por pessoas nascidas na comunidade, por famílias da região de
Sobradinho, de Xique-Xique e da região dos Brejos do município de Barra. Como vêm
da mesma região, são indivíduos que trazem na memória a distinção por migrarem
(característica do campesinato nordestino), mas trazem fortes lembranças da relação
com o rio São Francisco e com o modo de vida beradero. A memória coletiva desse
grupo é forjada no trabalho com a terra na chuva e na vazante, na labuta entre a caatinga
e o lameiro, na plantação de sequeiro e de ilha, na pesca ritmada pela cadência das
águas do rio e na vida de ir e vir entre os espaços de vida e de trabalho.
Segundo Little (2002) vivemos hoje uma onda de territorializações, porque
vivemos novas pressões territoriais. Particularmente, não cremos que elas um dia
deixaram de existir. Mas, como argumenta o autor, o alvo dessa onda consiste em forçar
o Estado a admitir a existência de distintas formas de expressão territorial – incluindo
distintos regimes de propriedade – dentro do marco legal único do Estado. Devido à
grande diversidade de formas territoriais desses povos, houve a necessidade de ajustar
as categorias às realidades empíricas e históricas do campo, em vez de enquadrá-las nas
normas existentes da lei brasileira. São os casos das terras indígenas e dos
remanescentes das comunidades de quilombos. Nesses exemplos, conforme o autor, o
conceito jurídico de reconhecimento fundiário estabelecido pelo Estado tende a se
confundir com os conceitos político e etnográfico, formando parte de um mesmo
processo de constituição e resistência dessas comunidades. Mas não podemos esquecer
que as categorias territoriais utilizadas pelo Estado tiveram e têm finalidades de controle
social, já que as categorias utilizadas podem servir para a reafirmação social e
territorial. Assim, há o risco de fundirmos o lado conceitual com o lado pragmático e
permitir que as categorias jurídicas substituam as categorias etnográficas.
Por outro lado, apesar dos avanços frente ao reconhecimento de distintas formas
de expressão territorial ou de regimes de propriedade, como é o caso das terras
indígenas e dos remanescentes das comunidades de quilombos, o Estado brasileiro
ainda tem dificuldades frente ao reconhecimento de formas territoriais de grupos sociais
rurais invisibilizados57.
Neste sentido, por mais que Canudos seja uma comunidade rural monitorada
pelas políticas públicas fundiárias, sua organização social ainda é invisível aos olhos do
57
Grupos extrativistas ou povos tradicionais (licurizeiros, castanheiros, açaizeiros) impotentes frente à
destruição dos biomas que são seus territórios e meios de reprodução de vida; pescadores artesanais;
marisqueiras; camponeses sertanejos de fundo de pasto; ou seja, uma infinidade de sociabilidades que
emergiram em profusão nas últimas duas décadas (CARDEL, 2010).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
81
Estado. O que intentamos desvelar com nossa análise é entender como os sujeitos
sociais invisibilizados de Canudos veem, pensam, ocupam e controlam os seus
territórios, através dos lugares de trabalho e em que vivem, das suas atividades, das suas
divisões de trabalho e da sua disciplinarização, bem como das conexões com a
sociedade dominante envolvente.
3.1.1. Territórios sociais, simbólicos e a relação de pertencimento
Não é possível pensarmos o assentamento de Canudos – fundado em cima de
uma comunidade centenária, representada por sujeitos sociais que se identificam com a
pesca artesanal e o plantio familiar – de forma dissociada, pois a atividade da pesca e da
agricultura se fazem presentes concomitantemente. Para pensarmos a forma de
apropriação dos territórios de terra e água em diferentes comunidades, inicialmente
vamos recorrer a Diegues. Para esse autor (DIEGUES, 2005), existem diferentes
maneiras das populações se apropriarem dos territórios. Para as sociedades, que ele
denomina de “sociedades tradicionais”, a água é um bem de uso essencial e, em geral,
coletivo. No entanto, o uso da água tem dimensões conflituosas e políticas – a
construção de sistemas de irrigação é um exemplo de atividade geradora de conflito. Em
algumas situações, existem conflitos entre formas tradicionais de apropriação social dos
espaços aquáticos, baseados no direito consuetudinário, e a apropriação mercadológica
dos bens naturais. Para muitas comunidades de pescadores artesanais, o acesso à pesca é
aberto somente aos membros da comunidade, que mantêm entre si relações de
parentesco, pois a água, incluindo rios e lagos, faz parte de um território e de um modo
de vida que serve de base a identidades específicas.
Nesse trabalho, o autor salienta que “pescadores artesanais” têm um modo de
vida baseado principalmente na pesca, ainda que exerçam outras atividades econômicas
complementares, como o extrativismo vegetal e a pequena agricultura. A título de
exemplo, o informante P.F.S. (pescador associado à Colônia) também demonstrou uma
ligação maior com a pesca, quando afirmou que possuía áreas de plantio, mas estas lhes
davam muito pouco retorno. A partir de conversas com nossos informantes, pode-se
afirmar que existe uma relação de distanciamento, fundamentada, não só na “pouca
renda”, mas também no sentimento de pertencimento a um destes territórios. A ideia de
pertencimento está retratada na seguinte declaração: “Eu sô mais pescadô. Eu sô mais
pexe. Eu pesco, eu sô mais pescadô”. Conforme Diegues (2005), nestas mesmas
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
82
comunidades existem indivíduos mais ligados à terra, que vivem da junção das
atividades agrícolas realizadas nas várzeas dos rios, do extrativismo e da pesca,
respectivamente. Essas atividades simbióticas também foram encontradas em campo
quando constatamos a transversalidade das atividades da pesca e da lavoura no
assentamento de Canudos, estabelecendo uma complementaridade entre o período da
pesca e da atividade perene do plantio da mamona. Assim como muitos informantes
associados à colônia de pescadores apresentaram um sentimento de pertencimento
voltado para a pesca, o sentimento de pertença à terra também foi sugestionado por
outros informantes. Muitos assentados da Comunidade de Canudos, que não estão
ligados à pesca, afirmam que “o forte daqui é mamona”. Canudos se apresenta, desta
forma, como uma comunidade dividida e imersa numa realidade dual e conflituosa,
onde a identidade do assentado e do morador ora se liga à agricultura e à ancestralidade;
ora de liga à atividade da pesca e às lembranças do deslocamento sofrido por parte de
seus moradores.
No entanto, comunidades pesqueiras artesanais apresentam uma particularidade
que a distingue do campesinato tradicional, e que passa despercebida pelos técnicos
responsáveis pelo gerenciamento das políticas públicas voltadas para a agricultura
familiar e a pesca artesanal. Estas atividades são eminentemente simbióticas em
comunidades tradicionais de beira-rio ou beira-mar, como observa Woortman:
Quando se fala de comunidades pesqueiras, imagina-se muito
frequentemente, atividades produtivas e agentes sociais relacionados apenas
à pesca. Por outro lado, os estudos relativos a essas comunidades tendem a
privilegiar o ponto de vista do homem, isto é, do pescador. No entanto, não é
incomum que nessas comunidades haja também agricultura, além da pesca,
como é o caso do grupo estudado por Peirano (1975) no Ceará e por Beck
(1981) em Sta. Catarina, [...]. Em vários grupos, como o estudado por Maués
(1977) e aqueles que são o foco deste trabalho, a agricultura é pensada como
atividade feminina. Privilegiar o ponto de vista masculino seria negligenciar
as atividades agrícolas que constituem o domínio das mulheres
(WOORTMANN, 1991: p. 2).
Em Canudos essa situação não é de todo distinta. Entretanto, o trabalho na
caatinga ou nas roças de ilha ou beira de rio não são atividades exclusivas do domínio
feminino. As atividades realizadas nas roças de caatinga e nas roças de lameiro são
desenvolvidas, tanto por mulheres, como por homens. De acordo com Woortmann
(1991), nas comunidades pesqueiras os homens estão mais próximos ao território de
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
83
água; porém, em Canudos, mesmo os homens que possuem uma relação de
pertencimento maior com a pesca realizam atividade de plantio, principalmente nas
roças de ilha (lameiro) que se localizam em locais próximos aos seus pesqueiros. Como
a roça de mamona também tem uma importância significativa na renda destes grupos
familiares, em momentos de acúmulo de trabalho, eles também participam da colheita
desta oleaginosa. Portanto, com algumas exceções, pensar os assentados de Canudos
enquanto identificados simplesmente como pescadores artesanais ou como lavradores
ou agricultores familiares seria um erro. As atividades variam conforme o ciclo das
enchentes ou vazantes, da quantidade de pescado e conforme o preço ofertado pela saca
de mamona. De acordo com a narrativa do Sra. M.A.R., a mamona só é trabalhada por
sua família se o preço for compensador - “Quando tá barata demais, eles nem vão lá.”
Quando a oferta de mamona é maior e, consequentemente, o preço da saca cai, nossa
informante alegou que seus familiares ganham mais no rio - “Vou na roça de mamona
fazer o quê? Não ganho nada, ganho mais pescando”.
No trabalho de pesquisa realizado no rio Grande do Norte, Woortmann (1991)
salienta que existem atividades de ajuda recíproca entre homens e mulheres, ligadas à
terra e à água. No caso da terra, os homens participam do preparo do solo das terras
soltas. No caso da água, as mulheres são responsáveis pela limpeza e pela conservação
do pescado. Havia uma complementaridade onde a ajuda de um viabilizava o trabalho
do outro. Mas, segundo ela, os homens da comunidade do Rio Grande do Norte, se
perguntados se trabalhavam ou não na roça, a resposta era que apenas ajudavam. Em
Canudos isso não ocorre. Quando indagados sobre esta atividade, a maioria dos homens
respondeu que trabalhavam no rio e na roça. Alguns salientam que têm mais prazer em
estar no rio pescando ou nas roças de lameiro, enquanto outros afirmam ter prazer
apenas na “labuta com a terra”, preferindo o plantio na caatinga ou nas roças de ilha.
Mas como não negam suas atividades de plantio, tanto de caatinga quanto de ilha,
sugerimos que a bipolaridade (terra x água) em Canudos é mais diluída.
No assentamento de Canudos, o trabalho feminino, reconhecidamente, não é
uma ajuda, mas é um trabalho. Um trabalho complementar ao trabalho masculino.
Contudo há ressalvas, pois existem homens que optaram por não trabalhar com o
plantio e viver apenas da pesca. O único espaço de domínio da mulher é a casa/quintal.
As atividades desenvolvidas dentro deste espaço, geralmente, são negligenciadas como
trabalho. O fato do trabalho feminino em Canudos não ser considerado uma ajuda, não
significa que a atividade desempenhada pela mulher tenha a mesma importância
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
84
hierárquica quando desempenhada pelo homem. Apesar da visibilidade do trabalho
feminino em várias atividades, existe uma evidente hierarquia pautada em gênero.
Segundo o imaginário dominante do grupo, os homens ainda capinam a roça melhor e
mais rápido. Com relação às atividades comerciais, são os homens que decidem para
quem e por quanto venderão a mamona colhida pela suas mulheres e filhos.
A hierarquia também pode ser vista nessa bipolaridade entre os territórios de
terra e água, quando a temática é alimentação. A autora afirma que existe uma relação
hierárquica entre o trabalho e o produto do mar ou da terra, pois, mesmo havendo uma
complementaridade entre a alimentação originada desses dois territórios, o peixe era
mais valorizado culturalmente como alimento, ou seja, ele era um alimento por
excelência, correlatamente à construção social diferenciada dos gêneros. Em Canudos
esta diferenciação sobre a valorização alimentar também ocorre. Mesmo a mulher e o
homem trazendo da roça a mandioca, a batata, o feijão, ou mesmo havendo ovos para
serem feitos, o peixe é valorizado como um alimento mais forte. Conforme afirma
Woortmann, se o mar é percebido como um lugar de trabalho do homem, a terra é seu
lugar de lazer e descanso; é na terra que ele repousa, que festeja e que ingere bebidas
alcoólicas. Em Canudos, mesmo que o homem trabalhe na roça por alguns dias,
colaborando com a mulher, haverá dias que ele se recusará a trabalhar apenas para beber
e jogar baralho, dominó, ou mesmo apenas “jogar conversa fora” nas vendas da
comunidade.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
85
Foto 2: Morador que se identifica como pescador, pois optou por não trabalhar com roças. Os peixes
menores, que segura com a mão direita, irá consumir; a pescada grande irá vender. O feijão e a farinha
que consomem junto com o peixe são provenientes do pagamento do Bolsa Família.
(Autora: Rejane Oliveira, 2010)
Ainda sobre o estudo de caso realizado por Woortmann (1991), esta autora
afirma
que
existe
uma
superioridade
ideológica
do
homem,
expressa
na
autorrepresentação do grupo do Rio Grande do Norte, de maneira contrastiva em face de
outros grupos de agricultores. Mas, não obstante, há uma complementaridade entre os
domínios masculinos e femininos, que foi se perdendo em função do advento do
turismo na região. Com o turismo, as terras soltas desapareceram e a atividade da
mulher com a agricultura e com o extrativismo foi altamente impactada. A mulher se
tornou cativa, pois passou a depender de trabalhos de temporada nas casas de veraneio,
enquanto o homem continuou em liberdade no mar. Esse processo de mudanças mudou
o status feminino local. Antes da indústria turística e do cercamento das terras, a relação
masculino/feminino era de complementaridade. Na atualidade, a relação da mulher é de
completa dependência com relação ao mundo masculino. Este fato acarretou sérios
problemas, como o aumento da violência doméstica, da prostituição das jovens, e
também da gravidez precoce com filiação desconhecida.
Observamos em Canudos que a relação de complementaridade ainda é
fundamental para a constituição social, cultural e econômica desta comunidade. Há não
apenas uma complementaridade entre os territórios da terra e da água, como também
uma complementaridade entre os domínios masculinos e femininos. Entretanto, mesmo
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
86
havendo uma complementaridade nas comunidades pesqueiras e agricultoras, nossas
observações nos levam a afirmar a existência de uma identidade mais demarcada da
mulher com a terra, que, por sua vez, impulsiona a manutenção do patrimônio familiar
por meio desta atividade.
Estudos apontam (GARCIA, 1983; WOORTMANN, 1991; WOOTMANN,
1997) que as mulheres têm um papel importante em relação aos arranjos internos do
grupo doméstico e da família nuclear e extensa. O papel estrutural da mulher no interior
das comunidades camponesas estabelece estratégias, às vezes invisíveis aos olhos dos
técnicos governamentais, para a preservação do patrimônio familiar. Outra dinâmica
que ressalta a importância do papel da mulher na preservação da reprodução do grupo
social ou da preservação do patrimônio é a evidenciação da estratégia de pluriatividade
através das atividades com a terra em conjunto com atividades não agrícolas58.
Foto 3: Moradora colhendo mamona para vender a um atravessador da comunidade. Com o dinheiro,
comprará caderno para o filho em idade escolar. O caderno será comprado na própria venda do
atravessador. (Autora: Rejane Oliveira, 2010)
Ramalho (2001) é outro autor que retrata como o sentimento de pertencimento
entre pescadores artesanais com o território de água são construídos. Para ele, é
58
Admite-se que a agricultura familiar no nordeste não sobrevive, exclusivamente, das atividades
agrícolas, mas, de um sistema de atividades geradoras de renda e que fazem parte das estratégias de
reprodução. Trabalhos não agrícolas referem-se a situações sociais em que os indivíduos que compõem
uma família com domicílio rural passam a se dedicar ao exercício de um conjunto variado de atividades
econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura ou ao cultivo da terra, e cada vez
menos executadas dentro da unidade de produção. (SCHNEIDER, 2003: 101). Sobre esse assunto, ver:
Schneider (2003) e Schefler (2007).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
87
essencial entender o sentimento de pertença como maneira de posse (individual e
comunal) das águas, pois é essa combinação, em relação à posse, que origina as formas
de usos do território. Criar uma relação de pertencimento com o mar (no caso de
Canudos, com o rio São Francisco) é criar e manter uma comunhão com esse recurso
ecológico, traduzida na habilidade do pescador em descobrir os caminhos mais
propícios para se tirar o que as águas têm de melhor a oferecer. De acordo com
Ramalho (2001), existem diferenças quanto à noção de posse de um território por parte
dos camponeses em relação aos pescadores artesanais, pois os pescadores lidam com
um recurso de acesso livre e móvel (mar de dentro e mar de fora)59. Existem, por
exemplo, locais de uso comum que são conhecidos e usados por todos os homens –
como um bem comunal. Mesmo que o segredo sobre um novo pesqueiro e sobre
melhores técnicas não possa ser guardado por muito tempo, tentar guardá-lo é
importante para o mestre e/ou sua equipe, revelando assim seu talento. Na pesca, esses
segredos só são revelados, sobretudo, a parentes, o que já caracteriza uma grande
diferença entre a teoria do campesinato aplicada ao território da água, pois o saber do
camponês não é um segredo, ele não é guardado, e sim repassado.
Em conformidade com Diegues (2005), o trabalho de Ramalho (2001) relata que
os mestres são quem estruturam os acordos morais e as regras de uso das águas nas
comunidades pesqueiras (usos comuns e/ou individualizados). Porém é necessário
ressaltar que o uso comum não significa falta de conflitos. Como no assentamento de
Canudos, na comunidade estudada por Ramalho, na hora de sair para o pesqueiro, vale
quem chegar primeiro. Quem tiver a primazia da chegada tem o direito de começar a
soltar a rede primeiro, e só depois sair para que a outra equipe de pescadores
(geralmente dois) possa fazer uso. Regras também existem para o uso de barcos ou
redes e, assim como no campesinato, elas se baseiam em parentesco, amizade,
cooperação, hierarquia e compadrio. Ou seja, existe uma ética pesqueira. Segundo
Maldonado (1994), com a descoberta do segredo, o mar de dentro e o mar de fora
deixam de ser espaços e passam a ser lugares, porque o espaço representa amplitudes
sem demarcações claras. É a partir dessa territorialidade que o pescador mantém algum
controle sobre determinados espaços, intercalando momentos individuais e coletivos de
uso, fazendo-o lugar e, com isso, dotado do sentimento de pertença.
59
Sobre esse assunto, ver: Maldonado (1994).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
88
A etnografia de Fraxe (2000), sobre a relação dos ribeirinhos e camponeses da
várzea do Rio Solimões, traz uma análise ímpar da riqueza material e lúdica
estabelecida por um grupo social com o seu território. O ribeirinho estudado por Fraxe,
como os beraderos de Canudos, exercem simultaneamente múltiplas atividades, e
nenhuma de modo exclusivo. Eles são sujeitos sociais (metaforicamente identificados
como homens anfíbios e sociologicamente como camponeses) que vivem em dois
ambientes – a terra e a água. Esse sujeito, segundo a autora, apresenta uma produção
extremamente interligada, que explora os recursos renováveis através das atividades de
agricultura e do extrativismo vegetal e animal. Assim ocorre em Canudos, onde a pesca
artesanal dos ribeirinhos do Rio Solimões é uma atividade primordial para a reprodução
do seu modo de vida. A prática da agricultura ocorre nos ecossistemas de várzeas e terra
firme – que em Canudos corresponderia à roça de lameiro e à roça de sequeiro. Os
camponeses retratados por Fraxe (2000) também são agentes de produção de consumo,
e o pai de família também é visto como o agente principal, que gera os recursos e as
atividades do grupo. Assim como os moradores de Canudos, suas unidades familiares
também determinam o equilíbrio entre a produção e o consumo, produzindo boa parte
do alimento internamente, por meio da mão de obra familiar, e adquirindo poucas
mercadorias (lamparina, sabão, café, sal, vestuário) por meio da troca ou por dinheiro,
proveniente da venda de produtos excedentes (da pesca, da roça).
Como no assentamento de Canudos, a várzea do ribeirinho amazonense está
ligada ao regime fluvial, e não à alternância de estações secas e chuvosas. O rio começa
a subir em novembro, atinge o clímax de março a abril e cai em agosto, chegando ao
mínimo em outubro. Com a retração das águas, as partes mais baixas da várzea, que
geralmente ficam afastadas do rio, retêm a fauna aquática em lagos, de forma a tornar a
caça e a pesca altamente produtivas. Segundo a autora, eles trabalham na terra de várzea
parte do ano (de setembro a abril no solo enriquecido pelo limo) e os outros meses em
terra firme, pois a várzea fica submersa. Nela se apresenta o cultivo de ciclo curto. A
várzea mais alta é usada para agricultura, caça e extrativismo. E o cultivo de gêneros na
várzea alta é de ciclos maiores.
Assim como em Canudos, os quintais do camponês anfíbio também têm uma
grande importância na manutenção do grupo. São nos quintais que se plantam árvores
frutíferas, hortaliças, plantas ornamentais e medicinais e, novamente como em Canudos,
os trabalhos realizados nesse lugar são, prioritariamente, executados por mulheres e
crianças de ambos os sexos. Os sítios localizam-se geralmente em cotas mais altas da
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
89
propriedade, e é nesse espaço que, durante as grandes enchentes, a unidade familiar tem
a possibilidade de produzir alimentos para a sua subsistência. Conforme Fraxe (2000),
este campesinato trabalha a terra, quase que exclusivamente com mão de obra
familiar60. Mas vendem a sua força de trabalho quando a subsistência da unidade
familiar está ameaçada por uma colheita não satisfatória, em razão de enchentes, pragas
ou para apropriarem-se de algum excedente, sempre visando à manutenção da família.
Durante quatro ou cinco meses, grande parte da planície terrestre fica encoberta; assim
ficam compelidos ao assalariamento, ou na cidade como subproletários, ou no campo,
através de empreitada na pesca ou em outras atividades. Da mesma forma que no
assentamento de Canudos, os homens anfíbios praticam a pluriatividade e as mulheres
vivem o seu cotidiano como mães, domésticas, extratoras e agricultoras. Entretanto, ao
contrário de Canudos e dos pescadores agricultores estudados por Woortmann (1991),
as mulheres ribeirinhas do rio Solimões são pescadoras. Como já colocamos
anteriormente, em Canudos as mulheres só pescam com seus filhos menores, por
diversão, nos barrancos, e apenas nos fins de semana. Suas pescarias são
economicamente desconsideradas, pois é avaliada como um lazer, onde apenas peixes
de pequeno porte são fisgados. Conforme observamos em muitas etnografias sobre
campesinatos tradicionais, apesar da estrutura estruturada tornar implícito que, na
divisão sexual do trabalho, as mulheres não devem executar tarefas pesadas, as
estruturas estruturantes exigem delas um sobretrabalho. Nas etnografias já citadas,
verificam-se muitas atividades que, na falta de homens, são executadas por mulheres.
As crianças também participam do processo de trabalho, e os idosos realizam tarefas
leves, ligadas, geralmente, às atividades de subsistência. Algo relevante a ser
considerado é que nem Fraxe e nem Woortmann ressaltam a existência da renda mensal
da aposentadoria desses idosos para a manutenção da unidade familiar. Como estas
etnografias foram realizadas em períodos anteriores à implantação maciça destas
políticas redistributivas, este deve ser o motivo das autoras não trazerem estes dados
para os seus respectivos trabalhos.
4. ASSENTAMENTOS RURAIS, CONFLITOS E IDENTIDADE
60
Utilizam o sistema de ajuda mútua.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
90
Como podemos observar, no assentamento de Canudos existe uma relação entre
os sujeitos sociais e os seus ecossistemas, que permite que eles os ocupem, controlem e
se identifiquem com esses espaços, transformando cada um deles em lugares
significativos. Mas a forma com que esses grupos sentem seus lugares, como organizam
suas estratégias e desempenham as suas atividades possui particularidades. Moradores
que desenvolveram um sentimento de pertença maior com a pesca artesanal do que com
a terra terão uma percepção distinta do território ou das necessidades intervencionistas,
do que os moradores que se identificam com o plantio. Da mesma forma, moradores
que nasceram na comunidade (estabelecidos ou “de dentro”)61, independente da
proximidade das moradias e das atividades que realizam, parecem não conseguir romper
com o distanciamento entre eles e as famílias posteriores (outsiders ou “de fora”); um
distanciamento estabelecido por serem de lugares distintos, pois a grande maioria das
famílias de Canudos sempre tiveram modus vivendi beradero. No entanto, questões
como essas não foram levadas em conta para a criação do espaço artificial do
assentamento, pois, apesar do assentamento de Canudos aparentar ser uma comunidade
de pescadores artesanais e agricultores familiares beraderos, típica do Médio São
Francisco, sua história de constantes intervenções mudou sua organização social e ela se
encontra extremamente fragmentada62.
Entender os significados de um determinado território – assentamento –
pressupõe uma reflexão anterior sobre a ocupação de terras no Brasil, suas
transformações e conflitos. Conflitos não necessariamente atuais, mas que refletem uma
história relacionada com a ocupação do território brasileiro. Conflitos que, em muitos
casos, parecem ser um reflexo da ação ou da omissão do Estado brasileiro. O caráter
expropriador da questão fundiária no Brasil tem deixado inúmeros camponeses sem
acesso à terra. Estes, quando não migram para as cidades de forma circulatória,
estabelecem relações de parcerias, agregação, ou buscam, através da mobilização,
61
As pessoas são categorizadas pela categoria êmica como “de dentro” ou “de fora”, conforme a sua
unilinearidade (o homem identifica a categoria na qual seus filhos e filhas serão integrados na
comunidade), e essa questão é de suma importância. No entanto, em Canudos, os moradores têm
dificuldade em verbalizarem ou se perceberem como um “de fora”. Sobre esse assunto ver: Woortmann
(1990); Cardel (1987, 1992) e Godói (1999).
62
A questão política partidária consegue acirrar ainda mais as tensões entre essas famílias, principalmente
entre as duas famílias mais importantes do assentamento. Elas apóiam políticos distintos e em toda
campanha eleitoral quase se agridem fisicamente (apesar de serem compadres). Conforme um ou outro
candidato chega ao poder, os pequenos poderes no assentamento são distribuídos para uma ou outra
família. Em uma dessas eleições, a professora concursada da comunidade chegou a ser afastada de suas
atividades por meses por ser da oposição. Por pequenos poderes entendemos: ser transportado no carro da
prefeitura para Barra, apesar de existir uma proibição; ganhar prestígio frente às decisões da comunidade;
ser um representante direto da administração no assentamento, etc.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
91
ocupar terras não produtivas, pressionando as políticas de assentamento. Isto significa
dizer que a composição do território nacional passou inicialmente pela territorialização
camponesa (ocupação por posseiros); a des-territorialização do camponês e a apropriação
por parte das grandes fazendas; e a re-territorialização de camponeses por intermédio dos
movimentos sociais.
4.1. Lei das Terras, Estatuto do Trabalhador e Estatuto da Terra
Embora a Lei de Terras de 1850 tivesse como finalidade evitar o apossamento de
terras livres pelos camponeses, sabe-se que essas práticas só foram controladas com a
ocupação do território pela grande fazenda, o que ocorreu, em muitos casos, pela
expropriação dos camponeses posseiros. Foi nesse período que a terra passou a ser
propriedade e só pôde ser adquirida através da compra63. A sujeição do camponês em
grandes propriedades e o número crescente de fluxos migratórios para a área urbana são
fatos que acirraram as tensões, e os espaços políticos da luta e resistência no campo,
começaram a ser demarcados desde este período. Conforme Martins:
As lutas camponesas dessa quadra [final do séc. XIX, início do XX] são
caracteristicamente constituídas pelos movimentos messiânicos e pelo
banditismo (MARTINS,1981: p.50).
A partir de 1950, surgiram as Ligas Camponesas, o sindicato e outros
movimentos ligados ao campo. Com o apoio do Partido Comunista, as Ligas
Camponesas foram criadas em quase todo o país – as Ligas no Estado de Pernambuco
eram muito fortes e rapidamente se espalharam pelo Nordeste, organizando foreiros,
moradores, arrendatários, pequenos proprietários. Nesse período surgiram também
diversas pastorais da ala mais progressista da Igreja Católica, lideradas pela
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Com a aprovação do Estatuto do
63
A partir de 1850, com os sinais da abolição, era necessário que os grandes proprietários rurais da elite
econômica agrária tivessem a proteção da propriedade da terra, impedindo a apropriação pela posse. Do
contrário, quando os escravos fossem libertados e os imigrantes chegassem, não haveria empregados para
os grandes proprietários, pois todos iriam buscar terras do interior. A partir desta data só poderia ocupar
as terras por compra e venda ou por autorização do Imperador. Todos os que já estavam nela receberam o
título de proprietário, porém tinham que residir e produzir na terra. A criação desta Lei garantiu os
interesses dos grandes proprietários do Nordeste e do Sudeste, que estavam iniciando a promissora
produção do café, definindo que as terras ainda não ocupadas passavam a ser propriedade do Estado e só
poderiam ser adquiridas através da compra nos leilões mediante pagamento à vista; e, quanto às terras já
ocupadas, estas podiam ser regularizadas como propriedade privada.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
92
Trabalhador Rural/ETR, em 1963, pelo qual as leis trabalhistas eram estendidas aos
trabalhadores rurais, o assalariamento tornou-se indesejável devido aos custos
trabalhistas. E esta chegada das leis trabalhistas no campo fez com que os fazendeiros
passassem a substituir suas atividades econômicas por outras, como a criação de gado.
A promulgação do Estatuto, dando proeminência ao trabalhador assalariado rural em
relação ao camponês também fez com que houvesse um processo de esvaziamento das
Ligas Camponesas.
Em 1964 foi aprovado o Estatuto da Terra/ET64, com a compilação de normas
que, de certa forma, vinham para acalmar as tensões no campo, sobretudo as
reivindicações dos movimentos. Esta resolução federal foi um avanço para a época,
apesar de não colocar em pauta a questão da propriedade e da acumulação de terra.
Conforme Martins (1981):
O Estatuto estabelece como ponto essencial da redefinição fundiária: a
colonização das terras novas, mediante remoção e assentamento de
lavradores desalojados pela concentração da propriedade ou removidos de
áreas de tensão (MARTINS, 1981: p. 96).
No entanto, para Silva (2004) as medidas adotadas, além de gerarem processos de
expropriação e exploração, conservaram o poder político dos proprietários rurais,
garantindo-lhes financiamentos, subsídios e incentivos fiscais e impedindo que a reforma
agrária fosse efetuada. A estrutura fundiária não foi sequer tocada.
64
Um dos primeiros códigos inteiramente elaborados pelo Governo Militar no Brasil (1964), foi
concebido como forma de colocar freio nos movimentos campesinos que se multiplicavam durante o
Governo João Goulart. Apesar de importantes peças para o ordenamento jurídico brasileiro, seu conteúdo
é pouco difundido, e conta com poucos especialistas no meio doutrinário. Conquanto seus conceitos
abarcam definições de cunho inteiramente político, servem para nortear as ações de órgãos
governamentais de fomento agrícola e de reforma agrária, como o INCRA. São diversos os conceitos ali
enunciados, com importantes repercussões para a vida no campo, bem como a relação do proprietário de
terras com o seu imóvel. Dentre elas:
Reforma agrária - é o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante
modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento
de produtividade.
Módulo rural - consiste, em linhas gerais, na menor unidade de terra onde uma família possa se sustentar
ou, como define a lei: lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso
social e econômico – e cujas dimensões, variáveis consoante diversos fatores (localização, tipo do solo,
topografia, etc.), são determinadas por órgãos oficiais. Por estes critérios, uma área de várzea de meio
hectare pode configurar, em tese, um módulo rural – ao passo que 10 hectares de caatinga podem não
atingi-lo.
Minifúndio - Uma propriedade de terra cujas dimensões não perfazem o mínimo para configurar um
módulo rural (nos exemplos anteriores, uma várzea de 0,2ha.)
Latifúndio - propriedades que excedam a 600 módulos rurais ou, independente deste valor, que sejam
destinadas a fins não produtivos (como a especulação).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
93
Em 1975, a Igreja Católica criou a Comissão da Pastoral da Terra (CPT) e
começou o trabalho de mobilização dos camponeses e trabalhadores rurais,
especialmente na Amazônia, onde os índices de violência no campo chegaram a números
descomedidos. Durante o regime militar, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s)
foram espaços de socialização política e de reflexão para a transformação da sociedade.
No final de 1970, o número de ocupação de terra aumentou em diversas regiões,
surgindo novos movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra/MST, em 1984. Nesse período, surgiram os primeiros assentamentos de Reforma
Agrária implantados pelo Governo Federal e uma nova categoria: os assentados65.
Segundo Loera (2006), desde a Constituição de 1988, com o artigo 184, pode-se
perceber um incentivo às ocupações, pois as propriedades que desde então não cumprem
com a sua função social podem ser desapropriadas. O Plano Nacional de Reforma
Agrária/PNRA, criado em 2003, estendeu essa possibilidade de desapropriação para as
terras onde fossem comprovadas plantações de psicotrópicos e/ou houvesse trabalho
escravo.
4.2. Disputas de terra e violência
Embora o Estatuto da Terra indicasse a necessidade de áreas de reforma agrária,
elas não se tornaram uma realidade planejada por parte do Estado. A maioria dos
assentamentos foi criada sob pressão dos movimentos sociais, pois, ao criar um
assentamento, o Estado tem que viabilizar a sua implementação e suas condições de
reprodução. O que significa dizer que os assentados ficam à mercê das ações e das
omissões do Estado. Assim, assentamentos possuem origens diferenciadas. Podem ter
origem na regularização fundiária de terras ocupadas por posseiros, geralmente por
muitos anos; podem ser provenientes de áreas de conflitos gerados pela tentativa de
expulsão de agregados ou meeiros; podem ser áreas improdutivas ocupadas pelo MST
ou por sindicatos rurais. No caso de Canudos, este foi fruto de um acordo pacífico entre
a comunidade posseira instalada por longos anos na área e o dono da fazenda, que
buscava a desapropriação por parte do Estado. Sigaud (2000) retrata a mesma situação
em Pernambuco, quando fazendeiros interessados na desapropriação procuraram
movimentos sociais para que eles providenciassem um acampamento em suas terras.
65
Sobre a questão agrária no Brasil e assentamentos, ver: Leite; Heredia; Medeiros; Palmeira; Cintrão
(2004)
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
94
Pois não bastava, segundo a autora, querer ser desapropriado; era necessária a pressão
por parte dos idealmente interessados. Afinal, depois do Plano Real, em 1994, houve
uma queda acentuada nos valores das terras, e o interesse pela desapropriação cresceu66.
Assim como os assentamentos, os beneficiados do projeto também podem ter origens
distintas. Deste modo, podemos encontrar, entre os pretendentes a serem assentados,
posseiros, filhos de produtores pobres que não têm acesso à terra, meeiros em busca de
seu próprio espaço de plantio, pessoas atingidas por grandes obras (barragens),
assalariados rurais, bem como parte da população pobre urbana. Assim sendo, passamos
a ver um conjunto amplo de atores sociais (fazendeiro, posseiro, agregado, INCRA,
secretarias, ONGs, entidades ligadas à igreja, associações, organismos que prestam
assistência técnica) delineando relações de negociações, de disputas e, em muitos casos,
de conflitos.
Assim sendo, o surgimento de assentamentos está quase sempre relacionado a
algum tipo de conflito em torno da terra, com uma disputa pela propriedade da terra.
Mesmo quando os antigos proprietários se omitem diante da ocupação ou mantêm certa
cordialidade em relação aos ocupantes, agregados ou posseiros, a disputa pela posse da
terra pode se dar em outro âmbito, pois o uso da violência física, ou mesmo verbal, nem
sempre é necessário. Em Canudos, os assentados da comunidade garantem que a
desapropriação das terras para a criação do assentamento não foi conflituosa junto ao
antigo proprietário (Sr. João Camandaroba). No entanto, na comunidade já existiam
conflitos com outros antigos proprietários e fazendeiros vizinhos, estabelecidos por
divisa de terras e uso de roças de ilha no rio São Francisco (espaço que pertence
legalmente ao estado, de acordo com o Artigo 26, III, da Constituição Federal de 1988),
conforme nos foi relatado em dois momentos pelo informante A.R.S, pessoa ligada ao
Sindicato dos Trabalhadores de Barra.
A: Teve um conflitozinho. Porque esse Canudos era do Sr.
Lutercílio Rocha, era Lutercílio Rocha um latifundiário da
região de Xique-Xique que tinha essa fazenda do lado de cá,
né?
R: Hum.
A: E aí, em um certo tempo, o pessoal de Canudos, eles vieram
pra cá, aí e plantaram, plantaram na ilha do outro lado. Porque
do outro lado era dele também.
R: Sim.
66
Sobre esse assunto, ver: Sigaud (2000).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
95
A: Plantaram na ilha lá. Plantaram feijão, milho.
R: Na margem de Xique-Xique?
A: Na margem de Xique-Xique, mas na ilha, né?
R: Sim.
A: Mandioca, abóbora, plantaram tudo, né? Aí o pessoal foi dá,
foi, bateu com a língua lá, com o genro do Lutercílio Rocha,
né?
R: Sei.
A: Que eu até esqueci o nome.
R: Sei.
A: E aí ele mandou uns jagunços aí. Mandou arrancar as plantas
todinhas. Botou os pistoleiros pra perseguir os trabalhadores.
Ainda vieram um dia no Canudos, de noite, deram tiro lá
adoidado e o povo correram tudo pro mato. Roubaram as,
roubaram as sacaria inteira, roubaram relógio nas casas. Pois é,
houve esse conflito. É que eu esqueci, mas mandado por esse
genro do Lutercílio, né?
R: Sei
A: Aí o pessoal afastou da ilha e ficaram nos Canudos sempre
encrencando, né, o homem. E quando foi no, no tempo desse
assentamento já, a lei já tava mais severa um pouco com
latifundiário, com esses empresários. Já tinha mais uma lei que
já agia mais em benefício do trabalhador, né?
Enquanto este informante fala de uma violência física realizada por ordem dos
fazendeiros frente aos posseiros de Canudos, por conta de disputa de ilhas do rio São
Francisco, localizadas próximas à comunidade, em outro trecho da entrevista, A.R.S
relata uma violência mais escamoteada, mas nem por isso menos cruel – a grilagem de
terra por parte de um vizinho da área onde a comunidade de Canudos se instalava.
A: E assim ele cortou pra dentro do Canudos tirando um eito
danado de lá. Dessa questão o sindicato ainda andou dentro
desse rolo também.
R: Qual era o nome dele mesmo, seu Astrogildo?
A: Ele chamava. Eu esqueci. Sei que (sic) mas o nome dele era
Edson de Freitas, Andrade de Freitas.
R: Edson Andrade de Freitas.
A: É.
R: Então ele tinha, ele tinha uma fazenda.
A: Aqui era o rio (desenhando com o dedo sobre a mesa), ele
tinha uma fazenda aqui, e aqui era os Canudos, né?
R: Sei.
