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CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS NÚCLEOS DE ESTUDOS AMBIENTAIS E RURAIS CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. REJANE ALVES DE OLIVEIRA SALVADOR 2010 1 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 2 REJANE ALVES DE OLIVEIRA CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profª. Drª. Lídia Maria Pires Soares Cardel SALVADOR 2010 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 3 TERMO DE APROVAÇÃO REJANE ALVES DE OLIVEIRA CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, pela seguinte banca examinadora: Profª. Drª. Lídia Maria Pires Soares Cardel – Orientadora ___________________________ Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Profª. Drª. Ely Souza Estrela – Professora Convidada ______________________________ Universidade Estadual da Bahia – Departamento de Ciências Humanas/Campus V, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local. Profª. Drª. Alicia Ruiz Olalde – Professora Convidada ___________________________ Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – Centro de Ciências Agrárias, Biológicas e Ambientais. Salvador 2010 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 4 Dedicatória: Dedico este trabalho a meus pais, Joel (em memória) e Odércia, por propiciarem a mim uma experiência de vida no mundo caipira repleta de cores, gostos e trabalho. Seu mundo camponês está em mim. Gratidão, lembranças e saudades. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 5 AGRADECIMENTOS Este trabalho começou há muito tempo, quando percebi que o mundo de meus pais (e consequentemente meu) me intrigava e estimulava intelectualmente. Durante este tempo, muitas pessoas apareceram no percurso, e não poderia aqui, nominar todas elas. Agradeço, conjuntamente, a todos que compartilharam as minhas inquietações e experiências durante estes anos, contribuindo de forma direta e indireta para este estudo. Agradeço ao PPGCS - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, pela oportunidade de desenvolver essa investigação. À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela concessão de bolsa de estudo. Sem este auxílio dificilmente realizaria a pesquisa. À Professora Drª Custódia Selma Sena do Amaral (professora da UFG), pela dedicação de anos, pelo carinho, pela paciência e por me mostrar os possíveis caminhos das Ciências Sociais. Uma referência, sempre. À Professora Drª Lídia Cardel, (minha orientadora), que não só, generosamente, colocou à minha disposição sua imensa bagagem de conhecimento e experiência, mas igualmente me proporcionou uma orientação permeada de confiança e estímulo, sempre reservando do seu tempo para debater questões teóricas e percalços da vida acadêmica. A ela devo toda a minha formação em sociologia rural. Pois os possíveis deméritos deste trabalho são de minha total responsabilidade. Aos colegas do NUCLEAR, e especialmente aos que se reúnem no Grupo de Estudos coordenado pela Profª Lídia, meus sinceros agradecimentos, por compartilharem de seus conhecimentos e me enriquecerem com suas observações e experiências de trabalho. À minha família, irmãos e sobrinhos. Eu sempre os busquei em minhas memórias e revivências. Particularmente, a Manoel Napoleão, um instigador e alguém que, como eu, traz lembranças de dor e alegria da vivência caipira. Ambos somos marcadamente apaixonados pela riqueza mística, pela beleza ecológica e pela vastidão bucólica que envolve o sertão. Eu sempre ouvi sons onde havia silêncio mútuo. Sou grata, de maneira especial, a minha mãe, Odércia Vitalina de Lima, pelas longas conversas à beira do fogão e pelo afeto regado a boas comidas e boas lembranças. A labuta familiar com o pequeno plantio e com os animais permeia meu imaginário, orienta minhas leituras e meus sonhos. A ela (e a meu pai) devo meu amor pela terra e também meu olhar crítico sobre a vida no campo. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 6 Meus agradecimentos finais, aos quais quero dar particular ênfase são dirigidos aos “sujeitos” protagonistas desta pesquisa, homens e mulheres lavradores e pescadores artesanais, que demonstraram confiança, disposição e paciência ao me receberem em suas roças, quintais e cozinhas, compartilhando comigo seu modo de vida, suas experiências e seu precioso tempo. Sem a generosidade e a disponibilidade oferecidas, este trabalho não seria possível. Com eles contraí uma dívida inestimável. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 7 RESUMO Este trabalho tem a proposta de apresentar o modo de vida de um grupo social camponês, localizado em um assentamento no interior do Estado da Bahia, e sua história de constantes intervenções. Os sujeitos sociais a que nos referimos oscilam entre diversas atividades, das quais as principais são o trabalho com a terra e com a pesca artesanal. Assim como não existe uma atividade exclusiva, também não há uma identidade única no grupo. O grupo social assentado apresenta sociabilidade e relação familiar distintas. Os grupos domésticos, do mesmo modo, possuem origens distintas. A precedência dos grupos familiares, gera conflitos. Conflitos internos que se potencializam e dificultam a implementação de projetos intervencionistas. Este exercício acadêmico busca pensar esta prática e as contradições desse processo. Pois, em paralelo à incorporação de novos elementos, existem contradições expostas na prática dos grupos domésticos, que podem ser vistas como resistência ao que é “estranho”. Palavras-chave: campesinato, assentamento, identidade, sociabilidade, mediadores. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 8 ABSTRAT This work has to the proposal to present the life of a social group peasant, located in a settlement within the State of Bahia, and its history of constant interventions. Th e social subjects we are talking about ranging between many activities, of which the main ones are the work with the land and with fishing. As well as there is no exclusive activity, there is a single identity in the group. The social group settled presents sociability and relation family distinct. The groups domestic, likewise, have different origins. The precedence of family groups, creates conflicts. Internal conflicts which potentiate and hinder the implementation of projects interventionist. This exercise academic seeking think this practice and contradictions that process. Therefore, in parallel with the incorporation of new elements, there are contradictions exposed in the practice of domestic groups, which can be seen as resistance to what is "stranger". Key words: peasantry, settlement, identity, sociability, intermediate. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 9 LISTA DE FOTOS Foto 01 – Agrovila de Canudos 50 Foto 02 – Morador que se identifica como pescador 85 Foto 03 – Moradora colhendo mamona para vender a um atravessador 86 Foto 04 – Foto demonstrativa do estado de depredação do maquinário da Casa de Farinha Coletiva e Eletrificada 128 Foto 05 – Foto da frente da construção da Casa de Farinha Coletiva e Eletrificada, quando ela já apresentava algumas falhas no telhado 129 Foto 06 – Foto da frente da construção da Casa de Farinha Coletiva e Eletrificada quando ela já apresentava falta quase total do telhado, e falta das duas áreas circundantes 130 Foto 07 – Região das roças de sequeiro 158 Foto 08 – Ilhas ou Coroas do São Francisco e as roças de lameiro 159 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 10 LISTA DE MAPAS Mapa 01 – Espacialização da Concentração de Terras – Índice de Gini Mapa 02 – Inadimplência de Municípios com o Pronaf 40 154 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Cultura por Município 41 Tabela 2 – Efetivo de Animais por Município 43 Tabela 3 – Projetos propostos para a coletividade pela ONG Brejos da Barra 136 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ANCARBA: Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural. APPRC: Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Canudos CAR: Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional CEAS: Centro de Estudos e Ação Social CEB: Comunidades Eclesiais de Base CESP: Companhia Energética de São Paulo CHESF: Companhia Hidrelétrica do São Francisco CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNCV: Comissão Nacional de Combate a Violência no Campo CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CODETER: Colegiado de Desenvolvimento Territorial. CODEVASF: Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba COELBA: Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia CONDER: Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia CONTAG: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CPT: Comissão Pastoral da Terra EBDA: Empresa Bahiana de Desenvolvimento Agrícola S/A EMBRAPA: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária ET: Estatuto da Terra ETR: Estatuto do Trabalhador Rural FETAG: Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado da Bahia FUNDIFRAN: Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco GeografAR: Geografia dos Assentamentos Rurais/Grupo de Pesquisa/UFBA IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IGEO: Instituto de Geociências INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MEC: Ministério da Educação MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário MME: Ministério de Minas e Energia MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra NIEAIS: Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Ações Integradas no Semiárido 11 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. NUCLEAR: Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais/Núcleo de Pesquisa ONG: Organização Não Governamental PCT: Projeto Cédula da Terra PDSA: Plano de Desenvolvimento Sustentável de Assentamento PNCF: Programa Nacional de Crédito Fundiário PNRA: Plano Nacional de Reforma Agrária PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PROALCOOL: Programa Nacional do Álcool PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PTDRS: Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Velho Chico SDT/MDA: Secretaria de Desenvolvimento Territorial/MDA SEBRAE: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. SEI: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia UFBA: Universidade Federal da Bahia UFG: Universidade Federal de Goiás UHE: Usina Hidrelétrica de Energia 12 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 15 CAPÍTULO I - EM MEIO À TERRA E À ÁGUA: do Médio São Francisco a Canudos 21 1. ESPAÇOS DA PESQUISA 22 1.1. A problemática do assentamento de Canudos 22 1.2. Breve histórico do Médio rio São Francisco à cidade de Barra 22 1.2.1. Mudanças no modos vivendi do beradero e no acesso à terra 31 1.3. Barra: Encantos e desencantos 36 1.3.1. Localização e índices sociais do município de Barra 36 1.3.2. Características do meio ambiente e a produção agropecuária do município 41 1.3.3. Barra: Construções e feiras 44 1.4. A comunidade de Canudos 47 1.4.1. O entorno da comunidade de Canudos 47 1.4.2. A Criação e implantação do assentamento de Canudos 50 1.4.3. O espaço planejado da agrovila de Canudos 51 1.4.4. Problemas frente a um projeto de mudanças e modernização 56 CAPÍTULO II - CAMPESINIDADE E O MODUS VIVENDI CAMPONÊS 62 1. A CAMPESINIDADE E SEUS CAMINHOS 63 2. IDENTIDADE CAMPESINA EM CANUDOS 65 2.1. Terra, trabalho, família, hierarquia, estratégia 65 3. TERRITÓRIOS SOCIAIS 76 3.1. Territórios sociais e o Estado 76 3.1.1. Territórios sociais, simbólicos e a relação de pertencimento 81 4. ASSENTAMENTOS RURAIS, CONFLITOS E IDENTIDADE 89 4.1. Lei das Terras, Estatuto do Trabalhador e Estatuto da Terra 91 4.2. Disputas de terra e violência 93 4.3. Identidade fragmentada 96 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 14 CAPÍTULO III - “A CHEGADA DO ESTRANHO”: DESLOCADOS, IGREJA E ESTADO 105 1. “ESTRANHO” MEDIADOR: UMA CATEGORIA DE DESENCONTROS 106 2. UMA ESTRANHA EM CANUDOS 110 3. DESLOCADOS: ESTRANHOS, MAS NÃO TÃO ESTRANHOS ASSIM 112 3. IGREJA: MEDIAÇÃO, PROJETOS COLETIVOS E COMUNITÁRIOS 120 4. ESTADO: POSTURAS ESTRANHAS AO IMAGINÁRIO CAMPONÊS 131 CAPÍTULO IV - ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA, POLÍTICAS PÚBLICAS E RESISTÊNCIA 144 1. DESAPROPRIAÇÃO, REGIME DE PROPRIEDADE E ESTRÁTEGIAS 145 2. SISTEMA PLURIATIVO: a caracterização das famílias em Canudos 147 2.2. Atividades agrícolas e produção 155 2.3. Cultivo, extrativismo vegetal e o destino da produção 161 2.4. Animais domésticos e pesca artesanal 165 2.5. Atividades pluriativas 172 2.6. O papel das políticas redistributivas 175 3. PRÁTICAS COTIDIANAS DE RESISTÊNCIAS? 177 3.1. Maledicências, boicotes, furtos e sabotagem 181 CONSIDERAÇÕES FINAIS 186 REFERÊNCIAS 196 ANEXOS 203 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 15 INTRODUÇÃO “Perto de muita água tudo é feliz.” Guimarães Rosa. Por campesinato, geralmente, entende-se o modo de vida de um grupo social de base familiar, que se utiliza de mão de obra familiar para garantir a reprodução da unidade doméstica, comumente ligada a atividades agrícolas. Da mesma forma, o termo camponês foi primeiramente relacionado ao labor com a terra, e só posteriormente ganhou uma amplitude maior – ribeirinhos, beraderos1, agricultores familiares. É vinculada a uma definição mais ampla e heterogênea que nos propomos a estudar o modo de vida de um grupo social camponês que apresenta várias particularidades, e não apenas o trabalho com a terra. Os sujeitos sociais a que nos referimos realizam várias atividades, mas nenhuma delas é exclusiva. Os camponeses, protagonistas desta pesquisa, oscilam entre atividades com a terra seca (caatinga), a terra molhada (lameiro), e a cadência das águas do Velho Chico. Do mesmo modo que não há uma atividade exclusiva, não há uma identidade única no grupo. Os sujeitos sociais possuem pluri-identidades – trabalhador rural, atravessador, lavrador, pescador artesanal, pescador/lavrador e vice-versa. Neste trabalho, procuramos caracterizar o modo de vida de uma comunidade2 de pescadores artesanais e agricultores familiares, beraderos do Médio São Francisco, e sua história de constantes intervenções governamentais. O assentamento de Canudos3, situado no município de Barra, localizado no noroeste do Estado da Bahia, a 700 km de Salvador, aparenta ser uma comunidade camponesa típica do semiárido nordestino. No entanto, as ações oriundas de políticas públicas implementadas em uma área de assentamento e a instalação de famílias com históricos de sociabilidades distintas alteraram sua constituição. A produção científica sobre campesinato nos mostra que as estruturas de sociabilidades, alianças, parentesco, 1 Conforme Estrela (2004): ser beradero é ser um indivíduo que possui um saber fazer específico; é tirar do rio diretamente ou indiretamente o seu sustento; é ser representado pelo trabalho por meio da rede ou da canoa; ser beradero é trabalhar na chuva e na vazante; é saber viver entre a caatinga e o lameiro; é praticar a agricultura de sequeiro e de ilha; é viver entre o ir e vir entre os espaços de vida e de trabalho; ser beradero é ter todo o seu sistema produtivo ligado a esse ecossistema; “beradero” é comer, beber, plantar, pescar, festejar e se locomover pela cadência das águas do rio. 2 O conceito de comunidade é usado no decorrer do texto, respeitando uma denominação dos informantes, enquanto uma reestruturação da área rural para o sistema de agrovila (modelo espacial urbano). O que não significa que desconhecemos as implicações que seu uso pode sugestionar: falsa ideia de homogeneidade e coesão. 3 Planta herbácea ornamental de 1 a 3 m de altura, tóxica, de ocorrência em áreas de pastagens localizadas nas margens de rios, lagoas e brejos. Nomes comuns: glória do amanhecer, canudo, algodão bravo, matacabra, capa-bode. O nome do assentamento tem relação com o alto índice da planta nas proximidades. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 16 compadrio e amizades são basilares para a reprodução do modo de vida camponês. Entretanto, no assentamento de Canudos, este arcabouço não se estrutura. Há uma baixa organização estrutural entre os seus grupos domésticos. Durante o trabalho de campo 4, constatamos que vários projetos institucionais foram implantados nessa localidade, mas as ações e intervenções governamentais não foram incorporadas pelo grupo como elementos agregadores de valores materiais e simbólicos. O que se pôde perceber foi que os moradores de Canudos, mesmo compartilhando determinadas sociabilidades, não tornaram possível o desenvolvimento de ações conjuntas frente aos projetos promovidos por políticas públicas governamentais e institucionais. Instigada pela relação conflitual entre os assentados oriundos de localidades distintas, procurou-se averiguar a motivação dos conflitos internos5 e problematizar a crença dos mediadores de que os grupos rurais centenários que vivem em condições difíceis esperam ansiosamente por intervenções institucionais. Em muitos casos não existe uma preocupação prévia com a incorporação dessas medidas, pois os mediadores acreditam que não haverá resistência frente a projetos que tragam melhorias. Nesse sentido, esta dissertação tem a proposição de averiguar como o conflito se instalou, por que ele ainda se mantém e como isto influencia a assimilação ou não de políticas públicas intervencionistas na comunidade rural de Canudos. Assim sendo, procuraremos desvendar as características antropossociológicas que determinam a continuidade e a descontinuidade das formas de organização familiar dentro deste assentamento do INCRA, descrevendo quais são os elementos constitutivos da produção camponesa nos territórios de terra e água, além das peculiaridades deste grupo social. Por conseguinte, abordaremos o modo como este grupo específico de lavradores e pescadores artesanais enfrenta o desafio de resistir aos mecanismos de políticas públicas que destoam de sua realidade empírica (imposição de projetos 4 A experiência inicial com este grupo social foi propiciada pelo trabalho de campo no Projeto “Semiárido: Superação da Pobreza pelo Desenvolvimento Autossustentável”, desenvolvido pelo NIEAIS e pelo NUCLEAR. O Projeto trabalhou com três comunidades do semiárido baiano, no período de 2007/2008, caracterizando de forma participativa os sistemas de produção dos agricultores familiares, comparando seus níveis de renda agrícola e não agrícola, identificando seus problemas locais e compreendendo a identidade das comunidades envolvidas, objetivando a elaboração de uma proposta de estruturação e fortalecimento dos arranjos produtivos locais e dos recursos naturais existentes, como estratégias de superação da fome e da pobreza extrema. A pesquisa de campo que apresentamos abarca uma dessas três comunidades – a comunidade de Canudos. Sobre esse assunto, ver: RELATÓRIO TÉCNICO ANALÍTICO - EDITAL COMBATE À POBREZA/FAPESB - Nº. PET0025/2005. 5 Lembrando que a etimologia da palavra conflito vem do Latim. E é composta do prefixo co com o verbo flictum. O prefixo co explicita correlação (de forças) e o verbo flictum denota choque, embate, oposição de forças. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 17 coletivos e subordinação ao direito positivo). E, por meio deste enfoque, buscaremos mostrar, por outro lado, que existe por parte destes sujeitos a incorporação racional de certas ações de políticas públicas modernas e primordiais (como o Programa Bolsa Família e as aposentadoria rurais e especiais), que garantem a sobrevivência dos grupos domésticos, alterando a sua própria reprodução social e a configuração da comunidade de Canudos. Segundo alguns estudiosos desta temática (CARVALHO, 1999), a criação de um projeto de assentamento é o produto formal de um ato administrativo, expresso no decreto de desapropriação de uma área rural e, por outro lado, é o resultado de lutas sociais para a redistribuição da posse da terra. Portanto, no momento da criação de um assentamento rural, se encerraria um processo político-social onde o monopólio da terra e o conflito social pela posse da terra estariam superados, e imediatamente se iniciaria outro, também de grande complexidade. Este segundo momento é o período do parcelamento da terra; da construção de novas estradas; da seleção dos locais para a edificação das casas; da extensão da rede de eletrificação rural; da destinação de áreas para uso social comum; da liberação de créditos e da construção de cercas e apriscos, currais ou escolas, igrejas e campos para jogos; da compra de animais e de implementos agrícolas; do início dos plantios e das criações. Entretanto, conforme a apreciação de Carvalho, não é apenas a infraestrutura produtiva e de uso social ou o processo de produção que se inicia. Nesta ocasião, desencadeia-se, também, o desenvolvimento de novos ajustes e adaptações de experiências política, social e ideológica, correspondentes à nova organização social que ali se plasma empiricamente. Dá-se a criação de associações, de cooperativas ou de grupos de trabalho, como também inicia-se a formação de grupos de lazer e o estabelecimento de novas relações de vizinhança, de afinidades religiosas, políticas e ideológicas, que poderão ser ora objetos de consenso e ora de dissenso. De acordo com Martins (2003), em um assentamento rural, as relações de vizinhança e amizade, a construção da memória coletiva, a formação de grupos de trabalho ou o sentimento de comunidade não se desenvolvem tão facilmente quanto Carvalho supõe, principalmente, se o assentamento não é fruto de lutas gestadas por movimentos sociais, como é o caso de Canudos. Ou seja, não havendo, anteriormente, uma identidade de mobilização ou de acampamento, a identidade grupal não se gestará facilmente. Neste sentido, a concepção de um assentamento não segue a dinâmica e as possibilidades do mundo camponês, e os desencontros de orientação dos agentes de CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 18 mediação estimulam conflitos internos e potencializam o débito de sociabilidade, gerando conflitos reais e ideológicos. Estes conflitos demonstram os processos de negociação dos trabalhadores rurais e camponeses frente a uma situação social completamente diferente daquilo que eles conhecem e do que eles desejam, já que o assentado passa a conviver não só com os benefícios da modernização, mas com as dilacerações que a modernização impõe a todos aqueles que procedem da sociedade concebida como tradicional. Ser um assentado é viver a esquizofrenia da inserção social, baseada em ações de resistência e de adaptação ao mesmo tempo. Por outro lado, como argumenta Martins, o sujeito nasce também das mediações conflitantes desta trama introduzida pela ação e pelas concepções de outros protagonistas, como o Estado e as organizações mediadoras representativas. Apesar destas contradições, e por mais que nos pareça incompreensível à primeira vista, é por meio deste referido sujeito conflitual que a agricultura familiar brasileira persiste, insiste e se reconfigura na atualidade. Este exercício acadêmico busca pensar esta prática e as contradições desse processo. Trata-se aqui de superarmos a concepção de que o mundo rural possui uma ordem social harmônica. Ou, como afirma Martins, “começar a pensar o presente como um conjunto de contradições que, ao se resolverem, engendram novas contradições, novos desafios, renovações da prática” (MARTINS, 2003: p.19). Contradições que foram renovadas, não apenas com a criação de um espaço físico artificial e civilizador, mas foram positivadas com o assentamento de famílias centenárias e grupos domésticos de outras regiões, inclusive da área de Sobradinho6. A fixação de grupos domésticos, com sociabilidades e relações familísticas distintas, criou categorias e distintividades, baseadas na precedência de um grupo familiar sobre outro. A Sociologia Rural explica este mundo como uma realidade à parte, como um universo sui generis que perpassa temas, como identidade camponesa, campesinidade, assentamento, deslocamento, conflito, mediadores e pluriatividade. E será por meio da apropriação do pensamento de autores como Queiroz, Velho, Heredia, Godói, Sigaud, Elias, Martins e Woortmann que guiaremos a discussão sobre a prática e as contradições deste universo. Foi a partir destas leituras etnográficas e sociográficas e da relação com o campo empírico que este trabalho foi sendo construído. Desta forma, por meio de um 6 A construção da Usina ocorreu nos anos de 1972 a 1978; seu reservatório atingiu 300 Km de comprimento e teve 5.400 Km desocupados. Atingiu os municípios baianos de: Pilão Arcado, Remanso, Casa Nova, Xique-Xique, Sento Sé e Juazeiro. Várias sedes distritais e dezenas de povoados foram atingidos. Foram deslocadas aproximadamente 72 mil pessoas. Sobre este assunto ver: Daou; 1988; Martins-Costa; 1989 e Estrela; 2004. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 19 processo reflexivo entre a empiria e a teoria, autores específicos e conceitos chaves foram sendo incorporados à medida que o trabalho de campo foi sendo realizado e foram contribuindo para a análise do objeto de estudo, o qual se encontra dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, “Em meio à Terra e à Água: do Médio São Francisco a Canudos”, vamos mostrar um breve histórico sobre a ocupação do Médio São Francisco e da cidade de Barra. São discutidos alguns problemas e conceitos chaves, como: a caracterização da produção do município; a concentração de terras na região e a violência entre fazendeiros e beraderos pelo uso da terra; a concepção espacial modernizante do assentamento e a implantação de medidas que se contrapõem à regulação baseada no direito costumeiro, seguida da descrição dos territórios e da relação dos grupos familiares com os espaços de trabalho e de vida. No segundo capítulo, “Campesinidade e o Modus Vivendi Camponês”, iremos tratar das linhas teóricas que desvelam o imaginário e o cotidiano da comunidade de Canudos. Trataremos da identidade camponesa transversalizada pela relação com a terra (e com a água), com o trabalho e com a família, e do entrelaçamento entre as ações e o sentimento de pertencimento, bem como da fragmentação identitária que os assentamentos rurais podem potencializar, por se tratarem de um espaço artificializado, gestado por mediadores que desconhecem o ideário camponês e interpretam as demandas do mundo rural de forma equivocada. O princípio crítico que perpassa a discussão deste capítulo é o de que o sujeito social da reforma agrária é diferente do sujeito coletivo que os mediadores almejam, pois este indivíduo social tem uma identidade própria, complexa e pouco política. Enfim, partimos da hipótese que este “sujeito da reforma agrária” é um ente coletivo, cuja coletividade não coincide com o coletivismo ideológico dos mediadores construtores dos processos políticos e executivos da luta pela terra. No terceiro capítulo, “A Chegada do Estranho: Deslocados, Igreja e Estado”, a discussão está pautada no tema do deslocamento e suas consequências no espaço dos assentamentos. Por meio dos estudos de Lygia Sigaud e de José de Sousa Martins, vamos mostrar que o assentamento implementado com famílias de outras localidades e a estruturação de novas concepções espaciais e ideológicas são assimiladas com estranheza pela população local. A chegada do Estado, impondo nova regularização dos espaços e dos direitos, e a mediação da Igreja e de agências de financiamento para a execução de projetos coletivos apenas evidencia o desencontro entre as concepções de CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 20 intervenção dos mediadores e o modo de vida camponês. A implementação e o fracasso dos projetos de intervenção reavivaram conflitos e agravaram a situação de pauperização das unidades familiares, o que acabou por criar e aumentar seus saldos devedores frente às agências de financiamento. O quarto capítulo, “Estratégias de Sobrevivência, Políticas Públicas e Resistência”, trata da adesão por parte das unidades domésticas ao sistema pluriativo7. Em Canudos, de acordo com a nossa observação, constatamos que a pluriatividade é uma estratégia fundamental na reprodução econômica e social do grupo, e que há uma relativa adequação entre as atividades agrícolas (agricultura itinerante, pecuária, pesca artesanal e extrativismo vegetal) com estratégias não agrícolas (comércio, aposentadoria, programas de transferência de renda, serviço publico). Neste sentido, almejamos demonstrar, por meio da nossa pesquisa, que a presença do Estado através de políticas públicas que permitem o acesso aos benefícios, como a aposentadoria para trabalhadores rurais e para pescadores artesanais, ou programas assistenciais, como o Bolsa Família, são fundamentais para a sobrevivência de muitas unidades familiares, principalmente nos períodos de baixa produtividade. Por outro lado, vamos pontuar que ao mesmo tempo em que os grupos adotam e incorporam mudanças prescritas como “modernas”, existem consequências destas mudanças que parecem atingir diretamente os jovens da localidade. Ao lado das mudanças incorporadas pela comunidade, observamos que há um movimento ou uma “prática cotidiana de resistência”, que denominamos de microelementos de resistência, e que tornam os confrontos abertos desnecessários. Esta resistência infiltrada no cotidiano não está relacionada aos movimentos políticos ou ideológicos, mas se plasma em atitudes aparentemente individualizadas e veladas, resultando num processo de quase anomia grupal, que gera um forte sentimento de repúdio às intervenções locais, realizadas pelos Mediadores e/ou pelo Estado. Em suma, esta pesquisa pretende, por meio de um estudo de caso, repensar os papéis sociais e históricos dos três agentes sociais responsáveis pela luta por uma reestruturação fundiária equânime no Brasil: o papel do campesinato histórico pauperizado, o protagonismo dos Mediadores, e a mão intervencionista do Estado. 7 A pluriatividade ocorre quando parte dos membros de uma família do meio rural passa a se dedicar a atividades não agrícolas. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 21 CAPÍTULO I EM MEIO À TERRA E À ÁGUA: do Médio São Francisco a Canudos RIOS, CANTOS E ÁGUAS As léguas de Serra azul estórias , cantos e rios um canto na madrugada marujo pífanos se ouviu são cantos que vem das casas das beiradas desses rios. Corre Velho Chico de tantos mistérios que mata a sêde de tantos Sertões levando lamurias, trovas e rimas rompendo e molhando os calos no chão Paraguaçú desce manso leva folhas, flores a fio leva minha cantoria poemisa o teu perfil violeiro da esperança cantador de desafio Corre velho Chico de águas profundas levando beleza e tristeza também e aquele olhar da pele morena que ver seu amante partir pro além Tu é o bem da chapada garimpeiro plantador matando a sede e a fome canoeiro pescador ainda é poesia e tema suspiros do meu amor Corre velho Chico sem ter paradeiro gaiolas adeus, adeus canoeiro povo barranqueiro, terras e versos adeus meu amor, adeus meu amor, adeus meu amor. IVAN SOARES CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 22 1. ESPAÇOS DA PESQUISA 1.1. A problemática do assentamento de Canudos Embora o assentamento de Canudos aparente ser uma comunidade de pescadores artesanais e agricultores familiares beraderos típica do Médio São Francisco, sua história de constantes intervenções governamentais, venda e revenda das terras da comunidade para especulação imobiliária (entre as décadas de 1950/1980); desapropriação da área para assentamento de grupos domésticos e famílias oriundas de várias regiões – inclusive de famílias atingidas indiretamente pelas obras de Sobradinho –, mudou seu rumo original. Sua organização social encontra-se, hoje, extremamente fragmentada. Com o trabalho de campo foi possível perceber que as ações governamentais implementadas na última década, o invés de produzir uma via para o desenvolvimento local dos agricultores e pescadores artesanais, produziram um processo de deterioração das relações sociais destes grupos. A despeito dos projetos levados para Canudos, esta comunidade se mostra empobrecida, com uma baixa organização estrutural entre os seus grupos domésticos e uma extrema insegurança alimentar, devido à desestruturação de seus vários sistemas produtivos e uma forte desintegração de sua rede social interna. Não há como evidenciar elementos do modus vivendi dos assentados de Canudos, bem como suas categorias socioeconômicas - agricultores e pescadores beraderos do rio São Francisco - e os desacertos entre agentes do Estado, da Igreja e dos beraderos, sem antes caracterizar o universo em que estão inseridos. Inicialmente trataremos de assinalar o bioma onde estão fixados, bem como a caracterização histórica da região. 1.2. Breve histórico do Médio rio São Francisco à cidade de Barra As regiões semiáridas do vale do rio São Francisco são caracterizadas pela aridez do clima, pela imprevisibilidade das chuvas e pelo aspecto pobre dos solos. Estas características do bioma estabelecem uma relação dialética e única com a forma sociocultural com que os homens arranjam esse espaço e pela forma que dispõem desses recursos. Do ponto de vista socioeconômico, o semiárido também é marcado por contradições e injustiças sociais. Indicadores que expressam esta iniquidade podem ser CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 23 apresentados se analisarmos a alta concentração da estrutura fundiária e a vulnerabilidade social a que a população do semiárido está exposta. Foi por meio das águas que correm no leito do rio São Francisco que o território foi desbravado e ocupado. Este rio tem uma importância histórica pelo seu poder civilizatório. Entretanto, a ocupação dessa região também significou a dominação sociopolítica, por parte de uma pequena elite regional, de um amplo território e de uma vasta população, vulnerável economicamente, que vivia sob o jugo dominador de coronéis, como agregados, meeiros ou posseiros. O povoamento do vale do São Francisco começou no século XVII, com a criação de gado de corte em grandes latifúndios, a maior atividade econômica da região até o século XX. A demora para a ocupação do espaço do semiárido, após a chegada dos portugueses, deu-se pela falta de interesse colonial em ocupar uma terra que não produzia tantas riquezas quanto o litoral (produção açucareira). Havia uma contraposição entre um nordeste voltado para os canaviais e um nordeste voltado para a produção de gado. Durante muitos anos, o gado de corte produzido no interior foi levado para o litoral para servir ao abastecimento de cidades como Salvador, enquanto animais de tração eram encaminhados para fazendas de engenhos. No vale do rio São Francisco, que também ficou conhecido como “Rio dos Currais”, além da pecuária de latifúndio, havia, ao mesmo tempo, pequenas propriedades que mantinham a policultura, produzindo gêneros alimentícios em agricultura de sequeiros e nas várzeas das margens do rio São Francisco. O rio foi um provedor de alimento, água, lazer, um meio de navegação para barcos e vapores vindos de Pirapora/MG – que deslocavam os habitantes estabelecidos em suas imediações e transportava produtos comerciáveis –, sendo, posteriormente, um gerador de energia. Para efeito de estudo, o vale do São Francisco foi dividido pela comunidade científica em quatro áreas: alto São Francisco, que vai da nascente até a cidade de Pirapora/MG; médio São Francisco, que abrange da área de Pirapora à cidade de Remanso/BA (área da pesquisa empírica); submédio, entre Remanso e Paulo Afonso/BA; e o baixo São Francisco, de Paulo Afonso até a foz do rio. A ocupação da área do semiárido no vale do rio São Francisco passou por dificuldades frente à aridez do ambiente, à presença de grupos indígenas, posteriormente dizimados, à falta de interesse econômico e à concentração fundiária estabelecida pela estrutura coronelista e patrimonialista da elite local. Entretanto, na medida em que a atividade pecuária foi se solidificando, e a expansão demográfica, por CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 24 meio da descoberta de minas no alto São Francisco, ocorreu, o vale teve um grande impulso. [...] o Vale do São Francisco foi ocupado por duas grandes famílias que, estabelecidas no território baiano, formaram dois imensos impérios de terras, poder político e de polícia. A primeira família foi a de Garcia d´Ávila, que chegou à Bahia em março de 1549 na comitiva de Tomé de Souza, que constituiu o seu morgado na Casa da Torre, em Salvador. Partindo da Bahia, essa família expandiu os seus domínios para o Sergipe, Piauí, Ceará e Maranhão. Espalhando fazendas de gado por todo o vale, pelo lado esquerdo até Sento Sé e pelo lado direito até Carinhanha (1659). Patrocinou diversas bandeiras baianas pelo sertão adentro. Declarou guerra aos índios nativos da terra, escravizou e roubou suas terras e suas mulheres. Os nativos resistiram bravamente. Mas vencidos por causa da inferioridade das armas, refugiaramse, e muitos deles romperam para a Amazônia. A Casa da Torre declarou guerra também contra as aldeias dos Jesuítas. O padre Antônio Pereira, herdeiro da Casa da Torre, falava em alto e bom som, para seus inimigos, que “as fronteiras das suas terras estavam nas patas do seu cavalo”. A segunda família latifundiária surgiu a partir da distração da Casa da Torre, pois não conseguia fiscalizar o seu imenso latifúndio. Quando seus integrantes perceberam, Antônio Guedes de Brito – mestre de campo, já havia montado oito currais de gado no Sertão da Bahia e titulado aquelas terras em seu nome. Estabeleceu no Morro do Chapéu o Quartel General, com o nome de Casa da Ponte, rival da Casa da Torre. A avidez por terra destas duas famílias não conhecia limites. Por causa de suas conquistas receberam da Coroa muitos privilégios, sesmarias, capitanias hereditárias, títulos honoríficos, postos de comando, patentes... “Tão forte já se tornaram, que decidiram pacificamente, repartir entre si o domínio do sertão”. [...] o Vale do São Francisco começou a ser desbravado em 1553, quando tiveram início as “entradas” para o interior da colônia, orientadas à obtenção de mão-de-obra escrava para o trabalho nos canaviais e engenhos, empresa, mais tarde, fortalecida pelo interesse na exploração das riquezas minerais que começavam a ser descobertas. O processo de ocupação colonial ocorreu a partir do começo do século XVII e foi ligado à expansão da atividade pecuária. A conquista foi realizada basicamente pela iniciativa privada, não constituindo um processo contínuo, seja devido à resistência indígena ou à vastidão dos sertões que dificultava a sobrevivência em tão inóspita área. Assim, as frentes pioneiras partiram dos limites paulista e baiano em direção ao Brasil central, alcançando a bacia do rio São Francisco, em seus cursos, alto e médio. Rapidamente o Vale do São Francisco viu-se transformado em área de colonização, baseado na criação extensiva de gado, atividade que, muito antes de subordinar-se às condições físicas regionais, articulava-se aos objetivos coloniais canavieiros nas áreas litorâneas. Com a descoberta de minas no Alto São Francisco, a economia de todo o vale teve um grande impulso, sendo que as minas passaram a constituir um atrativo mercado de demanda para o gado. A corrida para as minas determinou o surgimento de vários núcleos de povoamento em toda extensão do vale, constituídos em torno dos “currais” ao longo do rio. Estes núcleos foram responsáveis pelo estabelecimento de ativos mercados de gado e de produtos vegetais que serviram, posteriormente, como pontos de escoamento para os principais centros urbanos do Norte, Nordeste e Sul da colônia. Até fins do século XVII, o gado constituiu a base da riqueza regional. Por outro lado, o rio São Francisco, pela sua localização entre a região aurífera e a capital da colônia (Salvador), desempenhou o papel de grande CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 25 caminho. Este fato lhe atribuiu a denominação de rio da “integração nacional”. Mais tarde, com a mudança da capital para o Rio de Janeiro (1763) e o esgotamento da produção aurífera, o impulso inicial de colonização da área se viu arrefecido. Assim, o comércio de Minas voltou-se para o mar, o rio perdeu o papel de grande caminho e a região do Médio São Francisco sofreu um retrocesso, embora o rio mantivesse durante muito tempo um papel importante na comunicação nacional. “Desde cedo o rio São Francisco canalizou fluxos migratórios da região para São Paulo, principalmente como conseqüência das secas periódicas que assolavam a região”. O Médio São Francisco foi uma zona de fortes coronéis e um dos lugares onde este fenômeno mais se prolongou no tempo. Além do isolamento e do tipo de colonização, os fenômenos do mandonismo e da violência estão diretamente associados à concentração da posse da terra. Uma região que se fechou sobre si mesma, desenvolvendo uma cultura local com tipos sociais característicos, como o cabra, o coronel, o cangaceiro, o vaqueiro, o barqueiro, o pescador e outros, que muitas vezes se confundiam numa mesma pessoa, de acordo às circunstâncias e às necessidades (MDA; 8 2008: p. 23 a 25). Deste modo, o vale do rio São Francisco teve seu território reocupado e reconfigurado por outros homens e outros interesses, por meio da extensa atividade de criação de gado, da mineração e da navegação pelo rio São Francisco, caminho de águas que ligava as regiões auríferas a Salvador. Como não poderia ser diferente, a cidade de Barra nasceu e igualmente foi influenciada por estas intercorrências socioeconômicas. O município de Barra surgiu da implantação de uma fazenda de gado na incidência entre o rio Grande e o São Francisco, região que inicialmente pertencia a Pernambuco. A trajetória histórica, política e econômica da cidade de Barra está, particularmente, ligada à história do poder monárquico do Brasil. A Vila de Barra foi representada por várias vezes em cargos relacionados aos ministérios do império, senado e governo de província. Os dois troncos genealógicos mais eminentes da Vila foram a família de João Maurício Wanderlei, conhecido como Barão de Cotegipe, e a família de José Mariani. 9 Estas famílias mantiveram o poder político da localidade por muitos anos. Para se ter uma ideia, de 1890 a 1955, Barra teve seis prefeitos da família Mariani no poder. Depois deste período, os seus descendentes diretos parecem ter se distanciado dos 8 MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Velho Chico/PTDRS, 2008. Documento construído por meio de participação coletiva e democrática de atores como: SDT/MDA, FUNDIFRAN, CODETER do Velho Chico, Grupo GeografAR/UFBA, associações, e a análise de documentos importantes, como: o Plano Safra Territorial/PST, a Memória do Território e outros, elaborados pela SEI, IBGE e PNUD. 9 João Mauricio Wanderley (1815-1889), natural da Vila da Barra de São Francisco, além de agropecuarista foi magistrado, Ministro da Marinha, da Fazenda, dos Negócios Estrangeiros, Ministro do Império dentre outros. Exerceu por várias vezes o mandato de Deputado Provincial, Geral e Senador. Foi um ferrenho opositor da abolição da escravatura, no período que antecedeu a assinatura da Lei Áurea. José Mariani (1800-1875), natural de Vila da Barra, foi magistrado, agropecuarista, governador, desembargador e Ministro do Tribunal de Justiça no período do Império. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 26 cargos políticos para se dedicarem a outras atividades, mas este clã ainda é considerado uma família importante no Estado da Bahia. Na cidade de Barra, os Mariani ainda detêm grandes extensões de terra10 e povoam o ideário tradicional da cidade – ruas, praças e hospitais os homenageiam com o uso dos nomes de seus ascendentes. Também encontramos a descrição do contexto histórico da cidade de Barra, minuciosamente tratada na dissertação de Cardel (1992), intitulada "Os Olhos que Olham a Água: Parentes e herdeiros no 'mundus' camponês", uma etnografia que teve como foco central as relações de parentesco e o processo de herança em uma comunidade camponesa brejeira (Olhos-d’Água), localizada no município de Barra. [...] Entre 1670 e 1680, o sesmeiro Francisco Dias de Ávila Pereira, chefe da Casa da Torre, assentou no local em que o Rio Grande deságua no São Francisco, uma fazenda de gado. Por estar instalada na foz do afluente, foi batizada com o nome de Fazenda da Barra do Rio Grande do Sul [...]. Na década seguinte, 1680 e 1690, religiosos Franciscanos Alcantarinos levantaram uma capela em homenagem ao Santo que empresta seu nome ao rio, a capela de são Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande do Sul, que serviu de base para a catequese das tribos indígenas da Nação Tapuia. Este nome perdurou até a elevação da localidade a Vila [...] Este imenso território se integrou completamente ao Ciclo do Gado, atividade econômica que se adaptou muito bem aos pastos nativos, às ilhas do São Francisco junto dos currais e ao sistema hidroviário de transporte. [...] Com as cartas régias de novembro e dezembro de 1698, o arraial foi elevado à Povoação de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande do Sul, distrito da Vila Cabrobó, da capitania de Pernambuco. [...] Entretanto, em 1734, outra carta regia passa a povoação para justiça da Ouvidoria ou Comarca de Jacobina. Em 23 de agosto de 1753, Henrique Corrêa Lobato, Ouvidor e Corregedor da Comarca de Jacobina, instalou a Vila de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande do Sul, acompanhado pelos “homens bons”, vigários, tendo o povo como platéia. Abriu-se a praça do Pelourinho, mediu-se as léguas quadradas das terras patrimoniais e redigiu-se o Código de Posturas, baseado nos costumes da época. Desta forma, ficava a vila desligada do Julgado de Cabrobó, elevada a município autônomo e termo sede até o Rio Carinhanha. [...] Em 1820, sob o reinado de Dom João VI, criou-se a comarca do Rio São Francisco, sediada na cidade da Barra. [...] Durante, portanto, 30 anos, verificou-se uma espécie de vazio legal do discurso do qual se expande a posse, para ser ameaçada ao fim do período. [...] Os grandes criadores de gado, perante a nova (dês)ordem social entraram em conflito com os agricultores pobres nas ilhas do rio. A situação se agravou para estes pequenos proprietários de lameiros das margens e das ilhas que tiveram suas plantações invadidas por bois e cavalos de propriedade dos “homens bons”[...]. 10 Sobre o assunto, ver o documentário “O Massacre da Lagoa da Serra”. O documentário aborda a situação de conflito entre fazendeiros (Família Mariani) e posseiros na comunidade da Lagoa da Serra na década de 1970. O conflito resultou na perda da produção e na expulsão das famílias posseiras. As ações violentas ficaram impunes, e o caso do massacre da Lagoa da Serra nunca foi julgado. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 27 Com as prerrogativas do Ato Adicional de 1834, a comarca passou inteiramente à influência da Bahia sendo que o primeiro deputado barrense nomeado para a assembléia Provincial foi João Maurício Vanderlei, depois Barão de Cotejipe (1840), o segundo foi José Carlos Mariani (1864), membro de uma família ainda hoje muito importante do Estado da Bahia, e por último, João Neiva (1882). O Império encontrou a via com características bem definidas. “Os dominadores, da família Mariani, sobrenome que sobrepujou outros com que se entrelaçara, centralizavam o prestígio da sua ‘casa grande’, construção de 1808. Era notável a influência e força moral das senhoras, respeitadas até pelo terrível comendador Militão, do Pilão Arcado.” (IBGE-Ba, p. 10) Através das influências destas eminentes famílias na corte, o vice-presidente da Província, José Eduard Freire de Carvalho, em junho de 1873, transformou a vila em cidade Florescente da Barra do Rio Grande, mais tarde alterada para Barra do Rio Grande e finalmente para Barra, pelos decretos estaduais números 7.455, de 23 de junho de 1931 e 7.479, de 03 de junho do mesmo ano (CARDEL; 1992: p. 48 a 53). 11 Outra pesquisa de importância histórica inigualável, que discorre sobre o valor do rio São Francisco e o contexto da cidade de Barra, é a viagem de campo retratada no livro “O Rio de São Francisco e a Chapada diamantina”, escrito por Theodoro Sampaio 12 , quando participou da Comissão Hidráulica do Império, no final do século XIX. A missão foi montada com o objetivo de estudar os melhoramentos do Porto de Santos e a navegação pelo interior do país. A Comissão iniciou os estudos da navegação no interior do país pela exploração do rio São Francisco devido a sua posição geográfica em relação à zona litoral, e por servir como via de comunicação entre as regiões centrais e norte do país. A viagem percorreu a ligação do rio São Francisco, da foz, em Alagoas, até a cidade de Pirapora, em Minas Gerais. O interesse pelo conhecimento do rio São Francisco residia na necessidade de realizar um sistema de viação pelo interior do país que ligasse os portos ao rio. Durante o trabalho, o engenheiro Theodoro Sampaio foi incumbido de realizar a travessia pela Chapada Diamantina e pelos sertões que se estendiam pelo território baiano, anotando aspectos naturais e colhendo informações 11 Partindo dos mitos de origem que fundam a identidade deste grupo camponês, considerou-se o parentesco como uma linguagem de inserção e exclusão dos indivíduos no patrimônio familiar. Além disso, a dinâmica socioeconômica da região, processada por meio da agropecuária, de produtos agrícolas para o abastecimento local (como a rapadura e a cachaça), produzidos nos terrenos úmidos dos brejos, e o incremento da cidade também foram retratados nesse trabalho de pesquisa. CARDEL, L. Os Olhos que Olham a Água: Parentes e herdeiros no 'mundus' camponês. Dissertação de Mestrado. Programa de PósGraduação em Antropologia, Universidade de Brasília. 1992. 12 Theodoro Fernandes Sampaio foi engenheiro, geógrafo e escritor, nascido em Santo Amaro da Purificação no ano 1855, falecido no Rio de Janeiro em 1937. Sampaio nasceu no Engenho Canabrava, hoje localizado no município de Teodoro Sampaio/Ba. Era filho da escrava Domingas da Paixão do Carmo e do padre Manuel Fernandes Sampaio. Foi levado pelo pai para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro. Em 1879 integrou "Comissão Hidráulica", nomeada pelo imperador Dom Pedro II, sendo o único engenheiro brasileiro entre vários homens estudiosos estadunidenses. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 28 sobre a produção e a população local. Durante a expedição, ele registrou suas impressões escrevendo e desenhando em seus diários, realizando uma minuciosa análise morfológica e social dos lugares visitados. Apesar do crescimento populacional de Barra e da sua elevação à condição de vila, conforme expôs Cardel (1992), Theodoro Sampaio descreveu a cidade em 1879 com muito pouco entusiasmo. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 29 13 Os relatos trazidos aqui podem parecer antagônicos, tendo em vista a riqueza natural do vale do rio São Francisco, a opulência de algumas famílias barrenses e o estado de miserabilidade exposto pelo engenheiro ao descrever as habitações e as atividades agrícolas da cidade de Barra. Mas, para compreender esta contradição, devemos salientar que todos os relatos destacam a importância da navegação no Rio São Francisco para a região de Barra, uma vez que a sua situação geográfica favorecia o comércio com outras regiões. Era, portanto, natural que houvesse uma queda significativa do comércio entre as áreas auríferas e a cidade de Salvador após 1763, período em que a capital da colônia foi transferida para a cidade do Rio de Janeiro. Esta mudança na geografia política e econômica do país favoreceu a decadência da 13 SAMPAIO, Theodoro. O Rio de São Francisco e a Chapada diamantina – trechos de um Diário de Viagem. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas. 1905. Disponível em: <http://biblio.etnolinguistica.org >. Acesso em: 25 de maio de 2010. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 30 localidade e transparece na descrição feita por Theodoro Sampaio, aproximadamente 115 anos depois, precisamente em 1879. Neste processo, Barra foi sendo desarticulada como centro regional. De um entreposto importante do vale do rio São Francisco e da Bacia do rio Grande, a cidade de Barra passou à condição de insulada, e, na década de 1960, entrou em decadência. Podemos mapear alguns fatores potencializadores da desarticulação desenvolvimentista: o detrimento da navegação de comércio; o insulamento do município – que só no ano de 1997 teve asfaltada a estrada Barra-Ibotirama, e, em 2000, a de Barra a Xique-Xique; as grandes enchentes do rio São Francisco, que inundaram a sede, os distritos, os povoados e as fazendas em 1906, 1926, 1949 e 1979; a transferência de companhias e instituições, como a Capitania dos Portos, a Caixa Econômica Federal, o IBGE, a CODEVASF14, a FUNDIFRAN15; e a migração constante de pessoas para outras localidades. Esta situação de decadência permeia até hoje o imaginário da população local. A ideia de desenvolvimento, levantada por alguns interlocutores na cidade de Barra (setor comercial e hoteleiro) durante a pesquisa, traz implicitamente a preocupação com a valorização do modo de vida urbano, uma vez que tais indivíduos explicitaram embaraço frente ao fato de grande parte da população do município pertencer ao meio rural. Em muitos relatos coletados, é patente o incômodo da pequena classe média urbana local com relação à ausência da lógica mercantil moderna imposta pelo modo de vida camponês, que impera tanto no imaginário como na realidade prática dos atuais barrenses. Meus interlocutores citadinos referiam-se, portanto, à falta de infraestrutura associada a um status quo local que impossibilita a exploração das riquezas naturais. Este status quo está intimamente ligado às representações socioculturais tipicamente rurais da região. 14 CODEVASF é uma empresa pública, vinculada ao Ministério da Integração Nacional, que promove o desenvolvimento e a revitalização das bacias dos rios São Francisco e Paranaíba com a utilização sustentável dos recursos naturais e a estruturação de atividades produtivas para a inclusão econômica e social. Disponível em: < http://www.codevasf.gov.br >. Acesso em: 28 de maio de 2010. 15 FUNDIFRAN: “Criada pela Igreja Católica em princípios de 1971, a entidade visava a promover políticas nos campos da medicina preventiva, da educação, da comunicação social, bem como de projetos de cunho comunitário [...]. Nesse sentido, a Fundifran implementou uma política que combinava ações assistencialistas e de cunho formativo, contando com o apoio de agências internacionais, sediadas em vários países da Europa, dos Estados Unidos e do Canadá [...] com a chamada abertura política (19791985), as atividades assistenciais perderam espaço e a entidade se voltou para ações de caráter político/formativo, apoiando as demandas dos camponeses e colocando-se ao seu lado nos vários confrontos em que se envolveram-se contra o avanço do agronegócio, dos latifundiários e dos grileiros” ESTRELA, E. O papel da Fundifran nos conflitos fundiários no Médio São Francisco baiano. [s.n.]. Disponível em: < http://www.uesb.br/ivencontroanpuhba/default.asp?site=st/08.html > Acesso em: 20 de junho de 2010. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 31 1.2.1. Mudanças no modos vivendi do beradero e no acesso à terra Conforme aponta Germani (2007), na região do médio São Francisco, desenvolveu-se, através dos anos, um modo de vida estreitamente vinculado à utilização do rio. Como é padrão de ocupação no semiárido, também neste caso a população se concentrou às margens do rio. O São Francisco, no período de cheias, deposita em suas margens matérias férteis onde se realizam os cultivos, vencendo, desta forma, as dificuldades impostas pelo clima do semiárido e pelos períodos de seca. Este modo de vida transumante é complementado com o trabalho sazonal em grandes fazendas de criação de gado, criando uma complexa rede de estratégias pluriativas do campesinato local. Assim, a agricultura de vazante ou lameiro combinada com a agricultura de sequeiro, com a pesca artesanal e a criação de animais pelo modo tradicional atravessaram quatro séculos de colonização sem grandes transformações. [...] era muito frequente a figura do morador sob o regime da agregacia que morava com a família na fazenda do patrão, em pequeno terreno cedido para fazer uma roça para sua sobrevivência, além dos posseiros. Alguns membros da família trabalhavam para o patrão, recebendo ou não diária, e nos dias “livres” trabalhavam por conta própria. Além disso, também era frequente a modalidade das roças arrendadas por uma quantia ou por um contrato de meia, ou de terça e até de quinta parte da produção. Esse sistema de meia era comum entre os pequenos lavradores, que não tinham condições para comprar a semente e outros insumos. Todos estes acordos sempre se realizaram oralmente, sem mais garantia para o lavrador do que a promessa do proprietário. No caso da pesca, a maioria sempre trabalhou por conta própria, mas são relatados casos de pagamento com meia produção, ou com um terço, quando eles pescam em lagoas da grande propriedade (CEAS, 1973 apud GERMANI, 2007: p. 6) A apreciação de nossos interlocutores, no entanto, não pontua os impactos negativos a que muitos habitantes das zonas rurais estão expostos ao sofrerem intervenções diretas de ações desenvolvimentistas. Tais ações são para eles a única alternativa para que a cidade de Barra volte ao seu passado de glória. Mas, segundo o trabalho de Sobrinho (2006), existem especificamente algumas medidas governamentais que impactaram violentamente a vida de muitos beraderos do vale do Rio São Francisco, que, ao serem implantadas, foram apresentadas como ações altamente positivas para o crescimento da região. Como o próprio autor ressalta, depois da década de 1970, o governo voltou a programar novas ações de intervenção na região, e isto vem sendo feito até os dias atuais, através de incentivos estatais que atraíram investimentos privados. Assim como o governo, empresas públicas, como a CODEVASF, também CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 32 vêm desenvolvendo projetos nessa região nas áreas de educação, saúde, transporte e, sobretudo, agricultura irrigada. Todavia, a empresa tem sido acusada nos últimos anos de beneficiar grandes empresas com a alegação de incentivarem o crescimento econômico e a qualidade de vida para a população do vale do rio São Francisco por meio das Parcerias Público-Privadas/PPPs. Parte das políticas de infraestrutura e desenvolvimento tecnológico apresentadas no médio São Francisco são arquétipos desta realidade. Por esta razão, Sobrinho (2006) observa que, apesar dos diferentes graus da presença do Estado, é possível perceber que a infraestrutura instalada (linhas de créditos para grupos empresariais, fomento ao desenvolvimento de tecnologias, grandes barragens destinadas à geração de energia e irrigação, construção de canais e estradas) se dá inicialmente expropriando-se as comunidades do direito de acesso à terra, através da expulsão ou da desapropriação por valores irrisórios. No caso das barragens, o plantio em áreas de várzeas e a própria agricultura praticada no sequeiro foram imensamente prejudicadas pela CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco, com a construção das Barragens de Três Marias, na década de 1940, e de Sobradinho, na década de 1970, e com o advento da agricultura irrigada, que passou a ocupar as áreas agricultáveis. A construção dessas obras regularizou o regime do rio e pôs fim aos períodos de cheias, quando as populações beraderas se beneficiavam da fertilidade deixada pelas águas com o adubo natural para seus cultivos. Outras pesquisas também apontam (GERMANI, 2006; 2007) que as novas ações de intervenção por parte do governo, empresas e fundações levaram, nas últimas décadas, a um processo intenso de reestruturação produtiva no Médio São Francisco, o que alterou profundamente as relações de produção na agricultura. Reestruturação que não mais comporta o antigo morador, o agregado e o meeiro. Estas pesquisas também advertem para a grande alteração na valorização das terras do Médio São Francisco, o que gerou, ao mesmo tempo, mais cobiça e conflito de terras na região. Segundo Germani (2007), este processo de valorização produtiva e fundiária, após a década de 1970, colocou em cheque as formas precárias de acesso à terra e criou novas formas de acessibilidade, a exemplo de projetos de reforma agrária e de crédito fundiário. A importância do município de Barra frente a estas novas formas de luta e de acessibilidade se prova por meio da implantação do primeiro assentamento de reforma agrária do Médio São Francisco, que foi criado em 1988, no município de Barra. Atualmente o relatório participativo, elaborado para o MDA, intitulado “Plano CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 33 Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Velho Chico (2008)”, aponta que o município de Barra, presentemente, possui um projeto PCT, três projetos PNCF16, sete comunidades quilombolas, nove assentamentos rurais criados pelo INCRA, com 1517 famílias assentadas e várias comunidades tradicionais na região dos Brejos. Os assentamentos são: Angico, Antônio Conselheiro, Barro Vermelho/Canudos (espaço empírico pesquisado), Fazenda Itacutiara, Fazenda Santana, Fazenda Vale do Boqueirão, Ferradura, São Francisco e Sítio Novo.17 Em Canudos este processo foi um pouco diferente. A criação do assentamento em uma área privada não foi conflitual, no sentido explícito de geração de conflito armado, mesmo tendo gerado outras formas de conflitos que serão posteriormente analisadas. Conforme o informante F.A.S., nascido em Canudos,18 as terras onde as famílias se instalaram, antigamente, pertenceram à família Mariani. Esta é a versão corrente sobre a história recente desta comunidade. Segundo informações de J.R.V., morador do assentamento desde 1975, depois das terras terem sido revendidas para outras pessoas, a antiga fazenda dos Mariani foi vendida a Carlito Santos (Carlos Souza Santos, prefeito da cidade de Xique-Xique de 1983 a 1988). Este, ao vistoriar as terras, teria feito uma reunião com os moradores da comunidade para avisar que eles ficariam no local, mas seriam criadas cercas de divisas que os isolariam do restante de sua propriedade. Revoltados, os moradores foram ao sindicato dos trabalhadores rurais de Barra, e como se recusavam a abrir mão de suas benfeitorias, foram orientados a não aceitarem o acordo proposto pelo suposto proprietário. Após a retirada da madeira para a venda e com o cerceamento dos moradores em uma área específica, Carlos Souza 16 A partir da suposição de uma queda nos preços da terra e da existência de uma oferta, o governo orientou-se pela obtenção de terras no mercado. A princípio, o programa de estímulo ao acesso à terra via mercado (financiado pelo Banco Mundial) foi implementado sem maiores debates. No entanto, entidades como a CONTAG reiteraram a defesa da desapropriação por interesse social, aceitando a proposta como um mecanismo complementar de acesso à terra. O Projeto Cédula da Terra/PCT foi implementado em 1997. Seus sucessores foram o Banco da Terra (1998) e o Programa Nacional de Crédito Fundiário/PNCF em (2003). Tanto o PCT como o PNCF garantiam o acesso de agricultores à terra e destinavam recursos para a implantação de infraestrutura na propriedade (casa, energia elétrica, abastecimento de água, estradas), a estruturação da unidade produtiva (assistência técnica, insumos para a produção) e projetos comunitários. 