dISS PARTE 1
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dISS PARTE 1
ANA EMILIA JUNG ROBERT FRANK E A OPERAÇÃO DE MONTAGEM NO CAMPO DO OLHAR FLORIANÓPOLIS SC 2009 UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS ANA EMILIA JUNG ROBERT FRANK E A OPERAÇÃO DE MONTAGEM NO CAMPO DO OLHAR Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais. Orientadora: Drª Rosangela Miranda Cherem FLORIANÓPOLIS SC 2009 ANA EMILIA JUNG ROBERT FRANK E A OPERAÇÃO DE MONTAGEM NO CAMPO DO OLHAR Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART/ UDESC, para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa de Teoria e História da Arte. Banca examinadora: Orientadora: ___________________________________________________ Profª. Drª. Rosangela Miranda Cherem CEART/UDESC Membro: ____________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Carlos dos Santos DCSA / UNISUL Membro: _____________________________________________________ Profª. Drª. Sandra Makowiecky CEART/UDESC Florianópolis, 14/08/2009 AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer primeiramente à professora Rosângela Cherem quem, desde o início desta investigação, me incentivou a ler os fundamentos teóricos da imagem em sua estrutura de base para compreendê-los verdadeiramente, acreditando ser esse o salto em que se deve investir no curso do mestrado. Também gostaria de agradecer por seu respeito e confiança em meu modo e tempo de concretizar o trabalho, e ainda por sua interlocução séria e apaixonada que a cada encontro renovou meu desejo de reflexão. Agradeço à CAPES, pelo apoio com a bolsa de pesquisa concedida. Sou muito grata à professora Sandra Makowiecky e ao professor Antonio Carlos dos Santos, que prontamente aceitaram meu convite para participação na banca e se dedicaram integralmente a leitura de meu texto, apontando gentilmente seus importantes comentários. Não posso deixar de mencionar meu agradecimento a Nohemí Ibañez Brown quem generosamente compartilhou comigo suas leituras de Freud e Lacan, bem como seu olhar sobre o campo artístico. Agradeço de coração a Luana Navarro e a Lidia Sanae Ueta pela carinhosa e atenta dedicação, em minha ausência, ao Núcleo de Estudos da Fotografia, e também ao carinho e amizade sempre afetuosos. Também sou muito grata aos alunos do NEF pela compreensão e paciência que tiveram com meus compromissos em Santa Catarina neste período. Agradeço a Anuschka R. Lemos a sempre pronta interlocução e também o companheirismo e a paixão pela fotografia, especialmente pelo trabalho de Robert Frank. Agradeço a professora Kati Caetano, a Ana Luísa Fayet Sallas e ao Ângelo Silva, por incentivarem desde sempre este estudo. A Juan Travnik, para quem Robert Frank é o Duchamp da fotografia, pelo forte apreço e carinho. Agradeço aos colegas e docentes do PPGAV-UDESC pelo carinho e amizade, especialmente a Sandra Lima pela competência e generosidade, a Márcia Regina Sousa pela palavra amorosa e pela casa, que me serviu tantas noites de lar, e a Luciana Barone pela coragem de vida e por tornar as muitas horas de estrada menos dolorosas. Agradeço também a Chris C. Filippin quem dividiu comigo as estranhas situações que aconteceram na kitnet alugada, deixando a atmosfera engraçada e alegre. Sou eternamente grata a Ivete Jung, minha mãe, por estar sempre oferecendo o lar nos árduos momentos deste novo caminho acadêmico. E também a Eunice Madureira David, minha avó, que torna as coisas do mundo mais graciosas com suas piadas, comidas e canções. Agradeço a Tânia Kost, quem, numa tarde muito distante do tempo de agora, no sótão de uma bela casa de uma rua sem saída, apontou a palavra como a possibilidade de liberdade e amor, e vem desde então me acompanhando nessa busca. E, finalmente, agradeço e dedico este trabalho a Felipe Cardoso de Mello Prando, meu companheiro, meu amor, sempre tão inteiro, sempre do meu lado, de bicicleta ou de mãos dadas. RESUMO Na série Polaroids, o fotógrafo Robert Frank cria situações encenadas e manipula a superfície bidimensional em condição de pós-produção, construindo imagens com fronteiras imprecisas onde se destacam vazios, palavras, gestos pictóricos, apropriações e encenações. Emergindo por recursos de montagem, tais procedimentos colocam em questão certas referências intrínsecas ao campo da fotografia e da imagem permitindo reconhecer um território onde tanto a fatura como as noções operatórias que se afirmam como fundamento poético se implicam e se rebatem, interrogam e perturbam em relação ao campo do olhar. Na interlocução da história e teoria da arte com a psicanálise