A: Aqui ele foi medir a fazenda e entrou num rumo assim (sic)
as parte dele assim (sic), meteu por dentro dos Canudos aqui.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
96
Tudo por fora do alinhamento dele, já grilando terra dos
Canudos.
R: Sei.
A: Logo depois nós (pessoas do sindicato) entramos em
questão. O povo vieram aqui e nós fizemos ele voltar a cerca.67
Conforme já foi dito, Barra é um dos municípios que apresenta sérias disputas
fundiárias. As principais denúncias relatam que fazendeiros envolvidos nestes conflitos
coagem posseiros e beraderos soltando gado em suas plantações e aprisionando suas
criações. Mas, se pensarmos o relato acima em concomitância com o documentário “O
Massacre da Lagoa da Serra”, que relembra uma situação de conflito entre posseiros,
grileiros e donos de terras (Família Mariani) no Vale do São Francisco (Muquém do
São Francisco e Barra) – onde os posseiros da Fazenda Lagoa da Serra sofreram pressão
por meio da perda da produção, da queima de todos os casebres até a expulsão das
famílias – constatamos que as atitudes iam muito além do aprisionamento de animais.
4.3. Identidade fragmentada
Existe uma profusão de movimentos sociais no Brasil ligados à questão
fundiária, após a criação oficial do MST em Cascavel/PR, no ano de 1984. Muitos
deles, inclusive, se articulam em rede com setores da Igreja Católica, partidos políticos e
Organizações Não Governamentais. Entretanto, sabemos, por meio da vasta literatura
sobre esta temática, que nem todos os assentamentos são promovidos pelos movimentos
sociais. Em Canudos, por exemplo, o acompanhamento do processo de desapropriação e
regularização do assentamento foi acompanhado pela FETAG e, conforme Loera
(2006), mesmo nos assentamentos organizados pelo MST, nem todos os assentados se
consideram membros do MST. Sigaud já chamava a atenção para essa particularidade
em seus estudos sobre os acampamentos em Pernambuco, quando afirmou que “ser um
sem-terra não correspondia necessariamente a uma identificação com a organização do
mesmo nome” (2000:83). Apesar dos movimentos sociais possuírem pessoas
responsáveis para arregimentar famílias de posseiros, moradores de periferia das
cidades e de núcleos rurais, não há, por parte dos cooptados, uma identificação
totalizadora. Essa medida leva à mobilização de famílias com semelhanças, mas
67
Entrevista realizada em Barra com um dos dirigentes do sindicato rural de Barra que tem quase 40 anos
de sindicato.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
97
também com diferenças em muitos aspectos. E famílias com origens e motivos
variados, reunidas em um mesmo local, nem sempre desenvolvem a mesma afinidade
com a proposta do movimento, mesmo que existam redes sociais de afinidade ou de
parentesco dentro do grupo.
A crença dos movimentos sociais de que a participação das famílias nas reuniões
cria uma sociabilidade que contribui para a consolidação das redes sociais, na minha
concepção, também é um engano. Pois, como afirma Godói (1999), a relação que o
camponês estabelece com a terra tem como base um “sistema de lugar”, que tem como
referência um conjunto de direitos combinados sobre a terra e outros demais recursos
naturais. Essa concepção não combina com as propostas coletivas apresentadas pelo
MST, pela FETAG ou pela CPT. Loera (2006) relata esse problema em acampamentos
e assentamentos organizados pelo MST no interior de São Paulo. No seu estudo de caso,
esta autora demonstra que, quando os militantes explanaram a ideia de trabalho coletivo
e reforçaram que a permanência no assentamento estava sujeita a essa condição,
algumas famílias resolveram se mudar para outro acampamento, onde essa medida
ainda não tinha sido implementada. Esta realidade vem de encontro com o relato feito
por outros pesquisadores. Como Godói salienta, a terra para um camponês é uma
condição para manter sua família, mas é também a base para poder ser independente.
Neste sentido, o trabalho coletivo representa exatamente o oposto de suas expectativas
de liberdade e de propriedade individual do seu lote de terra.
Loera (2006) também salienta que o trabalho coletivo em cooperativas gera
conflitos, pois, segundo seus informantes, ninguém quer trabalhar mais tempo do que
outros, ou ninguém que ser cativo de ninguém. A ideia de trabalho cativo, do mesmo
modo, está presente em autores que retratam o contexto rural dos estados do Norte e
Nordeste Brasileiro, onde a concepção de trabalho coletivo ficou associada ao trabalho
do agregado, ou seja, daquele que é cativo de alguém.
Nas suas pesquisas, Silva também alega que:
A sociabilidade da fase do acampamento, na maioria das vezes, não tem
continuidade no assentamento. Valores relativos à sociabilidade, ajuda
mútua e mística são, grosso modo, substituídos pelo individualismo, pela
não cooperação. Este fato ocorre em virtude da imposição da inserção dos
assentados na economia mercantil, na qual a terra é vista enquanto meio de
produção. O simbolismo em torno da terra vai, aos poucos, cedendo lugar à
visão da terra como mercadoria, logo, terra de negócio. O objetivo é a renda
auferida pela terra. (SILVA, 2004: p. 104 e105)
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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Segundo a autora, o responsável por essa transformação das representações
sociais em torno da terra é o Estado, responsável pela implantação dos assentamentos,
como também os representantes dos movimentos de luta pela terra, pois, de uma hora
para outra, os sem-terra são obrigados a fazerem parte do circuito mercantil, que
envolve insumos, compra de máquinas e inserção em linhas de crédito bancário.
Paralelo a isso, para Silva (2004), muitos projetos não correspondem aos interesses ou à
capacidade dos assentados, ocasionando conflitos internos entre lideranças e assentados.
A coletivização dos lotes e a formação de cooperativas são exemplos que se repetem em
várias localidades. Para a autora, a ideologia da tutela aprofunda os conflitos internos.
Concordamos com Silva (2004) quanto à afirmação de que a coletivização dos
lotes e a implantação de cooperativas fomenta conflitos internos, assim como
concordamos com Loera (2006), quando esta alega que os grupos acampados ou recémassentados não conseguem aderir à concepção de trabalho coletivo incentivada pelo
MST, pois observamos essa mesma situação no assentamento de Canudos. No entanto,
quando buscamos refletir sobre a composição da identidade campesina dentro de
Canudos, e as situações que impossibilitam a reprodução dessa identidade como um
todo, somos levados a pensar, não só sobre as fragmentações das relações sociais que o
conflito de terra pode ter gerado entre as famílias dos estabelecidos, e as que chegaram
posteriormente - e que não vivenciaram as ações de disputa e conflito (um elemento de
origem, que pode criar categorias de 1ª ou 2ª classe) - como também na argumentação
de Martins (2003), de que identidade camponesa não encontra suporte em áreas de
assentamento. Ao afirmar que assentamento não produz identidade, Martins está
discutindo a identidade de uma nova categoria ou do sujeito criado no próprio processo
da reforma – o assentado – e não do sujeito empírico que o antecede. Um sujeito que
não tem uma face coerente e unívoca, ou seja, um sujeito sociológico, e não um sujeito
político ideológico da reforma agrária. Um sujeito que nasce de mediações conflitantes,
porque existem conflitos decorrentes de diferenças de origem, diferenças de experiência
e diferenças de propósitos. Em suma, um novo sujeito, que os próprios agentes de
mediação desconhecem. Na concepção de Martins, este novo sujeito, rotulado
genericamente como um trabalhador sem-terra não é reconhecido pelos seus tutores em
sua profundidade histórica, embora este novo sujeito também não tome iniciativa de
criar uma demanda de política agrária, permanecendo submisso à dominação
patrimonial e clientelista por parte dos serviços de intervenção e do Estado.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
99
Em suma, para Martins, ser um assentado, ao invés de reforçar a identidade
camponesa, pode fragmentá-la.
Não obstante a suposição de que a luta pela terra se desenrola em torno de
valores e lealdades comunitários, a realidade de acampamentos e
assentamentos é conflitiva [...] de uma conflitividade societária demarcando
uma situação social em que o comunitário se apresenta com o busca difícil,
permeada por tendências desagregadoras [...] A história dos assentamentos
se revela uma história de ganhos sociais indiscutíveis, mas também de
perdas pelo caminho: os que desistem, os que se agregam sem autenticidade,
os que negociam posses e direitos, os que mesmo assentados preferem viver
da renda da terra [...] alguns assentamentos [...] mostram tentativas de criar
um cimento comunitário, na busca de um certo equilíbrio entre os contrários,
na reserva de terras para o uso coletivo, na obrigatoriedade da coparticipação em certas atividades [...] mas aí também surgem crises e
corrosões [...] Por não serem comunidades autênticas, essas comunidades
residuais tornam-se vulneráveis justamente por estarem abertas ao estranho,
na motivação limitada da busca de terra, que não chega a constituir um filtro
poderoso de identificação ou de afirmação da identidade. [...] a memória,
outra referência identitária, como documento de uma história pessoal
compartilhada, também é esfacelada no próprio processo de migração e
desenraizamento [...]. (MARTINS; 2003: p. 61 a 63)
O sujeito da reforma agrária, para o autor, é diferente do sujeito individualizado
do programa do INCRA e diferente do sujeito coletivo que a categoria faz supor. O
sujeito da reforma agrária tem uma difusa identidade própria, complexa, nem um pouco
política, sendo, sobretudo familística. Esse sujeito tem um núcleo familiar, e de família
extensa. Abrange mais de uma geração e de modo algum pode ser pensado como uma
família nuclear constituída pelo casal e pelos filhos menores, como muitos agentes de
mediação acreditam. Conforme Martins (2003), este sujeito possui uma rede de direitos
e deveres referidos às obrigações dos vínculos de sangue e também vínculos de
afinidade e do parentesco simbólico. Ele é um ente coletivo, cuja coletividade não
coincide com o coletivismo da manipulação ideológica, já que o seu coletivismo é o da
família comunitária extensa.
Deste modo, assentamento não é base nem condição de identidade, e muito
menos uma instituição. Um assentamento é uma intervenção externa no curso de um
processo social. Por esse motivo, para Martins (2003), em um assentamento agrário,
mesmo as pessoas supostamente voltadas para objetivos comuns, quando têm origens
diferentes, não conseguem construir um eixo comum de referência, nem mesmo no
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
100
âmbito das relações de interesses, de ideias de pertencimento, de estar junto ou de ser
comunidade.
Comunidade é mais do que compartilhar costumes e modos de fazer e pensar.
É memória de vínculos de sangue, deveres de obediência e deferência, ritos de
lealdade, retribuições, pagamentos simbólicos. (MARTINS, 2003: 71).
Foi pensando nas colocações feitas por Martins que voltamos aos escritos de
Weber (1994), quando este estabelece sua discussão epistemológica sobre o conceito de
Comunidade. Ao contrário de Martins, Weber afirma que é possível se estabelecer uma
relação comunitária baseada em interesses comuns. O autor argumenta que “uma
relação social denomina-se ‘relação comunitária’ quando e na medida em que a
atividade na ação social – no caso particular, ou em média, ou no tipo puro – repousa no
sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao
mesmo grupo” (WEBER; 1994, p. 25). Para este autor, a relação comunitária pode
apoiar-se em todas as espécies de fundamentos afetivos, emocionais ou tradicionais.
Mas como desenvolver esse sentimento de pertencimento se os assentados são
geralmente sujeitos sociais distintos, com origens diferenciadas? Como desenvolver um
sentimento de pertencer, se a memória é uma memória de conjunto, de relacionamentos,
de atividades associadas entre si? Para Weber, existe algo que pode tentar moldar um
eixo comum de referência entre esses indivíduos sociais: “a atitude na ação social
repousa no ajuste ou numa união de interesses racionalmente motivados (com referência
a valores ou fins)” (WEBER; 1994, p. 25). Teríamos então uma atitude ou uma ‘relação
comunitária’ baseada em interesses racionalmente motivados por valores ou fins.
Assim, mesmo admitindo que possa haver conflitos de interesses, chegamos a
pensar, no meio do nosso trabalho de campo, que associação de pequenos agricultores
de Canudos seria um elemento catalisador para as ações comunitárias. Afinal, todo
assentamento tem uma associação para que a comunidade possa ser beneficiada com
projetos de assistência técnica ou recursos financeiros para plantio ou criação de
animais. Entretanto, concluímos que, mesmo assim, essa instituição teria limites para
moldar a ‘relação comunitária’, pois em trabalho de campo, fomos informados pelos
moradores da localidade que a associação de pequenos agricultores de Canudos só
servia para ajudá-los a interceder por créditos, mas como estavam todos inadimplentes,
ela não tinha sentido e, portanto, participar de suas reuniões era perda de tempo. Foi em
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
101
campo que percebemos que a associação não consegue mobilizar seus associados para
ações conjuntas, que não sejam ações relacionas para pedidos de crédito.
A associação, atualmente, possui 104 associados (número igual a 2002, quando
houve o levantamento do PDSA). O valor da mensalidade da associação é de R$ 2,00, e
conforme nos relatou a secretária da associação, nenhum associado mantém sua
mensalidade em dia. Da mesma forma, nenhum associado, com exceção dos dirigentes
(presidente, vice-presidente e a secretária da associação), declarou que a realização de
reuniões locais ou no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barra têm alguma
importância. Em Canudos não existem reuniões regulares na associação e, quando há,
quase ninguém participa efetivamente. Mesmo sabendo que projetos financiados por
órgãos governamentais ou institucionais – como as construções de novas casas ou as
criações de matrizes caprinas – só foram implantados na comunidade porque existia
uma associação, os moradores assentados de Canudos se recusam a participar das
reuniões quando convocados. Presenciamos três tentativas de reuniões. Em todas elas
nossos informantes, de forma educada, agradeciam o convite e confirmavam a
participação, mas quando o presidente se retirava, alegavam não disporem de tempo a
perder com discussões que não levariam a nada. Deste modo, voltamos aos escritos de
Martins (2003), acreditando que sua argumentação se encaixa ao que presenciamos
nessa comunidade. Existe em Canudos uma crise dos vínculos tradicionais de
dominação pessoal e uma crise do regime de morada e de trabalho, que cimenta os
relacionamentos. Esta crise revela uma comunidade “suspensa”, uma comunidade
construída virtualmente. A desmobilização e a falta de sociabilidade entre esse grupo de
assentados de Canudos é uma situação conhecida por todas as pessoas ligadas ao
Sindicato de Trabalhadores de Barra. A dificuldade em mobilizá-los foi relatada por
A.R.S,
A: É. Mas ali tem dado muito trabalho, né? A gente acompanha
há muitos anos o pessoal dos Canudos, orientando eles,
doutrinando pra ver se eles acompanhava a luta, mas eles nunca
quiseram. É um pessoal difícil de se reduzi. Até, até se a Sra.
visse, visse o Irailton, que é um técnico, um técnico de Salvador
que trabalha mais nós aí, agarrado nesses assentamento,
acompanhando. Se a senhora contasse, visse ele, ele ia lhe
conta a situação, a dificuldade que tem o povo de Canudos pra
se, pra se lutá com ele, né?
A: Chegar num acordo pra eles acompanhá o movimento das
coisa. São um povo duro. Já o Barro Vermelho é melhor.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
102
Em outro momento da entrevista, as dificuldades de mobilização das pessoas
assentadas na comunidade voltam a ser relatadas por nosso entrevistado.
A: Orientamos eles pra futuramente eles prevenirem pra
requerer esse direito, né? Só que, só que eles num queria direito
acompanhar nossa, nossas diretrizes, né? Mas eu num sei
quando foi ao certo esse conflitozinho. Num me lembro a data.
Daí pra cá começaram mais a aceitar. A gente, a gente quando
marcava uma reunião lá, marcava tal dia o sindicato vai com a
igreja, que também acompanhava a gente, a FUNDIFRAN, que
teve aqui, ajudava muito a gente também. É uma entidade aí,
como é que se diz, é que trabalhava em benefício do
trabalhador rural, né?
A: Aí a gente marcava uma reunião pra ir lá, uma comunidade
que tem cento e cinquenta família, tinha, hoje já tem mais, né?
Tinha cento e cinquenta família, aparecia dez, doze pessoas. É
que num queria nada, né? Mas depois desse conflito pra cá
foram se achegando mais. E esse, mas ainda é muito duro. Se a
Sra. visse Irailton é que ele ia lhe contá a dificuldade que dá o
pessoal ali pra gente reduzi eles, né? Pra, pra reivindicar seus
direito de posse de terra, de empréstimo bancário, dessas coisa
toda, né?
R: Então, desde essa época vocês não conseguem mobilizar as
pessoas que moram lá?
A: Não, não, diretamente não. Como merece, não. É sempre
(SIC). Eles num dão muita atenção à reunião. A gente marca
uma reunião, vêm dez, doze pessoas. Quando merecia, vinte,
trinta, quarenta ou cinquenta, né?
R: Na opinião particular do Sr., por que o Sr. acha que projetos,
por exemplo, como a casa de farinha coletiva e a área irrigada
não foram pra frente, não deram certo?
A: Aí é uma pergunta muito necessária e difícil de responder.
É, por uma parte, nosso povo aqui, nessa região, nosso povo é,
é, parece que tem a cabeça meio oca. Por exemplo. Num sei
nem aplicar o termo que diz, né? (nesse momento o
entrevistado dá uma pequena risada). Mas um pessoal que a
gente tá vendo, tá trabalhando com esse aqui, lutando em
benefício dele; eu começo aqui, gente aqui, no rio Grande, tem
associação aí, que o pessoal tá morrendo de fome. Associação
tá com dez anos que se luta, vindo recurso e o pessoal num tem
nada. Se a Sra. chega lá, num acha um ovo de galinha pra
comprá pra comer. Porque o povo é desorganizado. Tem jeito
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
103
desse lá, morrendo de fome, pra dizer que pega um piau pra
comer, pega uma casca no mato, tirando um mel de abelha,
tirando madeira, lenha pra vender e recebendo recurso acaba
tudo, com tudo. O dia que tem um, um recurso chega, um
recurso aqui na Barra, eu sinto dizer isso, né? Mas eu tenho que
dize a verdade, né? O dia que chega um recurso aqui na Barra,
tem gente que vem e é de todo lado. Não é pra, não é pra
generalizar não, mas muita gente é. É, chega um recurso, eles
vêm aqui receber um dinheirinho, aí desse dia corre um [...] de
cerveja aí na, no boteco. Outro, quando vai daqui pra lá, leva
um carro velho, outro leva uma caixa de som, outro leva um
motor. Ganhou num é pra essa coisa, né?
Uma atitude ou uma ‘relação comunitária’ baseada em interesses racionalmente
motivados por valores ou fins não foi, segundo o informante, uma ação alcançada por
quase nenhuma associação de pequenos agricultores da Barra. O que, particularmente,
reforça a orientação, dada por Martins, da impossibilidade de reprodução da identidade
camponesa em um assentamento. Mas Canudos ainda tem um agravante: muitas
famílias assentadas na localidade são oriundas da área da Usina Hidrelétrica de
Sobradinho. São pessoas que saíram antes de 1972/1973, e que não foram reassentadas
em outra localidade ou indenizadas, porque não foram diretamente atingidas em suas
terras. Mas são indivíduos atingidos indiretamente pela obra, porque também deixaram
originalmente o espaço em que moravam. Como afirma Rebouças (1997), um dos
fenômenos decorrentes do modo como o deslocamento ou os reassentamentos ocorrem,
é a dificuldade do restabelecimento das atividades produtivas em outro ambiente
natural, levando à total transformação do modo de vida tradicional dos grupos
deslocados. Esse processo resulta na perda de importantes referenciais na sua vida
social, ou seja, o modo como as casas estavam distribuídas, as redes sociais de
reciprocidade e afinidade ou a organização da vida doméstica.
A criação do assentamento de Canudos68 é o resultado de um ato administrativo,
implementado por meio de um decreto de desapropriação de uma área rural privada para
fins de reforma agrária. Na maioria das vezes, conforme a literatura discutida, a criação
de um assentamento é obra, sobretudo, de lutas sociais. Consequentemente, um
assentamento expressa uma transição histórica e socialmente muito mais complexa do
68
De uma forma genérica, os assentamentos rurais podem ser definidos como a criação de novas unidades
de produção agrícola, por meio de políticas governamentais visando ao reordenamento do uso da terra,
em benefício de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra (BERGAMASCO, 1996 apud LOERA
2006: p 33).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
104
que um ato administrativo. Quando se agregam pessoas de origens tão distintas em um
processo onde o a propriedade privada da terra e a luta por terra são sobrepostos pelo
início de uma nova organização socioeconômica, com a posse da terra por um grupo
heterogêneo de famílias de lavradores ou trabalhadores rurais sem-terra, cria-se um
outro espaço de conflitos muito mais complexos que os conflitos fundiários. O espaço
do assentamento, ao ser implementado por técnicos governamentais, sem conhecimento
prévio da realidade na qual irão intervir, é organizado conforme a necessidade
eminentemente urbana: a separação do lugar onde se realiza a labuta do trabalho no dia
a dia do lugar do descanso após um dia de trabalho. Em geral, um assentamento rural é
composto de uma agrovila, com um adensamento das casas, e a demarcação dos lotes
familiares é desvinculada territorialmente do local de morada. Na concepção original
dos planos de implantação, essa disposição espacial é pensada numa perspectiva que
visa idealmente a proporcionar espaços de sociabilidade para moradores, vizinhos e
parentes. Mas o que se observa, na prática, é que, ao optarem por essa forma de preparo
dos espaços nos assentamentos, os técnicos dos órgãos governamentais acreditam estar
facilitando o acesso dos assentados aos equipamentos públicos, como escola, postos de
saúde e áreas de lazer; e também acreditam estar propiciando uma maior sociabilidade
entre os mesmos, tornando propícia a organização em associações e cooperativas. Com
esse arranjo espacial homogeneizador, os técnicos estatais explicitam que não estão
atentos para a práxis do mundo camponês.
Assim sendo, o que a realidade de Canudos nos apresenta está pautada em uma
junção de circunstâncias, que se solidificam na fragmentação da identidade camponesa
motivada por conflitos de terras; no impacto do deslocamento de algumas famílias
assentadas advindas da região de Sobradinho; na impossibilidade dos assentados de
reproduzirem o seu modus vivendi em um espaço artificial; na dificuldade dos
moradores em criarem uma relação de pertencimento; na falta de uma memória coletiva;
na dificuldade dos grupos domésticos em estabelecer uma ‘relação comunitária’,
baseada em interesses racionalmente motivados; e na ausência de uma relação dialógica
entre a comunidade e os órgãos governamentais e institucionais. A somatória de todas
estas realidades fragmentadas torna Canudos um paradigma para o estudo empírico de
como um assentamento rural apresenta matizes complexos de ambiguidades, em meio à
junção de ações e lutas populares e das políticas públicas estatais voltadas para o
campesinato brasileiro pauperizado.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
105
CAPÍTULO III
“A CHEGADA DO ESTRANHO”: DESLOCADOS, IGREJA E ESTADO
SOBRADINHO.
O homem chega e já desfaz a natureza
Tira a gente põe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco lá prá cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia
Do beato que dizia que o sertão ia alagar
O sertão vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé
Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir
Debaixo d'água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira o Gaiola vai sumir
Vai ter barragem no salto do Sobradinho
E o povo vai se embora com medo de se afogar
O sertão vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Vai virar mar
Dá no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
SÁ E GUARABIRA
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
106
1. “ESTRANHO” MEDIADOR: UMA CATEGORIA DE DESENCONTROS
“A Chegada do Estranho” é o título de uma obra de José de Souza Martins
(1993), que trata da realidade camponesa no Brasil. O mais inovador nessa obra é o
entendimento do termo estranho como uma categoria de análise de situações de
desencontros ou de estranhezas aos processos de intervenção em sociedades marginais –
camponeses e indígenas. Os processos de intervenção propostos por grandes projetos,
como hidrelétricas ou rodovias, têm como pressuposto a remoção parcial ou total dessas
populações, e minimizam suas ações por meio de medidas compensatórias –
indenizações e relocações. O que o autor discute é exatamente a dificuldade em um
processo como esse de reconhecimento do outro como diferente e igual. O estranho
trazido para a análise não é o ser dominado, mas é o ser que destrói relações, valores e
regras. Trata-se da chegada do empresário, do militar, do fazendeiro, dos jagunços e do
Estado. Uma chegada que, como afirma o autor, não introduz nada na vida dessas
populações, mas sim lhes tira o que tem de vital – terras e territórios, meios e condições
de existência. No fundo, Martins nos chama a atenção para a discussão sobre o impacto
das grandes obras, suas consequências e a diferença de equidade entre o estranho e o
grupo
impactado.
Martins
(1993)
busca
mostrar
o
descompasso
entre
o
desenvolvimento capitalista e a resistência ao desenvolvimento. É a partir dessa
contradição que Martins mostra como a luta entre trabalhadores rurais69, posseiros70 e
sem-terra71 são lutas distintas.
No que se refere aos camponeses, as lutas travadas entre a agricultura itinerante
de posse e o desenvolvimento do capital são lutas por reconhecimento de direitos à terra
e ao trabalho. Para o camponês, a luta é pela legitimidade de ser ele o ocupante da terra,
69
O trabalhador rural é aquele que é mediado pelo salário. O sentido de suas lutas está em fazer cumprir as
leis trabalhistas em seus locais de trabalho, em dar um caráter contratual às suas relações de trabalho.
70
O posseiro luta pela terra. Ele é o camponês que ocupa a terra livremente, tenha ela dono ou não, e não
possuem documentos legais de propriedade. O posseiro representa aquele que foi expulso de um lugar,
seja por um grileiro, pelo fazendeiro ou pela grande empresa, mas, acima de tudo, é aquele que se recusou
a ir para as cidades e não foi absorvido como assalariado. São trabalhadores que têm uma relação precária
com a terra, sujeitos à expulsão assim que o proprietário quiser, restando-lhes a alternativa de
proletarizarem-se, geralmente como ‘boias-frias’, isto é, como assalariados, sujeitos a trabalhos
temporários. A esses trabalhadores, juntam-se meeiros, parceiros, pequenos arrendatários, filhos de
pequenos proprietários, cujas terras são insuficientes para famílias extensas, e aqueles trabalhadores que
perderam suas terras por conta da construção de barragens e hidrelétricas e receberam indenizações
insuficientes para continuar o trabalho familiar.
71
Os sem-terra reivindicam terra e questionam a legalidade da propriedade, mas também melhores
salários.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
107
que trabalha e transforma a terra, que tira dali o seu sustento e o da família. Então, para
ele não interessa se legalmente a terra não lhe pertence. O problema não é o da
exploração, mas da expropriação. De forma antagônica, para o trabalhador assalariado, o
conflito principal reside nas relações de produção, no produto do seu trabalho, sendo
estes conflitos institucionalizados e permanentes.
Outra obra de José de Souza Martins (2000), que trata do estranhamento frente
aos mediadores e que nos ajuda a pensar a realidade empírica de Canudos, é “Reforma
agrária: o impossível diálogo”. Neste trabalho, o autor expõe a dificuldade de lidar com
o conhecimento sobre reforma agrária, criada a partir de mediadores e agências de
mediação como a Comissão Pastoral da Terra/CPT, o Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra/MST e os agentes do Estado. Conforme o autor, apesar desses mediadores
parecerem comprometidos na luta pela terra, a luta pela reforma agrária não é a luta pela
terra de trabalho. Martins (2000) busca evidenciar que as interpretações dos mediadores
frente à realidade que eles intervêm são limitadas. A ação política desses protagonistas
não corresponde à compreensão histórica da estrutura da sociedade camponesa. Tanto o
Estado, quanto os mediadores principais (CPT e MST) não estão lidando com o tempo
histórico dos processos sociais dos diversos campesinatos brasileiros. Ou seja, a
discussão da reforma agrária ainda está aprisionada ao passado, a um debate que polariza
pontos de vista, seja de um partido político, seja de grupos ou instituições. Não há dúvida
de que a CPT e o MST foram as principais organizações responsáveis pela inclusão da
questão agrária na agenda política do Estado Brasileiro, mas esses mediadores
“empobreceram drasticamente a interlocução essencial à sua própria existência política”
(MARTINS, 2000, p. 21).
Os mediadores pensam por meio de uma ideologia da classe média urbana e,
portanto, possuem “visões de mundo estranhas aos protagonistas do drama agrário”
(MARTINS, 2000: p.40). Os conceitos que balizam as suas ações práticas são conceitos
como exclusão, trabalho escravo, migrações; conceitos, que na opinião de Martins,
limitam as interpretações do mundo rural. A reforma foi gestada fora da realidade
vivenciada pelos camponeses e, por conseguinte, decorre de ideologias de esquerda e de
intenções partidárias. Assim, os mediadores sindicalistas, a igreja, por meio da CPT, o
MST e os militantes políticos restringem sua prática a uma forma da reforma agrária.
Essa forma da reforma está vinculada apenas à quantidade de terras que serão
desapropriadas e à quantidade de trabalhadores que serão favorecidos com a
desapropriação, e não com uma transformação social. Do mesmo modo que critica os
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
108
mediadores da reforma agrária no Brasil, o autor também argumenta que o "chamado
sem terra" não é o sujeito histórico e estrutural da reforma agrária. Pois uma das coisas
que distingue o sem-terra dos posseiros, embora ambos lutem pela terra, é que a luta do
posseiro introduz a legitimidade alternativa da posse, enquanto o sem-terra, na sua
prática, não tem como deixar de questionar a legalidade da propriedade.
Para demonstrar a impossibilidade desse diálogo, o autor alega que conceitos
como terra de trabalho72 e renda da terra73, conceitos que foram assimilados pela Igreja
nos anos de 1980, atualmente não são lembrados pela CPT, “o que é bem indicativo de
um real distanciamento entre interpretação e experiência” (MARTINS, 2000: p. 210). O
objetivo maior de uma Reforma Agrária, dentro do nosso ponto de vista, é vermos a
reorganização fundiária como um desafio de políticas sociais, que alcancem as reais
necessidades das diferentes categorias de trabalhadores rurais: meeiros, parceiros,
posseiros, assalariados temporários ou permanentes. Afinal:
Não por acaso, o vocabulário dessas lutas – agrário, camponês, latifúndio,
burguesia – é um vocabulário historicamente ausente do mundo rural,
palavras que não expressam de fato os conflitos e as polarizações sociais [...]
O que quer dizer que a consciência da luta é diversa da consciência de quem
quer dirigir a luta (MARTINS, 2000: p. 76).
A antropóloga Lygia Sigaud (2005) também aponta para a ausência de uma
dimensão histórica, quando afirma:
Não existe uma massa de sem-terra ansiando pelo acesso a terra: os
movimentos criam a demanda por terra ao convidarem trabalhadores para
72
Quando vinculado à CPT e à CNBB em 1980, Martins elaborou conceitos estratégicos: “terra de
trabalho” e “terra de negócio”. Para o autor, são os camponeses expulsos de sua terra, condicionados à
condição de posseiros que põem em confronto o que é legitimo e o que é legal, e a legitimidade está em
conceber a terra como a terra destinada ao trabalho. A terra de trabalho toca diretamente na formulação
jurídica do direito de propriedade, nos interesses das classes dominantes: os proprietários de terra, os
industriais, os banqueiros, os grandes comerciantes. Esses conceitos antagônicos (terra de trabalho e terra
de negócio) caracterizariam as contradições fundamentais da questão agrária no processo de luta pela
terra. O conceito também aparece em estudo realizado por Garcia Jr., intitulado “Terra de trabalho:
Trabalho familiar de pequenos produtores” do ano de 1983, mas nesta obra o conceito “terra de trabalho”
tem outra concepção.
73
O conceito de renda da terra é um conceito fundamental para explicar a estrutura fundiária no Brasil. A
renda da terra é entendida como uma situação em que o capital não opera como capital, mas se transfigura
em outra coisa, diversa dele e oposta, embora dominada por ele. Como a propriedade privada da terra, na
sociedade capitalista, propicia que se cobre um tributo por sua utilização, o capitalista que compra terra
investe seu capital improdutivamente, já que a propriedade da terra não funciona como capital real. Assim
podemos pensar que o posseiro representaria um contestador dessa ordem capitalista; pois ele ocupa a terra
e não paga renda.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
109
ocupar as fazendas [...] ao aceitarem o convite e se instalarem nos
acampamentos, os indivíduos tornam-se sem-terra, porque passam a
reivindicar a terra para si (SIGAUD, 2005: p. 270 e 271).
Para a autora, o fato de o Estado ser motivado apenas pelos fatores conflituais e
pela desapropriação, também é um problema, uma vez que essa prática faz com que o
Estado seja direcionado pela ação dos movimentos sociais. Segundo Sigaud (2005), o
Estado depende dos movimentos sociais para direcionar as suas ações, por meio das
ocupações, dos acampamentos e das fazendas a serem desapropriadas, pois o Estado
justifica as desapropriações alegando serem áreas de conflito. Porém, quem cria as áreas
conflituais são os movimentos sociais, e o Estado também depende dos movimentos
sociais para selecionar os destinatários das terras desapropriadas – indivíduos escolhidos
entre os que participaram das ocupações do movimento. Isso significa que são os
movimentos sociais que têm fornecido ao Estado as diretrizes em relação à reforma
agrária.
Apesar da dependência e das limitações, para Martins (2000) o Estado é uma
peça fundamental para o acesso a terra, pois a regularização por meio do Estado é uma
forma de redistribuição. O problema consiste no desencontro entre o conhecimento da
reforma agrária construído pelos mediadores e o conhecimento que estes mesmos
mediadores possuem do modus vivendi dos que lutam pela terra – as interpretações das
demandas do mundo rural, que acabam por definir os projetos sociais e políticos dos
partidos de esquerda e da própria igreja, a partir da visão desses mediadores estranhos,
são equivocadas. Os trabalhadores não só têm dificuldades frente aos proprietários e ao
Estado, mas, do mesmo modo, têm dificuldades em relação aos partidos políticos e aos
mediadores, que também não conseguem traduzir a luta pela terra num projeto político
sólido. Consequentemente, os movimentos populares fatalmente estão deixando de ser
os aglutinadores exclusivos da luta, porque não evitam o aparelhamento pelos partidos, e
assim perdem a luta pela verdadeira reforma agrária a cada dia.
Segundo o autor, para que o movimento da reforma agrária acompanhe a
consciência social do camponês, é preciso que os projetos das pastorais e dos
movimentos sociais, de modo geral, se aproximem das demandas dos trabalhadores
rurais e da concepção que eles têm da terra e do trabalho.
O camponês, o trabalhador rural, o sem terra acaba sendo vítima de
experimentos de mudança social sem qualquer raiz na sua cultura e nos seus
horizontes. Experimentos que no geral fracassam a um custo econômico alto
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
110
para a sociedade e a um custo moral enorme para as vítimas [...] o que não
raro significa impor-lhes, um projeto que deriva de interesses que não são
necessariamente os seus (MARTINS, 2003: p.79 e 80).
O problema central da reforma agrária é que os mediadores e o Estado não
compreendem a práxis camponesa e suas concepções e ações sociopolíticas. Sendo
assim, conforme o próprio autor indica, a ignorância da dinâmica e das possibilidades
do mundo camponês e os desencontros de orientação dos agentes de mediação
estimulam conflitos internos das facções, os quais foram gerados anteriormente. Ou
seja, no interior das grandes categorias (pobre, excluído, sem-terra) já existia uma
conflitividade gerada pelo que o autor denominou de débito de sociabilidade, uma vez
que, na sua concepção, assentamento não é base nem condição de identidade, mas é
uma intervenção externa de um processo social. Por esse motivo, em um assentamento
agrário, mesmo que os sujeitos estejam supostamente voltados para objetivos em
comum de luta pela terra, ao serem fixados no espaço territorial desejado, dificilmente
conseguem construir um eixo comum de referência, de ideia de pertencimento ou de
comunidade.
Trabalhos como os citados acima nos nortearam na análise sobre a realidade
empírica de Canudos, visto que esta comunidade apresenta uma junção de
circunstâncias e uma somatória de fatos74 que expõe algumas ambiguidades entre as
ações e as políticas públicas estatais O processo não é unilateral, já que sempre haverá
reciprocidades e consequências entre os três atores envolvidos: Estado, Mediadores e
Assentados. Por isso, não podemos deixar de observar que os grupos atingidos por esses
programas lançam contradições e tensões nessa tríade relacional. Como podemos
observar em campo, a interferência não se dá apenas nos atos de intervenção física de
impactos ambientais e sociais. Estes projetos se materializam através de pessoas
diferentes, de origens, de classes, de ideologias distintas e de novas relações sociais, que
passam a mediar as relações desse processo de desencontro.
2. UMA ESTRANHA EM CANUDOS
74
Conflitos de terras, modificações na reprodução do seu modus vivendi em um espaço artificial, falta de
uma memória coletiva, dificuldade em estabelecer uma ‘relação comunitária’, e ausência de uma relação
dialógica entre a comunidade e os órgãos governamentais e institucionais.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
111
Por ter trabalhado com arqueologia de salvamento em áreas de implantação de
usinas hidrelétricas75 e ter convivido com pessoas em processo de deslocamento por
grandes obras, a reestruturação da vida cotidiana do transplantado sempre foi uma
questão que me intrigou. Motivada pela experiência anterior e intrigada pelo trabalho de
campo
propiciado
pelo
Projeto
“Semiárido:
Superação
da
Pobreza
pelo
Desenvolvimento Autossustentável”, desenvolvido junto ao NIEAIS e ao NUCLEAR,
busco abordar, neste trabalho, os conflitos internos à comunidade de Canudos, que
foram reforçados por políticas públicas implementadas pelos agentes mediadores.
Observei, nos primeiros contatos com os grupos familiares de Canudos, que os sujeitos
assentados nesta localidade possuem uma identidade complexa e, sobretudo possuem
uma estrutura familística distinta do campesinato tradicional, fatos estes que
estabeleceram para o grupo um forte débito de sociabilidade. Este “gap” estrutural foi
potencializado quando este grupo de assentados foi instado a participar de algumas
ações proposta por agentes mediadores estranhos, como o INCRA e a ONG Brejos da
Barra. Foi nesse ambiente conflitivo que a comunidade suspensa se deixou revelar, e
que a problemática da minha pesquisa se concretizou.