17 Os dados numéricos das comunidades e dos projetos apontados no relatório elaborado para o MDA – intitulado “Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Velho Chico (2008)” – trazem alguns elementos formatados pela base de dados de instituições como o INCRA e a SEI, o que não corresponde aos dados empíricos levantados por Cardel (1992), onde várias comunidades brejeiras poderiam ser categorizadas como comunidades de fundo de pasto, pois a gestão da terra e de outros recursos naturais articula terrenos familiares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à solta em pastagem nativa. Dados da SEI apresentam 10 assentamentos em Barra, e não nove, como foi apresentado. Além dos nove assentamentos listados no plano territorial, existe o assentamento Uirapuru. 18 Segundo declarou, seu avô e sua mãe eram de Remanso e migraram no final da década de 1950, antes da Usina de Sobradinho ser construída, pois sabiam que teriam que sair cedo ou tarde da região. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 34 Santos optou por vender as terras a João Luiz Camandaroba, fazendeiro, médico e prefeito de Barra entre os anos de 1984 e 1989.19 A fazenda de João Luiz Camandaroba ficou a cargo de um administrador. A relação entre este preposto e os moradores de Canudos foi tensa, já que a situação criada com relação à posse e à propriedade das terras locais sempre foi obscura. Por esta razão, segundo os moradores, todos os acertos que precisavam ser feitos entre os habitantes de Canudos e o administrador eram intermediados por F.X.S., morador de Canudos desde 1974. Muitos entrevistados disseram que F.X.S., além de intermediar questões como a autorização para a retirada de lenha em área vetada à população local, servia como uma espécie de “olheiro” do administrador para assuntos internos da comunidade. João Camandaroba, segundo F.A.S., só foi a Canudos para conversar sobre a possibilidade de desapropriação por parte do INCRA em 1997. Neste período, após um processo pouco esclarecido pelos informantes, o proprietário da fazenda, junto com alguns moradores, encaminhou, de comum acordo com estes, um documento ao INCRA afirmando estarem interessados na desapropriação da fazenda20. Sobre esta temática, Elias (2003) traz uma distinção importante entre terras públicas e privadas e o tempo de implantação de um assentamento rural. A autora pontua que existe uma distinção importante entre a concessão de uso e o título de terra, que agiliza ou dificulta o processo frente aos órgãos competentes. Na concessão de uso, que é um contrato firmado entre o Estado e os assentados de terras públicas (devolutas), o assentado tem o direito de usar a terra para a produção agrícola. Mas ela nunca irá ser titulada, pois a terra será sempre do Estado. Em terras particulares ocorre a desapropriação por interesse social. Em relação aos procedimentos para a titulação, o processo judicial de desapropriação, como a definição sobre o valor da indenização que deverá ser pago ao ex-proprietário, é o primeiro passo para a propriedade ser transferida para o INCRA. A titulação depende, primeiramente, do fim da ação judicial em relação ao ex-proprietário que, na maioria dos casos, leva anos para se completar. Com o fim da 19 A família Camandaroba descende de um antigo funcionário (vaqueiro) responsável por um preposto da família Mariani. Os Camandaroba também são uma família influente na cidade de Barra. Assim que os Mariani se afastaram dos cargos políticos locais, os Camandaroba entraram na disputa e, de 1960 a 1989, foram eleitos para três mandatos para a prefeitura. Alcançaram outros cargos públicos importantes, como a direção do Hospital Ana Mariani. Os descendentes da família foram levados pelo caminho da política ainda jovens. O neto de João Camandaroba, João Luiz Camandaroba Neto, apesar de ser um adolescente participa de um site (www.plenarinho.gov.br) onde aprende a elaborar projetos para uma câmara de deputados fictícia. Disponível em www.plenarinho.gov.br. >. Acesso em: 16 de maio de 2010. 20 O fato da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Canudos (APPRC) ter sido fundada em 1996, um ano antes da abertura do processo no INCRA, demonstra que a comunidade estava organizada para se transformar em um assentamento. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 35 ação na justiça, é necessário emitir as matrículas dos lotes a partir da matrícula original da terra transcrita ao INCRA. De acordo com o processo judicial, o cartório de registro de imóveis deve verificar os documentos registrados em cartório e comparar as matrículas anexadas ao mandato de registro de domínio expedido pelo juiz, para só depois fazer o registro oficial no nome do instituto. Além da lentidão deste processo, em muitos casos o cartório pede a retificação da descrição da área desapropriada, o que aumenta ainda mais o processo de titulação dos assentados. No caso de Canudos, a desapropriação por interesse social e o processo de indenização do proprietário foram agilizados porque houve, inicialmente, um acordo entre os interessados. Não havia um conflito de interesses frente à terra desapropriada. Segundo os próprios moradores, o único conflito foi com a comunidade do Barro Vermelho, assentamento criado 5 km à frente de Canudos, sobre a demarcação da estrema, um corredor para animais que dividiria as áreas das duas comunidades. Era comum naquele período os fazendeiros usarem grandes extensões de terras de baixo valor de mercado como hipoteca para altos empréstimos bancários. Quando isso deixava de ser lucrativo, muitos fazendeiros se beneficiavam com a venda de terras, impróprias para plantio em larga escala, para projetos de assentamento do INCRA21. A grilagem de terras na região do vale do rio São Francisco, associada de forma escusa aos incentivos governamentais, não é uma novidade. Fato característico nesta região foi a grilagem de terras de “fundo de pasto” no município de Casa Nova, região de Sobradinho, na década de 1970, quando a empresa Camarujipe conseguiu recursos do PROALCOOL para produzir álcool a partir da mandioca. Denúncias apontaram a iniciativa como parte de um esquema para apropriação de empréstimos estatais e seguros agrícolas, sob alegação de que a seca destruía as plantações. O escândalo ganhou notoriedade quando Pedro Jorge de Melo e Silva, procurador que investigava o caso, foi assassinado em Olinda/PE. Famílias denunciavam a sobreposição com áreas de pastoreio. Com o abandono do empreendimento, na década de 1980, as terras foram 21 Essa era uma prática corrente, mas ainda ocorre nos dias de hoje, pois existe uma relação intrínseca para as elites locais e regionais, mesmo no semiárido, entre concentração fundiária e terra como reserva de valor. Situação retratada, por exemplo, no filme “Árido Movie” (2006). Árido Movie fala da trajetória de Jonas, que é apresentador do tempo em São Paulo. O inesperado assassinato do pai obriga-o a fazer uma jornada de retorno as suas origens (interior de Pernambuco). Jonas desconhece o verdadeiro motivo de sua volta, solicitada pela avó, forte matriarca que o escolhe para vingar a morte do pai e lavar a honra da família. Ao chegar à cidade natal, Jonas encontra um clima de vingança pairando no ar. É aí que Jonas descobre o seu infortúnio: o peso de ser o herdeiro de uma realidade que já julgava não ser mais a sua. Enfim, o diretor nos mostra uma terra seca, carregada de situações e personagens férteis, onde gente faminta e beata convive com justiceiros, plantadores de maconha e concentração fundiária. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 36 ocupadas utilizando o sistema de fundo de pasto. Os conflitos ressurgiram quando, em 2006, empresários adquiriram, do Banco do Brasil, os direitos sobre a dívida da Agroindustrial Camaragibe e, posteriormente, em acordo com os representantes da companhia, obtiveram os títulos das terras como pagamento. Em 2008, policiais entraram na localidade para cumprirem decisão da Justiça que determinava a retirada de alguns moradores (posseiros). Mas depois de idas e vindas, o despejo dos moradores foi suspenso no final de 2008. Na ocasião, o laudo expedido avaliando a validade dos registros fundiários confirmou a grilagem. Essa não é uma situação isolada, antagônica ou irreal. A desapropriação das terras para a implantação do assentamento de Canudos também sofreu o mesmo processo. A fazenda foi vendida por um grileiro a João Camandaroba que, de acordo com os próprios moradores, nunca teve a intenção de explorar a terra, o que justifica o fato de nunca ter estado na fazenda, antes de assentir pela desapropriação. A compra da fazenda foi apenas um subterfúgio para que ele pudesse ter acesso às benesses dos processos de desapropriação por meio de recebimento de verbas públicas federais. 1.3. Barra: Encantos e desencantos 1.3.1. Localização e índices sociais do município de Barra Barra é um município do noroeste do Estado da Bahia, localizado na mesorregião do Vale do São Francisco, na latitude 11º05´22"S, longitude 43º08´30"W, a 700 km de Salvador (capital do Estado). A área territorial do município estende-se pela margem esquerda do rio São Francisco e pelas duas margens do rio Grande, totalizando, segundo o IBGE22 uma área de 11.333 km², com uma população de 44.203 habitantes, sendo que, desse total, 19.641 residem na zona urbana e 24.562 pessoas na zona rural. O município apresenta uma densidade demográfica de 3,50 hab/km² e faz divisa ao norte com Buritirama e Pilão Arcado, a oeste com Buritirama, Cotegipe, Mansidão e Wanderley, ao sul com Muquém de São Francisco e ao leste com XiqueXique, Morpará e Ibotirama. Barra possui três distritos: Igarité (1º distrito), Ibiraba (2º distrito) e Barra (sede do município), e mais de quarenta pequenos núcleos populacionais: os povoados Pau-d`Arco, Sambaíba, Canudos (local da pesquisa de campo), Barro Vermelho, Wanderley, Brejos do Limoeiro, do São Gonçalo, Brejo do 22 IBGE. Resultados da Amostra do Censo Demográfico 2000 - Malha municipal digital do Brasil: situação em 2001. Rio de Janeiro: IBGE, 2004. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 37 Saco, de São José, Banguê, Olhos-d´Água, Povoados Santo Antônio, Baixão da Aparecida e outros. Quanto aos indicadores sociais do município, Barra apresenta um índice de esperança de vida de apenas 65 anos, ou seja, mais baixo que a média do Estado, que é de 71,2 anos, e menor que a média nacional, que, atualmente, é de 73 anos de idade. O município apresenta um IDH de 0,586, enquanto a média do Estado da Bahia é de 0,742 e a média nacional é de 0,81323. A renda per capita do município é de R$ 56,374 e a renda média nacional é de R$ 883,00. O Coeficiente de Gini do município de Barra, segundo o IBGE, quando associado à renda, é de 0,39 e, quando associado à distribuição de terras, chega a 0,95924. A incidência de pobreza no município de Barra foi medida em 53,22%25. Observando os índices dos indicadores sociais, podemos ressaltar pelo menos dois pontos importantes. Primeiro, mesmo que os indicadores possam guardar uma relação com as especificidades históricas e sociais da região, os índices demonstram a necessidade do poder público local buscar junto ao poder estadual e federal ações mais eficazes de implementação de políticas públicas redistributivas e de reconhecimento, pois os impactos da má gestão das políticas públicas voltadas às populações locais são visíveis. Em face desta realidade, constatamos que as políticas públicas redistributivas não alcançam a maioria da população pobre, que, em muitos momentos, não conseguem ter acesso às políticas de créditos ou a programas assistenciais (programa Bolsa Família e programa Luz para Todos, por exemplo). Do mesmo modo, a população mais pobre, exemplificada aqui como a população do semiárido ou a população das comunidades rurais do município de Barra, tem sofrido por parte dos poderes públicos e privados ações intervencionistas e de desapropriação, que solapam, em muitos casos, cada vez mais o seu modo de vida e a sua condição de sobrevivência – o que evidencia a falta de políticas redistributivas e de reconhecimento que englobem o ideário dessas comunidades. Políticas redistributivas que não são acompanhadas por políticas de 23 Índice de Desenvolvimento Humano é uma maneira padronizada de avaliação e medida do bem-estar de uma população. É uma medida comparativa que engloba três dimensões: riqueza, educação e esperança média de vida. Os dados foram retirados do Atlas do Desenvolvimento Humano. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/2000). 24 O Coeficiente de Gini é comumente utilizado para calcular a desigualdade de distribuição de renda mas pode ser usada para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda e 1 corresponde à completa desigualdade. Os dados trazidos foram retirados do GeografAR. A Geografia dos Assentamentos na Área Rural. A Leitura Geográfica da Estrutura Fundiária no Estado da Bahia. Banco de Dados. Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Geografia. IGEO /UFBA/CNPq. Salvador, 2003. 25 IBGE, Censo Demográfico 2000 e Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF 2002/2003. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 38 reconhecimento de um modo de vida particular, como o modo de vida beradero, só criam condições de dependência. Um segundo ponto revela que o município de Barra apresenta uma alta concentração de terras. Barra é um dos maiores municípios em extensão do Estado da Bahia e da região do Médio São Francisco e, mesmo assim, é um dos municípios que apresenta o maior índice de concentração de terras e disputas fundiárias. Os conflitos entre fazendeiros, posseiros e beraderos, que utilizam terras próximas a pequenos afluentes ou lagoas e ilhas26 do Velho Chico para plantarem durante a vazante, sempre existiram, conforme relato de Cardel (1992), e ainda perduram até os dias de hoje. As principais denúncias relatam que fazendeiros envolvidos nestes conflitos coagem posseiros e beraderos, soltando gado em suas plantações de lameiro e aprisionando suas parcas criações, sob a alegação de que invadem suas propriedades. Atualmente, a região vem sendo retratada como uma região de violência e grilagem de terras, não mais patrocinada por coronéis, e sim por herdeiros e empresas de capital estrangeiro (grupo sul-coreano de fármacos/Celltrion), envolvidas com o plantio de cana para a produção de etanol e açúcar, além de outras oleaginosas. Este caso, em particular, tem sido relatado pela Comissão da Pastoral da Terra/CPT (Regional Bahia) e pela Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo/CNCV, que tem apresentado denúncias sobre ações ilegais sofridas por mais de 10 comunidades ou 400 famílias na região dos Baixões, município de Barra. Segundo denúncias apresentadas em Brasília, os camponeses/posseiros têm sofrido ameaças de morte, destruição de benfeitorias e ações policiais sem mandados judiciais. De fato, a grilagem de terra ganhou, nos últimos anos, uma nova aparência, pois, em muitos casos, ela parece estar relacionada ao incentivo governamental à produção de biocombustíveis, denominado hoje no Governo do Estado da Bahia como Projeto Bahiabio. Os camponeses dos Baixões lutam de forma homóloga às comunidades de “fundo de pasto” no município de Casa Nova, quando em disputa com a empresa Agroindustrial Camaragibe, e ambos ainda sofrem com ameaças de morte e destruição de benfeitorias27. No mapa a seguir, podem-se observar os índices de concentração de terra no Médio São Francisco. Procuramos, por meio do recurso visual, considerar as diferenças de concentração de terra por municipalidade. Observando o mapa, é possível visualizarmos que os municípios de Barra, Sítio do Mato e Malhada apresentam um 26 27 As ilhas na região de Barra também são denominadas de coroas do São Francisco ou montas. Sobre esse assunto ver: <http://www.cptba.org.br >. Acesso em: 12 de junho de 2010. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 39 índice altíssimo de concentração de terras, o maior índice do Médio São Francisco (entre 0,901 a 1,000); os municípios de Buritirama, Morpará, Muquém de São Francisco, Ibotirama, Brejolândia, Oliveira dos Brejinhos, Bom Jesus da Lapa, Riacho de Santana, Matina, Igaporã, Feira da Mata e Iuiú apresentam um índice alto, porém menor que os índices dos três municípios anteriores (entre 0,701 a 0,900); Brotas de Macaúba, Paratinga e Carinhanha apresentam um índice médio de concentração (entre 0,501 a 0,700); e o município de Serra do Ramalho apresenta o menor índice de concentração de terras (entre 0,250 a 500). MAPA 1 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Fonte: http://www.geografar.ufba.br/imagens/GINI_msf.pdf 40 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 41 1.3.2. Características do meio ambiente e a produção agropecuária do município As formas do relevo e de vegetação de uma determinada região sempre refletem o uso que o homem imprime ao cenário que ele ocupa. Nesta região é possível encontrar uma diversidade de formas do relevo, que conforme Barreto (2002) tem relação com processos erosivos, surgimento de depressões, sedimentação e com a influência do clima (evidenciado por resquícios vivos de vegetação e aridez do solo, comprovada pelas dunas existentes entre a Serra do Estreito e o Rio São Francisco). De acordo com os dados da SEI, as unidades geomórficas classificadas no município de Barra são as seguintes: campos de areias do médio São Francisco, depressões do São Francisco, serras setentrionais do Planalto do Espinhaço, várzeas e terraços aluviais. O clima da região é semiárido, com altas temperaturas e pluviosidade irregular concentrada nos meses de verão. E a vegetação predominante é a caatinga arbórea densa (com palmeiras e sem palmeiras). Quanto ao uso do solo para o plantio de alimentos, o município de Barra cultiva uma variedade maior de alimentos do que a lista apresentada nas tabelas da SEI. Os dados listados nas tabelas abaixo retratam mais os produtos comercializados como matéria-prima e os que serão processados para, posteriormente, serem comercializados, do que o plantio de produtos para o consumo local. No entanto, a listagem dos gêneros e o efetivo de animais demonstram que a atividade agropecuária tem importância na economia do município, apesar dos dados da SEI estarem subestimados28. TABELA 1- Cultura por Município. Ano Cultura Arroz (em casca) Banana Cana-de-açúcar 28 Município Barra Barra Barra 2008 Área Plantada (ha) 15 18 100 Área Colhida (ha) 5 18 80 Quantidade Produzida (t) 3 198 4.800 Unidade tonelada tonelada tonelada Valor (R$ 1.000 ) 2 119 1.200 Baseado nas tabelas dos dados de campos apresentadas em anexo e na leitura de etnografias (CARDEL, 1992) e estudos de caso (VIANA, 2009), acreditamos que os dados do IBGE apresentados pela SEI não condizem com a realidade empírica. A produção agropecuária apresentada é pífia frente a um município que apresenta tão grande extensão fundiária. Seria interessante o cruzamento de dados entre postos de trabalho no meio rural e urbano. Provavelmente este cruzamento demonstrasse que o município tem forte vocação agrícola e é subestimado pelas políticas públicas voltadas para a agricultura familiar. Contudo, apesar de saber da importância de se analisar este descompasso, concluímos que esta não é a finalidade deste exercício acadêmico microanalítico. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Castanha de caju Coco-da-baía Feijão (em grão) Laranja Mamona (baga) Mandioca Manga Milho (em grão) Barra Barra Barra Barra Barra Barra Barra Barra 120 14 1.500 18 400 200 307 600 70 14 1.500 18 400 150 220 250 21 57 900 180 360 1.800 2.200 125 tonelada 1000 Frutos tonelada tonelada tonelada tonelada tonelada tonelada 42 13 20 1.800 70 108 270 660 44 Fonte: SEI e IBGE (Pesquisa Agrícola Municipal e Pesquisa Pecuária Municipal) A economia do município gira em torno da agricultura, da pesca e da extração. A produção de Barra sempre se articulou entre a agricultura nos brejos, na caatinga, nas roças de ilha/coroas, nos espaços da beira de rio, e nas atividades da pesca e da coleta de frutos e de lenha. Entretanto, os dados apresentados na primeira tabela retratam apenas os produtos agrícolas comercializados como matéria-prima (mamona, coco da baía, manga, laranja) e os produtos que serão processados para serem comercializados (cana de açúcar, que dá origem à famosa rapadura e à cachaça produzida nos brejos, e a mandioca, que dá origem à farinha e ao beiju) mais do que os produtos voltados para o consumo ou para o pequeno comércio das feiras livres (peixe, abóbora, batata, melancia, melão, feijão de arranque, tomate, castanha de buriti, saeta, fumo). É perceptível que para estes institutos e órgãos governamentais, a produção não ligada ao grande comércio - que em Barra é representado pela mamona, pelo feijão e pelo gado - tem pouca importância para a economia. Mas são exatamente os excedentes dos produtos produzidos para o consumo e os produtos voltados especificamente para a comercialização nas feiras livres, como peixe, abóbora, tomate, pepino e feijão de corda, que não só dinamizam o comércio local, como, em alguns casos, fomentam a identidade de grupos sociais voltados para este tipo de produção. Em Viana (2009), encontramos um estudo de caso realizado no município de Barra que permite visualizarmos a importância deste comércio de feiras livres para o modo de vida camponês e da agricultura familiar, através do processo de visibilização do trabalho feminino em uma comunidade ribeirinha. Este estudo foi realizado em uma comunidade rural denominada Pau-d´Arco, onde algumas mulheres organizadas numa associação feminina mantêm uma horta comunitária que contribui para a dinamização da reprodução social do grupo e do comércio local. Além dos aspectos econômicos e do CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 43 caráter inclusivo deste projeto, os resultados positivos desta ação estabeleceram uma identidade social positivada entre agentes sociais envolvidos29. TABELA 2 - Efetivo de Animais por Município Ano Tipo de Animal Asininos (jumento) Bovinos (boi e vaca) Caprinos (bode e cabra) Eqüinos (cavalo e égua) Galinhas Galos, Frangas, Frangos e Pintos Muares (burro e mula) Ovinos (carneiro) Suínos Município Barra Barra Barra Barra Barra Barra Barra Barra Barra 2008 Quantidade (Cabeça) 1.500 34.400 5.200 1.600 15.500 25.000 700 5.300 6.900 Fonte: SEI e IBGE (Pesquisa Agrícola Municipal e Pesquisa Pecuária Municipal) Os dados da SEI trazidos na segunda tabela retratam com mais clareza a produção animal municipal, pois Barra ainda é um grande criador de gado de corte. Os bodes, apesar das restrições da vigilância sanitária, ainda podem ser encontrados sendo vendidos em restaurantes e pequenos açougues, enquanto galinhas e frangos são encontrados diariamente nas feiras livres. Os jumentos ainda são animais indispensáveis na vida diária de uma unidade familiar, pois é o animal responsável pelo transporte de lenha, de água para as roças de caatinga e dos produtos cultivados para o espaço de morada. Curiosamente, o pescado não foi incluído na tabela. Existe uma forte produção de pescado na região de Barra, que pode se confirmar se verificarmos a importância dos pescadores artesanais no imaginário da região, assim como existe uma larga tradição deste comércio na feira principal da cidade. A prática da pesca artesanal é tão intensa, que existe em Barra uma associação de pescadores artesanais e uma cooperativa que congregam vários pescadores. A associação e a cooperativa de pescadores trabalham não só com a pesca artesanal no rio São Francisco e no rio Grande, como também com peixes criados em reservatórios. 29 A horta comunitária feminina da comunidade de Pau-d´Arco é responsável pelo abastecimentos diário do mercado central da cidade de Barra. Antes, o abastecimento de hortaliças e frutas era realizado por produtores dos municípios de Xique-Xique e Irecê. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 44 1.3.3. Barra: Construções e feiras A cidade de Barra é uma cidade antiga, que ainda mantém estruturalmente alguns prédios datados do século XIX. A maior parte das construções antigas se perdeu por falta de manutenção ou recuperação por parte do poder público frente às grandes enchentes dos rios Grande e São Francisco. Dentre os prédios mais antigos, podemos destacar: o prédio da antiga Prefeitura Municipal (1904), do Mercado Municipal Cotejipe (1917), o Palacete Dr. Pinto (1919) e o conjunto do Palácio Episcopal (1932). Ruas calçadas de paralelepípedos e praças da cidade ainda trazem a marca de suas famílias ilustres cravadas em suas placas de identificação (Rua Mariani, Praça Barão de Cotejipe), mantendo viva a ideia de um tempo de prosperidade, distinto e distante, em seus habitantes. Reminiscências não conflitantes, frente ao desejo de modernização e desenvolvimento, demonstram que a separação entre o tradicional e o moderno é um paradoxo, mesmo para nossos interlocutores locais. Nos dias atuais, o conceito de “tempo” experimentado nas grandes cidades ainda não chegou à cidade de Barra. Enquanto alguns moradores pregam a necessidade de modernização da cidade, ao caminhar por suas vias percebe-se um tempo de viver a vida que é diferenciado, pois apesar do comércio de Barra funcionar das 08h às 18h, todo ele permanece fechado das 12h às 15h para que todos descansem dos afazeres e do calor estafante do semiárido. Nesse período não é possível encontrar sequer os serviços de moto-boy sem hora marcada. Apesar do comércio de Barra funcionar a partir das 08h da manhã, a feira realizada no Mercado Municipal Cotejipe, localizado na praça central, em frente ao cais do porto, começa antes do sol nascer e é um acontecimento à parte. A feira é o lugar onde os agricultores da região comercializam seus produtos, como também é um espaço principal da vida econômica do município. Moura (1988) salienta que o lugar do mercado tem um papel fundamental para a economia e a vida local. Esta autora ressalta que os agricultores familiares dependem dessa comercialização e pontua que, em muitos momentos, o controle da produção escapa de quem produz, e passa para os atravessadores – questão que também acontece em Barra. Outra autora que pontua a importância dessa relação entre campo/cidade é Queiroz, ao afirmar que “o camponês traz à cidade os produtos que consome e, por sua vez, adquire na cidade produtos de que necessita (1973: 23). Tal colocação leva a duas questões: primeiro, é preciso refletir sobre a concepção de separação entre rural e urbano. Segundo, as comunidades rurais CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 45 não podem ser vistas como localidades isoladas. Neste mesmo sentido, Garcia Jr também renega a ideia de isolamento ou de autossuficiência: [...] há uma esfera de consumo doméstico que pode ser abastecida diretamente do roçado para a casa, de produtos que podem ser auto consumidos ou vendidos. Este é particularmente o caso da mandioca. São produtos que têm a marca da alternatividade. Alternatividade entre serem consumidos diretamente, e assim, atender às necessidades domésticas de consumo, e serem vendidos, quando a renda monetária que proporcionam permite adquirir outros produtos também de consumo doméstico, mas que não podem ser produzidos pelo próprio grupo doméstico, como o sal, o açúcar, o querosene, etc. (GARCIA, 1989: p. 117). Na feira do mercado municipal encontramos vários produtos comercializados pelos agricultores locais: aipim, milho, verduras, feijão de corda, castanha de buriti, pães caseiros, farinha, fumo de corda, vassouras, chapéus artesanais feitos com folha de buriti e carnaúba, cachaça, rapadura e frutas como o pequi e o murici. Itens como a farinha, a rapadura e a cachaça são produzidos em alambiques e em casas de farinha artesanais na região dos brejos. Produtos extrativistas como a saeta também são comercializados por brejeiros, mas itens como mel, geralmente, são comercializados por apicultores ribeirinhos. Estas mercadorias são de várias localidades e podem ser encontradas quase todos os dias, porém os dias com mais movimento são sexta e sábado. Nestes dias é possível perceber um número de pessoas que comparecem à feira do mercado, não para fazerem compras, mas para manterem longas conversações com feirantes ou fregueses do lugar. Existe uma sociabilidade entre os frequentadores, nem sempre ligada à compra de produtos, que é contagiante. Apesar de várias comunidades estarem representadas na feira do mercado de Cotejipe através de produtos e feirantes, a comunidade de Canudos (localizada a 22 km da sede) não mantém um comércio regular com a feira. Comunidades brejeiras que se localizam em distâncias maiores (a comunidade do Brejo do Saco dista 37 km da sede) trazem produtos para serem vendidos porque vivem em um ecossistema distinto – os brejos produzem todo o ano 30 . Canudos, no entanto, apesar de ser uma comunidade ribeirinha, vive uma grave situação de insegurança alimentar, e os produtos que mais são comercializados – mamona (Ricinus communis L.) e pescado – são vendidos por atravessadores. Mesmo assim, sempre que os moradores de Canudos vão a Barra, é 30 Sobre o modus vivendi de comunidades brejeiras, ver: Cardel (1992). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 46 possível encontrá-los pela feira adquirindo produtos ou conversando com os frequentadores. A feira que acontece no mercado ocupa cinco lugares distintos – a rua em frente à entrada principal do mercado; o interior do mercado; as lojas dispostas do lado direito; a rua atrás do mercado municipal; e as lojas dispostas do lado esquerdo do mercado. Em frente à entrada principal, os feirantes revendem produtos hortifrutícolas, verduras, doces, rapaduras, cachaça e bruacas. A grande maioria destes comerciantes são ou têm parentes ou fornecedores na região dos brejos e nas comunidades próximas, como a comunidade de Pau-d´Arco. As mulheres associadas à horta comunitária de Pau-d´Arco caminham todos os dias por 4 km, com cestas repletas de hortaliças para venderem na feira do mercado31. Dentro do mercado encontramos o pão caseiro, grãos, fumo de corda, trançados e artesanato em argila – na maioria panelas de barro. As lojas dispostas transversalmente à entrada principal do mercado são reservadas para a venda de carnes bovinas, bodes e peixes, comprados anteriormente dos pescadores. Na rua do fundo do mercado, entre vasilhames de plástico e caixas pequenas de isopor sem gelo, encontramos peixes dispostos sobre papelão pelo chão, com preços mais acessíveis, pois são os próprios pescadores que comercializam. Os peixes são vendidos ao gosto do freguês, que, se for um velho conhecido, não paga a limpeza das escamas e entranhas. É neste local que, em dias excepcionais, é possível encontrar bodes vivos para serem comercializados. As lojas dispostas do lado esquerdo parecem chamar a atenção de outro público, menos interessado em peixes ou bodes, e mais voltado para conversas sobre a cidade. Nesses estabelecimentos são vendidos fumo de corda, vassouras, esteiras e bebida alcoólica industrializada. Entretanto, existe uma diferença entre estes cinco ambientes do mercado e, consequentemente, a feira. As lojas do mercado, dispostas do lado direito e esquerdo, são de pequenos comerciantes que participam da feira, mas continuam com os seus estabelecimentos abertos quando a feira termina. Eles apenas aproveitam o movimento da feira para venderem, mas não são feirantes. A feira do mercado agrega, não só pessoas que vivem do seu comércio direto, fregueses ou transeuntes interessados em uma boa conversa, mas agrega também outros comércios. O movimento de pequenos comércios na proximidade da feira (mercearia, sorveteria, restaurante, loja de 31 Sobre esse assunto, ver: Viana (2009). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 47 acessórios) também é maior durante o seu funcionamento. Por seu caráter de cooptação, a feira criou um sexto ambiente em suas proximidades, próximo do cais do porto. Neste ambiente encontramos atravessadores de mamona e frentistas em suas camionetes C-10, dispostos a fecharem negócios ou viagens de frete. Entre uma transação e outra é possível encontrá-los conversando com moradores e pescadores, quase sempre sobre pequenos negócios e histórias de pescarias. Existe ainda outra feira, também muito movimentada, que acontece na sexta-feira em frente à área da rodoviária. Essa feira especializou-se na venda de produtos de Xique-Xique, Irecê e outras localidades, como roupas e calçados, produtos contrabandeados do Paraguai e DVDs e CDs piratas. Entretanto, com a destruição da rodovia que liga Barra à cidade de Xique-Xique, seu comércio foi abalado e as vendas sofreram forte queda. De qualquer forma, ela não é uma feira tão comentada e frequentada quanto à do mercado. 1.4. A comunidade de Canudos 1.4.1. O entorno32 da comunidade de Canudos O assentamento de Canudos é uma comunidade localizada na margem esquerda do rio São Francisco e encravada a 22 km da sede do município de Barra. Como já foi colocado, a comunidade teve a área da fazenda onde se instalava desapropriada pelo INCRA e transformada em um assentamento com uma agrovila. Este assentamento é uma das diversas comunidades existentes nas margens do rio São Francisco e que tem seus territórios disseminados em vários ecossistemas. Esta localidade está circunscrita entre extensões de serra, caatinga, rio, dunas33, barrancos e ilhas/coroas do São Francisco. Este enorme município apresenta diversos ecossistemas: matas, caatingas altas e ralas, tabuleiros, areias, dunas, barrancos, brejos e alagados recortados pelas serras. Este imenso território se integrou completamente ao Ciclo do Gado, atividade econômica que se adaptou muito bem aos pastos nativos, às ilhas do São Francisco junto dos currais e ao sistema hidroviário de transporte. A carnaúba também fez parte da economia da região, sendo muito utilizada pelas indústrias extrativas vegetais para a produção de cera. A pesca ajudava, como ajuda até hoje, na economia de subsistência da população pobre ribeirinha (CARDEL; 1992: p 49). 32 Croqui do entorno ver: anexo 1. A sua relevância advém, não só da sua extensão (cerca de 7.000 km²) e espessura (mais de 100 m), mas também como testemunho de antigos climas mais secos que o atual, que interferiram fortemente na evolução da fauna e flora lá viventes. Sobre este assunto ver: Barreto (2002) e Brasil (2001-2002). 33 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 48 Como afirmei anteriormente, a experiência de pesquisa que fundamenta a descrição de Cardel (1992) está vinculada à etnografia realizada entre as décadas de 1980 e 1990, em Olhos-d´Água, uma comunidade brejeira do município de Barra. Neste período, a exploração da carnaúba (Copernicia cerífera ou Copernicia brunífera) para a produção de cera era um elemento importante na economia do município. Hoje este aspecto não se aplica a Canudos. Atualmente, apesar de existirem pequenas reservas do espécime carnaúba, seus moradores não trabalham mais com a extração de cera. Mas esta atividade foi relatada como um elemento agregador de renda naquele período34. Embora as terras do assentamento estendam-se por territórios desenhados em ecossistemas distintos, a caracterização do clima e da precipitação de chuvas feita por Rodarte (2008) define o clima nas proximidades do assentamento como quente e semiárido. A sua temperatura média é superior a 25°C e as chuvas estão distribuídas de forma irregular ao longo do ano, com precipitação média anual de 653,8 mm. O período mais chuvoso estende-se dos meses de dezembro a abril, e o mais seco, de junho a outubro. O entorno da comunidade é caracterizado por vegetação nativa, áreas agricultáveis, pastagens e solo desnudo. Na margem direita do rio São Francisco e na margem esquerda, onde a comunidade se instalou, é possível verificar a presença de alguns espécimes de mata ciliar degradada35, como a quixabeira, o juazeiro, o umbuzeiro e a carnaúba. Nas ilhas situadas em frente à agrovila e nas margens do rio, o fenômeno do desbarrancamento é visível e preocupante. O desmoronamento tem relação com a degradação da mata ciliar e a oscilação das águas, em parte provocada pela criação do lago e da Usina Hidrelétrica de Sobradinho (anexo 2). Margeando a comunidade, tanto pelo lado direito como pelo esquerdo, encontramos áreas de pastagem para o gado, que é criado na larga36, e áreas agricultáveis com roças de beira de rio. A caatinga, que é subdividida pelos moradores em duas áreas (boca da caatinga e 34 Caminhando pela boca da caatinga, nos deparamos com uma área repleta de espécimes de carnaúba. Uma informante, ao ser questionada sobre a extração de cera, afirmou que o Sr. João Camandaroba ganhou muito dinheiro com a extração naquela região. De acordo com o seu relato, a extração nos arredores da comunidade era feita pelos moradores de Canudos por preços muito pequenos, porém a informante não soube precisar os valores. 35 Mata ciliar é a formação vegetal nas margens dos córregos, lagos, represas e nascentes. Também é conhecida como mata de galeria ou mata de várzea. 36 Área de criatório de animais de médio e grande porte, também denominada de solta; lugar onde os animais são criados sem cuidados específicos com sua alimentação. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 49 Serra do Barro Branco), encontra-se mais afastada da localidade, e é nela que o cultivo da mamona é feito. Informações relevantes sobre o uso da terra e a vegetação na área do assentamento de Canudos também foram apontadas no relatório elaborado pela ONG Distrito Brejos da Barra, denominado “PDSA - Plano de Desenvolvimento Sustentável do Projeto de Assentamento Barro Vermelho/Canudos (2002)”. O INCRA, por meio do Projeto LUMIAR, terceirizou o serviço de levantamento de dados e propostas de projetos de desenvolvimento para a ONG Brejos da Barra.37 O relatório elaborado por profissionais das áreas de agronomia, agrimensura e sociologia, contratados pelo Projeto Distrito Brejos da Barra, foi o único documento, além da Relação de Beneficiários/RB, que o INCRA alegou possuir sobre a criação do assentamento e disponibilizou para a minha pesquisa documental. [...] a pecuária e a agricultura são as formas mais tradicionais de exploração da terra, utilizando a mão-de-obra familiar. Ocorre em vastas áreas à solta na caatinga [...] quando a pecuária é associada à agricultura, o criatório é feito em cercados [...] o Rio São Francisco [...] fertiliza suas várzeas, permitindo o desenvolvimento das culturas de vazantes [...] Levando em consideração as condições ecológicas florísticas, climáticas e fisiológicas, a Fazenda Barro Vermelho e Canudos possui como vegetação a Savana Estépica (caatinga) segundo o sistema internacional de classificação. A caatinga é característica da zona semiárida [...] grande parte da caatinga hiperxerófita é relativamente densa, arbustiva/arbórea (DISTRITO BREJOS DA BARRA; 2008, p.35/Anexo 2). Utilizando toda a área da comunidade e seus ecossistemas, os moradores de Canudos estrategicamente criam formas de sobrevivência com características próprias, em tempos e áreas diferenciadas. Dentro de territórios distintos e com divisões de trabalho pautadas em gênero e geração, seus moradores transitam entre atividades de extração de lenha, carnaúba, frutos e ervas; agricultura em roças de caatinga e vazante; pesca artesanal; migração sazonal e migração circulatória. A migração sazonal é desenvolvida por indivíduos que saem da comunidade para realizarem atividades temporárias em fazendas da região de Barreiras. A migração circulatória ocorre com O Projeto LUMIAR é um Projeto do Governo Federal, realizado pelo INCRA, destinado aos serviços de assistência técnica e capacitação às famílias assentadas em projetos de reforma agrária. A equipe local do Projeto Lumiar, de forma participativa com os assentados, elabora um Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA), que irá nortear todas as ações de investimento. No entanto, este trabalho foi terceirizado para o Distrito Brejos da Barra, uma ONG ligada a CODEVASF e criada por várias associações de comunidades brejeiras, ribeirinhas e de sequeiros, com a finalidade de obterem recursos por meio de entidades como a CODEVASF, MEC, EMBRAPA, Exército Brasileiro, Banco do Brasil para investimentos em educação, eletrificação rural, estradas e habitações. 37 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 50 pessoas que desenvolvem atividades na região sul e sudeste, por vários anos, ou por toda a vida e só voltam à comunidade nos períodos de férias ou depois de anos de trabalho. No entanto, estes indivíduos sempre enviam dinheiro para a família. 1.4.2. A Criação e implantação do assentamento de Canudos Canudos é uma comunidade centenária que teve as terras da fazenda onde se instalara desapropriadas após a abertura de um processo no INCRA, em 1997. As terras foram regularizadas por meio do Decreto nº 631197 de 07/10/1997, e a emissão de posse foi oficializada em 08/10/1998. O projeto de assentamento desenvolvido pela Superintendência Regional do Estado da Bahia/SR 05 indicava a implantação de dois assentamentos por meio do mesmo processo denominado Projeto BA 0158000/PA Barro Vermelho/Canudos. O assentamento de Barro Vermelho foi instalado a 5 km à frente do assentamento de Canudos, na margem esquerda do rio São Francisco. A área para a implementação do projeto de assentamento foi de 4.997,22 hectares, dos quais 391,82 ha eram para reserva ambiental, 850,69 ha para preservação permanente, e 3.754,71 ha para área de projetos agropecuários. A capacidade de famílias assentadas nas duas localidades era de 250 famílias. Com a intervenção do INCRA, a área de Canudos teve assentadas não só pessoas nascidas na comunidade, descendentes das famílias mais antigas da localidade – Ramos, Lopes e Sotero – como também famílias oriundas de regiões como Remanso, Pilão Arcado, Xique-Xique e Brejos. Ao ler o relatório elaborado pelo Distrito Brejos da Barra denominado “PDSA - Plano de Desenvolvimento Sustentável do Projeto de Assentamento Barro Vermelho/Canudos (2002)”, é possível perceber que a principal função do plano de desenvolvimento era estimular o associativismo e o cooperativismo entre os habitantes da comunidade e elaborar, em conjunto, um programa de desenvolvimento sustentável para a localidade. Conforme o relatório, Canudos tinha 104 famílias assentadas, vivendo da agricultura e da pesca. Ainda, de acordo com este relatório, as atividades agrícolas tinham um calendário fixo: a partir de outubro, o plantio, e nos meses de abril ou maio, a colheita. A atividade da pesca foi relatada no PDSA como uma prática de subsistência, sem grande importância econômica. A infraestrutura criada para o assentamento de Canudos pelo INCRA e citada no PDSA descreve a existência de equipamentos e instalações comunitárias, como: escola, aprisco comunitário, igreja, centro comunitário, sede da associação, trator e batedeira. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 51 Conforme relata o documento, a maioria das moradias eram pequenas construções rudimentares, que não dispunham de acabamento, banheiros ou fossas sépticas. O diagnóstico feito pelo PDSA desvela uma situação de extrema pobreza no assentamento. Para tanto, basta enfatizar que a renda média familiar declarada foi em torno de R$ 50,00 por mês. 1.4.3. O espaço planejado da agrovila de Canudos Foto 1: Agrovila de Canudos (foto retirada do programa Google Maps, 2010) Canudos atualmente é uma agrovila composta por 115 famílias, tendo presentemente 458 habitantes38; destes moradores, 235 são do gênero masculino e 223 feminino. Conforme a informante M.F.S., agente de saúde local, das 115 famílias da comunidade, apenas 104 são assentadas e 11 aguardam vaga para serem assentadas. No assentamento de Canudos foram assentadas, tanto pessoas que haviam nascido na fazenda Barro Vermelho/Canudos há muitas décadas, quanto famílias oriundas da região de Remanso, Pilão Arcado, Xique-Xique e Brejos. Estas famílias foram se deslocando pela região antes e depois da década de 1970, e muitas delas podem ser consideradas como atingidas e deslocadas indiretamente pelo reservatório de 38 Dados obtidos através da Ficha de Cadastro da Agente de Saúde da Comunidade de Canudos, M.F.S. Essas informações foram coletadas no dia 23 de março de 2010, mas esse número pode variar conforme os moradores deixam à localidade (por mudança, migração, mortalidade) ou são incorporadas novas famílias. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 52 Sobradinho, pois são famílias que deixaram a região de Remanso ou Pilão Arcado, por ouvirem falar da construção da usina e por acreditarem que, como não detinham o título de propriedade da terra, seriam retirados sem nenhuma forma de indenização. Para ser assentado em Canudos, é preciso que uma família desista do assentamento, ou que o assentado venha a falecer, sem deixar um cônjuge legalmente cadastrado no programa. Quando um grupo familiar desiste do assentamento, ele não pode vender o lote, nem a casa que lhe foi repassada. Entretanto, esta norma não é seguida, e muitos assentados costumam vender seus lotes por preços irrisórios para famílias que buscam ser assentadas ou para famílias assentadas que desejam aumentar seus espaços de produção. Se o assentado for um viúvo ou desquitado e vier a falecer, os terrenos onde trabalhava terão suas divisas respeitadas, até que um filho que demonstre interesse tenha seu nome aprovado em assembleia, e a associação da comunidade envie nome e documentos ao INCRA. Não havendo cônjuge ou filhos, o INCRA é avisado da vaga, mas a associação, geralmente, indica o nome de alguém que já vive na localidade e que já adquiriu as benfeitorias antecipadamente. As 115 famílias residentes no assentamento possuem algum parentesco com uma ou mais famílias da comunidade, pois, afinal, antes de ser um assentamento, Canudos era uma comunidade centenária. O parentesco entre assentados e famílias ainda não assentadas é uma das questões apontadas por vários pesquisadores (SIGAUD, 2005; LOERA, 2006), pois as redes de informação e benefícios distribuídos pelo INCRA são inicialmente formadas entre parentes e amigos. Segundo Rebouças (1997), a importância dos grupos domésticos nos assentamentos pode ser observada na construção de puxados e casas fora do padrão, construídas por parentes e agregados que se unem às famílias contempladas, na esperança de um dia também serem contempladas. Os puxados e as casas fora do padrão também são comuns na comunidade de Canudos. Das 157 construções existentes, 133 são habitadas e as demais são vendas, centro comunitário, escola, igreja, casa de farinha, casas abandonadas fora do padrão ou puxados. Das construções habitadas, 90 são de tijolo ou bloco, 42 são de taipa ou adobe e 01 de madeira. As casas construídas com adobe ou taipa de mão são habitadas por famílias que ainda não foram contempladas por residências construídas pelo INCRA e pela CAR, ou são de famílias que esperam ser assentadas. As construções variam de três a seis cômodos, sendo a maioria de três e quatro divisórias. Em regra, a casa com três cômodos possui quarto, sala e cozinha (à qual serve de copa, CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 53 pois o fogão a gás quase nunca é utilizado)39. Os cômodos das casas descritas por Rebouças (1997) não se distanciam das casas da comunidade de Canudos. Existe sempre uma janela que dá para o quarto mais amplo, geralmente do casal. Quase todos os quartos possuem janela de alumínio com divisória de vidro e basculante. Na sala e na cozinha também existem janelas e, na parede do fundo da casa, há sempre uma porta que leva ao quintal. Em Canudos, a cobertura das residências e dos anexos é feita com telha de barro. O chão das casas, geralmente, é de cimento, mas em algumas casas encontramos cerâmicas; os “puxados” são sempre de terra batida. “Puxados”, como a cozinha, são, em sua maioria, feitos com taipa de mão/barro jogado. É no “puxado” que encontramos, geralmente, o fogão a lenha, visto que a cozinha foi recriada no anexo da casa. Contudo, para Rebouças (1997), dentro deste modelo construtivo do INCRA, adaptado por empresas como a CESP (Companhia Energética de São Paulo), há um elemento perturbador – o banheiro. Nos assentamentos tratados por Rebouças (1997), a CESP construiu várias casas com banheiro e, na grande maioria delas, eles não foram usados e acabaram tendo outro fim. A autora chama a atenção para a relação feita pelos moradores entre a utilização do banheiro e as noções de sujeira e limpeza, e de espaços secos e molhados. Segundo esta autora, a separação do banheiro do restante da casa é perfeitamente compreensível se pensarmos na oposição entre limpo e sujo ou seco e molhado e na organização espacial do sujeito impactado. O banheiro é o lugar onde se eliminam as impurezas e, por isso, deve estar fora da casa. Para os seus informantes, no lugar onde se eliminam as impurezas, não se deve tomar banho, pois o banho representa limpeza. A casa é um lugar que deve permanecer seco, e por essa razão as atividades que envolvem água, como lavar, defecar ou mesmo tomar banho, devem ser realizadas fora de casa. Woortmann (1983), em seu trabalho intitulado “O Sítio Camponês”, realça a oposição entre a utilização do banheiro no espaço da casa e os termos “dentro e fora”. Segundo a autora, tradicionalmente a área utilizada como banheiro foi a área plantada de palma. A palma geralmente é plantada em um semicírculo nos fundos do quintal. A poluição das fezes, portanto, não contamina a casa. Em Canudos, banheiros são minorias. De todas as residências, apenas 44 possuem banheiros semiconstruídos, já que muitos deles não 39 O fogão a lenha é muito utilizado em Canudos. Além das mulheres admitirem que prefiram usá-lo devido ao menor tempo de cozimento dos alimentos, há sempre a reclamação de que o valor do gás revendido em Canudos não é acessível. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 54 possuem canos ou caixa d´água. Algumas casas usam fossas, mas a maioria das pessoas tem o costume de defecar a céu aberto, na caatinga. Quanto à questão de transporte, o assentamento de Canudos dispõe de uma linha de ônibus regular/particular, que faz o trajeto para Barra de segunda a sexta, às 04h da manhã, pelo valor de R$ 4,00 por pessoa. Os moradores também contam com o transporte alternativo de carros particulares todos os dias da semana, mediante o pagamento de R$ 3,00 a R$ 5,00 dependendo das condições do veículo. Para transportarem sacas de mantimentos, o preço cobrado é de R$ 3,00 por saca. Pessoas que, por motivo de doenças, precisem ser transportadas fora dos dias de viagem, pagam R$ 60,00, se a viagem for diurna, e R$ 80,00, se a viagem for noturna (ida e volta). Para o transporte “interno”, Canudos dispõe, basicamente, de quatro meios de locomoção: jumento, barco, bicicleta e moto. O jumento é utilizado para o carreto. O barco é usado tanto na pesca, quanto no transporte de pessoas, de pequenos animais e produtos da comunidade para as roças de ilha e vice-versa. A bicicleta parece ser o transporte mais utilizado pelos jovens, rapazes e homens adultos que buscam se locomover pela comunidade e para as roças de caatinga. A moto ainda é um meio de locomoção caro para os moradores do assentamento. Como o uso de motocicletas em Canudos é pequeno, existe no assentamento apenas uma casa que disponibiliza a venda de gasolina. Na área da saúde, a comunidade de Canudos é assistida por uma agente de saúde, pessoa responsável por manter cadastradas, junto à Secretaria de Saúde do município, todas as famílias da comunidade e encaminhar, quando necessário, os pacientes ao Sistema Único de Saúde para consultas médicas, odontológicas e exames. Segundo nossa informante, não há um número pré-estabelecido de consultas médicas durante a semana. Esse número fixo ocorre apenas no campo odontológico, onde dois procedimentos são agendados por semana. Para a agente de saúde, os maiores problemas em Canudos são a verminose e a hipertensão arterial. Fato também preocupante é presença do barbeiro (Trypanosoma cruzi - transmissor do Mal de Chagas), que, apesar de ter diminuído com as construções de residências com tijolos, ainda é encontrado na região. O lixo inorgânico, questão séria em muitas comunidades rurais, é recolhido duas vezes por semana pela prefeitura, mas mesmo assim a presença de garrafas e sacos plásticos é uma constante no local. Outra questão problemática, segundo a agente de saúde, é o fato dos moradores perderem consultas e exames porque não dispõem de meios para se deslocarem. A Secretaria de Saúde Municipal só dispõe CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 55 de verba para o pagamento de deslocamentos com uso de transporte particular para casos graves. No entanto, conforme nos relatou a agente de saúde, mesmo nos casos graves, os motoristas que fazem o transporte particular sempre exigem o pagamento adiantado por parte da família, tendo em vista que o ressarcimento via esse órgão é burocratizado. Quanto ao aspecto educacional, o assentamento de Canudos é beneficiado com uma escola municipal, que permite que crianças e adolescentes possam cursar todo o ensino fundamental sem serem deslocadas, cotidianamente, como ocorre em outras localidades. Ingressam na escola municipal de Canudos crianças acima de cinco anos. A escola, denominada de Escola Municipal Santa Clara, possui dois prédios instalados em locais distintos. No segundo prédio, ministram-se aulas à 1a e 3a séries do ensino médio pela manhã e, no período da tarde, para o 8º e o 9º ano. No prédio principal, ministram aulas ao 2º e 4º ano pela manhã e, pela tarde, ao 6º e 7º ano. Essa instituição de ensino é assistida por dez professores. Segundo informações, a escola assiste cerca de 150 alunos, entre crianças e jovens, e oferece merenda escolar. Os adolescentes e jovens que querem terminar o ensino médio estudam em escolas na sede do município, que oferece transporte nos turnos da manhã e da tarde. Por meio de entrevistas e da observação, foi possível perceber duas formas de lazer como reforço da sociabilidade entre os membros da comunidade de Canudos: o lazer religioso (ligado às mulheres) e o laico (ligado aos homens). Em Canudos existe a pequena Igreja de Santo Antônio, onde é comemorada a festa de Santo Antônio, padroeiro da comunidade, no dia 13 de junho, e a festa de Todos os Santos, no dia 1º de novembro. Conforme foi relatado, a comunidade tende a participar das duas festas. A comemoração de Todos os Santos é iniciada com as novenas na igreja, as quais, em regra, são realizadas por mulheres. A festa começa no dia 31 de outubro, com ápice no dia 1º de novembro, por meio de missa e procissão. É neste período que casamentos e batizados são realizados na Igreja de Santo Antônio, mediante a presença de um padre da cidade de Barra. A missa celebrada pelo padre no dia de Todos os Santos custa à comunidade R$ 50,00. Além das novenas, missas e procissões, em Canudos também se comemora o Dia de Cosme e Damião, no dia 27 de setembro. O samba de Cosme e Damião é realizado por uma informante chave. A festa é realizada em um barracão de taipa, construído por ela e seu esposo, especialmente para essa festa, pois um de seus CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 56 filhos recebe neste espaço caboclos de mesa branca40. Nossa informante é quem organiza todos os anos as missas e procissões de Domingo de Ramos e de Todos os Santos. Em campo presenciamos uma destas procissões (Procissão de Ramos) e pudemos perceber, por meio de suas falas, a existência de uma moral religiosa camponesa que envolve quase toda a comunidade, principalmente as mulheres. Por meio de um imaginário sincrético, as procissões, as orações na mesa branca, os ramos, os cantos, os santos, as plantações, os orixás cultuados e o caboclo são elementos relacionais que compõem uma relação religiosa sui generis deste mundo rural.41 De outro lado, como lazer laico, encontramos a prática do futebol de campo e a reunião casual de homens em “vendas” e “botecos”. Estivemos em Canudos em meses diferenciados e em anos distintos, e em quase todas as viagens a campo presenciamos reclamações sobre brigas relacionadas ao consumo de bebida alcoólica. No entanto, em conversa com alguns homens, enquanto esperávamos o café da tarde, servido à sombra de um umbuzeiro na roça de caatinga, este divertimento era sempre apontado como algo que reafirmava suas relações de amizade. Em todas as nossas viagens também presenciamos jogos de futebol. Em Canudos existem três campos de futebol – dois reservados para homens (adultos e jovens) e um reservado para meninas42. 1.4.4. Problemas frente a um projeto de mudanças e modernização Na comunidade de Canudos existiram famílias originárias que optaram por não serem assentadas. Estas famílias não moram mais em Canudos, pois explicitaram descontentamento com a nova realidade e se recusaram a serem assentadas e, posteriormente, deixaram a comunidade. Conflito como este, onde famílias inteiras 40 O jovem filho de uma informante, com dons mediúnicos, teve que se comprometer com seus mentores espirituais a abrir uma casa de oração de mesa branca, para fazer orações em dias pré-definidos e para realizar as festas dos santos e orixás que cultua. Assim, o casal de informantes chaves, pais do jovem, resolveu construir um barracão de orações. O barracão fica no fundo do quintal, é feito de taipa jogada, mas é forrado com telhas de cerâmica. Ele deve comportar pelo menos 40 ou 50 pessoas. Em seu interior encontramos imagens de Nossa Senhora de Aparecida, de São Lázaro, de Santa Bárbara, de Preto Velho, de Cosme e Damião, de Ogum e Yemanjá. Há também plantas, como Espada de São Jorge. 41 Além das manifestações católicas e da festa de Cosme e Damião, na noite de sábado sempre chega a Canudos um ônibus vindo da Comunidade de Wanderley, com protestantes pentecostais (denominados simplesmente como crentes), para realizarem seus cultos em casas particulares. 42 - Alguns pais citam como divertimento juvenil o uso de drogas ilícitas (maconha e crack) por parte de jovens na comunidade. Quando este tema é levantado, ele sempre é, posteriormente, ligado ao aumento de atos de vandalismo, como brigas e furtos. Um de nossos informantes alegou que existem plantações da região, mas não na área do assentamento. Durante a conversa, demonstrou conhecimento quanto aos valores, admitiu que já foi “convidado” a plantar, mas salientou que se sente mais à vontade plantando mamona. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 57 abandonam a área de um futuro assentamento, foi retratado por Loera (2006), que constatou que a proposta de trabalho coletivo e de plantio em áreas comunais teria feito famílias cadastradas pelo programa, no interior de São Paulo, abandonarem a área onde estavam vivendo provisoriamente para voltarem para uma área de acampamento e buscarem nova oportunidade de serem contempladas em outra localidade. Silva (2004) também aponta para esta questão e afirma que a coletivização dos lotes e a pressão para a formação de cooperativas, imposta em vários assentamentos pelos mediadores, é uma experiência fracassada. Em muitos casos, há uma recusa dos assentados ou das famílias cadastradas frente às propostas de assentamento que quebrem e imponham bruscamente um novo modo de vida, pautado na modernização das suas relações socioeconômicas, por meio da criação de relações mais “civilizadas e desenvolvidas”. Como em vários outros projetos de assentamento (REBOUÇAS, 1997; ESTRELA, 2004) o projeto para a implantação do assentamento de Canudos obedeceu à concepção de um espaço organizado em conformidade com um “projeto civilizatório” idealizado pelo INCRA. A organização física do assentamento de Canudos privilegia a visão da urbanidade. As residências da agrovila se alinham dentro de uma uniformidade relativa (tamanho e traçado) e se distribuem por quatro ruas: Rua do Sossego, Rua das Flores, Rua Principal e Rua Santo Antônio. Neste projeto civilizador há, não só uma separação entre os espaços de morada e o ambiente de trabalho, que influencia o tempo de trabalho nesse espaço de plantio, colheita ou pesca; mas existe, acima de tudo, um traçado urbano (ruas, medidas de quintais) que interfere na sociabilidade dos envolvidos. A divisão entre espaço de moradia e de trabalho é tão grave em Canudos, porque apesar do assentamento existir desde 1997, até o momento, o INCRA não fez a demarcação dos lotes. Portanto, algumas pessoas ainda plantam na beira do rio (área da Marinha) e nas proximidades da agrovila. Mesmo assim, aqueles que plantam em lotes mais distantes, com no mínimo uma hora de caminhada, reclamam do tempo gasto no trajeto e dos frequentes roubos de ferramentas e produtos. Woortmann (1991) chama a atenção para o aspecto negativo desta fragmentação territorial, enfocando os problemas causados por esta separação física entre o espaço da morada e o espaço do trabalho. Para a autora, o cercamento do espaço casa/quintal é uma mudança altamente prejudicial, pois ao lado da sua redução real, não só se reduz a atividade aí realizada, mas alteram-se as relações de vizinhança, o que por sua vez aumenta as tensões entre as famílias vizinhas, criando-se verdadeiras guerras de cercas e restringindo, sobremaneira, a criação de animais que colaboram para a economia de CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 58 consumo dos grupos domésticos. Em Canudos, os vizinhos discutem em função do barulho de aparelhos eletrônicos, por roubos de pequenos animais nos quintais, por falta de espaço para criarem porcos ou galinhas, como também, por causa dos animais que invadem as roças de caatinga, já que estas nunca são cercadas. Ao abordar esse assunto durante as entrevistas, os informantes reificaram a existência destes conflitos43. M.R.N: As pessoas acham que você não tem direito porque você não é daqui. Aqui não pode ter criação no quintal, uma galinha, uma cabra. O vizinho já está do lado falando. Mas se você não criar, vai até morrer de fome. E plantar nesta roça de caatinga é só a mamona mesmo. E a mamona é só pra quem é sadio, trabalha no sol quente. 