e a filosofia, encontramos a possibilidade de problematizar os procedimentos deste trabalho a fim de elaborar as questões que dele ressoam sem, entretanto, reduzir seus termos. No primeiro capítulo, investigamos o potencial de linguagem do estrangeiro como uma condição da imagem, que se identifica, tanto no campo fotográfico como imagético, como anulador de fronteiras e instaurador de novos parâmetros propositivos. A inquietante estranheza freudiana articulada com as infinitas possibilidades da linguagem artística abre campo para pensar a série Polaroids como imagem-acontecimento. No segundo capítulo, analisamos a relação entre o visível e o dizível a partir dos aspectos renitentes da operação de montagem ao longo da série, entre os quais, a lógica figural nos sonhos e na retícula, a relação entre imagem e palavra, a repetição como diferença e o gesto que re-significa o instante de ver. No terceiro capítulo, analisamos o rebatimento destes procedimentos plásticos no campo do visual. Do processo de instauração da visualidade do objeto artístico, alcançamos a noção de irrepresentável como encontro com o Real, e concluímos com a estrutura do campo escópico formulada por Jacques Lacan, e cuja orientação na teoria da arte é desenvolvida por Georges DidiHuberman, onde o olhar cumpre a função de causar o sujeito em seu desejo. PALAVRAS-CHAVE: Robert Frank, fotografia, operação de montagem, campo do olhar. ABSTRACT In the Polaroids series photographer Robert Frank creates performed situations and manipulates the two-dimensional surface in a post-production condition, building images with uncertain borders where emptiness, words, pictorial gestures, appropriations and acts are highlighted. Emerging through mounting resources, these procedures question certain intrinsic references in the field of photography and image, allowing the recognition of a territory where both manufacture and operatory notions that state poetical basis are implied and contrasted, interrogate and disturb in relation to the look field. In the interlocution of art history and theory with psychoanalysis and philosophy, we find the possibility of troubling the procedures of this work in order to elaborate questions that resonate from it, without reducing its terms. In the first chapter, we investigate the potential of the foreigner language as a condition of the image, which is identified in both the photography and image fields, as extinguisher of borders and promoter of new proposition parameters. The unquiet Freudian strangeness articulated with infinite possibilities of artistic language opens a field to think the Polaroids series as image-happening. In the second chapter, we analyze the relation between the visible and what can be said from renitent aspects of the mounting operation along the series, such as the figural logic in dreams and reticulations, the relation between image and word, the repetition as difference and the gesture that re-signifies the instant of looking. In the third chapter, we study the projection of these plastic procedures in the visual field. From the process of determining the view of the artistic object, we reach the notion of irrepresentability as an encounter with the Real, and we conclude with the structure of the scopic field, which was formulated by Jacques Lacan and has its orientation in art theory developed by Georges Didi-Huberman, in which the look accomplishes the function of causing the subject in its desire. KEY-WORDS: Robert Frank, photography, mounting operation, look field. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01 - Robert Frank, New Years Day, 1981………………………………………...19 Figura 02 - Robert Frank, Roots, 1996…………………………………………………...23 Figura 03 - Felix González-Torres, Untitled (Me and My Sister), 1998…………………25 Figura 04 - Robert Frank, Monuments for my daughter Andrea 1954-1974, 1975……..27 Figura 05 - Fita de Moebius…………………………………………………………...…28 Figura 06 - Robert Frank, No projector could do justice..., 1996……………………….33 Figura 07 - Robert Frank, 4 AM, Make Love to Me, 1979………………………………36 Figura 08 - Edward Weston, Tina on the azotea, 1923………………………………….37 Figura 09 - Robert Frank, Boston, March 20, 1985…………………………………......40 Figura 10 - Robert Frank, End Of Dream, Mabou, 1992………………………………...44 Figura11 - Amélia Toledo, O Parque das Cores do Escuro, 1975....................................46 Figura 12 - Robert Frank, BonJour Maestro, 1971……………………………………...48 Figura 13 - Gustavo Frittegotto, Cirrus, 2005…...............................................................49 Figura 14 - Robert Frank, Studio, Mabou, 2002…………………………………………52 Figura 15 - Piet Mondrian, Composição em vermelho, amarelo, azul, 1927....................53 Figura 16 – Piet Mondrian, New York City, 1942………………………………………..53 Figura 17 - Robert Frank, Blind, Love, Faith, 1981………………………………..