O trabalho de campo ocorreu nos anos de 2007 a 2010, em viagens realizadas
em meses distintos. No ano de 2007 foram realizadas três viagens a campo, em 2008
uma, e em março de 2010 a última incursão. Nos contatos iniciais foram levantadas
questões relacionadas à caracterização do modo de vida dos assentados (agrovila,
território de plantio, pesca artesanal e produção) e dos projetos implantados na
comunidade (casa de farinha coletiva, aprisco e projeto de irrigação) por meio das
técnicas de depoimentos76 e leitura de paisagem. Posteriormente, conforme foram
surgindo convites para visitas domiciliares, caminhadas pelos territórios de plantio,
convites para jantar ou para café da manhã e para participação nas rodas de conversas
no período da noite, foram usadas as técnicas de registro fotográfico e iconográfico dos
espaços, a observação das atividades cotidianas com o uso do diário de campo,
75
Enquanto prestava serviços no Laboratório de Arqueologia do Museu Antropológico da UFG, no
período de 1995 a 2004, realizei serviços técnicos especializados com material cerâmico (arqueologia
pré-histórica e histórica) no Projeto de Salvamento Arqueológico Pré-Histórico da UHE, Serra da
Mesa/Go, Projeto de Salvamento Arqueológico da UHE de Cana Brava, Projeto de Acompanhamento
Arqueológico da PCH Piranhas/Go, Projeto de Levantamento e Resgate Arqueológico da Rodovia
TO/020 (trecho: Aparecida do Rio Negro/Palmas) e Projeto de Salvamento Arqueológico da UHE
Corumbá.
76
Depoimentos pessoais: ele é encaminhado pelo pesquisador; através dele se dá a busca dos eventos que
se inserem no trabalho; ele vai propiciar maior facilidade para encerrar a abordagem; ele dispõe menos do
tempo do outro; ele ajuda no recorte dos auxiliares de pesquisa. Sobre esse assunto ver: Queiroz (1991).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
112
entrevistas temáticas e questionário com perguntas fechadas e abertas. Também foram
usados, como fonte de pesquisa, documentos oficiais como o Plano de Desenvolvimento
Sustentável do Projeto de Assentamento, a Relação de Beneficiários – ambos fornecidos
pelo INCRA –, dados do IBGE e da SEI, assim como documentos da Secretaria de
Saúde Municipal (Ficha de Cadastro). Por essa razão, há uma flexibilidade
metodológica aparente no decorrer da dissertação, que é a combinação de entrevistas
temáticas, recortes de jornais, depoimentos e descrição de atividades pautadas em
anotações de campo.
Dos moradores da comunidade com os quais interagi em trabalho de campo,
nove foram considerados informantes chaves, e foi com eles que colhi informações por
meio de entrevistas temáticas. Destes informantes chaves apenas um era uma pessoa
externa (ligada ao Sindicato dos Trabalhadores de Barra), e oito eram moradores do
assentamento (homens e mulheres que se autodenominavam como lavradores,
pescadores, comerciantes e líderes da comunidade). Nas entrevistas, foram privilegiados
os diálogos com pessoas de mais idade (entre 40 a 75 anos), que, além de tópicos
preestabelecidos, debruçaram-se sobre a história da comunidade, o surgimento do
assentamento, a relação entre as famílias assentadas, a herança do patrimônio e sobre os
projetos implantados na comunidade. Tivemos acesso à ficha cadastral de todas as
unidades domésticas, com dados sobre origem, número de filhos, condições de moradia,
uso de fontes de energia, condições de higiene, doenças preponderantes e usos de
plantas medicinais. Foram aplicados, como técnica auxiliar, surveys com famílias
assentadas e não assentadas77. As questões deste procedimento versavam sobre a
situação patrimonial, a renda familiar, a divisão de trabalho, as relações de vizinhança,
as propriedade de bens, as opiniões sobre a implantação de projetos e a relação mantida
com a associação de trabalhadores rurais e de pesca.
3. DESLOCADOS78: ESTRANHOS, MAS NÃO TÃO ESTRANHOS ASSIM
77
Algumas famílias optaram por conversar conosco sobre os temas, mas se recusaram a participar do
questionário, afirmando que não tinham nada para registrar. O registro de informações em papel parecia
ser ameaçador.
78
O uso do termo deslocado não significa que esse grupo faça parte dos grupos deslocados
compulsoriamente para a borda do lago ou para reassentamentos rurais, pois o grupo de Canudos é
composto por famílias que migraram antes ou durante a construção do lago, por acreditarem que não
teriam outra saída. Essas famílias não foram atingidas diretamente pela obra, elas não tiveram suas terras
submersas pelo lago, ou obtiveram algum tipo de indenização. Essas famílias fazem parte de um
percentual que dificilmente entra nas estatísticas das concessionárias – em sua maioria elas sofrem
impactos indiretos e migram antes mesmo da obra ser iniciada, ou antes de serem indenizadas, já que
acreditam que a falta de um título de propriedade lhes tira esse direito.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
113
O camponês é um produtor, não importando se planta ou se pesca. É um
trabalhador (não assalariado) que produz para a manutenção da própria unidade
familiar, valendo-se, para isso, de sua unidade de trabalho, do uso de mão de obra
familiar ou de uma multiplicidade de estratégias que incluem trabalhos assalariados
sazonais e aposentadorias, o que o leva a ter uma maior ou menor campesinidade. Um
camponês pode ser denominado por diferentes categorias sociais, que vão de pequenos
proprietários e arrendatários, até parceiros, meeiros, colonos e posseiros, a maioria sem
terra suficiente para trabalhar. Definindo assim, não é possível pontuar distinções entre
as famílias centenariamente moradoras da comunidade de Canudos e as famílias que
chegaram à comunidade em décadas posteriores, oriundas, em grande parte, da região
de Sobradinho.
De acordo com Sigaud (1992), a barragem de Sobradinho (localizada a 50 km a
montante de Juazeiro), foi construída entre 1972 e 197879 no governo de Garrastazu
Médici. A sua construção foi realizada pela CHESF/Companhia Hidrelétrica do São
Francisco, com a finalidade de regular a vazão do rio e otimizar o complexo de Paulo
Afonso para a geração de energia, o que implicou na formação de um reservatório de
4.214 km² (350 km² de extensão), e que deslocou mais de 70 mil pessoas, das quais
80% eram camponeses80. O lago atingiu áreas nos municípios de Juazeiro, Sento Sé,
Xique-Xique, Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e vários povoados rurais. Segundo
Martins-Costa (1989), 62% da população atingida foi reassentada na borda do lago e em
áreas rurais das novas sedes municipais reconstruídas após a inundação da vasta área
tomada pelo lago81. Essa mudança, segundo a autora, levou a sérias modificações no
79
Em 1972 começaram os trabalhos de topografia e a construção do acampamento de obras. As obras
civis e as primeiras indenizações começaram em junho de 1973. Em 1974 começaram a incentivar a
retirada para a borda do lago. Pressionada pelo Banco Mundial a prover uma solução coletiva e
administrar a reinserção da população no território, a CHESF em 1975 e 1976 concentrou os seus
esforços em convencer a população rural a optar pelo Projeto de Colonização de Serra do Ramalho,
projeto organizado pelo INCRA no município de Bom Jesus da Lapa, a 700 km da barragem. Mas como o
número de famílias que aderiram ao Projeto de Serra do Ramalho foi baixo, o projeto de reassentamento
na borda do lago teve que ser retomado em 1977 e 1978. Sobre o Projeto de Colonização de Serra do
Ramalho, ver Estrela (2004).
80
Sobre esse assunto, ver: Daou (1988); Martins-Costa (1989); Sigaud (1989a); Sigaud (1989b) Sigaud
(1992).
81
Segundo dados obtidos em Martins-Costa (MARTINS-COSTA, 1989: 29) das 11.853 famílias
desalojadas pelo reservatório: 8.283 famílias permaneceram nas imediações do lago (3.851 famílias nas
novas sedes de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado; 2.655 famílias nos núcleos de
reassentamento/povoados; 1.777 na caatinga/famílias que residiam longe do lago, mas foram atingidas);
2.282 famílias optaram por solução própria (1.385 famílias foram para cidades ou povoados a montante
ou juzante da barragem com recursos da CHESF e 897 famílias foram para cidades como São Paulo ou
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
114
sistema de produção e reprodução vigente, pois os camponeses, antes localizados em
áreas com aquíferos permanentes, foram instalados em núcleos de reassentamento em
área de caatinga, recebendo por parte da CHESF lotes agrícolas localizados em solos
secos e arenosos, em substituição aos lameiros aos quais estavam acostumados. Esta
mudança abrupta tornou-os dependentes dos regimes das chuvas ou de técnicas de
captação de água para produzirem, o que gerou a introdução de sistemas de irrigação e
de lavouras comerciais (cebola)82. Para os camponeses que moravam na caatinga e em
áreas distantes da beira do rio, mas que teriam suas terras parcialmente submersas,
houve uma solução mais rápida, pois a CHESF lhes ofereceu apoio financeiro para a
construção de casas e para a compra de novas áreas, além de dinheiro para o transporte
dos seus bens. Os demais 38% de camponeses, oficialmente reconhecidos como
impactados, foram pulverizados para várias regiões do interior da Bahia e outras
localidades.
Deste modo, a criação do reservatório modificou sobremaneira as condições
sociais de reprodução da maioria desses camponeses, uma vez que os levou à perda do
território onde estruturavam um sistema de produção regulado pelo rio.
Conforme Martins-Costa (1989), muitos camponeses duvidaram do enchimento
do reservatório e entenderam esse episódio como uma cheia excepcional, como as
grandes cheias que muitos já haviam presenciado e, portanto, tomaram as mesmas
medidas adotadas nas grandes cheias quando as águas invadiam os povoados. Outros
fatores, além do desconhecimento deste grande evento por parte dos beraderos,
contribuíram para a desarticulação dos camponeses atingidos pelas obras das barragens
de Sobradinho: a repressão política vivida no período; a falta de conhecimento de
situações de deslocamento por parte das redes sociais locais e dos meios de
comunicação; a ausência de apoio de parlamentares regionais que se mobilizaram
apenas para preservação dos interesses das elites locais; e a falta de documentos que
comprovassem legalmente a propriedade da terra por parte dos atingidos. A opção de
permanecerem até o último instante perto do rio permitiu que houvesse uma corrida pela
Belo Horizonte); 1.026 famílias optaram pelo projeto de Colonização de Serra do Ramalho e 262 famílias
tiveram destino ignorado pela CHESF.
82
Segundo Daou (1988), a situação dos atingidos nas sedes municipais foi resolvida pela CHESF, mas a
complexidade da situação dos camponeses levou a companhia a solicitar a ajuda do INCRA e da
ANCARBA. A proposta apresentada pela ANCARBA em 1974 foi abandonada em função dos custos,
pois indicava a utilização de irrigação pelas famílias, que seriam reinstaladas nas proximidades do lago.
Mas como o projeto proposto pelo INCRA (Serra do Ramalho) não teve o resultado desejado, o projeto
de reassentamento na borda do lago foi retomado e resultou na implantação de 25 núcleos de
reassentamento, distribuídos nos municípios de Sento Sé, Casa Nova, Remanso e Juazeiro.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
115
privatização de grandes extensões por parte dos fazendeiros e políticos atraídos pela
infraestrutura construída para a obra, o que dificultou, posteriormente, a recolocação de
mais famílias na borda do lago. Deste modo, os que foram instalados nas imediações
obtiveram, por parte da CHESF, em média, um lote de apenas 10 hectares, dos quais
60% não possuíam ligação com o lago. Por terem tardiamente compreendido o processo
de deslocamento compulsório, os camponeses da região de Sobradinho já estavam
descapitalizados, pois as indenizações contemplaram apenas as benfeitorias e acabaram
sendo consumidas com alimentação, já que no ano de retirada, segundo Sigaud (1992),
não houve colheita. A retomada da produção, por conta de todos esses fatores, também
sofreu uma modernização compulsória – a adesão ao sistema de irrigação foi necessária.
Esta modificação, introduzida pela modernização conservadora, significou a
incorporação do crédito fundiário e a adesão a pacotes tecnológicos para culturas
comerciais. Como a irrigação era possível apenas em lotes que tinham acesso a água, os
lotes distantes do reservatório foram abandonados para o plantio.
Após a criação do lago, o panorama local se modificou rapidamente. Na nova
região do reservatório de Sobradinho, os camponeses articularam três tipos de
agricultura: o plantio praticado na borda do lago, onde se aproveitava a oscilação do
reservatório para praticarem algum cultivo de lameiro, embora o terreno não fosse
fertilizado como antes e nem tivesse a mesma regularidade de oscilação do nível da
água; o plantio irrigado dos terrenos de caatinga, onde cultivavam produtos
comercializáveis, como a mandioca; e o plantio nos terrenos de chuva, onde cultivam
produtos comercializáveis, como a mamona e alguns produtos de subsistência. Para
Sigaud (1992), o cultivo de produtos estritamente comerciais, dependentes do crédito
bancário, do uso de motores de irrigação e de insumos agrícolas, significou a
subordinação dos camponeses atingidos ao sistema bancário, ao mercado de insumos e
ao mercado nacional de produtos comercializáveis. De camponeses livres, tornaram-se
agricultores completamente subordinados à lógica do mercado, e vulneráveis aos
processos de inadimplência e de perda do patrimônio. O sintoma desta subordinação se
revelou na redução da pecuária e da queda brusca da pesca artesanal como atividade de
sobrevivência.
O sistema de produção descrito em Sobradinho antes da construção da barragem
– área de lameiro ou vazante, terra molhada, terra seca ou terrenos de chuva, cultivo de
plantas, como a mamona na caatinga, criação de gado na larga, prática da pesca
artesanal, relações entre a unidade de produção e de consumo – é similar ao descrito
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
116
anteriormente como sendo o sistema de produção encontrado em Canudos. Não é
possível pontuarmos distinções societárias entre o modo de vida dos lavradores e
pescadores de Sobradinho, que chegaram posteriormente a Canudos, ao das pessoas que
já moravam nessa localidade. Todos eles viviam em situações semelhantes de tempo e
espaço, e eram grupos sociais com históricos análogos, e com formas similares de
apropriação territorial, mantendo relações semelhantes com a sociedade regional. No
entanto, em campo foi possível ver que a diferenciação existe, mesmo quando os grupos
familiares salientam que todos os moradores são parentes, em função das alianças por
matrimônio. As distinções existem, não só porque houve uma perda de importantes
referências na vida social dessas famílias, ou seja, no modo como as casas estavam
distribuídas, nas redes sociais de reciprocidade e na afinidade ou na organização da sua
vida doméstica, mas porque os deslocados que chegaram a Canudos são sempre
consideradas “de fora”, por mais que morem no local há vários anos ou que tenham
uma forma similar de sistema de produção e reprodução. Apesar de Canudos ser hoje
um assentamento do INCRA, ela era originalmente uma comunidade centenária, e é por
meio da superioridade imposta pela ascendência adquirida com a precedência na
chegada a um determinado lugar que propomos pensar essa distinção.
A sociabilidade distinta entre os grupos familiares ocorre em função de o
assentamento ter sido estruturado a partir de grupos “de dentro” e “de fora”. Nas
comunidades camponesas, o parentesco é construído pela aliança e pela descendência.
São o casamento e a descendência que estabelecem quem é “de dentro” e quem é “de
fora”. Ser um “de dentro” significa ter antepassados comuns, segundo a unilinearidade
paterna, e ter privilégios por isso. Ser um “de fora” significa ser um desconhecido, um
“estranho”. Mesmo que um “de fora” venha a se tornar um parente, por adquirir laços
matrimoniais com uma mulher “de dentro”, ele terá filhos considerados “de fora” e
nunca poderá contar com os mesmos privilégios de uma pessoa “de dentro”, seja na
divisão de territórios, patrimônio ou relações de reciprocidade83. Essa característica das
comunidades rurais centenárias é de suma importância, mas em Canudos os moradores
têm dificuldades em exteriorizar verbalmente essa categorização, como se houvesse
uma tentativa de atenuar essa tensão. De todas as pessoas com as quais conversamos,
inicialmente nenhuma delas se considerou um “de fora”, afirmando que todos são
parentes. No entanto, várias pessoas são de outras regiões, mas só se veem como um
83
Sobre esse assunto, ver: Woortmann (1990); Cardel (1987; 1992) e Godói (1999).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
117
“de fora” quando são inquiridos sobre o local de nascimento. Geralmente ser um “de
fora” se concretiza na fala do “outro”, e não no próprio relato. Todos eles estão na
condição de parentes, dado os anos em que as famílias contraem matrimônio entre si.
Em situações assim, é esperado que todos se considerem parentes, mesmo que sejam
apontados como ciganos pelos seus vizinhos84.
Os fragmentos abaixo demonstram a origem de algumas famílias e evidenciam o
uso da categoria êmica “de fora”, empregada pelos próprios entrevistados:
1º Segmento:
J.R.V.: São todos daqui. Mas, tem, tem. Inclusive eu mesmo
sou“de fora”, sou do brejo do São Gonçalo [...]. Aqui tem
gente que mora aqui que era sabe da onde? Esse povo aqui tem
gente de Pilão Arcado, é gente que veio antigamente, naquelas
jangadas. O povo vinha cá umas horas. Aí uns voltaram e
outros num voltaram mais e aí então ficaram aqui. Uns acharam
bom, outros acharam ruim. É, tem família de outros lugar [...]
Casa Nova. Naquela época da barragem aí uns ficaram lá,
outros num quiseram ir lá pra onde foi os morador novo. Tem
gente deles até aqui nessas grota por aí. Aí o povo ficou
espalhado [...] 85
2º Segmento.
R: A família da sra. é daqui? Filhos, marido, pai?
D.F.S.: É, é. Meu pai, meu pai num é daqui não, nem meu pai
nem minha mãe. Meu pai é de Remanso.
R: Remanso é região de Sobradinho, não é?
D.F.S.: É. Ele encontrô com minha mãe aí na Barra, minha mãe
estudava aí na Barra. Ele encontrô com ela aí, aí que casaram. E
aí acharam por bem de morarem aqui (risos). Na realidade
daqui mesmo somos nós, os filho, né?
R: Os filhos. Ele veio pra cá em que época?
D.F.S.: Eu nem lembro a época que ele veio pra qui. Tem muito
tempo, tem.
R: Antes ou depois de construírem a Usina, a barragem de
Sobradinho? Porque teve umas pessoas que moravam por lá,
que tiveram que sair, não foi?
84
Uma informante que teve toda a sua família nascida e criada em Canudos (pais, esposo, filhos)
denominou uma de suas vizinhas como cigana, só para dizer que, ao contrário da moradora ao lado, ela
não havia vivido em outro lugar. A vizinha em questão mora na comunidade de Canudos há mais de
quinze anos, com esposo e filhos.
85
Entrevista realizada em Canudos, em 2008, com um atravessador e lavrador assentado que atualmente
tem 70 anos de idade e mora na localidade há 34 anos.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
118
D.F.S.: Não. Naquela época ele já tinha vindo. Já tá com oitenta
e oito, já. Minha mãe era é nova nessa época que ele veio pra
qui, tem anos isso. Ele é “de fora”, mas os filhos dele foi tudo
da Barra pra cá. 86
Existe também uma distinção de direitos entre os moradores mais velhos e os
mais jovens, quanto ao tamanho dos espaços de plantio e a sua localização. Porém,
oficialmente, essa distinção não existe, pois os lotes das unidades familiares ainda não
foram demarcados pelo INCRA. Assim, o tamanho das roças tem relação com a
quantidade de mão de obra familiar de que a família dispõe para manter. Da mesma
forma, a localização das roças tem relação com o tempo de moradia na comunidade.
Famílias que estão há mais tempo em Canudos possuem roças mais próximas à
agrovila, na área que eles denominam de boca da caatinga, mas as famílias que
chegaram, depois das suas migrações temporárias por São Paulo, por exemplo,
colocaram suas roças mais afastadas da comunidade, em uma região denominada
caatinga da serra do Barro Branco. Essa distinção determina o que as pessoas podem
criar nos quintais e as dimensões dos espaços de quintais, espaço fundamental para a
sobrevivência das unidades familiares.
1º Trecho:
M.R.N: As pessoas acham que você não tem direito porque
você não é daqui. Aqui não pode ter criação no quintal, uma
galinha, uma cabra. O vizinho já está do lado falando. Mas se
você não criar, vai até morrer de fome. E plantar, nesta roça de
caatinga, é só a mamona mesmo87.
2º Trecho:
R: Os quintais aqui são de quantos metros? Eles seguem um
padrão?
F.X.S.: Não. Desses das casas do INCRA tem um padrão, mas
tem outros aí que não tem, é uns mais e outros menos. Das
casas que o INCRA constrói, o padrão é um, é 20 metros.
Agora, os que são mais antigos, que construíram por conta
deles, fez de 50, fez de 100, fez do jeito que pôde88.
86
Entrevista realizada em Canudos em 2010, com uma assentada lavradora e dona de venda.
Entrevista realizada em Canudos em 2010 com uma assentada, lavradora que vive em Canudos há 17
anos e tem 47 anos de idade
88
Entrevista realizada em 2008 em Canudos com um assentado lavrador de 69 anos, que mora em
Canudos há 35 anos. O assentado já esteve à frente da associação local por duas vezes.
87
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
119
Apesar de haver uma distinção entre “de dentro” e “de fora”, isso não significa
que homens e mulheres da comunidade pratiquem a endogamia. Não podemos esquecer
que a migração temporária é uma forte estratégia que os grupos domésticos lançam mão
para continuarem com o seu sistema de reprodução, o que leva as pessoas “de fora” a
serem inseridas na comunidade. O depoimento abaixo é um exemplo desta situação.
M.S: Pois é, a mulher do Chico Mineiro mesmo, num é daqui,
ela é “de fora”. É do município de Alagoas, né?
J.R.V.: É. Esses foi misturado em São Paulo.
M.S.: É, foi misturado em São Paulo, aí veio pra qui e mora
aqui. Ele é daqui. Ele é filho ali do Chico d´Baixo (um morador
“de fora” que está em Canudos há muitos anos). Ele casou
com essa mulher lá em São Paulo, mas ela é lá de Alagoas, num
é daqui não. 89
Na entrevista que citaremos a seguir, mesmo o entrevistado tendo sido apontado
como um “de fora” por outros informantes, ele demonstra que essa não é a sua
percepção. Mas, de forma homóloga aos informantes de Norbert Elias e Scotson, na
obra “Os Estabelecidos e os Outsiders”, o entrevistado usa da prioridade da chegada ao
espaço físico da comunidade para distinguir como “de fora” residentes que nasceram
ou moraram na outra margem do rio.
R: O Sr. nasceu e cresceu onde?
F.X.S.: Eu nasci em Casa Nova.
R: Que é na região de Sobradinho, não é? E o Sr. mudou pra cá,
quando?
F.X.S.: E mudei pra qui em 60, em, em 90, 98 por causa da, foi
naquela época da barragem.
R: De Sobradinho?
F.X.S.: De Sobradinho. Cheguei de lá em Irecê, que foi em 98,
num foi em 98, não?
P.S. Num foi em 98, não. Em 77, em 76 eu fui pra São Paulo, já
deixei vocês aqui. Quando eu fui pra São Paulo, eu já deixei
vocês aqui.
F.X.S.: Então nós mudamos pra qui em 72, parece.
P.S: Em 74, por aí. Em 72 num foi não, em 72 ele pode ter
vindo pra Xique-Xique, mas pra qui não. Ele veio em 75, 74.
F.X.S.: Em 72 eu saí de lá com tudo.
P.S. Pra Xique-Xique, e aqui foi 74 ou 75 [...]
R: E as famílias assentadas em Canudos, são de onde?
89
Entrevista realizada em 2008, com lavrador e atravessador da localidade.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
120
F.X.S. São daqui. “De fora” aqui num tem nenhum, “de fora”
num tem ninguém aqui. Só tem da comunidade. A não ser os
que mudaram ali do outro lado pra qui (lado direito do rio São
Francisco). Eh, mais eles já moravam aqui, porque eles são daí,
do lado de Xique-Xique. E eles mudaram de Xique-Xique pra
qui e ficou aqui mesmo. Mas eles já morava aqui, aí de XiqueXique e, quando foi em 79, eles mudaram pra qui de estadia
mesmo. Já vieram de estadia e aqui foi ficando.
P.S.: Eles vieram de estadia mesmo, fizeram as casa de pau.
F.X.S: É porque eles ficaram dentro do assentamento e aí
ficaram no conjunto do assentamento.
Como já colocamos acima, Elias (2000), uma sua minuciosa pesquisa sobre uma
comunidade interiorana da Inglaterra, investiga o dia a dia de uma vila chamada
Winston Parva, com o objetivo de demonstrar como os moradores antigos/estabelecidos
se relacionavam com um grupo de moradores que havia chegado posteriormente à
comunidade. Os antigos moradores do lugar denominavam o outro grupo de outsiders,
ou seja, gente de fora e, por esse motivo, sem direitos plenos na vida social local. E
mesmo após vários anos de moradia no local, o grupo que ocupou o território
posteriormente continuava sendo visto e tratado pelo primeiro grupo/estabelecidos
como sendo estrangeiro e intruso. Como resultado desse comportamento, existiam
desigualdades relevantes que marcavam as relações entre os dois grupos. A conclusão
das investigações de Elias e Scotson foi que os dois grupos sociais eram muito
próximos, como é o caso do assentamento de Canudos, mas que eles haviam criado
diferenças, largamente idealizadas, que os dividiam internamente, gerando estereótipos
e preconceitos sociais recíprocos90.
Esta situação é determinante na sociabilidade de Canudos. O status diferenciado
dos grupos que compõem a comunidade não consegue ser amenizado, nem mesmo
pelos mediadores mais persistentes.
4. IGREJA: MEDIAÇÃO, PROJETOS COLETIVOS E COMUNITÁRIOS
Podemos dizer que a Igreja Católica trouxe para si a responsabilidade de revelar
a sofrida luta dos camponeses e dos operários, principalmente durante os anos mais
duros do regime militar. Segundo Martins (1984), a Igreja propôs uma mudança
90
Os assentados mais antigos, que possuem menos tempo de associação, chamam os mais velhos de
mandões e sabichões; os mais velhos afirmam o tempo todo que os mais jovens não têm interesse no
trabalho com a roça e nem interesse em aprender com os mais experientes.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
121
estrutural no período mais duro da história recente do Brasil, e em pleno período militar
passou a lutar ao lado dos pobres urbanos e em defesa dos excluídos rurais. A postura da
Igreja foi interpretada por Martins (1984) como uma mudança processada no seu interior,
pois, diante da repressão policial, militar e política do regime militar, a Igreja se
transformou em um refúgio, já que era para lá que se dirigiam os trabalhadores rurais
perseguidos e expulsos da terra. A instituição religiosa viu-se, assim, confrontada com a
violência do latifúndio e, como resposta, deu respaldo para a criação da Comissão
Pastoral da Terra, em 1975. O compromisso inicial desta organização estava baseado em
apoiar as iniciativas e as organizações dos trabalhadores, valorizando as lutas em defesa
da reforma agrária. Por meio da ideologia cristã que nega o processo da mercantilização
fundiária, a CPT ofereceu um apoio institucional importante às lutas dos camponeses,
que até então eram secundarizadas pelos partidos políticos.
Para Martins, a Igreja resgatou, assim, a função social da terra, que deve ser a
fonte de liberdade para todos, e nunca um elemento de dominação nem de privilégios.
Neste sentido, para a Igreja Católica, a luta dos trabalhadores rurais não é mais do que o
restabelecimento do direito natural e divino da posse e do uso da terra pela lógica do
trabalho humano. Conforme a CNBB (1981), a terra de exploração, denominada de terra
de negócio, é a terra de que o capital se apropria para crescer continuamente e gerar
novos lucros. Entretanto, a visão da Igreja nesse período, respaldada pela ideologia da
Teologia da Libertação91, era a de que a função da terra para o trabalhador rural deveria
girar em torno de uma lógica mais naturalista, que aparece no direito popular da
propriedade familiar e comunitária e no regime de trabalho igualitário, presente em
91
A teologia da libertação é uma corrente teológica que engloba diversas teologias cristãs desenvolvidas
no Terceiro Mundo ou nas periferias pobres do Primeiro Mundo a partir dos anos 70 do século XX,
baseadas na opção preferencial pelos pobres, contra a pobreza e pela sua libertação. Desenvolveu-se
inicialmente na América Latina. Na sua concepção central, a situação de pobreza é denunciada como
pecado estrutural, e estas teologias propõem o engajamento político dos cristãos na construção de uma
sociedade mais justa e solidária, cujo projeto identifica-se com ideais da esquerda. Uma característica da
Teologia da Libertação é considerar o pobre, não um objeto de caridade, mas o sujeito de sua própria
libertação. Assim, seus teólogos propõem uma pastoral baseada nas comunidades eclesiais de base, nas
quais os cristãos das classes populares se reúnem para articular fé e vida, e juntos se organizam em busca
de melhorias de suas condições sociais, através da militância no movimento social ou através da política,
tornando-se protagonistas do processo de libertação. Além disto, apresentam as Comunidades Eclesiais de
Base como uma nova forma de ser igreja, com forte vivência comunitária, solidária e participativa.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
122
diversas comunidades. Segundo a própria CNBB, a terra deveria ser concebida como
propriedade de todos, e os frutos deveriam pertencer à família que nela trabalha.
Nesta concepção social, política e religiosa, a terra é uma dádiva de Deus. Ela é
um bem natural, que pertence a todos, e não um produto do mercado ou da
mercantilização das coisas humanas. Assim sendo, a CNBB assumiu, por meio da CPT,
o compromisso pastoral de ajudar a compreender o problema da posse e do uso da terra
numa visão cristã, socialmente justa e mais fraterna. De acordo com a Igreja, era na luta
e na mobilização desses trabalhadores que residiria o verdadeiro sentido da reforma
agrária. Compreender o processo histórico que levou os trabalhadores rurais a lutarem
pela terra de trabalho poderia garantir a justiça e o direito ao trabalho para quem nela
trabalhasse. Essa postura de parte da Igreja Católica permitiu que os grupos leigos
ligados à Igreja e uma parcela da sociedade civil questionassem a própria postura dos
partidos de esquerda em relação às lutas camponesas. Por tudo isso, José de Souza
Martins, um dos teóricos da sociologia brasileira que mais se debruçou sobre a temática
da luta pela terra e da percepção política e religiosa sobre reforma agrária, declara que:
A Igreja é o espaço mais adequado para agasalhar relações sociais
comunitárias, que se desenvolvem nos momentos e situações de maior
tensão, no enfrentamento com grileiros, policiais, jagunços, no enfrentamento
com a aliança entre o poder público e o poder privado para expulsar ou para
expropriar o trabalhador (MARTINS, 1984: p.17)
Entretanto, depois da década de 1990, o discurso da Igreja, na figura da Comissão
Pastoral da Terra e dos agentes da Pastoral, começou a deixar claro que os conflitos
fundiários eram resultados de um processo político de recrudescimento da concentração
fundiária. Numa mudança de estratégia de ação, a atuação desses agentes pastorais
passou a se voltar, com maior ênfase, para a luta pela terra via partidos políticos. Houve,
assim, uma crescente partidarização e homogeneização das ideias dos agentes sociais
integrantes da CPT. Essas posturas político-partidárias levaram o sociólogo e ideólogo
José de Souza Martins, que até então assessorava a CPT, a se afastar desta pastoral e a
questionar as suas ações como mediadora na luta camponesa pela reforma agrária92. No
92
Apesar das críticas que começam a esboçar em relação à Igreja na década de 1990, Martins não se
esquece de ressaltar que se deve à CPT o surgimento de um fato extremamente relevante para a luta em
favor da reforma agrária na década de 1980 – o surgimento do MST, um movimento social forte e
organizado de luta pela terra, nascido no Sul, no seio da Pastoral da Terra e das comunidades eclesiais de
base. Esse movimento social se fortaleceu principalmente a partir de 1994, com as disputas pela terra no
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
123
fundo, o autor temia que o imediatismo dos mediadores reduzisse a luta pela
reestruturação fundiária unicamente aos objetivos econômicos mais imediatos.
Para Martins (2002) havia uma Pastoral, que se difundiu na década de 1970 e
1980, que era inspirada pela defesa dos direitos humanos, mais do que por qualquer
preocupação com políticas de classe ou pela conscientização política e a partidarização
dos pobres e das vítimas da adversidade. Nisso, aliás, estava seu grande mérito: o da
identificação com os valores universais relativos à condição humana, e não apenas com
os particularismos de classe e de partido. Na sua compreensão, a Igreja também caiu na
simplificação sociológica acerca do que significam as lutas camponesas e o mundo rural.
Neste sentido, sua crítica é contundente: “as ações políticas foram invadidas,
contaminadas, aparelhadas e parasitadas por ideólogos e agentes partidários, no geral
sem formação acadêmica específica e sem competência teórica apropriada” (MARTINS,
2002, p. 55).
A Igreja, a partir desta mudança, se orientava pela partidarização, organizando os
trabalhadores rurais nos partidos políticos, com o objetivo principal de conquistar os
poderes setorizados do Estado. As diversas necessidades dos trabalhadores rurais foram
diluídas numa única categoria genérica de trabalhador, ideologicamente construída em
torno do conceito de classe social, derivado de uma noção urbana e econômica. Martins
tornou-se um crítico contumaz desta nova visão da entidade, pois na sua visão de
ideólogo e sociólogo, a realidade agrária reivindicava outras formas de luta, afinadas
com a emergência das várias categorias e dos vários sujeitos sociais do meio rural
brasileiro.
Com a presença cada vez mais forte do MST e do PT, segundo Martins, houve
uma substituição do posseiro pela categoria dos sem-terra. E assim, a luta pela
permanência na terra foi suplantada pela luta por desapropriações e assentamentos dos
trabalhadores rurais sem-terra. A necessidade não é mais pela posse da terra, mas pela
ocupação da terra. Ou seja,
“a figura do posseiro foi substituída por outra figura regional, a do pequeno
agricultor sem terra da região Sul...Na verdade, foram derrotados os
mediadores, que traduziram mal e insuficientemente as necessidades e os
projetos implícitos na prática e nas lutas dos trabalhadores. Os trabalhadores
foram derrotados também por seus aliados”. (MARTINS, 1994: p.150 e 158)
Pontal do Paranapanema, em São Paulo, e também com as consequências do processo de modernização da
agricultura brasileira, que excluiu uma grande parcela de trabalhadores rurais, chamados de sem-terra.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
124
Em suas análises referentes à CPT, Martins afirma que os grupos políticos de
esquerda impuseram uma visão de mundo que acabou por convencer os agentes da
pastoral de que seu trabalho deveria estender-se além dos seus espaços de atuação.
Assim, gradualmente, a política partidária passou a definir o sentido quase exclusivo da
ação pastoral. O trabalho realizado pelos agentes nas localidades rurais passou a ter o
objetivo da transformação política e, assim, a CPT se voltou para a organização de
sindicatos e de partidos políticos ligados ao MST, como caminhos para viabilizar a
transformação almejada. Deixou de ser prioridade a conscientização política dos
trabalhadores rurais, para que estes pudessem garantir seu direito, que era o direito à terra
de trabalho. E passou a imperar, de forma absolutista, a concepção de que qualquer
mudança mais radical estaria situada na luta partidária. Desta forma, nas novas
concepções teóricas que passaram a vigorar, o trabalhador rural tornou-se um trabalhador
enquadrado no projeto ideológico de classe social, o que inviabilizava o reconhecimento
de diversas categorias de trabalhadores rurais e de suas necessidades diferenciadas.
Infelizmente, “predominou o pressuposto da classe social e de que só a classe é
politicamente eficaz” (MARTINS, 1994, p.165), o que levou a reforma agrária a ficar
limitada a uma política econômica de expropriação dos trabalhadores rurais, de
intervenção nos conflitos do campo93. Criou-se uma situação muito diferente daquela
voltada à luta pela terra e da luta dos camponeses contra a renda fundiária e da terra de
negócio. Em resumo, o camponês ficou diluído na categoria abstrata de trabalhador rural
e perdeu sua historicidade única de um grupo social.
Como Martins (2000) aponta, o conhecimento dos mediadores e das agências de
mediação, como a CPT, frente à realidade em que eles intervêm, é limitado, e a ação
política desses protagonistas não corresponde à compreensão histórica da estrutura da
sociedade camponesa e nem ao seu modus vivendi. Mediadores que acreditam na ideia de
que as comunidades rurais brasileiras e os assentamentos da reforma agrária possuem
uma disposição para a vida comunitária e coletiva são comuns. Por essa razão, não é
93
Esses conflitos se agravaram no Brasil, principalmente no processo de modernização da agricultura
com a expansão da fronteira agrícola para o Centro-Oeste e a Amazônia brasileira. Portanto, foi na
realidade da fronteira que esses interesses conflitantes, os quais colocaram de um lado o camponês em sua
luta para resistir às tentativas de expropriação e, de outro lado, o capitalista que invoca o direito para
expropriar o camponês, que Martins registrou essas contradições. O que caracteriza a fronteira no Brasil,
para o autor, portanto, é a situação persistente de conflito social. Assim, partindo da lógica de resistência
do camponês, a luta agrária seria a própria lógica da luta pela terra de trabalho (lugar de afirmação da
dignidade humana) contra a terra de negócio (lugar de desumanidades, regido pelo avanço do capital).
Uma luta de resistência e de natureza anticapitalista. Sobre esse assunto, ver: Martins (1997).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
125
difícil encontrarmos mediadores como padres da Igreja Católica ou membros de ONGs
que formulam projetos coletivos para serem implantados em áreas rurais. O caso de
Canudos não foi diferente. Denotando desconhecimento sobre o modo de vida camponês
e sobre os conflitos internos da comunidade de Canudos, gerados pelo assentamento de
famílias com primazias distintas, a Igreja de Barra propôs e buscou junto aos órgãos
competentes o financiamento, no ano de 2000, para a construção de uma casa de farinha
coletiva e eletrificada. No entanto, a implantação desse projeto não foi suficiente para
sanar o débito de sociabilidade existente no assentamento e para que o trabalho coletivo
se concretizasse e reforçasse elementos identitários entre os grupos familiares distintos.
Segundo Martins (2003), tudo parece indicar que os agentes mediadores
trabalham com a pressuposição de que basta oferecer oportunidades, sobretudo
econômicas, para que elas, por si só, promovam as readaptações necessárias. Mas a terra
em si, ainda que cercada de apoio, não é suficiente para promover uma revisão de
valores e uma reorientação nos relacionamentos, pois os assentamentos são
comunidades frágeis. As tentativas de se criar um cimento social por meio da criação de
estruturas baseadas em valores comunitários e coletivos geram, quase sempre, crises e
corrosões. Por não serem comunidades autênticas, o sentimento comunitário aparece
mais no período do acampamento e na euforia das festas. O esforço de coletivização
forçada, a partir do “de fora”, e de opções ideológicas dos agentes de mediação, não
funciona, e o resultado dessas intervenções tem sido uma sucessão de projetos falidos.
Historicamente, como vemos na literatura sobre este assunto, as comunidades rurais
assentadas não possuem uma boa adesão aos projetos coletivos94. E em Canudos, pelos
vários fatores já listados, a falta de uma cota mínima de sociabilidade e de identidade
grupal, além de não gerar laços de solidariedade, também não gerou compromissos
sociais com os bens públicos instalados na comunidade. Assim, o projeto da casa de
farinha foi sucateado com menos de um ano de uso.