44 R.M.L: Ela não criava, só eu sozinha criava pra aborrecer ela. Aí eu passei uma cerca no meio, entre eu e ela. Pra nós ficarmos juntas eu fiz assim. Ela sempre viajava para São Paulo e deixava as plantinhas. Aí ela saía e dizia: “Oh, Rita, cuida de minhas plantas, olha minhas plantas”. Aí eu fui. No dia que ela chegou, ela estranhou, que viu fechado. Disse: “Rita, quê que foi que você passou a cerca?” Eu disse: “Olha, minha irmã, mas o melhor que tinha foi eu passar a cerca, porque minhas galinha ia pra lá ciscar as suas plantas e você viajava. Pra você chegar e achar as suas planta quebrada, aí num dava.” Aí eu passei.45 A opção pela agrovila trouxe a possibilidade de espaços comerciais (vendas), educacionais (escola), edificações comunitárias (centro comunitário e casa de farinha coletiva), instalações de rede de água tratada e elétrica, mas trouxe também contendas diretamente relacionas ao adensamento dessas famílias. O descontentamento subliminar dos assentados de Canudos (pois não houve uma recusa ao projeto por parte da maioria das pessoas) com o espaço e com o que ele gerou, lentamente parece ter levado os próprios moradores a destruírem as áreas e os equipamentos comuns, como casa de farinha, canos de irrigação, aprisco, bombas d´água e implementos agrícolas. 43 Optamos por transcrever a fala dos entrevistados no português corrente e não transcrever como foi pronunciado, pois, neste contexto, o que interessa é o conteúdo da conversa, e não o regionalismo característico da região. Porém, quando forem nomes de lugares, objetos, animais ou formas de plantio e criação, manter-se-á a grafia registrada na entrevista. 44 Entrevista realizada em Canudos, em 2010, com assentada e lavradora que vive em Canudos há 17 anos e tem 47 anos de idade. 45 Entrevista realizada em Canudos, em 2008, com assentada e lavradora nascida na comunidade, que tem atualmente 55 anos CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 59 Experiência similar é retratada por Estrela (2006), quando esta afirma que, em relação aos equipamentos comunitários, o Projeto de Serra do Ramalho implantou duas novidades: a construção de lavanderias e a implantação de refeitórios públicos nas agrovilas. Entretanto os equipamentos não conseguiram ser apropriados funcionalmente e foram destruídos pelos próprios moradores. Conforme relata a autora, das edificações instaladas restam apenas as ruínas. Vemos, desta forma, que a padronização das comunidades camponesas em agrovilas mostrou ser uma faca de dois gumes. Segundo Rebouças (1997), em seu estudo sobre reassentamento de populações rurais deslocadas por construção de hidrelétricas no interior paulista, a ideia de oposição entre rural-urbano influenciou a forma com que a CESP direcionou a criação dos assentamentos sobre sua responsabilidade. A autora acredita que a ambição do projeto da CESP, em sentido amplo, não é apenas a fixação do homem no campo, mas é inserir as comunidades ribeirinhas no desenvolvimento do progresso. O projeto civilizador apresentado por esta Companhia Estatal seria levar aos ribeirinhos os benefícios de serviços e infraestrutura dos quais eram desprovidos: água, energia elétrica e serviços sociais em núcleos habitacionais. Voltando ao nosso estudo de caso, Canudos, do mesmo modo, teve acesso ao sistema de água encanada e tratada implantada pela prefeitura de Barra46; no entanto, atualmente, das 115 famílias que vivem em Canudos, apenas 45 dispõem de água encanada, e as outras 70 famílias, que ficaram de fora deste benefício, utilizam a água do rio para beber e cozinhar alimentos. Aqueles que possuem água encanada ainda sofrem com a interrupção do fornecimento de água várias vezes durante a semana. A luz elétrica também chegou à comunidade. Entretanto, das 115 famílias que moram no assentamento, apenas 76 possuem a instalação e 39 ficaram fora das áreas beneficiadas. Porém, muitas famílias que possuem luz elétrica estão com o fornecimento cortado por falta de pagamento ou sofrem para manter o pagamento em dia47. A falta de água 46 A água encanada utilizada em Canudos é bombeada do rio São Francisco, coletada em uma comunidade próxima, denominada Wanderley. A água é tratada manualmente em um reservatório e depois distribuída para os reservatórios de Canudos e Barro Vermelho pelo sistema de distribuição de água, gerenciado pela Prefeitura Municipal de Barra. 47 Em oficina realizada no dia 07/12/07, coordenada pela Profa. Dra. Lídia Cardel (UFBA), onde a temática era o direito à tarifa social de energia elétrica (Lei nº 12.212) e o direito à água como um bem de domínio público (Artigo 1º, inciso I, da Lei 9433/97), contamos com a participação de 98 famílias. A tarifa social de energia discutida na oficina estabelece que famílias com o perfil do Programa Bolsa Família, cuja renda per capita seja de R$ 140,00, e que tenham um consumo entre 80 e 220 kwh, têm direito a uma tarifa de energia diferenciada. Até 30 kw/h, o desconto é de 65%; entre 31 e 100 kw/h, o desconto é de 40%, e, entre 101 e 220 kw/h, o desconto é de 10%. A lei que define a água como um bem público vem concretizar o disposto no Artigo 225 da Constituição Federal de 1988. Nesta oficina, CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 60 também determina o trabalho excessivo de mulheres e crianças na beira do rio São Francisco. Comumente encontramos mulheres e crianças lavando roupas de vestir e utensílios domésticos nos horários mais quentes do dia. Esta é a realidade que encontramos na comunidade de Canudos no período do nosso trabalho de campo. De um lado, seus lugares de trabalho e de vida parecem, momentaneamente, estarem desarticulados em função dos descompassos entre os processos impostos pelas políticas públicas voltadas para áreas de assentamento; por outro, parece haver um sentido por trás dos conflitos e dos processos vividos na história recente deste grupo social, que nos remete à concepção de que os processos de sociabilidades e de historicidades de grupos sociais impactados são, sempre, complexos e ambíguos. Na atual conjuntura, esta realidade altamente fluida não é uma característica apenas desta comunidade camponesa, na medida em que ela está inserida numa realidade mais ampla, que a transversaliza constantemente. Sendo assim, procuraremos representar o modo de vida desta população, compreendendo o “conflito” como algo processual, e buscando mostrar que o seu modus vivendi camponês, mesmo inserido em uma área de assentamento com disputas internas entre os seus grupos sociais, ainda é latente e possui uma forma particular de organizar e classificar o mundo desta comunidade. Ainda que os grupos domésticos de Canudos sejam diferenciados, existem determinados aspectos que os definem e os unificam, como, por exemplo, a utilização da mão de obra familiar, a produção voltada para o sustento da família e a prática da policultura. Por essa razão, parto do princípio de que os moradores desta comunidade se aproximam da concepção construída por Woortmann (1990), qual seja, de que estes camponeses não veem a terra apenas como um objeto mercadológico, mas como um patrimônio familiar, onde terra, trabalho e família são elementos centrais. Esta representação social é inerente à cosmologia e à cosmografia da comunidade de Canudos, onde o patrimônio do grupo doméstico é verificamos empiricamente quatro problemas. Primeiro: ao analisar os valores tarifários de luz e água cobrados pela COELBA e pelo município de Barra, constatamos que todos tinham problemas de pagamento com um ou com outra empresa; segundo: verificamos que apesar de várias famílias fazerem parte dos programas assistenciais do governo federal, os valores cobrados em suas contas de luz não correspondiam aos valores (legalmente) estabelecidos para pessoas cadastradas nesses programas; terceiro: os poucos eletrodomésticos (televisão, aparelho de som, geladeira e freezer) que os moradores possuem são antigos e, consequentemente, o consumo de energia elétrica é muito maior; quarto: o município cobra o dobro do valor tarifário da água para casas em que o mínimo consumido denominado de cota social (10.000 litros) é excedido, esquecendo-se de que a região do semiárido deveria ter um consumo mínimo diferenciado das residências urbanas. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 61 simultaneamente um lugar48 de moradia e de produção, e a família é a unidade de produção e de consumo. Destarte, o cotidiano dos moradores de Canudos, cadenciado entre água e terra, entre o trabalho no lameiro, na vazante e na caatinga, está vinculado à prática de três atividades principais: extrativismo vegetal, plantio e pesca. No assentamento de Canudos, atualmente, a atividade de extração é realizada fundamentalmente na caatinga e no entorno da comunidade; o plantio de alimentos se dá em quintais, roças da caatinga, roças de beira de rio e em roças de ilha; e o pescado é obtido através da pesca artesanal no Velho Chico. Essas atividades são realizadas em territórios distintos, em momentos variados e por agentes diferenciados, uma vez que as divisões dos grupos, assim como as divisões das atividades, são caracterizadas por uma divisão de gênero e geração. Dentro desta complexa teia de relações sociais, onde a vivência se entrelaça entre as ações e as relações reificadas em territórios distintos, como roças de ilha, áreas de pesca, roças de caatinga e roças de vazantes e quintais, a categorização de Canudos por meio de um conceito único não nos parece algo simples de ser estabelecido. Na discussão a seguir, procuraremos estabelecer linhas teóricas e empíricas que possam desvelar o imaginário e o cotidiano desta comunidade. 48 “Um lugar não é um ponto localizável objetivamente num espaço-geográfico nem uma grade espacial abstrata. É, sobretudo, uma âncora que sustenta, dá sentido e emoldura as interações sociais que se desdobram num fluxo temporal entre pessoas e grupos [...]. A relação entre os lugares e os sentimentos de pertencimento revela sempre a interdependência entre os termos” (FILHO, 2010: 5). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 62 CAPÍTULO II CAMPESINIDADE E O MODUS VIVENDI CAMPONÊS LAMENTO DIAMANTINO Sou como mato estacado Bem torto a trafegar Em meio a uma campina Camponês cumprindo a sina Saudade é como cantar. Era meia noite veia E a lua bem descorada Um estampido na estrada O medo tragava o medo Empinava coração. Tal qual grandes menestréis Os grilos em cantoria Quebrando todo silencio Daquela noite tão fria A serra embranquecia Soltando um ar preguiçoso E o vento trazia uns gritos Que vinham lá da rodagem E o desafio do medo Num tempo de grilagem. E os homens plantavam a terra pensando que a terra é sua mas veio os donos da terra jogou plantado na rua. Eu saí da minha terra Por armas de coroné De alpercata e bocapiu Eu mais a minha muié Fui pra fazenda queimada Dois dias de caminhada Dois de andar a pé. Cheguei pedí o capataz Um trabaio de meeiro Ele me disse de estalo Só tem vaga pra roceiro E eu sem ter opção Joguei os trapos no chão Caí logo no asseiro. Trabalhava noite e dia Pensando vida vencer Mais hoje eu sou resto veí Da vida colhi sofrer E coroné sempre rico de terras pra bem viver. vou levando essa carga inté a morte chegar se Deus inda tá no céu mió mim levar pra lá Lamento Diamantino na serra solto no ar. IVAN SOARES CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 63 1. A CAMPESINIDADE E SEUS CAMINHOS Não obstante saber que uma extensa produção científica sobre comunidades camponesas nos mostra que as estruturas de sociabilidades, alinhavadas pelas relações de parentesco (reais ou imaginárias), compadrio, alianças e amizades são basilares para a reprodução do modo de vida camponês, mesmo que se tenha conhecimento de que o assentamento de Canudos apresenta fraturas na sua organização social, e ainda que se tenha ciência de que a condição vivida no assentamento de Canudos decorre de uma rede de processos complexos e conflituosos, sabemos que esse assentamento se constitui, de fato, num lugar experienciado de reprodução do modus vivendi camponês ou de campesinidade. Tal qual Woortmann em “Com parente não se neguceia: o campesinato como ordem moral”, optamos por pensar Canudos por meio da ideia de campesinidade no lugar da de camponês. [...] concepções sobre a terra que chamo de morais (terra enquanto valor-deuso) com concepções utilitaristas mercantis. Não encontramos, então, camponeses puros, mas uma campesinidade em graus distintos de articulação ambígua com a modernidade (WOORTMANN, 1990:14). Como este autor argumenta, não existe um camponês puro, e o conceito de campesinidade, com todas as suas variações, explicaria os diversos caminhos que um grupo como o de Canudos pode apresentar – estabelecidos ou chegantes, assentados ou não assentados, pescadores ou lavradores. Assim, o que existe é uma campesinidade comum a todos, mesmo havendo diferenças empíricas essenciais entre o campesinato histórico brasileiro. Como frisou Weber (WEBER apud. VELHO, 1982), “de todas as comunidades, a constituição social dos distritos rurais são as mais individuais, e as que relação mais íntima mantêm com determinados fatos históricos”. O campesinato, para muitos teóricos (QUEIROZ, 1973; HEREDIA, 1979; GARCIA JR., 1983; MOURA, 1988; WOORTMANN, 1997; CANDIDO, 2001), possui uma organização baseada na terra, no trabalho e na família, e na concepção do uso destes bens materiais e imateriais como um valor. Para esses teóricos, a especificidade deste grupo social não implica a negação de uma forma de subordinação à qual pode estar submetido, nem sugere a negação de uma multiplicidade de estratégias por ele adotadas diante de diferentes situações, de diferentes tempos ou lugares. Os grupos CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 64 sociais podem apresentam maior ou menor grau de campesinidade segundo a trajetória histórica e social de cada um e a sua forma de integração à sociedade moderna. São essas multiplicidades de estratégias que podem levar a uma maior ou menor reprodução de campesinidade. De acordo com Woortmann (1990), a campesinidade está fundamentada por uma ética camponesa,49 o que expressa a existência de uma “ordem moral, isto é, de uma forma de perceber as relações dos homens entre si e com as coisas”. A campesinidade é uma categoria encontrada em momentos e lugares diferentes, que expressa a importância de valor da ética camponesa para pessoas ou para grupos sociais. Trata-se, portanto, de uma característica presente, em maior ou menor grau, que é compartilhada. Velho (1982) trata claramente de campesinidade ao expor a necessidade de tentar fugir da ideia de contradição, quando se depara com uma multiplicidade de situações empíricas não teorizadas, entre o ideário de um camponês sem terra e um proletário com consciência camponesa. Foi teorizando o empírico que Velho criou a hipótese de um continuum camponês-proletário. Na área estudada (sul do Estado do Pará) existiam dois tipos sociais: um que vivia isolado com sua família na mata e outro que vivia em pequenas comunidades. Dentre eles foi observado que poucos se dedicavam exclusivamente à atividade agrícola, pois também trabalhavam nos castanhais durante a safra. Eles tinham, portanto, dois papéis – agricultores e apanhadores. A análise do empírico possibilitou ao teórico compreender e definir tipos ideais. Tinha-se, segundo o autor, um camponês agricultor autônomo (produção quase exclusivamente de subsistência, integração mínima no sistema nacional) atingindo um grau máximo de autonomia; porém, se olhássemos para os trabalhadores dos engenhos na Zona da Mata Pernambucana, tinha-se o máximo de dependência ou de proletarização (terra escassa, mão de obra abundante e alta integração com o sistema nacional). Os casos intermediários, existentes abundantemente no nordeste, de parceiros, meeiros, arrendadores e outros, justificam a hipótese de um continuum camponês-operário estabelecido por Velho, ou, como prefere Woortmann, justificam o conceito abstrato de campesinidade. Esse continuum, posteriormente, vai ser definido (SCHNEIDER, 2003; DUFUMIER, 2007) como uma estratégia de sobrevivência, denominada, pluriatividade. 49 A ética camponesa apresenta terra, trabalho e família como valores morais e categorias intimamente relacionadas entre si e tem como princípios norteadores a honra, a hierarquia e a reciprocidade. Para o autor, ela forma uma ordem moral de forte inspiração religiosa, constituindo inclusive uma ideologia tradicional oposta à ordem social da modernidade. Tanto que, no Brasil, a ética do catolicismo rústico se confunde com a ética camponesa. Sobre esse assunto ver: Woortmann,1990 e Queiroz, 1976. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 65 São situações sociais em que os indivíduos que compõem uma família com domicílio rural passam a se dedicar ao exercício de um conjunto variado de atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura ou ao cultivo da terra, e cada vez menos executadas dentro da unidade de produção. (SCHNEIDER, 2003: 100 e 101) Segundo Schneider (2003), a dinâmica da própria agricultura no espaço rural vem sendo condicionada e determinada por outras atividades. Dessa mudança estrutural temos o exemplo da expansão das unidades familiares pluriativas como uma estratégia de reprodução social e econômica das famílias rurais. A noção de pluriatividade nos dá, segundo o autor, a possibilidade de aprendermos melhor, não só as formas de trabalho, mas também a renda das unidades familiares. A importância desta estratégia tem graus variados de acordo com as regiões. No entanto, essa estratégia não significa um rompimento com as particularidades do campesinato brasileiro, afinal, atividades não agrícolas sempre foram realizadas no dia a dia desses grupos sociais. Como exemplo, temos unidades familiares em Canudos onde a mulher é faxineira na escola municipal da comunidade e, ao mesmo tempo, desempenha atividades no quintal e na roça de ilha e caatinga do seu grupo familiar. A estratégia pluriativa mantém a unidade doméstica enquanto um grupo produtor e consumidor, e não nega a reprodução social tradicionalmente desenvolvida por meio de uma ética camponesa. Segundo Wanderley (1996), a origem do conceito de camponês está relacionada à realidade da idade média europeia, mas a formação do campesinato brasileiro guarda grandes especificidades. No Brasil o campesinato é criado no seio de uma sociedade capitalista e à margem de um latifúndio escravocrata. Em contraste com o forte enraizamento territorial que caracteriza o camponês europeu, a trajetória do nosso campesinato é marcada por uma forte mobilidade espacial. O predomínio de sistemas de posse da terra tem resultado numa condição de instabilidade, que faz da busca de novas terras uma importante alternativa de reprodução social. Assim, o seu modo de vida é considerado como um patrimônio - mais do que a terra - e é ele que tem sido de fato transmitido. Em função destas especificidades, Wanderley também usa, de forma mais intensa, o conceito de campesinidade. 2. IDENTIDADE CAMPESINA EM CANUDOS 2.1. Terra, trabalho, família, hierarquia, estratégia CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 66 Para Queiroz (1973), no Brasil sempre houve um campesinato coexistindo com fazendas de monoculturas e de criação de gado, que sempre foi o responsável pelo abastecimento das fazendas e povoados. Segundo a autora, mesmo em regiões distintas, algumas características da vida camponesa eram comuns a todas elas: autossuficiência; interdependência em relação à economia urbana; estabelecimentos do tipo familiar; poder de decisão concentrado no chefe da unidade de produção. Corroborando esta análise, Woortmann (1990) e Moura (1988) definem o camponês pelo caráter familiar do trabalho. Para ambos, o trabalho familiar caracteriza o vínculo social do camponês com a terra, e o cultivo da terra marcará de modo decisivo as formas de organizar a vida social. O grupo doméstico se insere no trabalho familiar em diferentes atividades visando à reprodução física e social do grupo na terra. O camponês é um cultivador de pequenas extensões de terra, as quais controla diretamente com sua família. [...] Tal controle pode advir do costume ou da propriedade privada [...]. O camponês é um produtor que se define por oposição ao não produtor, não importando se planta a terra ou se pesca no mar [...]. O camponês é constituído de cultivadores que se definem em oposição à cidade [...] não a cidade [...] mas ao Estado. Este dispõe de instrumentos [...] que disciplinam o camponês na obrigação de pagar impostos, na obediência a códigos escritos que impõem uma verdade legal à propriedade de terra, ao matrimonio e ao contrato (MOURA; 1988: p. 12 a 15). Como afirmou Moura (1988), o camponês é um produtor, não importando se planta a terra ou se pesca no mar. É no processo de trabalho com a terra ou a água que a lógica do campesinato é gestada. É pelo trabalho que sua organização social e de território são criadas. É pelo trabalho que o seu saber é construído e repassado. É por meio do trabalho familiar que a relação com a terra é construída. É pelo trabalho que o camponês se enraíza à terra, sendo ela uma terra real ou uma terra a ser conquistada. A terra é um elemento fundamental para a reprodução social do camponês. Mas a terra não é apenas um território onde se projeta o trabalho de um grupo doméstico; ela é, ao mesmo tempo, um patrimônio familiar. A terra não é e não será uma mercadoria; ela é um instrumento de reprodução do grupo familiar. Mais que uma herança, a terra solidifica a família enquanto um valor. Na vida camponesa, tanto para o homem como para a mulher, a relação com a terra é central. Terra, trabalho e família são a expressão de uma moralidade. Trabalho, terra e família criam uma ordem moral – uma ética CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 67 camponesa. É uma forma particular de perceber as relações entre si e com o que o cerca. Uma forma particular que agrega terra, trabalho e família como valores morais e categorias intimamente relacionadas entre si e que tem como princípios norteadores a honra, a hierarquia e a reciprocidade (WOORTMANN, 1990). A sua moralidade, seus valores, suas “regras” de herança e suas estratégias de sobrevivência se compõem pela relação conjunta de todos esses elementos. A base desse modus vivendi desenvolvido pelos grupos domésticos camponeses é o trabalho familiar. Mas o trabalho familiar não se concretiza por intermédio de um grupo familiar fechado. Heredia (1979) define grupo doméstico como um conjunto de indivíduos que vivem na mesma casa e possuem uma economia doméstica comum, pois o grupo doméstico é a unidade de residência, e é dentro dele que tem lugar a reprodução física e, em boa parte, a reprodução social de seus membros. Godói (1999) também define grupo doméstico como um conjunto de pessoas que possuem em comum o local de moradia e a participação em uma mesma economia doméstica. No entanto, se retomarmos a discussão proposta anteriormente sobre pluriatividade, e se associarmos esse conceito ao que acontece em Canudos e em outras localidades (GARCIA JR, 1989; CARDEL, 1992; 2004), podemos afirmar que, quando os indivíduos componentes de um grupo familiar migram circulatoriamente, a ideia de residência compartilhada não se sustenta. As pessoas migram e desenvolvem atividades em regiões como o sul ou o sudeste, por vários anos, ou por toda a vida, e só voltam à comunidade nos períodos de férias ou depois de anos de trabalho. Esta migração, inclusive, é uma estratégia de reprodução do grupo camponês pauperizado, uma vez que estes indivíduos migrantes, muitas vezes, enviam dinheiro mensalmente para a família, participando da economia doméstica do grupo. Conforme Woortmann (1997), como o grupo familiar não é um grupo fechado, ele se relaciona com outras unidades familiares por meio das relações sociais de parentesco, compadrio e vizinhança. São essas relações e a sociabilidade estabelecida entre os grupos domésticos que fundamentam o sentimento de pertença a um determinado território, pois quanto maior o vínculo entre os grupos, maior sua integração espacial. Para Queiroz (1973), as relações de compadrio, de parentela e de grupos de vizinhanças são fundamentais, pois é por meio dessas relações que o camponês estrutura a sua ideia de mundo e de espaço. Aparentados entre si, com inúmeros casamentos no interior do mesmo grupo (endogamia), não há espaço para preeminências de um grupo sobre o outro, na concepção desta autora. Entretanto, sobre CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 68 esta ótica, o grupo de camponeses do assentamento de Canudos se diferencia. Apesar das várias famílias assentadas na comunidade terem chegado a esta localidade no final da década de 1970 e durante as décadas de 1980/1990, e de já terem efetuado casamentos entre si, ao ponto de se considerarem todos parentes, existe preeminência entre os grupos familiares com relação ao status relacionado diretamente ao contexto histórico do grupo. Os estabelecidos há mais tempo possuem lugares de plantio em lugares mais bem localizados, da mesma forma que têm quintais em proporções maiores. As atividades de um grupo camponês diferenciam seus integrantes por gênero e geração; é uma característica da família camponesa ser patriarcal e hierarquizada. Dentro dessa perspectiva, a figura do pai tem uma posição de maior proeminência50. As relações de gênero e de geração dentro no mundo camponês são extremamente hierarquizadas e, por conseguinte, a direção do processo de trabalho e das atividades mais importantes para a economia doméstica é determinada por estas hierarquias. Definir a direção do deslocamento espacial do trabalho (terra para desmatar, terra para descansar) indica que o “pai camponês” detém todo o saber do processo de trabalho, saber esse que será repassado através do trabalho familiar, do saber fazer. Em estudo realizado por Woortmann (1997) no espaço do roçado da propriedade familiar, a mulher, os velhos, e os não adultos, em geral, não trabalham. As atividades intensivas ou eventuais destes membros são definidas como ajuda. É no domínio casa/quintal que a atividade feminina é considerada trabalho, definindo espaços determinados pelo gênero. O pai, geralmente, é o responsável pelo acesso de todos os membros do grupo aos bens de consumo coletivo. Como estes bens de consumo são fornecidos, em maior parte, pelo plantio, pela pesca ou pelo extrativismo, é este “pai estrutural” quem direciona as atividades realizadas nesses lugares. Segundo Heredia (1979), desta maneira o lugar do homem é o lugar do roçado, enquanto o lugar da mulher é a casa, o quintal e o terreiro. É a mulher que organiza e controla as atividades vinculadas ao domínio do espaço privado. A oposição casaroçado delimita a área do trabalho e do não trabalho, demarcando os lugares femininomasculino. A categoria trabalho é relacionada ao pai, porque é ele o responsável pelo 50 Mesmo com as profundas mudanças sofridas nas últimas décadas com relação à inserção da mulher no mundo do trabalho, como público-alvo de políticas públicas específicas através do Pronaf Mulher. Em Canudos, ao questionar a razão de nomes de mulheres constarem como beneficiadas na lista do INCRA, a resposta foi uma só: aos homens faltavam documentos. Ao perguntar se faziam parte da associação como associadas ativas e efetivas, todas as respostas foram negativas. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 69 roçado, mesmo sendo um lugar de trabalho de todo o grupo doméstico. E mesmo quando mulheres e filhos desenvolvem atividades semelhantes no roçado ou as mesmas atividades, eles incorporam a categoria ajuda. Como as tarefas no roçado, quando efetuadas por mulheres, perdem o caráter de trabalho e como o campo visível do trabalho da mulher é a casa, considera-se assim, em geral, que a mulher não trabalha, mas ajuda. Ou seja, o mundo rural do campesinato brasileiro é um mundo marcadamente patriarcal. O trabalho infantil também está situado na condição de ajuda, tanto nas atividades agrícolas e nas atividades ligadas à criação de pequenos animais, quanto nas tarefas domésticas da casa e do quintal. Muitas vezes, segundo Cardel (1996), o trabalho realizado por crianças e adolescentes é fundamental para a manutenção social do grupo doméstico, pois é por meio dessas atividades que o processo de socialização da criança e do jovem se consolida para a reprodução do modus vivendi camponês – o saber fazer se dá pelo trabalho familiar. Conforme afirma a autora, no mundo camponês, o trabalho é uma ética e um processo socializador de transformação do indivíduo. Seguindo esta mesma linha, Heredia (1979) salienta que em algumas comunidades, além do roçado gestado pelo pai, existem roçados menores (roçadinhos), que são de usufruto individual de jovens e crianças. Segundo esta autora, esses roçados são uma forma de socializar os membros do grupo, mas, ao mesmo tempo, eles reificam o caráter de individualidade que um homem camponês futuramente deve cultivar, já que se espera que um jovem homem seja um futuro proprietário de seu próprio espaço de cultivo. Isso não ocorre em Canudos, onde toda a renda das atividades é direcionada para a manutenção do grupo doméstico e pessoas do mesmo grupo doméstico não trabalham em lugares individualizados separadamente. Mas esse retrato reforça a singularidade de Canudos enquanto um espaço de assentamento rural e, de forma paradoxal, retrata a importância do trabalho como uma forma de aprendizagem. Pautados na citação de Moura (1988), que fala da flexibilidade do tempo de vida e de trabalho do universo camponês, vemos que: A vida familiar, as relações de parentesco e herança, é regida por códigos flexíveis o suficiente para adaptar as mais diversas relações entre parentes e as inflexíveis realidades materiais (1988: p. 27). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 70 Neste sentido, chamamos a atenção para o lugar de trabalho ocupado pelas mulheres da comunidade de Canudos. Apesar do trabalho na caatinga ser um trabalho árduo e exercido usualmente por homens (adultos e jovens) existem várias mulheres que trabalham nela. Mas a relação de trabalho das mulheres com áreas de plantio não é uma característica particular de Canudos, é uma característica de comunidades pesqueiras. Segundo Woortmann (1991), nestas comunidades os homens estão mais próximos ao território de água, o que não significa que todos os trabalhos com a agricultura são praticados por mulheres, mas significa que elas estão presentes em todos eles. As mulheres estão presentes em diversas tarefas, porém o espaço privado da casa e do quintal é necessariamente seu. Em Canudos, o trabalho feminino, reconhecidamente, não é uma ajuda, pois em muitos casos o plantio, tanto no quintal, quanto na roça de caatinga ou de beira de rio, é responsabilidade das mulheres casadas. Esta mesma relação hierárquica é mantida na hora da comercialização dos produtos gerados pelo processo de trabalho familiar. Segundo Heredia (1979), como o roçado é reconhecidamente um domínio masculino, representado pelo pai de família, a venda dos produtos também corresponde à esfera de seu controle. Conforme a autora, a imagem do pai é hegemônica dentro do grupo familiar, pois ele é a pessoa responsável por sua subsistência, e é esta imagem que deve ser apresentada ao mundo exterior. A hierarquia do pai de um grupo doméstico também é reificada no âmbito do saber-fazer. E como argumenta Woortmann (1997), quem governa o trabalho, governa o fazeraprender que surge do saber e de sua transmissão hierárquica. Apesar de citarmos que a hierarquia paterna é mantida na hora da comercialização dos produtos gerados pelo processo de trabalho familiar, convém restabelecermos a concepção de que a lógica do processo de trabalho familiar se mantém principalmente para o abastecimento das necessidades do grupo. Entretanto, em um grupo familiar, a produção, além de ser para o consumo próprio, é destinada ao mundo exterior. Conforme salienta Moura (1988), é praticamente inexistente o número de agricultores familiares e camponeses que produzem apenas para o seu autossustento, pois a sua produção escapa ao controle do grupo, propositalmente ou não, das mais diversas formas, seja pela venda da produção na feira local (questão apresentada no capítulo 1), seja pela atividade de atravessadores ou pelo escoamento para outros municípios (no caso do assentamento de Canudos, com atravessadores de mamona e de peixe). Para Wanderley (1996), atualmente, a economia camponesa não se identifica simplesmente como uma economia de subsistência. Segundo esta autora, o modo de CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 71 produção camponês se adequa a uma forma particular de agricultura familiar com determinadas particularidades: 1) por meio de um sistema de policultura-pecuária; 2) através de estratégias para garantir a continuidade da unidade de produção (gerações futuras); 3) pela autonomia relativa e pluriatividade. Godói (1999) também não utiliza mais o termo “economia de subsistência” para falar do processo de produção e reprodução da economia do campesinato, visto que “economia de subsistência” traz consigo a ideia do binômio trabalho contínuo/ sobrevivência. Direcionada por uma construção de Sahlins, a autora opta por usar o termo “economia de aprovisionamento”, pois esta “produção para o aprovisionamento” fornece à família um “estoque de bens, tem seus limites na produção e não possui propensão inerente para um trabalho contínuo”. Neste contexto, uma vez que a plantação não é uma produção para o consumo direto, ela pode ser também uma forma para alcançar o que se precisa indiretamente, por meio da troca ou da venda. De acordo com Godói (1999), numa perspectiva materialista ortodoxa ligada à perspectiva da troca, é o que o grupo doméstico necessita que direciona a sua produção, e não o lucro que porventura possa ter. Da mesma forma, o interesse pela troca é um interesse de consumo e não um interesse capitalista (SAHLINS, 1970 apud GODOI, 1999). Na economia de aprovisionamento, a necessidade de se reservar parte de seus recursos ou produção para as trocas ou vendas externas, de alguma forma incentiva a introdução de elementos externos ao grupo, reforçando o que alguns autores (QUEIROZ, 1973; MOURA, 1988) dizem sobre a importância das feiras e do comércio local. Apesar de não ser movido pelo puro interesse capitalista de lucro, o mundo rural não é totalmente autônomo frente às cidades, da mesma forma que não existe um isolamento de um para com o outro. A título de exemplo, encontramos em Lídia Cardel a seguinte passagem: O camponês não é dono só da sua terra, mas de um patrimônio que o deixa livre para expor a sua moralidade, que tem regras próprias de herança (sucessão), de trocas matrimoniais e de trabalho, e que não são ditados pelo capital. (CARDEL; 1992: 36). Essa colocação inevitavelmente nos remete à obra de Polanyi, intitulada “A Grande Transformação” (2003). Quando este autor descreve o processo das Leis das Terras na Inglaterra, ele evidencia o impacto causado pelo surgimento de uma economia de mercado para a qualidade da vida social na Europa, através de uma comparação com CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 72 a vida das sociedades primitivas, usando os estudos etnográficos de Malinowski sobre a sociedade Trobriandesa do início do século XX. Para Polanyi, a evolução dos sistemas econômicos estabelecido pelas transformações históricas, econômicas e sociais do século XVIII foi a grande responsável pela degradação da vida das pessoas comuns, que se viram obrigadas a venderem sua força de trabalho para sobreviverem. Dentro dessa perspectiva, o autor considera a “Revolução Industrial uma catástrofe que ameaçou a vida e o bem estar da Inglaterra” (POLANYI, 2003: p. 56). Imbuído de uma aguçada análise marxista, Polanyi reafirma que as mudanças realizadas por meio de Leis de Cercamento das Terras, associadas às mudanças acarretadas pelo surgimento das máquinas, levaram a uma mobilização humana antes pautada na motivação da subsistência para a motivação do lucro. A partir de então, a substância humana está comprometida com a busca da lucratividade pelos detentores dos meios de produção e com a degradação da mão de obra em mercadoria. Para tanto, o autor retorna à descrição de sociedade primitiva em defesa da sociedade ocidental moderna, já que aquela não possui em sua essência a propensão à barganha, permuta ou troca. A valorização do estudo das sociedades primitivas é importante, segundo Polanyi, para compreender o homem como um ser social, ou seja, como um ser que age de acordo com suas necessidades sociais e não de acordo com seus interesses particulares. Para ele, o estudo das primeiras civilizações permite compreender que o homem em seus sistemas produtivos age por motivações sociais e não econômicas. A ideia de lucro não está presente em uma sociedade primitiva, e nesse ponto ele discorda de Adam Smith, pois sem motivação de lucro não há propensão à barganha. Não existe o princípio de se trabalhar por uma remuneração; as sociedades primitivas possuem, sim, dois princípios de comportamento, não associados somente à economia: reciprocidade e redistribuição (POLANYI, 2003). Segundo o autor, o princípio da reciprocidade diz respeito ao dar e receber baseado na premissa de que se oferece hoje para se ganhar amanhã. Uma comunidade primitiva desenvolve seu trabalho com o intuito de prover todas as famílias que compõem essa sociedade, já que a ideia de bem-estar comum se sobressai à ideia de bem-estar individual. Outro princípio praticado pelas sociedades primitivas é o princípio da domesticidade, que possui a mesma essência dos outros dois: produzir com vista ao bem comum. A domesticidade se difere dos outros por estar ligada a grupos fechados, ou seja, na produção que visa a satisfazer as necessidades internas do grupo. Assim, a grande transformação proporcionou a entrada do capital no CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 73 campo, o que gerou a subordinação das relações camponesas, entretanto, não fez com que elas desaparecessem. Esta é uma das várias faces contraditórias do Capital. Martins (1990), ao analisar a realidade brasileira, aponta para a mesma situação, pois embora os camponeses possam estar subordinados ao mundo capitalista – afinal, conforme pontuamos anteriormente, eles produzem para um mercado (local e/ou regional) e adquirem mercadorias produzidas fora de suas comunidades –, eles conseguem manter um imaginário de autorreprodução. A minha hipótese é a de que o capitalismo, na sua expansão, não só redefine antigas relações, subordinando-as à reprodução do capital, mas também engendra relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias a essa reprodução (MARTINS, 1990: 19 e 20). Em consonância com o que é trazido por Polanyi (2003) e Martins (1990), o modelo analítico de Chayanov, tratado em Wootmann (2001), aponta para a mesma questão: a economia camponesa é diferenciada, mesmo estando subordinada à economia capitalista. Segundo Chayanov, o campesinato é caracterizado interiormente, no seu sistema produtivo, por duas questões centrais: ausência de salários e o fato da unidade camponesa ser, ao mesmo tempo, uma unidade de produção e uma unidade de consumo. A economia familiar, para Chayanov, é baseada idealmente na busca do equilíbrio entre consumidores e produtores, ou melhor, entre a satisfação das necessidades familiares e a penosidade. Quanto maior a razão consumidores/produtores, mais alta é a intensidade do trabalho. Segundo o modelo analítico de Chayanov, a lógica da atividade econômica camponesa está baseada no ajustamento da família com as suas necessidades e, consequentemente, é oposta à economia capitalista. Contudo, Chayanov, ao formular sua teoria sobre um tipo específico de economia – unidade familiar camponesa – não considera aspectos exteriores à unidade familiar. A visão de Chayanov, como economista, prioriza os aspectos econômicos, independente das condições exteriores. Características como trabalho familiar e a não mensuração do tempo de trabalho em horas trabalhadas fazem com que Martins (1990) afirme que não é possível correlacionar camponeses à categoria de classe social. Para o autor, os camponeses são um grupo social.51 A existência de um tempo autônomo da família, assim como o 51 Karl Marx em “Rascunhos da Carta à Vera Sassulitch de 1881”, traduzida por Edgard Malagodi e Rogério Silva Bezerra, também define os camponeses como grupo social: “[...] As comunidades primitivas não são todas talhadas segundo o mesmo padrão. Seu conjunto forma, ao contrário, uma série de agrupamentos sociais que diferem de tipo e idade e que marcam fases de evolução sucessivas. Um CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 74 controle do processo de trabalho, são dimensões básicas da liberdade desse grupo familiar, e conforme Wootmann (1990) é o controle sobre a terra, o trabalho e o tempo que caracteriza o campesinato histórico como um grupo social. Embora às vezes, temporariamente, o domínio sobre o tempo de trabalho seja perdido – já que o camponês precisa desenvolver atividades remuneradas em outros lugares durante as suas migrações sazonais ou circulatórias –, ele nunca se vê como um proletariado, pois essa atividade é apenas uma estratégia de sobrevivência e de reprodução da unidade familiar. Garcia Jr. (1989) trouxe subsídios sobre a temática de migração como estratégia quando identificou o sul (urbano) como parte das estratégias de reprodução das famílias agregadas da região da Zona da Mata pernambucana. Com limitadas possibilidades de reprodução, quanto à possibilidade de adquirir lote na região de origem, a alternativa para muitos destes lavradores, segundo seu estudo, foi o Sul, onde o desenvolvimento industrial atraiu muitos camponeses que se tornaram operários, que, através da permanência temporária, conseguiram adquirir dinheiro suficiente para retornarem, posteriormente, para o nordeste, a fim de reproduzirem a sua condição de camponês/agricultor. Tanto quanto etnografias camponesas ou trabalhos teóricos de sociologia rural, a literatura brasileira também pode ser uma fonte riquíssima para a apreensão de uma realidade52 rural que retrata a existência de terras comuns (soltas, largas), sistema de agregação e estratégia de migração. A fazendola onde nasci e cresci meu pai montou-a na glebinha que herdara de meu avô. As terras no chapadão eram “em comum” com vários outros fazendeiros da beira da Serra do Cafezal [...] Meu pai não era nenhum latifundiário embora suas terras lhe sobrassem, pois não cultivava nem a metade delas [...] No caso de meu pai, de minha avó Maria Floriana e de meu tio Ponciano Alves de Lima, havia um atenuante: eles jamais cobravam renda da terra cultivada pelos agregados. Forneciam um leitinho quando, no tempo das águas, havia fartura de leite. Permitiam que criassem uns porquinhos para o gasto, galinhas, e podiam até ter no pasto um ou dois cavalos de sela. Quando o agregado merecia, isto é, quando era um bicho no serviço, era-lhe até permitido criar umas vaquinhas [...] Quando tudo corria desses tipos, que convencionamos chamar de comuna agrícola compreende também o tipo de comuna russa [...].” 52 A “realidade” trazida nesse estudo de caso é vista por intermédio da aplicação de um sistema de métodos e cortes epistemológicos. Não ignoramos que o corte epistemológico fragmenta o objeto de estudo de suas relações e nesse processo o modifica. Assim, o fenômeno estudado não é a “realidade empírica” em si; o “objeto” de estudo não é objeto e sim “sujeito” dotado de complexidade. Dessa forma, acreditamos em uma “realidade” projetada, não só por meio da observação direta, pela análise das narrativas dos informantes, mas também por intermédio de fontes literárias. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 75 bem, iam vivendo como Deus era servido, mas se acontecia de caírem em desgraça com o fazendeiro, tinham que sair da fazenda às pressas, iam embora com uma mão adiante e outra atrás. Sem terem tempo de colher a rocinha ou desmanchar a mandioca, largavam tudo e iam pedir agregação em outra fazenda [...] - Vocês vieram de que lugar da Bahia? - Nós viemos do sertão. De um lugar chamado santo Antonhe das Tabocas, perto de Sant`Ana do Brejo – respondeu uma delas. – Fica pra lá de Barreiras. O meu marido é dos Cocos e o marido da minha irmã é de Correntina [...] - Como é que vieram pra Goiás? De Caminhão? - Nós viemos foi uns de pé e outros em lombo de jumento, minha irimã. Foi uma viagem dura, mas Nosso Senhor Bom Jesus da Lapa ajudou e nós conseguimo chegar. - Como está lá o problema da seca? - Viche, Nossa Senhora, minha irimã! Aquilo lá ta duro! Faz dois anos que não chove e as águas dos rios tão secando tudo. Quem vive aqui nestas terras do Goiás não pode nem maginar cuma é que anda lá pras bandas do meu sertão da Bahia [...] (LIMA, 1988: p. 25, 50 e 85) Sobre essa questão da migração, Woortmann (1990) salienta que essa estratégia, em muitas ocasiões, pode não ser um movimento linear, mas uma reconstrução da tradição. Um movimento que se dirige a uma dimensão da modernidade pode ser, ele mesmo, necessário para que haja um outro movimento, o de reconstruir a tradição [...] o apego à tradição pode ser o meio para sobreviver à grande transformação: manter-se como produtor familiar em meio ao processo mais geral de proletarização ou de empobrecimento. A tradição, então, não é o passado que sobrevive no presente, mas o passado que, no presente, constrói as possibilidades do futuro (WOORTMANN; 1990: p. 16-17). Migrar, para este autor, pode não ser apenas uma estratégia de sobrevivência, mas uma forma de reprodução da unidade familiar, pela reconfiguração da tradição. A reconstrução dessa tradição se fará, por exemplo, pela aquisição de instrumentos de trabalho (enxada, barco) ou meios de produção (aluguel do trator para aragem de lugares de plantio) que se estabelecerá pela compra em espécimes. Essa possibilidade de reconstrução, ou seja, da produção para o sustento da unidade familiar, por meio do trabalho familiar, se norteará para o comércio (em Canudos temos a mamona e o pescado), que por sua vez sustentará o consumo de outros produtos. Cardel (1992) também assegura que, em muitos grupos camponeses, a migração (rural/urbana) temporária do herdeiro do patrimônio é necessária para a manutenção da condição camponesa. A mesma autora, em estudo sobre uma comunidade camponesa do semiárido baiano, indica a rota mais usual dessa migração: CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 76 A migração para o “Sul” do país, principalmente para a cidade de São Paulo, foi a resposta encontrada pelos habitantes de Olhos d’Água para estas novas necessidades (CARDEL; 2003: p. 4). A migração sazonal e circulatória também acontece no assentamento de Canudos. Muitas pessoas migram à procura de estudo, trabalho temporário ou sazonal, principalmente para cidades como Barreiras/BA e São Paulo53. Em Canudos, a rota indicada é São Paulo, mas algumas pessoas migram sazonalmente para a cidade de Barreiras a fim de trabalharem no período da colheita da soja e do algodão. Entretanto, a grande parte dos migrantes (filhos e cônjuges) migra em direção ao sul, e é com o envio do dinheiro destes membros que a unidade familiar permanece no assentamento complementando sua renda mensal, ou seja, efetuando a compra de produtos como querosene, açúcar, sal, arroz, medicamentos, ou realizando melhorias na casa de morada. 3. TERRITÓRIOS SOCIAIS 3.1. Territórios sociais e o Estado Um autor que fala da problemática das políticas públicas que criam uma série de territórios sociais que não correspondem aos anseios dos grupos rurais brasileiro é o antropólogo Paul Little (2002). Na sua visão, a diversidade sociocultural do Brasil é acompanhada de uma extraordinária diversidade fundiária – “terra de preto”, “terra de índio”, “terra de santo”. Essa diversidade de formas fundiárias é mantida por comunidades de babaçueiros, caboclos, caipiras, campeiros, jangadeiros, pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros, sertanejos e varjeiros. Deste leque de categorias temos “populações”, “comunidades”, “povos”, “sociedades”, “culturas”, e cada uma tende a ser acompanhada por um dos adjetivos: “tradicionais”, “autóctones”, “rurais”, “locais”, “residentes”, os quais não correspondem à abrangência e à diversidade dos grupos que engloba. Ainda segundo Little, nos últimos vinte anos, outra reconfiguração agrária foi colocada em prática: a demarcação e a homologação das terras indígenas, como também o reconhecimento e a titulação dos remanescentes quilombolas, e o estabelecimento das 53 Que conforme Garcia Jr. pode significar a região sudeste e sul. Sobre esse assunto, ver: Garcia Jr. (1989) e Cardel (2003). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 77 reservas extrativistas. E a reforma agrária original, da luta por uma distribuição mais equitativa das terras produtivas por parte dos trabalhadores sem terra e outros despossuídos, ficou estreitada. Para ele a reforma agrária deveria ser tratada pela perspectiva fundiária e pela questão territorial desses grupos, ao invés dos enfoques clássicos do campesinato, etnicidade ou raça, conceitos que engessam a existência desses grupos a um único fator. Mesmo não ignorando suas diferenças, a perspectiva de territorialidade pode mostrar semelhanças e vinculá-las às suas reivindicações e lutas fundiárias. Para isso, Little (2002) sugere que a territorialidade deve ser vista como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território54. O que implica que qualquer território seja visto como um produto histórico de processos sociais e políticos. Para analisar o território de qualquer grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem histórica que trate do contexto específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado. Questões como essa não foram levadas em conta para a criação do espaço artificial do assentamento de Canudos. Essa não é uma política adotada pelas instituições governamentais responsáveis pela reforma agrária, quando o mérito da intervenção não é o enfoque da demarcação de um território étnico. Conforme alega o autor, se percorrermos os diversos processos de expansão de fronteiras no Brasil colonial e imperial − a colonização do litoral no século XVI, seguida por dois séculos das entradas pelos bandeirantes; a ocupação da Amazônia e a escravização dos índios nos séculos XVII e XVIII; o estabelecimento das plantations açucareiras e algodoeiras no Nordeste nos séculos XVII e XVIII; a expansão das fazendas de gado ao sertão do Nordeste e Centro-Oeste e as frentes de mineração em Minas Gerais e no Centro-Oeste, ambas a partir do século XVIII; a expansão da cafeicultura no Sudeste nos séculos XVIII e XIX – poderemos entender como cada frente de expansão produziu um conjunto próprio de choques territoriais, e como isto provocou novas ondas de territorialização. Os processos de territorialização surgem em “contextos intersocietários” de conflito. Quanto a Canudos, é interessante relembrarmos que o projeto do assentamento foi implantado exatamente em uma área de intensa 54 Estamos pensando no conceito de território como uma extensão territorial, com recursos naturais, com símbolos que representam a ocupação de longa data (cemitérios, roças antigas, caminhos, mitos e lendas); elementos centrais para a produção e a reprodução social e simbólica do modo de vida das comunidades centenárias. Território não como algo puramente real, mas imaginário e simbólico. Sobre esse tema, ver Diegues (2005). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 78 concentração de terras e em um município onde houve e há fortes confrontos entre fazendeiros, posseiros, comunidades centenárias55 e comunidades de fundo de pasto pelo direito ao uso da terra. A resistência ativa às invasões por parte da expansão das fronteiras representa uma resposta comum: a história está repleta de casos de rebeliões, fugas, luta armada e alianças entre quilombos e povos indígenas. Mas conforme Little (2002), se, por um lado, existem múltiplas formas de resistência, por outro, existem também processos de acomodação, apropriação, consentimento e influência mútua. Essa influência sobre esses grupos também não significa que eles percam sua particularidade. Como exemplo, no trabalho de Reis (2007), pode-se observar como os princípios de identidades estão ligados às formas de apropriação dos espaços históricos e míticos em uma comunidade de fundo de pasto denominada Capivara, localizada no Município de Monte Santo-BA, onde as terras devolutas e os mananciais se transformaram em lugares de luta e de reprodução social. As formas de uso comum da terra empregam uma lógica econômica específica resistente/diferente da lógica do capitalismo. O significado disso, para a autora, é que a sobrevivência de territórios como esse se deve, em parte, à estratégia da invisibilidade, tanto simbólica quanto social. Mas a invisibilidade de territórios ou grupos como esse também gerou a instalação hegemônica de formas de territorialidade pensadas apenas pelo Estado Nação. No caso do assentamento de Canudos, o Estado sobrepôs, em uma área de uma comunidade centenária, um território legal de assentamento federal, com novas formas de uso da terra (área irrigada e coletiva) e de espacialidade territorial (lotes e quintais demarcados). E conforme a própria autora expõe, como os territórios tradicionalmente ocupados se fundamentam no arcabouço da lei consuetudinária,56 raras vezes reconhecida e respeitada pelo Estado, as articulações desses grupos são marginais aos princípios do Estado. 55 Usamos o termo comunidades centenárias em substituição ao conceito de comunidade ou sociedade tradicional, por orientação da Profa. Dra. Lídia Maria Pires Soares Cardel, que salienta que o termo tradicional engessa a possibilidade de mudança; mas ressaltamos que ambos os conceitos também acabam engessados pela ideia de temporalidade. Particularmente, o conceito “centenária” tira a perspectiva de congelamento trazido pelo conceito “tradicional” e adiciona historicidade às comunidades camponesas. É neste sentido que a orientadora advoga que comunidades “centenárias”, para um país pós-colonialista, é um conceito mais denso do que o conceito “tradicional”, que nos remete ao exotismo da atemporalidade. 56 A Lei Consuetudinária é um conjunto de normas não escritas, consagradas pelos usos e costumes tradicionais do povo, praticado e sem ofensa à lei e à ordem pública. Ele é baseado na ideia de que a terra e os frutos do trabalho pertencem a quem nela trabalha. O direito costumeiro vigente no imaginário desses agricultores, segundo Martins (1993), tem relação com a concepção de “terra livre” onde o direito de usar e o direito de ter eram separados. O direito costumeiro teve vigência até a promulgação da Lei das Terras, e se baseava na precedência dos direitos do rei, que tinha a propriedade de todas as terras CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 79 Little (2002) chama a atenção para o fato de estarmos tratando de diversas populações centenárias com variadas “formas comunitárias de apropriação de espaços e recursos naturais” baseadas num “conjunto de regras e valores consuetudinários, da ‘lei do respeito’, e de uma teia de reciprocidades sociais onde o parentesco e o compadrio assumem um papel preponderante”. Entre as comunidades de ribeirinhos da Amazônia e os pescadores artesanais do litoral, existem formas de apropriação articuladas em função de seus usos, significados e conhecimentos das águas (DIEGUES, 1996 apud LITTLE, 2002: p. 9). No caso desses últimos, o usufruto coletivo de áreas determinadas estendiase para além da terra para incluir ‘territórios marinhos’. Para esses grupos, a marcação é “um elemento fundamental à apropriação e ao usufruto do mar pelos pescadores. A familiaridade de cada grupo de pescadores com uma dessas áreas marítimas cria territórios que são incorporados à sua tradição. Na mesma medida em que é um recurso ou um espaço de subsistência, o território passa também à noção de lugar mediante a qual os povos marítimos definem e delimitam o mar” (MALDONADO, 1993 apud LITTLE, 2002: p. 10) – elementos que fundamentam os territórios sociais e que muitas vezes não são levados em conta pelas políticas públicas. Outro elemento fundamental para pensarmos territórios sociais é a diferenciação entre espaço e lugar. Diversos grupos sociais criam vínculos diferenciados com ambientes biofísicos, e existe uma distinção entre o ‘espaço’, como uma categoria que traz a noção de abstrato e genérico, e o ‘lugar’, que traz a ideia de concreto e habitado. Essa noção de lugar também se expressa nos valores diferenciados que um grupo social atribui aos diferentes aspectos de seu ambiente. Para Little (2002), ser de um lugar não requer uma relação com etnicidade ou raça (que tendem a ser avaliadas em termos de pureza), mas é uma relação com um espaço determinado. Ser de um lugar não passa pela noção de originalidade, isto é, do fato de ser ou não o primeiro grupo a ocupar uma área. Ser de um lugar significa pertencer a um lugar, significa que esse lugar representa sua verdadeira terra. Os territórios dos povos tradicionais, conforme a vasta literatura sobre este tema, se fundamentam em décadas ou séculos de ocupação efetiva, e a longa duração dessas ocupações fornece um peso histórico às suas reivindicações sociais. No entanto, a expressão dessa territorialidade não reside na figura de leis ou títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área. A maneira específica como cada grupo constrói sua memória coletiva dependeria, em parte, da história de migrações que o grupo realizou no passado. Voltando ao nosso objeto de pesquisa, o grupo de moradores CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 80 de Canudos é formado por pessoas nascidas na comunidade, por famílias da região de Sobradinho, de Xique-Xique e da região dos Brejos do município de Barra. Como vêm da mesma região, são indivíduos que trazem na memória a distinção por migrarem (característica do campesinato nordestino), mas trazem fortes lembranças da relação com o rio São Francisco e com o modo de vida beradero. A memória coletiva desse grupo é forjada no trabalho com a terra na chuva e na vazante, na labuta entre a caatinga e o lameiro, na plantação de sequeiro e de ilha, na pesca ritmada pela cadência das águas do rio e na vida de ir e vir entre os espaços de vida e de trabalho. Segundo Little (2002) vivemos hoje uma onda de territorializações, porque vivemos novas pressões territoriais. Particularmente, não cremos que elas um dia deixaram de existir. Mas, como argumenta o autor, o alvo dessa onda consiste em forçar o Estado a admitir a existência de distintas formas de expressão territorial – incluindo distintos regimes de propriedade – dentro do marco legal único do Estado. Devido à grande diversidade de formas territoriais desses povos, houve a necessidade de ajustar as categorias às realidades empíricas e históricas do campo, em vez de enquadrá-las nas normas existentes da lei brasileira. São os casos das terras indígenas e dos remanescentes das comunidades de quilombos. Nesses exemplos, conforme o autor, o conceito jurídico de reconhecimento fundiário estabelecido pelo Estado tende a se confundir com os conceitos político e etnográfico, formando parte de um mesmo processo de constituição e resistência dessas comunidades. Mas não podemos esquecer que as categorias territoriais utilizadas pelo Estado tiveram e têm finalidades de controle social, já que as categorias utilizadas podem servir para a reafirmação social e territorial. Assim, há o risco de fundirmos o lado conceitual com o lado pragmático e permitir que as categorias jurídicas substituam as categorias etnográficas. Por outro lado, apesar dos avanços frente ao reconhecimento de distintas formas de expressão territorial ou de regimes de propriedade, como é o caso das terras indígenas e dos remanescentes das comunidades de quilombos, o Estado brasileiro ainda tem dificuldades frente ao reconhecimento de formas territoriais de grupos sociais rurais invisibilizados57. Neste sentido, por mais que Canudos seja uma comunidade rural monitorada pelas políticas públicas fundiárias, sua organização social ainda é invisível aos olhos do 57 Grupos extrativistas ou povos tradicionais (licurizeiros, castanheiros, açaizeiros) impotentes frente à destruição dos biomas que são seus territórios e meios de reprodução de vida; pescadores artesanais; marisqueiras; camponeses sertanejos de fundo de pasto; ou seja, uma infinidade de sociabilidades que emergiram em profusão nas últimas duas décadas (CARDEL, 2010). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 81 Estado. O que intentamos desvelar com nossa análise é entender como os sujeitos sociais invisibilizados de Canudos veem, pensam, ocupam e controlam os seus territórios, através dos lugares de trabalho e em que vivem, das suas atividades, das suas divisões de trabalho e da sua disciplinarização, bem como das conexões com a sociedade dominante envolvente. 3.1.1. Territórios sociais, simbólicos e a relação de pertencimento Não é possível pensarmos o assentamento de Canudos – fundado em cima de uma comunidade centenária, representada por sujeitos sociais que se identificam com a pesca artesanal e o plantio familiar – de forma dissociada, pois a atividade da pesca e da agricultura se fazem presentes concomitantemente. Para pensarmos a forma de apropriação dos territórios de terra e água em diferentes comunidades, inicialmente vamos recorrer a Diegues. Para esse autor (DIEGUES, 2005), existem diferentes maneiras das populações se apropriarem dos territórios. Para as sociedades, que ele denomina de “sociedades tradicionais”, a água é um bem de uso essencial e, em geral, coletivo. No entanto, o uso da água tem dimensões conflituosas e políticas – a construção de sistemas de irrigação é um exemplo de atividade geradora de conflito. Em algumas situações, existem conflitos entre formas tradicionais de apropriação social dos espaços aquáticos, baseados no direito consuetudinário, e a apropriação mercadológica dos bens naturais. Para muitas comunidades de pescadores artesanais, o acesso à pesca é aberto somente aos membros da comunidade, que mantêm entre si relações de parentesco, pois a água, incluindo rios e lagos, faz parte de um território e de um modo de vida que serve de base a identidades específicas. Nesse trabalho, o autor salienta que “pescadores artesanais” têm um modo de vida baseado principalmente na pesca, ainda que exerçam outras atividades econômicas complementares, como o extrativismo vegetal e a pequena agricultura. A título de exemplo, o informante P.F.S. (pescador associado à Colônia) também demonstrou uma ligação maior com a pesca, quando afirmou que possuía áreas de plantio, mas estas lhes davam muito pouco retorno. A partir de conversas com nossos informantes, pode-se afirmar que existe uma relação de distanciamento, fundamentada, não só na “pouca renda”, mas também no sentimento de pertencimento a um destes territórios. A ideia de pertencimento está retratada na seguinte declaração: “Eu sô mais pescadô. Eu sô mais pexe. Eu pesco, eu sô mais pescadô”. Conforme Diegues (2005), nestas mesmas CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 82 comunidades existem indivíduos mais ligados à terra, que vivem da junção das atividades agrícolas realizadas nas várzeas dos rios, do extrativismo e da pesca, respectivamente. Essas atividades simbióticas também foram encontradas em campo quando constatamos a transversalidade das atividades da pesca e da lavoura no assentamento de Canudos, estabelecendo uma complementaridade entre o período da pesca e da atividade perene do plantio da mamona. Assim como muitos informantes associados à colônia de pescadores apresentaram um sentimento de pertencimento voltado para a pesca, o sentimento de pertença à terra também foi sugestionado por outros informantes. Muitos assentados da Comunidade de Canudos, que não estão ligados à pesca, afirmam que “o forte daqui é mamona”. Canudos se apresenta, desta forma, como uma comunidade dividida e imersa numa realidade dual e conflituosa, onde a identidade do assentado e do morador ora se liga à agricultura e à ancestralidade; ora de liga à atividade da pesca e às lembranças do deslocamento sofrido por parte de seus moradores. No entanto, comunidades pesqueiras artesanais apresentam uma particularidade que a distingue do campesinato tradicional, e que passa despercebida pelos técnicos responsáveis pelo gerenciamento das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar e a pesca artesanal. Estas atividades são eminentemente simbióticas em comunidades tradicionais de beira-rio ou beira-mar, como observa Woortman: Quando se fala de comunidades pesqueiras, imagina-se muito frequentemente, atividades produtivas e agentes sociais relacionados apenas à pesca. Por outro lado, os estudos relativos a essas comunidades tendem a privilegiar o ponto de vista do homem, isto é, do pescador. No entanto, não é incomum que nessas comunidades haja também agricultura, além da pesca, como é o caso do grupo estudado por Peirano (1975) no Ceará e por Beck (1981) em Sta. Catarina, [...]. Em vários grupos, como o estudado por Maués (1977) e aqueles que são o foco deste trabalho, a agricultura é pensada como atividade feminina. Privilegiar o ponto de vista masculino seria negligenciar as atividades agrícolas que constituem o domínio das mulheres (WOORTMANN, 1991: p. 2). Em Canudos essa situação não é de todo distinta. Entretanto, o trabalho na caatinga ou nas roças de ilha ou beira de rio não são atividades exclusivas do domínio feminino. As atividades realizadas nas roças de caatinga e nas roças de lameiro são desenvolvidas, tanto por mulheres, como por homens. De acordo com Woortmann (1991), nas comunidades pesqueiras os homens estão mais próximos ao território de CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 83 água; porém, em Canudos, mesmo os homens que possuem uma relação de pertencimento maior com a pesca realizam atividade de plantio, principalmente nas roças de ilha (lameiro) que se localizam em locais próximos aos seus pesqueiros. Como a roça de mamona também tem uma importância significativa na renda destes grupos familiares, em momentos de acúmulo de trabalho, eles também participam da colheita desta oleaginosa. Portanto, com algumas exceções, pensar os assentados de Canudos enquanto identificados simplesmente como pescadores artesanais ou como lavradores ou agricultores familiares seria um erro. As atividades variam conforme o ciclo das enchentes ou vazantes, da quantidade de pescado e conforme o preço ofertado pela saca de mamona. De acordo com a narrativa do Sra. M.A.R., a mamona só é trabalhada por sua família se o preço for compensador - “Quando tá barata demais, eles nem vão lá.” Quando a oferta de mamona é maior e, consequentemente, o preço da saca cai, nossa informante alegou que seus familiares ganham mais no rio - “Vou na roça de mamona fazer o quê? Não ganho nada, ganho mais pescando”. No trabalho de pesquisa realizado no rio Grande do Norte, Woortmann (1991) salienta que existem atividades de ajuda recíproca entre homens e mulheres, ligadas à terra e à água. No caso da terra, os homens participam do preparo do solo das terras soltas. No caso da água, as mulheres são responsáveis pela limpeza e pela conservação do pescado. Havia uma complementaridade onde a ajuda de um viabilizava o trabalho do outro. Mas, segundo ela, os homens da comunidade do Rio Grande do Norte, se perguntados se trabalhavam ou não na roça, a resposta era que apenas ajudavam. Em Canudos isso não ocorre. Quando indagados sobre esta atividade, a maioria dos homens respondeu que trabalhavam no rio e na roça. Alguns salientam que têm mais prazer em estar no rio pescando ou nas roças de lameiro, enquanto outros afirmam ter prazer apenas na “labuta com a terra”, preferindo o plantio na caatinga ou nas roças de ilha. Mas como não negam suas atividades de plantio, tanto de caatinga quanto de ilha, sugerimos que a bipolaridade (terra x água) em Canudos é mais diluída. No assentamento de Canudos, o trabalho feminino, reconhecidamente, não é uma ajuda, mas é um trabalho. Um trabalho complementar ao trabalho masculino. Contudo há ressalvas, pois existem homens que optaram por não trabalhar com o plantio e viver apenas da pesca. O único espaço de domínio da mulher é a casa/quintal. As atividades desenvolvidas dentro deste espaço, geralmente, são negligenciadas como trabalho. O fato do trabalho feminino em Canudos não ser considerado uma ajuda, não significa que a atividade desempenhada pela mulher tenha a mesma importância CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 84 hierárquica quando desempenhada pelo homem. Apesar da visibilidade do trabalho feminino em várias atividades, existe uma evidente hierarquia pautada em gênero. Segundo o imaginário dominante do grupo, os homens ainda capinam a roça melhor e mais rápido. Com relação às atividades comerciais, são os homens que decidem para quem e por quanto venderão a mamona colhida pela suas mulheres e filhos. A hierarquia também pode ser vista nessa bipolaridade entre os territórios de terra e água, quando a temática é alimentação. A autora afirma que existe uma relação hierárquica entre o trabalho e o produto do mar ou da terra, pois, mesmo havendo uma complementaridade entre a alimentação originada desses dois territórios, o peixe era mais valorizado culturalmente como alimento, ou seja, ele era um alimento por excelência, correlatamente à construção social diferenciada dos gêneros. Em Canudos esta diferenciação sobre a valorização alimentar também ocorre. Mesmo a mulher e o homem trazendo da roça a mandioca, a batata, o feijão, ou mesmo havendo ovos para serem feitos, o peixe é valorizado como um alimento mais forte. Conforme afirma Woortmann, se o mar é percebido como um lugar de trabalho do homem, a terra é seu lugar de lazer e descanso; é na terra que ele repousa, que festeja e que ingere bebidas alcoólicas. Em Canudos, mesmo que o homem trabalhe na roça por alguns dias, colaborando com a mulher, haverá dias que ele se recusará a trabalhar apenas para beber e jogar baralho, dominó, ou mesmo apenas “jogar conversa fora” nas vendas da comunidade. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 85 Foto 2: Morador que se identifica como pescador, pois optou por não trabalhar com roças. Os peixes menores, que segura com a mão direita, irá consumir; a pescada grande irá vender. O feijão e a farinha que consomem junto com o peixe são provenientes do pagamento do Bolsa Família. (Autora: Rejane Oliveira, 2010) Ainda sobre o estudo de caso realizado por Woortmann (1991), esta autora afirma que existe uma superioridade ideológica do homem, expressa na autorrepresentação do grupo do Rio Grande do Norte, de maneira contrastiva em face de outros grupos de agricultores. Mas, não obstante, há uma complementaridade entre os domínios masculinos e femininos, que foi se perdendo em função do advento do turismo na região. Com o turismo, as terras soltas desapareceram e a atividade da mulher com a agricultura e com o extrativismo foi altamente impactada. A mulher se tornou cativa, pois passou a depender de trabalhos de temporada nas casas de veraneio, enquanto o homem continuou em liberdade no mar. Esse processo de mudanças mudou o status feminino local. Antes da indústria turística e do cercamento das terras, a relação masculino/feminino era de complementaridade. Na atualidade, a relação da mulher é de completa dependência com relação ao mundo masculino. Este fato acarretou sérios problemas, como o aumento da violência doméstica, da prostituição das jovens, e também da gravidez precoce com filiação desconhecida. Observamos em Canudos que a relação de complementaridade ainda é fundamental para a constituição social, cultural e econômica desta comunidade. Há não apenas uma complementaridade entre os territórios da terra e da água, como também uma complementaridade entre os domínios masculinos e femininos. Entretanto, mesmo CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 86 havendo uma complementaridade nas comunidades pesqueiras e agricultoras, nossas observações nos levam a afirmar a existência de uma identidade mais demarcada da mulher com a terra, que, por sua vez, impulsiona a manutenção do patrimônio familiar por meio desta atividade. Estudos apontam (GARCIA, 1983; WOORTMANN, 1991; WOOTMANN, 1997) que as mulheres têm um papel importante em relação aos arranjos internos do grupo doméstico e da família nuclear e extensa. O papel estrutural da mulher no interior das comunidades camponesas estabelece estratégias, às vezes invisíveis aos olhos dos técnicos governamentais, para a preservação do patrimônio familiar. Outra dinâmica que ressalta a importância do papel da mulher na preservação da reprodução do grupo social ou da preservação do patrimônio é a evidenciação da estratégia de pluriatividade através das atividades com a terra em conjunto com atividades não agrícolas58. Foto 3: Moradora colhendo mamona para vender a um atravessador da comunidade. Com o dinheiro, comprará caderno para o filho em idade escolar. O caderno será comprado na própria venda do atravessador. (Autora: Rejane Oliveira, 2010) Ramalho (2001) é outro autor que retrata como o sentimento de pertencimento entre pescadores artesanais com o território de água são construídos. Para ele, é 58 Admite-se que a agricultura familiar no nordeste não sobrevive, exclusivamente, das atividades agrícolas, mas, de um sistema de atividades geradoras de renda e que fazem parte das estratégias de reprodução. Trabalhos não agrícolas referem-se a situações sociais em que os indivíduos que compõem uma família com domicílio rural passam a se dedicar ao exercício de um conjunto variado de atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura ou ao cultivo da terra, e cada vez menos executadas dentro da unidade de produção. (SCHNEIDER, 2003: 101). Sobre esse assunto, ver: Schneider (2003) e Schefler (2007). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 87 essencial entender o sentimento de pertença como maneira de posse (individual e comunal) das águas, pois é essa combinação, em relação à posse, que origina as formas de usos do território. Criar uma relação de pertencimento com o mar (no caso de Canudos, com o rio São Francisco) é criar e manter uma comunhão com esse recurso ecológico, traduzida na habilidade do pescador em descobrir os caminhos mais propícios para se tirar o que as águas têm de melhor a oferecer. De acordo com Ramalho (2001), existem diferenças quanto à noção de posse de um território por parte dos camponeses em relação aos pescadores artesanais, pois os pescadores lidam com um recurso de acesso livre e móvel (mar de dentro e mar de fora)59. Existem, por exemplo, locais de uso comum que são conhecidos e usados por todos os homens – como um bem comunal. Mesmo que o segredo sobre um novo pesqueiro e sobre melhores técnicas não possa ser guardado por muito tempo, tentar guardá-lo é importante para o mestre e/ou sua equipe, revelando assim seu talento. Na pesca, esses segredos só são revelados, sobretudo, a parentes, o que já caracteriza uma grande diferença entre a teoria do campesinato aplicada ao território da água, pois o saber do camponês não é um segredo, ele não é guardado, e sim repassado. Em conformidade com Diegues (2005), o trabalho de Ramalho (2001) relata que os mestres são quem estruturam os acordos morais e as regras de uso das águas nas comunidades pesqueiras (usos comuns e/ou individualizados). Porém é necessário ressaltar que o uso comum não significa falta de conflitos. Como no assentamento de Canudos, na comunidade estudada por Ramalho, na hora de sair para o pesqueiro, vale quem chegar primeiro. Quem tiver a primazia da chegada tem o direito de começar a soltar a rede primeiro, e só depois sair para que a outra equipe de pescadores (geralmente dois) possa fazer uso. Regras também existem para o uso de barcos ou redes e, assim como no campesinato, elas se baseiam em parentesco, amizade, cooperação, hierarquia e compadrio. Ou seja, existe uma ética pesqueira. Segundo Maldonado (1994), com a descoberta do segredo, o mar de dentro e o mar de fora deixam de ser espaços e passam a ser lugares, porque o espaço representa amplitudes sem demarcações claras. É a partir dessa territorialidade que o pescador mantém algum controle sobre determinados espaços, intercalando momentos individuais e coletivos de uso, fazendo-o lugar e, com isso, dotado do sentimento de pertença. 59 Sobre esse assunto, ver: Maldonado (1994). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 88 A etnografia de Fraxe (2000), sobre a relação dos ribeirinhos e camponeses da várzea do Rio Solimões, traz uma análise ímpar da riqueza material e lúdica estabelecida por um grupo social com o seu território. O ribeirinho estudado por Fraxe, como os beraderos de Canudos, exercem simultaneamente múltiplas atividades, e nenhuma de modo exclusivo. Eles são sujeitos sociais (metaforicamente identificados como homens anfíbios e sociologicamente como camponeses) que vivem em dois ambientes – a terra e a água. Esse sujeito, segundo a autora, apresenta uma produção extremamente interligada, que explora os recursos renováveis através das atividades de agricultura e do extrativismo vegetal e animal. Assim ocorre em Canudos, onde a pesca artesanal dos ribeirinhos do Rio Solimões é uma atividade primordial para a reprodução do seu modo de vida. A prática da agricultura ocorre nos ecossistemas de várzeas e terra firme – que em Canudos corresponderia à roça de lameiro e à roça de sequeiro. Os camponeses retratados por Fraxe (2000) também são agentes de produção de consumo, e o pai de família também é visto como o agente principal, que gera os recursos e as atividades do grupo. Assim como os moradores de Canudos, suas unidades familiares também determinam o equilíbrio entre a produção e o consumo, produzindo boa parte do alimento internamente, por meio da mão de obra familiar, e adquirindo poucas mercadorias (lamparina, sabão, café, sal, vestuário) por meio da troca ou por dinheiro, proveniente da venda de produtos excedentes (da pesca, da roça). Como no assentamento de Canudos, a várzea do ribeirinho amazonense está ligada ao regime fluvial, e não à alternância de estações secas e chuvosas. O rio começa a subir em novembro, atinge o clímax de março a abril e cai em agosto, chegando ao mínimo em outubro. Com a retração das águas, as partes mais baixas da várzea, que geralmente ficam afastadas do rio, retêm a fauna aquática em lagos, de forma a tornar a caça e a pesca altamente produtivas. Segundo a autora, eles trabalham na terra de várzea parte do ano (de setembro a abril no solo enriquecido pelo limo) e os outros meses em terra firme, pois a várzea fica submersa. Nela se apresenta o cultivo de ciclo curto. A várzea mais alta é usada para agricultura, caça e extrativismo. E o cultivo de gêneros na várzea alta é de ciclos maiores. Assim como em Canudos, os quintais do camponês anfíbio também têm uma grande importância na manutenção do grupo. São nos quintais que se plantam árvores frutíferas, hortaliças, plantas ornamentais e medicinais e, novamente como em Canudos, os trabalhos realizados nesse lugar são, prioritariamente, executados por mulheres e crianças de ambos os sexos. Os sítios localizam-se geralmente em cotas mais altas da CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 89 propriedade, e é nesse espaço que, durante as grandes enchentes, a unidade familiar tem a possibilidade de produzir alimentos para a sua subsistência. Conforme Fraxe (2000), este campesinato trabalha a terra, quase que exclusivamente com mão de obra familiar60. Mas vendem a sua força de trabalho quando a subsistência da unidade familiar está ameaçada por uma colheita não satisfatória, em razão de enchentes, pragas ou para apropriarem-se de algum excedente, sempre visando à manutenção da família. Durante quatro ou cinco meses, grande parte da planície terrestre fica encoberta; assim ficam compelidos ao assalariamento, ou na cidade como subproletários, ou no campo, através de empreitada na pesca ou em outras atividades. Da mesma forma que no assentamento de Canudos, os homens anfíbios praticam a pluriatividade e as mulheres vivem o seu cotidiano como mães, domésticas, extratoras e agricultoras. Entretanto, ao contrário de Canudos e dos pescadores agricultores estudados por Woortmann (1991), as mulheres ribeirinhas do rio Solimões são pescadoras. Como já colocamos anteriormente, em Canudos as mulheres só pescam com seus filhos menores, por diversão, nos barrancos, e apenas nos fins de semana. Suas pescarias são economicamente desconsideradas, pois é avaliada como um lazer, onde apenas peixes de pequeno porte são fisgados. Conforme observamos em muitas etnografias sobre campesinatos tradicionais, apesar da estrutura estruturada tornar implícito que, na divisão sexual do trabalho, as mulheres não devem executar tarefas pesadas, as estruturas estruturantes exigem delas um sobretrabalho. Nas etnografias já citadas, verificam-se muitas atividades que, na falta de homens, são executadas por mulheres. As crianças também participam do processo de trabalho, e os idosos realizam tarefas leves, ligadas, geralmente, às atividades de subsistência. Algo relevante a ser considerado é que nem Fraxe e nem Woortmann ressaltam a existência da renda mensal da aposentadoria desses idosos para a manutenção da unidade familiar. Como estas etnografias foram realizadas em períodos anteriores à implantação maciça destas políticas redistributivas, este deve ser o motivo das autoras não trazerem estes dados para os seus respectivos trabalhos. 4. ASSENTAMENTOS RURAIS, CONFLITOS E IDENTIDADE 60 Utilizam o sistema de ajuda mútua. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 90 Como podemos observar, no assentamento de Canudos existe uma relação entre os sujeitos sociais e os seus ecossistemas, que permite que eles os ocupem, controlem e se identifiquem com esses espaços, transformando cada um deles em lugares significativos. Mas a forma com que esses grupos sentem seus lugares, como organizam suas estratégias e desempenham as suas atividades possui particularidades. Moradores que desenvolveram um sentimento de pertença maior com a pesca artesanal do que com a terra terão uma percepção distinta do território ou das necessidades intervencionistas, do que os moradores que se identificam com o plantio. Da mesma forma, moradores que nasceram na comunidade (estabelecidos ou “de dentro”)61, independente da proximidade das moradias e das atividades que realizam, parecem não conseguir romper com o distanciamento entre eles e as famílias posteriores (outsiders ou “de fora”); um distanciamento estabelecido por serem de lugares distintos, pois a grande maioria das famílias de Canudos sempre tiveram modus vivendi beradero. No entanto, questões como essas não foram levadas em conta para a criação do espaço artificial do assentamento, pois, apesar do assentamento de Canudos aparentar ser uma comunidade de pescadores artesanais e agricultores familiares beraderos, típica do Médio São Francisco, sua história de constantes intervenções mudou sua organização social e ela se encontra extremamente fragmentada62. Entender os significados de um determinado território – assentamento – pressupõe uma reflexão anterior sobre a ocupação de terras no Brasil, suas transformações e conflitos. Conflitos não necessariamente atuais, mas que refletem uma história relacionada com a ocupação do território brasileiro. Conflitos que, em muitos casos, parecem ser um reflexo da ação ou da omissão do Estado brasileiro. O caráter expropriador da questão fundiária no Brasil tem deixado inúmeros camponeses sem acesso à terra. Estes, quando não migram para as cidades de forma circulatória, estabelecem relações de parcerias, agregação, ou buscam, através da mobilização, 61 As pessoas são categorizadas pela categoria êmica como “de dentro” ou “de fora”, conforme a sua unilinearidade (o homem identifica a categoria na qual seus filhos e filhas serão integrados na comunidade), e essa questão é de suma importância. No entanto, em Canudos, os moradores têm dificuldade em verbalizarem ou se perceberem como um “de fora”. Sobre esse assunto ver: Woortmann (1990); Cardel (1987, 1992) e Godói (1999). 62 A questão política partidária consegue acirrar ainda mais as tensões entre essas famílias, principalmente entre as duas famílias mais importantes do assentamento. Elas apóiam políticos distintos e em toda campanha eleitoral quase se agridem fisicamente (apesar de serem compadres). Conforme um ou outro candidato chega ao poder, os pequenos poderes no assentamento são distribuídos para uma ou outra família. Em uma dessas eleições, a professora concursada da comunidade chegou a ser afastada de suas atividades por meses por ser da oposição. Por pequenos poderes entendemos: ser transportado no carro da prefeitura para Barra, apesar de existir uma proibição; ganhar prestígio frente às decisões da comunidade; ser um representante direto da administração no assentamento, etc. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 91 ocupar terras não produtivas, pressionando as políticas de assentamento. Isto significa dizer que a composição do território nacional passou inicialmente pela territorialização camponesa (ocupação por posseiros); a des-territorialização do camponês e a apropriação por parte das grandes fazendas; e a re-territorialização de camponeses por intermédio dos movimentos sociais. 4.1. Lei das Terras, Estatuto do Trabalhador e Estatuto da Terra Embora a Lei de Terras de 1850 tivesse como finalidade evitar o apossamento de terras livres pelos camponeses, sabe-se que essas práticas só foram controladas com a ocupação do território pela grande fazenda, o que ocorreu, em muitos casos, pela expropriação dos camponeses posseiros. Foi nesse período que a terra passou a ser propriedade e só pôde ser adquirida através da compra63. A sujeição do camponês em grandes propriedades e o número crescente de fluxos migratórios para a área urbana são fatos que acirraram as tensões, e os espaços políticos da luta e resistência no campo, começaram a ser demarcados desde este período. Conforme Martins: As lutas camponesas dessa quadra [final do séc. XIX, início do XX] são caracteristicamente constituídas pelos movimentos messiânicos e pelo banditismo (MARTINS,1981: p.50). A partir de 1950, surgiram as Ligas Camponesas, o sindicato e outros movimentos ligados ao campo. Com o apoio do Partido Comunista, as Ligas Camponesas foram criadas em quase todo o país – as Ligas no Estado de Pernambuco eram muito fortes e rapidamente se espalharam pelo Nordeste, organizando foreiros, moradores, arrendatários, pequenos proprietários. Nesse período surgiram também diversas pastorais da ala mais progressista da Igreja Católica, lideradas pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Com a aprovação do Estatuto do 63 A partir de 1850, com os sinais da abolição, era necessário que os grandes proprietários rurais da elite econômica agrária tivessem a proteção da propriedade da terra, impedindo a apropriação pela posse. Do contrário, quando os escravos fossem libertados e os imigrantes chegassem, não haveria empregados para os grandes proprietários, pois todos iriam buscar terras do interior. A partir desta data só poderia ocupar as terras por compra e venda ou por autorização do Imperador. Todos os que já estavam nela receberam o título de proprietário, porém tinham que residir e produzir na terra. A criação desta Lei garantiu os interesses dos grandes proprietários do Nordeste e do Sudeste, que estavam iniciando a promissora produção do café, definindo que as terras ainda não ocupadas passavam a ser propriedade do Estado e só poderiam ser adquiridas através da compra nos leilões mediante pagamento à vista; e, quanto às terras já ocupadas, estas podiam ser regularizadas como propriedade privada. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 92 Trabalhador Rural/ETR, em 1963, pelo qual as leis trabalhistas eram estendidas aos trabalhadores rurais, o assalariamento tornou-se indesejável devido aos custos trabalhistas. E esta chegada das leis trabalhistas no campo fez com que os fazendeiros passassem a substituir suas atividades econômicas por outras, como a criação de gado. A promulgação do Estatuto, dando proeminência ao trabalhador assalariado rural em relação ao camponês também fez com que houvesse um processo de esvaziamento das Ligas Camponesas. Em 1964 foi aprovado o Estatuto da Terra/ET64, com a compilação de normas que, de certa forma, vinham para acalmar as tensões no campo, sobretudo as reivindicações dos movimentos. Esta resolução federal foi um avanço para a época, apesar de não colocar em pauta a questão da propriedade e da acumulação de terra. Conforme Martins (1981): O Estatuto estabelece como ponto essencial da redefinição fundiária: a colonização das terras novas, mediante remoção e assentamento de lavradores desalojados pela concentração da propriedade ou removidos de áreas de tensão (MARTINS, 1981: p. 96). No entanto, para Silva (2004) as medidas adotadas, além de gerarem processos de expropriação e exploração, conservaram o poder político dos proprietários rurais, garantindo-lhes financiamentos, subsídios e incentivos fiscais e impedindo que a reforma agrária fosse efetuada. A estrutura fundiária não foi sequer tocada. 64 Um dos primeiros códigos inteiramente elaborados pelo Governo Militar no Brasil (1964), foi concebido como forma de colocar freio nos movimentos campesinos que se multiplicavam durante o Governo João Goulart. Apesar de importantes peças para o ordenamento jurídico brasileiro, seu conteúdo é pouco difundido, e conta com poucos especialistas no meio doutrinário. Conquanto seus conceitos abarcam definições de cunho inteiramente político, servem para nortear as ações de órgãos governamentais de fomento agrícola e de reforma agrária, como o INCRA. São diversos os conceitos ali enunciados, com importantes repercussões para a vida no campo, bem como a relação do proprietário de terras com o seu imóvel. Dentre elas: Reforma agrária - é o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade. Módulo rural - consiste, em linhas gerais, na menor unidade de terra onde uma família possa se sustentar ou, como define a lei: lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico – e cujas dimensões, variáveis consoante diversos fatores (localização, tipo do solo, topografia, etc.), são determinadas por órgãos oficiais. Por estes critérios, uma área de várzea de meio hectare pode configurar, em tese, um módulo rural – ao passo que 10 hectares de caatinga podem não atingi-lo. Minifúndio - Uma propriedade de terra cujas dimensões não perfazem o mínimo para configurar um módulo rural (nos exemplos anteriores, uma várzea de 0,2ha.) Latifúndio - propriedades que excedam a 600 módulos rurais ou, independente deste valor, que sejam destinadas a fins não produtivos (como a especulação). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 93 Em 1975, a Igreja Católica criou a Comissão da Pastoral da Terra (CPT) e começou o trabalho de mobilização dos camponeses e trabalhadores rurais, especialmente na Amazônia, onde os índices de violência no campo chegaram a números descomedidos. Durante o regime militar, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) foram espaços de socialização política e de reflexão para a transformação da sociedade. No final de 1970, o número de ocupação de terra aumentou em diversas regiões, surgindo novos movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST, em 1984. Nesse período, surgiram os primeiros assentamentos de Reforma Agrária implantados pelo Governo Federal e uma nova categoria: os assentados65. Segundo Loera (2006), desde a Constituição de 1988, com o artigo 184, pode-se perceber um incentivo às ocupações, pois as propriedades que desde então não cumprem com a sua função social podem ser desapropriadas. O Plano Nacional de Reforma Agrária/PNRA, criado em 2003, estendeu essa possibilidade de desapropriação para as terras onde fossem comprovadas plantações de psicotrópicos e/ou houvesse trabalho escravo. 4.2. Disputas de terra e violência Embora o Estatuto da Terra indicasse a necessidade de áreas de reforma agrária, elas não se tornaram uma realidade planejada por parte do Estado. A maioria dos assentamentos foi criada sob pressão dos movimentos sociais, pois, ao criar um assentamento, o Estado tem que viabilizar a sua implementação e suas condições de reprodução. O que significa dizer que os assentados ficam à mercê das ações e das omissões do Estado. Assim, assentamentos possuem origens diferenciadas. Podem ter origem na regularização fundiária de terras ocupadas por posseiros, geralmente por muitos anos; podem ser provenientes de áreas de conflitos gerados pela tentativa de expulsão de agregados ou meeiros; podem ser áreas improdutivas ocupadas pelo MST ou por sindicatos rurais. No caso de Canudos, este foi fruto de um acordo pacífico entre a comunidade posseira instalada por longos anos na área e o dono da fazenda, que buscava a desapropriação por parte do Estado. Sigaud (2000) retrata a mesma situação em Pernambuco, quando fazendeiros interessados na desapropriação procuraram movimentos sociais para que eles providenciassem um acampamento em suas terras. 65 Sobre a questão agrária no Brasil e assentamentos, ver: Leite; Heredia; Medeiros; Palmeira; Cintrão (2004) CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 94 Pois não bastava, segundo a autora, querer ser desapropriado; era necessária a pressão por parte dos idealmente interessados. Afinal, depois do Plano Real, em 1994, houve uma queda acentuada nos valores das terras, e o interesse pela desapropriação cresceu66. Assim como os assentamentos, os beneficiados do projeto também podem ter origens distintas. Deste modo, podemos encontrar, entre os pretendentes a serem assentados, posseiros, filhos de produtores pobres que não têm acesso à terra, meeiros em busca de seu próprio espaço de plantio, pessoas atingidas por grandes obras (barragens), assalariados rurais, bem como parte da população pobre urbana. Assim sendo, passamos a ver um conjunto amplo de atores sociais (fazendeiro, posseiro, agregado, INCRA, secretarias, ONGs, entidades ligadas à igreja, associações, organismos que prestam assistência técnica) delineando relações de negociações, de disputas e, em muitos casos, de conflitos. Assim sendo, o surgimento de assentamentos está quase sempre relacionado a algum tipo de conflito em torno da terra, com uma disputa pela propriedade da terra. Mesmo quando os antigos proprietários se omitem diante da ocupação ou mantêm certa cordialidade em relação aos ocupantes, agregados ou posseiros, a disputa pela posse da terra pode se dar em outro âmbito, pois o uso da violência física, ou mesmo verbal, nem sempre é necessário. Em Canudos, os assentados da comunidade garantem que a desapropriação das terras para a criação do assentamento não foi conflituosa junto ao antigo proprietário (Sr. João Camandaroba). No entanto, na comunidade já existiam conflitos com outros antigos proprietários e fazendeiros vizinhos, estabelecidos por divisa de terras e uso de roças de ilha no rio São Francisco (espaço que pertence legalmente ao estado, de acordo com o Artigo 26, III, da Constituição Federal de 1988), conforme nos foi relatado em dois momentos pelo informante A.R.S, pessoa ligada ao Sindicato dos Trabalhadores de Barra. A: Teve um conflitozinho. Porque esse Canudos era do Sr. Lutercílio Rocha, era Lutercílio Rocha um latifundiário da região de Xique-Xique que tinha essa fazenda do lado de cá, né? R: Hum. A: E aí, em um certo tempo, o pessoal de Canudos, eles vieram pra cá, aí e plantaram, plantaram na ilha do outro lado. Porque do outro lado era dele também. R: Sim. 66 Sobre esse assunto, ver: Sigaud (2000). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 95 A: Plantaram na ilha lá. Plantaram feijão, milho. R: Na margem de Xique-Xique? A: Na margem de Xique-Xique, mas na ilha, né? R: Sim. A: Mandioca, abóbora, plantaram tudo, né? Aí o pessoal foi dá, foi, bateu com a língua lá, com o genro do Lutercílio Rocha, né? R: Sei. A: Que eu até esqueci o nome. R: Sei. A: E aí ele mandou uns jagunços aí. Mandou arrancar as plantas todinhas. Botou os pistoleiros pra perseguir os trabalhadores. Ainda vieram um dia no Canudos, de noite, deram tiro lá adoidado e o povo correram tudo pro mato. Roubaram as, roubaram as sacaria inteira, roubaram relógio nas casas. Pois é, houve esse conflito. É que eu esqueci, mas mandado por esse genro do Lutercílio, né? R: Sei A: Aí o pessoal afastou da ilha e ficaram nos Canudos sempre encrencando, né, o homem. E quando foi no, no tempo desse assentamento já, a lei já tava mais severa um pouco com latifundiário, com esses empresários. Já tinha mais uma lei que já agia mais em benefício do trabalhador, né? Enquanto este informante fala de uma violência física realizada por ordem dos fazendeiros frente aos posseiros de Canudos, por conta de disputa de ilhas do rio São Francisco, localizadas próximas à comunidade, em outro trecho da entrevista, A.R.S relata uma violência mais escamoteada, mas nem por isso menos cruel – a grilagem de terra por parte de um vizinho da área onde a comunidade de Canudos se instalava. A: E assim ele cortou pra dentro do Canudos tirando um eito danado de lá. Dessa questão o sindicato ainda andou dentro desse rolo também. R: Qual era o nome dele mesmo, seu Astrogildo? A: Ele chamava. Eu esqueci. Sei que (sic) mas o nome dele era Edson de Freitas, Andrade de Freitas. R: Edson Andrade de Freitas. A: É. R: Então ele tinha, ele tinha uma fazenda. A: Aqui era o rio (desenhando com o dedo sobre a mesa), ele tinha uma fazenda aqui, e aqui era os Canudos, né? R: Sei. A: Aqui ele foi medir a fazenda e entrou num rumo assim (sic) as parte dele assim (sic), meteu por dentro dos Canudos aqui. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 96 Tudo por fora do alinhamento dele, já grilando terra dos Canudos. R: Sei. A: Logo depois nós (pessoas do sindicato) entramos em questão. O povo vieram aqui e nós fizemos ele voltar a cerca.67 Conforme já foi dito, Barra é um dos municípios que apresenta sérias disputas fundiárias. As principais denúncias relatam que fazendeiros envolvidos nestes conflitos coagem posseiros e beraderos soltando gado em suas plantações e aprisionando suas criações. Mas, se pensarmos o relato acima em concomitância com o documentário “O Massacre da Lagoa da Serra”, que relembra uma situação de conflito entre posseiros, grileiros e donos de terras (Família Mariani) no Vale do São Francisco (Muquém do São Francisco e Barra) – onde os posseiros da Fazenda Lagoa da Serra sofreram pressão por meio da perda da produção, da queima de todos os casebres até a expulsão das famílias – constatamos que as atitudes iam muito além do aprisionamento de animais. 4.3. Identidade fragmentada Existe uma profusão de movimentos sociais no Brasil ligados à questão fundiária, após a criação oficial do MST em Cascavel/PR, no ano de 1984. Muitos deles, inclusive, se articulam em rede com setores da Igreja Católica, partidos políticos e Organizações Não Governamentais. Entretanto, sabemos, por meio da vasta literatura sobre esta temática, que nem todos os assentamentos são promovidos pelos movimentos sociais. Em Canudos, por exemplo, o acompanhamento do processo de desapropriação e regularização do assentamento foi acompanhado pela FETAG e, conforme Loera (2006), mesmo nos assentamentos organizados pelo MST, nem todos os assentados se consideram membros do MST. Sigaud já chamava a atenção para essa particularidade em seus estudos sobre os acampamentos em Pernambuco, quando afirmou que “ser um sem-terra não correspondia necessariamente a uma identificação com a organização do mesmo nome” (2000:83). Apesar dos movimentos sociais possuírem pessoas responsáveis para arregimentar famílias de posseiros, moradores de periferia das cidades e de núcleos rurais, não há, por parte dos cooptados, uma identificação totalizadora. Essa medida leva à mobilização de famílias com semelhanças, mas 67 Entrevista realizada em Barra com um dos dirigentes do sindicato rural de Barra que tem quase 40 anos de sindicato. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 97 também com diferenças em muitos aspectos. E famílias com origens e motivos variados, reunidas em um mesmo local, nem sempre desenvolvem a mesma afinidade com a proposta do movimento, mesmo que existam redes sociais de afinidade ou de parentesco dentro do grupo. A crença dos movimentos sociais de que a participação das famílias nas reuniões cria uma sociabilidade que contribui para a consolidação das redes sociais, na minha concepção, também é um engano. Pois, como afirma Godói (1999), a relação que o camponês estabelece com a terra tem como base um “sistema de lugar”, que tem como referência um conjunto de direitos combinados sobre a terra e outros demais recursos naturais. Essa concepção não combina com as propostas coletivas apresentadas pelo MST, pela FETAG ou pela CPT. Loera (2006) relata esse problema em acampamentos e assentamentos organizados pelo MST no interior de São Paulo. No seu estudo de caso, esta autora demonstra que, quando os militantes explanaram a ideia de trabalho coletivo e reforçaram que a permanência no assentamento estava sujeita a essa condição, algumas famílias resolveram se mudar para outro acampamento, onde essa medida ainda não tinha sido implementada. Esta realidade vem de encontro com o relato feito por outros pesquisadores. Como Godói salienta, a terra para um camponês é uma condição para manter sua família, mas é também a base para poder ser independente. Neste sentido, o trabalho coletivo representa exatamente o oposto de suas expectativas de liberdade e de propriedade individual do seu lote de terra. Loera (2006) também salienta que o trabalho coletivo em cooperativas gera conflitos, pois, segundo seus informantes, ninguém quer trabalhar mais tempo do que outros, ou ninguém que ser cativo de ninguém. A ideia de trabalho cativo, do mesmo modo, está presente em autores que retratam o contexto rural dos estados do Norte e Nordeste Brasileiro, onde a concepção de trabalho coletivo ficou associada ao trabalho do agregado, ou seja, daquele que é cativo de alguém. Nas suas pesquisas, Silva também alega que: A sociabilidade da fase do acampamento, na maioria das vezes, não tem continuidade no assentamento. Valores relativos à sociabilidade, ajuda mútua e mística são, grosso modo, substituídos pelo individualismo, pela não cooperação. Este fato ocorre em virtude da imposição da inserção dos assentados na economia mercantil, na qual a terra é vista enquanto meio de produção. O simbolismo em torno da terra vai, aos poucos, cedendo lugar à visão da terra como mercadoria, logo, terra de negócio. O objetivo é a renda auferida pela terra. (SILVA, 2004: p. 104 e105) CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 98 Segundo a autora, o responsável por essa transformação das representações sociais em torno da terra é o Estado, responsável pela implantação dos assentamentos, como também os representantes dos movimentos de luta pela terra, pois, de uma hora para outra, os sem-terra são obrigados a fazerem parte do circuito mercantil, que envolve insumos, compra de máquinas e inserção em linhas de crédito bancário. Paralelo a isso, para Silva (2004), muitos projetos não correspondem aos interesses ou à capacidade dos assentados, ocasionando conflitos internos entre lideranças e assentados. A coletivização dos lotes e a formação de cooperativas são exemplos que se repetem em várias localidades. Para a autora, a ideologia da tutela aprofunda os conflitos internos. Concordamos com Silva (2004) quanto à afirmação de que a coletivização dos lotes e a implantação de cooperativas fomenta conflitos internos, assim como concordamos com Loera (2006), quando esta alega que os grupos acampados ou recémassentados não conseguem aderir à concepção de trabalho coletivo incentivada pelo MST, pois observamos essa mesma situação no assentamento de Canudos. No entanto, quando buscamos refletir sobre a composição da identidade campesina dentro de Canudos, e as situações que impossibilitam a reprodução dessa identidade como um todo, somos levados a pensar, não só sobre as fragmentações das relações sociais que o conflito de terra pode ter gerado entre as famílias dos estabelecidos, e as que chegaram posteriormente - e que não vivenciaram as ações de disputa e conflito (um elemento de origem, que pode criar categorias de 1ª ou 2ª classe) - como também na argumentação de Martins (2003), de que identidade camponesa não encontra suporte em áreas de assentamento. Ao afirmar que assentamento não produz identidade, Martins está discutindo a identidade de uma nova categoria ou do sujeito criado no próprio processo da reforma – o assentado – e não do sujeito empírico que o antecede. Um sujeito que não tem uma face coerente e unívoca, ou seja, um sujeito sociológico, e não um sujeito político ideológico da reforma agrária. Um sujeito que nasce de mediações conflitantes, porque existem conflitos decorrentes de diferenças de origem, diferenças de experiência e diferenças de propósitos. Em suma, um novo sujeito, que os próprios agentes de mediação desconhecem. Na concepção de Martins, este novo sujeito, rotulado genericamente como um trabalhador sem-terra não é reconhecido pelos seus tutores em sua profundidade histórica, embora este novo sujeito também não tome iniciativa de criar uma demanda de política agrária, permanecendo submisso à dominação patrimonial e clientelista por parte dos serviços de intervenção e do Estado. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 99 Em suma, para Martins, ser um assentado, ao invés de reforçar a identidade camponesa, pode fragmentá-la. Não obstante a suposição de que a luta pela terra se desenrola em torno de valores e lealdades comunitários, a realidade de acampamentos e assentamentos é conflitiva [...] de uma conflitividade societária demarcando uma situação social em que o comunitário se apresenta com o busca difícil, permeada por tendências desagregadoras [...] A história dos assentamentos se revela uma história de ganhos sociais indiscutíveis, mas também de perdas pelo caminho: os que desistem, os que se agregam sem autenticidade, os que negociam posses e direitos, os que mesmo assentados preferem viver da renda da terra [...] alguns assentamentos [...] mostram tentativas de criar um cimento comunitário, na busca de um certo equilíbrio entre os contrários, na reserva de terras para o uso coletivo, na obrigatoriedade da coparticipação em certas atividades [...] mas aí também surgem crises e corrosões [...] Por não serem comunidades autênticas, essas comunidades residuais tornam-se vulneráveis justamente por estarem abertas ao estranho, na motivação limitada da busca de terra, que não chega a constituir um filtro poderoso de identificação ou de afirmação da identidade. [...] a memória, outra referência identitária, como documento de uma história pessoal compartilhada, também é esfacelada no próprio processo de migração e desenraizamento [...]. (MARTINS; 2003: p. 61 a 63) O sujeito da reforma agrária, para o autor, é diferente do sujeito individualizado do programa do INCRA e diferente do sujeito coletivo que a categoria faz supor. O sujeito da reforma agrária tem uma difusa identidade própria, complexa, nem um pouco política, sendo, sobretudo familística. Esse sujeito tem um núcleo familiar, e de família extensa. Abrange mais de uma geração e de modo algum pode ser pensado como uma família nuclear constituída pelo casal e pelos filhos menores, como muitos agentes de mediação acreditam. Conforme Martins (2003), este sujeito possui uma rede de direitos e deveres referidos às obrigações dos vínculos de sangue e também vínculos de afinidade e do parentesco simbólico. Ele é um ente coletivo, cuja coletividade não coincide com o coletivismo da manipulação ideológica, já que o seu coletivismo é o da família comunitária extensa. Deste modo, assentamento não é base nem condição de identidade, e muito menos uma instituição. Um assentamento é uma intervenção externa no curso de um processo social. Por esse motivo, para Martins (2003), em um assentamento agrário, mesmo as pessoas supostamente voltadas para objetivos comuns, quando têm origens diferentes, não conseguem construir um eixo comum de referência, nem mesmo no CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 100 âmbito das relações de interesses, de ideias de pertencimento, de estar junto ou de ser comunidade. Comunidade é mais do que compartilhar costumes e modos de fazer e pensar. É memória de vínculos de sangue, deveres de obediência e deferência, ritos de lealdade, retribuições, pagamentos simbólicos. (MARTINS, 2003: 71). Foi pensando nas colocações feitas por Martins que voltamos aos escritos de Weber (1994), quando este estabelece sua discussão epistemológica sobre o conceito de Comunidade. Ao contrário de Martins, Weber afirma que é possível se estabelecer uma relação comunitária baseada em interesses comuns. O autor argumenta que “uma relação social denomina-se ‘relação comunitária’ quando e na medida em que a atividade na ação social – no caso particular, ou em média, ou no tipo puro – repousa no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo” (WEBER; 1994, p. 25). Para este autor, a relação comunitária pode apoiar-se em todas as espécies de fundamentos afetivos, emocionais ou tradicionais. Mas como desenvolver esse sentimento de pertencimento se os assentados são geralmente sujeitos sociais distintos, com origens diferenciadas? Como desenvolver um sentimento de pertencer, se a memória é uma memória de conjunto, de relacionamentos, de atividades associadas entre si? Para Weber, existe algo que pode tentar moldar um eixo comum de referência entre esses indivíduos sociais: “a atitude na ação social repousa no ajuste ou numa união de interesses racionalmente motivados (com referência a valores ou fins)” (WEBER; 1994, p. 25). Teríamos então uma atitude ou uma ‘relação comunitária’ baseada em interesses racionalmente motivados por valores ou fins. Assim, mesmo admitindo que possa haver conflitos de interesses, chegamos a pensar, no meio do nosso trabalho de campo, que associação de pequenos agricultores de Canudos seria um elemento catalisador para as ações comunitárias. Afinal, todo assentamento tem uma associação para que a comunidade possa ser beneficiada com projetos de assistência técnica ou recursos financeiros para plantio ou criação de animais. Entretanto, concluímos que, mesmo assim, essa instituição teria limites para moldar a ‘relação comunitária’, pois em trabalho de campo, fomos informados pelos moradores da localidade que a associação de pequenos agricultores de Canudos só servia para ajudá-los a interceder por créditos, mas como estavam todos inadimplentes, ela não tinha sentido e, portanto, participar de suas reuniões era perda de tempo. Foi em CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 101 campo que percebemos que a associação não consegue mobilizar seus associados para ações conjuntas, que não sejam ações relacionas para pedidos de crédito. A associação, atualmente, possui 104 associados (número igual a 2002, quando houve o levantamento do PDSA). O valor da mensalidade da associação é de R$ 2,00, e conforme nos relatou a secretária da associação, nenhum associado mantém sua mensalidade em dia. Da mesma forma, nenhum associado, com exceção dos dirigentes (presidente, vice-presidente e a secretária da associação), declarou que a realização de reuniões locais ou no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barra têm alguma importância. Em Canudos não existem reuniões regulares na associação e, quando há, quase ninguém participa efetivamente. Mesmo sabendo que projetos financiados por órgãos governamentais ou institucionais – como as construções de novas casas ou as criações de matrizes caprinas – só foram implantados na comunidade porque existia uma associação, os moradores assentados de Canudos se recusam a participar das reuniões quando convocados. Presenciamos três tentativas de reuniões. Em todas elas nossos informantes, de forma educada, agradeciam o convite e confirmavam a participação, mas quando o presidente se retirava, alegavam não disporem de tempo a perder com discussões que não levariam a nada. Deste modo, voltamos aos escritos de Martins (2003), acreditando que sua argumentação se encaixa ao que presenciamos nessa comunidade. Existe em Canudos uma crise dos vínculos tradicionais de dominação pessoal e uma crise do regime de morada e de trabalho, que cimenta os relacionamentos. Esta crise revela uma comunidade “suspensa”, uma comunidade construída virtualmente. A desmobilização e a falta de sociabilidade entre esse grupo de assentados de Canudos é uma situação conhecida por todas as pessoas ligadas ao Sindicato de Trabalhadores de Barra. A dificuldade em mobilizá-los foi relatada por A.R.S, A: É. Mas ali tem dado muito trabalho, né? A gente acompanha há muitos anos o pessoal dos Canudos, orientando eles, doutrinando pra ver se eles acompanhava a luta, mas eles nunca quiseram. É um pessoal difícil de se reduzi. Até, até se a Sra. visse, visse o Irailton, que é um técnico, um técnico de Salvador que trabalha mais nós aí, agarrado nesses assentamento, acompanhando. Se a senhora contasse, visse ele, ele ia lhe conta a situação, a dificuldade que tem o povo de Canudos pra se, pra se lutá com ele, né? A: Chegar num acordo pra eles acompanhá o movimento das coisa. São um povo duro. Já o Barro Vermelho é melhor. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 102 Em outro momento da entrevista, as dificuldades de mobilização das pessoas assentadas na comunidade voltam a ser relatadas por nosso entrevistado. A: Orientamos eles pra futuramente eles prevenirem pra requerer esse direito, né? Só que, só que eles num queria direito acompanhar nossa, nossas diretrizes, né? Mas eu num sei quando foi ao certo esse conflitozinho. Num me lembro a data. Daí pra cá começaram mais a aceitar. A gente, a gente quando marcava uma reunião lá, marcava tal dia o sindicato vai com a igreja, que também acompanhava a gente, a FUNDIFRAN, que teve aqui, ajudava muito a gente também. É uma entidade aí, como é que se diz, é que trabalhava em benefício do trabalhador rural, né? A: Aí a gente marcava uma reunião pra ir lá, uma comunidade que tem cento e cinquenta família, tinha, hoje já tem mais, né? Tinha cento e cinquenta família, aparecia dez, doze pessoas. É que num queria nada, né? Mas depois desse conflito pra cá foram se achegando mais. E esse, mas ainda é muito duro. Se a Sra. visse Irailton é que ele ia lhe contá a dificuldade que dá o pessoal ali pra gente reduzi eles, né? Pra, pra reivindicar seus direito de posse de terra, de empréstimo bancário, dessas coisa toda, né? R: Então, desde essa época vocês não conseguem mobilizar as pessoas que moram lá? A: Não, não, diretamente não. Como merece, não. É sempre (SIC). Eles num dão muita atenção à reunião. A gente marca uma reunião, vêm dez, doze pessoas. Quando merecia, vinte, trinta, quarenta ou cinquenta, né? R: Na opinião particular do Sr., por que o Sr. acha que projetos, por exemplo, como a casa de farinha coletiva e a área irrigada não foram pra frente, não deram certo? A: Aí é uma pergunta muito necessária e difícil de responder. É, por uma parte, nosso povo aqui, nessa região, nosso povo é, é, parece que tem a cabeça meio oca. Por exemplo. Num sei nem aplicar o termo que diz, né? (nesse momento o entrevistado dá uma pequena risada). Mas um pessoal que a gente tá vendo, tá trabalhando com esse aqui, lutando em benefício dele; eu começo aqui, gente aqui, no rio Grande, tem associação aí, que o pessoal tá morrendo de fome. Associação tá com dez anos que se luta, vindo recurso e o pessoal num tem nada. Se a Sra. chega lá, num acha um ovo de galinha pra comprá pra comer. Porque o povo é desorganizado. Tem jeito CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 103 desse lá, morrendo de fome, pra dizer que pega um piau pra comer, pega uma casca no mato, tirando um mel de abelha, tirando madeira, lenha pra vender e recebendo recurso acaba tudo, com tudo. O dia que tem um, um recurso chega, um recurso aqui na Barra, eu sinto dizer isso, né? Mas eu tenho que dize a verdade, né? O dia que chega um recurso aqui na Barra, tem gente que vem e é de todo lado. Não é pra, não é pra generalizar não, mas muita gente é. É, chega um recurso, eles vêm aqui receber um dinheirinho, aí desse dia corre um [...] de cerveja aí na, no boteco. Outro, quando vai daqui pra lá, leva um carro velho, outro leva uma caixa de som, outro leva um motor. Ganhou num é pra essa coisa, né? Uma atitude ou uma ‘relação comunitária’ baseada em interesses racionalmente motivados por valores ou fins não foi, segundo o informante, uma ação alcançada por quase nenhuma associação de pequenos agricultores da Barra. O que, particularmente, reforça a orientação, dada por Martins, da impossibilidade de reprodução da identidade camponesa em um assentamento. Mas Canudos ainda tem um agravante: muitas famílias assentadas na localidade são oriundas da área da Usina Hidrelétrica de Sobradinho. São pessoas que saíram antes de 1972/1973, e que não foram reassentadas em outra localidade ou indenizadas, porque não foram diretamente atingidas em suas terras. Mas são indivíduos atingidos indiretamente pela obra, porque também deixaram originalmente o espaço em que moravam. Como afirma Rebouças (1997), um dos fenômenos decorrentes do modo como o deslocamento ou os reassentamentos ocorrem, é a dificuldade do restabelecimento das atividades produtivas em outro ambiente natural, levando à total transformação do modo de vida tradicional dos grupos deslocados. Esse processo resulta na perda de importantes referenciais na sua vida social, ou seja, o modo como as casas estavam distribuídas, as redes sociais de reciprocidade e afinidade ou a organização da vida doméstica. A criação do assentamento de Canudos68 é o resultado de um ato administrativo, implementado por meio de um decreto de desapropriação de uma área rural privada para fins de reforma agrária. Na maioria das vezes, conforme a literatura discutida, a criação de um assentamento é obra, sobretudo, de lutas sociais. Consequentemente, um assentamento expressa uma transição histórica e socialmente muito mais complexa do 68 De uma forma genérica, os assentamentos rurais podem ser definidos como a criação de novas unidades de produção agrícola, por meio de políticas governamentais visando ao reordenamento do uso da terra, em benefício de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra (BERGAMASCO, 1996 apud LOERA 2006: p 33). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 104 que um ato administrativo. Quando se agregam pessoas de origens tão distintas em um processo onde o a propriedade privada da terra e a luta por terra são sobrepostos pelo início de uma nova organização socioeconômica, com a posse da terra por um grupo heterogêneo de famílias de lavradores ou trabalhadores rurais sem-terra, cria-se um outro espaço de conflitos muito mais complexos que os conflitos fundiários. O espaço do assentamento, ao ser implementado por técnicos governamentais, sem conhecimento prévio da realidade na qual irão intervir, é organizado conforme a necessidade eminentemente urbana: a separação do lugar onde se realiza a labuta do trabalho no dia a dia do lugar do descanso após um dia de trabalho. Em geral, um assentamento rural é composto de uma agrovila, com um adensamento das casas, e a demarcação dos lotes familiares é desvinculada territorialmente do local de morada. Na concepção original dos planos de implantação, essa disposição espacial é pensada numa perspectiva que visa idealmente a proporcionar espaços de sociabilidade para moradores, vizinhos e parentes. Mas o que se observa, na prática, é que, ao optarem por essa forma de preparo dos espaços nos assentamentos, os técnicos dos órgãos governamentais acreditam estar facilitando o acesso dos assentados aos equipamentos públicos, como escola, postos de saúde e áreas de lazer; e também acreditam estar propiciando uma maior sociabilidade entre os mesmos, tornando propícia a organização em associações e cooperativas. Com esse arranjo espacial homogeneizador, os técnicos estatais explicitam que não estão atentos para a práxis do mundo camponês. Assim sendo, o que a realidade de Canudos nos apresenta está pautada em uma junção de circunstâncias, que se solidificam na fragmentação da identidade camponesa motivada por conflitos de terras; no impacto do deslocamento de algumas famílias assentadas advindas da região de Sobradinho; na impossibilidade dos assentados de reproduzirem o seu modus vivendi em um espaço artificial; na dificuldade dos moradores em criarem uma relação de pertencimento; na falta de uma memória coletiva; na dificuldade dos grupos domésticos em estabelecer uma ‘relação comunitária’, baseada em interesses racionalmente motivados; e na ausência de uma relação dialógica entre a comunidade e os órgãos governamentais e institucionais. A somatória de todas estas realidades fragmentadas torna Canudos um paradigma para o estudo empírico de como um assentamento rural apresenta matizes complexos de ambiguidades, em meio à junção de ações e lutas populares e das políticas públicas estatais voltadas para o campesinato brasileiro pauperizado. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 105 CAPÍTULO III “A CHEGADA DO ESTRANHO”: DESLOCADOS, IGREJA E ESTADO SOBRADINHO. O homem chega e já desfaz a natureza Tira a gente põe represa, diz que tudo vai mudar O São Francisco lá prá cima da Bahia Diz que dia menos dia vai subir bem devagar E passo a passo vai cumprindo a profecia Do beato que dizia que o sertão ia alagar O sertão vai virar mar Dá no coração O medo que algum dia O mar também vire sertão Vai virar mar Dá no coração O medo que algum dia O mar também vire sertão Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir Debaixo d'água lá se vai a vida inteira Por cima da cachoeira o Gaiola vai sumir Vai ter barragem no salto do Sobradinho E o povo vai se embora com medo de se afogar O sertão vai virar mar Dá no coração O medo que algum dia O mar também vire sertão Vai virar mar Dá no coração O medo que algum dia O mar também vire sertão SÁ E GUARABIRA CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 106 1. “ESTRANHO” MEDIADOR: UMA CATEGORIA DE DESENCONTROS “A Chegada do Estranho” é o título de uma obra de José de Souza Martins (1993), que trata da realidade camponesa no Brasil. O mais inovador nessa obra é o entendimento do termo estranho como uma categoria de análise de situações de desencontros ou de estranhezas aos processos de intervenção em sociedades marginais – camponeses e indígenas. Os processos de intervenção propostos por grandes projetos, como hidrelétricas ou rodovias, têm como pressuposto a remoção parcial ou total dessas populações, e minimizam suas ações por meio de medidas compensatórias – indenizações e relocações. O que o autor discute é exatamente a dificuldade em um processo como esse de reconhecimento do outro como diferente e igual. O estranho trazido para a análise não é o ser dominado, mas é o ser que destrói relações, valores e regras. Trata-se da chegada do empresário, do militar, do fazendeiro, dos jagunços e do Estado. Uma chegada que, como afirma o autor, não introduz nada na vida dessas populações, mas sim lhes tira o que tem de vital – terras e territórios, meios e condições de existência. No fundo, Martins nos chama a atenção para a discussão sobre o impacto das grandes obras, suas consequências e a diferença de equidade entre o estranho e o grupo impactado. Martins (1993) busca mostrar o descompasso entre o desenvolvimento capitalista e a resistência ao desenvolvimento. É a partir dessa contradição que Martins mostra como a luta entre trabalhadores rurais69, posseiros70 e sem-terra71 são lutas distintas. No que se refere aos camponeses, as lutas travadas entre a agricultura itinerante de posse e o desenvolvimento do capital são lutas por reconhecimento de direitos à terra e ao trabalho. Para o camponês, a luta é pela legitimidade de ser ele o ocupante da terra, 69 O trabalhador rural é aquele que é mediado pelo salário. O sentido de suas lutas está em fazer cumprir as leis trabalhistas em seus locais de trabalho, em dar um caráter contratual às suas relações de trabalho. 70 O posseiro luta pela terra. Ele é o camponês que ocupa a terra livremente, tenha ela dono ou não, e não possuem documentos legais de propriedade. O posseiro representa aquele que foi expulso de um lugar, seja por um grileiro, pelo fazendeiro ou pela grande empresa, mas, acima de tudo, é aquele que se recusou a ir para as cidades e não foi absorvido como assalariado. São trabalhadores que têm uma relação precária com a terra, sujeitos à expulsão assim que o proprietário quiser, restando-lhes a alternativa de proletarizarem-se, geralmente como ‘boias-frias’, isto é, como assalariados, sujeitos a trabalhos temporários. A esses trabalhadores, juntam-se meeiros, parceiros, pequenos arrendatários, filhos de pequenos proprietários, cujas terras são insuficientes para famílias extensas, e aqueles trabalhadores que perderam suas terras por conta da construção de barragens e hidrelétricas e receberam indenizações insuficientes para continuar o trabalho familiar. 71 Os sem-terra reivindicam terra e questionam a legalidade da propriedade, mas também melhores salários. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 107 que trabalha e transforma a terra, que tira dali o seu sustento e o da família. Então, para ele não interessa se legalmente a terra não lhe pertence. O problema não é o da exploração, mas da expropriação. De forma antagônica, para o trabalhador assalariado, o conflito principal reside nas relações de produção, no produto do seu trabalho, sendo estes conflitos institucionalizados e permanentes. Outra obra de José de Souza Martins (2000), que trata do estranhamento frente aos mediadores e que nos ajuda a pensar a realidade empírica de Canudos, é “Reforma agrária: o impossível diálogo”. Neste trabalho, o autor expõe a dificuldade de lidar com o conhecimento sobre reforma agrária, criada a partir de mediadores e agências de mediação como a Comissão Pastoral da Terra/CPT, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra/MST e os agentes do Estado. Conforme o autor, apesar desses mediadores parecerem comprometidos na luta pela terra, a luta pela reforma agrária não é a luta pela terra de trabalho. Martins (2000) busca evidenciar que as interpretações dos mediadores frente à realidade que eles intervêm são limitadas. A ação política desses protagonistas não corresponde à compreensão histórica da estrutura da sociedade camponesa. Tanto o Estado, quanto os mediadores principais (CPT e MST) não estão lidando com o tempo histórico dos processos sociais dos diversos campesinatos brasileiros. Ou seja, a discussão da reforma agrária ainda está aprisionada ao passado, a um debate que polariza pontos de vista, seja de um partido político, seja de grupos ou instituições. Não há dúvida de que a CPT e o MST foram as principais organizações responsáveis pela inclusão da questão agrária na agenda política do Estado Brasileiro, mas esses mediadores “empobreceram drasticamente a interlocução essencial à sua própria existência política” (MARTINS, 2000, p. 21). Os mediadores pensam por meio de uma ideologia da classe média urbana e, portanto, possuem “visões de mundo estranhas aos protagonistas do drama agrário” (MARTINS, 2000: p.40). Os conceitos que balizam as suas ações práticas são conceitos como exclusão, trabalho escravo, migrações; conceitos, que na opinião de Martins, limitam as interpretações do mundo rural. A reforma foi gestada fora da realidade vivenciada pelos camponeses e, por conseguinte, decorre de ideologias de esquerda e de intenções partidárias. Assim, os mediadores sindicalistas, a igreja, por meio da CPT, o MST e os militantes políticos restringem sua prática a uma forma da reforma agrária. Essa forma da reforma está vinculada apenas à quantidade de terras que serão desapropriadas e à quantidade de trabalhadores que serão favorecidos com a desapropriação, e não com uma transformação social. Do mesmo modo que critica os CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 108 mediadores da reforma agrária no Brasil, o autor também argumenta que o "chamado sem terra" não é o sujeito histórico e estrutural da reforma agrária. Pois uma das coisas que distingue o sem-terra dos posseiros, embora ambos lutem pela terra, é que a luta do posseiro introduz a legitimidade alternativa da posse, enquanto o sem-terra, na sua prática, não tem como deixar de questionar a legalidade da propriedade. Para demonstrar a impossibilidade desse diálogo, o autor alega que conceitos como terra de trabalho72 e renda da terra73, conceitos que foram assimilados pela Igreja nos anos de 1980, atualmente não são lembrados pela CPT, “o que é bem indicativo de um real distanciamento entre interpretação e experiência” (MARTINS, 2000: p. 210). O objetivo maior de uma Reforma Agrária, dentro do nosso ponto de vista, é vermos a reorganização fundiária como um desafio de políticas sociais, que alcancem as reais necessidades das diferentes categorias de trabalhadores rurais: meeiros, parceiros, posseiros, assalariados temporários ou permanentes. Afinal: Não por acaso, o vocabulário dessas lutas – agrário, camponês, latifúndio, burguesia – é um vocabulário historicamente ausente do mundo rural, palavras que não expressam de fato os conflitos e as polarizações sociais [...] O que quer dizer que a consciência da luta é diversa da consciência de quem quer dirigir a luta (MARTINS, 2000: p. 76). A antropóloga Lygia Sigaud (2005) também aponta para a ausência de uma dimensão histórica, quando afirma: Não existe uma massa de sem-terra ansiando pelo acesso a terra: os movimentos criam a demanda por terra ao convidarem trabalhadores para 72 Quando vinculado à CPT e à CNBB em 1980, Martins elaborou conceitos estratégicos: “terra de trabalho” e “terra de negócio”. Para o autor, são os camponeses expulsos de sua terra, condicionados à condição de posseiros que põem em confronto o que é legitimo e o que é legal, e a legitimidade está em conceber a terra como a terra destinada ao trabalho. A terra de trabalho toca diretamente na formulação jurídica do direito de propriedade, nos interesses das classes dominantes: os proprietários de terra, os industriais, os banqueiros, os grandes comerciantes. Esses conceitos antagônicos (terra de trabalho e terra de negócio) caracterizariam as contradições fundamentais da questão agrária no processo de luta pela terra. O conceito também aparece em estudo realizado por Garcia Jr., intitulado “Terra de trabalho: Trabalho familiar de pequenos produtores” do ano de 1983, mas nesta obra o conceito “terra de trabalho” tem outra concepção. 73 O conceito de renda da terra é um conceito fundamental para explicar a estrutura fundiária no Brasil. A renda da terra é entendida como uma situação em que o capital não opera como capital, mas se transfigura em outra coisa, diversa dele e oposta, embora dominada por ele. Como a propriedade privada da terra, na sociedade capitalista, propicia que se cobre um tributo por sua utilização, o capitalista que compra terra investe seu capital improdutivamente, já que a propriedade da terra não funciona como capital real. Assim podemos pensar que o posseiro representaria um contestador dessa ordem capitalista; pois ele ocupa a terra e não paga renda. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 109 ocupar as fazendas [...] ao aceitarem o convite e se instalarem nos acampamentos, os indivíduos tornam-se sem-terra, porque passam a reivindicar a terra para si (SIGAUD, 2005: p. 270 e 271). Para a autora, o fato de o Estado ser motivado apenas pelos fatores conflituais e pela desapropriação, também é um problema, uma vez que essa prática faz com que o Estado seja direcionado pela ação dos movimentos sociais. Segundo Sigaud (2005), o Estado depende dos movimentos sociais para direcionar as suas ações, por meio das ocupações, dos acampamentos e das fazendas a serem desapropriadas, pois o Estado justifica as desapropriações alegando serem áreas de conflito. Porém, quem cria as áreas conflituais são os movimentos sociais, e o Estado também depende dos movimentos sociais para selecionar os destinatários das terras desapropriadas – indivíduos escolhidos entre os que participaram das ocupações do movimento. Isso significa que são os movimentos sociais que têm fornecido ao Estado as diretrizes em relação à reforma agrária. Apesar da dependência e das limitações, para Martins (2000) o Estado é uma peça fundamental para o acesso a terra, pois a regularização por meio do Estado é uma forma de redistribuição. O problema consiste no desencontro entre o conhecimento da reforma agrária construído pelos mediadores e o conhecimento que estes mesmos mediadores possuem do modus vivendi dos que lutam pela terra – as interpretações das demandas do mundo rural, que acabam por definir os projetos sociais e políticos dos partidos de esquerda e da própria igreja, a partir da visão desses mediadores estranhos, são equivocadas. Os trabalhadores não só têm dificuldades frente aos proprietários e ao Estado, mas, do mesmo modo, têm dificuldades em relação aos partidos políticos e aos mediadores, que também não conseguem traduzir a luta pela terra num projeto político sólido. Consequentemente, os movimentos populares fatalmente estão deixando de ser os aglutinadores exclusivos da luta, porque não evitam o aparelhamento pelos partidos, e assim perdem a luta pela verdadeira reforma agrária a cada dia. Segundo o autor, para que o movimento da reforma agrária acompanhe a consciência social do camponês, é preciso que os projetos das pastorais e dos movimentos sociais, de modo geral, se aproximem das demandas dos trabalhadores rurais e da concepção que eles têm da terra e do trabalho. O camponês, o trabalhador rural, o sem terra acaba sendo vítima de experimentos de mudança social sem qualquer raiz na sua cultura e nos seus horizontes. Experimentos que no geral fracassam a um custo econômico alto CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 110 para a sociedade e a um custo moral enorme para as vítimas [...] o que não raro significa impor-lhes, um projeto que deriva de interesses que não são necessariamente os seus (MARTINS, 2003: p.79 e 80). O problema central da reforma agrária é que os mediadores e o Estado não compreendem a práxis camponesa e suas concepções e ações sociopolíticas. Sendo assim, conforme o próprio autor indica, a ignorância da dinâmica e das possibilidades do mundo camponês e os desencontros de orientação dos agentes de mediação estimulam conflitos internos das facções, os quais foram gerados anteriormente. Ou seja, no interior das grandes categorias (pobre, excluído, sem-terra) já existia uma conflitividade gerada pelo que o autor denominou de débito de sociabilidade, uma vez que, na sua concepção, assentamento não é base nem condição de identidade, mas é uma intervenção externa de um processo social. Por esse motivo, em um assentamento agrário, mesmo que os sujeitos estejam supostamente voltados para objetivos em comum de luta pela terra, ao serem fixados no espaço territorial desejado, dificilmente conseguem construir um eixo comum de referência, de ideia de pertencimento ou de comunidade. Trabalhos como os citados acima nos nortearam na análise sobre a realidade empírica de Canudos, visto que esta comunidade apresenta uma junção de circunstâncias e uma somatória de fatos74 que expõe algumas ambiguidades entre as ações e as políticas públicas estatais O processo não é unilateral, já que sempre haverá reciprocidades e consequências entre os três atores envolvidos: Estado, Mediadores e Assentados. Por isso, não podemos deixar de observar que os grupos atingidos por esses programas lançam contradições e tensões nessa tríade relacional. Como podemos observar em campo, a interferência não se dá apenas nos atos de intervenção física de impactos ambientais e sociais. Estes projetos se materializam através de pessoas diferentes, de origens, de classes, de ideologias distintas e de novas relações sociais, que passam a mediar as relações desse processo de desencontro. 2. UMA ESTRANHA EM CANUDOS 74 Conflitos de terras, modificações na reprodução do seu modus vivendi em um espaço artificial, falta de uma memória coletiva, dificuldade em estabelecer uma ‘relação comunitária’, e ausência de uma relação dialógica entre a comunidade e os órgãos governamentais e institucionais. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 111 Por ter trabalhado com arqueologia de salvamento em áreas de implantação de usinas hidrelétricas75 e ter convivido com pessoas em processo de deslocamento por grandes obras, a reestruturação da vida cotidiana do transplantado sempre foi uma questão que me intrigou. Motivada pela experiência anterior e intrigada pelo trabalho de campo propiciado pelo Projeto “Semiárido: Superação da Pobreza pelo Desenvolvimento Autossustentável”, desenvolvido junto ao NIEAIS e ao NUCLEAR, busco abordar, neste trabalho, os conflitos internos à comunidade de Canudos, que foram reforçados por políticas públicas implementadas pelos agentes mediadores. Observei, nos primeiros contatos com os grupos familiares de Canudos, que os sujeitos assentados nesta localidade possuem uma identidade complexa e, sobretudo possuem uma estrutura familística distinta do campesinato tradicional, fatos estes que estabeleceram para o grupo um forte débito de sociabilidade. Este “gap” estrutural foi potencializado quando este grupo de assentados foi instado a participar de algumas ações proposta por agentes mediadores estranhos, como o INCRA e a ONG Brejos da Barra. Foi nesse ambiente conflitivo que a comunidade suspensa se deixou revelar, e que a problemática da minha pesquisa se concretizou. O trabalho de campo ocorreu nos anos de 2007 a 2010, em viagens realizadas em meses distintos. No ano de 2007 foram realizadas três viagens a campo, em 2008 uma, e em março de 2010 a última incursão. Nos contatos iniciais foram levantadas questões relacionadas à caracterização do modo de vida dos assentados (agrovila, território de plantio, pesca artesanal e produção) e dos projetos implantados na comunidade (casa de farinha coletiva, aprisco e projeto de irrigação) por meio das técnicas de depoimentos76 e leitura de paisagem. Posteriormente, conforme foram surgindo convites para visitas domiciliares, caminhadas pelos territórios de plantio, convites para jantar ou para café da manhã e para participação nas rodas de conversas no período da noite, foram usadas as técnicas de registro fotográfico e iconográfico dos espaços, a observação das atividades cotidianas com o uso do diário de campo, 75 Enquanto prestava serviços no Laboratório de Arqueologia do Museu Antropológico da UFG, no período de 1995 a 2004, realizei serviços técnicos especializados com material cerâmico (arqueologia pré-histórica e histórica) no Projeto de Salvamento Arqueológico Pré-Histórico da UHE, Serra da Mesa/Go, Projeto de Salvamento Arqueológico da UHE de Cana Brava, Projeto de Acompanhamento Arqueológico da PCH Piranhas/Go, Projeto de Levantamento e Resgate Arqueológico da Rodovia TO/020 (trecho: Aparecida do Rio Negro/Palmas) e Projeto de Salvamento Arqueológico da UHE Corumbá. 76 Depoimentos pessoais: ele é encaminhado pelo pesquisador; através dele se dá a busca dos eventos que se inserem no trabalho; ele vai propiciar maior facilidade para encerrar a abordagem; ele dispõe menos do tempo do outro; ele ajuda no recorte dos auxiliares de pesquisa. Sobre esse assunto ver: Queiroz (1991). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 112 entrevistas temáticas e questionário com perguntas fechadas e abertas. Também foram usados, como fonte de pesquisa, documentos oficiais como o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Projeto de Assentamento, a Relação de Beneficiários – ambos fornecidos pelo INCRA –, dados do IBGE e da SEI, assim como documentos da Secretaria de Saúde Municipal (Ficha de Cadastro). Por essa razão, há uma flexibilidade metodológica aparente no decorrer da dissertação, que é a combinação de entrevistas temáticas, recortes de jornais, depoimentos e descrição de atividades pautadas em anotações de campo. Dos moradores da comunidade com os quais interagi em trabalho de campo, nove foram considerados informantes chaves, e foi com eles que colhi informações por meio de entrevistas temáticas. Destes informantes chaves apenas um era uma pessoa externa (ligada ao Sindicato dos Trabalhadores de Barra), e oito eram moradores do assentamento (homens e mulheres que se autodenominavam como lavradores, pescadores, comerciantes e líderes da comunidade). Nas entrevistas, foram privilegiados os diálogos com pessoas de mais idade (entre 40 a 75 anos), que, além de tópicos preestabelecidos, debruçaram-se sobre a história da comunidade, o surgimento do assentamento, a relação entre as famílias assentadas, a herança do patrimônio e sobre os projetos implantados na comunidade. Tivemos acesso à ficha cadastral de todas as unidades domésticas, com dados sobre origem, número de filhos, condições de moradia, uso de fontes de energia, condições de higiene, doenças preponderantes e usos de plantas medicinais. Foram aplicados, como técnica auxiliar, surveys com famílias assentadas e não assentadas77. As questões deste procedimento versavam sobre a situação patrimonial, a renda familiar, a divisão de trabalho, as relações de vizinhança, as propriedade de bens, as opiniões sobre a implantação de projetos e a relação mantida com a associação de trabalhadores rurais e de pesca. 3. DESLOCADOS78: ESTRANHOS, MAS NÃO TÃO ESTRANHOS ASSIM 77 Algumas famílias optaram por conversar conosco sobre os temas, mas se recusaram a participar do questionário, afirmando que não tinham nada para registrar. O registro de informações em papel parecia ser ameaçador. 78 O uso do termo deslocado não significa que esse grupo faça parte dos grupos deslocados compulsoriamente para a borda do lago ou para reassentamentos rurais, pois o grupo de Canudos é composto por famílias que migraram antes ou durante a construção do lago, por acreditarem que não teriam outra saída. Essas famílias não foram atingidas diretamente pela obra, elas não tiveram suas terras submersas pelo lago, ou obtiveram algum tipo de indenização. Essas famílias fazem parte de um percentual que dificilmente entra nas estatísticas das concessionárias – em sua maioria elas sofrem impactos indiretos e migram antes mesmo da obra ser iniciada, ou antes de serem indenizadas, já que acreditam que a falta de um título de propriedade lhes tira esse direito. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 113 O camponês é um produtor, não importando se planta ou se pesca. É um trabalhador (não assalariado) que produz para a manutenção da própria unidade familiar, valendo-se, para isso, de sua unidade de trabalho, do uso de mão de obra familiar ou de uma multiplicidade de estratégias que incluem trabalhos assalariados sazonais e aposentadorias, o que o leva a ter uma maior ou menor campesinidade. Um camponês pode ser denominado por diferentes categorias sociais, que vão de pequenos proprietários e arrendatários, até parceiros, meeiros, colonos e posseiros, a maioria sem terra suficiente para trabalhar. Definindo assim, não é possível pontuar distinções entre as famílias centenariamente moradoras da comunidade de Canudos e as famílias que chegaram à comunidade em décadas posteriores, oriundas, em grande parte, da região de Sobradinho. De acordo com Sigaud (1992), a barragem de Sobradinho (localizada a 50 km a montante de Juazeiro), foi construída entre 1972 e 197879 no governo de Garrastazu Médici. A sua construção foi realizada pela CHESF/Companhia Hidrelétrica do São Francisco, com a finalidade de regular a vazão do rio e otimizar o complexo de Paulo Afonso para a geração de energia, o que implicou na formação de um reservatório de 4.214 km² (350 km² de extensão), e que deslocou mais de 70 mil pessoas, das quais 80% eram camponeses80. O lago atingiu áreas nos municípios de Juazeiro, Sento Sé, Xique-Xique, Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e vários povoados rurais. Segundo Martins-Costa (1989), 62% da população atingida foi reassentada na borda do lago e em áreas rurais das novas sedes municipais reconstruídas após a inundação da vasta área tomada pelo lago81. Essa mudança, segundo a autora, levou a sérias modificações no 79 Em 1972 começaram os trabalhos de topografia e a construção do acampamento de obras. As obras civis e as primeiras indenizações começaram em junho de 1973. Em 1974 começaram a incentivar a retirada para a borda do lago. Pressionada pelo Banco Mundial a prover uma solução coletiva e administrar a reinserção da população no território, a CHESF em 1975 e 1976 concentrou os seus esforços em convencer a população rural a optar pelo Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, projeto organizado pelo INCRA no município de Bom Jesus da Lapa, a 700 km da barragem. Mas como o número de famílias que aderiram ao Projeto de Serra do Ramalho foi baixo, o projeto de reassentamento na borda do lago teve que ser retomado em 1977 e 1978. Sobre o Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, ver Estrela (2004). 80 Sobre esse assunto, ver: Daou (1988); Martins-Costa (1989); Sigaud (1989a); Sigaud (1989b) Sigaud (1992). 81 Segundo dados obtidos em Martins-Costa (MARTINS-COSTA, 1989: 29) das 11.853 famílias desalojadas pelo reservatório: 8.283 famílias permaneceram nas imediações do lago (3.851 famílias nas novas sedes de Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado; 2.655 famílias nos núcleos de reassentamento/povoados; 1.777 na caatinga/famílias que residiam longe do lago, mas foram atingidas); 2.282 famílias optaram por solução própria (1.385 famílias foram para cidades ou povoados a montante ou juzante da barragem com recursos da CHESF e 897 famílias foram para cidades como São Paulo ou CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 114 sistema de produção e reprodução vigente, pois os camponeses, antes localizados em áreas com aquíferos permanentes, foram instalados em núcleos de reassentamento em área de caatinga, recebendo por parte da CHESF lotes agrícolas localizados em solos secos e arenosos, em substituição aos lameiros aos quais estavam acostumados. Esta mudança abrupta tornou-os dependentes dos regimes das chuvas ou de técnicas de captação de água para produzirem, o que gerou a introdução de sistemas de irrigação e de lavouras comerciais (cebola)82. Para os camponeses que moravam na caatinga e em áreas distantes da beira do rio, mas que teriam suas terras parcialmente submersas, houve uma solução mais rápida, pois a CHESF lhes ofereceu apoio financeiro para a construção de casas e para a compra de novas áreas, além de dinheiro para o transporte dos seus bens. Os demais 38% de camponeses, oficialmente reconhecidos como impactados, foram pulverizados para várias regiões do interior da Bahia e outras localidades. Deste modo, a criação do reservatório modificou sobremaneira as condições sociais de reprodução da maioria desses camponeses, uma vez que os levou à perda do território onde estruturavam um sistema de produção regulado pelo rio. Conforme Martins-Costa (1989), muitos camponeses duvidaram do enchimento do reservatório e entenderam esse episódio como uma cheia excepcional, como as grandes cheias que muitos já haviam presenciado e, portanto, tomaram as mesmas medidas adotadas nas grandes cheias quando as águas invadiam os povoados. Outros fatores, além do desconhecimento deste grande evento por parte dos beraderos, contribuíram para a desarticulação dos camponeses atingidos pelas obras das barragens de Sobradinho: a repressão política vivida no período; a falta de conhecimento de situações de deslocamento por parte das redes sociais locais e dos meios de comunicação; a ausência de apoio de parlamentares regionais que se mobilizaram apenas para preservação dos interesses das elites locais; e a falta de documentos que comprovassem legalmente a propriedade da terra por parte dos atingidos. A opção de permanecerem até o último instante perto do rio permitiu que houvesse uma corrida pela Belo Horizonte); 1.026 famílias optaram pelo projeto de Colonização de Serra do Ramalho e 262 famílias tiveram destino ignorado pela CHESF. 82 Segundo Daou (1988), a situação dos atingidos nas sedes municipais foi resolvida pela CHESF, mas a complexidade da situação dos camponeses levou a companhia a solicitar a ajuda do INCRA e da ANCARBA. A proposta apresentada pela ANCARBA em 1974 foi abandonada em função dos custos, pois indicava a utilização de irrigação pelas famílias, que seriam reinstaladas nas proximidades do lago. Mas como o projeto proposto pelo INCRA (Serra do Ramalho) não teve o resultado desejado, o projeto de reassentamento na borda do lago foi retomado e resultou na implantação de 25 núcleos de reassentamento, distribuídos nos municípios de Sento Sé, Casa Nova, Remanso e Juazeiro. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 115 privatização de grandes extensões por parte dos fazendeiros e políticos atraídos pela infraestrutura construída para a obra, o que dificultou, posteriormente, a recolocação de mais famílias na borda do lago. Deste modo, os que foram instalados nas imediações obtiveram, por parte da CHESF, em média, um lote de apenas 10 hectares, dos quais 60% não possuíam ligação com o lago. Por terem tardiamente compreendido o processo de deslocamento compulsório, os camponeses da região de Sobradinho já estavam descapitalizados, pois as indenizações contemplaram apenas as benfeitorias e acabaram sendo consumidas com alimentação, já que no ano de retirada, segundo Sigaud (1992), não houve colheita. A retomada da produção, por conta de todos esses fatores, também sofreu uma modernização compulsória – a adesão ao sistema de irrigação foi necessária. Esta modificação, introduzida pela modernização conservadora, significou a incorporação do crédito fundiário e a adesão a pacotes tecnológicos para culturas comerciais. Como a irrigação era possível apenas em lotes que tinham acesso a água, os lotes distantes do reservatório foram abandonados para o plantio. Após a criação do lago, o panorama local se modificou rapidamente. Na nova região do reservatório de Sobradinho, os camponeses articularam três tipos de agricultura: o plantio praticado na borda do lago, onde se aproveitava a oscilação do reservatório para praticarem algum cultivo de lameiro, embora o terreno não fosse fertilizado como antes e nem tivesse a mesma regularidade de oscilação do nível da água; o plantio irrigado dos terrenos de caatinga, onde cultivavam produtos comercializáveis, como a mandioca; e o plantio nos terrenos de chuva, onde cultivam produtos comercializáveis, como a mamona e alguns produtos de subsistência. Para Sigaud (1992), o cultivo de produtos estritamente comerciais, dependentes do crédito bancário, do uso de motores de irrigação e de insumos agrícolas, significou a subordinação dos camponeses atingidos ao sistema bancário, ao mercado de insumos e ao mercado nacional de produtos comercializáveis. De camponeses livres, tornaram-se agricultores completamente subordinados à lógica do mercado, e vulneráveis aos processos de inadimplência e de perda do patrimônio. O sintoma desta subordinação se revelou na redução da pecuária e da queda brusca da pesca artesanal como atividade de sobrevivência. O sistema de produção descrito em Sobradinho antes da construção da barragem – área de lameiro ou vazante, terra molhada, terra seca ou terrenos de chuva, cultivo de plantas, como a mamona na caatinga, criação de gado na larga, prática da pesca artesanal, relações entre a unidade de produção e de consumo – é similar ao descrito CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 116 anteriormente como sendo o sistema de produção encontrado em Canudos. Não é possível pontuarmos distinções societárias entre o modo de vida dos lavradores e pescadores de Sobradinho, que chegaram posteriormente a Canudos, ao das pessoas que já moravam nessa localidade. Todos eles viviam em situações semelhantes de tempo e espaço, e eram grupos sociais com históricos análogos, e com formas similares de apropriação territorial, mantendo relações semelhantes com a sociedade regional. No entanto, em campo foi possível ver que a diferenciação existe, mesmo quando os grupos familiares salientam que todos os moradores são parentes, em função das alianças por matrimônio. As distinções existem, não só porque houve uma perda de importantes referências na vida social dessas famílias, ou seja, no modo como as casas estavam distribuídas, nas redes sociais de reciprocidade e na afinidade ou na organização da sua vida doméstica, mas porque os deslocados que chegaram a Canudos são sempre consideradas “de fora”, por mais que morem no local há vários anos ou que tenham uma forma similar de sistema de produção e reprodução. Apesar de Canudos ser hoje um assentamento do INCRA, ela era originalmente uma comunidade centenária, e é por meio da superioridade imposta pela ascendência adquirida com a precedência na chegada a um determinado lugar que propomos pensar essa distinção. A sociabilidade distinta entre os grupos familiares ocorre em função de o assentamento ter sido estruturado a partir de grupos “de dentro” e “de fora”. Nas comunidades camponesas, o parentesco é construído pela aliança e pela descendência. São o casamento e a descendência que estabelecem quem é “de dentro” e quem é “de fora”. Ser um “de dentro” significa ter antepassados comuns, segundo a unilinearidade paterna, e ter privilégios por isso. Ser um “de fora” significa ser um desconhecido, um “estranho”. Mesmo que um “de fora” venha a se tornar um parente, por adquirir laços matrimoniais com uma mulher “de dentro”, ele terá filhos considerados “de fora” e nunca poderá contar com os mesmos privilégios de uma pessoa “de dentro”, seja na divisão de territórios, patrimônio ou relações de reciprocidade83. Essa característica das comunidades rurais centenárias é de suma importância, mas em Canudos os moradores têm dificuldades em exteriorizar verbalmente essa categorização, como se houvesse uma tentativa de atenuar essa tensão. De todas as pessoas com as quais conversamos, inicialmente nenhuma delas se considerou um “de fora”, afirmando que todos são parentes. No entanto, várias pessoas são de outras regiões, mas só se veem como um 83 Sobre esse assunto, ver: Woortmann (1990); Cardel (1987; 1992) e Godói (1999). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 117 “de fora” quando são inquiridos sobre o local de nascimento. Geralmente ser um “de fora” se concretiza na fala do “outro”, e não no próprio relato. Todos eles estão na condição de parentes, dado os anos em que as famílias contraem matrimônio entre si. Em situações assim, é esperado que todos se considerem parentes, mesmo que sejam apontados como ciganos pelos seus vizinhos84. Os fragmentos abaixo demonstram a origem de algumas famílias e evidenciam o uso da categoria êmica “de fora”, empregada pelos próprios entrevistados: 1º Segmento: J.R.V.: São todos daqui. Mas, tem, tem. Inclusive eu mesmo sou“de fora”, sou do brejo do São Gonçalo [...]. Aqui tem gente que mora aqui que era sabe da onde? Esse povo aqui tem gente de Pilão Arcado, é gente que veio antigamente, naquelas jangadas. O povo vinha cá umas horas. Aí uns voltaram e outros num voltaram mais e aí então ficaram aqui. Uns acharam bom, outros acharam ruim. É, tem família de outros lugar [...] Casa Nova. Naquela época da barragem aí uns ficaram lá, outros num quiseram ir lá pra onde foi os morador novo. Tem gente deles até aqui nessas grota por aí. Aí o povo ficou espalhado [...] 85 2º Segmento. R: A família da sra. é daqui? Filhos, marido, pai? D.F.S.: É, é. Meu pai, meu pai num é daqui não, nem meu pai nem minha mãe. Meu pai é de Remanso. R: Remanso é região de Sobradinho, não é? D.F.S.: É. Ele encontrô com minha mãe aí na Barra, minha mãe estudava aí na Barra. Ele encontrô com ela aí, aí que casaram. E aí acharam por bem de morarem aqui (risos). Na realidade daqui mesmo somos nós, os filho, né? R: Os filhos. Ele veio pra cá em que época? D.F.S.: Eu nem lembro a época que ele veio pra qui. Tem muito tempo, tem. R: Antes ou depois de construírem a Usina, a barragem de Sobradinho? Porque teve umas pessoas que moravam por lá, que tiveram que sair, não foi? 84 Uma informante que teve toda a sua família nascida e criada em Canudos (pais, esposo, filhos) denominou uma de suas vizinhas como cigana, só para dizer que, ao contrário da moradora ao lado, ela não havia vivido em outro lugar. A vizinha em questão mora na comunidade de Canudos há mais de quinze anos, com esposo e filhos. 85 Entrevista realizada em Canudos, em 2008, com um atravessador e lavrador assentado que atualmente tem 70 anos de idade e mora na localidade há 34 anos. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 118 D.F.S.: Não. Naquela época ele já tinha vindo. Já tá com oitenta e oito, já. Minha mãe era é nova nessa época que ele veio pra qui, tem anos isso. Ele é “de fora”, mas os filhos dele foi tudo da Barra pra cá. 86 Existe também uma distinção de direitos entre os moradores mais velhos e os mais jovens, quanto ao tamanho dos espaços de plantio e a sua localização. Porém, oficialmente, essa distinção não existe, pois os lotes das unidades familiares ainda não foram demarcados pelo INCRA. Assim, o tamanho das roças tem relação com a quantidade de mão de obra familiar de que a família dispõe para manter. Da mesma forma, a localização das roças tem relação com o tempo de moradia na comunidade. Famílias que estão há mais tempo em Canudos possuem roças mais próximas à agrovila, na área que eles denominam de boca da caatinga, mas as famílias que chegaram, depois das suas migrações temporárias por São Paulo, por exemplo, colocaram suas roças mais afastadas da comunidade, em uma região denominada caatinga da serra do Barro Branco. Essa distinção determina o que as pessoas podem criar nos quintais e as dimensões dos espaços de quintais, espaço fundamental para a sobrevivência das unidades familiares. 1º Trecho: M.R.N: As pessoas acham que você não tem direito porque você não é daqui. Aqui não pode ter criação no quintal, uma galinha, uma cabra. O vizinho já está do lado falando. Mas se você não criar, vai até morrer de fome. E plantar, nesta roça de caatinga, é só a mamona mesmo87. 2º Trecho: R: Os quintais aqui são de quantos metros? Eles seguem um padrão? F.X.S.: Não. Desses das casas do INCRA tem um padrão, mas tem outros aí que não tem, é uns mais e outros menos. Das casas que o INCRA constrói, o padrão é um, é 20 metros. Agora, os que são mais antigos, que construíram por conta deles, fez de 50, fez de 100, fez do jeito que pôde88. 86 Entrevista realizada em Canudos em 2010, com uma assentada lavradora e dona de venda. Entrevista realizada em Canudos em 2010 com uma assentada, lavradora que vive em Canudos há 17 anos e tem 47 anos de idade 88 Entrevista realizada em 2008 em Canudos com um assentado lavrador de 69 anos, que mora em Canudos há 35 anos. O assentado já esteve à frente da associação local por duas vezes. 87 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 119 Apesar de haver uma distinção entre “de dentro” e “de fora”, isso não significa que homens e mulheres da comunidade pratiquem a endogamia. Não podemos esquecer que a migração temporária é uma forte estratégia que os grupos domésticos lançam mão para continuarem com o seu sistema de reprodução, o que leva as pessoas “de fora” a serem inseridas na comunidade. O depoimento abaixo é um exemplo desta situação. M.S: Pois é, a mulher do Chico Mineiro mesmo, num é daqui, ela é “de fora”. É do município de Alagoas, né? J.R.V.: É. Esses foi misturado em São Paulo. M.S.: É, foi misturado em São Paulo, aí veio pra qui e mora aqui. Ele é daqui. Ele é filho ali do Chico d´Baixo (um morador “de fora” que está em Canudos há muitos anos). Ele casou com essa mulher lá em São Paulo, mas ela é lá de Alagoas, num é daqui não. 89 Na entrevista que citaremos a seguir, mesmo o entrevistado tendo sido apontado como um “de fora” por outros informantes, ele demonstra que essa não é a sua percepção. Mas, de forma homóloga aos informantes de Norbert Elias e Scotson, na obra “Os Estabelecidos e os Outsiders”, o entrevistado usa da prioridade da chegada ao espaço físico da comunidade para distinguir como “de fora” residentes que nasceram ou moraram na outra margem do rio. R: O Sr. nasceu e cresceu onde? F.X.S.: Eu nasci em Casa Nova. R: Que é na região de Sobradinho, não é? E o Sr. mudou pra cá, quando? F.X.S.: E mudei pra qui em 60, em, em 90, 98 por causa da, foi naquela época da barragem. R: De Sobradinho? F.X.S.: De Sobradinho. Cheguei de lá em Irecê, que foi em 98, num foi em 98, não? P.S. Num foi em 98, não. Em 77, em 76 eu fui pra São Paulo, já deixei vocês aqui. Quando eu fui pra São Paulo, eu já deixei vocês aqui. F.X.S.: Então nós mudamos pra qui em 72, parece. P.S: Em 74, por aí. Em 72 num foi não, em 72 ele pode ter vindo pra Xique-Xique, mas pra qui não. Ele veio em 75, 74. F.X.S.: Em 72 eu saí de lá com tudo. P.S. Pra Xique-Xique, e aqui foi 74 ou 75 [...] R: E as famílias assentadas em Canudos, são de onde? 89 Entrevista realizada em 2008, com lavrador e atravessador da localidade. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 120 F.X.S. São daqui. “De fora” aqui num tem nenhum, “de fora” num tem ninguém aqui. Só tem da comunidade. A não ser os que mudaram ali do outro lado pra qui (lado direito do rio São Francisco). Eh, mais eles já moravam aqui, porque eles são daí, do lado de Xique-Xique. E eles mudaram de Xique-Xique pra qui e ficou aqui mesmo. Mas eles já morava aqui, aí de XiqueXique e, quando foi em 79, eles mudaram pra qui de estadia mesmo. Já vieram de estadia e aqui foi ficando. P.S.: Eles vieram de estadia mesmo, fizeram as casa de pau. F.X.S: É porque eles ficaram dentro do assentamento e aí ficaram no conjunto do assentamento. Como já colocamos acima, Elias (2000), uma sua minuciosa pesquisa sobre uma comunidade interiorana da Inglaterra, investiga o dia a dia de uma vila chamada Winston Parva, com o objetivo de demonstrar como os moradores antigos/estabelecidos se relacionavam com um grupo de moradores que havia chegado posteriormente à comunidade. Os antigos moradores do lugar denominavam o outro grupo de outsiders, ou seja, gente de fora e, por esse motivo, sem direitos plenos na vida social local. E mesmo após vários anos de moradia no local, o grupo que ocupou o território posteriormente continuava sendo visto e tratado pelo primeiro grupo/estabelecidos como sendo estrangeiro e intruso. Como resultado desse comportamento, existiam desigualdades relevantes que marcavam as relações entre os dois grupos. A conclusão das investigações de Elias e Scotson foi que os dois grupos sociais eram muito próximos, como é o caso do assentamento de Canudos, mas que eles haviam criado diferenças, largamente idealizadas, que os dividiam internamente, gerando estereótipos e preconceitos sociais recíprocos90. Esta situação é determinante na sociabilidade de Canudos. O status diferenciado dos grupos que compõem a comunidade não consegue ser amenizado, nem mesmo pelos mediadores mais persistentes. 4. IGREJA: MEDIAÇÃO, PROJETOS COLETIVOS E COMUNITÁRIOS Podemos dizer que a Igreja Católica trouxe para si a responsabilidade de revelar a sofrida luta dos camponeses e dos operários, principalmente durante os anos mais duros do regime militar. Segundo Martins (1984), a Igreja propôs uma mudança 90 Os assentados mais antigos, que possuem menos tempo de associação, chamam os mais velhos de mandões e sabichões; os mais velhos afirmam o tempo todo que os mais jovens não têm interesse no trabalho com a roça e nem interesse em aprender com os mais experientes. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 121 estrutural no período mais duro da história recente do Brasil, e em pleno período militar passou a lutar ao lado dos pobres urbanos e em defesa dos excluídos rurais. A postura da Igreja foi interpretada por Martins (1984) como uma mudança processada no seu interior, pois, diante da repressão policial, militar e política do regime militar, a Igreja se transformou em um refúgio, já que era para lá que se dirigiam os trabalhadores rurais perseguidos e expulsos da terra. A instituição religiosa viu-se, assim, confrontada com a violência do latifúndio e, como resposta, deu respaldo para a criação da Comissão Pastoral da Terra, em 1975. O compromisso inicial desta organização estava baseado em apoiar as iniciativas e as organizações dos trabalhadores, valorizando as lutas em defesa da reforma agrária. Por meio da ideologia cristã que nega o processo da mercantilização fundiária, a CPT ofereceu um apoio institucional importante às lutas dos camponeses, que até então eram secundarizadas pelos partidos políticos. Para Martins, a Igreja resgatou, assim, a função social da terra, que deve ser a fonte de liberdade para todos, e nunca um elemento de dominação nem de privilégios. Neste sentido, para a Igreja Católica, a luta dos trabalhadores rurais não é mais do que o restabelecimento do direito natural e divino da posse e do uso da terra pela lógica do trabalho humano. Conforme a CNBB (1981), a terra de exploração, denominada de terra de negócio, é a terra de que o capital se apropria para crescer continuamente e gerar novos lucros. Entretanto, a visão da Igreja nesse período, respaldada pela ideologia da Teologia da Libertação91, era a de que a função da terra para o trabalhador rural deveria girar em torno de uma lógica mais naturalista, que aparece no direito popular da propriedade familiar e comunitária e no regime de trabalho igualitário, presente em 91 A teologia da libertação é uma corrente teológica que engloba diversas teologias cristãs desenvolvidas no Terceiro Mundo ou nas periferias pobres do Primeiro Mundo a partir dos anos 70 do século XX, baseadas na opção preferencial pelos pobres, contra a pobreza e pela sua libertação. Desenvolveu-se inicialmente na América Latina. Na sua concepção central, a situação de pobreza é denunciada como pecado estrutural, e estas teologias propõem o engajamento político dos cristãos na construção de uma sociedade mais justa e solidária, cujo projeto identifica-se com ideais da esquerda. Uma característica da Teologia da Libertação é considerar o pobre, não um objeto de caridade, mas o sujeito de sua própria libertação. Assim, seus teólogos propõem uma pastoral baseada nas comunidades eclesiais de base, nas quais os cristãos das classes populares se reúnem para articular fé e vida, e juntos se organizam em busca de melhorias de suas condições sociais, através da militância no movimento social ou através da política, tornando-se protagonistas do processo de libertação. Além disto, apresentam as Comunidades Eclesiais de Base como uma nova forma de ser igreja, com forte vivência comunitária, solidária e participativa. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 122 diversas comunidades. Segundo a própria CNBB, a terra deveria ser concebida como propriedade de todos, e os frutos deveriam pertencer à família que nela trabalha. Nesta concepção social, política e religiosa, a terra é uma dádiva de Deus. Ela é um bem natural, que pertence a todos, e não um produto do mercado ou da mercantilização das coisas humanas. Assim sendo, a CNBB assumiu, por meio da CPT, o compromisso pastoral de ajudar a compreender o problema da posse e do uso da terra numa visão cristã, socialmente justa e mais fraterna. De acordo com a Igreja, era na luta e na mobilização desses trabalhadores que residiria o verdadeiro sentido da reforma agrária. Compreender o processo histórico que levou os trabalhadores rurais a lutarem pela terra de trabalho poderia garantir a justiça e o direito ao trabalho para quem nela trabalhasse. Essa postura de parte da Igreja Católica permitiu que os grupos leigos ligados à Igreja e uma parcela da sociedade civil questionassem a própria postura dos partidos de esquerda em relação às lutas camponesas. Por tudo isso, José de Souza Martins, um dos teóricos da sociologia brasileira que mais se debruçou sobre a temática da luta pela terra e da percepção política e religiosa sobre reforma agrária, declara que: A Igreja é o espaço mais adequado para agasalhar relações sociais comunitárias, que se desenvolvem nos momentos e situações de maior tensão, no enfrentamento com grileiros, policiais, jagunços, no enfrentamento com a aliança entre o poder público e o poder privado para expulsar ou para expropriar o trabalhador (MARTINS, 1984: p.17) Entretanto, depois da década de 1990, o discurso da Igreja, na figura da Comissão Pastoral da Terra e dos agentes da Pastoral, começou a deixar claro que os conflitos fundiários eram resultados de um processo político de recrudescimento da concentração fundiária. Numa mudança de estratégia de ação, a atuação desses agentes pastorais passou a se voltar, com maior ênfase, para a luta pela terra via partidos políticos. Houve, assim, uma crescente partidarização e homogeneização das ideias dos agentes sociais integrantes da CPT. Essas posturas político-partidárias levaram o sociólogo e ideólogo José de Souza Martins, que até então assessorava a CPT, a se afastar desta pastoral e a questionar as suas ações como mediadora na luta camponesa pela reforma agrária92. No 92 Apesar das críticas que começam a esboçar em relação à Igreja na década de 1990, Martins não se esquece de ressaltar que se deve à CPT o surgimento de um fato extremamente relevante para a luta em favor da reforma agrária na década de 1980 – o surgimento do MST, um movimento social forte e organizado de luta pela terra, nascido no Sul, no seio da Pastoral da Terra e das comunidades eclesiais de base. Esse movimento social se fortaleceu principalmente a partir de 1994, com as disputas pela terra no CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 123 fundo, o autor temia que o imediatismo dos mediadores reduzisse a luta pela reestruturação fundiária unicamente aos objetivos econômicos mais imediatos. Para Martins (2002) havia uma Pastoral, que se difundiu na década de 1970 e 1980, que era inspirada pela defesa dos direitos humanos, mais do que por qualquer preocupação com políticas de classe ou pela conscientização política e a partidarização dos pobres e das vítimas da adversidade. Nisso, aliás, estava seu grande mérito: o da identificação com os valores universais relativos à condição humana, e não apenas com os particularismos de classe e de partido. Na sua compreensão, a Igreja também caiu na simplificação sociológica acerca do que significam as lutas camponesas e o mundo rural. Neste sentido, sua crítica é contundente: “as ações políticas foram invadidas, contaminadas, aparelhadas e parasitadas por ideólogos e agentes partidários, no geral sem formação acadêmica específica e sem competência teórica apropriada” (MARTINS, 2002, p. 55). A Igreja, a partir desta mudança, se orientava pela partidarização, organizando os trabalhadores rurais nos partidos políticos, com o objetivo principal de conquistar os poderes setorizados do Estado. As diversas necessidades dos trabalhadores rurais foram diluídas numa única categoria genérica de trabalhador, ideologicamente construída em torno do conceito de classe social, derivado de uma noção urbana e econômica. Martins tornou-se um crítico contumaz desta nova visão da entidade, pois na sua visão de ideólogo e sociólogo, a realidade agrária reivindicava outras formas de luta, afinadas com a emergência das várias categorias e dos vários sujeitos sociais do meio rural brasileiro. Com a presença cada vez mais forte do MST e do PT, segundo Martins, houve uma substituição do posseiro pela categoria dos sem-terra. E assim, a luta pela permanência na terra foi suplantada pela luta por desapropriações e assentamentos dos trabalhadores rurais sem-terra. A necessidade não é mais pela posse da terra, mas pela ocupação da terra. Ou seja, “a figura do posseiro foi substituída por outra figura regional, a do pequeno agricultor sem terra da região Sul...Na verdade, foram derrotados os mediadores, que traduziram mal e insuficientemente as necessidades e os projetos implícitos na prática e nas lutas dos trabalhadores. Os trabalhadores foram derrotados também por seus aliados”. (MARTINS, 1994: p.150 e 158) Pontal do Paranapanema, em São Paulo, e também com as consequências do processo de modernização da agricultura brasileira, que excluiu uma grande parcela de trabalhadores rurais, chamados de sem-terra. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 124 Em suas análises referentes à CPT, Martins afirma que os grupos políticos de esquerda impuseram uma visão de mundo que acabou por convencer os agentes da pastoral de que seu trabalho deveria estender-se além dos seus espaços de atuação. Assim, gradualmente, a política partidária passou a definir o sentido quase exclusivo da ação pastoral. O trabalho realizado pelos agentes nas localidades rurais passou a ter o objetivo da transformação política e, assim, a CPT se voltou para a organização de sindicatos e de partidos políticos ligados ao MST, como caminhos para viabilizar a transformação almejada. Deixou de ser prioridade a conscientização política dos trabalhadores rurais, para que estes pudessem garantir seu direito, que era o direito à terra de trabalho. E passou a imperar, de forma absolutista, a concepção de que qualquer mudança mais radical estaria situada na luta partidária. Desta forma, nas novas concepções teóricas que passaram a vigorar, o trabalhador rural tornou-se um trabalhador enquadrado no projeto ideológico de classe social, o que inviabilizava o reconhecimento de diversas categorias de trabalhadores rurais e de suas necessidades diferenciadas. Infelizmente, “predominou o pressuposto da classe social e de que só a classe é politicamente eficaz” (MARTINS, 1994, p.165), o que levou a reforma agrária a ficar limitada a uma política econômica de expropriação dos trabalhadores rurais, de intervenção nos conflitos do campo93. Criou-se uma situação muito diferente daquela voltada à luta pela terra e da luta dos camponeses contra a renda fundiária e da terra de negócio. Em resumo, o camponês ficou diluído na categoria abstrata de trabalhador rural e perdeu sua historicidade única de um grupo social. Como Martins (2000) aponta, o conhecimento dos mediadores e das agências de mediação, como a CPT, frente à realidade em que eles intervêm, é limitado, e a ação política desses protagonistas não corresponde à compreensão histórica da estrutura da sociedade camponesa e nem ao seu modus vivendi. Mediadores que acreditam na ideia de que as comunidades rurais brasileiras e os assentamentos da reforma agrária possuem uma disposição para a vida comunitária e coletiva são comuns. Por essa razão, não é 93 Esses conflitos se agravaram no Brasil, principalmente no processo de modernização da agricultura com a expansão da fronteira agrícola para o Centro-Oeste e a Amazônia brasileira. Portanto, foi na realidade da fronteira que esses interesses conflitantes, os quais colocaram de um lado o camponês em sua luta para resistir às tentativas de expropriação e, de outro lado, o capitalista que invoca o direito para expropriar o camponês, que Martins registrou essas contradições. O que caracteriza a fronteira no Brasil, para o autor, portanto, é a situação persistente de conflito social. Assim, partindo da lógica de resistência do camponês, a luta agrária seria a própria lógica da luta pela terra de trabalho (lugar de afirmação da dignidade humana) contra a terra de negócio (lugar de desumanidades, regido pelo avanço do capital). Uma luta de resistência e de natureza anticapitalista. Sobre esse assunto, ver: Martins (1997). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 125 difícil encontrarmos mediadores como padres da Igreja Católica ou membros de ONGs que formulam projetos coletivos para serem implantados em áreas rurais. O caso de Canudos não foi diferente. Denotando desconhecimento sobre o modo de vida camponês e sobre os conflitos internos da comunidade de Canudos, gerados pelo assentamento de famílias com primazias distintas, a Igreja de Barra propôs e buscou junto aos órgãos competentes o financiamento, no ano de 2000, para a construção de uma casa de farinha coletiva e eletrificada. No entanto, a implantação desse projeto não foi suficiente para sanar o débito de sociabilidade existente no assentamento e para que o trabalho coletivo se concretizasse e reforçasse elementos identitários entre os grupos familiares distintos. Segundo Martins (2003), tudo parece indicar que os agentes mediadores trabalham com a pressuposição de que basta oferecer oportunidades, sobretudo econômicas, para que elas, por si só, promovam as readaptações necessárias. Mas a terra em si, ainda que cercada de apoio, não é suficiente para promover uma revisão de valores e uma reorientação nos relacionamentos, pois os assentamentos são comunidades frágeis. As tentativas de se criar um cimento social por meio da criação de estruturas baseadas em valores comunitários e coletivos geram, quase sempre, crises e corrosões. Por não serem comunidades autênticas, o sentimento comunitário aparece mais no período do acampamento e na euforia das festas. O esforço de coletivização forçada, a partir do “de fora”, e de opções ideológicas dos agentes de mediação, não funciona, e o resultado dessas intervenções tem sido uma sucessão de projetos falidos. Historicamente, como vemos na literatura sobre este assunto, as comunidades rurais assentadas não possuem uma boa adesão aos projetos coletivos94. E em Canudos, pelos vários fatores já listados, a falta de uma cota mínima de sociabilidade e de identidade grupal, além de não gerar laços de solidariedade, também não gerou compromissos sociais com os bens públicos instalados na comunidade. Assim, o projeto da casa de farinha foi sucateado com menos de um ano de uso. 94 Enquanto esperava a hora de ser atendida por um de nossos informantes no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barra, pude presenciar uma conversa entre uma das funcionárias do sindicato e uma assentada associada. De acordo com a funcionária, estava chegando à Barra um projeto para a construção de galpões para a criação de galinhas. O projeto liberaria para cada família o valor de R$ 60.000,00, o que garantiria a construção do galpão e a aquisição de galinhas e ração. O projeto também contemplava apoio técnico durante os primeiros seis meses. Segundo a funcionária, o projeto era bom, afinal ninguém gastaria R$ 60.000,00 para adquirir esses itens. Mas a senhora disse, de forma incisiva, que ela não queria. Seu argumento foi que projetos com muita gente e com gente que não se conhece nunca dão certo. No mais, ela não queria, pois não gostaria de se endividar, porque não daria conta de pagar a dívida. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 126 Assim como Martins, vários autores (RIBEIRO, 1998; SABOURIN, 1999; ESTRELA, 2004; SILVA, 2004, LOERA, 2006) constataram, em suas pesquisas, essa dificuldade de implementação de projetos comunitários e coletivos em comunidades rurais e assentamentos. E em quase todos os casos, as pesquisas apontaram para a falência desses projetos, que às vezes são abandonados ou sequer aceitos pela comunidade. Sabourin (1999), em um artigo onde discute o papel e a apropriação local das ações desta natureza, ilustra a ineficiência e as dificuldades das políticas públicas, quando estas ignoram a lógica da reciprocidade e persistem em propor projetos apenas para o desenvolvimento do intercâmbio mercantil. Conforme este autor relata, nas comunidades rurais nordestinas as quais pesquisou, o processo de implementação de projetos se deram por meio de uma lógica eminentemente assistencialista e clientelista, tanto do lado do Estado, da Igreja e dos Mediadores, quanto do lado das comunidades rurais favorecidas. Após a entrega das cisternas, dos açudes e das casas de farinha para as associações, e para a autogestão das populações beneficiadas, os projetos passaram a ser motivos de conflitos intracomunitários e acabaram sendo abandonados pelos grupos beneficiados. Esse fracasso, para Silva (2004), se dá porque muito desses projetos não correspondem aos interesses e à capacidade dos assentados, o que significa que os projetos são impostos e não são uma reivindicação dessas comunidades. Ribeiro (1998), ao narrar a sua experiência com uma comunidade rural camponesa do Estado do Mato Grosso, apontou que a comunidade por ela pesquisada rechaçou, sem nenhuma possibilidade de renegociação, um projeto de modernização da produção de farinha, levado por técnicos do Estado e da Universidade Federal do Mato Grosso. Estes mediadores, frente à grande demanda do mercado local pela farinha artesanal produzida pelos camponeses, apresentaram uma proposta de modernização voltada para o aumento da produtividade da farinha, que consistia no uso de uma casa eletrificada e na divisão do espaço de trabalho entre várias famílias. Segundo a autora, após tensas negociações entre os moradores e os técnicos, uma casa de farinha eletrificada foi construída e, alguns meses depois, foi abandonada. A questão central, apontada pela autora, foi o desencontro entre a linguagem técnica e produtivista dos mediadores externos, e a linguagem tradicional e simbólica do grupo. Este último associava a boa aceitação da farinha por ele produzida no mercado da Cidade de Cuiabá, não apenas às qualidades produtivas do seu produto, mas também às suas características místicas. Todas as atividades que envolviam a feitura da farinha estavam envoltas no imaginário religioso CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 127 deste campesinato, e era construtor de um ethos diferenciado, que dava um forte elemento identitário contrastivo para este grupo social. Assim, o elemento de modernização implementado especificamente para o aumento da produção da farinha, feriu a ordem cosmológica, na qual este produto estava inserido, e foi totalmente descartado pelo grupo, para a infelicidade e a incompreensão dos técnicos envolvidos no processo. Conforme aponta a autora, existe uma resistência cultural dos grupos frente a mudanças que atropelam o ideário e o imaginário tradicional camponês. Geralmente esses grupos não abandonam, inclusive, as suas práticas corriqueiras, como o uso do tipiti, o forno de torrar ou o controle do seu tempo de trabalho. Isto é algo que os mediadores e os técnicos responsáveis pela implementação de projetos de modernização do sistema produtivo da agricultura familiar dificilmente conseguem compreender Assim como em Mato Grosso, em Canudos o projeto da casa de farinha coletiva e eletrificada, levado pelos agentes da pastoral local, foi implementado e sucateado com menos de um ano de uso. Conforme relatos, primeiramente os moradores da comunidade usavam a casa de farinha do dono das terras, mas, com a criação do assentamento, a Paróquia de Barra acreditou que a construção de uma casa de farinha coletiva seria uma forma de unir os moradores da localidade em um projeto comum. De acordo com entrevistas, a casa de farinha não funcionou logo que foi edificada, porque a energia elétrica ainda não havia chegado à comunidade. No entanto, após a instalação da energia, a casa de farinha funcionou menos de um ano, e o que era para ser um projeto coletivo, tornou-se alvo de conflitos. E assim, na medida em que o morador responsável pela manutenção das máquinas parou de fazer a manutenção dos equipamentos, ninguém da comunidade se prontificou a fazê-la, e as peças se deterioraram por falta manutenção. Na atualidade, todo o maquinário encontra-se sucateado e abandonado. Entretanto, as primeiras peças deterioradas nos foram apresentadas e, apesar de sermos leigos no assunto, as peças não nos pareceram demandar muitos recursos para serem consertadas. O que observamos é que os moradores se recusam a se comprometer com a manutenção do maquinário, da mesma forma que se recusaram a se cotizar para adquirir uma nova peça, de valor irrisório, e assim colocar a casa de farinha em funcionamento. E hoje, as pessoas usam uma casa de farinha com motor a diesel, que pertence a uma das famílias da comunidade (Família CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 128 Sotero)95, e ainda pagam dez litros por cada cinquenta litros produzidos. Quando inquiridos sobre o motivo do término do projeto, houve muitos que não souberam responder, mas as três respostas mais usuais foram: que as pessoas deixaram de plantar mandioca; que a conta de energia elétrica da casa era cara; e que a farinha produzida não prestava, e que não tinha o mesmo sabor e a mesma granulação em função do uso de maquinários, resposta esta que coincide com a dos camponeses estudados por Ribeiro em Mato Grosso. A lógica comunitária, que deveria ser a mola mestra para a socialização e o uso comum da casa de farinha, revelou-se inexistente, para a frustração dos agentes da pastoral que imaginaram e realizaram o projeto. Como afirma o informante F.X.S.: O maquinário da farinha, ela tem um pinhão ali pra funcionar as paleta, né? Aí o pinhão tem que sempre engraxar ele. Aí, o cabra que tomava conta deixou de engraxar, e o bicho resseca se não engraxar. Aí ele rebentou, rebentou moço! Quebrou os dois dentes! Aí quebrou os dois dente e acabou, não roda mais. A gente nunca mais mexeu com isso aí. 96 Foto 4: Foto demonstrativa do estado de depredação do maquinário da Casa de Farinha Coletiva e Eletrificada. (Autora: Rejane Oliveira, 2007) 95 Apenas oito famílias em Canudos continuam produzindo sua própria farinha. Entrevista realizada em 2008, em Canudos, com um assentado lavrador de 69 anos, que mora em Canudos há 35 anos. O assentado já esteve à frente da associação local por duas vezes. 