……56 Figura 18 - Robert Frank, Words, de 1987……………………………………………... 57 Figura 19 - Peter Downsbrough. Public Comission, 2006……………………………….59 Figura 20 - Robert Frank, Andrea, 1975………………………………………………...61 Figura 21 - Carmela Gross, Carimbos, 1977/1978………................................................63 Figura 22 - Robert Frank, Mabou, 1979...........................................................................66 Figura 23 - Robert Frank, Mabou, 1994…………………………………………………68 Figura 24 -Tony Smith, The Black Box, 1961…………………………………………...73 Figura 25 - Robert Frank, Sick of Good by´s, 1978……………………………………...76 Figura 26 - Eli Lotar, Abattoir, 1929…………………………………………………….79 Figura 27 - Robert Frank, Pour la fille , 1971………………………………………...…82 Figura 28 - Jeff Wall, Picture for Women, 1979………………………………………...84 Figura 29 - Robert Frank, Andrea, Mabou, 1977……………………………………….87 Figura 30 - Sergio Larraín, Las meninas, 1957.................................................................90 Figura 31- Robert Frank, Winter footage, films stills, 1981…..........................................92 SUMÁRIO Introdução..............................................................................................................11 Capítulo I................................................................................................................18 O ESTRANGEIRO 1. O estrangeiro como uma condição da imagem......................................19 New Years Day; a linguagem como interrogação; do vazio inicial aos novos territórios da imagem; o estranho na concepção freudiana; imagem autônoma/ imagem sujeito; a inquietante estranheza e a imagem aurática; Roots; expatriamento e sentido de origem; cartografias sentimentais e atravessamento. 2. A fotografia e suas implicações.............................................................27 Monuments for my daughter Andrea; a fotografia é o que é feito dela; olhar fora ver dentro: moebius e a topologia de borda; o termo extímio em Lacan; o paradigma da fotografia e a caixa-preta; Flusser e a filosofia da fotografia; Baudrillard e o princípio de realidade; a irrealização inerente ao fotográfico; a verdadeira imagem. 3. Imagem-acontecimento ou a invenção do próprio rosto........................33 No projector could do justice...; a noção de performance e a enunciação no presente; por um novo cálculo na arte; tempo cronológico e Aion; a identidade-infinita como devir; 4 AM, Make Love to Me; Weston e a fotografia modernista norte-americana; Barthes e as noções de prática significante e Texto; a imagem-rosto e o plano de imanência deleuziano; a criação artística como a relação entre atual x virtual; Boston, March 20; jogo ideal e acontecimento. Capítulo II..............................................................................................................43 VISÍVEL X DIZÍVEL 1. A lógica figural nos sonhos e na retícula...............................................44 End Of Dream; o campo plástico através da lógica figural dos sonhos; imagem dialética, sintoma e rememoração; BonJour Maestro; sonho dentro do sonho; por uma teoria do detalhe; repetição e atuação; Studio, Mabou; retícula. 2. Palavra e imagem...................................................................................55 Maurice Blanchot: Falar não é ver; Blind, Love, Faith - New Years Day - Words; palavra escrita, inscrita e sobredeterminada; a imagem na ordem do fascínio; campo verbo-visual como território heterogêneo. 3. A repetição que instaura a diferença......................................................61 Andrea; o noema da fotografia de Barthes diante da repetição; repetir não é representar; Gilles Deleuze: a repetição do mesmo e a repetição que carrega sua diferença; repetição como potência de linguagem. 4. O gesto que desempata...........................................................................65 A problemática da pintura em “A obra-prima desconhecida”, de Honoré De Balzac; Mabou 1979; gesto final como operação de desempate; carne da pintura, encarnação e colorido-sintoma em “La pintura encarnada”, de Georges Didi-Huberman; o gesto como instante terminal no conceito Lacaniano; Mabou 1994; gesto e repetição. Capítulo III.............................................................................................................69 VISÍVEL X VISUAL 1. Jogo anadiômeno e a instauração da visualidade...................................70 Andrea; alteração, da coisa à sua imagem; Sigmund Freud, Fort-da e o nascimento para a linguagem; o papel da falta no jogo anadiômeno; Tony Smith e o relato de sua criação; dialética visual e objeto artístico. 