94
Enquanto esperava a hora de ser atendida por um de nossos informantes no Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Barra, pude presenciar uma conversa entre uma das funcionárias do sindicato e
uma assentada associada. De acordo com a funcionária, estava chegando à Barra um projeto para a
construção de galpões para a criação de galinhas. O projeto liberaria para cada família o valor de R$
60.000,00, o que garantiria a construção do galpão e a aquisição de galinhas e ração. O projeto também
contemplava apoio técnico durante os primeiros seis meses. Segundo a funcionária, o projeto era bom,
afinal ninguém gastaria R$ 60.000,00 para adquirir esses itens. Mas a senhora disse, de forma incisiva,
que ela não queria. Seu argumento foi que projetos com muita gente e com gente que não se conhece
nunca dão certo. No mais, ela não queria, pois não gostaria de se endividar, porque não daria conta de
pagar a dívida.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
126
Assim como Martins, vários autores (RIBEIRO, 1998; SABOURIN, 1999;
ESTRELA, 2004; SILVA, 2004, LOERA, 2006) constataram, em suas pesquisas, essa
dificuldade de implementação de projetos comunitários e coletivos em comunidades
rurais e assentamentos. E em quase todos os casos, as pesquisas apontaram para a
falência desses projetos, que às vezes são abandonados ou sequer aceitos pela
comunidade. Sabourin (1999), em um artigo onde discute o papel e a apropriação local
das ações desta natureza, ilustra a ineficiência e as dificuldades das políticas públicas,
quando estas ignoram a lógica da reciprocidade e persistem em propor projetos apenas
para o desenvolvimento do intercâmbio mercantil. Conforme este autor relata, nas
comunidades rurais nordestinas as quais pesquisou, o processo de implementação de
projetos se deram por meio de uma lógica eminentemente assistencialista e clientelista,
tanto do lado do Estado, da Igreja e dos Mediadores, quanto do lado das comunidades
rurais favorecidas. Após a entrega das cisternas, dos açudes e das casas de farinha para
as associações, e para a autogestão das populações beneficiadas, os projetos passaram a
ser motivos de conflitos intracomunitários e acabaram sendo abandonados pelos grupos
beneficiados.
Esse fracasso, para Silva (2004), se dá porque muito desses projetos não
correspondem aos interesses e à capacidade dos assentados, o que significa que os
projetos são impostos e não são uma reivindicação dessas comunidades. Ribeiro (1998),
ao narrar a sua experiência com uma comunidade rural camponesa do Estado do Mato
Grosso, apontou que a comunidade por ela pesquisada rechaçou, sem nenhuma
possibilidade de renegociação, um projeto de modernização da produção de farinha,
levado por técnicos do Estado e da Universidade Federal do Mato Grosso. Estes
mediadores, frente à grande demanda do mercado local pela farinha artesanal produzida
pelos camponeses, apresentaram uma proposta de modernização voltada para o aumento
da produtividade da farinha, que consistia no uso de uma casa eletrificada e na divisão
do espaço de trabalho entre várias famílias. Segundo a autora, após tensas negociações
entre os moradores e os técnicos, uma casa de farinha eletrificada foi construída e,
alguns meses depois, foi abandonada. A questão central, apontada pela autora, foi o
desencontro entre a linguagem técnica e produtivista dos mediadores externos, e a
linguagem tradicional e simbólica do grupo. Este último associava a boa aceitação da
farinha por ele produzida no mercado da Cidade de Cuiabá, não apenas às qualidades
produtivas do seu produto, mas também às suas características místicas. Todas as
atividades que envolviam a feitura da farinha estavam envoltas no imaginário religioso
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
127
deste campesinato, e era construtor de um ethos diferenciado, que dava um forte
elemento identitário contrastivo para este grupo social. Assim, o elemento de
modernização implementado especificamente para o aumento da produção da farinha,
feriu a ordem cosmológica, na qual este produto estava inserido, e foi totalmente
descartado pelo grupo, para a infelicidade e a incompreensão dos técnicos envolvidos
no processo.
Conforme aponta a autora, existe uma resistência cultural dos grupos frente a
mudanças que atropelam o ideário e o imaginário tradicional camponês. Geralmente
esses grupos não abandonam, inclusive, as suas práticas corriqueiras, como o uso do
tipiti, o forno de torrar ou o controle do seu tempo de trabalho. Isto é algo que os
mediadores e os técnicos responsáveis pela implementação de projetos de modernização
do sistema produtivo da agricultura familiar dificilmente conseguem compreender
Assim como em Mato Grosso, em Canudos o projeto da casa de farinha coletiva
e eletrificada, levado pelos agentes da pastoral local, foi implementado e sucateado com
menos de um ano de uso. Conforme relatos, primeiramente os moradores da
comunidade usavam a casa de farinha do dono das terras, mas, com a criação do
assentamento, a Paróquia de Barra acreditou que a construção de uma casa de farinha
coletiva seria uma forma de unir os moradores da localidade em um projeto comum. De
acordo com entrevistas, a casa de farinha não funcionou logo que foi edificada, porque a
energia elétrica ainda não havia chegado à comunidade. No entanto, após a instalação
da energia, a casa de farinha funcionou menos de um ano, e o que era para ser um
projeto coletivo, tornou-se alvo de conflitos. E assim, na medida em que o morador
responsável pela manutenção das máquinas parou de fazer a manutenção dos
equipamentos, ninguém da comunidade se prontificou a fazê-la, e as peças se
deterioraram por falta manutenção. Na atualidade, todo o maquinário encontra-se
sucateado e abandonado. Entretanto, as primeiras peças deterioradas nos foram
apresentadas e, apesar de sermos leigos no assunto, as peças não nos pareceram
demandar muitos recursos para serem consertadas. O que observamos é que os
moradores se recusam a se comprometer com a manutenção do maquinário, da mesma
forma que se recusaram a se cotizar para adquirir uma nova peça, de valor irrisório, e
assim colocar a casa de farinha em funcionamento. E hoje, as pessoas usam uma casa de
farinha com motor a diesel, que pertence a uma das famílias da comunidade (Família
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
128
Sotero)95, e ainda pagam dez litros por cada cinquenta litros produzidos. Quando
inquiridos sobre o motivo do término do projeto, houve muitos que não souberam
responder, mas as três respostas mais usuais foram: que as pessoas deixaram de plantar
mandioca; que a conta de energia elétrica da casa era cara; e que a farinha produzida
não prestava, e que não tinha o mesmo sabor e a mesma granulação em função do uso
de maquinários, resposta esta que coincide com a dos camponeses estudados por
Ribeiro em Mato Grosso.
A lógica comunitária, que deveria ser a mola mestra para a socialização e o uso
comum da casa de farinha, revelou-se inexistente, para a frustração dos agentes da
pastoral que imaginaram e realizaram o projeto. Como afirma o informante F.X.S.:
O maquinário da farinha, ela tem um pinhão ali pra funcionar as
paleta, né? Aí o pinhão tem que sempre engraxar ele. Aí, o
cabra que tomava conta deixou de engraxar, e o bicho resseca
se não engraxar. Aí ele rebentou, rebentou moço! Quebrou os
dois dentes! Aí quebrou os dois dente e acabou, não roda mais.
A gente nunca mais mexeu com isso aí. 96
Foto 4: Foto demonstrativa do estado de depredação do maquinário da Casa de Farinha Coletiva e
Eletrificada. (Autora: Rejane Oliveira, 2007)
95
Apenas oito famílias em Canudos continuam produzindo sua própria farinha.
Entrevista realizada em 2008, em Canudos, com um assentado lavrador de 69 anos, que mora em
Canudos há 35 anos. O assentado já esteve à frente da associação local por duas vezes.
96
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
129
Os moradores de Canudos não se comprometeram com a manutenção do
maquinário nem com o conserto da primeira peça inutilizada. A estrutura física da casa
de farinha coletiva e eletrificada foi sendo sucateada lentamente, com o passar dos anos,
pelos próprios habitantes da comunidade. Segundo os informantes entrevistados, telhas,
portas, tijolos e madeiramento foram sendo retirados quase sempre à noite e utilizados
pelos próprios moradores em suas propriedades. Nomes não são citados, mas os grupos
que constituem as várias facções do assentamento se acusam mutuamente. As fotos
abaixo evidenciam a modificação da construção no intervalo de poucos meses de
trabalho de campo.
Foto 5: Foto da frente da construção da Casa de Farinha Coletiva e Eletrificada, quando ela já
apresentava algumas falhas no telhado.
(Autora: Rejane Oliveira, 2008)
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
130
Foto 6: Foto da frente da construção da Casa de Farinha Coletiva e Eletrificada quando ela já apresentava
falta quase total do telhado, e falta das duas áreas circundantes.
(Autora: Rejane Oliveira, 2008)
Outro exemplo de rejeição a projetos coletivos em Canudos são as áreas para uso
comunal que pertencem à Associação de Pequenos Produtores Rurais de
Canudos/APPRC e que se localizam próximas à agrovila. São duas áreas cercadas de
arame, onde a primeira, localizada entre a comunidade e a caatinga, e que serviria para
um projeto de irrigação97, hoje é utilizada por duas famílias para criarem cabeças de
gado; e a segunda, situada entre o assentamento e a margem esquerda do rio, área que
também serviria para o plantio de roças, encontra-se igualmente abandonada. Ao serem
inquiridos sobre o que havia impedido a implementação do uso dessas áreas para o
plantio comunal, as respostas foram unânimes ao apontar uma situação de conflito
crescente sobre o gerenciamento das áreas. As poucas famílias que inicialmente
aderiram à ideia romperam entre si, argumentando que equipamentos como enxadas ou
facões foram roubados, assim como fios de arame, sem que se encontrassem os
responsáveis. Por conta dos desgastes criados, a área foi abandonada antes que as
plantações crescessem e fossem colhidas.
Situações como estas apenas retificam o que foi apontado no texto em outros
momentos. A sociabilidade em Canudos, que já é fragilizada pela existência de status
97
Falaremos sobre esse projeto de irrigação adiante.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
131
diferenciados, tem se tornado mais fragmentada em função da adesão a algumas ações
coletivas propostas por determinados mediadores.
5. ESTADO: POSTURAS ESTRANHAS AO IMAGINÁRIO CAMPONÊS
Para Martins (2000), o Estado é uma instituição fundamental para pensar a
desapropriação e a distribuição de terra visando à formação de novos assentamentos. No
entanto, a redistribuição é apenas um resultado desse processo, e não o objetivo principal
da reforma agrária. Consequentemente, questões fundamentais no debate da reforma
agrária, tais como a função social da terra, o poder sobre a terra assegurado pelo Estado
ou o processo de ressocialização dos assentados, devem ser discutidos como pontos
importantes para a efetivação da reforma. Um outro aspecto a ser considerado, em
qualquer programa de reforma agrária, é a avaliação do que se passa no interior e no
cotidiano dos assentamentos, pois a reforma agrária não é uma mera proposta de
reassentamento de trabalhadores sem-terra ou reconhecimento territorial para grupos de
camponeses sem titulação, mas sim um processo complexo, que deve versar também
sobre as condições em que os assentamentos e as comunidades camponesas serão
inseridos nas políticas públicas voltadas para as várias realidades do mundo rural
98
.
Nesta perspectiva, o Estado e os agentes de mediação precisam confrontar seus atos e
questionar suas ações, para alargar sua consciência sobre o próprio trabalho de
intervenção na realidade social, já que a realidade empírica observada nos mostra que é
impossível pensar a reforma agrária com mediações idealizadas. A literatura sobre este
tema nos indica algo, que a princípio parecer ser um elemento básico de ação, mas que
na prática é completamente ignorado pelos atores envolvidos: para que o movimento da
reforma agrária acompanhe a consciência social do camponês, é preciso que o Estado,
os mediadores pastorais e os movimentos sociais, de modo geral, se aproximem das
demandas dos trabalhadores rurais e da concepção que ele tem de terra e de trabalho.
Um dos problemas da reforma agrária é a não apropriação por parte de
mediadores e do Estado da práxis camponesa em suas concepções e ações
sociopolíticas. Sendo assim, a ignorância da dinâmica e das possibilidades do mundo
98
Os assentamentos também representam um espaço de ressocialização do assentado, local privilegiado
para uma categoria que se impõe, que é a do agricultor familiar. É o que assegura, no campo e no interior, a
diversificação das oportunidades de trabalho e a modernização, não só econômica, como também das
mentalidades e das relações sociais (MARTINS, 2000: p.104).
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
132
camponês e os desencontros de orientação do Estado estimulam conflitos internos das
facções internas dos grupos sociais e potencializam uma conflitividade gerada pelo
débito de sociabilidade. O Estado e os mediadores precisam compreender que a questão
agrária é uma questão suprapartidária, e que é um problema histórico de concentração
fundiária e de exclusão em todos os níveis, inclusive exclusão demarcada pelas políticas
públicas que não contemplam o ideário camponês.
Existe uma crença dos mediadores dos representantes do Estado, de que todos os
grupos centenários que vivem em condições difíceis esperam ansiosamente por
intervenções institucionais. Em muitos casos, não existe uma preocupação prévia com a
incorporação dessas medidas, porque os mediadores acreditam que não haverá
resistência frente a projetos que tragam melhorias e, consequentemente, modernização
nas relações sociais e de produção. Mas a resistência que Canudos impôs aos vários
projetos implantados na comunidade é uma resposta enviesada deste grupo social aos
planos elaborados e implantados sem uma relação dialógica. Esta resposta não é apenas
uma questão conflitual entre os “de dentro” e os “de fora”, mas também é uma resposta
às propostas de mudança de um modo de vida que não quer ser modificado, ou seja, é
uma recusa à lógica moderna e capitalista imposta pela racionalização estatal.
O que observamos, por meio da nossa pesquisa com a comunidade, é que o
papel do Estado foi desastroso em todos os sentidos, segundo a ótica dos informantes.
Em primeiro lugar, o Estado, por meio do INCRA, ignorou a existência de uma
comunidade camponesa tradicional na área grilada e posteriormente desapropriada.
Num segundo momento, independente da existência de famílias camponesas na área, o
território foi transformado em um assentamento, e como tal, foi utilizado para assentar
várias famílias sem laços de pertencimento entre si. A partir deste momento, o conflito
foi instalado e a população local ainda não conseguiu sanar as idiossincrasias que
separam as famílias e os indivíduos considerados de dentro e os considerados de fora.
Esta intervenção do Estado significou mudanças bruscas em um modo de vida
tradicional. Os moradores antigos e os recém-assentados tiveram seus espaços de
moradia e trabalho reconfigurados e foram inseridos num processo civilizatório
ideologicamente urbano, que pode ser traduzido no processo de aglomeração das casas
em agrovila e na diminuição de quintais. A partir deste processo, todas as ações de
origem externa, vinculadas às políticas públicas, começaram a ser associadas ao aspecto
sombrio da perda da liberdade que o grupo originário imaginava ter tido num passado
não muito distante. Assim, o Estado passou a ser relacionado à perda da liberdade, pois
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
133
ser um assentado significava ser um tutelado e ter a área de labor oficialmente
demarcada. O simples ato de migrar, característica fundamental do campesinato
nordestino, já não era mais possível após a criação do assentamento, pois um assentado
não pode se ausentar por longo tempo sem explicações, muito menos morar em outra
localidade. Um assentado não pode vender seu lote ou sua casa, o que para muitos
significa que perderam a sua autonomia99. Em suma, a chegada do Estado significou a
chegada do direito positivo e o esquecimento do direito consuetudinário. De uma hora
para outra, o direito costumeiro não escrito, fundado no uso, nos costumes, na prática,
no respeito e na teia de reciprocidade social dessas populações centenárias deixou de ser
invocado, para dar lugar ao estranho direito da lei escrita.
Rebouças (1997) aponta a mesma situação sobre os projetos de reassentamento
planejados pelo setor elétrico para as comunidades deslocadas compulsoriamente no
Pontal do Paranapanema:
No interior de um projeto de reassentamente, onde a própria disposição das
residências é imposta e onde existem regras determinadas de conduta sobre
o preparo da terra – o cercamento dos pastos, o arrendamento dos lotes – a
retomada do modo de vida e mesmo a composição das famílias terão ritmos
e características diferenciados. [...] a presença de um órgão estatal no
reassentamento intervém de forma decisiva nos mecanismos de obtenção de
crédito bancário, nos incentivos ao cultivo de determinados produtos ou nas
pressões para o desenvolvimento de associações coletivas (REBOUÇAS,
1997: p. 18)
Mudanças como a imposição ao cultivo de determinados produtos, a falta de
orientação técnica e a prescrição para obtenção de crédito bancário, relatadas pela
autora como uma característica dos assentamentos que pesquisou em São Paulo,
também ocorreram em Canudos. Nos trechos das entrevistas a seguir, os próprios
moradores retratam a falta de assistência técnica a que estão sujeitos quando aderem a
créditos bancários para plantio e a pacotes agrícolas de produtos não plantados por eles
usualmente.
1º Trecho:
F.A.S: Nos já tivemos aqui um, um projeto, recebemos uns
tempo. Agora eu num sei, foi em 2000 ou mais de 2000? Foi
em 99, é em 99. Um projeto pra gergelim, um projeto pra
plantar gergelim. Fomos beneficiados, é verdade, mas ninguém
99
Essa é a opinião de um de meus informantes. Segundo ele, um assentado é e não é dono de suas coisas,
pois ele não tem liberdade de ir e vir ou de dispor de cada uma delas se precisar.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
134
acompanhou. Como nós fizemos no Pro Agro, eles num vieram
aqui acompanhá essa lavoura, mas tem essa dívida lá no Banco
do Nordeste. Pois então, nós recebemos então a primeira
parcela e a segunda parcela. A primeira parcela que nós
recebemos foi para o preparo do solo. Já a segunda foi pra o
plantio, né? E a terceira era pra colheita, né? Como é que chega
na terceira pra colheita, quem num tinha colheita? Num é
mesmo? Todo mundo endividado, né? Vendo que a dívida aí, ia
só crescer. E eles depois falaram o seguinte: “Já que vocês num
tiveram a colheita, num vai ter a colheita, vocês num vai
receber pra colher. Então, vamos primeiro a sua lavoura ver
direitinho.” Mas que lavoura, num tinha lavoura. Então o Pro
Agro veio só pra, o que eles fizeram foi endividá mais. Aí
vieram com a terceira parcela pra colher, pra colher o quê, se
num tem nada pra colher? Teve uns por aí que é mais
experiente, que é o meu caso mesmo. Eu tive safra porque
nasceu mamona. E a mamona que nasceu no meio do gergelim
eu num tirei, e quando foi na próxima, no inverno, a mamona
formou. Formou bem e eu tirei o lucro e me saí. Eu colhi a
mamona e não gergelim e paguei. 100
2º Trecho:
J.R.V.: Manoel, ontem aquele menino, o Nilson teve aqui.
M.S: Povo lá do Banco?
J.R.V.: É. Rapaz, lá tem uns projetos bons pra pinhão. Eu disse,
Nilson, se é da gente plantar pinhão aqui, vamos plantar
mamona.
M.S: Ora gente, se a gente fosse plantar era pra plantar pinhão?
J.R.V.: É. É. O pinhão dá, mas a mamona dá dez vezes mais.
M.S: Ah, num é o quê, moço? É preferível a mamona, né? A
mamona este ano, agora que veio dá preço, depois que acabo.
M.S: A gente tava vendendo mamona de R$ 30,00. Vendia aqui
na porta pro atravessador de R$ 30, 00 e agora tá de R$ 50,00.
Já tem uns aí que estão pagando R$ 52,00. 101
Como vemos por meio destes relatos, há um descompasso entre o saber fazer
dos camponeses assentados e as políticas desenvolvimentistas dos órgãos estatais
encarregados da tutela dos assentamentos rurais. A chegada do Estado em Canudos
acarretou várias mudanças na vida dos moradores, mas, dentre elas, a proposta de se
criar um plano de desenvolvimento sustentável no assentamento foi a mais destoante.
100
Entrevista realizada em Canudos, em 2010, com assentado e lavrador nascido em Canudos, que
atualmente tem 60 anos de idade
101
A proposta de plantarem pinhão tem relação com o incentivo ao bicombustível no ano de 2008. No
entanto, o intermediador não se atentou ao fato da região já ter uma larga experiência na plantação de
mamona.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
135
Em face de uma proposta sem rumo e sem norte, o Estado, por intermédio do INCRA,
utilizou os serviços de uma ONG denominada Distrito Brejos da Barra102, que, por seu
lado, é totalmente financiada pela CODEVASF, um órgão estatal.
Cabe aqui uma pequena digressão para entendermos esta triangulação. A
CODEVASF tem como principal frente de ação o fomento à agricultura irrigada, a
partir da qual visa a impulsionar o desenvolvimento da regional, ora destinado à
colonização, ora à implantação de empresas capitalistas. Para a implantação dos
referidos projetos, a empresa vem requerendo a desapropriação de áreas onde implanta a
estrutura necessária ao desenvolvimento da irrigação e as distribui com os seguintes
critérios: empresas ou agroindústrias recebem lotes entre 300 e 3.000 ha; pequenos
produtores entre 20 e 50 ha em média, e colonos entre 04 e 10 ha – o que descortina
uma prática baseada em uma política concentradora de terras. Conforme Sobrinho
(2006), na área pertencente ao Vale do São Francisco, o Estado, por meio de empresas
como a CODEVASF, vem interferindo no acesso às áreas de irrigação e na produção
tradicional de alimentos, incentivando a produção destinada ao comércio por meio da
concessão de créditos às comunidades em que as associações de moradores funcionem.
Enfim, por meio de uma burocracia kafikaniana, o Estado, eivado por interesses
fisiológicos das elites políticas locais, inseriu a comunidade de Canudos nas ações
desenvolvimentistas da CODEVASF, sem ter realizado anteriormente nenhuma
consulta prévia junto à comunidade. Foi assim que o relatório da ONG Brejos da Barra,
além de fazer um levantamento inicial sobre Canudos em 2002, sugeriu projetos para
serem implementados na localidade, buscando, a posteriori, mobilizar os moradores
sobre os aspectos positivos do associativismo e cooperativismo e procurando incentivar
oportunidades de trabalho e renda por intermédio da produção de alimentos baseada na
agricultura irrigada. O resultado foi o completo endividamento dos agricultores
familiares e o aprofundamento dos conflitos internos na comunidade de Canudos.
102
A entidade Distrito Brejos da Barra é uma ONG financiada pela CODEVASF, criada por várias
associações de comunidades brejeiras, ribeirinhos e de sequeiros do município de Barra, com a finalidade
de obterem recursos por meio de entidades, como: MEC, EMBRAPA, CODEVASF, Exército Brasileiro e
Banco do Brasil. A CODEVASF utiliza, em seus projetos no município da Barra, os serviços de
levantamento socioeconômico realizados pela ONG. Entretanto, como é do conhecimento geral, a
CODEVASF é uma empresa pública, fundada em 1974, vinculada ao Ministério da Integração Nacional,
que promove o desenvolvimento e a revitalização das bacias dos rios São Francisco e Paranaíba. Mas na
atualidade, várias das suas ações são terceirizadas e realizadas por organizações não governamentais
Atualmente, ela atua em projetos de vários setores que são intermediados por ONGs locais, regionais e
nacionais.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
136
A tabela abaixo mostra, em números, a desarticulação e o desperdício de verbas
públicas proporcionados pela desarticulação entre as políticas públicas e as ações
estatais na sua práxis.
TABELA 3 - Projetos propostos para a coletividade pela ONG Brejos da Barra
Intervenções Programadas
Implantado (S/N)
Ampliação da rede de água para abastecimento humano
Sim
Aquisição de 2 reprodutores e 30 matrizes suínos
Não
Aquisição de 26 reprodutores caprinos/ovinos
Não
Aquisição de 32 frangos caipiras de boa linhagem
Não
Aquisição de 4 reprodutores bovinos
Não
Aquisição de ambulância
Não
Aquisição de equipamentos de corte e costura
Não
Aquisição de equipamentos para a padaria
Não
Aquisição de equipamentos para a casa de farinha
Não
Aquisição de equipamentos para a fábrica de doces
Não
Aquisição de equipamentos para pesca extrativista
Não
Aquisição de equipamentos para a fábrica de sabão
Não
Aquisição de equipamentos para irrigação das frutas, capineira e horta
Sim
Aquisição de equipamentos para o gabinete odontológico
Não
Aquisição de equipamentos para posto de saúde
Não
Aquisição de trator agrícola de pneus com implementos
Sim
Aquisição de veículo para transporte de carga
Não
Aquisição 312 galinhas de bom padrão racial
Não
Desmatamento para plantio de lavoura irrigada
Sim
Construção de 60 Moradias
Sim
Construção de aguadas
Não
Construção de Fábrica de Sabão
Não
Construção de Armazém Comunitário
Não
Construção de Padaria
Não
Construção de Posto de Saúde e Gabinete Odontológico
Não
Construção de Fábrica de Doces
Não
Construção de Centro Comunitário e Creche
Não
Construção de Quadra de Esportes
Não
Construção de Prédio Escolar
Sim
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
Construção de Igreja
Sim
Construção de unidade de beneficiamento de mandioca
Não
Construção de unidade fabril de corte e costura
Não
Construções de cercas perimetrais e divisórias
Sim
Formação de 2 ha com horta comunitária
Não
Formação de 8 ha com capineira para corte irrigada
Não
Implantação de projeto de apicultura
Não
Perfuração e instalação de 1 poço tubular;
Não
Plantio de 60 ha com frutícolas irrigadas, manga, banana e caju
Não
137
Dos projetos listados, apenas oito foram iniciados, e o desdobramento de cada
um deles envolveu instituições e agentes distintos e recursos provenientes de
orçamentos diferenciados (federal, estadual e municipal). Todos foram implantados nos
anos de 2003 e 2004, por meio da associação dos moradores de Canudos, fundada com
o apoio do sindicato rural local.
A distribuição e alocação dos recursos foram pulverizados em várias ações. A
aquisição de um trator agrícola com implementos e o desmatamento para plantio de
lavoura irrigada foram projetos que tiveram como fonte os recursos orçamentários do
governo federal (INCRA, PRONAF)103. A construção de um novo prédio escolar teve
como recurso o orçamento do governo municipal, mas a construção da igreja de Santo
Antônio foi feita pela comunidade, com recursos da prefeitura de Barra. Já a construção
de cercas perimetrais e divisórias foi feita com recursos do governo federal. A
ampliação da rede de água para abastecimento humano está sendo feita de forma
gradativa e com recursos particulares, e as famílias são responsáveis pelo pagamento da
ligação de água. A construção de moradias foi e ainda é feita nos dias de hoje com
recursos do governo federal por meio do INCRA e da CAR104. Um projeto para
103
No assentamento houve investimentos, por parte do INCRA, com o Crédito Implantação e o Crédito
alimentação, que se destina à aquisição de gêneros alimentícios; o Crédito Fomento, que se destina à
aquisição de ferramentas, plantel de animais, e o Crédito Habitação, destinado à construção da moradia
das famílias assentadas. Por intermédio da CAR, os moradores tiveram acesso a Programas Operacionais
(denominados no assentamento por P.O.) que viabilizaram a construção de residências. Também houve
crédito por parte do PRONAF A, para a estruturação dos lotes dos assentados, do PRONAF
Complementar, para a recuperação das unidades familiares dos agricultores assentados, e do PRONAF B,
para investimento e custeio da mamona com verba do Programa Nacional do Biodiesel. Entretanto, apesar
de todos estes créditos, nenhum projeto teve continuidade.
104
CAR: Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional é uma empresa pública vinculada à Secretaria
do Desenvolvimento e Integração Regional do Estado da Bahia/SEDIR. Ela coordena programas de
combate à pobreza rural; avalia e acompanha a aplicação dos recursos e supervisiona a execução dos
projetos. Sobre esse assunto ver: <www.car.ba.gov.br/institucional.asp> Acesso em: 23 de junho de 2010.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
138
aquisição de equipamentos para irrigação em área comunal foi encaminhado, e a
compra de equipamentos como bomba de irrigação e canos foi feita via orçamento do
governo federal, intermediado pela CODEVASF. A área de irrigação, como já
pontuamos anteriormente, pertence à associação, e tinha o objetivo de implementar uma
plantação comunal de produtos como mandioca e feijão. Mas esse projeto comunal,
como a maioria dos demais, descritos acima, não chegou a funcionar. Dos equipamentos
adquiridos, resta a bomba na sede da associação e alguns canos, porém a maioria do
material adquirido foi destruído, e o trator encontra-se em estado de deteriorização no
pátio da associação, que se tornou um prédio semidestruído. Nos trechos das entrevistas
que seguem, os informantes falam do descaso da comunidade em relação à aquisição
dos materiais e da falta de interesse dos grupos domésticos em se organizarem para
implementarem projetos de uso comum.
1º Trecho:
F.X.S. Aqui a gente comprou..., a gente tem o kit de irrigação.
Mas quando foi pra botar pra funcionar, a energia não veio, e
quando a energia veio chegar, o povo tava tudo desequilibrado
ninguém cuidou disso mais. Ninguém cuidou mais disso, aí
parou e parou mesmo. O material tá tudo aí guardado. Aí ficou
tudo parado por causa disso, no tempo não tinha energia,
quando o kit chegô, não tinha energia, e quando chegô a
energia, o kit já tava [...]. O povo já tava desgostoso. Aí num
quiseram mais fazer.
P.S.: A proposta do projeto acabou.
F.X.S.: São duas áreas boas danada pra irrigação. Tem um
terreno desse lado aqui (em direção à caatinga) e outro desse
lado aqui (em direção ao rio). Tudo próprio pra irrigar. E desse
lado de cá, ainda é mais perto, porque num vai 50 metros, com
50 metros de cano joga água em todo canto.
R: E iriam irrigar para plantar o quê?
F.X.S.: É mandioca, é feijão, é milho. É o que quisesse plantá.
R: E como as pessoas iam ter acesso a esse terreno?
F.X.S.: Não, lá é o seguinte: podia plantar coletivo. A gente ia
fazer. O projeto era pra gente plantar coletivo. Inclusive foi
roçado todo como um terreno coletivo e ia plantar também
coletivo. Depois de plantar, depois que tivesse a coisa, tinha
como exportar, e aí dividia o que desse. Mas o povo quietaram.
Num quiseram. Porque até hoje lá tá cercado com nove fios de
arame, só tá dependendo do interesse em trabalhar, mas o povo
não quer. 105
105
Entrevista realizada em Canudos em 2010.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
139
2º Trecho:
F.A.S.: Tudo que nós temos aqui foi do INCRA. É ideia é do
INCRA, com a FETAG e a CAR.
M.R.N: Olhe, olhe só, mas essas coisa que veio, na época o
pessoal ficaram, sei lá, com a cabeça assim, uns falava uma
coisa outros dizia outra coisa. Mas coisa tudo que veio (falando
do kit de irrigação) foi um grande desperdício. Tá tudo aí, ó.
F.A.S.: Mas é uma questão do povo...
R: Nunca funcionou?
F.A.S: Olhe, aqui já construiu uma casa de farinha. A casa de
farinha tá aí? Acabou. Recebemos bomba pra irrigar, energia e
tá tudo aí, tudo por aí. Uma tubulação daqui pra mais de seis
km. Tubulação pra jogar água lá pra criatório. A adutora tá aí.
Uma adutora hoje num tá brincano, né não? E essa adutora
ficou aí desperdiçada [...]. É de dar dó, porque era um dos meus
interesses que eu tinha aqui era de trabalhar de irrigação. E sabe
por quê? Irrigação, você tendo uma equipe pra irrigá, naquele
dia em diante, você tendo a coragem, acabou a dificuldade.
Porque de tudo você tem. Você tem da verdura, a fruta, nós
temos de tudo. Temos feijão, temos arroz, a mandioca pra fazer
a farinha e pra comer cozida, temos maxixe, temos a batata, o
melão, a melancia, tem a abóbora. [...] Acho que era uns daqui
de mais interesse da gente, era uma adutora, como nós temos a
adutora aí. Mas só temos a adutora. Temos área, duas áreas boa
pra irriga [...]
R: E porque não funcionou se tinha o projeto, se tinha a área?
Porque o mais caro é esse tipo de material, não é? Mas vocês
também já tinham.
F.A.S.: É o que eu quero dizer pra Sra. Foi só falta de união dos
grupos. Entendeu? Faltou união [...] A Sra. vem aqui hoje e
encontra eu de boa vontade, um grupo de boa vontade, vamos
dizer. Encontra aqui um grupo de 20 homens e diz: esse é o
grupo que vai tentá reação com um projeto aqui com a gente. A
Sra., quando vem de outra vez e encontra doze, num tem mais
grupo, porque um pouco já foi embora, a Sra. já vai achando
um pouco a coisa fraca, né? Quando a Sra. vem da outra vez e
diz: cadê meu pessoal? E aparece cinco, a comunidade num tá
de acordo a receber aquele projeto, tá?
R: Sim, não tá.
F.A.S. E foi assim, e foi assim que a coisa foi indo só pra trás,
para trás. No meu caso, eu mesmo só encarava a irrigação com
umas cinco ou seis pessoas que tinham aqui que eram homem
de garra. A gente sabia que era homem de garra com irrigação.
Os outros eram marmelada. Aí, quando esses se bandiou
também, eu tirei meu corpo fora, porque estava doente mesmo,
num tinha como encarar sozinho. Eu sei que o que contribuiu
pra isso foi a comunidade. E hoje estamos passando por uma
crise, trancados aqui dentro. Aqui está tendo crise de fome. 106
106
Entrevista realizada em Canudos, com um casal de lavradores de 60 e 47 anos.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
140
Antes dos projetos sugeridos pelo Plano de Desenvolvimento Sustentável, o
INCRA já havia disponibilizado crédito para a implantação do assentamento através de
projetos como: o Fundo de Apoio (R$ 1.025,00 para construção de cerca e gastos com
ligações de energia elétrica); o Fundo de Emergência (R$ 1.000,00 para construção de
cerca, centro comunitário, desmatamento de 35 ha e a reforma da casa de farinha);
Habitação (R$ 2.500,00 por família para a construção de moradias); e Cesta Básica (R$
400,00 por família). Nesse período, segundo o levantamento do Plano de
Desenvolvimento, muitas famílias já possuíam uma inadimplência de R$ 7.800,00,
correspondente aos primeiros projetos instalados na comunidade, por não terem
aplicado os recursos no que havia sido acordado.
A inadimplência das famílias em Canudos, conforme informações dadas pelos
moradores, somente aumentou, visto que, depois de algum abatimento nos primeiros
valores disponibilizados, um novo projeto coletivo foi levado para Canudos, e
novamente não trouxe resultados positivos. Após os projetos mencionados acima, os
moradores de Canudos aderiram, por meio do apoio do EBDA107, a um Projeto de
Matrizes Caprinas, usando uma linha de crédito do PRONAF, voltada para a agricultura
familiar. Foram R$ 9.500,00 por família, para a aquisição de bovinos e caprinos,
construção de cercas e formação de pastagem. Segundo informantes, os técnicos do
EBDA da Barra, por meio de técnicos agrícolas do Estado de Goiás, repassaram aos
moradores de Canudos matrizes caprinas doentes. Foram comprados 31 matrizes, 1
reprodutor e vários lotes de arame para cada unidade familiar. Com a morte das
matrizes, a falta de apoio técnico e, consequentemente, o não pagamento da dívida, os
moradores que aderiram ao projeto ficaram inadimplentes. Esse projeto de matrizes
caprinas, que visava ao uso de um aprisco coletivo, hoje completamente destruído,
causou um trauma grande na comunidade. Hoje, a maioria dos moradores não suporta a
ideia de voltarem a criar cabras ou bodes. De todas as famílias que visitamos em
Canudos, apenas uma tem uma pequena criação de seis animais, e que não são
provenientes do lote intermediado pela EDBA.
107
EDBA: Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola, uma empresa estadual de assistência técnica e
extensão rural, que tem o papel de estimular, animar e apoiar iniciativas de desenvolvimento rural
sustentável, que envolvam atividades agrícolas e não agrícolas. Sobre esse assunto ver:
<www.ebda.ba.gov.br> Acesso em: 4 de setembro de 2010.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
141
F.A.S: Foi gente ficando pendurado... aqui tá pendurado.
Recebemos aqui um bucado de investimento [...] criação aqui
nós recebemos 31 matrizes e que hoje num encontra nem os
ossos, nem o cadáver num tem aí. Um colega meu que trabalha,
ele é agrônomo, que trabalha na área de saber o que é a criação,
né? Me disse: “Essa criação tem que saber olhar, Chico. Essa
criação, ela tem que ficar fora do pasto que ela vai conviver 48
horas, é daí pra mais”. Que é quando elas deixam as fezes fora
do pasto que ela vai conviver, né? Que aqueles micróbios já
fica do lado de cá. Não, quando chegou aqui, eu falei tudo
direitinho aqui e o próprio presidente foi contrário, foi contra. E
pegou o que o EBDA queria. Esse EBDA aqui da Barra só quis
jogar esse monte de espinho aqui pra nós e num podemos nem
abraçar, entendeu? Disseram: “Ah, mais essa criação já vem
três dias de lá pra cá dentro do carro.” Mas essa criação já vem
munida do que num presta, num é não? Ficou por isso mesmo.
O vendedor veio aqui, explicou errado [...] e o que aconteceu?
Hoje aqui, o pequeno agricultor, como nós somos aqui, coitado,
ele tá devendo R$ 9.500, 00, e vai pagar de que maneira? Olha,
aqui tem pessoas que recebeu arame, criação e ainda recebeu
crédito pra outras coisas, e num tem uma galinha, num tem um
álcool pra passar num ferimento do corpo dele. Como é que
paga R$ 9.500, 00? Nós temos condições de pagar? Num tem.
Esta inadimplência desarticulou mais ainda as relações sociais de Canudos
internamente, e maculou sua imagem externamente. Canudos é conhecida na região
como a comunidade “problemática”. E, na realidade, ela realmente o é. Entretanto,
como apontamos, seus problemas são históricos e estruturais, mas não é desta forma que
esta realidade é pensada localmente.
F.A.S: A gente tá vivendo aqui por viver. Impressionado e
preocupado pelas dívidas. É brincadeira? Quem devia R$
100,00 reais pra passar a dever hoje R$ 9.500,00, quem não se
preocupa? Só não se preocupa aquele que nunca se preocupou
com nada. A gente vai hoje na casa do comércio aí na Barra, na
casa de móveis e outras casa aí, pra comprar fiado, não compra.