96 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 129 Os moradores de Canudos não se comprometeram com a manutenção do maquinário nem com o conserto da primeira peça inutilizada. A estrutura física da casa de farinha coletiva e eletrificada foi sendo sucateada lentamente, com o passar dos anos, pelos próprios habitantes da comunidade. Segundo os informantes entrevistados, telhas, portas, tijolos e madeiramento foram sendo retirados quase sempre à noite e utilizados pelos próprios moradores em suas propriedades. Nomes não são citados, mas os grupos que constituem as várias facções do assentamento se acusam mutuamente. As fotos abaixo evidenciam a modificação da construção no intervalo de poucos meses de trabalho de campo. Foto 5: Foto da frente da construção da Casa de Farinha Coletiva e Eletrificada, quando ela já apresentava algumas falhas no telhado. (Autora: Rejane Oliveira, 2008) CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 130 Foto 6: Foto da frente da construção da Casa de Farinha Coletiva e Eletrificada quando ela já apresentava falta quase total do telhado, e falta das duas áreas circundantes. (Autora: Rejane Oliveira, 2008) Outro exemplo de rejeição a projetos coletivos em Canudos são as áreas para uso comunal que pertencem à Associação de Pequenos Produtores Rurais de Canudos/APPRC e que se localizam próximas à agrovila. São duas áreas cercadas de arame, onde a primeira, localizada entre a comunidade e a caatinga, e que serviria para um projeto de irrigação97, hoje é utilizada por duas famílias para criarem cabeças de gado; e a segunda, situada entre o assentamento e a margem esquerda do rio, área que também serviria para o plantio de roças, encontra-se igualmente abandonada. Ao serem inquiridos sobre o que havia impedido a implementação do uso dessas áreas para o plantio comunal, as respostas foram unânimes ao apontar uma situação de conflito crescente sobre o gerenciamento das áreas. As poucas famílias que inicialmente aderiram à ideia romperam entre si, argumentando que equipamentos como enxadas ou facões foram roubados, assim como fios de arame, sem que se encontrassem os responsáveis. Por conta dos desgastes criados, a área foi abandonada antes que as plantações crescessem e fossem colhidas. Situações como estas apenas retificam o que foi apontado no texto em outros momentos. A sociabilidade em Canudos, que já é fragilizada pela existência de status 97 Falaremos sobre esse projeto de irrigação adiante. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 131 diferenciados, tem se tornado mais fragmentada em função da adesão a algumas ações coletivas propostas por determinados mediadores. 5. ESTADO: POSTURAS ESTRANHAS AO IMAGINÁRIO CAMPONÊS Para Martins (2000), o Estado é uma instituição fundamental para pensar a desapropriação e a distribuição de terra visando à formação de novos assentamentos. No entanto, a redistribuição é apenas um resultado desse processo, e não o objetivo principal da reforma agrária. Consequentemente, questões fundamentais no debate da reforma agrária, tais como a função social da terra, o poder sobre a terra assegurado pelo Estado ou o processo de ressocialização dos assentados, devem ser discutidos como pontos importantes para a efetivação da reforma. Um outro aspecto a ser considerado, em qualquer programa de reforma agrária, é a avaliação do que se passa no interior e no cotidiano dos assentamentos, pois a reforma agrária não é uma mera proposta de reassentamento de trabalhadores sem-terra ou reconhecimento territorial para grupos de camponeses sem titulação, mas sim um processo complexo, que deve versar também sobre as condições em que os assentamentos e as comunidades camponesas serão inseridos nas políticas públicas voltadas para as várias realidades do mundo rural 98 . Nesta perspectiva, o Estado e os agentes de mediação precisam confrontar seus atos e questionar suas ações, para alargar sua consciência sobre o próprio trabalho de intervenção na realidade social, já que a realidade empírica observada nos mostra que é impossível pensar a reforma agrária com mediações idealizadas. A literatura sobre este tema nos indica algo, que a princípio parecer ser um elemento básico de ação, mas que na prática é completamente ignorado pelos atores envolvidos: para que o movimento da reforma agrária acompanhe a consciência social do camponês, é preciso que o Estado, os mediadores pastorais e os movimentos sociais, de modo geral, se aproximem das demandas dos trabalhadores rurais e da concepção que ele tem de terra e de trabalho. Um dos problemas da reforma agrária é a não apropriação por parte de mediadores e do Estado da práxis camponesa em suas concepções e ações sociopolíticas. Sendo assim, a ignorância da dinâmica e das possibilidades do mundo 98 Os assentamentos também representam um espaço de ressocialização do assentado, local privilegiado para uma categoria que se impõe, que é a do agricultor familiar. É o que assegura, no campo e no interior, a diversificação das oportunidades de trabalho e a modernização, não só econômica, como também das mentalidades e das relações sociais (MARTINS, 2000: p.104). CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 132 camponês e os desencontros de orientação do Estado estimulam conflitos internos das facções internas dos grupos sociais e potencializam uma conflitividade gerada pelo débito de sociabilidade. O Estado e os mediadores precisam compreender que a questão agrária é uma questão suprapartidária, e que é um problema histórico de concentração fundiária e de exclusão em todos os níveis, inclusive exclusão demarcada pelas políticas públicas que não contemplam o ideário camponês. Existe uma crença dos mediadores dos representantes do Estado, de que todos os grupos centenários que vivem em condições difíceis esperam ansiosamente por intervenções institucionais. Em muitos casos, não existe uma preocupação prévia com a incorporação dessas medidas, porque os mediadores acreditam que não haverá resistência frente a projetos que tragam melhorias e, consequentemente, modernização nas relações sociais e de produção. Mas a resistência que Canudos impôs aos vários projetos implantados na comunidade é uma resposta enviesada deste grupo social aos planos elaborados e implantados sem uma relação dialógica. Esta resposta não é apenas uma questão conflitual entre os “de dentro” e os “de fora”, mas também é uma resposta às propostas de mudança de um modo de vida que não quer ser modificado, ou seja, é uma recusa à lógica moderna e capitalista imposta pela racionalização estatal. O que observamos, por meio da nossa pesquisa com a comunidade, é que o papel do Estado foi desastroso em todos os sentidos, segundo a ótica dos informantes. Em primeiro lugar, o Estado, por meio do INCRA, ignorou a existência de uma comunidade camponesa tradicional na área grilada e posteriormente desapropriada. Num segundo momento, independente da existência de famílias camponesas na área, o território foi transformado em um assentamento, e como tal, foi utilizado para assentar várias famílias sem laços de pertencimento entre si. A partir deste momento, o conflito foi instalado e a população local ainda não conseguiu sanar as idiossincrasias que separam as famílias e os indivíduos considerados de dentro e os considerados de fora. Esta intervenção do Estado significou mudanças bruscas em um modo de vida tradicional. Os moradores antigos e os recém-assentados tiveram seus espaços de moradia e trabalho reconfigurados e foram inseridos num processo civilizatório ideologicamente urbano, que pode ser traduzido no processo de aglomeração das casas em agrovila e na diminuição de quintais. A partir deste processo, todas as ações de origem externa, vinculadas às políticas públicas, começaram a ser associadas ao aspecto sombrio da perda da liberdade que o grupo originário imaginava ter tido num passado não muito distante. Assim, o Estado passou a ser relacionado à perda da liberdade, pois CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 133 ser um assentado significava ser um tutelado e ter a área de labor oficialmente demarcada. O simples ato de migrar, característica fundamental do campesinato nordestino, já não era mais possível após a criação do assentamento, pois um assentado não pode se ausentar por longo tempo sem explicações, muito menos morar em outra localidade. Um assentado não pode vender seu lote ou sua casa, o que para muitos significa que perderam a sua autonomia99. Em suma, a chegada do Estado significou a chegada do direito positivo e o esquecimento do direito consuetudinário. De uma hora para outra, o direito costumeiro não escrito, fundado no uso, nos costumes, na prática, no respeito e na teia de reciprocidade social dessas populações centenárias deixou de ser invocado, para dar lugar ao estranho direito da lei escrita. Rebouças (1997) aponta a mesma situação sobre os projetos de reassentamento planejados pelo setor elétrico para as comunidades deslocadas compulsoriamente no Pontal do Paranapanema: No interior de um projeto de reassentamente, onde a própria disposição das residências é imposta e onde existem regras determinadas de conduta sobre o preparo da terra – o cercamento dos pastos, o arrendamento dos lotes – a retomada do modo de vida e mesmo a composição das famílias terão ritmos e características diferenciados. [...] a presença de um órgão estatal no reassentamento intervém de forma decisiva nos mecanismos de obtenção de crédito bancário, nos incentivos ao cultivo de determinados produtos ou nas pressões para o desenvolvimento de associações coletivas (REBOUÇAS, 1997: p. 18) Mudanças como a imposição ao cultivo de determinados produtos, a falta de orientação técnica e a prescrição para obtenção de crédito bancário, relatadas pela autora como uma característica dos assentamentos que pesquisou em São Paulo, também ocorreram em Canudos. Nos trechos das entrevistas a seguir, os próprios moradores retratam a falta de assistência técnica a que estão sujeitos quando aderem a créditos bancários para plantio e a pacotes agrícolas de produtos não plantados por eles usualmente. 1º Trecho: F.A.S: Nos já tivemos aqui um, um projeto, recebemos uns tempo. Agora eu num sei, foi em 2000 ou mais de 2000? Foi em 99, é em 99. Um projeto pra gergelim, um projeto pra plantar gergelim. Fomos beneficiados, é verdade, mas ninguém 99 Essa é a opinião de um de meus informantes. Segundo ele, um assentado é e não é dono de suas coisas, pois ele não tem liberdade de ir e vir ou de dispor de cada uma delas se precisar. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 134 acompanhou. Como nós fizemos no Pro Agro, eles num vieram aqui acompanhá essa lavoura, mas tem essa dívida lá no Banco do Nordeste. Pois então, nós recebemos então a primeira parcela e a segunda parcela. A primeira parcela que nós recebemos foi para o preparo do solo. Já a segunda foi pra o plantio, né? E a terceira era pra colheita, né? Como é que chega na terceira pra colheita, quem num tinha colheita? Num é mesmo? Todo mundo endividado, né? Vendo que a dívida aí, ia só crescer. E eles depois falaram o seguinte: “Já que vocês num tiveram a colheita, num vai ter a colheita, vocês num vai receber pra colher. Então, vamos primeiro a sua lavoura ver direitinho.” Mas que lavoura, num tinha lavoura. Então o Pro Agro veio só pra, o que eles fizeram foi endividá mais. Aí vieram com a terceira parcela pra colher, pra colher o quê, se num tem nada pra colher? Teve uns por aí que é mais experiente, que é o meu caso mesmo. Eu tive safra porque nasceu mamona. E a mamona que nasceu no meio do gergelim eu num tirei, e quando foi na próxima, no inverno, a mamona formou. Formou bem e eu tirei o lucro e me saí. Eu colhi a mamona e não gergelim e paguei. 100 2º Trecho: J.R.V.: Manoel, ontem aquele menino, o Nilson teve aqui. M.S: Povo lá do Banco? J.R.V.: É. Rapaz, lá tem uns projetos bons pra pinhão. Eu disse, Nilson, se é da gente plantar pinhão aqui, vamos plantar mamona. M.S: Ora gente, se a gente fosse plantar era pra plantar pinhão? J.R.V.: É. É. O pinhão dá, mas a mamona dá dez vezes mais. M.S: Ah, num é o quê, moço? É preferível a mamona, né? A mamona este ano, agora que veio dá preço, depois que acabo. M.S: A gente tava vendendo mamona de R$ 30,00. Vendia aqui na porta pro atravessador de R$ 30, 00 e agora tá de R$ 50,00. Já tem uns aí que estão pagando R$ 52,00. 101 Como vemos por meio destes relatos, há um descompasso entre o saber fazer dos camponeses assentados e as políticas desenvolvimentistas dos órgãos estatais encarregados da tutela dos assentamentos rurais. A chegada do Estado em Canudos acarretou várias mudanças na vida dos moradores, mas, dentre elas, a proposta de se criar um plano de desenvolvimento sustentável no assentamento foi a mais destoante. 100 Entrevista realizada em Canudos, em 2010, com assentado e lavrador nascido em Canudos, que atualmente tem 60 anos de idade 101 A proposta de plantarem pinhão tem relação com o incentivo ao bicombustível no ano de 2008. No entanto, o intermediador não se atentou ao fato da região já ter uma larga experiência na plantação de mamona. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 135 Em face de uma proposta sem rumo e sem norte, o Estado, por intermédio do INCRA, utilizou os serviços de uma ONG denominada Distrito Brejos da Barra102, que, por seu lado, é totalmente financiada pela CODEVASF, um órgão estatal. Cabe aqui uma pequena digressão para entendermos esta triangulação. A CODEVASF tem como principal frente de ação o fomento à agricultura irrigada, a partir da qual visa a impulsionar o desenvolvimento da regional, ora destinado à colonização, ora à implantação de empresas capitalistas. Para a implantação dos referidos projetos, a empresa vem requerendo a desapropriação de áreas onde implanta a estrutura necessária ao desenvolvimento da irrigação e as distribui com os seguintes critérios: empresas ou agroindústrias recebem lotes entre 300 e 3.000 ha; pequenos produtores entre 20 e 50 ha em média, e colonos entre 04 e 10 ha – o que descortina uma prática baseada em uma política concentradora de terras. Conforme Sobrinho (2006), na área pertencente ao Vale do São Francisco, o Estado, por meio de empresas como a CODEVASF, vem interferindo no acesso às áreas de irrigação e na produção tradicional de alimentos, incentivando a produção destinada ao comércio por meio da concessão de créditos às comunidades em que as associações de moradores funcionem. Enfim, por meio de uma burocracia kafikaniana, o Estado, eivado por interesses fisiológicos das elites políticas locais, inseriu a comunidade de Canudos nas ações desenvolvimentistas da CODEVASF, sem ter realizado anteriormente nenhuma consulta prévia junto à comunidade. Foi assim que o relatório da ONG Brejos da Barra, além de fazer um levantamento inicial sobre Canudos em 2002, sugeriu projetos para serem implementados na localidade, buscando, a posteriori, mobilizar os moradores sobre os aspectos positivos do associativismo e cooperativismo e procurando incentivar oportunidades de trabalho e renda por intermédio da produção de alimentos baseada na agricultura irrigada. O resultado foi o completo endividamento dos agricultores familiares e o aprofundamento dos conflitos internos na comunidade de Canudos. 102 A entidade Distrito Brejos da Barra é uma ONG financiada pela CODEVASF, criada por várias associações de comunidades brejeiras, ribeirinhos e de sequeiros do município de Barra, com a finalidade de obterem recursos por meio de entidades, como: MEC, EMBRAPA, CODEVASF, Exército Brasileiro e Banco do Brasil. A CODEVASF utiliza, em seus projetos no município da Barra, os serviços de levantamento socioeconômico realizados pela ONG. Entretanto, como é do conhecimento geral, a CODEVASF é uma empresa pública, fundada em 1974, vinculada ao Ministério da Integração Nacional, que promove o desenvolvimento e a revitalização das bacias dos rios São Francisco e Paranaíba. Mas na atualidade, várias das suas ações são terceirizadas e realizadas por organizações não governamentais Atualmente, ela atua em projetos de vários setores que são intermediados por ONGs locais, regionais e nacionais. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 136 A tabela abaixo mostra, em números, a desarticulação e o desperdício de verbas públicas proporcionados pela desarticulação entre as políticas públicas e as ações estatais na sua práxis. TABELA 3 - Projetos propostos para a coletividade pela ONG Brejos da Barra Intervenções Programadas Implantado (S/N) Ampliação da rede de água para abastecimento humano Sim Aquisição de 2 reprodutores e 30 matrizes suínos Não Aquisição de 26 reprodutores caprinos/ovinos Não Aquisição de 32 frangos caipiras de boa linhagem Não Aquisição de 4 reprodutores bovinos Não Aquisição de ambulância Não Aquisição de equipamentos de corte e costura Não Aquisição de equipamentos para a padaria Não Aquisição de equipamentos para a casa de farinha Não Aquisição de equipamentos para a fábrica de doces Não Aquisição de equipamentos para pesca extrativista Não Aquisição de equipamentos para a fábrica de sabão Não Aquisição de equipamentos para irrigação das frutas, capineira e horta Sim Aquisição de equipamentos para o gabinete odontológico Não Aquisição de equipamentos para posto de saúde Não Aquisição de trator agrícola de pneus com implementos Sim Aquisição de veículo para transporte de carga Não Aquisição 312 galinhas de bom padrão racial Não Desmatamento para plantio de lavoura irrigada Sim Construção de 60 Moradias Sim Construção de aguadas Não Construção de Fábrica de Sabão Não Construção de Armazém Comunitário Não Construção de Padaria Não Construção de Posto de Saúde e Gabinete Odontológico Não Construção de Fábrica de Doces Não Construção de Centro Comunitário e Creche Não Construção de Quadra de Esportes Não Construção de Prédio Escolar Sim CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Construção de Igreja Sim Construção de unidade de beneficiamento de mandioca Não Construção de unidade fabril de corte e costura Não Construções de cercas perimetrais e divisórias Sim Formação de 2 ha com horta comunitária Não Formação de 8 ha com capineira para corte irrigada Não Implantação de projeto de apicultura Não Perfuração e instalação de 1 poço tubular; Não Plantio de 60 ha com frutícolas irrigadas, manga, banana e caju Não 137 Dos projetos listados, apenas oito foram iniciados, e o desdobramento de cada um deles envolveu instituições e agentes distintos e recursos provenientes de orçamentos diferenciados (federal, estadual e municipal). Todos foram implantados nos anos de 2003 e 2004, por meio da associação dos moradores de Canudos, fundada com o apoio do sindicato rural local. A distribuição e alocação dos recursos foram pulverizados em várias ações. A aquisição de um trator agrícola com implementos e o desmatamento para plantio de lavoura irrigada foram projetos que tiveram como fonte os recursos orçamentários do governo federal (INCRA, PRONAF)103. A construção de um novo prédio escolar teve como recurso o orçamento do governo municipal, mas a construção da igreja de Santo Antônio foi feita pela comunidade, com recursos da prefeitura de Barra. Já a construção de cercas perimetrais e divisórias foi feita com recursos do governo federal. A ampliação da rede de água para abastecimento humano está sendo feita de forma gradativa e com recursos particulares, e as famílias são responsáveis pelo pagamento da ligação de água. A construção de moradias foi e ainda é feita nos dias de hoje com recursos do governo federal por meio do INCRA e da CAR104. Um projeto para 103 No assentamento houve investimentos, por parte do INCRA, com o Crédito Implantação e o Crédito alimentação, que se destina à aquisição de gêneros alimentícios; o Crédito Fomento, que se destina à aquisição de ferramentas, plantel de animais, e o Crédito Habitação, destinado à construção da moradia das famílias assentadas. Por intermédio da CAR, os moradores tiveram acesso a Programas Operacionais (denominados no assentamento por P.O.) que viabilizaram a construção de residências. Também houve crédito por parte do PRONAF A, para a estruturação dos lotes dos assentados, do PRONAF Complementar, para a recuperação das unidades familiares dos agricultores assentados, e do PRONAF B, para investimento e custeio da mamona com verba do Programa Nacional do Biodiesel. Entretanto, apesar de todos estes créditos, nenhum projeto teve continuidade. 104 CAR: Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional é uma empresa pública vinculada à Secretaria do Desenvolvimento e Integração Regional do Estado da Bahia/SEDIR. Ela coordena programas de combate à pobreza rural; avalia e acompanha a aplicação dos recursos e supervisiona a execução dos projetos. Sobre esse assunto ver: <www.car.ba.gov.br/institucional.asp> Acesso em: 23 de junho de 2010. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 138 aquisição de equipamentos para irrigação em área comunal foi encaminhado, e a compra de equipamentos como bomba de irrigação e canos foi feita via orçamento do governo federal, intermediado pela CODEVASF. A área de irrigação, como já pontuamos anteriormente, pertence à associação, e tinha o objetivo de implementar uma plantação comunal de produtos como mandioca e feijão. Mas esse projeto comunal, como a maioria dos demais, descritos acima, não chegou a funcionar. Dos equipamentos adquiridos, resta a bomba na sede da associação e alguns canos, porém a maioria do material adquirido foi destruído, e o trator encontra-se em estado de deteriorização no pátio da associação, que se tornou um prédio semidestruído. Nos trechos das entrevistas que seguem, os informantes falam do descaso da comunidade em relação à aquisição dos materiais e da falta de interesse dos grupos domésticos em se organizarem para implementarem projetos de uso comum. 1º Trecho: F.X.S. Aqui a gente comprou..., a gente tem o kit de irrigação. Mas quando foi pra botar pra funcionar, a energia não veio, e quando a energia veio chegar, o povo tava tudo desequilibrado ninguém cuidou disso mais. Ninguém cuidou mais disso, aí parou e parou mesmo. O material tá tudo aí guardado. Aí ficou tudo parado por causa disso, no tempo não tinha energia, quando o kit chegô, não tinha energia, e quando chegô a energia, o kit já tava [...]. O povo já tava desgostoso. Aí num quiseram mais fazer. P.S.: A proposta do projeto acabou. F.X.S.: São duas áreas boas danada pra irrigação. Tem um terreno desse lado aqui (em direção à caatinga) e outro desse lado aqui (em direção ao rio). Tudo próprio pra irrigar. E desse lado de cá, ainda é mais perto, porque num vai 50 metros, com 50 metros de cano joga água em todo canto. R: E iriam irrigar para plantar o quê? F.X.S.: É mandioca, é feijão, é milho. É o que quisesse plantá. R: E como as pessoas iam ter acesso a esse terreno? F.X.S.: Não, lá é o seguinte: podia plantar coletivo. A gente ia fazer. O projeto era pra gente plantar coletivo. Inclusive foi roçado todo como um terreno coletivo e ia plantar também coletivo. Depois de plantar, depois que tivesse a coisa, tinha como exportar, e aí dividia o que desse. Mas o povo quietaram. Num quiseram. Porque até hoje lá tá cercado com nove fios de arame, só tá dependendo do interesse em trabalhar, mas o povo não quer. 105 105 Entrevista realizada em Canudos em 2010. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 139 2º Trecho: F.A.S.: Tudo que nós temos aqui foi do INCRA. É ideia é do INCRA, com a FETAG e a CAR. M.R.N: Olhe, olhe só, mas essas coisa que veio, na época o pessoal ficaram, sei lá, com a cabeça assim, uns falava uma coisa outros dizia outra coisa. Mas coisa tudo que veio (falando do kit de irrigação) foi um grande desperdício. Tá tudo aí, ó. F.A.S.: Mas é uma questão do povo... R: Nunca funcionou? F.A.S: Olhe, aqui já construiu uma casa de farinha. A casa de farinha tá aí? Acabou. Recebemos bomba pra irrigar, energia e tá tudo aí, tudo por aí. Uma tubulação daqui pra mais de seis km. Tubulação pra jogar água lá pra criatório. A adutora tá aí. Uma adutora hoje num tá brincano, né não? E essa adutora ficou aí desperdiçada [...]. É de dar dó, porque era um dos meus interesses que eu tinha aqui era de trabalhar de irrigação. E sabe por quê? Irrigação, você tendo uma equipe pra irrigá, naquele dia em diante, você tendo a coragem, acabou a dificuldade. Porque de tudo você tem. Você tem da verdura, a fruta, nós temos de tudo. Temos feijão, temos arroz, a mandioca pra fazer a farinha e pra comer cozida, temos maxixe, temos a batata, o melão, a melancia, tem a abóbora. [...] Acho que era uns daqui de mais interesse da gente, era uma adutora, como nós temos a adutora aí. Mas só temos a adutora. Temos área, duas áreas boa pra irriga [...] R: E porque não funcionou se tinha o projeto, se tinha a área? Porque o mais caro é esse tipo de material, não é? Mas vocês também já tinham. F.A.S.: É o que eu quero dizer pra Sra. Foi só falta de união dos grupos. Entendeu? Faltou união [...] A Sra. vem aqui hoje e encontra eu de boa vontade, um grupo de boa vontade, vamos dizer. Encontra aqui um grupo de 20 homens e diz: esse é o grupo que vai tentá reação com um projeto aqui com a gente. A Sra., quando vem de outra vez e encontra doze, num tem mais grupo, porque um pouco já foi embora, a Sra. já vai achando um pouco a coisa fraca, né? Quando a Sra. vem da outra vez e diz: cadê meu pessoal? E aparece cinco, a comunidade num tá de acordo a receber aquele projeto, tá? R: Sim, não tá. F.A.S. E foi assim, e foi assim que a coisa foi indo só pra trás, para trás. No meu caso, eu mesmo só encarava a irrigação com umas cinco ou seis pessoas que tinham aqui que eram homem de garra. A gente sabia que era homem de garra com irrigação. Os outros eram marmelada. Aí, quando esses se bandiou também, eu tirei meu corpo fora, porque estava doente mesmo, num tinha como encarar sozinho. Eu sei que o que contribuiu pra isso foi a comunidade. E hoje estamos passando por uma crise, trancados aqui dentro. Aqui está tendo crise de fome. 106 106 Entrevista realizada em Canudos, com um casal de lavradores de 60 e 47 anos. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 140 Antes dos projetos sugeridos pelo Plano de Desenvolvimento Sustentável, o INCRA já havia disponibilizado crédito para a implantação do assentamento através de projetos como: o Fundo de Apoio (R$ 1.025,00 para construção de cerca e gastos com ligações de energia elétrica); o Fundo de Emergência (R$ 1.000,00 para construção de cerca, centro comunitário, desmatamento de 35 ha e a reforma da casa de farinha); Habitação (R$ 2.500,00 por família para a construção de moradias); e Cesta Básica (R$ 400,00 por família). Nesse período, segundo o levantamento do Plano de Desenvolvimento, muitas famílias já possuíam uma inadimplência de R$ 7.800,00, correspondente aos primeiros projetos instalados na comunidade, por não terem aplicado os recursos no que havia sido acordado. A inadimplência das famílias em Canudos, conforme informações dadas pelos moradores, somente aumentou, visto que, depois de algum abatimento nos primeiros valores disponibilizados, um novo projeto coletivo foi levado para Canudos, e novamente não trouxe resultados positivos. Após os projetos mencionados acima, os moradores de Canudos aderiram, por meio do apoio do EBDA107, a um Projeto de Matrizes Caprinas, usando uma linha de crédito do PRONAF, voltada para a agricultura familiar. Foram R$ 9.500,00 por família, para a aquisição de bovinos e caprinos, construção de cercas e formação de pastagem. Segundo informantes, os técnicos do EBDA da Barra, por meio de técnicos agrícolas do Estado de Goiás, repassaram aos moradores de Canudos matrizes caprinas doentes. Foram comprados 31 matrizes, 1 reprodutor e vários lotes de arame para cada unidade familiar. Com a morte das matrizes, a falta de apoio técnico e, consequentemente, o não pagamento da dívida, os moradores que aderiram ao projeto ficaram inadimplentes. Esse projeto de matrizes caprinas, que visava ao uso de um aprisco coletivo, hoje completamente destruído, causou um trauma grande na comunidade. Hoje, a maioria dos moradores não suporta a ideia de voltarem a criar cabras ou bodes. De todas as famílias que visitamos em Canudos, apenas uma tem uma pequena criação de seis animais, e que não são provenientes do lote intermediado pela EDBA. 107 EDBA: Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola, uma empresa estadual de assistência técnica e extensão rural, que tem o papel de estimular, animar e apoiar iniciativas de desenvolvimento rural sustentável, que envolvam atividades agrícolas e não agrícolas. Sobre esse assunto ver: <www.ebda.ba.gov.br> Acesso em: 4 de setembro de 2010. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 141 F.A.S: Foi gente ficando pendurado... aqui tá pendurado. Recebemos aqui um bucado de investimento [...] criação aqui nós recebemos 31 matrizes e que hoje num encontra nem os ossos, nem o cadáver num tem aí. Um colega meu que trabalha, ele é agrônomo, que trabalha na área de saber o que é a criação, né? Me disse: “Essa criação tem que saber olhar, Chico. Essa criação, ela tem que ficar fora do pasto que ela vai conviver 48 horas, é daí pra mais”. Que é quando elas deixam as fezes fora do pasto que ela vai conviver, né? Que aqueles micróbios já fica do lado de cá. Não, quando chegou aqui, eu falei tudo direitinho aqui e o próprio presidente foi contrário, foi contra. E pegou o que o EBDA queria. Esse EBDA aqui da Barra só quis jogar esse monte de espinho aqui pra nós e num podemos nem abraçar, entendeu? Disseram: “Ah, mais essa criação já vem três dias de lá pra cá dentro do carro.” Mas essa criação já vem munida do que num presta, num é não? Ficou por isso mesmo. O vendedor veio aqui, explicou errado [...] e o que aconteceu? Hoje aqui, o pequeno agricultor, como nós somos aqui, coitado, ele tá devendo R$ 9.500, 00, e vai pagar de que maneira? Olha, aqui tem pessoas que recebeu arame, criação e ainda recebeu crédito pra outras coisas, e num tem uma galinha, num tem um álcool pra passar num ferimento do corpo dele. Como é que paga R$ 9.500, 00? Nós temos condições de pagar? Num tem. Esta inadimplência desarticulou mais ainda as relações sociais de Canudos internamente, e maculou sua imagem externamente. Canudos é conhecida na região como a comunidade “problemática”. E, na realidade, ela realmente o é. Entretanto, como apontamos, seus problemas são históricos e estruturais, mas não é desta forma que esta realidade é pensada localmente. F.A.S: A gente tá vivendo aqui por viver. Impressionado e preocupado pelas dívidas. É brincadeira? Quem devia R$ 100,00 reais pra passar a dever hoje R$ 9.500,00, quem não se preocupa? Só não se preocupa aquele que nunca se preocupou com nada. A gente vai hoje na casa do comércio aí na Barra, na casa de móveis e outras casa aí, pra comprar fiado, não compra. Porque num temos crédito pra comprar. Porque na primeira oportunidade pra ver a gente, ele pede um documento, pede o título da gente, ele vai lá e vê a situação – estamos devendo essa quantia. Num é só num banco, não. É no Banco do Brasil e no Banco do Nordeste. Aí lá, se você quiser comprar uma colher fiado, num dá, num tem condição de comprar. Tem como dizer pra Sra. que alguém nessa comunidade tá vivendo bem? Eu tenho meu irmão aqui, ó. Ele foi comprar essas coisa, um, um guarda-roupa. Um guarda-roupinha pra num tá CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 142 enchendo a roupa de poeira. Lá na loja ele num comprou, por quê? Porque quando foram ver como é que tava ele, ele tava dependurado, ele num pode comprar fiado em canto nenhum. 108 Esta fala é reveladora da situação de apartamento que os próprios grupos familiares de Canudos têm com relação à sua realidade. Como já colocamos, o déficit de sociabilidade deste grupo é de tal ordem, que se torna impossível para os seus membros reconstruírem vínculos de pertencimentos característicos de comunidades rurais. A tentativa de incentivar o associativismo na comunidade de Canudos sempre existiu. Mesmo antes do plano de desenvolvimento da CODEVASF propor o associativismo como uma solução para o estado de pobreza em que a comunidade se encontrava, Canudos já havia fundado uma associação. A Associação de Pequenos Produtores Rurais de Canudos/APPRC foi fundada em abril de 1996109 e, segundo informações, a associação teve, inicialmente, 65 famílias associadas. Os ex-presidentes da associação são unânimes em afirmar que, quando havia menos associados, as reuniões eram mais produtivas, pois havia menos discussão entre os grupos familiares. Hoje, não existem reuniões regulares e ninguém participa efetivamente da associação. Não existe a mínima mobilização por parte dos associados e apenas o presidente, o vicepresidente e a secretária da associação falam sobre a importância da associação para a comunidade local. Apenas estes atores sociais ainda acreditam que as reuniões locais, ou as realizadas junto ao sindicato dos trabalhadores rurais de Barra, podem trazer novos projetos que modificarão a realidade local. Os demais membros não participam das convocações sob a alegação de que a associação não resolve seus problemas de inadimplência e não traz bons projetos para a comunidade110. Segundo eles, existe muita reunião e nenhuma medida concreta. Os moradores assentados de Canudos se recusam atualmente a participarem de qualquer reunião que a associação convoque. Durante o nosso trabalho de campo, presenciamos a tentativa de pelo menos três reuniões em anos distintos, sobre temas variados – inadimplência, conserto de implementos agrícolas, 108 Trechos de entrevista realizada em 2010. A associação foi fundada dois anos antes da criação do assentamento pelo INCRA, o que demonstra uma mobilização anterior dos moradores para a implantação de uma política pública de assentamento. Ela começou com 65 associados e hoje possui 104 associados (o número de famílias assentadas). 110 Um informante alegou, durante a sua entrevista, que o projeto da casa de farinha coletiva não havia dado certo porque a farinha que havia ficado de ser dividida entre todos os que plantaram mandioca e trabalharam na sua confecção, não foi repartida de modo igualitário. O mesmo teria acontecido com a primeira plantação de milho em área coletiva. 109 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 143 construção de novas moradias – e em nenhum dos casos houve a presença de moradores, com exceção dos dirigentes. Como vemos, existe um caráter incisivo e autoritário por parte do Estado, retratado nas intervenções físicas do espaço e na forma com que as agências que o representam elaboram seus projetos de intervenção e de desenvolvimento, mas não podemos afirmar que a população atingida permanece totalmente inerte diante dos acontecimentos. Existe uma reação frente aos acontecimentos que se constitui a partir da sua estrutura social. Há princípios da organização social camponesa que são acionados pelo grupo e que passam a ser utilizados, direcionando suas opções de reprodução social. Ou seja, suas escolhas não estão apenas subordinadas à dinâmica das agências ou dos mediadores do Estado, pois o grupo social de Canudos possui uma liberdade relativa, pautada em sua própria organização. Essa liberdade, pautada na organização social camponesa, está presente nas famílias que aderiram a alguns projetos, mas investiram no plantio de roças de lameiro e de caatinga, ou nas famílias que optaram por não aderir a projeto algum, e hoje não estão inadimplentes. Conforme muitos alegaram: “Eu não tenho financiamento pra pagar. Depois não tem como pagar, vai dever?” Entretanto, como estas opções não estão pautadas na racionalidade produtivista exigida pela sociedade dominante, e como muitas estratégias familiares se afastam inclusive de uma ética camponesa, já que a comunidade perdeu seus vínculos de pertencimento em função da intervenção sofrida por meio da implantação do assentamento desvinculado das demandas sociais locais, a comunidade de Canudos vem sofrendo um forte processo de desarticulação interna, que traz graves problemas de ordem social, cultural e econômica para os seus membros. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 144 CAPÍTULO IV ESTRATÉGIAS RESISTÊNCIA DE SOBREVIVÊNCIA, POLÍTICAS PÚBLICAS E MARTELO CHAPADEIRO [...] beleza igual já não se cria Onde o sol ama a terra todo dia Coroné no garimpo fez chacina. Uns pescado, outros garimpando a sina Nessa terra dotada de magia Veja os versos da minha cantaria Exaltando a Chapada do Sertão As estrela clareiam a escuridão Espantando da estrada a livuzia. Redenção é a terra mamoneira Dá feijão, milho, abóbora e melancia Dá vaqueiro o aboio e a valentia Movimento é sagrado em suas feiras. Tem de tudo, da agulha a esteira Transformada a terra em sesmaria Quando chove para o povo é alegria Pois a Terra pro homem é produção Vem a safra fartura do Sertão [...] Tradição de avós no leito aberto Revolvendo a grandeza desse chão Preservando o costume e a tradição [...] Não há reino do céu que se redime Capivara, tatu que mim ilumine Pra que eu passa entender essa matilha E não ter que jamais virar uma ilha Nem que a vida da terra se fulmine [...] Natureza, mãe terna e suprema Desmataram todo o leito do rio Num crime hediondo e feroz E pra essa realidade atroz Vem um longo período de estio. Lá na serra toda verde sumiu Numa inconteste revolta a natureza Que vingando com toda inteireza Machado assassino, o serrotão Os mandantes, o ladino e o ladrão Que ousou definhar nossa beleza [...] A força e o trabalho da enxada. Simboliza o valor da catingueira Uma tropa que varando o Sertão; Numa noite de lua e clarão Esculpindo a beleza chapadeira. IVAN SOARES CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 145 1. DESAPROPRIAÇÃO, REGIME DE PROPRIEDADE E ESTRÁTEGIAS A desapropriação de terras para a reforma agrária normalmente resulta em transformações nos regimes de propriedade, estabelecidos tanto pela política pública que regulamenta a instalação de um projeto de assentamento, quanto pelas práticas das famílias assentadas e de seus mediadores. Para o Estado, a passagem da terra para o campesinato se dá de uma forma enviesada: da propriedade privada à desapropriação, a terra transforma-se em um território que combina regime de usufruto de uso familiar, propriedade coletiva e propriedade estatal, já que a terra desapropriada é formalmente propriedade do governo federal, sob a responsabilidade do INCRA, que pode transformá-la em reserva legal, áreas de preservação permanente, reservas extrativistas, pastagens coletivas, assentamentos rurais, comunidades indígenas, comunidades quilombolas, fundos e feixes de pastos, entre outras formas de ocupação, com direitos e deveres repassados às famílias ocupantes. Mas, ao anular os direitos da apropriação privada das terras, os processos de desapropriação de terras instalam apenas formalmente a regulação estatal, combinada com a regulação coletiva e familiar, pois a dificuldade do INCRA em exercer a regulação efetiva e a indefinição (que, no caso de Canudos, já dura 12 anos) sobre os beneficiados e os lotes que vão ocupar, cria uma situação que, na prática, se aproxima do acesso livre. Ou seja, no assentamento de Canudos, a ausência de um regime de propriedade efetiva leva as famílias assentadas ao acesso livre ao território ainda não demarcado, mas regulamentado. Com a ausência da regulação formal do Estado, o acesso livre, gerado por costume e prioridade da chegada ao lugar, gera discriminação, conflito velado e, consequentemente, o uso indiscriminado de determinados recursos e a degradação ambiental. Podemos citar como exemplo o uso da jurema (Piptadenia stipulacea) como matriz energética ou da carnaúba (Copernicia cerífera ou Copernicia brunífera) para a edificação de currais, quintais e residências. 111 As causas desses conflitos podem ser associadas não só ao tempo de vivência na localidade e a origem das famílias assentadas, mas também à incerteza dos direitos de propriedade existentes nos assentamento que ainda não sofreram uma regulação efetiva. Essa situação seria, em parte, alterada, se tivéssemos medidas como o parcelamento 111 Aproximadamente uma família com quatro pessoas utiliza dois metros cúbicos de lenha por mês. Assim, tudo indica que, se a exploração atual for mantida, essa forma de exploração implicará na degradação das áreas de preservação. As famílias costumam também retirar carnaúba da área de reserva ambiental. O assentamento de Canudos e o de Barro Vermelho foram instalados em uma área de 4.997,22 hectares, dos quais 391,82 ha eram para reserva ambiental; 850,69 ha para preservação permanente. Nenhum destes espaços foram demarcados e o território é ocupado de forma desregrada pelos assentados. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 146 definitivo das áreas destinadas a cada unidade familiar e a elaboração de um plano de manejo adequado às suas necessidades. Por outro lado, ressaltamos que compartilhamos da ideia de rearticulação negativa formulada por Nunes (2008), em pesquisa realizada no assentamento denominado Patativa do Assaré, localizado no município de Patos/PB. Nesse trabalho, o autor salienta que o que poderíamos considerar uma total falta de consciência ambiental tem relação com uma situação de precariedade vivida pelos assentados, que não contam com ações efetivas de um Estado regulador e provedor de políticas sociais efetivas. Ou seja, a condição de vida dos assentados os leva a explorarem intensamente alguns recursos como madeira e pastagens, no caso dos assentamentos do semiárido. Entretanto, também não se podem justificar, de maneira simplificada, essas ações como determinadas pela precariedade da vida. Segundo Nunes (2008), devemos entender essas práticas como operações que obedecem a uma determinada “racionalidade com respeito a fins”, em que o que interessa é a eficiência econômica, que permite a sobrevivência da unidade familiar. Compreender a estratégia produtiva dos assentados e a relação destas estratégias com os processos vividos nos assentamentos implica, necessariamente, compreender as estratégias como o resultado de escolhas da unidade doméstica tomadas em condições específicas de vida, de prioridades, de crédito e de projetos de intervenção, particularmente, no caso dos assentamentos do semiárido que convivem intensamente com mediadores e agentes externos. A cultura camponesa não é avessa às mudanças. Por isso ela está aberta as ações que buscam um desenvolvimento rural capaz de combinar atividades multiocupacionais, com uma abertura explícita à pluriatividade. Ou, como esclarece Schneider (2004), o mundo rural busca estratégias que representam a possibilidade de ir além da modernização técnico-produtiva e apresenta alternativas de sobrevivência para a unidade familiar rural que, através de seus esforços e disposições, garantam sua reprodução. Essas estratégias incorporam a visão de que o território engloba atividades de setores econômicos diferentes e supera a clivagem rural/urbano. O mundo rural deixa de ser o locus específico das atividades agrícolas, e as variadas formas de complementação de renda e ocupação em atividades não- CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 147 agrícolas permite que a renda de muitas famílias que residem no meio rural se estabilizem ao longo do ano (SCHNEIDER, 2004: p. 92) 112 É evidente que falamos aqui de um “tipo ideal”, pois nenhuma cultura, seja ela de pescadores tradicionais, beradera, ribeirinha ou sesmeira, existe em estado puro. Para Diegues (1999), as culturas também não são estáticas, e estão em constante mudança, seja por fatores endógenos ou exógenos. Assim, um determinado grupo pode apresentar modos de vida e estratégias em que as características acima mencionadas estejam presentes, com maior ou menor peso. Desta forma, mesmo percebendo que Canudos é uma comunidade de lavradores e pescadores artesanais que se utilizam de diversas estratégias (atividades agrícolas e atividades não agrícolas) para compor a sua renda e consequentemente, manter a sobrevivência de sua unidade familiar doméstica, é possível perceber que ela tece uma relação entre as formas de estratégias e as características camponesas, como o apego à unidade familiar doméstica; a dependência em relação à natureza e aos ciclos naturais (cheia e vazante); o conhecimento da natureza que se reflete nas estratégias de uso e que é passado de pai para filho; a ocupação de um território por várias gerações, mesmo que alguns membros possam ter se deslocado para grandes centros; a atividade de “aprovisionamento”, embora exista uma produção de mercadorias para o comércio local e regional; a reduzida acumulação de capital e o uso de uma tecnologia relativamente simples de plantio que envolve as queimadas e os usos de ferramentas simples como a enxada, a foice, e os barcos artesanais. Assim, o que se tem em Canudos é uma adequação entre as atividades agrícolas (agricultura itinerante, pecuária, pesca artesanal e extrativismo vegetal) com estratégias não agrícolas, e uma autonomia relativa da unidade familiar de produção, quase sempre baseada em uma alimentação com produtos de seus lotes e do rio. 2. SISTEMA PLURIATIVO: a caracterização das famílias em Canudos De acordo com Schneider (2003), o debate sobre pluriatividade no nosso país ainda é embrionário. Apesar de este concordar que o fenômeno da pluriatividade não representa uma situação inteiramente nova, pois as atividades não agrícolas sempre 112 No entanto, durante os procedimentos para seleção de candidatos a assentamento em áreas de reforma agrária, um dos critérios eliminatórios é o candidato auferir renda proveniente de atividade não agrícola superior a três salários mínimos mensais do conjunto familiar. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 148 foram praticadas por camponeses, a originalidade desta categoria analítica apresenta-se mais relacionada à recente criação do termo empregado do que a prática em si. A pluriatividade, segundo o autor, ocorre quando parte dos membros de uma família residente no meio rural passa a se dedicar às atividades não agrícolas. Ou seja, Pluriatividade refere-se a situações sociais em que os indivíduos que compõem uma família com domicílio rural passam a se dedicar ao exercício de um conjunto variado de atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura ou ao cultivo da terra, e cada vez menos executadas dentro da unidade de produção (SCHNEIDER, 2003: p. 100 e 101). Em suma, pluriatividade é uma categoria analítica que resume o conjunto de ações conscientes e planejadas que a família camponesa se utiliza para alcançar seus objetivos, orientados por suas necessidades de autorreprodução. Quando pensamos nesta categoria para a realidade dos grupos domésticos de Canudos, observamos que as famílias camponesas desta comunidade congregam, empiricamente, uma multifuncionalidade de ações, que unificam realidades, papéis e espaços distintos. Assim, o equilíbrio entre o trabalho e o consumo da unidade familiar, para este grupo social, se dá, não só nos espaços de vida e de trabalho das águas do rio São Francisco ou nas roças de caatinga, de ilha e de quintais, mas também nos trabalhos esporádicos nas grandes feiras da região, voltadas para a venda de produtos industrializados, no processo migratório e nas atividades não agrícolas realizadas na própria comunidade, voltadas para a atividade mercantis realizadas em pequenos armazéns e bares. Aparentemente, Canudos é um assentamento com “tipos ideais” de famílias que se intitulam profissionalmente como lavradores ou pescadores artesanais. No entanto, encontramos indivíduos que se identificaram com estas duas identidades sociais, e que também exercem outras várias atividades dentro e fora da comunidade que envolvem assalariamento ou renda especulativa113. Ou seja, como grande parte das comunidades rurais brasileiras, a comunidade de Canudos pode ser considerada, realmente, como uma 113 As atividades realizadas nesta comunidade, como já foram expostas em capítulos anteriores, são complementares. No entanto, o sentimento de pertencimento que esses indivíduos nutrem por um ou outro território de terra e água sugestiona a sua identificação com uma ou outra profissão. Tivemos como critério de denominação de pertencimento não só as suas falas sobre as atividades de maior preferência, como também a ordem da resposta, quando questionados sobre as suas profissões. Deste modo, temos pessoas que se identificaram como lavradores, pescadores, lavradores/pescadores e pescadores/lavradores. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 149 comunidade pluriativa, uma vez que mescla atividades agrícolas e não agrícolas nas suas estratégias de reprodução econômica e social. Entretanto, dentro do imaginário que o grupo constrói para si, as atividades que não estejam ligadas à agricultura e à pesca artesanal não são contabilizadas ou vistas como demarcadoras da identidade social dos homens e mulheres de Canudos. Assim, há três possibilidades de identificação no imaginário social deste grupo: ser um lavrador, ser um pescador, ou ser ambos ao mesmo tempo, demarcando a intensidade de uma ou de outra atividade, de acordo com as idiossincrasias individuais e estratégias escolhidas como forma de reprodução de vida. Desta maneira, os indivíduos que se identificam como lavradores geralmente são pais de famílias que laboram com as roças de caatinga e de lameiro ou vazante, e que pescam apenas para o consumo. Essas pessoas geralmente são filiadas ao sindicato de Barra114 ou pretendem se filiar para, posteriormente, serem beneficiadas com a aposentadoria rural. Encontrei apenas um indivíduo em Canudos que se identificou como trabalhador rural e que negou qualquer vínculo com a pesca e as atividades com o rio. Em conversas realizadas na porta de sua residência, foi possível perceber que ele buscava demarcar sua forte relação com a agricultura, e se afastava totalmente da identificação com o trabalho da pesca115. Este informante foi vice-presidente da associação de Canudos e, durante muitos anos, viveu de perto, não só as demandas da associação e do sindicato rural, mas também teve a oportunidade de participar de diversos cursos de capacitação com enfoque na agricultura, organizado pelo sindicato. Contudo, mediante a história de vida deste informante, elaboramos a hipótese de que o uso da categoria trabalhador rural, por parte deste ator social, pode ter sido empregado como uma tática política e social, estrategicamente construída para positivar a sua filiação ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Barra116. As pessoas que se identificaram como lavradores/pescadores possuem uma relação maior com a agricultura ou a criação de seu pequeno rebanho bovino, mas não desconsideram a possibilidade de pescarem e venderem seu pescado para os 114 O Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Barra é filiado a FETAG desde 1974 e cobra uma mensalidade de R$ 10,00 reais de seus filiados. 115 Ressaltou várias vezes que não gostava de pescar e que o trabalho com a pesca não pode ser feito paralelamente ao trabalho com a terra, já que pescadores pescam a noite e dormem durante o dia. Por mais de uma vez disse que não pescava nem por lazer e que nem mesmo gostava de peixe, mas para basilar a afirmação de que as atividades nesta comunidade são complementares, ressalto que curiosamente meu informante mastigava, no momento da nossa conversa, um grande e suculento pedaço de peixe frito. 116 Trabalhador Rural também é uma categoria utilizada pelo INCRA. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 150 atravessadores. Grande parte destes lavradores/pescadores não tem como acondicionar em casa o produto da pesca, pois não possui frízeres. Esses informantes já optaram ou optarão pela aposentadoria rural, no entanto, tentam uma renda extra com a venda de peixes, principalmente quando não é período de limpar ou colher a mamona, ou o período de plantar nos lameiros. Os sujeitos sociais que se intitularam como pescadores artesanais são pessoas que também laboram com a terra. Elas possuem roças no terreno de chuva (caatinga) e no terreno molhado (vazante, lameiro). Mas, ao serem inquiridas sobre sua profissão, a resposta dada foi pescador. Dos pescadores que investigamos, apenas um afirmou que tinha roças de caatinga e ilha, que totalizavam três tarefas, mas que havia abandonado as duas e, na atualidade, não trabalhava com nenhum tipo de roçado. Dos pescadores com os quais conversamos, um não era filiado à colônia de pescadores do município de Barra (Colônia de Pescadores Z-30). A única pessoa que encontramos, que se denominou como pescador e que não era filiado, afirmou que ainda não havia encaminhado seu pedido de filiação porque não tinha condições de organizar seus documentos e de pagar a mensalidade cobrada pela colônia117. Os indivíduos que se denominam pescadores artesanais são pessoas aposentadas pela colônia ou que contribuem para a colônia, mas ainda não se aposentaram, recebendo da mesma apenas o benefício do defeso. Os pescadores artesanais, ao serem inquiridos sobre a atividade que mais apreciavam desenvolver, sempre responderam que a pesca era a preferencial, e a plantação de produtos era só necessária. Ao falar do espaço que mais lhes dava a ideia de um lugar de pertencimento, o território da água era sempre citado. Ao ponderarmos sobre a alimentação, a ideia de complementaridade também era direcionada para produtos como feijão, milho, abóbora, enquanto os ingredientes principais eram o peixe e a farinha. Com relação às atividades de trabalho e a utilização dos espaços territoriais do assentamento, além dos lotes, os quais ainda apresentam um parcelamento informal, os moradores não acoplaram muitos benefícios aos seus espaços de vida e trabalho. Segundo minhas observações em campo, com exceção de oito famílias, a maioria dos grupos domésticos não têm currais ou chiqueiros em suas dependências. Assim, o gado adulto, criado na larga, quase nunca é ordenhado, e somente as famílias que criam uma ou duas cabeças de gado, confinadas em pequenos espaços de roças de capim, podem 117 A Colônia de Pescadores do município de Barra (Colônia de Pescadores Z-30) cobra R$ 8,00 reais mensais de seus filiados. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 151 usufruir do leite como alimento em suas mesas. Os poucos porcos encontrados no assentamento são quase sempre criados soltos, pois os donos alegam não terem condições de alimentá-los. E nem todas as famílias construíram cercados para a criação de galinhas ou frangos118, o que aponta para a pauperização das famílias assentadas, que sequer têm condições de adquirir esses animais domésticos ou de alimentar os mesmos. Nesta conjuntura, bens materiais como moto ou carro são objetos raros em Canudos. De todas as famílias com as quais conversamos, apenas uma possuía um veículo automotivo em casa, que, além de servir para transportar mercadorias da cidade de Barra para algumas vendas em Canudos, ainda serve como transporte particular para pessoas enfermas, mediante pagamento. Ou seja, os meios de transporte mais utilizados no assentamento são a bicicleta, encontrada em quase todas as casas a que tivemos acesso, e o barco a vela119, manejado com destreza por todo beradero do São Francisco. Na realidade, o sentimento dos informantes com relação aos bens materiais de existência é ambíguo. Para os assentados, boa parte dos bens materiais que os rodeiam não pertencem verdadeiramente a eles ou aos seus grupos domésticos. Ou seja, assim como os lotes, as casas construídas pelo INCRA ou pela CAR, por intermédio dos créditos de implantação e de habitação, não podem ser vendidas se o assentado resolver deixar a localidade. Inclusive, as políticas destes órgãos na construção desta benfeitoria foram distintas e criaram problemas e conflitos entre os assentados. As casas entregues pelo INCRA, por exemplo, tiveram um custo de R$ 2.500 reais por unidade e foram entregues sem reboco, sem banheiro e, consequentemente, sem objetos, como vaso sanitário e lavatório. As casas entregues pela CAR, por outro lado, tiveram um custo de R$ 7.000 mil reais e foram construídas posteriormente, beneficiando poucas famílias. Estas casas são consideradas completas, pois são totalmente rebocadas e dispõem de banheiro com vaso sanitário e lavatório. Ainda hoje, em Canudos, muitas casas construídas pelo INCRA continuam da forma como foram entregues. Algumas famílias afirmam não terem condições financeiras para melhorias e outras alegam que não é conveniente investirem em algo que não lhes pertence. Alguns moradores acreditam que a penúria e a precarização das condições de vida das famílias assentadas não permitiram um pagamento justo e equânime das benfeitorias entregues. 118 Em Canudos as galinhas geralmente são criadas presas, pois os moradores possuem o hábito de ter pequenos canteiros para a plantação de temperos e hortaliças dentro dos quintais. 119 A maioria das famílias que tivemos contato possui barco a vela. Em Canudos, algumas pessoas fazem os seus próprios barcos, mas apenas um morador fabrica e vende. Segundo sua informação, um barco novo pode custar de R$ 900 a 1.000 reais, mas dificilmente essa renda é contabilizada em seu orçamento familiar, em função da durabilidade desse meio de transporte e trabalho. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 152 F.AS: A casa é doada pelo INCRA, mas pra eu entrá pra dentro tive que rebocá, colocá porta, porque as que tinha não fechava. Quem vai querer me comprá ela se eu quiser sair? Porque essa casa aqui não é minha. A casa é minha, mais num é, né não? Eu vou arrancá cerâmica, porta, janela? Ninguém compra, ninguém tem condições de comprá. Aqui, pra comprá aqui tem que ser um assentado, mas assentado já tem casa. E aí? 120 Este depoimento nos mostra o grau de fragmentação dos assentados com relação ao sentimento de pertença e de empoderamento com relação ao Assentamento de Canudos. A casa não lhes pertence, mas as melhorias básicas sim. Entretanto, elas são, ou estão, indissociadas. Para alguns, o governo federal, por meio do INCRA, entregou uma morada inacabada, juntamente com um lote não demarcado e não titulado. Para outros, o governo estadual, por meio da CAR, entregou uma moradia completa, mas não teve como gerenciar os problemas fundiários gerados por um órgão federal. Neste cenário de políticas públicas mal implantadas e mal gerenciadas, o tecido social de Canudos encontra-se esgarçado, e a sociabilidade cotidiana vive um clima de tensão permanente. No discurso dos assentados, é comum o ar de desconfiança e de diferenciação entre as famílias, que acabam buscando demarcar suas diferenças muito mais que as suas semelhanças existentes. A tabela 04 (anexo 3) traz uma amostra das famílias que mais apresentavam particularidades quanto a sua diferenciação – idades distintas, áreas de plantio variadas, benfeitorias estruturais e a posse ou não de bens. Os valores dos bens (terra, residência, meios de transporte) expostos nesta tabela são aproximações apresentadas pelos próprios grupos domésticos. Como podemos observar, cada chefe de família declara seus bens seguindo cálculos subjetivos, mas que seguem a lógica da quantidade de trabalho gasto nas casas e nos lotes recebidos. Estes bens são reais e imaginários ao mesmo tempo, e esta ambiguidade causa conflitos permanentes. Como o parcelamento destas áreas é informal, pois os assentados ainda não tiveram seus lotes demarcados e titulados, o respeito às divisas de roças na caatinga e a regulação da entrada de animais tem sido motivo de muitas discussões entre os assentados. Os lotes não cercados são áreas livres, mas algumas famílias colocaram 120 Entrevista realizada em Canudos, em 2008, com um lavrador nascido na comunidade que possui atualmente 60 anos de idade. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 153 roças em espaços abertos porque não possuem condições financeiras de cercá-las. Assim, os lotes na roça de caatinga são áreas comuns, com subdivisões individuais com demarcações de divisas feita com o uso de três mourões. Já as áreas de plantio nas ilhas ou na beira do rio são áreas ocupadas fora da padronização e da regulamentação federal, mas foram cercadas com arame logo após a primeira liberação de recursos do INCRA (Crédito Fomento) e do PRONAF. Como parte dos assentados foi se tornando inadimplente, mediante a liberação das parcelas dos projetos que foram sendo implantados ao longo da história do assentamento121, os assentados afirmam não terem recursos para cercarem os lotes realmente designados para cada família. Até porque, surge para eles uma questão crucial: por que cercar uma área que realmente não lhes pertence? Além disto, para que cercar uma área onde o plantio só pode ser feito esporadicamente, já que só é possível plantar na caatinga se houver um bom inverno ou se houver irrigação? Esta lógica nos parece problemática, na medida em que muitos projetos e recursos chegaram à comunidade para a implantação de projetos como, por exemplo, o de irrigação, e tudo foi abandonado e depredado. Mas, mediante esta questão, a resposta dos agricultores assentados foi unânime: como plantar se a área não havia sido demarcada e ninguém sabia onde ficava a sua própria roça? Ou seja, caímos aparentemente num processo tautológico, mas o que realmente existe, na visão dos assentados, é uma incomensurabilidade entre o que as políticas públicas oferecem e o que eles realmente necessitam e desejam para se reproduzirem como camponeses agricultores e pescadores. De acordo com Abramovay (s/d), o Vale do rio São Francisco concentra a maior parte dos municípios com alta inadimplência frente ao PRONAF B. Segundo esse autor, nos municípios onde a inadimplência é baixa, existem dois fatores fundamentais que contribuem para o respeito às regras do programa. Em primeiro lugar, existe um grande e forte controle social contra a inadimplência. Um controle que não está institucionalizado apenas pela ação fiscalizadora das organizações, mas que, segundo ele, se sobrepõe inclusive à manutenção das atividades produtivas. É evidente que o empenho das organizações na fiscalização efetiva sobre a aplicação do recurso, e um 121 Conforme artigo de Maíra Kubík Mano, intitulado “Desafios dos Assentamentos”, publicado em 04 de junho de 2008, no jornal Le Monde Diplomatique – Brasil, o PRONAF tem um índice de inadimplência de 80% entre os cerca de 1,2 milhão de famílias assentadas. “O sistema é uma arapuca que no final gera dívida”, “Os assentamentos não são feitos para funcionar”, afirmações de dirigente do MST. Disponível em: <http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=205&PHPSESSID=ca04364d2fe1650214a31d6f691be824 > Acesso em 10 de agosto de 2010. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 154 trabalho de conscientização sobre as regras de uso do crédito, é fundamental para o controle da inadimplência. Entretanto, conforme alega o autor, o endividamento é uma estratégia utilizada por algumas populações rurais para preservar a sua sustentabilidade financeira, mas para outras, onde os laços de sociabilidades são estáveis, a manutenção da credibilidade é uma condição de sobrevivência e de preservação dos laços sociais. Nessas localidades, o beneficiário luta para manter seu nome limpo acima de tudo. O segundo fator que contribui para a redução da inadimplência é a combinação de recursos do PRONAF com os recursos oriundos das bolsas e aposentadorias, ou ainda de salários ou diárias122. Segundo Abramovay, as pesquisas sobre esta problemática mostram que o pagamento do financiamento não depende da renda gerada pela atividade financiada, mas do conjunto das rendas que as famílias recebem. MAPA 2 Fonte: Mapa retirado de Abramovay (s/d). 122 O Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil de 2000 confirma que em 47,5% dos municípios do semiárido brasileiro, cerca de um terço da população tem mais da metade da sua renda proveniente de transferências governamentais, principalmente dos benefícios previdenciários, constituindo, assim, um dos mais importantes indicadores sociais de vulnerabilidade. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 155 O município de Barra, onde está localizada a comunidade de Canudos, não é apontado como um município com um alto índice de inadimplências. No entanto, o problema da inadimplência foi uma das principais reclamações dos assentados nas nossas primeiras viagens de campo (quando ainda confundiam a pesquisadora como uma funcionária do INCRA) e é, como já apontamos em outros momentos no decorrer dos capítulos, um dos principais problemas da localidade. As questões apontadas por Abramovay, como problemas fundamentais para o respeito às regras do programa, nos remete para as discussões já apontadas antes. Em Canudos existe uma fragmentação das relações sociais e da sociabilidade cotidiana, que foi impactada por várias intervenções estatais que careciam de um planejamento burocrático racional. Estas políticas públicas precariamente implementadas causaram uma desarticulação das redes sociais internas e criaram pontos de atritos que ainda permanecem no imaginário do grupo. Desta forma, como não houve a preocupação, por parte dos mediadores e dos técnicos governamentais, com a preservação de laços sociais, também não há atualmente, por parte do grupo familiar, uma preocupação em cumprir com o que foi acordado no momento da implementação dos projetos. Ou seja, os grupos familiares da comunidade estão, na atualidade, voltados para a sobrevivência e para a satisfação de suas necessidades básicas imediatas e se negam em direcionar parte das rendas (fruto de um sistema pluriativo) para quitar os débitos dos projetos fracassados, para que futuros financiamentos possam ser possíveis. Não há uma crença por parte dos assentados de que estes projetos possam vir a gerar renda e bem-estar para os grupos domésticos como um todo123. Parece haver, na comunidade, momentos em que o grupo doméstico atua como uma unidade de reprodução social em prol de objetivos em comum, socializando parte ou a totalidade dos rendimentos individuais. Um exemplo disto é a aceitação efetiva da política do defeso, respeitada pelos assentados que se denominam pescadores. Por outro lado, em muitas vezes, essa unidade social é quebrada, e os benefícios que deveriam ser de uso e usufruto comum são apropriados sem uma perspectiva de unidade e futuro. Foi assim com a quase totalidade dos projetos implantados, como já apontamos. 2.2. Atividades agrícolas e produção 123 A falta de preocupação com a preservação de laços sociais nessa localidade é tão latente, que dois homens (filhos de uma assentada) estão respondendo a processo por estupro de uma moradora da localidade. Ambos foram presos e aguardavam resultado do inquérito em liberdade, durante a nossa última viagem de campo. Os dois também são acusados de prática de furto pela comunidade. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 156 A categoria trabalho, para alguns autores (QUEIROZ, 1973; HEREDIA, 1979; MOURA; 1988, WOORTMANN, 1997), é uma categoria aplicada apenas ao mundo masculino, especificamente ao camponês pai de família. É ele quem direciona as tarefas que devem ser realizadas por seus familiares, como também o local e a forma como estas tarefas dever ser efetuadas. Os demais membros do grupo doméstico apenas trabalhariam em forma de “ajuda”. Entretanto, em comunidades pesqueiras, como é o caso de Canudos, as mulheres saem do mundo privado, do cuidado de suas casas, crianças e quintais para exercerem atividades ligadas à agricultura, afinal esposos e filhos, em uma comunidade de pesca, passam dias, ou toda a semana, envolvidos com o rio ou com a confecção de redes, chumbadas e arpões. Ellen Woortmann (1991) trata exatamente desta particularidade em um de seus trabalhos de pesquisa sobre uma comunidade pesqueira do Rio Grande do Norte. Nesta comunidade, a agricultura é pensada como uma atividade feminina, e a pesca como uma atividade masculina. Em Canudos, a agricultura não é exclusivamente feminina, mas ela também não é pensada como uma atividade eminentemente masculina, como em outras regiões. O plantio de produtos alimentícios no assentamento de Canudos se dá, como já enfatizado, em quintais, roças da caatinga, roças de beira de rio e em roças de ilha. Essa atividade é realizada em períodos específicos e acontece por ensejos distintos. Destarte, não só as esposas dos pescadores, mas também as mulheres dos lavradores trabalham na mamona com muita frequência. Algumas mulheres chegam a trabalhar cotidianamente e quase exclusivamente nesse espaço de plantio. Esse é o caso da lavradora R.M.L.S., que possui 9 tarefas na caatinga, onde atualmente planta mamona e melancia. Conforme relatou, ela limpa, colhe, bate e “abana”, e a mamona colhida e a lenha coletada são transportadas por um jumento, que é manejado por ela mesma, todos os dias. Mas isso não significa que os homens mais ligados ao rio e ao lameiro não tenham atuação neste espaço, pois um dos períodos intensos de trabalho na roça de mamona é o período em que a pesca é proibida. O esposo de R.M.L.S., por exemplo, colabora na roça de mamona quando ela está muito “suja”, pois além de passar toda a semana pescando, ele também planta na roça de ilha nos intervalos da pesca. R.M.L.S.: Nessa roça mesmo lá, que eu labuto lá, quando meu marido foi pra lá eu já tinha limpado o roçado todinho. Eu já CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 157 tava entrando cá, nas outra roça de fora, capinando. Já tava quase no meio da outra, aí ele terminou o resto. 124 Mulheres e crianças, membros de famílias que não possuem roças de mamona ou que as possuem em pequena extensão, aceitam trabalhar na roça de outros moradores quando a mamona já estalou e foi ao chão. As mulheres trabalham geralmente em dupla, pois uma das mulheres rastela o fruto da mamona enquanto a outra “abana” com o uso da peneira. De cada três sacas de 60 kg que elas peneiram, uma saca é do dono da roça. As crianças trabalham durante um turno do dia ou aos fins de semana. Elas peneiram o fruto da mamona caído no chão e vendem o litro ao próprio dono da roça por valores que oscilam entre R$ 0,30 a R$ 0,50. Tivemos dúvidas quanto à lucratividade desse sistema de medida para o dono da roça, pois a mamona, ao ficar no chão, sofrendo a influência constante do sol e da areia quente, desidrata e, com isso, os litros colhidos pelas crianças não pesam muito na hora que são negociadas com o atravessador125. Entretanto, percebemos, como aponta Cardel (1996), que este processo não se caracteriza como um trabalho, mas como um ritual socializador, onde a criança é levada a praticar e a vivenciar, por meio de um ritual cotidiano, o processo socializador do trabalho como um princípio ético e integrador das gerações. E este ritual não se aplica apenas no espaço das roças, mas no trajeto até elas, já que os espaços da moradia e do trabalho estão inseridos em locais distintos dentro do território da comunidade. 124 Entrevista realizada em Canudos, em 2008, com uma lavradora de 52 anos que nasceu na comunidade e é casada com um pescador também nascido na comunidade. 125 Muitos pais também influenciam o aprendizado com esta mesma estratégia. Em campo tive a oportunidade de presenciar cinco crianças trabalhando nesse sistema, no entanto, elas não revendiam o que catavam aos seus pais, mas a um atravessador da comunidade pelo valor de cinquenta centavos o litro. Segundo o depoimento dos pais, assim elas aprendem, não só a lidar com o processo de colheita da mamona, mas aprendem também a fazer uma relação entre o trabalho, o esforço e a remuneração. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 158 Foto 7: Região das roças de sequeiro. A caatinga mais próxima à comunidade é denominada Boca da Caatinga, a mais distante fica na região da Serra do Barro Branco. (foto retirada do programa Google Maps, 2010). As roças de caatinga mais próximas à comunidade distam em média de três a seis quilômetros e são, em sua maioria, cercadas apenas para impedir que animais adentrem a plantação. Dentro de um grande cercado, cada um sabe onde a roça individual começa e termina, e apesar de não existirem demarcações com arames, as divisas das roças são demarcadas com mourões ou árvores. As plantações, portanto, são individuais, mesmo em um espaço como a caatinga, onde o uso é comunal. Além das roças de caatinga, existem as roças de beira de rio, que margeiam a comunidade e que estão sujeita às estiagens e às grandes cheias do Rio São Francisco, e finalmente as roças de ilha que estão distribuídas atualmente em duas coroas: a Ilhota e a Ilha Grande. Todos os terrenos que conhecemos nestas ilhas são divididos por cercas de arames, com os seus limites muito claros, sendo que os terrenos são individuais e podem ser apenas um grande cercado ou subdivididos em casa e quintal, pasto e roça. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 159 Foto 8: Ilhas ou Coroas do São Francisco e as roças de lameiro. (foto retirada do programa Google Maps, 2010). Nesses espaços das Ilhas são construídas pequenas casas de taipa de mão, denominadas de “barracos”. Existem casas com dois cômodos, mas geralmente elas possuem apenas um, onde se encontra um jirau para dormir e uma prateleira com copo, panela de alumínio, prato, sal e água. O fogão a lenha é feito do lado de fora, às vezes com uma pequena cobertura de palha e sem proteção contra o sol. A água é apanhada no rio e armazenada em baldes. À noite, a luz é obtida por fogueiras (que também é utilizada para assar peixes) e por candeeiro. Dos utensílios utilizados, alguns são feitos artesanalmente pelos próprios agricultores, conforme a necessidade e a criatividade. Enquanto o plantio nos quintais, na roça de beira de rio ou na roça de ilha tem como finalidade o consumo de produtos alimentícios, a mamona, principal produto de plantio na roça de caatinga ou área de sequeiro tem o objetivo de gerar renda para a unidade familiar. Por outro lado, julgamos prudente pontuar que ela não parece ser uma atividade eminentemente indispensável para todos os moradores, principalmente, unidades familiares beneficiadas por programas, como as aposentadorias, ou pescadores artesanais, que parecem utilizar esse espaço como uma estratégia de renda, quando a renda do pescado está em baixa. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 160 Assim, todas as roças obedecem à técnica de plantio consorciado, ou plantação “casada”, quando são cultivadas duas ou mais variedades no mesmo espaço de plantio126, com o aproveitamento do espaço e do bagaço de outras plantas como adubo. Ainda dentro desta lógica, o sistema de cultivo nesta área é o de coivara, onde as vegetações rasteiras e de pequeno porte são derrubadas, empilhadas e deixadas para secar e, posteriormente, queimadas. As ferramentas mais usuais são a enxada, a enxadeira (uma enxada mais estreita), a foice, o furão (escavadeira), o machado e o facão. Segundo informações, o trator que a associação possui é “emprestado” para os associados mediante o pagamento do combustível e da alimentação do tratorista, geralmente cedido pela prefeitura da cidade de Barra, sendo mais usado para arar a área da caatinga. Contudo, o trator muitas vezes é alugado para assentamentos próximos, pois, conforme informantes, na comunidade apenas alguns aposentados conseguem pagar pelo seu uso. Para os que não possuem renda extra, este maquinário não tem muita utilidade, a não ser quando puxa grandes quantidades de lenha na caatinga, momento em que o pagamento pelo uso do trator é dividido entre os interessados. Nas roças de lameiro, homens e mulheres realizam atividades como plantar, capinar e colher, mas como muitos homens possuem uma relação maior de pertencimento com o território de água e consequentemente com a pesca, são eles que mais estão em contato com as roças de lameiro. É hábito de algumas mulheres irem para a roça de ilha apenas aos fins de semana. Mas, conforme nos relataram, esse costume é alterado no período em que o trabalho na roça de lameiro aumenta. As plantações na beira do rio começam assim que o rio São Francisco começa a abaixar. E como esse período também é aquele em que os homens estão voltados para a pesca, são as mulheres quem mais se dedicam a este espaço de plantio. Todavia, como já foi colocado acima, como o rio São Francisco, depois da construção da Usina de Sobradinho, oscila muito a vazão de suas águas em função da abertura ou do fechamento de suas comportas, e em função da oscilação do período chuvoso, já não é possível definir um período fixo para plantar nestes espaços. Conforme pudemos perceber em campo, o uso de mão de obra familiar é recorrente em todas as unidades de produção; entretanto o uso de mão de obra contratada (diarista) também acontece. Os contratantes acordam serviços com diaristas por dois motivos: falta de mão de obra familiar suficiente e falta de interesse dos filhos 126 Sobre esse assunto, ver: Woortmann, E. & Woortmann, K.; 1997. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 161 jovens pelos trabalhos agrícolas. Uma das informantes relatou, por exemplo, que, apesar de ter dois filhos homens em casa com idades de 17 e 19 anos, no fim do ano de 2009, teve que dispor de R$ 150,00 para efetuar o pagamento de duas pessoas que trabalharam como diaristas com seu esposo na roça de caatinga, pois seus filhos não quiseram ajudar nessa atividade. Mesmo assim, entre todas as famílias com que mantivemos contato em campo, apenas duas afirmaram que fazem uso de diaristas com frequência. Algumas alegaram uma necessidade eventual, enquanto a grande maioria afirmou não utilizar desta estratégia. Este fato nos mostra a peculiaridade das relações intrassociais de Canudos. Encontramos na literatura sobre estudos de campesinato uma vasta gama de relações de troca de trabalho entre os grupos domésticos, que são permeadas por relações de reciprocidade, onde a remuneração raramente se dá pelo equivalente em dinheiro, mas por trocas de dias de trabalho entre membros da unidade doméstica, ou pelo processo de ajuda em grupo, como o mutirão. Entretanto, em Canudos, as práticas de trabalho são individualizadas, e a única forma de pagamento existente é o dinheiro, fato que demonstra o baixo índice de sociabilidade local. Na tabela 5 (anexo 4) apresentamos informações como o total das áreas trabalhadas pelas unidades domésticas e a produção de cada uma delas. Demonstramos também a frequência do uso de mão de obra familiar ou o uso de diaristas nas atividades de plantio. Observamos, por meio destes dados, que todos os entrevistados plantam em lotes ainda não titulados, mas que todos têm uma ideia do valor fundiário da sua “propriedade”, o que sinaliza que este grupo camponês, como aponta José de Souza Martins (1978), absorveu a ideologia estrutural dominante e só concebe a terra por meio da sua renda fundiária, e não pelo seu valor social. 2.3. Cultivo, extrativismo vegetal e o destino da produção Os terrenos de ilhas/lameiro costumam variar entre 1 e 10 tarefas127, entretanto, a grande maioria oscila entre 1,5 e 3 tarefas. Nos terrenos de beira de rio, a situação não é diferente. As roças de vazante variam entre 0,5 tarefa e 12 tarefas, no entanto, na maior parte dos casos, o tamanho destes terrenos oscila entre 1 e 3 tarefas. Nestes dois espaços são plantados produtos para o consumo, conforme já foi citado anteriormente; 127 Tarefa: medida agrária que na Bahia corresponde a 4.356 m². Dados obtidos pelo endereço eletrônico: <www.webcalc.com.br>, no dia 14 de fevereiro de 2009. Mas, segundo os moradores de Canudos, uma tarefa são 30 braças e, para fazerem as medidas de suas roças, eles primeiro cortam uma vara medida por meio dos braços estendidos de um homem e só depois demarcarem o terreno. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 162 entretanto, encontramos 2 roças de milho e 1 de feijão nos terrenos de ilha e de beira de rio, onde a produção destinava-se à venda. Pelos dados colhidos em campo, é possível perceber que as famílias que optaram por vender esses dois produtos possuem tamanhos de roças incomuns – de 8 a 10 tarefas – o que garantia o consumo familiar e a venda do excedente. A saca do milho sofreu uma variação de R$ 20,00 a R$ 25,00 reais no último ano (2010), e o preço da saca de feijão variou entre R$ 80,00 e R$ 100,00 reais. Contudo, o mais curioso foi encontrarmos, em uma área de beira de rio, uma roça de 3 tarefas com o plantio de mamona. E, como já colocamos, o cultivo de mamona é, geralmente, feito em terrenos de chuva porque os pés de mamona conseguem sobreviver a estiagens prolongadas. Apesar deste chefe de família se autoidentificar como lavrador, as suas roças de ilha de 6 tarefas e as 10 tarefas na caatinga são utilizadas apenas para o cultivo de capim para 3 cabeças de gado. Pensando na incomum plantação em área próxima à comunidade e no abandono das áreas de caatinga, relacionamos estas estratégias incomuns a outras variáveis que caracterizam este grupo doméstico: idade do lavrador (chefe de família) - 82 anos; proximidade do lote cultivado com a residência do assentado; benefícios assistenciais para a unidade familiar de duas aposentadorias de agricultores rurais; defeso durante quatro meses do ano, o que o caracteriza como um pescador frente às políticas públicas Estes dados nos mostram que a racionalidade dos agentes sociais varia de acordo com as estratégias e as possibilidades de acesso que os grupos domésticos têm em relação às atuais políticas redistributivas criadas pelo Estado. Longe de este grupo doméstico ser uma exceção, sua lógica aparentemente incomum de utilização das áreas de plantio demonstra o quão esta comunidade camponesa de assentados rurais possui uma relação antitética com a lógica reprodutiva moderna. Se isto pode parecer interessante na ótica do grupo doméstico, do ponto de vista comunitário, demonstra a fragilidade da lógica de reciprocidades internas. Quanto à falta de chuva nos últimos anos em Canudos, foi assim que, um informante relatou a sua desistência em lidar com o plantio na caatinga: CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 163 D.F.C: Tinha largado mão da mamona, mas depois o peixe num tava dando. Eu num vinha aqui tinha muito tempo. Meu vizinho insistiu pra eu vim ver e eu vim. Ela tinha nascido por Deus. Corri, capinei e ano passado, com o inverno bom, tirei mamona demais. Esse ano, o inverno num foi bom, aí muitos não mexeram [...] Eu fiquei encafifado, dormi longe da muié. Dormi no chão. Pedi a Deus – Oh, vou mexer com aquilo lá. Vim, plantei e, quando foi de noite, deu um chuvisco. Pensei – Oh! Tá bom. Labutei mais. Aí, depois de uns oito dia, deu uma chuvinha boa e molhou por baixo. Aí, a mamona nasceu que ficou foi bonita, num foi? 128 As roças de mamona são maiores do que os outros espaços de plantio. Elas variam entre 1 e 34 tarefas, mas oscilam entre 3 e 10 tarefas na maioria dos casos. Na última colheita, os valores da saca variaram em média entre R$ 60,00 a R$ 65,00 para aqueles que venderam a atravessadores da comunidade e de Barra, mas esse preço cai ou sobe conforme a oferta. Em anos ruins, a saca de mamona já chegou a ser vendida por R$ 30,00. A partir na ultima safra (2009), a mamona também tem sido vendida a técnicos agrícolas, que cadastraram algumas unidades familiares dentro do programa de biocombustíveis desenvolvido pela Petrobras, por R$ 70,00 a saca de 60 kg. O assentado vende a mamona na comunidade e não em Barra, onde poderia conseguir um preço mais elevado, mas teria que pagar R$ 8,00 de passagem (ida e volta) e R$ 3,00 por cada saca transportada. Segundo relato de A.R. (ex-presidente da associação e morador há 19 anos), algumas famílias em Canudos chegam a produzir 40 toneladas de mamona por ano. Um número superior ao que o maior produtor de mamona alegou produzir em nossa coleta de dados – 500 sacas de 60 kg, ou seja, 30 toneladas. Essa quantidade depende da oferta de mão de obra familiar, do tamanho da área trabalhada, da quantidade de chuva e da frequência com que o terreno passa pelo processo de limpeza, dentre outras técnicas de plantio. Mesmo tendo estas variáveis em vista, os dados de campo apontam que, em 128 Entrevista realizada em Canudos, em 2010, com um pescador/lavrador de 51 anos. Pela entrevista, é possível perceber que o informante cultiva uma crença em determinados tabus religiosos e no valor da penitência do corpo para alcançar uma graça – “Eu fiquei encafifado, dormi longe da muié. Dormi no chão. Pedi a Deus.” Nesse mesmo espaço de tempo, nosso informante nos mostrou, pela primeira vez, por onde os canos do projeto de área irrigada passariam (ao lado da estrada vicinal que leva à caatinga) para serem posteriormente puxados para as roças. E confirmou o relato de outros assentados, de que os canos começaram a ser instalados, mas com o passar dos meses foram quebrados ou roubados. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 164 média, o número de sacas de mamona produzidas em cada unidade familiar oscila em um ano ruim, com pouca chuva, entre 2 e 40 sacas, e em um bom ano, com chuvas regulares e mão de obra familiar suficiente, varia entre 10 e 500 sacas. É uma variação enorme de produtividade, mas, como afirmam os agricultores locais: “a mamona pode dar por vida, ou ser cuidada e render”. É nos arredores das roças de caatinga, nas áreas de reserva ambiental e nas degradadas matas ciliares que os assentados exercem atividades extrativistas129. O extrativismo vegetal está voltado principalmente para a coleta indiscriminada de arbustos como a jurema branca (Piptadenia stipulacea), usada cotidianamente como matriz energética(lenha); a carnaúba (Copernicia cerífera ou Copernicia brunífera), usada para a confecção de artesanato (folha), cerca de quintais ou madeiramento de alguns cômodos, denominados“puxados”, e que servem como cozinha ou área de serviço. De forma mais pontual, cabe às mulheres e às crianças a extração de folhas, raízes, sementes, mudas de plantas medicinais e frutas, coletadas de forma mais intensa nos períodos de escassez de outros recursos para a alimentação130. A responsabilidade de buscar lenha na caatinga também é uma atividade desempenhada por todos: mulheres, homens e jovens. É da responsabilidade de quem vai ao terreno de caatinga retornar com o jumento ou a bicicleta com cargas de lenha para o uso cotidiano. No entanto, presenciamos uma quantidade maior de idosos coletando lenha quando a área de coleta era mais próxima ao local de moradia. Como é do conhecimento geral, o quintal é um espaço contínuo da casa, cercado por carnaúba ou jurema. E, como já foi relatado antes, a medida deste espaço varia conforme a anterioridade ou não dos assentados na comunidade. Moradores mais 129 Os produtos mais explorados na comunidade são a lenha, a carnaúba e os frutos. A lenha, geralmente jurema branca (Piptadenia stipulacea) é extraída da caatinga. A extração da carnaúba (Copernicia cerífera ou Copernicia brunífera) hoje é praticada com mais racionalidade do que em tempos anteriores, quando a grande maioria foi retirada para a exploração de cera. No entorno de Canudos, encontramos árvores frutíferas como: araticum (Annona crassiflora), jenipapo (Genipa americana L.), umbu (Spondias tuberosa Arruda), quixaba (Bumelía sartorum), coco de carnaúba (Copernicia cerífera ou Copernicia brunífera), entre outras. 130 Reforçando esta questão, a informante F.L.M., enquanto enumerava frutos que eram colhidos nas proximidades, lembrou-se de uma receita de jenipapo que, geralmente, substituía uma das refeições do dia, quando não havia outros recursos. Na receita do jenipapo, retira-se a polpa, à qual se adicionam açúcar e farinha, para ingerirem em substituição ao jantar. Ao acompanhar uma família de pescador/lavrador a sua roça de caatinga, percebi que o almoço servido era de duas categorias: para o chefe da família, o diarista/vizinho e para a pesquisadora em questão, serviu-se arroz, feijão, peixe caldeado e farinha. Para as mulheres da família e crianças, o almoço foi arroz, macarrão e farofa de ovo. A mãe, ao ser questionada por uma criança sobre a ausência do peixe na sua refeição, respondeu que ele não trabalharia na roça e que, portanto, não precisaria de uma comida que lhe desse “sustância”. Sobre a relação entre alimentos fortes e fracos, ver: Woortmann, E. & Woortmann, K.; 1997. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 165 antigos possuem quintais grandes, medidos conforme as suas necessidades. Moradores que chegaram depois tiveram seus quintais padronizados pelo INCRA em 20m². O quintal também é o espaço de criação de pequenos animais, como a galinha e o porco. Porém, os poucos porcos existentes geralmente são criados soltos, ficando no chiqueiro apenas um animal de engorda. Entretanto, no período da minha estadia em campo, a maior parte dos chiqueiros encontrava-se vazio. Assim como as roças, o quintal também é um lugar de plantio, porém em proporções mais reduzidas e com outros produtos para o consumo. Sendo espaço de domínio feminino, tal como a casa, o quintal também é considerado um espaço privado. É um espaço produtivo onde o trabalho também é realizado mediante a diferenciação de gênero e de geração, sendo dominado pelas mulheres e por seus filhos. São as mulheres que plantam, mas, na maioria das vezes, são os meninos que buscam o esterco para melhorar a terra do canteiro. Tendo em vista o baixo índice de chuvas, regar o canteiro suspenso e as árvores frutíferas também é uma atividade desempenhada pelas mulheres ou por crianças e adolescentes. Nos canteiros encontramos cebolinha, coentro, alface, tomates, pimenta e pimentão. Também encontramos bananeiras, pés de seriguela, limão, laranja, pinha, manga e plantas medicinais. Apesar dos espaços diminutos de muitos quintais familiares, estes se revelaram verdadeiras áreas de reprodução e de experiência do saber camponês. As plantas medicinais mais frequentemente encontradas neste local são: Hortelã da folha grossa (Plectranthus amboinicus spr.), com propriedades medicinais para o período da menopausa; Capim santo (Cymbopogom sp.) para combater o nervosismo; Alevante (Achilea millefolium L.), com propriedades medicinais calmantes; Camará, Erva cidreira (Lippia Alba) com propriedades medicinais também calmantes; Boldo (Plectrantus sp.), com propriedades para o combate da gastrite; Melissa (Melissa officinalis) no combate à gripe; Hortelã-miúdo (Mentha sp.), com propriedades para combater a febre; Alfavaca (Ocimum basilicum) para combater gripe, tosse e febre; Alecrim (Romarinus officinalis) para a pressão alta; Mamona (Ricinus communis) para dor de barriga; Quebra-pedra (Phyllanthus sp.) contém propriedades medicinais para curar pedra nos rins; e Pinha (Annona squamosa), com propriedades para infecção urinária. 2.4. Animais domésticos e pesca artesanal CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 166 Existem grupos familiares que criam gado, entretanto em número bem reduzido. Estes animais de grande porte são criados na larga e só são levadas para espaços fechados quando a caatinga está muito seca. Os informantes que afirmaram não fazerem uso da larga nunca tiveram gado adulto ou bezerros, no entanto usam a larga para criarem animais de carga, como o jumento. Com as famílias que trabalhamos, a média dos animais oscilava entre 3 e 4 cabeças. No assentamento apenas um assentado tem um número maior de cabeças adultas, e ele é uma exceção. O número de cabeças de gado, como bezerros ou novilhas, também é muito pequeno, variando de 1 a 15 cabeças. No entanto, menos da metade das famílias assentadas possuem gado. Pessoas que possuem apenas um ou dois animais geralmente os criam dentro dos espaços da ilha ou da beira de rio e não usam a larga. E, de forma geral, o gado raramente é vendido. Já os bodes ou cabras não são criados no assentamento, por conta do fracasso do projeto que introduziu matrizes e aprisco. A única exceção é uma moradora que possui 4 animais, mas elas já os tinham antes do projeto de matrizes ser implantado. Os bodes e cabras apontados na tabela 7 (em anexo 6) são criados do lado direito do rio (município de Xique-Xique) e também são animais que não faziam parte do lote de matrizes de caprinos implantado pelo projeto. Já o jumento é considerado um animal indispensável na vida dos lavradores e pescadores artesanais, mas o estado de pobreza dos grupos familiares chega a ser tão grande, que existem famílias que não podem adquiri-los, e que estão privadas de um meio de transporte imprescindível para o homem catingueiro. Cavalos também são raros em todo o assentamento, sendo que apenas duas famílias os possuem. A pesca artesanal, por ser uma atividade fundamental nessa localidade, ocupa boa parte do tempo de trabalho dos homens. No entanto, os pescadores de Canudos reclamam que, ano após ano, as condições para a prática da pesca têm piorado. As chuvas apresentam-se menos constantes e, consequentemente, as cheias também. O assoreamento do rio tem aumentado e o nível da água, em função dos lagos das hidrelétricas (particularmente Sobradinho), tem oscilado com grande frequência. Esta questão de dependência dos ciclos das águas nos remete a Fraxe (2000), quando esta aponta que o grupo de camponeses amazônicos (homens anfíbios) que pesquisou tem uma dependência e uma alta simbiose com a natureza por meio de seus ciclos dos recursos naturais renováveis, a partir dos quais estruturam seus modos de vida. Estes camponeses têm um conhecimento profundo do bioma no qual estão inseridos, que se reflete na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 167 naturais dos territórios ocupados. De forma singular e fazendo um paralelo, o grupo pesquisado por Fraxe, tanto quanto os assentados de Canudos, devem a reprodução de seu modo de vida e da sua unidade familiar aos rios que margeiam suas comunidades e que lhes proporcionam terras molhadas por meio das quais se reproduzem economicamente e socialmente. É por meio de várias técnicas e estratégias de sobrevivência ligadas ao rio São Francisco que os agricultores e os pescadores de Canudos continuam superando longos períodos de estiagem e enfrentando fortes oscilações que afetam diretamente as plantações de lameiro ou vazante, e a pesca no leito do rio131. E, além das adversidades naturais, os habitantes de Canudos são obrigados a se adaptar às leis de proteção ambiental, como o estabelecimento do defeso, período no qual estão proibidos de pescar com suas redes em respeito ao ciclo natural da reprodução dos espécimes nativos do rio São Francisco. Mesmo assim, dada a insegurança alimentar à qual estão sujeitos, muitos pescadores admitem que pescam durante o defeso para o consumo, mas não para a venda. A confirmação exata da data do defeso (da piracema) é publicada pelo IBAMA e é estabelecido anualmente, entre os meses de outubro e início de fevereiro, ou de novembro a março. Durante os quatro meses de proibição, os pescadores de Canudos que são associados à Colônia de Pesca recebem o equivalente a um salário mínimo por mês. Entretanto, mesmo com esta política pública, a vida dos pescadores artesanais locais torna-se mais complicada. Ano após ano, as condições para a prática da pesca têm piorado. Pelas minhas observações em campo, foi possível acompanhar o cotidiano dos pescadores de Canudos e ver, em loco, a pouca quantidade de peixes trazidos pelos pescadores após dias e noites nas áreas de pesca. A insegurança em relação à atividade econômica da pesca é tão intensa, que os pescadores se recusaram a informar individualmente a média do pescado mensal ou anual que capturam. Com os que mantivemos um contato mais próximo, pudemos obter apenas a informação de que eles 131 A alegação dos moradores é a de que os barramentos no São Francisco teriam ligação direta com a queda na reprodução de alguns peixes. Essa argumentação pode ser confirmada através da leitura de BRASIL (2001-2002) - Plano Piloto de Revitalização do Rio São Francisco. Conforme indica este documento, observadores locais ressaltam que os efeitos da regularização de vazões poderiam estar exercendo impactos negativos no habitat de procriação da fauna aquática, assim como a oscilação anual da correnteza e do nível das águas, agindo em áreas desflorestadas e frágeis, provocando severas e continuadas erosões. Considerações semelhantes também foram feitas no documento “Adequações e Complementações ao Estudo Ambiental do Projeto de Melhoramento do Leito Navegável do Rio São Francisco – Trecho Barragem de Sobradinho a Juazeiro/Petrolina”, onde afirmam que o lago de Sobradinho (1973) trouxe impactos diretos na estrutura do ambiente aquático, com a alteração na turbidez da água (depósito de areia e sedimentos) e interferência no processo da piracema. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 168 não conseguem sequer alcançar uma renda de um salário mínimo em remuneração. Com base nas minhas observações, calculei que a renda com essa atividade tem girado em torno de R$ 200,00 a R$ 300,00 reais mensais. Quanto às relações de trabalho nesta atividade, ela não segue apenas as regras das sociabilidades familiares, como acontece com a maioria das comunidades de pescadores artesanais. Além de ser uma atividade inconstante, nos deparamos, em Canudos, com pescadores que são proprietários da própria infraestrutura de trabalho e com outros que pescam em barcos de outrem. Às vezes o barco é um empréstimo entre irmãos, tios, filhos e sobrinhos, mas geralmente o dono recebe uma parte do pescado, a combinar, como pagamento pelo uso do barco. Ou, quando a relação de parentesco é relevante, quem utiliza o barco passa a dever um “favor” ao proprietário, que pode lhe cobrar em forma de trabalho. Entretanto, quando não há relação de sociabilidade familiar, a relação comercial é imperativa e as diárias são cobradas de forma monetária. Quanto ao ritmo das atividades, o trabalho com a pesca não possui uma rotina tão demarcada como a do trabalho com a terra. Para os pescadores que entrevistamos, não há um horário mais promissor para se pescar, pois depende do que o pescador pretende fisgar, já que existem peixes que só são fisgados à noite. Geralmente eles pescam com duas pessoas embarcadas, frequentemente pai e filho. Para pescar no rio São Francisco, o pescador artesanal utiliza os seguintes instrumentos132: o barco de pano (quando a vela está ao vento), também chamado de barco de vela (quando o pano está enrolado); a rede de náilon fina (ou rede de linha fina); a rede de náilon grossa (ou rede de duas dobras); e um arpão artesanal, feito para a captura de Surubim. Com as redes finas, eles costumam pescar o Curimatã, a Piranha, o Tambaqui, o Surubim Pequeno, o Piau e o Camboge; com as redes de duas dobras, pescam o Tucunaré (peixe muito raro), o Dourado, o Tambaqui Grande, a Piranha Grande, a Corvina, o Piau Grande e o Pirá. Conforme os pescadores informaram, o Surubim é vendido em media por R$ 10,00, o Dourado entre R$ 5,00 e R$ 7,00, a Pescada de R$ 2,50 a R$ 3,30 e o Tambaqui a R$ 4,00. De acordo com o que os vendeiros do mercado municipal Cotejipe, em Barra, os peixes como Curimatã, Matrinchã e Camboge são vendidos a R$ 4,00; o Dourado é vendido de R$ 7,00 a R$ 9,00 e o Surubim a R$ 13,00 o quilo. Ou seja, o atravessador acrescenta, em média, R$ 2,00 sobre o valor de compra do pescado. No assentamento muitos vendem seus peixes aos atravessadores da comunidade para 132 Instrumentos de pesca como rede e boias, e os consertos dos barcos são feitos pelos próprios pescadores. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 169 efetuarem abatimento nas compras a prazo (caderno de notas que já possuem nas vendas), e também por não possuírem refrigeradores para acondicionar o pescado. No período em que os peixes são raros, o “peixe branco” - Curimatá, Corvina, Pescada, Piranha - é vendido por R$ 3,00 o quilo, e o Surubim de R$ 10,00 a R$ 12,00133. Os melhores meses para a pesca são os que vão de setembro a novembro, mas contraditoriamente é exatamente neste período que o pescador tem o seu trabalho mais depreciado, devido ao aumento da oferta e à falta de opção para o escoamento da produção. Os informantes advertiram que, neste período, todos os peixes são vendidos pelo mesmo valor: tanto a Piranha quanto o Curimba são vendidos entre R$ 0,25 e R$ 1,50 ao atravessador134. Lista dos peixes mais citados em pesquisa de campo135 133 Nomes comuns/populares Nomes científicos Curimatá/ Curimba Tambaqui Pescada Surubim Piau Crumatá Tucunaré Dourado Cruvina-pescada Cruvina-de-bico Pirá Matrinchã Mandim Traíra Cágado Cari Caboge Piranha-vermelha Prochilodus spp. Colossoma macropomum Plagioscion squamosissimus Pseudoplatystoma coruscans Schizodon e Leporinus Prochilodus marggravii Cichla ocellaris Salminus SP Plagioscion squamosissimus Pachyurus francisci Conorhynchus conirostris Brycon reinhardtii Pimelodus Hoplias aff. malabaricus Phrynops sp. Loricariidae Parauchenipterus galeatus Serrasalmus brandtii Ao falar sobre o Surubim, a informante M.A.R. se lembrou de uma receita de caldo de peixe: ao limpar o Surubim, ela retira as guelras (anteriormente limpas com o auxílio de uma faca) e retira também a cabeça do peixe. Para a feitura de caldo, leva ambas ao fogo médio, onde acrescenta sal a gosto e, posteriormente, farinha de mandioca. O Surubim é feito à parte. A informante ressalta que o Surubim só pode ser pescado se estiver com mais de 0,80 centímetros, mas ele pode chegar a 2,00 metros. 134 Foi falando de peixes e se lembrando de receitas, das quais destacou os caldos e o cuscuz, em contraposição ao pão e aos frangos de granja, considerados alimentos fracos, que nossa informante nos disse que esses alimentos, confeccionados ou manipulados em granja e abatedouros, não sustentam e adoecem quem os consome. Sobre a oposição entre alimentos fracos e fortes, quentes e frios, ver: Woortmann, E. & Woortmann, K.; 1997. 135 Os nomes populares dos peixes nominados em Canudos e na região de Barra, bem como os seus “hábitos” alimentares, divisões e subdivisões estabelecidas pela ótica dos pescadores artesanais, podem ser encontrados em: Costa-Neto, 2002. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Piranha-beba Piranha-branca Pintado 170 Serrasalmus cf. Piraya Pseudoplathystoma corruscans Como não poderia deixar de acontecer numa comunidade fortemente marcada por um imaginário camponês, a pesca também é marcada pela questão de gênero e geração. Desta forma, segundo os moradores, os peixes mais comuns na pescaria masculina são o Surubim, o Curimatã e a Corvina Grande. Já as mulheres e as crianças pescam Mandi, Corvina Pequena, Bagre e Piau, peixes menores e menos importantes comercialmente, mas fundamentais para a alimentação dos grupos domésticos. Os peixes grandes e considerados mais saborosos são sempre vendidos para os atravessadores, o que leva as mulheres a repetirem, constantemente, que os peixes trazidos por seus maridos e feitos em casa são sempre “restos de pescarias”. Conforme já afirmamos, existe uma forte divisão de gênero e de geração nas atividades realizadas no território de terra e no território de água, afinal existe uma primazia do trabalho masculino em relação ao feminino nas atividades realizadas pelos grupos familiares. Porém, existem mulheres que transitam entre essas atividades e entre esses espaços com mais facilidade, mesmo sabendo que existe um princípio de separação e de hierarquia. Mesmo compreendendo que os homens, geralmente, estão mais voltados para a esfera produtiva e para o mundo exterior (negociam no comércio na cidade, são presidentes de associações, pescam e laboram com a terra), enquanto as mulheres estão mais voltadas para as questões internas da unidade familiar (cuidado com os filhos, com a casa, com os animais domésticos e com as plantações no quintal), afirmamos que Canudos possui peculiaridades em relação a essa questão. Afinal, encontramos muitas mulheres envolvidas também com a esfera produtiva das roças de caatinga, de lameiro ou de vazante. Boa parte das mulheres cujos maridos se voltam ao trabalho com a pesca são levadas, pelas circunstâncias, a labutarem diariamente com a roça e os afazeres domésticos. Encontramos, por exemplo, a assentada F.L.M. que declarou que, além de já ter trabalhado em roça de caatinga - mas hoje em dia não trabalha porque a idade não lhe permite -, atualmente, faz tarefas nem sempre realizadas por mulheres. Nossa informante, além de trabalhar na roça de beira de rio e em uma pequena olaria de tijolos, pesca de barco com seu esposo, enquanto outras mulheres pescam apenas em barrancos e nos finais de semana. Apesar da idade, F.L.M. “bate o pano”, rema e comanda o barco de pesca, enquanto seu esposo solta a rede de pesca e a recolhe. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 171 Como já ressaltamos, existe uma divisão interna de atividades dos membros do grupo familiar. Assim, as filhas mulheres vão assumindo tarefas domésticas e, conforme vão crescendo, liberam aos poucos suas mães de alguns encargos da esfera privada da casa. Quanto aos homens, à medida que crescem, acompanham pais, irmãos, tios ou avôs no trabalho com a roça ou a pesca. Quando os homens envelhecem, vão se libertando de algumas atividades do mundo público, principalmente da pesca e do trabalho na roça de caatinga, considerados trabalhos braçais muito pesados e desgastantes. A tabela 7 (em anexo 6) apresenta uma amostra dos animais criados e dos peixes pescados pelos assentados. Voltamos a frisar que os valores listados são aproximações apresentadas pelos próprios grupos domésticos. Contudo a quantidade e o valor do pescado não foram acrescentados à tabela, porque os pescadores entrevistados afirmaram que, por conta da precariedade da pesca artesanal, não é possível precisar a quantidade de pescado adquirido em um mês. Mesmo com as constantes afirmações sobre os problemas enfrentados localmente pelos assentados, o que podemos afirmar é que, de forma geral, os pescadores de Canudos estão integrados num processo amplo de políticas locais, regionais e nacionais, apesar da pouca capacidade de mobilização interna desta categoria, e alguns inclusive estão integrados à cooperativa de pescadores artesanais do município. Atualmente Barra possui 1.600 pescadores artesanais associados136 praticando a atividade da pesca nos rios São Francisco e Grande. Em função das dificuldades com o pescado, o SEBRAE lançou, a partir de 2005, um Projeto de Piscicultura em parceria com a CODEVASF, o Banco do Brasil137, a Prefeitura Municipal de Barra, a EBDA, a Bahia Pesca, a Cooperativa Barra Pescado (fundada em 2007) e a Associação de Pescadores de Barra (Colônia Z-30 de Barra). O objetivo do projeto é melhorar, de forma gradual, a renda dos produtores no município, aumentando a produção, e reativar o entreposto de pesca em busca de conquistar novos mercados. Segundo os líderes da associação, o projeto veio em boa hora, pois a atividade pesqueira estava prestes a ser extinta no município. Entretanto, a alternativa encontrada pelo 136 Alguns informativos falam em 2.000 mil associados na Colônia Z – 30 de Barra. Esta associação de pescadores sofre influências de agentes externos, tanto quanto da associação de agricultores rurais de Barra. O Estado interfere na colônia por intermédio da Capitania dos Portos e de instituições como o IBAMA ou companhias de desenvolvimento, como o Banco do Brasil. A Igreja interfere na colônia por intermédio das pastorais da pesca e das ONGs, principalmente através de movimentos sociais. 137 Outro banco que também costuma financiar equipamentos para a pesca artesanal no nordeste através do PRONAF é o Banco do Nordeste. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 172 projeto não foi aumentar a quantidade de pescado, mas sim incentivar a criação de peixes de espécies não nativas do Rio Grande e do Rio São Francisco. O primeiro projeto a ser implantado foi o da tilápia rosa (Oreochromis niloticus), pois é uma espécie que se reproduz muito rápido e que tem um potencial grande para a comercialização. Os líderes sindicais locais acreditam que a troca da pesca extrativista, de renda incerta, pelo cultivo da tilápia em estuário transformará a vida das comunidades envolvidas. Conforme o levantamento dos órgãos envolvidos com este projeto, a renda dos grupos familiares saltou de R$ 200,00 para R$ 600,00 mensais. Em Canudos não há criatórios de peixes ou estuários, e esta nova diretriz pouco mudou a vida dos pescadores do assentamento. Entretanto, o atual presidente da associação de produtores rurais de Canudos participa de um criatório de tilápia no assentamento do Barro Vermelho. Segundo afirmam os pescadores do assentamento, como a associação de Barro Vermelho tem menos problemas organizacionais, quase todos os projetos levados para essa localidade são implementados138. E assim, a única política pública que ainda paradoxalmente dá suporte à pesca artesanal da localidade é a política do defeso. Entretanto, ouso afirmar que, apesar de frágil, a ligação dos pecadores artesanais de Canudos com a associação de pescadores artesanais do município de Barra é fundamental para esta comunidade. 2.5. Atividades pluriativas Como viemos salientando desde o início deste trabalho, Canudos é um misto de uma comunidade camponesa centenária com um assentamento rural centrado na política de agrovilas. Desta fusão de sociabilidades, surgiram várias formas de reprodução de vida, e muitas delas não estão ligadas nem às atividades agrícolas e nem às atividades da pesca artesanal. Existem muitas outras atividades de trabalho que demonstram a plasticidade do tecido social, criado a partir das intervenções sofridas desde a implantação do assentamento nesta localidade. Entre as atividades pluriativas não agrícolas do assentamento, podemos citar a venda de combustível para veículos 138 Conforme Informativo da Prefeitura Municipal, Barra tem hoje três projetos de piscicultura consolidados – nas comunidades de Barro Vermelho, Água Branca e Primavera. O Projeto da Piscicultura conta atualmente com 100 pescadores/piscicultores diretamente envolvidos na manutenção dos tanques. A produção mensal de pescado está entre 6 e 7 toneladas por mês. A associação vende seu produto para a CONAB, mercado local, Salvador e Fortaleza. Sobre o assunto, ver: Informativo Oficial da Prefeitura de Barra/maio de 2010. Disponível em < http://www.barra.ba.gov.br/site/downloads/informativo/informativo_maio2010.pdf > Acesso em: 7 de agosto de 2010. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 173 automotivos, praticada por um dos filhos de uma família assentada que se autoidentificou através das categorias sociais lavrador/pescador. Suas vendas não superam 40 litros mensais. Indo de encontro a esta mesma lógica de busca de complementação da renda doméstica, quatro senhoras da comunidade também trabalham com a venda de geladinho em suas casas. A informante com a qual conversamos informou que vende entre 100 e 150 unidades por mês, a R$ 0,10 a unidade. Com relação a outros tipos de prestadores de serviços, existem quatro mulheres que recebem salário pela prefeitura: uma é professora, outra é zeladora e duas são merendeiras da escola municipal, sendo que uma delas ainda não é assentada pelo INCRA. E com relação à atividade de comércio dos produtos agrícolas locais, os atravessadores de mamona e de pescado também foram pesquisados, e segundo os dados coletados, existem tantos atravessadores quanto a quantidade de vendas na localidade, mas sempre que buscamos saber o nome dos atravessadores, apenas seis eram citados. De acordo com o relato de um deles, ele consegue por meio dessa atividade uma renda de R$ 200,00 a R$ 350,00 por mês, mas essa remuneração varia tanto quanto a produção interna do pescado e da colheita de mamona. Na comunidade existem atualmente onze vendas que podem ser divididas em duas modalidades: os botecos que revendem bebidas e trabalham com jogos de bilhar; e as vendas que comercializam, além de bebidas, produtos como sabão em pó, vassoura, gás, massas, manteiga, óleo, ovos, refrigerante, balas, salsicha, sabonetes, brincos e forros para mesa. Ao perambular pela comunidade e conversar com algumas mulheres, foi possível perceber que os locais de maior concentração dos homens em Canudos são os botecos. Diversas mães e esposas reclamaram de filhos e maridos que frequentam assiduamente esses locais, principalmente aos fins de semana. Em todos esses relatos, o ponto central colocado pelas mulheres como fator de discórdia intradoméstico eram as brigas entre os frequentadores depois que estes consumiam bebidas alcoólicas. Por outro lado, as vendas que comercializam produtos de limpeza, higiene e alimentação, geralmente são frequentados por criança e mulheres em busca de uma compra emergencial. Segundo relatos, os produtos vendidos nestes comércios são sempre caros, o que de certa maneira é justificado pela forma com que a venda é efetuada. Por total falta de dinheiro por parte dos compradores, a venda dos produtos é realizada quase sempre a prazo, mediante o uso de um caderno de notas. O vendeiro também se dá o direito de não efetuar a venda se a conta do freguês estiver alta. Como os trabalhos como diarista não são cotidianos, e como muitos não dispõem de uma forma de renda CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 174 semanal ou quinzenal, as contas nas vendas costumam ser anotadas e abatidas com o vencimento do mês para aqueles que são assalariados, aposentados, ou para os que são agricultores ou pescadores, com a venda de peixes e de sacas de mamona. Isso significa dizer que uma renda como a da previdência social torna-se imprescindível para os grupos domésticos e para o comércio local. Entre os onze assentados que também mantêm uma venda, mantivemos contato com três deles, os quais alegaram conseguir por meio dessa atividade uma renda que oscila entre R$ 150,00 e R$ 250,00 mensais. Todavia, boa parte desse dinheiro vem do abatimento da caderneta de notas em forma de mercadoria. Existem também as rendas advindas das atividades dos indivíduos inseridos nas migrações sazonais ou nos trabalhos temporários em fazendas da região dos municípios de Barreiras e de Luis Eduardo Magalhães, mas não obtivemos informações sobre quanto esse trabalho temporário gera de renda para o grupo familiar139. A migração é um evento típico do campesinato histórico nordestino e é uma estratégia fundamental para a reprodução o seu modus vivendi e da sua campesinidade. A estratégia mais fundamental para o grupo de origem são as migrações circulatórias, que costumam durar vários anos e, em muitas vezes, acabam afastando os indivíduos migrantes definitivamente do seu grupo social. No entanto, esses filhos sempre enviam somas de dinheiro consideráveis que ajudam na composição da renda dos seus grupos domésticos. Por essa razão, a migração é uma estratégia, porque agrega a possibilidade de uma nova renda à unidade familiar, e principalmente porque desafoga a parca estrutura fundiária da unidade doméstica140. E esta realidade é válida, tanto para o campesinato dito tradicional, como para os assentados provenientes das políticas públicas. Em um espaço reduzido de reprodução, os filhos precisam migrar para que o pequeno patrimônio territorial continue a existir, pois, afinal, a unidade de reprodução não pode ser subdividida. A tendência geralmente é que os filhos que migram primeiro levem os mais jovens num processo infinito e circulatório. E em Canudos esta realidade não é diferente. Os filhos migram porque a unidade adquirida por intermédio do INCRA não pode ser legalmente herdada e dividida. E, se fossem divididas, as famílias não sobreviveriam, pois não é possível para este campesinato produzirem e constituírem novas famílias em espaços ainda menores. 139 Esta estratégia de reprodução social é extremamente inconstante com relação às remessas de dinheiro por parte do indivíduo que migra. 140 Para este assunto, ver Woortmann (1997), Garcia Jr. (1987) e Cardel (1992, 2003) CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 175 2.6. O papel das políticas redistributivas Após falar da presença do Estado como um estranho ao mundo rural e demarcar as mazelas que este, através de suas constantes intervenções governamentais e institucionais, fomentou, é chegado o momento de salientar as intervenções positivas. Mesmo que muitas ações governamentais implementadas nas últimas décadas, em vez de produzirem o desenvolvimento local dos agricultores e pescadores artesanais, tenham produzido um processo ainda maior de degradação das relações sociais do grupo e, mesmo que a comunidade se mostre empobrecida, os programas de transferência de renda e as aposentadorias especiais se mostram fundamentais para a sobrevivência deste grupo de camponeses. Programas como o Bolsa Escola e as aposentadorias rurais e de pescadores artesanais são basilares para a micro economia local e para permitirem a sustentabilidade financeira das unidades domésticas. Conforme alega Abramovay (s/d), são exatamente os recursos oriundos das bolsas e aposentadorias que, em conjunto com os financiamentos, permitem que as unidades de produção continuem tendo acesso a recursos externos, extragovernamentais. E são esses programas de transferência ou de assistência previdenciária que permitem que a atividade financiada possa, por sua vez, ser quitada. Durante o trabalho de campo, conhecemos seis grupos familiares que são beneficiados com o Bolsa Família, programa criado pelo governo federal, de transferência de renda, e que tem como principal objetivo repassar aos beneficiados uma renda mensal em dinheiro para famílias que são consideradas como estando abaixo do mínimo vital de sobrevivência. Conforme o governo, essa ajuda serve para as famílias mais pobres terem acesso a necessidades básicas, como educação e alimentação. O programa beneficia famílias em todo o Brasil, que possuem renda menor que R$120,00 mensais por pessoa. O valor pago varia, dependendo da quantidade de pessoas que fazem parte da família e da situação de pobreza. Segundo o governo federal, o programa atende a mais de 12,4 milhões de domicílios. Para ter acesso a estes benefícios estatais, os interessados devem apresentar documentos pessoais (como RG e CPF), comprovante de residência atualizado e comprovante de renda de todos os dependentes. No entanto, em comunidades como Canudos, várias famílias não dispõem de documentos ou mesmo de condições de comprovarem renda. Na lista de beneficiados do INCRA, muitos nomes femininos estão como 1º titular, uma confirmação clara de que seus esposos não CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 176 tinham toda a documentação em ordem no momento da conclusão do processo do assentamento. Ao compararmos a listagem dos beneficiados com a dos assentados de Canudos, encontramos famílias que alegaram ainda não terem encaminhado o seu pedido de benefício porque não dispunham de condições para organizarem a documentação ou sequer tinham condição de pagar o transporte até a sede do município. A alegação de muitas famílias foi de que, apesar de estarem aptas ao benefício, não conseguiram todos os papéis, ou que, após encaminharem e estarem aptas, não foram contempladas. Como afirmamos anteriormente, em campo tivemos contato direto com seis famílias beneficiadas cujos valores recebidos oscilavam entre R$ 90,00 e R$ 134,00 mensais, mas na comunidade existem 55 unidades familiares beneficiadas com este programa e os valores pagos a elas variam entre R$ 40,00 e R$ 140,00. Outra renda fundamental para os moradores de Canudos é o defeso, política publica que delimita o tempo em que o pescador fica proibido de pescar para garantir a reprodução das espécies de peixes nativas. A confirmação da data do defeso e da piracema é publicada anualmente pelo IBAMA, mas geralmente coincide entre os meses de outubro e início de fevereiro ou de novembro a março. Durante os quatro meses de proibição, os pescadores de Canudos, que são vinculados à associação de pescadores, recebem o equivalente a um salário mínimo por mês, ou seja, R$ 510,00. Na comunidade existem apenas dezoito pescadores “fichados” na Colônia. Assim, os assentados que se autodenominam por meio das outras duas identidades sociais (pescador e lavrador ou vice-versa) não são associados e, por conseguinte, não recebem o benefício do defeso. Com relação aos dados do município como um todo e conforme o informativo da associação de pescadores de Barra, 1.400 pescadores tiveram acesso ao defeso no ano de 2009. E é importante salientar que, desde o mês de outubro de 2009, o indivíduo associado tem o direito de se aposentar pela colônia de pescadores ao completar 60 anos de idade. Mesmo sendo um benefício importante, esta nova categoria social de aposentadorias especiais cria certos problemas quando aplicadas à realidade empírica. Segundo o informante D.F.C. (pescador associado), o sistema de políticas públicas para o pescador artesanal tem dois problemas: primeiro, o defeso quase sempre atrasa por um ou dois meses, e, segundo, a colônia impede o pescador cadastrado de exercer outras atividades. Como vemos, estes dois fatores apontados pelo informante como problemáticos estão intimamente ligados. Segundo nos afirmou este associado, a colônia proíbe o pescador de “labutar com um palmo de terra”, pois só assim ele é caracterizado como um pescador e faz jus ao recebimento do benefício. Entretanto, esta CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 177 imposição aos pescadores artesanais associados cria uma situação paradoxal, pois, afinal, todos eles possuem áreas de plantio na caatinga, na beira do rio ou na ilha, e todos precisam sobreviver de alguma forma no período em que o benefício do defeso não é pago e que a pesca ainda está proibida. Além do defeso, o benefício da aposentadoria rural se constitui numa das principais rendas dos grupos domésticos de Canudos. Entrevistando os moradores do assentamento, verificamos que existem unidades domésticas que são quase totalmente mantidas pela assistência previdenciária, beneficiando três gerações de uma mesma família. Neste sentido, fica claro que a universalização das aposentadorias rurais possui uma função social redistributiva. Em Canudos, por exemplo, existem quarenta e seis pessoas aposentadas pelo sindicato rural e cinco moradores aposentados pela colônia de pescadores. A visibilidade desta política social incentiva um mínimo de cidadania através da adesão dos assentados às associações. Assim, existem na comunidade dezoito pescadores que contribuem para a colônia e quinze assentados que pagam o INSS, conscientes de que terão direito à aposentadoria aos 60 anos - os homens - ou aos 55 as mulheres. Atualmente, existem quarenta e seis aposentados pelo INSS na comunidade, o que não significa haver quarenta e seis unidades familiares beneficiadas, pois existem alguns grupos familiares com mais de um beneficiário. Da lista de 20 grupos familiares que pesquisamos como referência da diferenciação das unidades, em quatro deles, dois idosos são aposentados. Em suma, a universalização das aposentadorias rurais para outras categorias, como a do pescador artesanal, trouxe para a comunidade de Canudos o que os teóricos da teoria social contemporânea sobre os processos constituidores da cidadania costumam rotular como processos universais de reconhecimento e redistribuição por parte do Estado141. Entretanto, isto não significa que estas políticas públicas atinjam de forma homogênea e hegemônica o assentamento de Canudos. 