Porque num temos crédito pra comprar. Porque na primeira
oportunidade pra ver a gente, ele pede um documento, pede o
título da gente, ele vai lá e vê a situação – estamos devendo
essa quantia. Num é só num banco, não. É no Banco do Brasil e
no Banco do Nordeste. Aí lá, se você quiser comprar uma
colher fiado, num dá, num tem condição de comprar. Tem
como dizer pra Sra. que alguém nessa comunidade tá vivendo
bem? Eu tenho meu irmão aqui, ó. Ele foi comprar essas coisa,
um, um guarda-roupa. Um guarda-roupinha pra num tá
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
142
enchendo a roupa de poeira. Lá na loja ele num comprou, por
quê? Porque quando foram ver como é que tava ele, ele tava
dependurado, ele num pode comprar fiado em canto nenhum.
108
Esta fala é reveladora da situação de apartamento que os próprios grupos
familiares de Canudos têm com relação à sua realidade. Como já colocamos, o déficit de
sociabilidade deste grupo é de tal ordem, que se torna impossível para os seus membros
reconstruírem vínculos de pertencimentos característicos de comunidades rurais.
A tentativa de incentivar o associativismo na comunidade de Canudos sempre
existiu. Mesmo antes do plano de desenvolvimento da CODEVASF propor o
associativismo como uma solução para o estado de pobreza em que a comunidade se
encontrava, Canudos já havia fundado uma associação. A Associação de Pequenos
Produtores Rurais de Canudos/APPRC foi fundada em abril de 1996109 e, segundo
informações, a associação teve, inicialmente, 65 famílias associadas. Os ex-presidentes
da associação são unânimes em afirmar que, quando havia menos associados, as
reuniões eram mais produtivas, pois havia menos discussão entre os grupos familiares.
Hoje, não existem reuniões regulares e ninguém participa efetivamente da associação.
Não existe a mínima mobilização por parte dos associados e apenas o presidente, o vicepresidente e a secretária da associação falam sobre a importância da associação para a
comunidade local. Apenas estes atores sociais ainda acreditam que as reuniões locais,
ou as realizadas junto ao sindicato dos trabalhadores rurais de Barra, podem trazer
novos projetos que modificarão a realidade local. Os demais membros não participam
das convocações sob a alegação de que a associação não resolve seus problemas de
inadimplência e não traz bons projetos para a comunidade110. Segundo eles, existe muita
reunião e nenhuma medida concreta. Os moradores assentados de Canudos se recusam
atualmente a participarem de qualquer reunião que a associação convoque. Durante o
nosso trabalho de campo, presenciamos a tentativa de pelo menos três reuniões em anos
distintos, sobre temas variados – inadimplência, conserto de implementos agrícolas,
108
Trechos de entrevista realizada em 2010.
A associação foi fundada dois anos antes da criação do assentamento pelo INCRA, o que demonstra
uma mobilização anterior dos moradores para a implantação de uma política pública de assentamento. Ela
começou com 65 associados e hoje possui 104 associados (o número de famílias assentadas).
110
Um informante alegou, durante a sua entrevista, que o projeto da casa de farinha coletiva não havia
dado certo porque a farinha que havia ficado de ser dividida entre todos os que plantaram mandioca e
trabalharam na sua confecção, não foi repartida de modo igualitário. O mesmo teria acontecido com a
primeira plantação de milho em área coletiva.
109
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
143
construção de novas moradias – e em nenhum dos casos houve a presença de
moradores, com exceção dos dirigentes.
Como vemos, existe um caráter incisivo e autoritário por parte do Estado,
retratado nas intervenções físicas do espaço e na forma com que as agências que o
representam elaboram seus projetos de intervenção e de desenvolvimento, mas não
podemos afirmar que a população atingida permanece totalmente inerte diante dos
acontecimentos. Existe uma reação frente aos acontecimentos que se constitui a partir
da sua estrutura social. Há princípios da organização social camponesa que são
acionados pelo grupo e que passam a ser utilizados, direcionando suas opções de
reprodução social. Ou seja, suas escolhas não estão apenas subordinadas à dinâmica das
agências ou dos mediadores do Estado, pois o grupo social de Canudos possui uma
liberdade relativa, pautada em sua própria organização. Essa liberdade, pautada na
organização social camponesa, está presente nas famílias que aderiram a alguns
projetos, mas investiram no plantio de roças de lameiro e de caatinga, ou nas famílias
que optaram por não aderir a projeto algum, e hoje não estão inadimplentes. Conforme
muitos alegaram: “Eu não tenho financiamento pra pagar. Depois não tem como pagar,
vai dever?”
Entretanto, como estas opções não estão pautadas na racionalidade produtivista
exigida pela sociedade dominante, e como muitas estratégias familiares se afastam
inclusive de uma ética camponesa, já que a comunidade perdeu seus vínculos de
pertencimento em função da intervenção sofrida por meio da implantação do
assentamento desvinculado das demandas sociais locais, a comunidade de Canudos vem
sofrendo um forte processo de desarticulação interna, que traz graves problemas de
ordem social, cultural e econômica para os seus membros.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
144
CAPÍTULO IV
ESTRATÉGIAS
RESISTÊNCIA
DE
SOBREVIVÊNCIA,
POLÍTICAS
PÚBLICAS
E
MARTELO CHAPADEIRO
[...] beleza igual já não se cria
Onde o sol ama a terra todo dia
Coroné no garimpo fez chacina.
Uns pescado, outros garimpando a sina
Nessa terra dotada de magia
Veja os versos da minha cantaria
Exaltando a Chapada do Sertão
As estrela clareiam a escuridão
Espantando da estrada a livuzia.
Redenção é a terra mamoneira
Dá feijão, milho, abóbora e melancia
Dá vaqueiro o aboio e a valentia
Movimento é sagrado em suas feiras.
Tem de tudo, da agulha a esteira
Transformada a terra em sesmaria
Quando chove para o povo é alegria
Pois a Terra pro homem é produção
Vem a safra fartura do Sertão [...]
Tradição de avós no leito aberto
Revolvendo a grandeza desse chão
Preservando o costume e a tradição [...]
Não há reino do céu que se redime
Capivara, tatu que mim ilumine
Pra que eu passa entender essa matilha
E não ter que jamais virar uma ilha
Nem que a vida da terra se fulmine [...]
Natureza, mãe terna e suprema
Desmataram todo o leito do rio
Num crime hediondo e feroz
E pra essa realidade atroz
Vem um longo período de estio.
Lá na serra toda verde sumiu
Numa inconteste revolta a natureza
Que vingando com toda inteireza
Machado assassino, o serrotão
Os mandantes, o ladino e o ladrão
Que ousou definhar nossa beleza [...]
A força e o trabalho da enxada.
Simboliza o valor da catingueira
Uma tropa que varando o Sertão;
Numa noite de lua e clarão
Esculpindo a beleza chapadeira.
IVAN SOARES
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
145
1. DESAPROPRIAÇÃO, REGIME DE PROPRIEDADE E ESTRÁTEGIAS
A desapropriação de terras para a reforma agrária normalmente resulta em
transformações nos regimes de propriedade, estabelecidos tanto pela política pública
que regulamenta a instalação de um projeto de assentamento, quanto pelas práticas das
famílias assentadas e de seus mediadores. Para o Estado, a passagem da terra para o
campesinato se dá de uma forma enviesada: da propriedade privada à desapropriação, a
terra transforma-se em um território que combina regime de usufruto de uso familiar,
propriedade coletiva e propriedade estatal, já que a terra desapropriada é formalmente
propriedade do governo federal, sob a responsabilidade do INCRA, que pode
transformá-la em reserva legal, áreas de preservação permanente, reservas extrativistas,
pastagens coletivas, assentamentos rurais, comunidades indígenas, comunidades
quilombolas, fundos e feixes de pastos, entre outras formas de ocupação, com direitos e
deveres repassados às famílias ocupantes. Mas, ao anular os direitos da apropriação
privada das terras, os processos de desapropriação de terras instalam apenas
formalmente a regulação estatal, combinada com a regulação coletiva e familiar, pois a
dificuldade do INCRA em exercer a regulação efetiva e a indefinição (que, no caso de
Canudos, já dura 12 anos) sobre os beneficiados e os lotes que vão ocupar, cria uma
situação que, na prática, se aproxima do acesso livre. Ou seja, no assentamento de
Canudos, a ausência de um regime de propriedade efetiva leva as famílias assentadas ao
acesso livre ao território ainda não demarcado, mas regulamentado. Com a ausência da
regulação formal do Estado, o acesso livre, gerado por costume e prioridade da chegada
ao lugar, gera discriminação, conflito velado e, consequentemente, o uso indiscriminado
de determinados recursos e a degradação ambiental. Podemos citar como exemplo o uso
da jurema (Piptadenia stipulacea) como matriz energética ou da carnaúba (Copernicia
cerífera ou Copernicia brunífera) para a edificação de currais, quintais e residências. 111
As causas desses conflitos podem ser associadas não só ao tempo de vivência na
localidade e a origem das famílias assentadas, mas também à incerteza dos direitos de
propriedade existentes nos assentamento que ainda não sofreram uma regulação efetiva.
Essa situação seria, em parte, alterada, se tivéssemos medidas como o parcelamento
111
Aproximadamente uma família com quatro pessoas utiliza dois metros cúbicos de lenha por mês.
Assim, tudo indica que, se a exploração atual for mantida, essa forma de exploração implicará na
degradação das áreas de preservação. As famílias costumam também retirar carnaúba da área de reserva
ambiental. O assentamento de Canudos e o de Barro Vermelho foram instalados em uma área de 4.997,22
hectares, dos quais 391,82 ha eram para reserva ambiental; 850,69 ha para preservação permanente.
Nenhum destes espaços foram demarcados e o território é ocupado de forma desregrada pelos assentados.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
146
definitivo das áreas destinadas a cada unidade familiar e a elaboração de um plano de
manejo adequado às suas necessidades. Por outro lado, ressaltamos que compartilhamos
da ideia de rearticulação negativa formulada por Nunes (2008), em pesquisa realizada
no assentamento denominado Patativa do Assaré, localizado no município de Patos/PB.
Nesse trabalho, o autor salienta que o que poderíamos considerar uma total falta de
consciência ambiental tem relação com uma situação de precariedade vivida pelos
assentados, que não contam com ações efetivas de um Estado regulador e provedor de
políticas sociais efetivas. Ou seja, a condição de vida dos assentados os leva a
explorarem intensamente alguns recursos como madeira e pastagens, no caso dos
assentamentos do semiárido. Entretanto, também não se podem justificar, de maneira
simplificada, essas ações como determinadas pela precariedade da vida. Segundo Nunes
(2008), devemos entender essas práticas como operações que obedecem a uma
determinada “racionalidade com respeito a fins”, em que o que interessa é a eficiência
econômica, que permite a sobrevivência da unidade familiar. Compreender a estratégia
produtiva dos assentados e a relação destas estratégias com os processos vividos nos
assentamentos implica, necessariamente, compreender as estratégias como o resultado
de escolhas da unidade doméstica tomadas em condições específicas de vida, de
prioridades, de crédito e de projetos de intervenção, particularmente, no caso dos
assentamentos do semiárido que convivem intensamente com mediadores e agentes
externos.
A cultura camponesa não é avessa às mudanças. Por isso ela está aberta as ações
que buscam um desenvolvimento rural capaz de combinar atividades multiocupacionais, com uma abertura explícita à pluriatividade. Ou, como esclarece
Schneider (2004), o mundo rural busca estratégias que representam a possibilidade de ir
além da modernização técnico-produtiva e apresenta alternativas de sobrevivência para
a unidade familiar rural que, através de seus esforços e disposições, garantam sua
reprodução. Essas estratégias incorporam a visão de que o território engloba atividades
de setores econômicos diferentes e supera a clivagem rural/urbano.
O mundo rural deixa de ser o locus específico das atividades agrícolas, e as
variadas formas de complementação de renda e ocupação em atividades não-
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
147
agrícolas permite que a renda de muitas famílias que residem no meio rural
se estabilizem ao longo do ano (SCHNEIDER, 2004: p. 92) 112
É evidente que falamos aqui de um “tipo ideal”, pois nenhuma cultura, seja ela
de pescadores tradicionais, beradera, ribeirinha ou sesmeira, existe em estado puro.
Para Diegues (1999), as culturas também não são estáticas, e estão em constante
mudança, seja por fatores endógenos ou exógenos. Assim, um determinado grupo pode
apresentar modos de vida e estratégias em que as características acima mencionadas
estejam presentes, com maior ou menor peso. Desta forma, mesmo percebendo que
Canudos é uma comunidade de lavradores e pescadores artesanais que se utilizam de
diversas estratégias (atividades agrícolas e atividades não agrícolas) para compor a sua
renda e consequentemente, manter a sobrevivência de sua unidade familiar doméstica, é
possível perceber que ela tece uma relação entre as formas de estratégias e as
características camponesas, como o apego à unidade familiar doméstica; a dependência
em relação à natureza e aos ciclos naturais (cheia e vazante); o conhecimento da
natureza que se reflete nas estratégias de uso e que é passado de pai para filho; a
ocupação de um território por várias gerações, mesmo que alguns membros possam ter
se deslocado para grandes centros; a atividade de “aprovisionamento”, embora exista
uma produção de mercadorias para o comércio local e regional; a reduzida acumulação
de capital e o uso de uma tecnologia relativamente simples de plantio que envolve as
queimadas e os usos de ferramentas simples como a enxada, a foice, e os barcos artesanais.
Assim, o que se tem em Canudos é uma adequação entre as atividades agrícolas
(agricultura itinerante, pecuária, pesca artesanal e extrativismo vegetal) com estratégias
não agrícolas, e uma autonomia relativa da unidade familiar de produção, quase sempre
baseada em uma alimentação com produtos de seus lotes e do rio.
2. SISTEMA PLURIATIVO: a caracterização das famílias em Canudos
De acordo com Schneider (2003), o debate sobre pluriatividade no nosso país
ainda é embrionário. Apesar de este concordar que o fenômeno da pluriatividade não
representa uma situação inteiramente nova, pois as atividades não agrícolas sempre
112
No entanto, durante os procedimentos para seleção de candidatos a assentamento em áreas de reforma
agrária, um dos critérios eliminatórios é o candidato auferir renda proveniente de atividade não agrícola
superior a três salários mínimos mensais do conjunto familiar.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
148
foram praticadas por camponeses, a originalidade desta categoria analítica apresenta-se
mais relacionada à recente criação do termo empregado do que a prática em si. A
pluriatividade, segundo o autor, ocorre quando parte dos membros de uma família
residente no meio rural passa a se dedicar às atividades não agrícolas. Ou seja,
Pluriatividade refere-se a situações sociais em que os indivíduos que
compõem uma família com domicílio rural passam a se dedicar ao exercício
de um conjunto variado de atividades econômicas e produtivas, não
necessariamente ligadas à agricultura ou ao cultivo da terra, e cada vez
menos executadas dentro da unidade de produção (SCHNEIDER, 2003: p.
100 e 101).
Em suma, pluriatividade é uma categoria analítica que resume o conjunto de
ações conscientes e planejadas que a família camponesa se utiliza para alcançar seus
objetivos, orientados por suas necessidades de autorreprodução. Quando pensamos
nesta categoria para a realidade dos grupos domésticos de Canudos, observamos que as
famílias
camponesas
desta
comunidade
congregam,
empiricamente,
uma
multifuncionalidade de ações, que unificam realidades, papéis e espaços distintos.
Assim, o equilíbrio entre o trabalho e o consumo da unidade familiar, para este grupo
social, se dá, não só nos espaços de vida e de trabalho das águas do rio São Francisco ou
nas roças de caatinga, de ilha e de quintais, mas também nos trabalhos esporádicos nas
grandes feiras da região, voltadas para a venda de produtos industrializados, no processo
migratório e nas atividades não agrícolas realizadas na própria comunidade, voltadas
para a atividade mercantis realizadas em pequenos armazéns e bares.
Aparentemente, Canudos é um assentamento com “tipos ideais” de famílias que
se intitulam profissionalmente como lavradores ou pescadores artesanais. No entanto,
encontramos indivíduos que se identificaram com estas duas identidades sociais, e que
também exercem outras várias atividades dentro e fora da comunidade que envolvem
assalariamento ou renda especulativa113. Ou seja, como grande parte das comunidades
rurais brasileiras, a comunidade de Canudos pode ser considerada, realmente, como uma
113
As atividades realizadas nesta comunidade, como já foram expostas em capítulos anteriores, são
complementares. No entanto, o sentimento de pertencimento que esses indivíduos nutrem por um ou
outro território de terra e água sugestiona a sua identificação com uma ou outra profissão. Tivemos como
critério de denominação de pertencimento não só as suas falas sobre as atividades de maior preferência,
como também a ordem da resposta, quando questionados sobre as suas profissões. Deste modo, temos
pessoas que se identificaram como lavradores, pescadores, lavradores/pescadores e
pescadores/lavradores.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
149
comunidade pluriativa, uma vez que mescla atividades agrícolas e não agrícolas nas
suas estratégias de reprodução econômica e social.
Entretanto, dentro do imaginário que o grupo constrói para si, as atividades que
não estejam ligadas à agricultura e à pesca artesanal não são contabilizadas ou vistas
como demarcadoras da identidade social dos homens e mulheres de Canudos. Assim, há
três possibilidades de identificação no imaginário social deste grupo: ser um lavrador,
ser um pescador, ou ser ambos ao mesmo tempo, demarcando a intensidade de uma ou
de outra atividade, de acordo com as idiossincrasias individuais e estratégias escolhidas
como forma de reprodução de vida. Desta maneira, os indivíduos que se identificam
como lavradores geralmente são pais de famílias que laboram com as roças de caatinga
e de lameiro ou vazante, e que pescam apenas para o consumo. Essas pessoas
geralmente são filiadas ao sindicato de Barra114 ou pretendem se filiar para,
posteriormente, serem beneficiadas com a aposentadoria rural. Encontrei apenas um
indivíduo em Canudos que se identificou como trabalhador rural e que negou qualquer
vínculo com a pesca e as atividades com o rio. Em conversas realizadas na porta de sua
residência, foi possível perceber que ele buscava demarcar sua forte relação com a
agricultura, e se afastava totalmente da identificação com o trabalho da pesca115. Este
informante foi vice-presidente da associação de Canudos e, durante muitos anos, viveu
de perto, não só as demandas da associação e do sindicato rural, mas também teve a
oportunidade de participar de diversos cursos de capacitação com enfoque na
agricultura, organizado pelo sindicato. Contudo, mediante a história de vida deste
informante, elaboramos a hipótese de que o uso da categoria trabalhador rural, por parte
deste ator social, pode ter sido empregado como uma tática política e social,
estrategicamente construída para positivar a sua filiação ao Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Barra116.
As pessoas que se identificaram como lavradores/pescadores possuem uma
relação maior com a agricultura ou a criação de seu pequeno rebanho bovino, mas não
desconsideram a possibilidade de pescarem e venderem seu pescado para os
114
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Barra é filiado a FETAG desde 1974 e cobra
uma mensalidade de R$ 10,00 reais de seus filiados.
115
Ressaltou várias vezes que não gostava de pescar e que o trabalho com a pesca não pode ser feito
paralelamente ao trabalho com a terra, já que pescadores pescam a noite e dormem durante o dia. Por
mais de uma vez disse que não pescava nem por lazer e que nem mesmo gostava de peixe, mas para
basilar a afirmação de que as atividades nesta comunidade são complementares, ressalto que
curiosamente meu informante mastigava, no momento da nossa conversa, um grande e suculento pedaço
de peixe frito.
116
Trabalhador Rural também é uma categoria utilizada pelo INCRA.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
150
atravessadores. Grande parte destes lavradores/pescadores não tem como acondicionar
em casa o produto da pesca, pois não possui frízeres. Esses informantes já optaram ou
optarão pela aposentadoria rural, no entanto, tentam uma renda extra com a venda de
peixes, principalmente quando não é período de limpar ou colher a mamona, ou o
período de plantar nos lameiros.
Os sujeitos sociais que se intitularam como pescadores artesanais são pessoas
que também laboram com a terra. Elas possuem roças no terreno de chuva (caatinga) e
no terreno molhado (vazante, lameiro). Mas, ao serem inquiridas sobre sua profissão, a
resposta dada foi pescador. Dos pescadores que investigamos, apenas um afirmou que
tinha roças de caatinga e ilha, que totalizavam três tarefas, mas que havia abandonado as
duas e, na atualidade, não trabalhava com nenhum tipo de roçado. Dos pescadores com
os quais conversamos, um não era filiado à colônia de pescadores do município de
Barra (Colônia de Pescadores Z-30).
A única pessoa que encontramos, que se
denominou como pescador e que não era filiado, afirmou que ainda não havia
encaminhado seu pedido de filiação porque não tinha condições de organizar seus
documentos e de pagar a mensalidade cobrada pela colônia117. Os indivíduos que se
denominam pescadores artesanais são pessoas aposentadas pela colônia ou que
contribuem para a colônia, mas ainda não se aposentaram, recebendo da mesma apenas
o benefício do defeso. Os pescadores artesanais, ao serem inquiridos sobre a atividade
que mais apreciavam desenvolver, sempre responderam que a pesca era a preferencial, e
a plantação de produtos era só necessária. Ao falar do espaço que mais lhes dava a ideia
de um lugar de pertencimento, o território da água era sempre citado. Ao ponderarmos
sobre a alimentação, a ideia de complementaridade também era direcionada para
produtos como feijão, milho, abóbora, enquanto os ingredientes principais eram o peixe
e a farinha.
Com relação às atividades de trabalho e a utilização dos espaços territoriais do
assentamento, além dos lotes, os quais ainda apresentam um parcelamento informal, os
moradores não acoplaram muitos benefícios aos seus espaços de vida e trabalho.
Segundo minhas observações em campo, com exceção de oito famílias, a maioria dos
grupos domésticos não têm currais ou chiqueiros em suas dependências. Assim, o gado
adulto, criado na larga, quase nunca é ordenhado, e somente as famílias que criam uma
ou duas cabeças de gado, confinadas em pequenos espaços de roças de capim, podem
117
A Colônia de Pescadores do município de Barra (Colônia de Pescadores Z-30) cobra R$ 8,00 reais
mensais de seus filiados.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
151
usufruir do leite como alimento em suas mesas. Os poucos porcos encontrados no
assentamento são quase sempre criados soltos, pois os donos alegam não terem
condições de alimentá-los. E nem todas as famílias construíram cercados para a criação
de galinhas ou frangos118, o que aponta para a pauperização das famílias assentadas, que
sequer têm condições de adquirir esses animais domésticos ou de alimentar os mesmos.
Nesta conjuntura, bens materiais como moto ou carro são objetos raros em Canudos.
De todas as famílias com as quais conversamos, apenas uma possuía um veículo
automotivo em casa, que, além de servir para transportar mercadorias da cidade de
Barra para algumas vendas em Canudos, ainda serve como transporte particular para
pessoas enfermas, mediante pagamento. Ou seja, os meios de transporte mais utilizados
no assentamento são a bicicleta, encontrada em quase todas as casas a que tivemos
acesso, e o barco a vela119, manejado com destreza por todo beradero do São Francisco.
Na realidade, o sentimento dos informantes com relação aos bens materiais de
existência é ambíguo. Para os assentados, boa parte dos bens materiais que os rodeiam
não pertencem verdadeiramente a eles ou aos seus grupos domésticos. Ou seja, assim
como os lotes, as casas construídas pelo INCRA ou pela CAR, por intermédio dos
créditos de implantação e de habitação, não podem ser vendidas se o assentado resolver
deixar a localidade. Inclusive, as políticas destes órgãos na construção desta benfeitoria
foram distintas e criaram problemas e conflitos entre os assentados. As casas entregues
pelo INCRA, por exemplo, tiveram um custo de R$ 2.500 reais por unidade e foram
entregues sem reboco, sem banheiro e, consequentemente, sem objetos, como vaso
sanitário e lavatório. As casas entregues pela CAR, por outro lado, tiveram um custo de
R$ 7.000 mil reais e foram construídas posteriormente, beneficiando poucas famílias.
Estas casas são consideradas completas, pois são totalmente rebocadas e dispõem de
banheiro com vaso sanitário e lavatório. Ainda hoje, em Canudos, muitas casas
construídas pelo INCRA continuam da forma como foram entregues. Algumas famílias
afirmam não terem condições financeiras para melhorias e outras alegam que não é
conveniente investirem em algo que não lhes pertence. Alguns moradores acreditam que
a penúria e a precarização das condições de vida das famílias assentadas não permitiram
um pagamento justo e equânime das benfeitorias entregues.
118
Em Canudos as galinhas geralmente são criadas presas, pois os moradores possuem o hábito de ter
pequenos canteiros para a plantação de temperos e hortaliças dentro dos quintais.
119
A maioria das famílias que tivemos contato possui barco a vela. Em Canudos, algumas pessoas fazem
os seus próprios barcos, mas apenas um morador fabrica e vende. Segundo sua informação, um barco
novo pode custar de R$ 900 a 1.000 reais, mas dificilmente essa renda é contabilizada em seu orçamento
familiar, em função da durabilidade desse meio de transporte e trabalho.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
152
F.AS: A casa é doada pelo INCRA, mas pra eu entrá pra dentro
tive que rebocá, colocá porta, porque as que tinha não fechava.
Quem vai querer me comprá ela se eu quiser sair? Porque essa
casa aqui não é minha. A casa é minha, mais num é, né não? Eu
vou arrancá cerâmica, porta, janela? Ninguém compra, ninguém
tem condições de comprá. Aqui, pra comprá aqui tem que ser
um assentado, mas assentado já tem casa. E aí? 120
Este depoimento nos mostra o grau de fragmentação dos assentados com relação
ao sentimento de pertença e de empoderamento com relação ao Assentamento de
Canudos. A casa não lhes pertence, mas as melhorias básicas sim. Entretanto, elas são,
ou estão, indissociadas. Para alguns, o governo federal, por meio do INCRA, entregou
uma morada inacabada, juntamente com um lote não demarcado e não titulado. Para
outros, o governo estadual, por meio da CAR, entregou uma moradia completa, mas não
teve como gerenciar os problemas fundiários gerados por um órgão federal. Neste
cenário de políticas públicas mal implantadas e mal gerenciadas, o tecido social de
Canudos encontra-se esgarçado, e a sociabilidade cotidiana vive um clima de tensão
permanente. No discurso dos assentados, é comum o ar de desconfiança e de
diferenciação entre as famílias, que acabam buscando demarcar suas diferenças muito
mais que as suas semelhanças existentes.
A tabela 04 (anexo 3) traz uma amostra das famílias que mais apresentavam
particularidades quanto a sua diferenciação – idades distintas, áreas de plantio variadas,
benfeitorias estruturais e a posse ou não de bens. Os valores dos bens (terra, residência,
meios de transporte) expostos nesta tabela são aproximações apresentadas pelos
próprios grupos domésticos. Como podemos observar, cada chefe de família declara
seus bens seguindo cálculos subjetivos, mas que seguem a lógica da quantidade de
trabalho gasto nas casas e nos lotes recebidos. Estes bens são reais e imaginários ao
mesmo tempo, e esta ambiguidade causa conflitos permanentes.
Como o parcelamento destas áreas é informal, pois os assentados ainda não
tiveram seus lotes demarcados e titulados, o respeito às divisas de roças na caatinga e a
regulação da entrada de animais tem sido motivo de muitas discussões entre os
assentados. Os lotes não cercados são áreas livres, mas algumas famílias colocaram
120
Entrevista realizada em Canudos, em 2008, com um lavrador nascido na comunidade que possui
atualmente 60 anos de idade.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
153
roças em espaços abertos porque não possuem condições financeiras de cercá-las.
Assim, os lotes na roça de caatinga são áreas comuns, com subdivisões individuais com
demarcações de divisas feita com o uso de três mourões. Já as áreas de plantio nas ilhas
ou na beira do rio são áreas ocupadas fora da padronização e da regulamentação federal,
mas foram cercadas com arame logo após a primeira liberação de recursos do INCRA
(Crédito Fomento) e do PRONAF. Como parte dos assentados foi se tornando
inadimplente, mediante a liberação das parcelas dos projetos que foram sendo
implantados ao longo da história do assentamento121, os assentados afirmam não terem
recursos para cercarem os lotes realmente designados para cada família. Até porque,
surge para eles uma questão crucial: por que cercar uma área que realmente não lhes
pertence? Além disto, para que cercar uma área onde o plantio só pode ser feito
esporadicamente, já que só é possível plantar na caatinga se houver um bom inverno ou
se houver irrigação? Esta lógica nos parece problemática, na medida em que muitos
projetos e recursos chegaram à comunidade para a implantação de projetos como, por
exemplo, o de irrigação, e tudo foi abandonado e depredado. Mas, mediante esta
questão, a resposta dos agricultores assentados foi unânime: como plantar se a área não
havia sido demarcada e ninguém sabia onde ficava a sua própria roça? Ou seja, caímos
aparentemente num processo tautológico, mas o que realmente existe, na visão dos
assentados, é uma incomensurabilidade entre o que as políticas públicas oferecem e o
que eles realmente necessitam e desejam para se reproduzirem como camponeses
agricultores e pescadores.
De acordo com Abramovay (s/d), o Vale do rio São Francisco concentra a maior
parte dos municípios com alta inadimplência frente ao PRONAF B. Segundo esse autor,
nos municípios onde a inadimplência é baixa, existem dois fatores fundamentais que
contribuem para o respeito às regras do programa. Em primeiro lugar, existe um grande
e forte controle social contra a inadimplência. Um controle que não está
institucionalizado apenas pela ação fiscalizadora das organizações, mas que, segundo
ele, se sobrepõe inclusive à manutenção das atividades produtivas. É evidente que o
empenho das organizações na fiscalização efetiva sobre a aplicação do recurso, e um
121
Conforme artigo de Maíra Kubík Mano, intitulado “Desafios dos Assentamentos”, publicado em 04 de
junho de 2008, no jornal Le Monde Diplomatique – Brasil, o PRONAF tem um índice de inadimplência
de 80% entre os cerca de 1,2 milhão de famílias assentadas. “O sistema é uma arapuca que no final gera
dívida”, “Os assentamentos não são feitos para funcionar”, afirmações de dirigente do MST. Disponível
em:
<http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=205&PHPSESSID=ca04364d2fe1650214a31d6f691be824
> Acesso em 10 de agosto de 2010.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
154
trabalho de conscientização sobre as regras de uso do crédito, é fundamental para o
controle da inadimplência. Entretanto, conforme alega o autor, o endividamento é uma
estratégia utilizada por algumas populações rurais para preservar a sua sustentabilidade
financeira, mas para outras, onde os laços de sociabilidades são estáveis, a manutenção
da credibilidade é uma condição de sobrevivência e de preservação dos laços sociais.
Nessas localidades, o beneficiário luta para manter seu nome limpo acima de tudo. O
segundo fator que contribui para a redução da inadimplência é a combinação de
recursos do PRONAF com os recursos oriundos das bolsas e aposentadorias, ou ainda
de salários ou diárias122. Segundo Abramovay, as pesquisas sobre esta problemática
mostram que o pagamento do financiamento não depende da renda gerada pela
atividade financiada, mas do conjunto das rendas que as famílias recebem.
MAPA 2
Fonte: Mapa retirado de Abramovay (s/d).
122
O Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil de 2000 confirma que em 47,5% dos municípios do
semiárido brasileiro, cerca de um terço da população tem mais da metade da sua renda proveniente de
transferências governamentais, principalmente dos benefícios previdenciários, constituindo, assim, um
dos mais importantes indicadores sociais de vulnerabilidade.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
155
O município de Barra, onde está localizada a comunidade de Canudos, não é
apontado como um município com um alto índice de inadimplências. No entanto, o
problema da inadimplência foi uma das principais reclamações dos assentados nas
nossas primeiras viagens de campo (quando ainda confundiam a pesquisadora como
uma funcionária do INCRA) e é, como já apontamos em outros momentos no decorrer
dos capítulos, um dos principais problemas da localidade. As questões apontadas por
Abramovay, como problemas fundamentais para o respeito às regras do programa, nos
remete para as discussões já apontadas antes. Em Canudos existe uma fragmentação das
relações sociais e da sociabilidade cotidiana, que foi impactada por várias intervenções
estatais que careciam de um planejamento burocrático racional. Estas políticas públicas
precariamente implementadas causaram uma desarticulação das redes sociais internas e
criaram pontos de atritos que ainda permanecem no imaginário do grupo. Desta forma,
como não houve a preocupação, por parte dos mediadores e dos técnicos
governamentais, com a preservação de laços sociais, também não há atualmente, por
parte do grupo familiar, uma preocupação em cumprir com o que foi acordado no
momento da implementação dos projetos. Ou seja, os grupos familiares da comunidade
estão, na atualidade, voltados para a sobrevivência e para a satisfação de suas
necessidades básicas imediatas e se negam em direcionar parte das rendas (fruto de um
sistema pluriativo) para quitar os débitos dos projetos fracassados, para que futuros
financiamentos possam ser possíveis. Não há uma crença por parte dos assentados de
que estes projetos possam vir a gerar renda e bem-estar para os grupos domésticos como
um todo123.
Parece haver, na comunidade, momentos em que o grupo doméstico atua como
uma unidade de reprodução social em prol de objetivos em comum, socializando parte
ou a totalidade dos rendimentos individuais. Um exemplo disto é a aceitação efetiva da
política do defeso, respeitada pelos assentados que se denominam pescadores. Por outro
lado, em muitas vezes, essa unidade social é quebrada, e os benefícios que deveriam ser
de uso e usufruto comum são apropriados sem uma perspectiva de unidade e futuro. Foi
assim com a quase totalidade dos projetos implantados, como já apontamos.
2.2. Atividades agrícolas e produção
123
A falta de preocupação com a preservação de laços sociais nessa localidade é tão latente, que dois
homens (filhos de uma assentada) estão respondendo a processo por estupro de uma moradora da
localidade. Ambos foram presos e aguardavam resultado do inquérito em liberdade, durante a nossa
última viagem de campo. Os dois também são acusados de prática de furto pela comunidade.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
156
A categoria trabalho, para alguns autores (QUEIROZ, 1973; HEREDIA, 1979;
MOURA; 1988, WOORTMANN, 1997), é uma categoria aplicada apenas ao mundo
masculino, especificamente ao camponês pai de família. É ele quem direciona as tarefas
que devem ser realizadas por seus familiares, como também o local e a forma como
estas tarefas dever ser efetuadas. Os demais membros do grupo doméstico apenas
trabalhariam em forma de “ajuda”. Entretanto, em comunidades pesqueiras, como é o
caso de Canudos, as mulheres saem do mundo privado, do cuidado de suas casas,
crianças e quintais para exercerem atividades ligadas à agricultura, afinal esposos e
filhos, em uma comunidade de pesca, passam dias, ou toda a semana, envolvidos com o
rio ou com a confecção de redes, chumbadas e arpões. Ellen Woortmann (1991) trata
exatamente desta particularidade em um de seus trabalhos de pesquisa sobre uma
comunidade pesqueira do Rio Grande do Norte. Nesta comunidade, a agricultura é
pensada como uma atividade feminina, e a pesca como uma atividade masculina. Em
Canudos, a agricultura não é exclusivamente feminina, mas ela também não é pensada
como uma atividade eminentemente masculina, como em outras regiões. O plantio de
produtos alimentícios no assentamento de Canudos se dá, como já enfatizado, em
quintais, roças da caatinga, roças de beira de rio e em roças de ilha. Essa atividade é
realizada em períodos específicos e acontece por ensejos distintos.
Destarte, não só as esposas dos pescadores, mas também as mulheres dos
lavradores trabalham na mamona com muita frequência. Algumas mulheres chegam a
trabalhar cotidianamente e quase exclusivamente nesse espaço de plantio. Esse é o caso
da lavradora R.M.L.S., que possui 9 tarefas na caatinga, onde atualmente planta
mamona e melancia. Conforme relatou, ela limpa, colhe, bate e “abana”, e a mamona
colhida e a lenha coletada são transportadas por um jumento, que é manejado por ela
mesma, todos os dias. Mas isso não significa que os homens mais ligados ao rio e ao
lameiro não tenham atuação neste espaço, pois um dos períodos intensos de trabalho na
roça de mamona é o período em que a pesca é proibida. O esposo de R.M.L.S., por
exemplo, colabora na roça de mamona quando ela está muito “suja”, pois além de
passar toda a semana pescando, ele também planta na roça de ilha nos intervalos da
pesca.
R.M.L.S.: Nessa roça mesmo lá, que eu labuto lá, quando meu
marido foi pra lá eu já tinha limpado o roçado todinho. Eu já
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
157
tava entrando cá, nas outra roça de fora, capinando. Já tava
quase no meio da outra, aí ele terminou o resto. 124
Mulheres e crianças, membros de famílias que não possuem roças de mamona
ou que as possuem em pequena extensão, aceitam trabalhar na roça de outros moradores
quando a mamona já estalou e foi ao chão. As mulheres trabalham geralmente em dupla,
pois uma das mulheres rastela o fruto da mamona enquanto a outra “abana” com o uso
da peneira. De cada três sacas de 60 kg que elas peneiram, uma saca é do dono da roça.
As crianças trabalham durante um turno do dia ou aos fins de semana. Elas peneiram o
fruto da mamona caído no chão e vendem o litro ao próprio dono da roça por valores
que oscilam entre R$ 0,30 a R$ 0,50. Tivemos dúvidas quanto à lucratividade desse
sistema de medida para o dono da roça, pois a mamona, ao ficar no chão, sofrendo a
influência constante do sol e da areia quente, desidrata e, com isso, os litros colhidos
pelas crianças não pesam muito na hora que são negociadas com o atravessador125.
Entretanto, percebemos, como aponta Cardel (1996), que este processo não se
caracteriza como um trabalho, mas como um ritual socializador, onde a criança é levada
a praticar e a vivenciar, por meio de um ritual cotidiano, o processo socializador do
trabalho como um princípio ético e integrador das gerações. E este ritual não se aplica
apenas no espaço das roças, mas no trajeto até elas, já que os espaços da moradia e do
trabalho estão inseridos em locais distintos dentro do território da comunidade.
124
Entrevista realizada em Canudos, em 2008, com uma lavradora de 52 anos que nasceu na comunidade
e é casada com um pescador também nascido na comunidade.
125
Muitos pais também influenciam o aprendizado com esta mesma estratégia. Em campo tive a
oportunidade de presenciar cinco crianças trabalhando nesse sistema, no entanto, elas não revendiam o
que catavam aos seus pais, mas a um atravessador da comunidade pelo valor de cinquenta centavos o
litro. Segundo o depoimento dos pais, assim elas aprendem, não só a lidar com o processo de colheita da
mamona, mas aprendem também a fazer uma relação entre o trabalho, o esforço e a remuneração.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
158
Foto 7: Região das roças de sequeiro. A caatinga mais próxima à comunidade é denominada Boca da
Caatinga, a mais distante fica na região da Serra do Barro Branco. (foto retirada do programa Google
Maps, 2010).
As roças de caatinga mais próximas à comunidade distam em média de três a
seis quilômetros e são, em sua maioria, cercadas apenas para impedir que animais
adentrem a plantação. Dentro de um grande cercado, cada um sabe onde a roça
individual começa e termina, e apesar de não existirem demarcações com arames, as
divisas das roças são demarcadas com mourões ou árvores. As plantações, portanto, são
individuais, mesmo em um espaço como a caatinga, onde o uso é comunal. Além das
roças de caatinga, existem as roças de beira de rio, que margeiam a comunidade e que
estão sujeita às estiagens e às grandes cheias do Rio São Francisco, e finalmente as
roças de ilha que estão distribuídas atualmente em duas coroas: a Ilhota e a Ilha Grande.
Todos os terrenos que conhecemos nestas ilhas são divididos por cercas de arames, com
os seus limites muito claros, sendo que os terrenos são individuais e podem ser apenas
um grande cercado ou subdivididos em casa e quintal, pasto e roça.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
159
Foto 8: Ilhas ou Coroas do São Francisco e as roças de lameiro.
(foto retirada do programa Google Maps, 2010).
Nesses espaços das Ilhas são construídas pequenas casas de taipa de mão,
denominadas de “barracos”. Existem casas com dois cômodos, mas geralmente elas
possuem apenas um, onde se encontra um jirau para dormir e uma prateleira com copo,
panela de alumínio, prato, sal e água. O fogão a lenha é feito do lado de fora, às vezes
com uma pequena cobertura de palha e sem proteção contra o sol. A água é apanhada no
rio e armazenada em baldes. À noite, a luz é obtida por fogueiras (que também é
utilizada para assar peixes) e por candeeiro. Dos utensílios utilizados, alguns são feitos
artesanalmente pelos próprios agricultores, conforme a necessidade e a criatividade.
Enquanto o plantio nos quintais, na roça de beira de rio ou na roça de ilha tem
como finalidade o consumo de produtos alimentícios, a mamona, principal produto de
plantio na roça de caatinga ou área de sequeiro tem o objetivo de gerar renda para a
unidade familiar. Por outro lado, julgamos prudente pontuar que ela não parece ser uma
atividade eminentemente indispensável para todos os moradores, principalmente,
unidades familiares beneficiadas por programas, como as aposentadorias, ou pescadores
artesanais, que parecem utilizar esse espaço como uma estratégia de renda, quando a
renda do pescado está em baixa.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
160
Assim, todas as roças obedecem à técnica de plantio consorciado, ou plantação
“casada”, quando são cultivadas duas ou mais variedades no mesmo espaço de
plantio126, com o aproveitamento do espaço e do bagaço de outras plantas como adubo.
Ainda dentro desta lógica, o sistema de cultivo nesta área é o de coivara, onde as
vegetações rasteiras e de pequeno porte são derrubadas, empilhadas e deixadas para
secar e, posteriormente, queimadas. As ferramentas mais usuais são a enxada, a
enxadeira (uma enxada mais estreita), a foice, o furão (escavadeira), o machado e o
facão. Segundo informações, o trator que a associação possui é “emprestado” para os
associados mediante o pagamento do combustível e da alimentação do tratorista,
geralmente cedido pela prefeitura da cidade de Barra, sendo mais usado para arar a área
da caatinga. Contudo, o trator muitas vezes é alugado para assentamentos próximos,
pois, conforme informantes, na comunidade apenas alguns aposentados conseguem
pagar pelo seu uso. Para os que não possuem renda extra, este maquinário não tem
muita utilidade, a não ser quando puxa grandes quantidades de lenha na caatinga,
momento em que o pagamento pelo uso do trator é dividido entre os interessados.
Nas roças de lameiro, homens e mulheres realizam atividades como plantar,
capinar e colher, mas como muitos homens possuem uma relação maior de
pertencimento com o território de água e consequentemente com a pesca, são eles que
mais estão em contato com as roças de lameiro. É hábito de algumas mulheres irem para
a roça de ilha apenas aos fins de semana. Mas, conforme nos relataram, esse costume é
alterado no período em que o trabalho na roça de lameiro aumenta. As plantações na
beira do rio começam assim que o rio São Francisco começa a abaixar. E como esse
período também é aquele em que os homens estão voltados para a pesca, são as
mulheres quem mais se dedicam a este espaço de plantio. Todavia, como já foi colocado
acima, como o rio São Francisco, depois da construção da Usina de Sobradinho, oscila
muito a vazão de suas águas em função da abertura ou do fechamento de suas
comportas, e em função da oscilação do período chuvoso, já não é possível definir um
período fixo para plantar nestes espaços.
Conforme pudemos perceber em campo, o uso de mão de obra familiar é
recorrente em todas as unidades de produção; entretanto o uso de mão de obra
contratada (diarista) também acontece. Os contratantes acordam serviços com diaristas
por dois motivos: falta de mão de obra familiar suficiente e falta de interesse dos filhos
126
Sobre esse assunto, ver: Woortmann, E. & Woortmann, K.; 1997.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
161
jovens pelos trabalhos agrícolas. Uma das informantes relatou, por exemplo, que, apesar
de ter dois filhos homens em casa com idades de 17 e 19 anos, no fim do ano de 2009,
teve que dispor de R$ 150,00 para efetuar o pagamento de duas pessoas que trabalharam
como diaristas com seu esposo na roça de caatinga, pois seus filhos não quiseram ajudar
nessa atividade. Mesmo assim, entre todas as famílias com que mantivemos contato em
campo, apenas duas afirmaram que fazem uso de diaristas com frequência. Algumas
alegaram uma necessidade eventual, enquanto a grande maioria afirmou não utilizar
desta estratégia. Este fato nos mostra a peculiaridade das relações intrassociais de
Canudos. Encontramos na literatura sobre estudos de campesinato uma vasta gama de
relações de troca de trabalho entre os grupos domésticos, que são permeadas por
relações de reciprocidade, onde a remuneração raramente se dá pelo equivalente em
dinheiro, mas por trocas de dias de trabalho entre membros da unidade doméstica, ou
pelo processo de ajuda em grupo, como o mutirão. Entretanto, em Canudos, as práticas
de trabalho são individualizadas, e a única forma de pagamento existente é o dinheiro,
fato que demonstra o baixo índice de sociabilidade local.
Na tabela 5 (anexo 4) apresentamos informações como o total das áreas
trabalhadas pelas unidades domésticas e a produção de cada uma delas. Demonstramos
também a frequência do uso de mão de obra familiar ou o uso de diaristas nas atividades
de plantio. Observamos, por meio destes dados, que todos os entrevistados plantam em
lotes ainda não titulados, mas que todos têm uma ideia do valor fundiário da sua
“propriedade”, o que sinaliza que este grupo camponês, como aponta José de Souza
Martins (1978), absorveu a ideologia estrutural dominante e só concebe a terra por meio
da sua renda fundiária, e não pelo seu valor social.
2.3. Cultivo, extrativismo vegetal e o destino da produção
Os terrenos de ilhas/lameiro costumam variar entre 1 e 10 tarefas127, entretanto,
a grande maioria oscila entre 1,5 e 3 tarefas. Nos terrenos de beira de rio, a situação não
é diferente. As roças de vazante variam entre 0,5 tarefa e 12 tarefas, no entanto, na
maior parte dos casos, o tamanho destes terrenos oscila entre 1 e 3 tarefas. Nestes dois
espaços são plantados produtos para o consumo, conforme já foi citado anteriormente;
127
Tarefa: medida agrária que na Bahia corresponde a 4.356 m². Dados obtidos pelo endereço eletrônico:
<www.webcalc.com.br>, no dia 14 de fevereiro de 2009. Mas, segundo os moradores de Canudos, uma
tarefa são 30 braças e, para fazerem as medidas de suas roças, eles primeiro cortam uma vara medida por
meio dos braços estendidos de um homem e só depois demarcarem o terreno.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
162
entretanto, encontramos 2 roças de milho e 1 de feijão nos terrenos de ilha e de beira de
rio, onde a produção destinava-se à venda. Pelos dados colhidos em campo, é possível
perceber que as famílias que optaram por vender esses dois produtos possuem tamanhos
de roças incomuns – de 8 a 10 tarefas – o que garantia o consumo familiar e a venda do
excedente. A saca do milho sofreu uma variação de R$ 20,00 a R$ 25,00 reais no último
ano (2010), e o preço da saca de feijão variou entre R$ 80,00 e R$ 100,00 reais.
Contudo, o mais curioso foi encontrarmos, em uma área de beira de rio, uma roça de 3
tarefas com o plantio de mamona. E, como já colocamos, o cultivo de mamona é,
geralmente, feito em terrenos de chuva porque os pés de mamona conseguem sobreviver
a estiagens prolongadas.
Apesar deste chefe de família se autoidentificar como
lavrador, as suas roças de ilha de 6 tarefas e as 10 tarefas na caatinga são utilizadas
apenas para o cultivo de capim para 3 cabeças de gado. Pensando na incomum
plantação em área próxima à comunidade e no abandono das áreas de caatinga,
relacionamos estas estratégias incomuns a outras variáveis que caracterizam este grupo
doméstico:
idade do lavrador (chefe de família) - 82 anos;
proximidade do lote cultivado com a residência do assentado;
benefícios assistenciais para a unidade familiar de duas aposentadorias de
agricultores rurais;
defeso durante quatro meses do ano, o que o caracteriza como um pescador
frente às políticas públicas
Estes dados nos mostram que a racionalidade dos agentes sociais varia de
acordo com as estratégias e as possibilidades de acesso que os grupos domésticos têm
em relação às atuais políticas redistributivas criadas pelo Estado. Longe de este grupo
doméstico ser uma exceção, sua lógica aparentemente incomum de utilização das áreas
de plantio demonstra o quão esta comunidade camponesa de assentados rurais possui
uma relação antitética com a lógica reprodutiva moderna. Se isto pode parecer
interessante na ótica do grupo doméstico, do ponto de vista comunitário, demonstra a
fragilidade da lógica de reciprocidades internas.
Quanto à falta de chuva nos últimos anos em Canudos, foi assim que, um
informante relatou a sua desistência em lidar com o plantio na caatinga:
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
163
D.F.C: Tinha largado mão da mamona, mas depois o peixe num
tava dando. Eu num vinha aqui tinha muito tempo. Meu vizinho
insistiu pra eu vim ver e eu vim. Ela tinha nascido por Deus.
Corri, capinei e ano passado, com o inverno bom, tirei mamona
demais. Esse ano, o inverno num foi bom, aí muitos não
mexeram [...] Eu fiquei encafifado, dormi longe da muié.
Dormi no chão. Pedi a Deus – Oh, vou mexer com aquilo lá.
Vim, plantei e, quando foi de noite, deu um chuvisco. Pensei –
Oh! Tá bom. Labutei mais. Aí, depois de uns oito dia, deu uma
chuvinha boa e molhou por baixo. Aí, a mamona nasceu que
ficou foi bonita, num foi? 128
As roças de mamona são maiores do que os outros espaços de plantio. Elas
variam entre 1 e 34 tarefas, mas oscilam entre 3 e 10 tarefas na maioria dos casos. Na
última colheita, os valores da saca variaram em média entre R$ 60,00 a R$ 65,00 para
aqueles que venderam a atravessadores da comunidade e de Barra, mas esse preço cai
ou sobe conforme a oferta. Em anos ruins, a saca de mamona já chegou a ser vendida
por R$ 30,00. A partir na ultima safra (2009), a mamona também tem sido vendida a
técnicos agrícolas, que cadastraram algumas unidades familiares dentro do programa de
biocombustíveis desenvolvido pela Petrobras, por R$ 70,00 a saca de 60 kg. O
assentado vende a mamona na comunidade e não em Barra, onde poderia conseguir um
preço mais elevado, mas teria que pagar R$ 8,00 de passagem (ida e volta) e R$ 3,00
por cada saca transportada.
Segundo relato de A.R. (ex-presidente da associação e morador há 19 anos),
algumas famílias em Canudos chegam a produzir 40 toneladas de mamona por ano. Um
número superior ao que o maior produtor de mamona alegou produzir em nossa coleta
de dados – 500 sacas de 60 kg, ou seja, 30 toneladas. Essa quantidade depende da oferta
de mão de obra familiar, do tamanho da área trabalhada, da quantidade de chuva e da
frequência com que o terreno passa pelo processo de limpeza, dentre outras técnicas de
plantio. Mesmo tendo estas variáveis em vista, os dados de campo apontam que, em
128
Entrevista realizada em Canudos, em 2010, com um pescador/lavrador de 51 anos. Pela entrevista, é
possível perceber que o informante cultiva uma crença em determinados tabus religiosos e no valor da
penitência do corpo para alcançar uma graça – “Eu fiquei encafifado, dormi longe da muié. Dormi no
chão. Pedi a Deus.”
Nesse mesmo espaço de tempo, nosso informante nos mostrou, pela primeira vez, por onde os canos do
projeto de área irrigada passariam (ao lado da estrada vicinal que leva à caatinga) para serem
posteriormente puxados para as roças. E confirmou o relato de outros assentados, de que os canos
começaram a ser instalados, mas com o passar dos meses foram quebrados ou roubados.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
164
média, o número de sacas de mamona produzidas em cada unidade familiar oscila em
um ano ruim, com pouca chuva, entre 2 e 40 sacas, e em um bom ano, com chuvas
regulares e mão de obra familiar suficiente, varia entre 10 e 500 sacas. É uma variação
enorme de produtividade, mas, como afirmam os agricultores locais: “a mamona pode
dar por vida, ou ser cuidada e render”.
É nos arredores das roças de caatinga, nas áreas de reserva ambiental e nas
degradadas matas ciliares que os assentados exercem atividades extrativistas129. O
extrativismo vegetal está voltado principalmente para a coleta indiscriminada de
arbustos como a jurema branca (Piptadenia stipulacea), usada cotidianamente como
matriz energética(lenha); a carnaúba (Copernicia cerífera ou Copernicia brunífera),
usada para a confecção de artesanato (folha), cerca de quintais ou madeiramento de
alguns cômodos, denominados“puxados”, e que servem como cozinha ou área de
serviço. De forma mais pontual, cabe às mulheres e às crianças a extração de folhas,
raízes, sementes, mudas de plantas medicinais e frutas, coletadas de forma mais intensa
nos períodos de escassez de outros recursos para a alimentação130. A responsabilidade
de buscar lenha na caatinga também é uma atividade desempenhada por todos:
mulheres, homens e jovens. É da responsabilidade de quem vai ao terreno de caatinga
retornar com o jumento ou a bicicleta com cargas de lenha para o uso cotidiano. No
entanto, presenciamos uma quantidade maior de idosos coletando lenha quando a área
de coleta era mais próxima ao local de moradia.
Como é do conhecimento geral, o quintal é um espaço contínuo da casa, cercado
por carnaúba ou jurema. E, como já foi relatado antes, a medida deste espaço varia
conforme a anterioridade ou não dos assentados na comunidade. Moradores mais
129
Os produtos mais explorados na comunidade são a lenha, a carnaúba e os frutos. A lenha, geralmente
jurema branca (Piptadenia stipulacea) é extraída da caatinga. A extração da carnaúba (Copernicia
cerífera ou Copernicia brunífera) hoje é praticada com mais racionalidade do que em tempos anteriores,
quando a grande maioria foi retirada para a exploração de cera. No entorno de Canudos, encontramos
árvores frutíferas como: araticum (Annona crassiflora), jenipapo (Genipa americana L.), umbu (Spondias
tuberosa Arruda), quixaba (Bumelía sartorum), coco de carnaúba (Copernicia cerífera ou Copernicia
brunífera), entre outras.
130
Reforçando esta questão, a informante F.L.M., enquanto enumerava frutos que eram colhidos nas
proximidades, lembrou-se de uma receita de jenipapo que, geralmente, substituía uma das refeições do
dia, quando não havia outros recursos. Na receita do jenipapo, retira-se a polpa, à qual se adicionam
açúcar e farinha, para ingerirem em substituição ao jantar. Ao acompanhar uma família de
pescador/lavrador a sua roça de caatinga, percebi que o almoço servido era de duas categorias: para o
chefe da família, o diarista/vizinho e para a pesquisadora em questão, serviu-se arroz, feijão, peixe
caldeado e farinha. Para as mulheres da família e crianças, o almoço foi arroz, macarrão e farofa de ovo.
A mãe, ao ser questionada por uma criança sobre a ausência do peixe na sua refeição, respondeu que ele
não trabalharia na roça e que, portanto, não precisaria de uma comida que lhe desse “sustância”. Sobre a
relação entre alimentos fortes e fracos, ver: Woortmann, E. & Woortmann, K.; 1997.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
165
antigos possuem quintais grandes, medidos conforme as suas necessidades. Moradores
que chegaram depois tiveram seus quintais padronizados pelo INCRA em 20m². O
quintal também é o espaço de criação de pequenos animais, como a galinha e o porco.
Porém, os poucos porcos existentes geralmente são criados soltos, ficando no chiqueiro
apenas um animal de engorda. Entretanto, no período da minha estadia em campo, a
maior parte dos chiqueiros encontrava-se vazio. Assim como as roças, o quintal também
é um lugar de plantio, porém em proporções mais reduzidas e com outros produtos para
o consumo. Sendo espaço de domínio feminino, tal como a casa, o quintal também é
considerado um espaço privado. É um espaço produtivo onde o trabalho também é
realizado mediante a diferenciação de gênero e de geração, sendo dominado pelas
mulheres e por seus filhos. São as mulheres que plantam, mas, na maioria das vezes, são
os meninos que buscam o esterco para melhorar a terra do canteiro. Tendo em vista o
baixo índice de chuvas, regar o canteiro suspenso e as árvores frutíferas também é uma
atividade desempenhada pelas mulheres ou por crianças e adolescentes. Nos canteiros
encontramos cebolinha, coentro, alface, tomates, pimenta e pimentão. Também
encontramos bananeiras, pés de seriguela, limão, laranja, pinha, manga e plantas
medicinais.
Apesar dos espaços diminutos de muitos quintais familiares, estes se revelaram
verdadeiras áreas de reprodução e de experiência do saber camponês. As plantas
medicinais mais frequentemente encontradas neste local são: Hortelã da folha grossa
(Plectranthus amboinicus spr.), com propriedades medicinais para o período da
menopausa; Capim santo (Cymbopogom sp.) para combater o nervosismo; Alevante
(Achilea millefolium L.), com propriedades medicinais calmantes; Camará, Erva cidreira
(Lippia Alba) com propriedades medicinais também calmantes; Boldo (Plectrantus sp.),
com propriedades para o combate da gastrite; Melissa (Melissa officinalis) no combate à
gripe; Hortelã-miúdo (Mentha sp.), com propriedades para combater a febre; Alfavaca
(Ocimum basilicum) para combater gripe, tosse e febre; Alecrim (Romarinus officinalis)
para a pressão alta; Mamona (Ricinus communis) para dor de barriga; Quebra-pedra
(Phyllanthus sp.) contém propriedades medicinais para curar pedra nos rins; e Pinha
(Annona squamosa), com propriedades para infecção urinária.
2.4. Animais domésticos e pesca artesanal
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
166
Existem grupos familiares que criam gado, entretanto em número bem reduzido.
Estes animais de grande porte são criados na larga e só são levadas para espaços
fechados quando a caatinga está muito seca. Os informantes que afirmaram não fazerem
uso da larga nunca tiveram gado adulto ou bezerros, no entanto usam a larga para
criarem animais de carga, como o jumento. Com as famílias que trabalhamos, a média
dos animais oscilava entre 3 e 4 cabeças. No assentamento apenas um assentado tem um
número maior de cabeças adultas, e ele é uma exceção. O número de cabeças de gado,
como bezerros ou novilhas, também é muito pequeno, variando de 1 a 15 cabeças. No
entanto, menos da metade das famílias assentadas possuem gado. Pessoas que possuem
apenas um ou dois animais geralmente os criam dentro dos espaços da ilha ou da beira
de rio e não usam a larga. E, de forma geral, o gado raramente é vendido. Já os bodes
ou cabras não são criados no assentamento, por conta do fracasso do projeto que
introduziu matrizes e aprisco. A única exceção é uma moradora que possui 4 animais,
mas elas já os tinham antes do projeto de matrizes ser implantado. Os bodes e cabras
apontados na tabela 7 (em anexo 6) são criados do lado direito do rio (município de
Xique-Xique) e também são animais que não faziam parte do lote de matrizes de
caprinos implantado pelo projeto. Já o jumento é considerado um animal indispensável
na vida dos lavradores e pescadores artesanais, mas o estado de pobreza dos grupos
familiares chega a ser tão grande, que existem famílias que não podem adquiri-los, e
que estão privadas de um meio de transporte imprescindível para o homem catingueiro.
Cavalos também são raros em todo o assentamento, sendo que apenas duas famílias os
possuem.
A pesca artesanal, por ser uma atividade fundamental nessa localidade, ocupa
boa parte do tempo de trabalho dos homens. No entanto, os pescadores de Canudos
reclamam que, ano após ano, as condições para a prática da pesca têm piorado. As
chuvas apresentam-se menos constantes e, consequentemente, as cheias também. O
assoreamento do rio tem aumentado e o nível da água, em função dos lagos das
hidrelétricas (particularmente Sobradinho), tem oscilado com grande frequência.
Esta questão de dependência dos ciclos das águas nos remete a Fraxe (2000),
quando esta aponta que o grupo de camponeses amazônicos (homens anfíbios) que
pesquisou tem uma dependência e uma alta simbiose com a natureza por meio de seus
ciclos dos recursos naturais renováveis, a partir dos quais estruturam seus modos de
vida. Estes camponeses têm um conhecimento profundo do bioma no qual estão
inseridos, que se reflete na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
167
naturais dos territórios ocupados. De forma singular e fazendo um paralelo, o grupo
pesquisado por Fraxe, tanto quanto os assentados de Canudos, devem a reprodução de
seu modo de vida e da sua unidade familiar aos rios que margeiam suas comunidades e
que lhes proporcionam terras molhadas por meio das quais se reproduzem
economicamente e socialmente.
É por meio de várias técnicas e estratégias de sobrevivência ligadas ao rio São
Francisco que os agricultores e os pescadores de Canudos continuam superando longos
períodos de estiagem e enfrentando fortes oscilações que afetam diretamente as
plantações de lameiro ou vazante, e a pesca no leito do rio131. E, além das adversidades
naturais, os habitantes de Canudos são obrigados a se adaptar às leis de proteção
ambiental, como o estabelecimento do defeso, período no qual estão proibidos de pescar
com suas redes em respeito ao ciclo natural da reprodução dos espécimes nativos do rio
São Francisco. Mesmo assim, dada a insegurança alimentar à qual estão sujeitos, muitos
pescadores admitem que pescam durante o defeso para o consumo, mas não para a
venda. A confirmação exata da data do defeso (da piracema) é publicada pelo IBAMA e
é estabelecido anualmente, entre os meses de outubro e início de fevereiro, ou de
novembro a março. Durante os quatro meses de proibição, os pescadores de Canudos
que são associados à Colônia de Pesca recebem o equivalente a um salário mínimo por
mês.
Entretanto, mesmo com esta política pública, a vida dos pescadores artesanais
locais torna-se mais complicada. Ano após ano, as condições para a prática da pesca têm
piorado. Pelas minhas observações em campo, foi possível acompanhar o cotidiano dos
pescadores de Canudos e ver, em loco, a pouca quantidade de peixes trazidos pelos
pescadores após dias e noites nas áreas de pesca. A insegurança em relação à atividade
econômica da pesca é tão intensa, que os pescadores se recusaram a informar
individualmente a média do pescado mensal ou anual que capturam. Com os que
mantivemos um contato mais próximo, pudemos obter apenas a informação de que eles
131
A alegação dos moradores é a de que os barramentos no São Francisco teriam ligação direta com a
queda na reprodução de alguns peixes. Essa argumentação pode ser confirmada através da leitura de
BRASIL (2001-2002) - Plano Piloto de Revitalização do Rio São Francisco. Conforme indica este
documento, observadores locais ressaltam que os efeitos da regularização de vazões poderiam estar
exercendo impactos negativos no habitat de procriação da fauna aquática, assim como a oscilação anual
da correnteza e do nível das águas, agindo em áreas desflorestadas e frágeis, provocando severas e
continuadas erosões. Considerações semelhantes também foram feitas no documento “Adequações e
Complementações ao Estudo Ambiental do Projeto de Melhoramento do Leito Navegável do Rio São
Francisco – Trecho Barragem de Sobradinho a Juazeiro/Petrolina”, onde afirmam que o lago de
Sobradinho (1973) trouxe impactos diretos na estrutura do ambiente aquático, com a alteração na turbidez
da água (depósito de areia e sedimentos) e interferência no processo da piracema.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
168
não conseguem sequer alcançar uma renda de um salário mínimo em remuneração. Com
base nas minhas observações, calculei que a renda com essa atividade tem girado em
torno de R$ 200,00 a R$ 300,00 reais mensais.
Quanto às relações de trabalho nesta atividade, ela não segue apenas as regras das
sociabilidades familiares, como acontece com a maioria das comunidades de pescadores
artesanais. Além de ser uma atividade inconstante, nos deparamos, em Canudos, com
pescadores que são proprietários da própria infraestrutura de trabalho e com outros que
pescam em barcos de outrem. Às vezes o barco é um empréstimo entre irmãos, tios,
filhos e sobrinhos, mas geralmente o dono recebe uma parte do pescado, a combinar,
como pagamento pelo uso do barco. Ou, quando a relação de parentesco é relevante,
quem utiliza o barco passa a dever um “favor” ao proprietário, que pode lhe cobrar em
forma de trabalho. Entretanto, quando não há relação de sociabilidade familiar, a
relação comercial é imperativa e as diárias são cobradas de forma monetária.
Quanto ao ritmo das atividades, o trabalho com a pesca não possui uma rotina
tão demarcada como a do trabalho com a terra. Para os pescadores que entrevistamos,
não há um horário mais promissor para se pescar, pois depende do que o pescador
pretende fisgar, já que existem peixes que só são fisgados à noite. Geralmente eles
pescam com duas pessoas embarcadas, frequentemente pai e filho. Para pescar no rio
São Francisco, o pescador artesanal utiliza os seguintes instrumentos132: o barco de pano
(quando a vela está ao vento), também chamado de barco de vela (quando o pano está
enrolado); a rede de náilon fina (ou rede de linha fina); a rede de náilon grossa (ou rede
de duas dobras); e um arpão artesanal, feito para a captura de Surubim. Com as redes
finas, eles costumam pescar o Curimatã, a Piranha, o Tambaqui, o Surubim Pequeno, o
Piau e o Camboge; com as redes de duas dobras, pescam o Tucunaré (peixe muito raro),
o Dourado, o Tambaqui Grande, a Piranha Grande, a Corvina, o Piau Grande e o Pirá.
Conforme os pescadores informaram, o Surubim é vendido em media por R$
10,00, o Dourado entre R$ 5,00 e R$ 7,00, a Pescada de R$ 2,50 a R$ 3,30 e o
Tambaqui a R$ 4,00. De acordo com o que os vendeiros do mercado municipal
Cotejipe, em Barra, os peixes como Curimatã, Matrinchã e Camboge são vendidos a R$
4,00; o Dourado é vendido de R$ 7,00 a R$ 9,00 e o Surubim a R$ 13,00 o quilo. Ou
seja, o atravessador acrescenta, em média, R$ 2,00 sobre o valor de compra do pescado.
No assentamento muitos vendem seus peixes aos atravessadores da comunidade para
132
Instrumentos de pesca como rede e boias, e os consertos dos barcos são feitos pelos próprios
pescadores.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
169
efetuarem abatimento nas compras a prazo (caderno de notas que já possuem nas
vendas), e também por não possuírem refrigeradores para acondicionar o pescado. No
período em que os peixes são raros, o “peixe branco” - Curimatá, Corvina, Pescada,
Piranha - é vendido por R$ 3,00 o quilo, e o Surubim de R$ 10,00 a R$ 12,00133. Os
melhores meses para a pesca são os que vão de setembro a novembro, mas
contraditoriamente é exatamente neste período que o pescador tem o seu trabalho mais
depreciado, devido ao aumento da oferta e à falta de opção para o escoamento da
produção. Os informantes advertiram que, neste período, todos os peixes são vendidos
pelo mesmo valor: tanto a Piranha quanto o Curimba são vendidos entre R$ 0,25 e R$
1,50 ao atravessador134.
Lista dos peixes mais citados em pesquisa de campo135
133
Nomes comuns/populares
Nomes científicos
Curimatá/ Curimba
Tambaqui
Pescada
Surubim
Piau
Crumatá
Tucunaré
Dourado
Cruvina-pescada
Cruvina-de-bico
Pirá
Matrinchã
Mandim
Traíra
Cágado
Cari
Caboge
Piranha-vermelha
Prochilodus spp.
Colossoma macropomum
Plagioscion squamosissimus
Pseudoplatystoma coruscans
Schizodon e Leporinus
Prochilodus marggravii
Cichla ocellaris
Salminus SP
Plagioscion squamosissimus
Pachyurus francisci
Conorhynchus conirostris
Brycon reinhardtii
Pimelodus
Hoplias aff. malabaricus
Phrynops sp.
Loricariidae
Parauchenipterus galeatus
Serrasalmus brandtii
Ao falar sobre o Surubim, a informante M.A.R. se lembrou de uma receita de caldo de peixe: ao
limpar o Surubim, ela retira as guelras (anteriormente limpas com o auxílio de uma faca) e retira também
a cabeça do peixe. Para a feitura de caldo, leva ambas ao fogo médio, onde acrescenta sal a gosto e,
posteriormente, farinha de mandioca. O Surubim é feito à parte. A informante ressalta que o Surubim só
pode ser pescado se estiver com mais de 0,80 centímetros, mas ele pode chegar a 2,00 metros.
134
Foi falando de peixes e se lembrando de receitas, das quais destacou os caldos e o cuscuz, em
contraposição ao pão e aos frangos de granja, considerados alimentos fracos, que nossa informante nos
disse que esses alimentos, confeccionados ou manipulados em granja e abatedouros, não sustentam e
adoecem quem os consome. Sobre a oposição entre alimentos fracos e fortes, quentes e frios, ver:
Woortmann, E. & Woortmann, K.; 1997.
135
Os nomes populares dos peixes nominados em Canudos e na região de Barra, bem como os seus
“hábitos” alimentares, divisões e subdivisões estabelecidas pela ótica dos pescadores artesanais, podem
ser encontrados em: Costa-Neto, 2002.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
Piranha-beba
Piranha-branca
Pintado
170
Serrasalmus cf.
Piraya
Pseudoplathystoma corruscans
Como não poderia deixar de acontecer numa comunidade fortemente marcada
por um imaginário camponês, a pesca também é marcada pela questão de gênero e
geração. Desta forma, segundo os moradores, os peixes mais comuns na pescaria
masculina são o Surubim, o Curimatã e a Corvina Grande. Já as mulheres e as crianças
pescam Mandi, Corvina Pequena, Bagre e Piau, peixes menores e menos importantes
comercialmente, mas fundamentais para a alimentação dos grupos domésticos. Os
peixes grandes e considerados mais saborosos são sempre vendidos para os
atravessadores, o que leva as mulheres a repetirem, constantemente, que os peixes
trazidos por seus maridos e feitos em casa são sempre “restos de pescarias”. Conforme
já afirmamos, existe uma forte divisão de gênero e de geração nas atividades realizadas
no território de terra e no território de água, afinal existe uma primazia do trabalho
masculino em relação ao feminino nas atividades realizadas pelos grupos familiares.
Porém, existem mulheres que transitam entre essas atividades e entre esses espaços com
mais facilidade, mesmo sabendo que existe um princípio de separação e de hierarquia.
Mesmo compreendendo que os homens, geralmente, estão mais voltados para a esfera
produtiva e para o mundo exterior (negociam no comércio na cidade, são presidentes de
associações, pescam e laboram com a terra), enquanto as mulheres estão mais voltadas
para as questões internas da unidade familiar (cuidado com os filhos, com a casa, com
os animais domésticos e com as plantações no quintal), afirmamos que Canudos possui
peculiaridades em relação a essa questão. Afinal, encontramos muitas mulheres
envolvidas também com a esfera produtiva das roças de caatinga, de lameiro ou de
vazante. Boa parte das mulheres cujos maridos se voltam ao trabalho com a pesca são
levadas, pelas circunstâncias, a labutarem diariamente com a roça e os afazeres
domésticos. Encontramos, por exemplo, a assentada F.L.M. que declarou que, além de
já ter trabalhado em roça de caatinga - mas hoje em dia não trabalha porque a idade não
lhe permite -, atualmente, faz tarefas nem sempre realizadas por mulheres. Nossa
informante, além de trabalhar na roça de beira de rio e em uma pequena olaria de tijolos,
pesca de barco com seu esposo, enquanto outras mulheres pescam apenas em barrancos
e nos finais de semana. Apesar da idade, F.L.M. “bate o pano”, rema e comanda o
barco de pesca, enquanto seu esposo solta a rede de pesca e a recolhe.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
171
Como já ressaltamos, existe uma divisão interna de atividades dos membros do
grupo familiar. Assim, as filhas mulheres vão assumindo tarefas domésticas e, conforme
vão crescendo, liberam aos poucos suas mães de alguns encargos da esfera privada da
casa. Quanto aos homens, à medida que crescem, acompanham pais, irmãos, tios ou
avôs no trabalho com a roça ou a pesca. Quando os homens envelhecem, vão se
libertando de algumas atividades do mundo público, principalmente da pesca e do
trabalho na roça de caatinga, considerados trabalhos braçais muito pesados e
desgastantes.
A tabela 7 (em anexo 6) apresenta uma amostra dos animais criados e dos peixes
pescados pelos assentados. Voltamos a frisar que os valores listados são aproximações
apresentadas pelos próprios grupos domésticos. Contudo a quantidade e o valor do
pescado não foram acrescentados à tabela, porque os pescadores entrevistados
afirmaram que, por conta da precariedade da pesca artesanal, não é possível precisar a
quantidade de pescado adquirido em um mês.
Mesmo com as constantes afirmações sobre os problemas enfrentados
localmente pelos assentados, o que podemos afirmar é que, de forma geral, os
pescadores de Canudos estão integrados num processo amplo de políticas locais,
regionais e nacionais, apesar da pouca capacidade de mobilização interna desta
categoria, e alguns inclusive estão integrados à cooperativa de pescadores artesanais do
município. Atualmente Barra possui 1.600 pescadores artesanais associados136
praticando a atividade da pesca nos rios São Francisco e Grande. Em função das
dificuldades com o pescado, o SEBRAE lançou, a partir de 2005, um Projeto de
Piscicultura em parceria com a CODEVASF, o Banco do Brasil137, a Prefeitura
Municipal de Barra, a EBDA, a Bahia Pesca, a Cooperativa Barra Pescado (fundada em
2007) e a Associação de Pescadores de Barra (Colônia Z-30 de Barra). O objetivo do
projeto é melhorar, de forma gradual, a renda dos produtores no município, aumentando
a produção, e reativar o entreposto de pesca em busca de conquistar novos mercados.
Segundo os líderes da associação, o projeto veio em boa hora, pois a atividade pesqueira
estava prestes a ser extinta no município. Entretanto, a alternativa encontrada pelo
136
Alguns informativos falam em 2.000 mil associados na Colônia Z – 30 de Barra. Esta associação de
pescadores sofre influências de agentes externos, tanto quanto da associação de agricultores rurais de
Barra. O Estado interfere na colônia por intermédio da Capitania dos Portos e de instituições como o
IBAMA ou companhias de desenvolvimento, como o Banco do Brasil. A Igreja interfere na colônia por
intermédio das pastorais da pesca e das ONGs, principalmente através de movimentos sociais.
137
Outro banco que também costuma financiar equipamentos para a pesca artesanal no nordeste através
do PRONAF é o Banco do Nordeste.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
172
projeto não foi aumentar a quantidade de pescado, mas sim incentivar a criação de
peixes de espécies não nativas do Rio Grande e do Rio São Francisco. O primeiro
projeto a ser implantado foi o da tilápia rosa (Oreochromis niloticus), pois é uma
espécie que se reproduz muito rápido e que tem um potencial grande para a
comercialização. Os líderes sindicais locais acreditam que a troca da pesca extrativista,
de renda incerta, pelo cultivo da tilápia em estuário transformará a vida das
comunidades envolvidas. Conforme o levantamento dos órgãos envolvidos com este
projeto, a renda dos grupos familiares saltou de R$ 200,00 para R$ 600,00 mensais. Em
Canudos não há criatórios de peixes ou estuários, e esta nova diretriz pouco mudou a
vida dos pescadores do assentamento. Entretanto, o atual presidente da associação de
produtores rurais de Canudos participa de um criatório de tilápia no assentamento do
Barro Vermelho. Segundo afirmam os pescadores do assentamento, como a associação
de Barro Vermelho tem menos problemas organizacionais, quase todos os projetos
levados para essa localidade são implementados138. E assim, a única política pública que
ainda paradoxalmente dá suporte à pesca artesanal da localidade é a política do defeso.
Entretanto, ouso afirmar que, apesar de frágil, a ligação dos pecadores artesanais de
Canudos com a associação de pescadores artesanais do município de Barra é
fundamental para esta comunidade.
2.5. Atividades pluriativas
Como viemos salientando desde o início deste trabalho, Canudos é um misto de
uma comunidade camponesa centenária com um assentamento rural centrado na política
de agrovilas. Desta fusão de sociabilidades, surgiram várias formas de reprodução de
vida, e muitas delas não estão ligadas nem às atividades agrícolas e nem às atividades da
pesca artesanal. Existem muitas outras atividades de trabalho que demonstram a
plasticidade do tecido social, criado a partir das intervenções sofridas desde a
implantação do assentamento nesta localidade. Entre as atividades pluriativas não
agrícolas do assentamento, podemos citar a venda de combustível para veículos
138
Conforme Informativo da Prefeitura Municipal, Barra tem hoje três projetos de piscicultura
consolidados – nas comunidades de Barro Vermelho, Água Branca e Primavera. O Projeto da Piscicultura
conta atualmente com 100 pescadores/piscicultores diretamente envolvidos na manutenção dos tanques.
A produção mensal de pescado está entre 6 e 7 toneladas por mês. A associação vende seu produto para a
CONAB, mercado local, Salvador e Fortaleza. Sobre o assunto, ver: Informativo Oficial da Prefeitura de
Barra/maio
de
2010.