3. PRÁTICAS COTIDIANAS DE RESISTÊNCIAS? Nas viagens de campo, e consequentemente nas visitas que fizemos às roças de beira de rio e às roça de ilha, nenhum jovem foi encontrado desenvolvendo atividades agrícolas. Esta observação não pretende ignorar a literatura especializada ou a 141 Sobre esse assunto, ver Mattos (2004) CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 178 percepção do trabalho de jovens e crianças na comunidade de Canudos enquanto um processo socializador. No entanto, é possível fazer uma relação entre o campo e a fala de alguns entrevistados com relação a esta ausência dos jovens no trabalho com a terra ou com a pesca. Segundo a informante M.F.S.S., mães e pais reclamam cotidianamente que seus filhos não se interessam mais pelos plantios das roças ou pela pescaria, ou que somente vão para as roças quando “as coisas apertam”, mas que trabalham sem nenhum comprometimento com o patrimônio familiar. O problema, segundo os pais, é que seus filhos acabam tendo muito tempo livre e, além de não “aprenderem”, dispõem de tempo livre para procurarem confusão ao circularem pelo assentamento. Esse desinteresse também foi relatado pela informante M.A.R., ao afirmar que: Minha roça de mamona tá acabando, os meninos não querem cuidar. Acaba perdendo, como perdeu uma boa que tinha aqui do lado de cima pertinho (apontando o lado de cima da estrada de rodagem de Canudos, próximo à entrada da comunidade) que Domingos teve que vender pro irmão dele, já que ninguém cuidava e ela tava acabando no mato também 142. O assentado F.A.S. reclama do mesmo desinteresse dos jovens pela agricultura, mas acrescenta que, em sua opinião, esse desapego tem relação com os benefícios previdenciários recebidos pelos pais e avós: Solteiro ou casadinho espera pelo pai que é aposentado e traz a feira. Então ele tá mais ligado é na pescaria que ele pega e não pega pra poder comer. Se ele não pegar o peixe, ele chega em casa, ele tem uma carne que o pai comprou, tem o feijão. O tempo de facilitar chegou pra prejudicar, num foi? Que roça? Quem deles que quer roça? 143 Com estes relatos não estamos descaracterizando a prática do trabalho familiar dentro da comunidade de Canudos. Apenas indicamos que o impacto de novas políticas públicas parece estar potencializando as mudanças do jovem com relação à terra e ao trabalho agrícola. Eles parecem estar resistindo às atividades agrícolas e às relações de sociabilidades 142 proporcionadas pelo trabalho familiar. Por outro lado, não Fragmento de uma entrevista realizada em Canudos, em 2008, com uma assentada de 52 anos de idade. 143 Trecho de entrevista realizada em Canudos, em 2010, com um lavrador assentado de 60 anos. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 179 desconsideramos o frágil momento de transitoriedade que os levam à fase adulta. Assim como não desconsideramos a possibilidade de uma relação de pertencimento mais intensa sendo desenvolvida entre os jovens do gênero masculino e o território de água. Não observamos, durante o trabalho de campo, jovens se direcionando para as áreas agrícolas, mas vimos, no decorrer do dia e no cair da noite, durante a semana e aos finais de semana, eles se encaminhando para a pesca. Havia um tom de brincadeira na feitura dessa atividade, e muitos deles pescavam com amigos, mas a atividade ocorria. Não existe, de nossa parte, enquanto cientista social, uma visão ingênua e uma exigência em relação à permanência ou ao continuísmo ou uma tendência positivada em relação a uma identidade social de lavrador ou de pescador artesanal. Até porque, não cremos na desvinculação completa dessas práticas com os processos de reconfiguração da realidade contemporânea. Existe a certeza de que vivemos um período de transformação e de modernização das relações no campo e que os jovens devem ser vistos como uma categoria social com demandas próprias. As transformações e as permanências passam por ações coletivas e ou políticas públicas adequadas aos atores sociais, como reforma agrária, políticas públicas, como PRONAF-Jovem144, PRONAFMulher, entre outras Entretanto, como afirma Mattos (2004), as políticas públicas têm um caráter dúbio, ou seja: Como se pode perceber os remédios parecem contraditórios, uma vez que devem enfatizar, ao mesmo tempo, a igualdade e a diferença. Como alternativa a dilemas desse tipo, Fraser analisa as estratégias,chamadas por ela, de afirmação ou de transformação. Para vencer os dilemas entre redistribuição e reconhecimento, pode-se adotar medidas afirmativas ou transformativas. As medidas afirmativas têm por objetivo a correção de resultados indesejados sem mexer na estrutura que os forma. Já os remédios transformativos têm por fim a correção dos resultados indesejados pela reestruturação da estrutura que os produz (2004:05) 144 A linha de crédito de investimento para jovens tem como beneficiários jovens agricultores e agricultoras pertencentes a famílias enquadradas no PRONAF. Eles devem ser maiores de 16 e terem até 29 anos e devem atender algumas condições em relação ao ensino formal. O limite de crédito por beneficiário é de até R$10 mil reais. A taxa efetiva de juros é de 1% ao ano. Uma investigação sobre como os jovens se colocam frente a estes apontamentos não faziam parte do recorte da pesquisa. Entrevistas ou depoimentos não foram realizados com esse grupo. Nosso objetivo é apenas apontar que existem mudanças e resistências por parte dos jovens de Canudos em relação às atividades práticas nos espaços agrícolas. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 180 Por outro lado, observamos que as políticas públicas direcionadas à desvinculação do trabalho e da educação estão desconstruindo uma das estratégias mais fundamentais da ética camponesa, que é a transmissão intergeracional do “saber-fazer”. Como ensinar um filho ou uma filha as técnicas de plantio, de colheita, de extrativismo e de beneficiamento, se o trabalho como um elemento de socialização da criança camponesa vem sendo confundido pelas políticas públicas, e principalmente pelos técnicos governamentais que as aplicam, como uma forma de trabalho infantil? Defendemos, por meio da nossa experiência em campo e por meio da literatura especializada (Woortmann, 1988; Cardel, 1996) que o trabalho camponês não se configura num processo de exploração, na medida em que se baseia num conjunto de forças subsumidas pelo grupo familiar. Daí a importância da compreensão efetiva, por parte do Estado, do que vem a ser agricultura familiar. Desta forma, para que uma criança se torne um camponês, ou como preferem os técnicos governamentais, um agricultor familiar, é necessário que, além dela ter acesso à escola e à segurança alimentar, ela seja ensinada, desde cedo, a lidar com a terra. O trabalho de uma criança dentro do grupo doméstico camponês não pode ser considerado um trabalho de exploração infantil, mas sim um processo de socialização, desde que o seu direito de ir à escola e de agir como uma criança seja resguardado. Em suma, o trabalho infantil só pode ser criminalizado quando ele é utilizado pelo Capital, e está claramente inserido num processo de exploração. Entretanto, não negamos o quanto é difícil a compreensão desta realidade por parte dos agentes sociais e dos mediadores que agenciam as políticas públicas no campo. E em Canudos esta realidade não é diferente. Entretanto, as questões de gênero continuam sendo irrelevantes diante do controle do trabalho infantil. É comum vermos as meninas entre 10 e 12 anos realizando tarefas muito pesadas para a idade, como carregar latas de 20 litros de água na cabeça, passar horas embaixo de um sol escaldante lavando roupas e vasilhas, e isto não ser considerado algo negativo nem para os pais e nem para os agentes sociais locais. Por outro lado, é comum também vermos adolescentes homens sendo poupados do trabalho com a terra e com o rio, mas frequentarem bares e ingerirem bebidas alcoólicas sem nenhuma censura dos pais ou da comunidade. Em suma, as políticas para os jovens e as crianças no campo ainda são ineficientes em muitos sentidos, e isto reflete, sobremaneira, na questão da manutenção do homem do campo na sua própria terra. Entretanto, como apontam vários autores, os “fracos” e os “subalternos” também possuem formas e estratégias de poder, e que podem, num certo sentido, reequilibrar as CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 181 forças externas e internas. As crianças e os jovens do assentamento aprendem, desde muito cedo, que eles fazem parte de um sistema de forças desiguais, mas que eles estão num assentamento e que, como assentados, possuem canais que devem ser acionados para que a realidade vivida possa ser modificada. O que não significa que possa ser melhorada. 3.1. Maledicências, boicotes, furtos e sabotagem Neste sentido, Scott (2002) traz em seus escritos questões elucidativas sobre os conflitos internos em comunidades rurais. Assim como Elias (2000), ele está interessado em microanálises e em estudar conflitos sociais em parâmetros de microescalas. Em primeiro lugar, Scott não crê na imagem dos sujeitos sociais camponeses como vítimas passivas do processo que os alcançam. Para ele, os camponeses não são meros reprodutores ou indivíduos passivos das condições geradas por macroestruturas econômicas e sociais, mas são sujeitos que atuam a partir das condições objetivamente dadas, a partir de sua própria percepção delas e de sua racionalidade. Segundo Menezes (2002), para James Scott a racionalidade camponesa não é algo unidirecional, mas se compõe por meio de uma associação de fatores econômicos, sociais e culturais. Portanto a perspectiva investigativa de Scott está centrada nos atores e, por conta disto, pressupõe uma variedade de resultados. James Scott sugere aos pesquisadores que eles investiguem a heterogeneidade das estratégias e lógicas divergentes dos diversos grupos sociais, e é dentro desta perspectiva teórica e metodológica que desenvolve a noção de “práticas cotidianas de resistência”. Scott entende que, na maioria das vezes, a resistência às relações de dominação é expressa através de práticas rotineiras e por meio de expressões difusas e fragmentadas. Para isso, o autor centrou sua análise especialmente nas tensões e lutas não visíveis dentro da estrutura social, dedicando-se a analisar formas de resistência cotidiana, tanto individual como coletivas. Neste sentido, ele contesta a tese de que o grupo social ou o indivíduo que não se envolve em organizações coletivas ou revolucionárias seria portador de “falsa consciência” e que, para alcançar a “consciência verdadeira”, seria preciso haver uma intervenção de agentes externos como líderes de movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos ou grupos revolucionários. Diferentemente dos movimentos sociais, que são expressões institucionais, coletivas, formais e públicas, as CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 182 práticas cotidianas requerem pouca ou nenhuma coordenação, pois são informais e ocultas. E é isso que as fazem tão eficazes. Para Scott (2002) as “práticas cotidianas de resistência” se expressam, por exemplo, na prática de dissimulação, condescendência, submissão falsa, saques, incêndios premeditados, ignorância fingida, fofoca, difamação, maledicência, sabotagem e outras armas dessa natureza. Conforme afirma o autor, essas formas de luta de classe têm certas características em comum: requerem pouca ou nenhuma coordenação ou planejamento; sempre representam uma forma de autoajuda individual; evitam, geralmente, qualquer confrontação simbólica e real com a autoridade ou com as normas impostas pela elite. Entender essas formas comuns de luta é entender o que muitos dos camponeses fazem nos seus cotidianos para melhor defender seus interesses. As pequenas rebeliões podem ter uma importância simbólica por sua violência e pelos seus objetivos revolucionários, mas, para a maioria das classes historicamente subordinadas, tais episódios raros foram mais momentâneos do que as silenciosas guerrilhas que têm lugar no cotidiano de várias populações. (SCOTT: 2002, p.11) Além da resistência cotidiana, existe a possibilidade de confrontação direta (como a ocupação pública de terras, desafiando o sistema de propriedade). Mas a regra geral é a forma de resistência passiva, expressa através de sabotagens sutis, na não participação, e ainda, na evasão. Ou seja, as práticas de resistência não são pensadas como reações ou oposições às formas de dominação, mas como diversas estratégias que grupos sociais utilizam de forma a garantir sua autonomia e dignidade em face às relações de exploração e dominação. Em muitas situações, essas estratégias se caracterizam como adaptação ou acomodação às relações de dominação e, em outras, de contestação. O argumento central de Scott (2002) é que a cultura da resistência pode tornar completamente inócuas as políticas inventadas pelos seus supostos superiores. As microrresistências145 não são insignificantes e podem, em muitas vezes, mudar determinadas práticas. 145 Micro-resistência entre camponeses é qualquer ato de membros da classe que tem como intenção mitigar ou negar obrigações (renda, impostos, deferência) cobradas a essa classe por classes superiores (proprietários de terra, o estado, proprietários de máquinas, agiotas ou empresas de empréstimo de dinheiro) ou avançar suas próprias reivindicações (terra, assistência, respeito) em relação às classes superiores. (SCOTT, 2002: p 24) CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 183 O argumento teórico utilizado por Scott vai de encontro com a realidade empírica de Canudos, exaustivamente descrita neste exercício acadêmico. O autor criou uma teoria sobre as micro “práticas cotidianas de resistência” depois de ter realizado observação participante durante dois anos em uma aldeia no Estado de Sedaka, Malásia. Segundo o autor, a introdução de máquinas coletoras de arroz nas comunidades locais desencadeou resistências ativas, que não se restringiram a debates, mas a práticas que buscavam impedir a mecanização da colheita. As práticas às quais o autor se refere começaram com sabotagens e obstruções, como remover as baterias das máquinas e jogá-las dentro das valas de irrigação; destruir carburadores e distribuidores e jogar areia e lama nos tanques de gasolina. A descrição feita por Scott (2002) nos remete ao processo que Canudos criou quando houve a implantação da casa de farinha mecanizada coletiva e o projeto de irrigação em áreas comunais. Conforme foi descrito, o projeto não foi implantado porque, antes da energia elétrica ser instalada, parte dos canos de irrigação que já havia sido instalada foi quebrada e roubada. As respostas que explicariam a razão de tal comportamento por parte deste grupo social estão na literatura especializada, que fala da dificuldade que grupos camponeses têm em aderirem a projetos coletivos; e na dificuldade que grupos sociais com precedências históricas distintas têm em acreditar que, dentro de um espaço artificial, como assentamento e agrovila, possa ser criado um processo de sociabilidade simétrica, sem o cimento social anterior, dado pelos processos de sociabilidade reificados pelos laços de amizade, parentesco e compadrio.. Para Scott, as táticas usadas pelo grupo social que ele pesquisou realmente funcionaram por um longo tempo. O boicote verdadeiramente representou uma forma muito cautelosa de resistência, não tendo havido, em nenhum momento, uma confrontação aberta. Em Canudos o confronto direto também nunca existiu. Os canos de irrigação foram quebrados e retirados, assim como a estrutura física da casa de farinha e do aprisco foi depredada ou reutilizada de forma individual. No entanto, ninguém foi apontado como o único autor destes eventos desestruturantes. Voltando ao campo de pesquisa de Scott, outra forma de resistência significativa entre os camponeses de malasianos foi o furto de grãos dos grandes proprietários da região. O montante de grãos de arroz roubados, embora não representasse um montante tão grande em relação à colheita, foi alarmante para os fazendeiros, que acreditam num provável crescimento CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 184 desse montante. Scott (2002) sabe que nem todos os roubos podem ser considerados resistências, mas, conforme afirma o autor, é inteiramente possível que alguns dos moradores, de algum modo, considerem tais atos, não como roubo, mas como a apropriação do que eles sentem que lhes pertencem, devido aos costumes antigos – uma espécie de imposto para substituir os presentes ou salários que recebiam dos fazendeiros. No assentamento de Canudos, os furtos de ferramentas, como enxada, peneira, fios de arame, pequenos animais domésticos e produtos agrícolas são lamentações recorrentes em alguns depoimentos. Mas até que ponto, em uma comunidade conflituosa como Canudos, pequenos furtos são apenas uma usurpação?146 Assim como em Canudos, a resistência em Sedaka, conforme narra Scott (2002), não tem nada do que alguém pode encontrar na história típica dos estudos sobre conflito rural. O mesmo podemos afirmar para a realidade social cotidiana de Canudos. Por mais que a realidade social e fundiária desta comunidade seja complicada, não houve na história recente desta localidade motins, incêndios culposos, banditismo social organizado ou violência aberta. O assentamento de Canudos não foi uma desapropriação violenta ou uma desapropriação programada por sindicato ou MST. Ou seja, a realidade de microrresistência deste assentamento não está relacionada a movimentos políticos, a ideologias partidárias ou a alguma estrutura revolucionária Como em Sedaka, no assentamento, as “práticas cotidianas de resistência” requerem pouca coordenação, pois elas são individuais e acontecem quase sempre durante a noite, e ninguém é responsabilizado. Ou seja, como afirma Scott, onde a resistência é coletiva, ela é cuidadosamente prudente, e onde o indivíduo ou pequeno grupo atacam, ela é anônima e geralmente noturna. Em Canudos há prudência e segredo. Prudência retratada nas entrevistas de campo, onde os atores sociais falam pela voz e pelo silêncio. Prudência momentaneamente esquecida quando, ao caminhar pelas moradias respondendo a convites para um copo de leite, um café da tarde, um jantar em família ou uma procissão de domingo, ouvimos histórias, maledicências e fofocas contadas em meias palavras, quase confessionais. São vizinhos e compadres fazendo acusações veladas de roubo, de injúrias e de atos imorais. Em todo o nosso período de campo, percebemos uma resistência ao “outro”. Um outro que é pensado como “de fora” e que possui um sentimento de pertença 146 Sendo assim, estudiosos de escravidão, que têm enfrentado mais diretamente essa dubiedade, quando identificam que alguns atos de protesto velado, como a acomodação e os roubos, eram frequentemente a única opção disponível, tendem a considerá-los como formas de resistência “real” (SCOTT, 2002: p25) CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 185 distinto, como também percebemos uma resistência ao outro que detém mais “saber” sobre práticas agrícolas e que representa o poder local. Há o que Scott denomina de afastamento da deferência. Ignorar o elemento de auto-interesse na resistência camponesa é ignorar o contexto determinado não apenas da política camponesa, mas da política da maioria das classes subalternas. É precisamente a fusão entre auto-interesse e resistência que se mostra como uma força vital, animando a resistência de camponeses e proletários. Assim, cabe esclarecer que quando o camponês esconde parte de sua colheita para evitar pagar impostos, ele está tanto enchendo sua barriga quanto destituindo o estado de grãos. Por sua vez, quando um soldado camponês deserta do exército porque a comida é ruim e sua colheita em casa está madura, ele está tanto cuidando de si mesmo quanto negando a artilharia ao estado. Em suma, quando tais atos são raros e isolados, eles são de pouco interesse, mas no momento em que eles se tornam um padrão consistente, embora não coordenado, estamos lidando com resistência. Essas formas de resistência podem não ganhar batalhas premeditadas, mas são admiravelmente eficientes em campanhas de confronto de longo prazo (SCOTT, 2002: p.27) O ponto principal que o autor James Scott tenta demonstrar em seu argumento é que determinadas práticas cotidianas têm impacto sobre as relações sociais entre os camponeses e os proprietários de terras, os comerciantes e o status quo. O assentamento de Canudos vive isso cotidianamente, através da fragmentação de suas relações sociais, de sua sociabilidade, de suas relações com os agentes externos e, consequentemente, com o Estado. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 186 CONSIDERAÇÕES FINAIS As pesquisas atualmente apontam para a heterogeneidade e o alto grau de complexidade dos estudos empíricos sobre campesinato no Brasil. A utilização de numerosos conceitos e categorias analíticas, como comunidade centenária, campesinidade, ruralidade, agricultura familiar, pluriatividade, lavrador, pescador, etc., além de demonstrar uma relação de distintividade e contrastividade, sugere que o emprego de tais conceitos não está isento de contestações. A intranquilidade conceitual no âmbito dos Estudos Rurais contemporâneos surge da impossibilidade empírica de localizá-los dentro de fronteiras teóricas bem definidas. No caso específico do campesinato brasileiro, observamos uma relação ambígua de continuidades e descontinuidades históricas entre os elementos que compõem as diversas realidades empíricas do universo rural. Por esta razão, Wanderley (1996) declara que, por mais que a agricultura familiar brasileira tenha se adaptado às reivindicações da agricultura moderna, ela ainda traz elementos que compõem o modo de vida camponês. Na realidade de Canudos, por exemplo, a roça de mamona é um espaço de trabalho camponês que mantém estreitas relações econômicas modernas com o mundo externo, representando bem este argumento exposto por Wanderley, pois este espaço de trabalho significa a possibilidade de continuidade do modus vivendi camponês por parte daqueles assentados, impedindo a quebra da ligação da unidade familiar com o patrimônio. Por outro lado, a existência do plantio desta oleaginosa na comunidade de Canudos representa a realização da lógica moderna, por parte dos agricultores assentados, da renda monetária estrita, advinda da venda do seu produto para as empresas de biocombustíveis. É inegável que o espaço rural nordestino, permeado por várias singularidades sociais – pescadores artesanais, marisqueiras, comunidades de fundo de pasto, sertanejos, quebradeiras de coco, beradeiros – colabora para a formação de um campesinato multi-identitário147, que é fruto, não só de um sentimento de pertença, de relação com o trabalho com a terra e/ou a água, mas também de uma luta por demarcações de territórios. As comunidades rurais sempre foram invisibilizadas pelo 147 Vale frisar que não ignoramos que o processo identitário se constrói pela distintividade e pelo contraste, portanto, ela é uma relação construída socialmente com o “outro”, estando sujeita a manipulações, positivações ou processos de negação, conforme as estratégias de sobrevivência criada pelos grupos sociais. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 187 Estado. E este, por conseguinte, quando se posiciona frente às comunidades rurais, geralmente propõe políticas intervencionistas frente a uma situação de conflito territorial, e quase sempre tem uma postura desenvolvimentista que visa a atender a interesses que não necessariamente correspondem aos dos grupos menos favorecidos. Além das intervenções governamentais e institucionais não representarem, em muitos casos, o desejo dos grupos sociais envolvidos, os mediadores estatais não levam em conta a possibilidade de serem portadores de projetos com ideologias que não correspondem à realidade vivida pelos grupos mediados. Muitas das ações idealizadas por mediadores, como o Estado, a Igreja, o MST, a FETAG e as ONGs não encontram correspondência na prática. Tais mediadores ignoram que um espaço territorial, permeado por sociabilidades e identidades sociais distintas, traz em si conflitos internos, os quais influenciam a assimilação ou a recusa de determinadas medidas institucionais. Ou, como alerta Little (2002), os processos de territorialização surgem em “contextos intersocietários” de conflito, e esta realidade é sempre matizada pelos agenciadores responsáveis pelas implementações das políticas públicas. Ao operarem com linguagens unilineares, os mediadores acabam gerando um grande desencontro, mesmo que esta não seja realmente a intenção. Embora o assentamento de Canudos apresente intervenções desastrosas por parte dos mediadores e do poder público em várias esferas frente à pauperização da comunidade, este grupo social não deixou de tecer aspectos essenciais de seu modo de vida. Utilizando várias estratégias de sobrevivência como a renda com a pesca, com a mamona, com o plantio em área de lameiro e vazante, com a migração sazonal e circulatória, e fundamentalmente com as rendas dos benefícios das políticas públicas, como os da previdência social e os da transferência de renda. O nosso trabalho de campo ressaltou características peculiares de um grupo social que, apesar de fragmentados, compartilha entre os seus grupos domésticos um certo imaginário camponês, onde a terra e a água se complementam. E tanto quanto o grupo de camponeses estudados por Fraxe (2000), as características mais peculiares deste campesinato são a dependência em relação aos ciclos naturais de estiagem e de chuva; o intenso conhecimento destes ciclos que se refletem nas estratégias de manejo; a noção de território; o uso de tecnologia simples, tanto no plantio quanto na pesca; a pequena produção para o consumo e a venda; a opção pela policultura; a utilização de mão de obra predominantemente familiar; a hierarquia paterna; e a divisão de trabalho pautada nas relações de gênero e geração. Em resumo, o grupo camponês do assentamento de CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 188 Canudos é constituído por famílias lavradoras e pescadoras que primam pelo trabalho familiar e que possuem uma relação complexa com o território que ocupam. Entretanto, por todas as particularidades da história recente desta comunidade, Canudos não se constitui como um campesinato histórico típico, em função do seu déficit de sociabilidade. A identidade do grupo apresenta-se fragmentada entre as atividades realizadas nos territórios de terra e de água, e as relações intergrupais não estão pautadas nas relações simétricas e familísticas do parentesco real e espiritual, ao contrário da realidade de grande parte do campesinato sertanejo brasileiro. Assim, as práticas de ajuda mútua, também conhecidas como adjutório, boi roubado ou mutirão não são típicas desta comunidade, artificialmente recriada pelo INCRA. Apesar de Canudos ser um assentamento criado na década de 1990, os lotes ou os terrenos das unidades familiares assentadas ainda não foram demarcados pelo órgão. Assim, o local e a quantidade de terra trabalhada pela unidade familiar estão vinculados a uma maior ou menor precedência das famílias na localidade, como também à quantidade de mão de obra de que cada grupo doméstico dispõe. Esta realidade imposta é o nó górdio desta comunidade e a fonte dos seus conflitos estruturais e cotidianos. Destarte, sem que o Estado tenha terminado de realizar o seu papel como implementador de um espaço organizativo, os assentados criaram formas próprias de ocupação. E, dentro desta lógica, as famílias camponesas de Canudos plantam individualmente em áreas individuais e em áreas consideradas comunais. E seguindo esta lógica, as plantações em terrenos de ilha ou beira de rio (áreas proibidas) foram inicialmente sendo demarcadas pela precedência, e posteriormente pela capacidade de adquiri-las mediante pagamento. Entretanto, se a lógica da renda fundiária se impôs no território de terra, no território de água as regras se efetivaram de forma mais rígida e clara. Neste lócus de trabalho, os espaços de pesca não são individuais, e a ordem dos barcos que se aproximam primeiramente dos pesqueiros é rigorosamente respeitada. Existe, inclusive, um acordo tácito entre os pescadores da comunidade, que os impedem de pescar em frente às roças de ilha que não as suas. E assim, de forma tortuosa e conflitual, algumas regras foram sendo estabelecidas entre os grupos domésticos do assentamento, para que um mínimo de sociabilidade fosse criado. Curiosamente, o espaço mais regulamentado não é o que foi desapropriado para o assentamento, mas as áreas públicas que circundam a comunidade, como as áreas de beira de rio e as ilhas fluviais. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 189 Com relação às estratégias de sobrevivência dos grupos domésticos, em Canudos há uma somatória entre a renda da terra, a renda da água e os benefícios da previdência social e de transferência de renda que propiciam um certo equilíbrio para o grupo. O que significa dizer que a necessidade econômica e a busca pelo equilíbrio da unidade doméstica podem, portanto, impor procedimentos, violação de costumes e modificações constantes. Há, por exemplo, violações de hábitos basilares da campesinidade, como a baixa reciprocidade, e circulam entre os grupos mais “recursos informacionais” (Loera, 2006) e fofocas do que recursos materiais. Ao contrário de outras comunidades camponesas, inclusive comunidades circunvizinhas148, em Canudos, a doação de pescado, de carne de caça e de animais domésticos e o empréstimo de grãos entre famílias são hábitos inexistentes. Apesar de alguns moradores terem se declarado apenas como lavradores e outros como pescadores, no assentamento não existe uma atividade exclusiva: as atividades de plantio e pesca são simultâneas e complementares. No que concerne aos grupos sociais salientados, acreditamos que a autoidentificação tem relação com o sentimento de pertencimento a um ou a outro território, e com a política pública à qual está vinculado. A identidade de lavrador, que, de acordo com a descrição sobre o grupo, é alicerçada no imaginário da organização camponesa, é positivada se o individuo for aposentado como trabalhador rural ou recolhe para a previdência com este intuito. Da mesma forma, o assentado que se autoidentifica como pescador, além de preferir esta atividade, geralmente é associado à colônia de pescadores e recebe o defeso ou é aposentado como pescador artesanal. Mas a grande maioria se autoidentificou como portador das duas identidades sociais, mesmo não sendo legalmente ligados à colônia de pescadores ou à associação de produtores. Em resumo, na comunidade pesquisada, mesmo após o benefício da política pública de assentamento, a identidade de lavrador ou de trabalhador rural não se tornou homogeneizante, já que a identidade social do grupo é composta por elementos ligados à terra e à água. E, pelo que pudemos compreender sobre a realidade social de Canudos, os assentados parecem lidar muito bem com a duplicidade identitária por eles estabelecida. Assim, quando os lavradores/pescadores não pescam para a comercialização, eles pescam para o consumo, e não se abstêm de venderem um pescado quando acreditam que ele irá render um bom dinheiro. Mesmo quando pescadores/lavradores afirmam que plantam apenas para o consumo, eles, em 148 Ver os estudos de Cardel (1992 e 2003) e Viana (2009) sobre outras comunidades camponesas do município de Barra/Ba. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 190 sua grande maioria, não abandonam suas roças de mamona, pois sabem que, se necessário, podem recorrer a esta renda extra. Ou seja, o grupo camponês em voga se situa em um emaranhado formado por uma multiplicidade de identidades sociais, onde a identidade única, na práxis, não funciona. Da mesma forma que existe um continuum e um movimento pendular entre o camponês e o trabalhador rural proletarizado, estudado por Velho (1982), parece existir um pêndulo entre as identidades sociais encontradas em Canudos. Indo um pouco mais adiante neste modelo típico ideal, percebemos que esta realidade empírica também pode ser entendida como um processo de etnogênese aplicado a grupos camponeses, uma vez que, conforme Cardel (2010): [...] este processo é fartamente utilizado pelos grupos sociais subalternos como um instrumento político de empoderamento por meio de um discurso com fortes contornos de distinção identitária, revelando a plasticidade e a capacidade de adaptação dos grupos sociais frente às mudanças imponderáveis. Esta reconstrução de autopercepção grupal é um paradigma que acompanha o Homem Contemporâneo. Como nos lembra Simmel, os valores são relativos no tempo (história) e no espaço (estrutura), o que nos leva a observar que a existência grupal é uma resultante de variáveis práticas que passam da singeleza dos hábitos alimentares à crueza das hierarquias de classe, gênero e status. E para aqueles que não se encontram nessa conjunção de tempo e espaço, cabe-lhes apenas a insignificância da estrangeiridade, da liminaridade e da invisibilidade (CARDEL, 2010: p.5). Isso significa dizer que comunidades rurais podem reelaborar suas identidades sociais ou criar novos sujeitos sociais como uma estratégia, seja porque sofrem com conflitos agrários ou com as intervenções do Estado, ou mesmo se veem inseridos na possibilidade de serem objetos de políticas públicas de reconhecimento e redistribuição. Canudos, por exemplo, aparenta ser uma típica comunidade camponesa, mas, após ser reconfigurada em um assentamento pelo INCRA, com o assentamento de famílias advindas de localidades distintas, a identidade social dos grupos assentados sofreu alterações em suas relações intra e intergrupais, havendo um acentuado conflito no interior dos grupos. Esses conflitos estão relacionados com a história de cada grupo assentado, ou seja, são conflitos decorrentes das diferenças de origem, das diferenças de experiência e dos propósitos iniciais para a criação do assentamento numa área onde havia uma comunidade camponesa centenária. Os conflitos se explicam porque a sociabilidade referencial atual deste grupo perdeu os padrões comunitários, pautados em CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 191 relações de parentesco real ou imaginário, e a relação comunitária teórica que os mediadores buscam inserir por meio de projetos coletivos não encontra respaldo na prática. Em suma, a situação de deslocamento territorial e de mudanças advindas da política de assentamento fez com que estes atores sociais abrissem mão dos seus sistemas tradicionais de representação e reconstruíssem um novo universo, o que alterou consequentemente a identidade camponesa tradicional, pautada nas relações de vizinhança, compadrio, descendência e herança, ajuda mútua, dependência, memória coletiva, pertencimento e patrimônio familiar. Da mesma forma, a imposição de uma agrovila significou a ruptura nos domínios complementares entre casa e roça, moradia e trabalho, resultado da separação entre os domínios público e privado. Desta forma, houve uma recriação dos sistemas simbólicos em uma nova realidade sociocultural, o que demonstra que, nas situações da vida cotidiana, as regras ou as normas rígidas também podem ser adaptadas, flexibilizadas e ajustadas, e que a adaptabilidade depende do contexto sociocultural no qual são aplicadas. Para Canudos, as formas adaptativas, criadas após o processo de intervenção, não foram positivas, como esta pesquisa tentou demonstrar. Como procuramos evidenciar, o camponês, o meeiro e o posseiro transplantados para Canudos mudaram de categoria e passaram a ser assentados frente ao poder público. Entretanto, esta categoria não os define enquanto sujeitos sociais. Conforme Martins (2003), o sujeito da reforma agrária não é o sujeito individualizado do programa do INCRA, e é bem diferente do sujeito coletivo que a categoria assentado faz supor. A nosso ver, o sujeito da reforma agrária tem uma difusa identidade própria, muito complexa e pouco política. Na nossa concepção, os assentados não têm a sua práxis camponesa devidamente compreendida por seus tutores ou agenciadores, pois a visão que os mediadores possuem do assentado é puramente ideológica. Por outro lado, os assentados também não optam por criar suas próprias demandas e não escolhem a submissão e a dominação patrimonial e clientelista dos serviços de intervenção do Estado por livre e espontânea vontade. Por esta razão, compartilhamos da hipótese de Martins (2003) e não acreditamos que um assentamento agrário seja base ou reforce a identidade social camponesa, mas ao contrário, ele colabora para fragmentá-la. Carvalho (1999) compartilha desta mesma visão de Martins, e trabalha com a mesma hipótese de que o espaço civilizatório do assentamento rural é um palco de interações conflituosas entre vários agentes sociais. Suas observações sobre a CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 192 configuração e a construção de identidades sociais em assentamentos se aplicam muito bem no espaço e no imaginário social de Canudos. De forma resumida, podemos afirmar que, em comunidades artificialmente criadas pela política de Reforma Agrária Estatal, encontramos as seguintes realidades: • Em assentamentos que foram constituídos por famílias de diversas origens geográficas e com histórias sociais de vida distintas, há tendência de se constituírem grupos sociais autoidentificados pelo sentimento de origem, formando assim uma realidade fragmentária; • Aqueles assentamentos onde as famílias já eram moradoras da fazenda desapropriada, ou do seu entorno, como posseiras, parceiras, agregadas, assalariadas ou quilombolas, onde a identidade social dá-se pela rede de relações sociais consolidadas historicamente, há a tendência de reprodução de uma vida social similar àquela que vivenciaram nos contextos sociais anteriores ao assentamento; • Naqueles assentamentos constituídos por número elevado de famílias (mais de 100) com origens, biografia e inserções sociais distintas entre si, são bastante remotas as possibilidades, a curto e médio prazo de que se estabeleçam padrões de comportamento comuns entre elas, a partir das interações sociais vivenciadas no assentamento; • As formas de associativismo estimuladas de fora para dentro e, mesmo aquelas constituídas a partir de iniciativas internas, mas advindas de exigências de fora (organismos de governo, partidos políticos, movimentos sociais), não proporcionam necessariamente as possibilidades de formação de identidade social entre as famílias assentadas; • Naqueles assentamentos onde não foram equacionadas as demandas da juventude, como estudo, trabalho e lazer, observa-se uma perda do CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. dinamismo social e econômico interno com tendências 193 ao estabelecimento de relações de assalariamento. Tanto para Martins, como para Carvalho, o que se cria em um assentamento feito nos moldes atuais é um quadro social de incerteza, tanto em relação aos companheiros, quanto em relação aos vizinhos e aos agentes de mediação. Este quadro de fragilidade do tecido social criado artificialmente faz com que qualquer desconexão nos relacionamentos interfira nos mecanismos de socialização, e estes podem deixar de operar. O esforço em implementar projetos de coletivização forçada de fora para dentro, por intermédio da ótica dos mediadores, fragiliza esta conexão de relacionamentos, na medida em que há uma ruptura entre o desejo e o projeto do assentado e os projetos dos mediadores e, consequentemente, faz surgir uma forte resistência a estas medidas. De forma similar, o grupo social de Canudos, quando confrontado com os vários projetos impostos como medidas mitigatórias, utilizou de elementos como a fofoca, os rumores, os pequenos furtos e a depredação das infraestruturas para se contrapor às mudanças sociais trazidas por estranhos, e para demonstrar subjetivamente que existe uma discrepância entre a sua realidade social e os projetos propostos. Estes elementos são, segundo Scott (2002), em muitos casos, formas de resistência cotidiana e, através deles, os grupos mobilizam informações, ideias e relações sociais, mesmo que o uso de elementos, como o mexerico, signifiquem um processo de estigmatização e de marginalização do próprio grupo ou de membros no interior deste grupo. Conforme retrata Elias (2000), determinados mexericos, piadas e comentários pouco lisonjeiros que os “de dentro” (estabelecidos) ou os “de fora” (outsiders) se esmeram em fazer circular, mostram que a tentativa de desabonar o outro grupo gira em torno de brigas pelo poder e da busca de uma identidade positivada. A identidade positivada está baseada na anterioridade do grupo à localidade e na procedência das unidades familiares. A prioridade na chegada ao lugar se tornou o principal fundamento da divisão e da organização da vida social do lugar, e serve de base, tanto para a colaboração, quanto para a discriminação e a conflitividade. O que significa dizer que a representação que um grupo faz do outro influencia na construção identitária de todos os grupos envolvidos. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 194 Em suma, atualmente, no espaço rural brasileiro, vive-se um cenário de luta por reconhecimento de identidades de grupo e por redistribuição149. Assim como existem grupos sociais que buscam reconhecimento territorial, acesso à propriedade fundiária e visibilização, outros buscam se reorganizar frente às políticas públicas fundiárias. O grupo que compõe o assentamento de Canudos não foge a esta realidade Como a grande maioria do campesinato brasileiro vive um processo constante de invisibilização, mesmo sendo paradoxalmente alvo das políticas públicas, estes grupos acabam criando estratégias de sobrevivência autônomas e contraditórias. Por causa da invisibilidade estrutural a que estão sujeitos, as políticas públicas estatais não transversalizam seus imaginários, e acabam não obtendo muitos resultados positivos. Quando o contexto de precariedade a que estas comunidades estão sujeitas vem à tona, elas conseguem ser incluídas em algumas políticas públicas, e os grupos camponeses acabam tendo acesso a ações institucionais afirmativas. Entretanto, ações afirmativas não impulsionam mudanças, pois são paliativas, quando não se tornam desastrosas. Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que as atuais políticas de reconhecimento e ações afirmativas realizadas por parte do Estado, e por intermédio de instituições como a FETAG ou a Igreja, agora reelaborada sobre a denominação ampla de políticas para a agricultura familiar, apesar de não abarcarem o ideário camponês, conseguem implementar algumas ações positivas. Apesar da realidade de Canudos não ser um exemplo positivo destas ações, não negamos que, em determinadas situações sociais, ações afirmativas, como crédito agrícola e projetos de transferência de renda, sejam fundamentais para a sobrevivência de algumas unidades familiares. Por fim, é neste contexto de contradições e de rearticulações sociais e históricas que, no assentamento de Canudos, as práticas da agricultura familiar, da pesca artesanal e do extrativismo se articulam de forma entrelaçada ao sistema pluriativo. Desta forma, a adesão à pluriatividade colabora para que o grupo camponês em voga se situe em um 149 Sobre a Teoria Social do Reconhecimento e Redistribuição, ver Fraser (2001; 2007) e Mattos (2004; 2006). O objetivo de Nancy Fraser é desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, tendo clara a noção de que a justiça social requer reconhecimento e redistribuição. Ou seja, as lutas por reconhecimento de identidades de grupo ou diferenças não estão dissociadas das lutas por redistribuição. Para ela a justificativa para a marginalização de grupos na esfera pública pode ser encontrada na existência de normas sociais que são enviesadas de forma injusta contra alguns sujeitos e/ou institucionalizadas pelo Estado. Além disto, eles são frequentemente alvo de desvantagens econômicas, o que impede sua participação igualitária na fabricação da cultura em esferas públicas e no cotidiano. Nancy Fraser tenta reconciliar o binômio redistribuição/reconhecimento e sua teoria sugere que as duas formas de injustiça requerem remédios transformativos ou afirmativos. A autora elabora uma crítica quanto às ações afirmativas, pois, segundo a sua argumentação, ações afirmativas não impulsionam mudanças. Por outro lado, a autora não deixa de reconhecer que às vezes esse tipo de remediação pode ser necessário. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 195 emaranhado formado por uma multiplicidade de identidades sociais, onde a identidade única, na práxis, não existe. De acordo com Cardel (2010), os grupos sociais produzem teorias sociais sobre si mesmos, que, por questões micropolíticas, são expressões de lutas internas e de relações assimétricas. Para afiançar esta afirmação, é de suma importância estar atento às lutas objetivas e intersubjetivas travadas em situações micropolíticas cotidianas, pois é por meio delas que os sujeitos se autorrealizam150, como é o caso dos assentados da comunidade de Canudos. E analisar as contradições desta realidade foi a finalidade desta investigação. Entretanto, salientamos que em nenhum momento desejamos encerrar todas as questões levantadas aqui. O que fizemos foi trazer elementos que interpretamos como importantes a partir do nosso ponto de vista, e que entendemos serem significativos para o presente trabalho. Esperamos, realmente, que este esforço sirva para incentivar outros pesquisadores a tomarem contato com a temática e a produzirem as suas próprias críticas. 150 Segundo Sabourin (1999), a ineficiência de algumas políticas públicas em comunidades rurais muitas vezes está ligada à ignorância por parte do Estado e dos mediadores sobre a lógica de reciprocidade, inerente a muitos desses grupos. E, em maior ou menor grau, estas políticas públicas apresentam apenas propostas de desenvolvimento mercantil (cooperativismo, associativismo), criando assim outros problemas. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 196 REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, Ricardo; MAGALHÃES, Reginaldo. Acesso, uso e sustentabilidade do PRONAF B. (s/d). Disponível em: <www.oikonomika.com.br/.../Acesso_2C_uso_e_sustentabilidade_do_Pronaf_B.pdf>. Acesso em: 9 de julho de 2010. 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ANEXO 1 A representação em croqui foi realizada tendo como base o desenho de uma informante chave, M.A.R., em março de 2008. 203 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 204 ANEXO 2 Fonte: ADEQUAÇÕES e Complementações ao Estudo Ambiental do Projeto de Melhoramento do Leito Navegável do Rio São Francisco – Trecho Barragem de Sobradinho a Juazeiro/Petrolina. 2005. CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 205 ANEXO 3 TABELA 4 - CARACTERIZAÇÃO DAS FAMILIAS ASSENTADAS Exposição de Bens Família/ Profissão Idade Lê Filho Filho resid. Tarefas /R$ 1 Lavradora 2 Lavrador 3 Pescador 4 Pescador 5 Pescador 47 a Sim 8 2 37 a Sim 1 1 57 a Sim 7 5 30 a Sim 6 6 42 a Sim 9 1 6t 3 mil 3t 600 r 2t 1500 r 5t 2500 r 5t 5 mil 6 Vendeiro e lavrador 7 Lavrador 8 Lavrador e pescador 9 Lavrador e pescador 10 Lavrador 11 Lavradora 12 Lavradora 70 a Sim 9 0 77 a Não 2 1 58 a Sim 8 0 64 a Sim 1 1 82 a Não 4 3 29 a Sim 5 5 73 a Não 3 2 C. de tijolo/ R$ 1 10 mil 1 10 mil 1 3 mil 1 5 mil 1t 1 mil 1 20 mil 15 t N/disse 26 t N/disse 1 5 a 6 mil 23 t 13 mil - 33 t N/disse 3t/ 1 mil 4t N/disse 1 N/disse 1 5 mil - C. de adobe/ taipa/R$ - Côm. Sanitário Curral/ Chiqueiro Galinheiro Moto/ R$ Unid. - - Bicicleta/ R$ Unid. 2 50 r 1 60 r 1 40 r - Barco/ R$ Unid. 1 600 r - Carro/ R$ Unid. - 4 1 - - 1 - 4 1 - 1 1 1 6 a 7 mil - 4 - - - 1 - - 1 200 r 1 300 r 1 700 r 5 1 - - - 5 - - - 1 - - 7 1 - 1 50 r - - 1 4.500 r 1 5 a 6 mil 3 1 1 - - - - - - 6 1 1 1 - - 1 200 r - 2 - 1 - - 1 250 r - - 1 - - - 250 r 1 - 6 1 1 - - - 6 - - - - 2 40 r - 1 N/disse 5 1 - - - - 3 200 r 1 300 r 1 400 r - - - - CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 206 Exposição de Bens Família/ Profissão Idade 13 Lavrador 58 a 14 Lavrador e pescador 50 a 15 Lavrador e pescador 16 Lavradora 62 a 17 Lavrador 18 Pescador 27 a Não 1 1 53 a Sim 5 0 19 Pescador 20 Pescador e lavrador 61 a Não 5 1 50 a Sim 8 2 55 a Lê Sim Sim Sim Sim Filho 6 8 5 8 Filho resid. 2 7 3 3 Tarefas /R$ 8t 3 mil C. de tijolo/ R$ 1 5 mil C. de adobe/ taipa/R$ Côm. Sanitário Curral/ Chiqueiro Galinheiro Bicicleta/ R$ Unid. Moto/ R$ Unid. - 3 1 - - - 1 40 r - 50 t 60 mil 1 2 mil - 3 1 - - 1 1 50 r 1 1300 r 1 250 r 13 t N/disse 1 8 mil - 5 - - - 1 - - 3 330 r 8t N/disse 1 8 a 10 mil - 5 - - - 1 1 50 r - 5t N/disse 14 t / N/disse - 1 500 r 2 - - - - - - 1 15 mil - 5 1 - - - - - 4t N/disse 22 t N/disse 1 N/disse 1 N/disse - 4 - - - - - - 6 1 - 1 1 1 30 r 1 50 r - Barco/ R$ Unid. 1 600 a 700 r Carro/ R$ Unid. - 1 500 a 600 r 1 400 a 450 r 1 N/disse 2 200 e 400 r - - - - CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 207 ANEXO 4 TABELA 5 - SITUAÇÃO PATRIMONIAL E CARACTERIZAÇÃO DOS LOTES DAS FAMÍLIAS ASSENTADAS E NÃO ASSENTADAS Total de Tarefas Valor da Área 1 Não titulada 6 3 mil Caatinga (4) Coroa (2) 2 Não titulada 3 600 reais Caatinga (3) Mamona Caatinga Coroa Abandonou Abandonou Caatinga (4) Coroa (1) Mamona Família Áreas Utilizadas e Tarefas Plantio Situação do Lote Caatinga Beira rio Mamona e melancia - 3 Não titulada - - 4 Não titulada 5 2.500 reais 5 Não titulada 5 5 mil Caatinga (3) Coroa (1,5) Beira rio (0,5) 6 Não titulada 1 1 mil Caatinga (1) Não titulada 15 7 N/disse Caatinga (7) Beira rio (8) - - Mamona e melancia Mamona; feijão de corda, melancia e abóbora Mamona Capim Pastagem Coroa ou Ilha Milho, feijão de corda e de arranque, abóbora, batata e melancia Planta com seus pais: feijão de corda e de arranque, abóbora, milho, melancia e batata Plantava batata, abóbora, milho mas abandonou Milho, melancia, abóbora, batata, mandioca e feijão de corda Feijão de arranque, abóbora, milho e batata Feijão, melancia, milho, maxixe, abobora Capim - Mão de obra Familiar Mão de obra Não Familiar Larga Sim/Não Lote Sim/Não Sim Sim/ 1 tarefa Sim Eventual. Não/ Não tem gado Não Sim Não Não/ Não tem gado Sim/ 1 tarefa Sim Sim Não Sim Não Sim 0,5 tarefa Sim Não Não Sim Eventual. Sim/ 8 tarefas Sim Eventual. Não/ Não tem gado Não/ Não tem gado Sim Não CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Família 8 9 10 Situação do Lote Não titulada Total de Tarefas 26 Não titulada 23 Não titulada 33 Valor da Área N/disse 13 mil Áreas Utilizadas e Tarefas Caatinga (10) Beira rio (6) Coroa (10) Plantio Beira rio Coroa ou Ilha Mamona Milho, feijão de corda, melancia, melão Milho, feijão de corda, feijão de arranque, melancia, abóbora Caatinga (13) Beira rio (8) Coroa (2) Capim Caatinga (20) Abandonada N/disse Mamona Boca da caatinga (2) Pastagem Caatinga Feijão de corda, feijão de arranque, milho, batata, abóbora, melancia, mandioca Capim 208 Capim Feijão de corda, feijão de arranque, milho, batata, abóbora, melancia, mandioca Capim Mão de obra Familiar Mão de obra Não Familiar Larga Sim/Não Lote Sim/Não Sim Sim/ 2 ou 3 tarefas Sim Quase sempre Sim Sim/ 13 tarefas Sim Eventual. Sim Sim/ 8 tarefas Sim Não Sim/ 1 tarefa Sim Não Não Sim Não Melancia, milho, feijão, abóbora Beira rio (5) Coroa (6) 11 Família não é assentada ainda 3 N/disse Coroa (3) - 12 Não titulada 4 N/disse Beira rio (3) Coroa (1) Mamona Milho, feijão de corda, feijão de arranque, melancia Mandioca, milho, melancia, batata, feijão de corda, feijão de arranque, abóbora, maxixe, quiabo, melão Capim Milho, feijão de corda, feijão de arranque, melancia Não/ Não tem gado Não/ Não tem gado CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Família Situação do Lote Total de Tarefas Valor da Área Áreas Utilizadas e Tarefas Plantio Caatinga 13 Não titulada 14 Não titulada 8 3 mil 50 60 mil Caatinga (6) Coroa (2) Caatinga do Barro Branco (24) Pastagem Beira rio Coroa ou Ilha Mamona 209 Lote Sim/Não Milho, mandioca, melancia, arroz, abobora, feijão Não Sim Não Sim Sim/ 20 tarefas Sim Eventual Não/ Não tem gado Sim/ 1 tarefa Sim Não Sim Não Sim Não Não/ Não tem gado Não Sim Não Sim Não Sim Não Não/ Não tem gado Não Sim Não Capim Capim Mamona e abóbora Melancia, milho, batata, melão Mandioca, banana, feijão de corda, milho, melancia Caatinga (5) Coroa (3) Mamona e melancia - Caatinga (10) 15 Não titulada 16 Não titulada 17 Família não é assentada ainda N/disse 13 N/disse 8 5 N/disse Caatinga (3) Coroa (2) Mamona - Caatinga (12) Beira rio (2) Caatinga (1) Beira rio (1) Coroa (2) Mamona Feijão, milho, melancia, batata Feijão de arranque, melancia, milho, maxixe, mandioca, cana 18 Não titulada 14 N/disse 19 Não titulada 4 N/disse Mamona, melancia, feijão de corda, milho Mão de obra Não Familiar Larga Sim/Não Não/ Não tem gado Mamona, milho, mandioca e capim Beira rio (12) Coroa (4) Caatinga (10) Beira rio (1) Coroa (2) Mão de obra Familiar Capim Feijão de corda, feijão de arranque, abóbora, batata, milho Feijão de arranque, feijão de corda, melancia, milho, abóbora, jerimum, mandioca, tomate Mandioca, melancia e milho CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. Família 20 Situação do Lote Não titulada Total de Tarefas 22 Valor da Área N/disse Áreas Utilizadas e Tarefas Caatinga (10) (+10 que estão limpando) Coroa (2) Plantio 210 Pastagem Caatinga Beira rio Coroa ou Ilha Mamona, melancia - Milho, feijão de corda, feijão de arranque, batata, melão Capim Larga Sim/Não Lote Sim/Não Sim Sim 1 tarefa Mão de obra Familiar Mão de obra Não Familiar Sim Quase sempre CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 211 ANEXO 5 TABELA 6 - CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL Família Nº Caatinga Coroa/Ilha Produto/ Quantidade Destino/ R$ saca T Produto Destino/ R$ saca T Venda 64 a 70 r Petrobras - - - 2 4 Mamona/ De 8 a 10 sacas - - - - 2 3 Mamona/ De 4 a 10 sacas Venda 60 r 3 - - - - - - - - Venda 70 r Petrobras - - 1 4 Mamona De 2 a 15 sacas - 4 5 4 Mamona/ De 6 a 40 sacas Venda 55 a 60 r Milho, melancia, abóbora, batata, mandioca, feijão de corda Feijão de arranque, abóbora, milho e batata 1 T Beira rio 1,5 0,5 Capim Uso Produto Milho, feijão de corda, feijão de arranque, abóbora, batata e melancia - Quintal Destino/ R$ saca Consumo - - Consumo Consumo Produto Canteiro, pl. medicinais, laranja, coco, limão, goiaba, seriguela. Canteiro, pl. medicinais, limão, laranja, pinha, caju, goiaba, seriguela, carambola, cana. Canteiro, mamão, pinha, manga. Canteiro, seriguela, mamão. Canteiro, romã, goiaba, limão e banana Extração Destino/ R$ saca Produto Destino/ R$ Consumo Lenha, carnaúba Consumo Consumo Lenha, umbu, mari, jenipapo, carnaúba, quixaba Consumo Consumo Lenha, umbu, carnaúba, quixaba Lenha, carnaúba. Consumo Consumo Lenha, carnaúba. Consumo Consumo Consumo CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 212 CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL Família Caatinga Nº T 6 1 7 8 7 10 Beira rio Produto/ Quantidade Destino/ R$ saca Mamona De 4 a 8 sacas Venda 60 a 65 r Melancia e abobora Venda 1 r peça Feijão de corda Consumo Mamona De 12 a 100 sacas Venda 70 r Petrobras Mamona De 12 a 60 sacas Venda 60 a 65 r T - 8 6 Produto Coroa/Ilha Destino/ R$ saca T Produto Quintal Destino/ R$ saca Produto Canteiro, pl. medicinais, laranja, limão, coco, pinha - - - - - Feijão, melancia, milho, maxixe, abóbora e Consumo - - - Roseiras, flores e pl. medicinais 10 Milho, feijão de corda, feijão de arranque. Vende Milho: 25 r Feijão: 80 a 100 r Melancia, abóbora e capim Consumo e Uso Canteiro, pl. medicinais, carambola, limão, laranja, banana, manga, caju, mandioca Capim Milho, feijão de corda, feijão de arranque, melancia, abóbora, melão Extração Destino/ R$ saca Consumo - Produto Lenha, carnaúba, jenipapo, mari, umbu Lenha e carnaúba Destino/ R$ Consumo Consumo Uso Consumo Consumo Lenha e carnaúba Consumo CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 213 CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL Família Nº 9 Caatinga T 13 Produto/ Quantidade Capim Beira rio Destino/ R$ saca Uso T Produto 8 Feijão de corda, de arranque, batata, abóbora, melancia, mandioca Milho Mamona 2 a 4 sacas 10 22 Capim Uso 3 - - Destino/ R$ saca - T Consumo 2 6 - Produto Feijão de corda, feijão de arranque, milho, batata, abóbora, melancia, mandioca Quintal Destino/ R$ saca Consumo Vende Milho: 20 r Venda 60 r 5 Melancia, milho, feijão, abobora 11 Coroa/Ilha Capim Uso Produto Canteiro, pl. medicinais, laranja, umbu, limão, seriquela Canteiro, laranja, limão, mamão, acerola, caju Extração Destino/ R$ saca Produto Destino/ R$ Consumo Lenha e carnaúba Consumo Consumo Lenha e carnaúba Consumo Consumo - 3 Mandioca, milho, melancia, batata, feijão de corda, feijão de arranque, abóbora, maxixe, quiabo, melão Capim Consumo Uso Canteiro, laranja, limão, seriguela, pinha, pé de ninho Consumo Lenha, umbu, carnaúba, mari Consumo CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 214 CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL Família Caatinga Beira rio Coroa/Ilha Nº T Produto/ Quantidade Destino/ R$ saca T Produto Destino/ R$ saca T 12 - - - 3 Mamona 3 sacas Venda 60 r 1 Milho, feijão de corda, feijão de arranque, melancia Consumo - - 13 14 15 6 34 10 Mamona De 3 a 20 sacas Venda 60 a 65 r Mamona De 20 a 500 sacas Venda 60 r Milho, mandioca e capim Mamona De 40 a 100 sacas Abobora Consumo e uso - 12 Venda 68 a 70 r Consumo 1 Capim Melancia, milho, batata, melão Produto Quintal Destino/ R$ saca Produto Destino/ R$ saca Produto Destino/ R$ Consumo Canteiro, pimenteira, laranja, seriguela, limão Consumo Lenha e carnaúba Consumo Milho, feijão de corda, feijão de arranque, melancia 2 Uso 4 Consumo 2 Extração Milho, mandioca, melancia, arroz, abóbora, feijão Consumo Capim Uso Mandioca, banana, feijão de corda, milho, melancia Capim Consumo Canteiro, Limão, mamão, laranja, coco, graviola, seriguela, pinha goiaba, manga Canteiro, Limão, mamão, laranja, coco, graviola, seriguela, Canteiro, laranja, limão, seriguela Uso Consumo Lenha e carnaúba Consumo Consumo Lenha e carnaúba Consumo Consumo Lenha e carnaúba Consumo CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 215 CULTIVO DE PRODUTOS AGRÍCOLAS E EXTRAÇÃO VEGETAL Família Caatinga Nº T 16 5 17 3 18 12 19 20 Beira rio Produto/ Quantidade Destino/ R$ saca Mamona De 8 a 10 sacas Vende 60 a 64 r Melancia Consumo Mamona De 8 a 20 sacas Venda 50 a 55 r Mamona N/disse Venda 55 a 60 r Mamona N/disse Venda 55 a 60 r 1 20 T Produto Destino/ R$ saca T - - - 3 - 2 1 Melancia, feijão de corda Mamona De 30 a 150 sacas Melancia Consumo Venda 70 r Petrobras Consumo Coroa/Ilha - - Feijão, milho, melancia, batata Feijão de arranque, melancia, milho, maxixe, mandioca - Produto Feijão de corda, feijão de arranque, abóbora, batata, milho Quintal Destino/ R$ saca Consumo - 2 Feijão de arranque, feijão de corda, melancia, milho, abóbora, jerimum, mandioca, tomate Consumo - - - Consumo 2 Mandioca, melancia, milho Consumo - 2 Milho, feijão de corda, feijão de arranque, batata, melão Capim Consumo Consumo Uso Produto Canteiro, pl. medicinais, feijão, milho, coco, limão, mamão Canteiro, manga, limão, seriguela Canteiro, seriguela, limão, pinha, coco Canteiro, limão, laranja, seriguela, manga, coco Canteiro, pl. medicinais, limão, banana, laranja, mamão seriguela, acerola e mandioca Extração Destino/ R$ saca Consumo Consumo Produto Lenha, carnaúba, jenipapo, umbu Lenha, carnaúba, umbu, jenipapo, mari Consumo Lenha e carnaúba Consumo Lenha,car naúba, jurema, cipó Consumo Lenha, carnaúba, jurema e pl.medicinais Destino/ R$ Consumo Consumo Consumo Consumo Consumo CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 216 ANEXO 6 TABELA 7 - CRIAÇAO DE ANIMAIS E PESCA ARTESANAL Família Gado Adulto Nº Qt. 1 2 3 4 Bezerro/ Novilha Cavalo Qt R$ Unid. Qt 6 7 8 9 2 6 4 25/28 R$ Unid. 500/700 r 500/600 r 600/800 r 500 r 2 5 3 15 150 r 300/400 r 200/250 r 300/350 r - R$ Unid. - 10 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 8 1 2 1 300 r 500 r 400 r 500 r 3 4 1 1 200 r 150 r 300 r 150 r 9 - Jumento Qt Porco Qt 200 r 1 1 1 1 3 R$ Unid. 60/100 r 80 r 50 r 50/60 r 100 r 2 1 - R$ Unid. 15 r 150 r - 400 r - 1 2 1 2 1 1 1 1 1 50 r 60 r 40/60 r 100/150 r 100 r 50/100 r 50 r 40 a 60 r 50 a 60 r 1 50 r Bode/Cabra Qt 2 b/ 30 c - R$ Unid. 80 r / 60 r - Galinha Qt Peixe 6 6 2 15 10 7 40 R$ Unid. 10 r 10 r 8r 10 r 10 r 10/12 r 10 r Qt Variado Variado Variado - R$ Unid. Variado Variado Variado - 1 1 3 8 15 2 2 10 10 r 10/15 r 10 r 10 r 8 a 10 r 10 r 8r 10 r Variado Variado Variado Variado Variado Variado CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 217 ANEXO 7 Família Aposentadoria Defeso Atravessador Venda OUTRAS RENDAS Bolsa Funcion. municipais Nº Pessoas $ P $ P $ P $ P $ P 1 2 3 4 5 6 1 1 2 510 r 510 r 1020 r 1 1 1 - 510 r 510 r 510 r - 1 1 -1 150 r - 3 2 3 - 122 r 90 r 130 r - 7 8 9 10 11 2 1 2 - 1020 r 510 r 1020 r - 1 1 - 510 r 510 r - - 200 a 350 r - 5 12 13 14 2 - 1020 r - 1 1 510 r 510 r - - 1 15 1 510 r - - - - - 150 a 200 r - 16 17 1 - 510 r - 1 - 510 r - - - - 18 1 510 r 1 - 510 r - - - - - 1 510 r - - 19 20 Diarista Revenda de combustível Venda de geladinho $ P $ P $ litro P - - 1 1 1 1 - 25 r 20 r 20 r 20 r - - - - $ unid - 134 r - - 1 1 1 - 3 a 3,50 r - - 2 3 80 r 90 r - - - 25 r 20/25 r - - - - - - - - - - - - - 1 510 r 1 20 r - - - - 1 - 510 r - - - - - - 1 765 r - - 150 a 250 r - Qt. Artesanato (vassoura, balaio) P $ unid 1 - 1r - - - - - - - - - 1 0,10 c - - - - - - - - - - - - - 1 1r - - - - - - - 100 a 150 CANUDOS: “A CHEGADA DO ESTRANHO” - identidade e conflito em assentamento no Médio São Francisco. 1