Disponível
em
<
http://www.barra.ba.gov.br/site/downloads/informativo/informativo_maio2010.pdf > Acesso em: 7 de
agosto de 2010.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
173
automotivos, praticada por um dos filhos de uma família assentada que se
autoidentificou através das categorias sociais lavrador/pescador. Suas vendas não
superam 40 litros mensais. Indo de encontro a esta mesma lógica de busca de
complementação da renda doméstica, quatro senhoras da comunidade também
trabalham com a venda de geladinho em suas casas. A informante com a qual
conversamos informou que vende entre 100 e 150 unidades por mês, a R$ 0,10 a
unidade. Com relação a outros tipos de prestadores de serviços, existem quatro
mulheres que recebem salário pela prefeitura: uma é professora, outra é zeladora e duas
são merendeiras da escola municipal, sendo que uma delas ainda não é assentada pelo
INCRA. E com relação à atividade de comércio dos produtos agrícolas locais, os
atravessadores de mamona e de pescado também foram pesquisados, e segundo os
dados coletados, existem tantos atravessadores quanto a quantidade de vendas na
localidade, mas sempre que buscamos saber o nome dos atravessadores, apenas seis
eram citados. De acordo com o relato de um deles, ele consegue por meio dessa
atividade uma renda de R$ 200,00 a R$ 350,00 por mês, mas essa remuneração varia
tanto quanto a produção interna do pescado e da colheita de mamona.
Na comunidade existem atualmente onze vendas que podem ser divididas em
duas modalidades: os botecos que revendem bebidas e trabalham com jogos de bilhar; e
as vendas que comercializam, além de bebidas, produtos como sabão em pó, vassoura,
gás, massas, manteiga, óleo, ovos, refrigerante, balas, salsicha, sabonetes, brincos e
forros para mesa. Ao perambular pela comunidade e conversar com algumas mulheres,
foi possível perceber que os locais de maior concentração dos homens em Canudos são
os botecos. Diversas mães e esposas reclamaram de filhos e maridos que frequentam
assiduamente esses locais, principalmente aos fins de semana. Em todos esses relatos, o
ponto central colocado pelas mulheres como fator de discórdia intradoméstico eram as
brigas entre os frequentadores depois que estes consumiam bebidas alcoólicas. Por
outro lado, as vendas que comercializam produtos de limpeza, higiene e alimentação,
geralmente são frequentados por criança e mulheres em busca de uma compra
emergencial. Segundo relatos, os produtos vendidos nestes comércios são sempre caros,
o que de certa maneira é justificado pela forma com que a venda é efetuada. Por total
falta de dinheiro por parte dos compradores, a venda dos produtos é realizada quase
sempre a prazo, mediante o uso de um caderno de notas. O vendeiro também se dá o
direito de não efetuar a venda se a conta do freguês estiver alta. Como os trabalhos
como diarista não são cotidianos, e como muitos não dispõem de uma forma de renda
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
174
semanal ou quinzenal, as contas nas vendas costumam ser anotadas e abatidas com o
vencimento do mês para aqueles que são assalariados, aposentados, ou para os que são
agricultores ou pescadores, com a venda de peixes e de sacas de mamona. Isso significa
dizer que uma renda como a da previdência social torna-se imprescindível para os
grupos domésticos e para o comércio local. Entre os onze assentados que também
mantêm uma venda, mantivemos contato com três deles, os quais alegaram conseguir
por meio dessa atividade uma renda que oscila entre R$ 150,00 e R$ 250,00 mensais.
Todavia, boa parte desse dinheiro vem do abatimento da caderneta de notas em forma
de mercadoria.
Existem também as rendas advindas das atividades dos indivíduos inseridos nas
migrações sazonais ou nos trabalhos temporários em fazendas da região dos municípios
de Barreiras e de Luis Eduardo Magalhães, mas não obtivemos informações sobre
quanto esse trabalho temporário gera de renda para o grupo familiar139.
A migração é um evento típico do campesinato histórico nordestino e é uma
estratégia fundamental para a reprodução o seu modus vivendi e da sua campesinidade.
A estratégia mais fundamental para o grupo de origem são as migrações circulatórias,
que costumam durar vários anos e, em muitas vezes, acabam afastando os indivíduos
migrantes definitivamente do seu grupo social. No entanto, esses filhos sempre enviam
somas de dinheiro consideráveis que ajudam na composição da renda dos seus grupos
domésticos. Por essa razão, a migração é uma estratégia, porque agrega a possibilidade
de uma nova renda à unidade familiar, e principalmente porque desafoga a parca
estrutura fundiária da unidade doméstica140. E esta realidade é válida, tanto para o
campesinato dito tradicional, como para os assentados provenientes das políticas
públicas. Em um espaço reduzido de reprodução, os filhos precisam migrar para que o
pequeno patrimônio territorial continue a existir, pois, afinal, a unidade de reprodução
não pode ser subdividida. A tendência geralmente é que os filhos que migram primeiro
levem os mais jovens num processo infinito e circulatório. E em Canudos esta realidade
não é diferente. Os filhos migram porque a unidade adquirida por intermédio do INCRA
não pode ser legalmente herdada e dividida. E, se fossem divididas, as famílias não
sobreviveriam, pois não é possível para este campesinato produzirem e constituírem
novas famílias em espaços ainda menores.
139
Esta estratégia de reprodução social é extremamente inconstante com relação às remessas de dinheiro
por parte do indivíduo que migra.
140
Para este assunto, ver Woortmann (1997), Garcia Jr. (1987) e Cardel (1992, 2003)
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
175
2.6. O papel das políticas redistributivas
Após falar da presença do Estado como um estranho ao mundo rural e demarcar
as mazelas que este, através de suas constantes intervenções governamentais e
institucionais, fomentou, é chegado o momento de salientar as intervenções positivas.
Mesmo que muitas ações governamentais implementadas nas últimas décadas, em vez
de produzirem o desenvolvimento local dos agricultores e pescadores artesanais, tenham
produzido um processo ainda maior de degradação das relações sociais do grupo e,
mesmo que a comunidade se mostre empobrecida, os programas de transferência de
renda e as aposentadorias especiais se mostram fundamentais para a sobrevivência deste
grupo de camponeses. Programas como o Bolsa Escola e as aposentadorias rurais e de
pescadores artesanais são basilares para a micro economia local e para permitirem a
sustentabilidade financeira das unidades domésticas. Conforme alega Abramovay (s/d),
são exatamente os recursos oriundos das bolsas e aposentadorias que, em conjunto com
os financiamentos, permitem que as unidades de produção continuem tendo acesso a
recursos externos, extragovernamentais. E são esses programas de transferência ou de
assistência previdenciária que permitem que a atividade financiada possa, por sua vez,
ser quitada.
Durante o trabalho de campo, conhecemos seis grupos familiares que são
beneficiados com o Bolsa Família, programa criado pelo governo federal, de
transferência de renda, e que tem como principal objetivo repassar aos beneficiados uma
renda mensal em dinheiro para famílias que são consideradas como estando abaixo do
mínimo vital de sobrevivência. Conforme o governo, essa ajuda serve para as famílias
mais pobres terem acesso a necessidades básicas, como educação e alimentação. O
programa beneficia famílias em todo o Brasil, que possuem renda menor que R$120,00
mensais por pessoa. O valor pago varia, dependendo da quantidade de pessoas que
fazem parte da família e da situação de pobreza. Segundo o governo federal, o programa
atende a mais de 12,4 milhões de domicílios. Para ter acesso a estes benefícios estatais,
os interessados devem apresentar documentos pessoais (como RG e CPF), comprovante
de residência atualizado e comprovante de renda de todos os dependentes. No entanto,
em comunidades como Canudos, várias famílias não dispõem de documentos ou mesmo
de condições de comprovarem renda. Na lista de beneficiados do INCRA, muitos
nomes femininos estão como 1º titular, uma confirmação clara de que seus esposos não
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
176
tinham toda a documentação em ordem no momento da conclusão do processo do
assentamento. Ao compararmos a listagem dos beneficiados com a dos assentados de
Canudos, encontramos famílias que alegaram ainda não terem encaminhado o seu
pedido de benefício porque não dispunham de condições para organizarem a
documentação ou sequer tinham condição de pagar o transporte até a sede do município.
A alegação de muitas famílias foi de que, apesar de estarem aptas ao benefício, não
conseguiram todos os papéis, ou que, após encaminharem e estarem aptas, não foram
contempladas. Como afirmamos anteriormente, em campo tivemos contato direto com
seis famílias beneficiadas cujos valores recebidos oscilavam entre R$ 90,00 e R$ 134,00
mensais, mas na comunidade existem 55 unidades familiares beneficiadas com este
programa e os valores pagos a elas variam entre R$ 40,00 e R$ 140,00.
Outra renda fundamental para os moradores de Canudos é o defeso, política
publica que delimita o tempo em que o pescador fica proibido de pescar para garantir a
reprodução das espécies de peixes nativas. A confirmação da data do defeso e da
piracema é publicada anualmente pelo IBAMA, mas geralmente coincide entre os meses
de outubro e início de fevereiro ou de novembro a março. Durante os quatro meses de
proibição, os pescadores de Canudos, que são vinculados à associação de pescadores,
recebem o equivalente a um salário mínimo por mês, ou seja, R$ 510,00. Na
comunidade existem apenas dezoito pescadores “fichados” na Colônia. Assim, os
assentados que se autodenominam por meio das outras duas identidades sociais
(pescador e lavrador ou vice-versa) não são associados e, por conseguinte, não recebem
o benefício do defeso. Com relação aos dados do município como um todo e conforme
o informativo da associação de pescadores de Barra, 1.400 pescadores tiveram acesso ao
defeso no ano de 2009. E é importante salientar que, desde o mês de outubro de 2009, o
indivíduo associado tem o direito de se aposentar pela colônia de pescadores ao
completar 60 anos de idade. Mesmo sendo um benefício importante, esta nova categoria
social de aposentadorias especiais cria certos problemas quando aplicadas à realidade
empírica. Segundo o informante D.F.C. (pescador associado), o sistema de políticas
públicas para o pescador artesanal tem dois problemas: primeiro, o defeso quase sempre
atrasa por um ou dois meses, e, segundo, a colônia impede o pescador cadastrado de
exercer outras atividades. Como vemos, estes dois fatores apontados pelo informante
como problemáticos estão intimamente ligados. Segundo nos afirmou este associado, a
colônia proíbe o pescador de “labutar com um palmo de terra”, pois só assim ele é
caracterizado como um pescador e faz jus ao recebimento do benefício. Entretanto, esta
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
177
imposição aos pescadores artesanais associados cria uma situação paradoxal, pois,
afinal, todos eles possuem áreas de plantio na caatinga, na beira do rio ou na ilha, e
todos precisam sobreviver de alguma forma no período em que o benefício do defeso
não é pago e que a pesca ainda está proibida.
Além do defeso, o benefício da aposentadoria rural se constitui numa das
principais rendas dos grupos domésticos de Canudos. Entrevistando os moradores do
assentamento, verificamos que existem unidades domésticas que são quase totalmente
mantidas pela assistência previdenciária, beneficiando três gerações de uma mesma
família. Neste sentido, fica claro que a universalização das aposentadorias rurais possui
uma função social redistributiva. Em Canudos, por exemplo, existem quarenta e seis
pessoas aposentadas pelo sindicato rural e cinco moradores aposentados pela colônia de
pescadores. A visibilidade desta política social incentiva um mínimo de cidadania
através da adesão dos assentados às associações. Assim, existem na comunidade dezoito
pescadores que contribuem para a colônia e quinze assentados que pagam o INSS,
conscientes de que terão direito à aposentadoria aos 60 anos - os homens - ou aos 55 as mulheres. Atualmente, existem quarenta e seis aposentados pelo INSS na
comunidade, o que não significa haver quarenta e seis unidades familiares beneficiadas,
pois existem alguns grupos familiares com mais de um beneficiário. Da lista de 20
grupos familiares que pesquisamos como referência da diferenciação das unidades, em
quatro deles, dois idosos são aposentados.
Em suma, a universalização das aposentadorias rurais para outras categorias,
como a do pescador artesanal, trouxe para a comunidade de Canudos o que os teóricos
da teoria social contemporânea sobre os processos constituidores da cidadania
costumam rotular como processos universais de reconhecimento e redistribuição por
parte do Estado141. Entretanto, isto não significa que estas políticas públicas atinjam de
forma homogênea e hegemônica o assentamento de Canudos.
3. PRÁTICAS COTIDIANAS DE RESISTÊNCIAS?
Nas viagens de campo, e consequentemente nas visitas que fizemos às roças de
beira de rio e às roça de ilha, nenhum jovem foi encontrado desenvolvendo atividades
agrícolas. Esta observação não pretende ignorar a literatura especializada ou a
141
Sobre esse assunto, ver Mattos (2004)
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
178
percepção do trabalho de jovens e crianças na comunidade de Canudos enquanto um
processo socializador. No entanto, é possível fazer uma relação entre o campo e a fala
de alguns entrevistados com relação a esta ausência dos jovens no trabalho com a terra
ou com a pesca. Segundo a informante M.F.S.S., mães e pais reclamam cotidianamente
que seus filhos não se interessam mais pelos plantios das roças ou pela pescaria, ou que
somente vão para as roças quando “as coisas apertam”, mas que trabalham sem
nenhum comprometimento com o patrimônio familiar. O problema, segundo os pais, é
que seus filhos acabam tendo muito tempo livre e, além de não “aprenderem”, dispõem
de tempo livre para procurarem confusão ao circularem pelo assentamento. Esse
desinteresse também foi relatado pela informante M.A.R., ao afirmar que:
Minha roça de mamona tá acabando, os meninos não querem
cuidar. Acaba perdendo, como perdeu uma boa que tinha aqui
do lado de cima pertinho (apontando o lado de cima da estrada
de rodagem de Canudos, próximo à entrada da comunidade)
que Domingos teve que vender pro irmão dele, já que ninguém
cuidava e ela tava acabando no mato também 142.
O assentado F.A.S. reclama do mesmo desinteresse dos jovens pela agricultura,
mas acrescenta que, em sua opinião, esse desapego tem relação com os benefícios
previdenciários recebidos pelos pais e avós:
Solteiro ou casadinho espera pelo pai que é aposentado e traz a
feira. Então ele tá mais ligado é na pescaria que ele pega e não
pega pra poder comer. Se ele não pegar o peixe, ele chega em
casa, ele tem uma carne que o pai comprou, tem o feijão. O
tempo de facilitar chegou pra prejudicar, num foi? Que roça?
Quem deles que quer roça? 143
Com estes relatos não estamos descaracterizando a prática do trabalho familiar
dentro da comunidade de Canudos. Apenas indicamos que o impacto de novas políticas
públicas parece estar potencializando as mudanças do jovem com relação à terra e ao
trabalho agrícola. Eles parecem estar resistindo às atividades agrícolas e às relações de
sociabilidades
142
proporcionadas
pelo
trabalho
familiar.
Por
outro
lado,
não
Fragmento de uma entrevista realizada em Canudos, em 2008, com uma assentada de 52 anos de
idade.
143
Trecho de entrevista realizada em Canudos, em 2010, com um lavrador assentado de 60 anos.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
179
desconsideramos o frágil momento de transitoriedade que os levam à fase adulta. Assim
como não desconsideramos a possibilidade de uma relação de pertencimento mais
intensa sendo desenvolvida entre os jovens do gênero masculino e o território de água.
Não observamos, durante o trabalho de campo, jovens se direcionando para as áreas
agrícolas, mas vimos, no decorrer do dia e no cair da noite, durante a semana e aos
finais de semana, eles se encaminhando para a pesca. Havia um tom de brincadeira na
feitura dessa atividade, e muitos deles pescavam com amigos, mas a atividade ocorria.
Não existe, de nossa parte, enquanto cientista social, uma visão ingênua e uma
exigência em relação à permanência ou ao continuísmo ou uma tendência positivada em
relação a uma identidade social de lavrador ou de pescador artesanal. Até porque, não
cremos na desvinculação completa dessas práticas com os processos de reconfiguração
da realidade contemporânea. Existe a certeza de que vivemos um período de
transformação e de modernização das relações no campo e que os jovens devem ser
vistos como uma categoria social com demandas próprias. As transformações e as
permanências passam por ações coletivas e ou políticas públicas adequadas aos atores
sociais, como reforma agrária, políticas públicas, como PRONAF-Jovem144, PRONAFMulher, entre outras
Entretanto, como afirma Mattos (2004), as políticas públicas têm um caráter
dúbio, ou seja:
Como se pode perceber os remédios parecem contraditórios, uma vez que
devem enfatizar, ao mesmo tempo, a igualdade e a diferença. Como
alternativa a dilemas desse tipo, Fraser analisa as estratégias,chamadas por
ela, de afirmação ou de transformação. Para vencer os dilemas entre
redistribuição e reconhecimento, pode-se adotar medidas afirmativas ou
transformativas. As medidas afirmativas têm por objetivo a correção de
resultados indesejados sem mexer na estrutura que os forma. Já os remédios
transformativos têm por fim a correção dos resultados indesejados pela
reestruturação da estrutura que os produz (2004:05)
144
A linha de crédito de investimento para jovens tem como beneficiários jovens agricultores e
agricultoras pertencentes a famílias enquadradas no PRONAF. Eles devem ser maiores de 16 e terem até
29 anos e devem atender algumas condições em relação ao ensino formal. O limite de crédito por
beneficiário é de até R$10 mil reais. A taxa efetiva de juros é de 1% ao ano. Uma investigação sobre
como os jovens se colocam frente a estes apontamentos não faziam parte do recorte da pesquisa.
Entrevistas ou depoimentos não foram realizados com esse grupo. Nosso objetivo é apenas apontar que
existem mudanças e resistências por parte dos jovens de Canudos em relação às atividades práticas nos
espaços agrícolas.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
180
Por outro lado, observamos que as políticas públicas direcionadas à
desvinculação do trabalho e da educação estão desconstruindo uma das estratégias mais
fundamentais da ética camponesa, que é a transmissão intergeracional do “saber-fazer”.
Como ensinar um filho ou uma filha as técnicas de plantio, de colheita, de extrativismo
e de beneficiamento, se o trabalho como um elemento de socialização da criança
camponesa vem sendo confundido pelas políticas públicas, e principalmente pelos
técnicos governamentais que as aplicam, como uma forma de trabalho infantil?
Defendemos, por meio da nossa experiência em campo e por meio da literatura
especializada (Woortmann, 1988; Cardel, 1996) que o trabalho camponês não se
configura num processo de exploração, na medida em que se baseia num conjunto de
forças subsumidas pelo grupo familiar. Daí a importância da compreensão efetiva, por
parte do Estado, do que vem a ser agricultura familiar.
Desta forma, para que uma criança se torne um camponês, ou como preferem os
técnicos governamentais, um agricultor familiar, é necessário que, além dela ter acesso
à escola e à segurança alimentar, ela seja ensinada, desde cedo, a lidar com a terra. O
trabalho de uma criança dentro do grupo doméstico camponês não pode ser considerado
um trabalho de exploração infantil, mas sim um processo de socialização, desde que o
seu direito de ir à escola e de agir como uma criança seja resguardado. Em suma, o
trabalho infantil só pode ser criminalizado quando ele é utilizado pelo Capital, e está
claramente inserido num processo de exploração. Entretanto, não negamos o quanto é
difícil a compreensão desta realidade por parte dos agentes sociais e dos mediadores que
agenciam as políticas públicas no campo. E em Canudos esta realidade não é diferente.
Entretanto, as questões de gênero continuam sendo irrelevantes diante do controle do
trabalho infantil. É comum vermos as meninas entre 10 e 12 anos realizando tarefas
muito pesadas para a idade, como carregar latas de 20 litros de água na cabeça, passar
horas embaixo de um sol escaldante lavando roupas e vasilhas, e isto não ser
considerado algo negativo nem para os pais e nem para os agentes sociais locais. Por
outro lado, é comum também vermos adolescentes homens sendo poupados do trabalho
com a terra e com o rio, mas frequentarem bares e ingerirem bebidas alcoólicas sem
nenhuma censura dos pais ou da comunidade. Em suma, as políticas para os jovens e as
crianças no campo ainda são ineficientes em muitos sentidos, e isto reflete,
sobremaneira, na questão da manutenção do homem do campo na sua própria terra.
Entretanto, como apontam vários autores, os “fracos” e os “subalternos” também
possuem formas e estratégias de poder, e que podem, num certo sentido, reequilibrar as
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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forças externas e internas. As crianças e os jovens do assentamento aprendem, desde
muito cedo, que eles fazem parte de um sistema de forças desiguais, mas que eles estão
num assentamento e que, como assentados, possuem canais que devem ser acionados
para que a realidade vivida possa ser modificada. O que não significa que possa ser
melhorada.
3.1. Maledicências, boicotes, furtos e sabotagem
Neste sentido, Scott (2002) traz em seus escritos questões elucidativas sobre os
conflitos internos em comunidades rurais. Assim como Elias (2000), ele está interessado
em microanálises e em estudar conflitos sociais em parâmetros de microescalas. Em
primeiro lugar, Scott não crê na imagem dos sujeitos sociais camponeses como vítimas
passivas do processo que os alcançam. Para ele, os camponeses não são meros
reprodutores ou indivíduos passivos das condições geradas por macroestruturas
econômicas e sociais, mas são sujeitos que atuam a partir das condições objetivamente
dadas, a partir de sua própria percepção delas e de sua racionalidade. Segundo Menezes
(2002), para James Scott a racionalidade camponesa não é algo unidirecional, mas se
compõe por meio de uma associação de fatores econômicos, sociais e culturais. Portanto
a perspectiva investigativa de Scott está centrada nos atores e, por conta disto,
pressupõe uma variedade de resultados. James Scott sugere aos pesquisadores que eles
investiguem a heterogeneidade das estratégias e lógicas divergentes dos diversos grupos
sociais, e é dentro desta perspectiva teórica e metodológica que desenvolve a noção de
“práticas cotidianas de resistência”.
Scott entende que, na maioria das vezes, a resistência às relações de dominação é
expressa através de práticas rotineiras e por meio de expressões difusas e fragmentadas.
Para isso, o autor centrou sua análise especialmente nas tensões e lutas não visíveis
dentro da estrutura social, dedicando-se a analisar formas de resistência cotidiana, tanto
individual como coletivas. Neste sentido, ele contesta a tese de que o grupo social ou o
indivíduo que não se envolve em organizações coletivas ou revolucionárias seria
portador de “falsa consciência” e que, para alcançar a “consciência verdadeira”, seria
preciso haver uma intervenção de agentes externos como líderes de movimentos sociais,
partidos políticos, sindicatos ou grupos revolucionários. Diferentemente dos
movimentos sociais, que são expressões institucionais, coletivas, formais e públicas, as
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
182
práticas cotidianas requerem pouca ou nenhuma coordenação, pois são informais e
ocultas. E é isso que as fazem tão eficazes.
Para Scott (2002) as “práticas cotidianas de resistência” se expressam, por
exemplo, na prática de dissimulação, condescendência, submissão falsa, saques,
incêndios premeditados, ignorância fingida,
fofoca, difamação,
maledicência,
sabotagem e outras armas dessa natureza. Conforme afirma o autor, essas formas de luta
de classe têm certas características em comum: requerem pouca ou nenhuma
coordenação ou planejamento; sempre representam uma forma de autoajuda individual;
evitam, geralmente, qualquer confrontação simbólica e real com a autoridade ou com as
normas impostas pela elite. Entender essas formas comuns de luta é entender o que
muitos dos camponeses fazem nos seus cotidianos para melhor defender seus interesses.
As pequenas rebeliões podem ter uma importância simbólica por sua
violência e pelos seus objetivos revolucionários, mas, para a maioria das
classes historicamente subordinadas, tais episódios raros foram mais
momentâneos do que as silenciosas guerrilhas que têm lugar no cotidiano de
várias populações. (SCOTT: 2002, p.11)
Além da resistência cotidiana, existe a possibilidade de confrontação direta
(como a ocupação pública de terras, desafiando o sistema de propriedade). Mas a regra
geral é a forma de resistência passiva, expressa através de sabotagens sutis, na não
participação, e ainda, na evasão. Ou seja, as práticas de resistência não são pensadas
como reações ou oposições às formas de dominação, mas como diversas estratégias que
grupos sociais utilizam de forma a garantir sua autonomia e dignidade em face às
relações de exploração e dominação. Em muitas situações, essas estratégias se
caracterizam como adaptação ou acomodação às relações de dominação e, em outras, de
contestação. O argumento central de Scott (2002) é que a cultura da resistência pode
tornar completamente inócuas as políticas inventadas pelos seus supostos superiores. As
microrresistências145 não são insignificantes e podem, em muitas vezes, mudar
determinadas práticas.
145
Micro-resistência entre camponeses é qualquer ato de membros da classe que tem como intenção
mitigar ou negar obrigações (renda, impostos, deferência) cobradas a essa classe por classes superiores
(proprietários de terra, o estado, proprietários de máquinas, agiotas ou empresas de empréstimo de
dinheiro) ou avançar suas próprias reivindicações (terra, assistência, respeito) em relação às classes
superiores. (SCOTT, 2002: p 24)
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
183
O argumento teórico utilizado por Scott vai de encontro com a realidade
empírica de Canudos, exaustivamente descrita neste exercício acadêmico. O autor criou
uma teoria sobre as micro “práticas cotidianas de resistência” depois de ter realizado
observação participante durante dois anos em uma aldeia no Estado de Sedaka, Malásia.
Segundo o autor, a introdução de máquinas coletoras de arroz nas comunidades locais
desencadeou resistências ativas, que não se restringiram a debates, mas a práticas que
buscavam impedir a mecanização da colheita. As práticas às quais o autor se refere
começaram com sabotagens e obstruções, como remover as baterias das máquinas e
jogá-las dentro das valas de irrigação; destruir carburadores e distribuidores e jogar
areia e lama nos tanques de gasolina. A descrição feita por Scott (2002) nos remete ao
processo que Canudos criou quando houve a implantação da casa de farinha mecanizada
coletiva e o projeto de irrigação em áreas comunais. Conforme foi descrito, o projeto
não foi implantado porque, antes da energia elétrica ser instalada, parte dos canos de
irrigação que já havia sido instalada foi quebrada e roubada. As respostas que
explicariam a razão de tal comportamento por parte deste grupo social estão na
literatura especializada, que fala da dificuldade que grupos camponeses têm em
aderirem a projetos coletivos; e na dificuldade que grupos sociais com precedências
históricas distintas têm em acreditar que, dentro de um espaço artificial, como
assentamento e agrovila, possa ser criado um processo de sociabilidade simétrica, sem o
cimento social anterior, dado pelos processos de sociabilidade reificados pelos laços de
amizade, parentesco e compadrio..
Para Scott, as táticas usadas pelo grupo social que ele pesquisou realmente
funcionaram por um longo tempo. O boicote verdadeiramente representou uma forma
muito cautelosa de resistência, não tendo havido, em nenhum momento, uma
confrontação aberta. Em Canudos o confronto direto também nunca existiu. Os canos de
irrigação foram quebrados e retirados, assim como a estrutura física da casa de farinha e
do aprisco foi depredada ou reutilizada de forma individual. No entanto, ninguém foi
apontado como o único autor destes eventos desestruturantes. Voltando ao campo de
pesquisa de Scott, outra forma de resistência significativa entre os camponeses de
malasianos foi o furto de grãos dos grandes proprietários da região. O montante de
grãos de arroz roubados, embora não representasse um montante tão grande em relação
à colheita, foi alarmante para os fazendeiros, que acreditam num provável crescimento
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
184
desse montante. Scott (2002) sabe que nem todos os roubos podem ser considerados
resistências, mas, conforme afirma o autor, é inteiramente possível que alguns dos
moradores, de algum modo, considerem tais atos, não como roubo, mas como a
apropriação do que eles sentem que lhes pertencem, devido aos costumes antigos – uma
espécie de imposto para substituir os presentes ou salários que recebiam dos
fazendeiros. No assentamento de Canudos, os furtos de ferramentas, como enxada,
peneira, fios de arame, pequenos animais domésticos e produtos agrícolas são
lamentações recorrentes em alguns depoimentos. Mas até que ponto, em uma
comunidade conflituosa como Canudos, pequenos furtos são apenas uma usurpação?146
Assim como em Canudos, a resistência em Sedaka, conforme narra Scott (2002),
não tem nada do que alguém pode encontrar na história típica dos estudos sobre conflito
rural. O mesmo podemos afirmar para a realidade social cotidiana de Canudos. Por mais
que a realidade social e fundiária desta comunidade seja complicada, não houve na
história recente desta localidade motins, incêndios culposos, banditismo social
organizado ou violência aberta. O assentamento de Canudos não foi uma desapropriação
violenta ou uma desapropriação programada por sindicato ou MST. Ou seja, a realidade
de microrresistência deste assentamento não está relacionada a movimentos políticos, a
ideologias partidárias ou a alguma estrutura revolucionária
Como em Sedaka, no assentamento, as “práticas cotidianas de resistência”
requerem pouca coordenação, pois elas são individuais e acontecem quase sempre
durante a noite, e ninguém é responsabilizado. Ou seja, como afirma Scott, onde a
resistência é coletiva, ela é cuidadosamente prudente, e onde o indivíduo ou pequeno
grupo atacam, ela é anônima e geralmente noturna. Em Canudos há prudência e
segredo. Prudência retratada nas entrevistas de campo, onde os atores sociais falam pela
voz e pelo silêncio. Prudência momentaneamente esquecida quando, ao caminhar pelas
moradias respondendo a convites para um copo de leite, um café da tarde, um jantar em
família ou uma procissão de domingo, ouvimos histórias, maledicências e fofocas
contadas em meias palavras, quase confessionais. São vizinhos e compadres fazendo
acusações veladas de roubo, de injúrias e de atos imorais.
Em todo o nosso período de campo, percebemos uma resistência ao “outro”.
Um outro que é pensado como “de fora” e que possui um sentimento de pertença
146
Sendo assim, estudiosos de escravidão, que têm enfrentado mais diretamente essa dubiedade, quando
identificam que alguns atos de protesto velado, como a acomodação e os roubos, eram frequentemente a
única opção disponível, tendem a considerá-los como formas de resistência “real” (SCOTT, 2002: p25)
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
185
distinto, como também percebemos uma resistência ao outro que detém mais “saber”
sobre práticas agrícolas e que representa o poder local. Há o que Scott denomina de
afastamento da deferência.
Ignorar o elemento de auto-interesse na resistência camponesa é ignorar o
contexto determinado não apenas da política camponesa, mas da política da
maioria das classes subalternas. É precisamente a fusão entre auto-interesse
e resistência que se mostra como uma força vital, animando a resistência de
camponeses e proletários. Assim, cabe esclarecer que quando o camponês
esconde parte de sua colheita para evitar pagar impostos, ele está tanto
enchendo sua barriga quanto destituindo o estado de grãos. Por sua vez,
quando um soldado camponês deserta do exército porque a comida é ruim e
sua colheita em casa está madura, ele está tanto cuidando de si mesmo
quanto negando a artilharia ao estado. Em suma, quando tais atos são raros e
isolados, eles são de pouco interesse, mas no momento em que eles se
tornam um padrão consistente, embora não coordenado, estamos lidando
com resistência. Essas formas de resistência podem não ganhar batalhas
premeditadas, mas são admiravelmente eficientes em campanhas de
confronto de longo prazo (SCOTT, 2002: p.27)
O ponto principal que o autor James Scott tenta demonstrar em seu argumento é
que determinadas práticas cotidianas têm impacto sobre as relações sociais entre os
camponeses e os proprietários de terras, os comerciantes e o status quo. O assentamento
de Canudos vive isso cotidianamente, através da fragmentação de suas relações sociais,
de sua sociabilidade, de suas relações com os agentes externos e, consequentemente,
com o Estado.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
186
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As pesquisas atualmente apontam para a heterogeneidade e o alto grau de
complexidade dos estudos empíricos sobre campesinato no Brasil. A utilização de
numerosos
conceitos
e
categorias
analíticas,
como
comunidade
centenária,
campesinidade, ruralidade, agricultura familiar, pluriatividade, lavrador, pescador, etc.,
além de demonstrar uma relação de distintividade e contrastividade, sugere que o
emprego de tais conceitos não está isento de contestações. A intranquilidade conceitual
no âmbito dos Estudos Rurais contemporâneos surge da impossibilidade empírica de
localizá-los dentro de fronteiras teóricas bem definidas. No caso específico do
campesinato brasileiro, observamos uma relação ambígua de continuidades e
descontinuidades históricas entre os elementos que compõem as diversas realidades
empíricas do universo rural. Por esta razão, Wanderley (1996) declara que, por mais que
a agricultura familiar brasileira tenha se adaptado às reivindicações da agricultura
moderna, ela ainda traz elementos que compõem o modo de vida camponês. Na
realidade de Canudos, por exemplo, a roça de mamona é um espaço de trabalho
camponês que mantém estreitas relações econômicas modernas com o mundo externo,
representando bem este argumento exposto por Wanderley, pois este espaço de trabalho
significa a possibilidade de continuidade do modus vivendi camponês por parte daqueles
assentados, impedindo a quebra da ligação da unidade familiar com o patrimônio. Por
outro lado, a existência do plantio desta oleaginosa na comunidade de Canudos
representa a realização da lógica moderna, por parte dos agricultores assentados, da
renda monetária estrita, advinda da venda do seu produto para as empresas de
biocombustíveis.
É inegável que o espaço rural nordestino, permeado por várias singularidades
sociais – pescadores artesanais, marisqueiras, comunidades de fundo de pasto,
sertanejos, quebradeiras de coco, beradeiros – colabora para a formação de um
campesinato multi-identitário147, que é fruto, não só de um sentimento de pertença, de
relação com o trabalho com a terra e/ou a água, mas também de uma luta por
demarcações de territórios. As comunidades rurais sempre foram invisibilizadas pelo
147
Vale frisar que não ignoramos que o processo identitário se constrói pela distintividade e pelo
contraste, portanto, ela é uma relação construída socialmente com o “outro”, estando sujeita a
manipulações, positivações ou processos de negação, conforme as estratégias de sobrevivência criada
pelos grupos sociais.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
187
Estado. E este, por conseguinte, quando se posiciona frente às comunidades rurais,
geralmente propõe políticas intervencionistas frente a uma situação de conflito
territorial, e quase sempre tem uma postura desenvolvimentista que visa a atender a
interesses que não necessariamente correspondem aos dos grupos menos favorecidos.
Além das intervenções governamentais e institucionais não representarem, em muitos
casos, o desejo dos grupos sociais envolvidos, os mediadores estatais não levam em
conta a possibilidade de serem portadores de projetos com ideologias que não
correspondem à realidade vivida pelos grupos mediados. Muitas das ações idealizadas
por mediadores, como o Estado, a Igreja, o MST, a FETAG e as ONGs não encontram
correspondência na prática. Tais mediadores ignoram que um espaço territorial,
permeado por sociabilidades e identidades sociais distintas, traz em si conflitos internos,
os quais influenciam a assimilação ou a recusa de determinadas medidas institucionais.
Ou, como alerta Little (2002), os processos de territorialização surgem em “contextos
intersocietários” de conflito, e esta realidade é sempre matizada pelos agenciadores
responsáveis pelas implementações das políticas públicas. Ao operarem com linguagens
unilineares, os mediadores acabam gerando um grande desencontro, mesmo que esta
não seja realmente a intenção.
Embora o assentamento de Canudos apresente intervenções desastrosas por parte
dos mediadores e do poder público em várias esferas frente à pauperização da
comunidade, este grupo social não deixou de tecer aspectos essenciais de seu modo de
vida. Utilizando várias estratégias de sobrevivência como a renda com a pesca, com a
mamona, com o plantio em área de lameiro e vazante, com a migração sazonal e
circulatória, e fundamentalmente com as rendas dos benefícios das políticas públicas,
como os da previdência social e os da transferência de renda. O nosso trabalho de
campo ressaltou características peculiares de um grupo social que, apesar de
fragmentados, compartilha entre os seus grupos domésticos um certo imaginário
camponês, onde a terra e a água se complementam. E tanto quanto o grupo de
camponeses estudados por Fraxe (2000), as características mais peculiares deste
campesinato são a dependência em relação aos ciclos naturais de estiagem e de chuva; o
intenso conhecimento destes ciclos que se refletem nas estratégias de manejo; a noção
de território; o uso de tecnologia simples, tanto no plantio quanto na pesca; a pequena
produção para o consumo e a venda; a opção pela policultura; a utilização de mão de
obra predominantemente familiar; a hierarquia paterna; e a divisão de trabalho pautada
nas relações de gênero e geração. Em resumo, o grupo camponês do assentamento de
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
188
Canudos é constituído por famílias lavradoras e pescadoras que primam pelo trabalho
familiar e que possuem uma relação complexa com o território que ocupam. Entretanto,
por todas as particularidades da história recente desta comunidade, Canudos não se
constitui como um campesinato histórico típico, em função do seu déficit de
sociabilidade. A identidade do grupo apresenta-se fragmentada entre as atividades
realizadas nos territórios de terra e de água, e as relações intergrupais não estão
pautadas nas relações simétricas e familísticas do parentesco real e espiritual, ao
contrário da realidade de grande parte do campesinato sertanejo brasileiro. Assim, as
práticas de ajuda mútua, também conhecidas como adjutório, boi roubado ou mutirão
não são típicas desta comunidade, artificialmente recriada pelo INCRA.
Apesar de Canudos ser um assentamento criado na década de 1990, os lotes ou
os terrenos das unidades familiares assentadas ainda não foram demarcados pelo órgão.
Assim, o local e a quantidade de terra trabalhada pela unidade familiar estão vinculados
a uma maior ou menor precedência das famílias na localidade, como também à
quantidade de mão de obra de que cada grupo doméstico dispõe. Esta realidade imposta
é o nó górdio desta comunidade e a fonte dos seus conflitos estruturais e cotidianos.
Destarte, sem que o Estado tenha terminado de realizar o seu papel como
implementador de um espaço organizativo, os assentados criaram formas próprias de
ocupação. E, dentro desta lógica, as famílias camponesas de Canudos plantam
individualmente em áreas individuais e em áreas consideradas comunais. E seguindo
esta lógica, as plantações em terrenos de ilha ou beira de rio (áreas proibidas) foram
inicialmente sendo demarcadas pela precedência, e posteriormente pela capacidade de
adquiri-las mediante pagamento. Entretanto, se a lógica da renda fundiária se impôs no
território de terra, no território de água as regras se efetivaram de forma mais rígida e
clara. Neste lócus de trabalho, os espaços de pesca não são individuais, e a ordem dos
barcos que se aproximam primeiramente dos pesqueiros é rigorosamente respeitada.
Existe, inclusive, um acordo tácito entre os pescadores da comunidade, que os impedem
de pescar em frente às roças de ilha que não as suas. E assim, de forma tortuosa e
conflitual, algumas regras foram sendo estabelecidas entre os grupos domésticos do
assentamento, para que um mínimo de sociabilidade fosse criado. Curiosamente, o
espaço mais regulamentado não é o que foi desapropriado para o assentamento, mas as
áreas públicas que circundam a comunidade, como as áreas de beira de rio e as ilhas
fluviais.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
189
Com relação às estratégias de sobrevivência dos grupos domésticos, em Canudos
há uma somatória entre a renda da terra, a renda da água e os benefícios da previdência
social e de transferência de renda que propiciam um certo equilíbrio para o grupo. O que
significa dizer que a necessidade econômica e a busca pelo equilíbrio da unidade
doméstica podem, portanto, impor procedimentos, violação de costumes e modificações
constantes. Há, por exemplo, violações de hábitos basilares da campesinidade, como a
baixa reciprocidade, e circulam entre os grupos mais “recursos informacionais” (Loera,
2006) e fofocas do que recursos materiais. Ao contrário de outras comunidades
camponesas, inclusive comunidades circunvizinhas148, em Canudos, a doação de
pescado, de carne de caça e de animais domésticos e o empréstimo de grãos entre
famílias são hábitos inexistentes.
Apesar de alguns moradores terem se declarado apenas como lavradores e outros
como pescadores, no assentamento não existe uma atividade exclusiva: as atividades de
plantio e pesca são simultâneas e complementares. No que concerne aos grupos sociais
salientados, acreditamos que a autoidentificação tem relação com o sentimento de
pertencimento a um ou a outro território, e com a política pública à qual está vinculado.
A identidade de lavrador, que, de acordo com a descrição sobre o grupo, é alicerçada no
imaginário da organização camponesa, é positivada se o individuo for aposentado como
trabalhador rural ou recolhe para a previdência com este intuito. Da mesma forma, o
assentado que se autoidentifica como pescador, além de preferir esta atividade,
geralmente é associado à colônia de pescadores e recebe o defeso ou é aposentado como
pescador artesanal. Mas a grande maioria se autoidentificou como portador das duas
identidades sociais, mesmo não sendo legalmente ligados à colônia de pescadores ou à
associação de produtores. Em resumo, na comunidade pesquisada, mesmo após o
benefício da política pública de assentamento, a identidade de lavrador ou de
trabalhador rural não se tornou homogeneizante, já que a identidade social do grupo é
composta por elementos ligados à terra e à água. E, pelo que pudemos compreender
sobre a realidade social de Canudos, os assentados parecem lidar muito bem com a
duplicidade identitária por eles estabelecida. Assim, quando os lavradores/pescadores
não pescam para a comercialização, eles pescam para o consumo, e não se abstêm de
venderem um pescado quando acreditam que ele irá render um bom dinheiro. Mesmo
quando pescadores/lavradores afirmam que plantam apenas para o consumo, eles, em
148
Ver os estudos de Cardel (1992 e 2003) e Viana (2009) sobre outras comunidades camponesas do
município de Barra/Ba.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
190
sua grande maioria, não abandonam suas roças de mamona, pois sabem que, se
necessário, podem recorrer a esta renda extra. Ou seja, o grupo camponês em voga se
situa em um emaranhado formado por uma multiplicidade de identidades sociais, onde a
identidade única, na práxis, não funciona.
Da mesma forma que existe um continuum e um movimento pendular entre o
camponês e o trabalhador rural proletarizado, estudado por Velho (1982), parece existir
um pêndulo entre as identidades sociais encontradas em Canudos. Indo um pouco mais
adiante neste modelo típico ideal, percebemos que esta realidade empírica também pode
ser entendida como um processo de etnogênese aplicado a grupos camponeses, uma vez
que, conforme Cardel (2010):
[...] este processo é fartamente utilizado pelos grupos sociais subalternos
como um instrumento político de empoderamento por meio de um discurso
com fortes contornos de distinção identitária, revelando a plasticidade e a
capacidade de adaptação dos grupos sociais frente às mudanças
imponderáveis.
Esta reconstrução de autopercepção grupal é um paradigma que acompanha
o Homem Contemporâneo. Como nos lembra Simmel, os valores são
relativos no tempo (história) e no espaço (estrutura), o que nos leva a
observar que a existência grupal é uma resultante de variáveis práticas que
passam da singeleza dos hábitos alimentares à crueza das hierarquias de
classe, gênero e status. E para aqueles que não se encontram nessa conjunção
de tempo e espaço, cabe-lhes apenas a insignificância da estrangeiridade, da
liminaridade e da invisibilidade (CARDEL, 2010: p.5).
Isso significa dizer que comunidades rurais podem reelaborar suas identidades
sociais ou criar novos sujeitos sociais como uma estratégia, seja porque sofrem com
conflitos agrários ou com as intervenções do Estado, ou mesmo se veem inseridos na
possibilidade de serem objetos de políticas públicas de reconhecimento e redistribuição.
Canudos, por exemplo, aparenta ser uma típica comunidade camponesa, mas, após ser
reconfigurada em um assentamento pelo INCRA, com o assentamento de famílias
advindas de localidades distintas, a identidade social dos grupos assentados sofreu
alterações em suas relações intra e intergrupais, havendo um acentuado conflito no
interior dos grupos. Esses conflitos estão relacionados com a história de cada grupo
assentado, ou seja, são conflitos decorrentes das diferenças de origem, das diferenças de
experiência e dos propósitos iniciais para a criação do assentamento numa área onde
havia uma comunidade camponesa centenária. Os conflitos se explicam porque a
sociabilidade referencial atual deste grupo perdeu os padrões comunitários, pautados em
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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relações de parentesco real ou imaginário, e a relação comunitária teórica que os
mediadores buscam inserir por meio de projetos coletivos não encontra respaldo na
prática.
Em suma, a situação de deslocamento territorial e de mudanças advindas da
política de assentamento fez com que estes atores sociais abrissem mão dos seus
sistemas tradicionais de representação e reconstruíssem um novo universo, o que alterou
consequentemente a identidade camponesa tradicional, pautada nas relações de
vizinhança, compadrio, descendência e herança, ajuda mútua, dependência, memória
coletiva, pertencimento e patrimônio familiar. Da mesma forma, a imposição de uma
agrovila significou a ruptura nos domínios complementares entre casa e roça, moradia e
trabalho, resultado da separação entre os domínios público e privado. Desta forma,
houve uma recriação dos sistemas simbólicos em uma nova realidade sociocultural, o
que demonstra que, nas situações da vida cotidiana, as regras ou as normas rígidas
também podem ser adaptadas, flexibilizadas e ajustadas, e que a adaptabilidade depende
do contexto sociocultural no qual são aplicadas. Para Canudos, as formas adaptativas,
criadas após o processo de intervenção, não foram positivas, como esta pesquisa tentou
demonstrar.
Como procuramos evidenciar, o camponês, o meeiro e o posseiro transplantados
para Canudos mudaram de categoria e passaram a ser assentados frente ao poder
público. Entretanto, esta categoria não os define enquanto sujeitos sociais. Conforme
Martins (2003), o sujeito da reforma agrária não é o sujeito individualizado do
programa do INCRA, e é bem diferente do sujeito coletivo que a categoria assentado faz
supor. A nosso ver, o sujeito da reforma agrária tem uma difusa identidade própria,
muito complexa e pouco política. Na nossa concepção, os assentados não têm a sua
práxis camponesa devidamente compreendida por seus tutores ou agenciadores, pois a
visão que os mediadores possuem do assentado é puramente ideológica. Por outro lado,
os assentados também não optam por criar suas próprias demandas e não escolhem a
submissão e a dominação patrimonial e clientelista dos serviços de intervenção do
Estado por livre e espontânea vontade. Por esta razão, compartilhamos da hipótese de
Martins (2003) e não acreditamos que um assentamento agrário seja base ou reforce a
identidade social camponesa, mas ao contrário, ele colabora para fragmentá-la.
Carvalho (1999) compartilha desta mesma visão de Martins, e trabalha com a
mesma hipótese de que o espaço civilizatório do assentamento rural é um palco de
interações conflituosas entre vários agentes sociais. Suas observações sobre a
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
192
configuração e a construção de identidades sociais em assentamentos se aplicam muito
bem no espaço e no imaginário social de Canudos. De forma resumida, podemos
afirmar que, em comunidades artificialmente criadas pela política de Reforma Agrária
Estatal, encontramos as seguintes realidades:
•
Em assentamentos que foram constituídos por famílias de diversas
origens geográficas e com histórias sociais de vida distintas, há tendência
de se constituírem grupos sociais autoidentificados pelo sentimento de
origem, formando assim uma realidade fragmentária;
•
Aqueles assentamentos onde as famílias já eram moradoras da fazenda
desapropriada, ou do seu entorno, como posseiras, parceiras, agregadas,
assalariadas ou quilombolas, onde a identidade social dá-se pela rede de
relações sociais consolidadas historicamente, há a tendência de
reprodução de uma vida social similar àquela que vivenciaram nos
contextos sociais anteriores ao assentamento;
•
Naqueles assentamentos constituídos por número elevado de famílias
(mais de 100) com origens, biografia e inserções sociais distintas entre si,
são bastante remotas as possibilidades, a curto e médio prazo de que se
estabeleçam padrões de comportamento comuns entre elas, a partir das
interações sociais vivenciadas no assentamento;
•
As formas de associativismo estimuladas de fora para dentro e, mesmo
aquelas constituídas a partir de iniciativas internas, mas advindas de
exigências de fora (organismos de governo, partidos políticos,
movimentos
sociais),
não
proporcionam
necessariamente
as
possibilidades de formação de identidade social entre as famílias
assentadas;
•
Naqueles assentamentos onde não foram equacionadas as demandas da
juventude, como estudo, trabalho e lazer, observa-se uma perda do
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
dinamismo
social
e
econômico
interno
com
tendências
193
ao
estabelecimento de relações de assalariamento.
Tanto para Martins, como para Carvalho, o que se cria em um assentamento
feito nos moldes atuais é um quadro social de incerteza, tanto em relação aos
companheiros, quanto em relação aos vizinhos e aos agentes de mediação. Este quadro
de fragilidade do tecido social criado artificialmente faz com que qualquer desconexão
nos relacionamentos interfira nos mecanismos de socialização, e estes podem deixar de
operar. O esforço em implementar projetos de coletivização forçada de fora para dentro,
por intermédio da ótica dos mediadores, fragiliza esta conexão de relacionamentos, na
medida em que há uma ruptura entre o desejo e o projeto do assentado e os projetos dos
mediadores e, consequentemente, faz surgir uma forte resistência a estas medidas. De
forma similar, o grupo social de Canudos, quando confrontado com os vários projetos
impostos como medidas mitigatórias, utilizou de elementos como a fofoca, os rumores,
os pequenos furtos e a depredação das infraestruturas para se contrapor às mudanças
sociais trazidas por estranhos, e para demonstrar subjetivamente que existe uma
discrepância entre a sua realidade social e os projetos propostos. Estes elementos são,
segundo Scott (2002), em muitos casos, formas de resistência cotidiana e, através deles,
os grupos mobilizam informações, ideias e relações sociais, mesmo que o uso de
elementos, como o mexerico, signifiquem um processo de estigmatização e de
marginalização do próprio grupo ou de membros no interior deste grupo.
Conforme retrata Elias (2000), determinados mexericos, piadas e comentários
pouco lisonjeiros que os “de dentro” (estabelecidos) ou os “de fora” (outsiders) se
esmeram em fazer circular, mostram que a tentativa de desabonar o outro grupo gira em
torno de brigas pelo poder e da busca de uma identidade positivada. A identidade
positivada está baseada na anterioridade do grupo à localidade e na procedência das
unidades familiares. A prioridade na chegada ao lugar se tornou o principal fundamento
da divisão e da organização da vida social do lugar, e serve de base, tanto para a
colaboração, quanto para a discriminação e a conflitividade. O que significa dizer que a
representação que um grupo faz do outro influencia na construção identitária de todos
os grupos envolvidos.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
194
Em suma, atualmente, no espaço rural brasileiro, vive-se um cenário de luta por
reconhecimento de identidades de grupo e por redistribuição149. Assim como existem
grupos sociais que buscam reconhecimento territorial, acesso à propriedade fundiária e
visibilização, outros buscam se reorganizar frente às políticas públicas fundiárias. O
grupo que compõe o assentamento de Canudos não foge a esta realidade
Como a grande maioria do campesinato brasileiro vive um processo constante de
invisibilização, mesmo sendo paradoxalmente alvo das políticas públicas, estes grupos
acabam criando estratégias de sobrevivência autônomas e contraditórias. Por causa da
invisibilidade estrutural a que estão sujeitos, as políticas públicas estatais não
transversalizam seus imaginários, e acabam não obtendo muitos resultados positivos.
Quando o contexto de precariedade a que estas comunidades estão sujeitas vem à tona,
elas conseguem ser incluídas em algumas políticas públicas, e os grupos camponeses
acabam tendo acesso a ações institucionais afirmativas. Entretanto, ações afirmativas
não impulsionam mudanças, pois são paliativas, quando não se tornam desastrosas. Por
outro lado, não podemos deixar de reconhecer que as atuais políticas de reconhecimento
e ações afirmativas realizadas por parte do Estado, e por intermédio de instituições
como a FETAG ou a Igreja, agora reelaborada sobre a denominação ampla de políticas
para a agricultura familiar, apesar de não abarcarem o ideário camponês, conseguem
implementar algumas ações positivas. Apesar da realidade de Canudos não ser um
exemplo positivo destas ações, não negamos que, em determinadas situações sociais,
ações afirmativas, como crédito agrícola e projetos de transferência de renda, sejam
fundamentais para a sobrevivência de algumas unidades familiares.
Por fim, é neste contexto de contradições e de rearticulações sociais e históricas
que, no assentamento de Canudos, as práticas da agricultura familiar, da pesca artesanal
e do extrativismo se articulam de forma entrelaçada ao sistema pluriativo. Desta forma,
a adesão à pluriatividade colabora para que o grupo camponês em voga se situe em um
149
Sobre a Teoria Social do Reconhecimento e Redistribuição, ver Fraser (2001; 2007) e Mattos (2004;
2006). O objetivo de Nancy Fraser é desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, tendo clara a
noção de que a justiça social requer reconhecimento e redistribuição. Ou seja, as lutas por reconhecimento
de identidades de grupo ou diferenças não estão dissociadas das lutas por redistribuição. Para ela a
justificativa para a marginalização de grupos na esfera pública pode ser encontrada na existência de
normas sociais que são enviesadas de forma injusta contra alguns sujeitos e/ou institucionalizadas pelo
Estado. Além disto, eles são frequentemente alvo de desvantagens econômicas, o que impede sua
participação igualitária na fabricação da cultura em esferas públicas e no cotidiano. Nancy Fraser tenta
reconciliar o binômio redistribuição/reconhecimento e sua teoria sugere que as duas formas de injustiça
requerem remédios transformativos ou afirmativos. A autora elabora uma crítica quanto às ações
afirmativas, pois, segundo a sua argumentação, ações afirmativas não impulsionam mudanças. Por outro
lado, a autora não deixa de reconhecer que às vezes esse tipo de remediação pode ser necessário.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
195
emaranhado formado por uma multiplicidade de identidades sociais, onde a identidade
única, na práxis, não existe. De acordo com Cardel (2010), os grupos sociais produzem
teorias sociais sobre si mesmos, que, por questões micropolíticas, são expressões de
lutas internas e de relações assimétricas. Para afiançar esta afirmação, é de suma
importância estar atento às lutas objetivas e intersubjetivas travadas em situações
micropolíticas cotidianas, pois é por meio delas que os sujeitos se autorrealizam150,
como é o caso dos assentados da comunidade de Canudos. E analisar as contradições
desta realidade foi a finalidade desta investigação. Entretanto, salientamos que em
nenhum momento desejamos encerrar todas as questões levantadas aqui. O que fizemos
foi trazer elementos que interpretamos como importantes a partir do nosso ponto de
vista, e que entendemos serem significativos para o presente trabalho. Esperamos,
realmente, que este esforço sirva para incentivar outros pesquisadores a tomarem
contato com a temática e a produzirem as suas próprias críticas.
150
Segundo Sabourin (1999), a ineficiência de algumas políticas públicas em comunidades rurais muitas
vezes está ligada à ignorância por parte do Estado e dos mediadores sobre a lógica de reciprocidade,
inerente a muitos desses grupos. E, em maior ou menor grau, estas políticas públicas apresentam apenas
propostas de desenvolvimento mercantil (cooperativismo, associativismo), criando assim outros
problemas.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
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WOORTMANN, Klaas. “Com parente não se neguceia”: o campesinato como ordem
moral. In: Anuário antropológico 87. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990.
WOORTMANN, Klass; WOORTMANN, Ellen F. O trabalho da terra: a lógica e a
simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
ANEXO 1
A representação em croqui foi realizada tendo como base o desenho de
uma informante chave, M.A.R., em março de 2008.
203
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
204
ANEXO 2
Fonte: ADEQUAÇÕES e Complementações ao Estudo Ambiental do Projeto de Melhoramento do Leito
Navegável do Rio São Francisco – Trecho Barragem de Sobradinho a Juazeiro/Petrolina. 2005.
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
205
ANEXO 3
TABELA 4 - CARACTERIZAÇÃO DAS FAMILIAS ASSENTADAS
Exposição de Bens
Família/
Profissão
Idade
Lê
Filho
Filho
resid.
Tarefas
/R$
1
Lavradora
2
Lavrador
3
Pescador
4
Pescador
5
Pescador
47 a
Sim
8
2
37 a
Sim
1
1
57 a
Sim
7
5
30 a
Sim
6
6
42 a
Sim
9
1
6t
3 mil
3t
600 r
2t
1500 r
5t
2500 r
5t
5 mil
6
Vendeiro
e lavrador
7
Lavrador
8
Lavrador
e pescador
9
Lavrador
e pescador
10
Lavrador
11
Lavradora
12
Lavradora
70 a
Sim
9
0
77 a
Não
2
1
58 a
Sim
8
0
64 a
Sim
1
1
82 a
Não
4
3
29 a
Sim
5
5
73 a
Não
3
2
C. de
tijolo/
R$
1
10 mil
1
10 mil
1
3 mil
1
5 mil
1t
1 mil
1
20 mil
15 t
N/disse
26 t
N/disse
1
5 a 6 mil
23 t
13 mil
-
33 t
N/disse
3t/
1 mil
4t
N/disse
1
N/disse
1
5 mil
-
C. de
adobe/
taipa/R$
-
Côm.
Sanitário
Curral/
Chiqueiro
Galinheiro
Moto/
R$
Unid.
-
-
Bicicleta/
R$
Unid.
2
50 r
1
60 r
1
40 r
-
Barco/
R$
Unid.
1
600 r
-
Carro/
R$
Unid.
-
4
1
-
-
1
-
4
1
-
1
1
1
6 a 7 mil
-
4
-
-
-
1
-
-
1
200 r
1
300 r
1
700 r
5
1
-
-
-
5
-
-
-
1
-
-
7
1
-
1
50 r
-
-
1
4.500 r
1
5 a 6 mil
3
1
1
-
-
-
-
-
-
6
1
1
1
-
-
1
200 r
-
2
-
1
-
-
1
250 r
-
-
1
-
-
-
250 r
1
-
6
1
1
-
-
-
6
-
-
-
-
2
40 r
-
1
N/disse
5
1
-
-
-
-
3
200 r
1
300 r
1
400 r
-
-
-
-
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
206
Exposição de Bens
Família/
Profissão
Idade
13
Lavrador
58 a
14
Lavrador
e pescador
50 a
15
Lavrador
e pescador
16
Lavradora
62 a
17
Lavrador
18
Pescador
27 a
Não
1
1
53 a
Sim
5
0
19
Pescador
20
Pescador e
lavrador
61 a
Não
5
1
50 a
Sim
8
2
55 a
Lê
Sim
Sim
Sim
Sim
Filho
6
8
5
8
Filho
resid.
2
7
3
3
Tarefas
/R$
8t
3 mil
C. de
tijolo/
R$
1
5 mil
C. de
adobe/
taipa/R$
Côm.
Sanitário
Curral/
Chiqueiro
Galinheiro
Bicicleta/
R$
Unid.
Moto/
R$
Unid.
-
3
1
-
-
-
1
40 r
-
50 t
60 mil
1
2 mil
-
3
1
-
-
1
1
50 r
1
1300 r
1
250 r
13 t
N/disse
1
8 mil
-
5
-
-
-
1
-
-
3
330 r
8t
N/disse
1
8 a 10 mil
-
5
-
-
-
1
1
50 r
-
5t
N/disse
14 t /
N/disse
-
1
500 r
2
-
-
-
-
-
-
1
15 mil
-
5
1
-
-
-
-
-
4t
N/disse
22 t
N/disse
1
N/disse
1
N/disse
-
4
-
-
-
-
-
-
6
1
-
1
1
1
30 r
1
50 r
-
Barco/
R$
Unid.
1
600 a
700 r
Carro/
R$
Unid.
-
1
500 a
600 r
1
400 a
450 r
1
N/disse
2
200 e
400 r
-
-
-
-
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
207
ANEXO 4
TABELA 5 - SITUAÇÃO PATRIMONIAL E CARACTERIZAÇÃO DOS LOTES DAS FAMÍLIAS
ASSENTADAS E NÃO ASSENTADAS
Total
de
Tarefas
Valor
da Área
1
Não
titulada
6
3 mil
Caatinga (4)
Coroa (2)
2
Não
titulada
3
600
reais
Caatinga (3)
Mamona
Caatinga
Coroa
Abandonou
Abandonou
Caatinga (4)
Coroa (1)
Mamona
Família
Áreas
Utilizadas e
Tarefas
Plantio
Situação
do
Lote
Caatinga
Beira rio
Mamona e
melancia
-
3
Não
titulada
-
-
4
Não
titulada
5
2.500
reais
5
Não
titulada
5
5 mil
Caatinga (3)
Coroa (1,5)
Beira rio (0,5)
6
Não
titulada
1
1 mil
Caatinga (1)
Não
titulada
15
7
N/disse
Caatinga (7)
Beira rio (8)
-
-
Mamona e
melancia
Mamona; feijão
de corda,
melancia e
abóbora
Mamona
Capim
Pastagem
Coroa ou Ilha
Milho, feijão de corda e
de arranque, abóbora,
batata e melancia
Planta com seus pais:
feijão de corda e de
arranque, abóbora,
milho, melancia e
batata
Plantava batata,
abóbora, milho mas
abandonou
Milho, melancia,
abóbora, batata,
mandioca e feijão de
corda
Feijão de arranque,
abóbora, milho e batata
Feijão, melancia,
milho, maxixe,
abobora
Capim
-
Mão de
obra
Familiar
Mão de
obra
Não
Familiar
Larga
Sim/Não
Lote
Sim/Não
Sim
Sim/
1 tarefa
Sim
Eventual.
Não/
Não tem
gado
Não
Sim
Não
Não/
Não tem
gado
Sim/
1 tarefa
Sim
Sim
Não
Sim
Não
Sim
0,5 tarefa
Sim
Não
Não
Sim
Eventual.
Sim/
8 tarefas
Sim
Eventual.
Não/
Não tem
gado
Não/
Não tem
gado
Sim
Não
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
Família
8
9
10
Situação
do
Lote
Não
titulada
Total
de
Tarefas
26
Não
titulada
23
Não
titulada
33
Valor
da Área
N/disse
13 mil
Áreas
Utilizadas e
Tarefas
Caatinga (10)
Beira rio (6)
Coroa (10)
Plantio
Beira rio
Coroa ou Ilha
Mamona
Milho, feijão de
corda, melancia,
melão
Milho, feijão de corda,
feijão de arranque,
melancia, abóbora
Caatinga (13)
Beira rio (8)
Coroa (2)
Capim
Caatinga (20)
Abandonada
N/disse
Mamona
Boca da
caatinga (2)
Pastagem
Caatinga
Feijão de corda,
feijão de arranque,
milho, batata,
abóbora, melancia,
mandioca
Capim
208
Capim
Feijão de corda, feijão
de arranque, milho,
batata, abóbora,
melancia, mandioca
Capim
Mão de
obra
Familiar
Mão de
obra
Não
Familiar
Larga
Sim/Não
Lote
Sim/Não
Sim
Sim/
2 ou 3
tarefas
Sim
Quase
sempre
Sim
Sim/
13 tarefas
Sim
Eventual.
Sim
Sim/
8 tarefas
Sim
Não
Sim/
1 tarefa
Sim
Não
Não
Sim
Não
Melancia, milho,
feijão, abóbora
Beira rio (5)
Coroa (6)
11
Família
não é
assentada
ainda
3
N/disse
Coroa (3)
-
12
Não
titulada
4
N/disse
Beira rio (3)
Coroa (1)
Mamona
Milho, feijão de
corda, feijão de
arranque, melancia
Mandioca, milho,
melancia, batata, feijão
de corda, feijão de
arranque, abóbora,
maxixe, quiabo, melão
Capim
Milho, feijão de corda,
feijão de arranque,
melancia
Não/
Não tem
gado
Não/
Não tem
gado
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
Família
Situação
do
Lote
Total
de
Tarefas
Valor
da Área
Áreas
Utilizadas e
Tarefas
Plantio
Caatinga
13
Não
titulada
14
Não
titulada
8
3 mil
50
60 mil
Caatinga (6)
Coroa (2)
Caatinga do
Barro Branco
(24)
Pastagem
Beira rio
Coroa ou Ilha
Mamona
209
Lote
Sim/Não
Milho, mandioca,
melancia, arroz,
abobora, feijão
Não
Sim
Não
Sim
Sim/
20 tarefas
Sim
Eventual
Não/
Não tem
gado
Sim/
1 tarefa
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Não/
Não tem
gado
Não
Sim
Não
Sim
Não
Sim
Não
Não/
Não tem
gado
Não
Sim
Não
Capim
Capim
Mamona e
abóbora
Melancia, milho,
batata, melão
Mandioca, banana,
feijão de corda, milho,
melancia
Caatinga (5)
Coroa (3)
Mamona e
melancia
-
Caatinga (10)
15
Não
titulada
16
Não
titulada
17
Família
não é
assentada
ainda
N/disse
13
N/disse
8
5
N/disse
Caatinga (3)
Coroa (2)
Mamona
-
Caatinga (12)
Beira rio (2)
Caatinga (1)
Beira rio (1)
Coroa (2)
Mamona
Feijão, milho,
melancia, batata
Feijão de arranque,
melancia, milho,
maxixe, mandioca,
cana
18
Não
titulada
14
N/disse
19
Não
titulada
4
N/disse
Mamona,
melancia, feijão
de corda, milho
Mão de
obra
Não
Familiar
Larga
Sim/Não
Não/
Não tem
gado
Mamona, milho,
mandioca e
capim
Beira rio (12)
Coroa (4)
Caatinga (10)
Beira rio (1)
Coroa (2)
Mão de
obra
Familiar
Capim
Feijão de corda, feijão
de arranque, abóbora,
batata, milho
Feijão de arranque,
feijão de corda,
melancia, milho,
abóbora, jerimum,
mandioca, tomate
Mandioca, melancia e
milho
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
Família
20
Situação
do
Lote
Não
titulada
Total
de
Tarefas
22
Valor
da Área
N/disse
Áreas
Utilizadas e
Tarefas
Caatinga (10)
(+10 que
estão
limpando)
Coroa (2)
Plantio
210
Pastagem
Caatinga
Beira rio
Coroa ou Ilha
Mamona,
melancia
-
Milho, feijão de corda,
feijão de arranque,
batata, melão
Capim
Larga
Sim/Não
Lote
Sim/Não
Sim
Sim
1 tarefa
Mão de
obra
Familiar
Mão de
obra
Não
Familiar
Sim
Quase
sempre
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
211
ANEXO 5
TABELA 6 - CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL
Família
Nº
Caatinga
Coroa/Ilha
Produto/
Quantidade
Destino/
R$ saca
T
Produto
Destino/
R$ saca
T
Venda
64 a 70 r
Petrobras
-
-
-
2
4
Mamona/
De 8 a 10
sacas
-
-
-
-
2
3
Mamona/
De 4 a 10
sacas
Venda
60 r
3
-
-
-
-
-
-
-
-
Venda
70 r
Petrobras
-
-
1
4
Mamona
De 2 a 15
sacas
-
4
5
4
Mamona/
De 6 a 40
sacas
Venda
55 a 60 r
Milho, melancia,
abóbora, batata,
mandioca, feijão de
corda
Feijão de arranque,
abóbora, milho e
batata
1
T
Beira rio
1,5
0,5
Capim
Uso
Produto
Milho, feijão de
corda, feijão de
arranque, abóbora,
batata e melancia
-
Quintal
Destino/
R$ saca
Consumo
-
-
Consumo
Consumo
Produto
Canteiro, pl.
medicinais,
laranja, coco,
limão, goiaba,
seriguela.
Canteiro, pl.
medicinais,
limão, laranja,
pinha, caju,
goiaba,
seriguela,
carambola, cana.
Canteiro,
mamão, pinha,
manga.
Canteiro,
seriguela,
mamão.
Canteiro, romã,
goiaba, limão e
banana
Extração
Destino/
R$ saca
Produto
Destino/
R$
Consumo
Lenha,
carnaúba
Consumo
Consumo
Lenha,
umbu,
mari,
jenipapo,
carnaúba,
quixaba
Consumo
Consumo
Lenha,
umbu,
carnaúba,
quixaba
Lenha,
carnaúba.
Consumo
Consumo
Lenha,
carnaúba.
Consumo
Consumo
Consumo
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
212
CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL
Família
Caatinga
Nº
T
6
1
7
8
7
10
Beira rio
Produto/
Quantidade
Destino/
R$ saca
Mamona
De 4 a 8
sacas
Venda
60 a 65 r
Melancia e
abobora
Venda
1 r peça
Feijão de
corda
Consumo
Mamona
De 12 a 100
sacas
Venda
70 r
Petrobras
Mamona
De 12 a 60
sacas
Venda
60 a 65 r
T
-
8
6
Produto
Coroa/Ilha
Destino/
R$ saca
T
Produto
Quintal
Destino/
R$ saca
Produto
Canteiro, pl.
medicinais,
laranja, limão,
coco, pinha
-
-
-
-
-
Feijão,
melancia,
milho,
maxixe,
abóbora e
Consumo
-
-
-
Roseiras, flores e
pl. medicinais
10
Milho, feijão de
corda, feijão de
arranque.
Vende
Milho: 25 r
Feijão: 80 a
100 r
Melancia, abóbora e
capim
Consumo e
Uso
Canteiro, pl.
medicinais,
carambola,
limão, laranja,
banana, manga,
caju, mandioca
Capim
Milho,
feijão de
corda, feijão
de arranque,
melancia,
abóbora,
melão
Extração
Destino/
R$ saca
Consumo
-
Produto
Lenha,
carnaúba,
jenipapo,
mari,
umbu
Lenha e
carnaúba
Destino/
R$
Consumo
Consumo
Uso
Consumo
Consumo
Lenha e
carnaúba
Consumo
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
213
CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL
Família
Nº
9
Caatinga
T
13
Produto/
Quantidade
Capim
Beira rio
Destino/
R$ saca
Uso
T
Produto
8
Feijão de
corda, de
arranque,
batata,
abóbora,
melancia,
mandioca
Milho
Mamona
2 a 4 sacas
10
22
Capim
Uso
3
-
-
Destino/
R$ saca
-
T
Consumo
2
6
-
Produto
Feijão de corda,
feijão de arranque,
milho, batata,
abóbora, melancia,
mandioca
Quintal
Destino/
R$ saca
Consumo
Vende
Milho: 20 r
Venda
60 r
5
Melancia,
milho,
feijão,
abobora
11
Coroa/Ilha
Capim
Uso
Produto
Canteiro, pl.
medicinais,
laranja, umbu,
limão, seriquela
Canteiro, laranja,
limão, mamão,
acerola, caju
Extração
Destino/
R$ saca
Produto
Destino/
R$
Consumo
Lenha e
carnaúba
Consumo
Consumo
Lenha e
carnaúba
Consumo
Consumo
-
3
Mandioca, milho,
melancia, batata,
feijão de corda,
feijão de arranque,
abóbora, maxixe,
quiabo, melão
Capim
Consumo
Uso
Canteiro, laranja,
limão, seriguela,
pinha, pé de
ninho
Consumo
Lenha,
umbu,
carnaúba,
mari
Consumo
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
214
CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL
Família
Caatinga
Beira rio
Coroa/Ilha
Nº
T
Produto/
Quantidade
Destino/
R$ saca
T
Produto
Destino/
R$ saca
T
12
-
-
-
3
Mamona
3 sacas
Venda
60 r
1
Milho,
feijão de
corda, feijão
de arranque,
melancia
Consumo
-
-
13
14
15
6
34
10
Mamona
De 3 a 20
sacas
Venda
60 a 65 r
Mamona
De 20 a 500
sacas
Venda
60 r
Milho,
mandioca e
capim
Mamona
De 40 a 100
sacas
Abobora
Consumo
e uso
-
12
Venda
68 a 70 r
Consumo
1
Capim
Melancia,
milho,
batata,
melão
Produto
Quintal
Destino/
R$ saca
Produto
Destino/
R$ saca
Produto
Destino/
R$
Consumo
Canteiro,
pimenteira,
laranja,
seriguela, limão
Consumo
Lenha e
carnaúba
Consumo
Milho, feijão de
corda, feijão de
arranque, melancia
2
Uso
4
Consumo
2
Extração
Milho, mandioca,
melancia, arroz,
abóbora, feijão
Consumo
Capim
Uso
Mandioca, banana,
feijão de corda,
milho, melancia
Capim
Consumo
Canteiro, Limão,
mamão, laranja,
coco, graviola,
seriguela, pinha
goiaba, manga
Canteiro, Limão,
mamão, laranja,
coco, graviola,
seriguela,
Canteiro, laranja,
limão, seriguela
Uso
Consumo
Lenha e
carnaúba
Consumo
Consumo
Lenha e
carnaúba
Consumo
Consumo
Lenha e
carnaúba
Consumo
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
215
CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL
Família
Caatinga
Nº
T
16
5
17
3
18
12
19
20
Beira rio
Produto/
Quantidade
Destino/
R$ saca
Mamona
De 8 a 10
sacas
Vende
60 a 64 r
Melancia
Consumo
Mamona
De 8 a 20
sacas
Venda
50 a 55 r
Mamona
N/disse
Venda
55 a 60 r
Mamona
N/disse
Venda
55 a 60 r
1
20
T
Produto
Destino/
R$ saca
T
-
-
-
3
-
2
1
Melancia,
feijão de
corda
Mamona
De 30 a 150
sacas
Melancia
Consumo
Venda
70 r
Petrobras
Consumo
Coroa/Ilha
-
-
Feijão,
milho,
melancia,
batata
Feijão de
arranque,
melancia,
milho,
maxixe,
mandioca
-
Produto
Feijão de corda,
feijão de arranque,
abóbora, batata,
milho
Quintal
Destino/
R$ saca
Consumo
-
2
Feijão de arranque,
feijão de corda,
melancia, milho,
abóbora, jerimum,
mandioca, tomate
Consumo
-
-
-
Consumo
2
Mandioca,
melancia, milho
Consumo
-
2
Milho, feijão de
corda, feijão de
arranque, batata,
melão
Capim
Consumo
Consumo
Uso
Produto
Canteiro, pl.
medicinais,
feijão, milho,
coco, limão,
mamão
Canteiro, manga,
limão, seriguela
Canteiro,
seriguela, limão,
pinha, coco
Canteiro, limão,
laranja,
seriguela,
manga, coco
Canteiro, pl.
medicinais,
limão, banana,
laranja, mamão
seriguela, acerola
e mandioca
Extração
Destino/
R$ saca
Consumo
Consumo
Produto
Lenha,
carnaúba,
jenipapo,
umbu
Lenha,
carnaúba,
umbu,
jenipapo,
mari
Consumo
Lenha e
carnaúba
Consumo
Lenha,car
naúba,
jurema,
cipó
Consumo
Lenha,
carnaúba,
jurema e
pl.medicinais
Destino/
R$
Consumo
Consumo
Consumo
Consumo
Consumo
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
216
ANEXO 6
TABELA 7 - CRIAÇAO DE ANIMAIS E PESCA ARTESANAL
Família
Gado Adulto
Nº
Qt.
1
2
3
4
Bezerro/
Novilha
Cavalo
Qt
R$ Unid.
Qt
6
7
8
9
2
6
4
25/28
R$
Unid.
500/700 r
500/600 r
600/800 r
500 r
2
5
3
15
150 r
300/400 r
200/250 r
300/350 r
-
R$
Unid.
-
10
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
8
1
2
1
300 r
500 r
400 r
500 r
3
4
1
1
200 r
150 r
300 r
150 r
9
-
Jumento
Qt
Porco
Qt
200 r
1
1
1
1
3
R$
Unid.
60/100 r
80 r
50 r
50/60 r
100 r
2
1
-
R$
Unid.
15 r
150 r
-
400 r
-
1
2
1
2
1
1
1
1
1
50 r
60 r
40/60 r
100/150 r
100 r
50/100 r
50 r
40 a 60 r
50 a 60 r
1
50 r
Bode/Cabra
Qt
2 b/
30 c
-
R$
Unid.
80 r /
60 r
-
Galinha
Qt
Peixe
6
6
2
15
10
7
40
R$
Unid.
10 r
10 r
8r
10 r
10 r
10/12 r
10 r
Qt
Variado
Variado
Variado
-
R$
Unid.
Variado
Variado
Variado
-
1
1
3
8
15
2
2
10
10 r
10/15 r
10 r
10 r
8 a 10 r
10 r
8r
10 r
Variado
Variado
Variado
Variado
Variado
Variado
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
217
ANEXO 7
Família
Aposentadoria
Defeso
Atravessador
Venda
OUTRAS RENDAS
Bolsa
Funcion.
municipais
Nº
Pessoas
$
P
$
P
$
P
$
P
$
P
1
2
3
4
5
6
1
1
2
510 r
510 r
1020 r
1
1
1
-
510 r
510 r
510 r
-
1
1
-1
150 r
-
3
2
3
-
122 r
90 r
130 r
-
7
8
9
10
11
2
1
2
-
1020 r
510 r
1020 r
-
1
1
-
510 r
510 r
-
-
200 a
350 r
-
5
12
13
14
2
-
1020 r
-
1
1
510 r
510 r
-
-
1
15
1
510 r
-
-
-
-
-
150 a
200 r
-
16
17
1
-
510 r
-
1
-
510 r
-
-
-
-
18
1
510 r
1
-
510 r
-
-
-
-
-
1
510 r
-
-
19
20
Diarista
Revenda de
combustível
Venda de
geladinho
$
P
$
P
$ litro
P
-
-
1
1
1
1
-
25 r
20 r
20 r
20 r
-
-
-
-
$
unid
-
134 r
-
-
1
1
1
-
3 a 3,50 r
-
-
2
3
80 r
90 r
-
-
-
25 r
20/25
r
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
1
510 r
1
20 r
-
-
-
-
1
-
510 r
-
-
-
-
-
-
1
765 r
-
-
150 a
250 r
-
Qt.
Artesanato
(vassoura,
balaio)
P
$ unid
1
-
1r
-
-
-
-
-
-
-
-
-
1
0,10 c
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
1
1r
-
-
-
-
-
-
-
100 a
150
CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco.
1