2. A estética da tiquê e o irrepresentável...................................................76 Sick of good by´s; os significantes no inconsciente Lacaniano; autômaton e tiquê no encontro com o Real; o sem-sentido da tiquê e o non-sense do surrealismo; a estética da tiquê. 3. O jogo do olhar......................................................................................82 Pour la fille; Merleau-Ponty e a carne do visível; o campo escópico em Lacan; olho como órgão - olhar como função; a inelutável cisão do ver em Didi-Huberman; Picture for Women de Jeff Wall e função do olhar; objeto a e cisão diante da imagem. Considerações........................................................................................................87 Andrea, Mabou, 1977; o jogo do olhar no plano da imagem; a operação de montagem como reincidência na série; sobre os aspectos tautológicos e o espectador; considerações; Winter footage, films stills. Referências bibliográficas......................................................................................92 INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem como tema a operação de montagem no campo do olhar na série Polaroids do fotógrafo Robert Frank. Com essa investigação, interessa-nos compreender como o processo de fatura dessas imagens carrega potencialmente as implicações poéticas e os alcances conceituais do trabalho, situando-as num território que perturba e problematiza em relação ao campo do olhar. Produzida desde 1972 e ainda em andamento, Polaroids emerge com situações encenadas e manipuladas em condição de pósprodução, construindo imagens com fronteiras imprecisas onde se destacam vazios, palavras, gestos pictóricos, colagens e apropriações. Esses procedimentos colocam em questão certas referências intrínsecas ao campo da fotografia e da imagem, deslocando, a nosso ver, a problemática de um campo específico para uma esfera crítica que se instala em outras direções. Por essa razão, para construir nosso repertório teórico, recorremos a certas interlocuções da história e da teoria da arte com a psicanálise e a filosofia. Foi-nos preciso, diante da obra de Robert Frank, perceber antes de qualquer coisa o que parece ser o ponto de inflexão em seu trabalho: que as imagens situem-se como próprio corpo de pensamento, em vez de como reflexo de um indivíduo subjetivo ou de um reflexo do referente. Assim, em toda nossa aproximação, a imagem é concebida em seus próprios termos carregando suas questões inerentes. Temos consciência que outros recortes sobre o trabalho deste fotógrafo sejam concebidos em termos biográficos, e, talvez pela nossa insatisfação com a redução da complexidade de sua obra em relação àqueles, decidimos andar pelo caminho contrário. Nosso viés tampouco é da imagem como um suporte iconográfico, mas como conceito operatório1, como desenvolvido por Georges Didi-Huberman. Esse teórico contemporâneo pertence à linha da teoria francesa de arte e apóia-se no paradigma crítico da psicanálise, além de também ter influências de pensadores como Aby Warburg, Hubert Damisch e Walter Benjamin. Seu esforço é o de reconfigurar as bases epistemológicas da história da arte baseada tradicionalmente na semiótica de base peirceana, na iconologia e numa historiografia positivista. Para estabelecer novos paradigmas ao visual e romper com a sujeição do visível ao legível, Didi-Huberman convoca na imagem da arte os não-sentidos, os desvios e as dobras como um apelo que surge em forma de sintoma, formulando assim um 1 DIDI-HUBERMAN, 2000, p.51. 11 novo objeto que abre caminho a uma nova história da arte. Se dele partimos, também nos permitimos percorrer as suas bases em carreira solo e, assim, lidamos diretamente com alguns textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Também autorizamo-nos a considerar algumas interlocuções com Gilles Deleuze e Jean Baudrillard, levando em conta que fazem um contraponto interessante ao paradigma clínico da psicanálise, apoiados nas premissas da filosofia. Roland Barthes, Vilém Flusser, Maurice Blanchot e Maurice Merleau-Ponty aparecem como intenção pontual para pensar termos e assuntos específicos e correlacionados ao objeto. A imagem é como uma borboleta, propõe Didi-Huberman. Como algo vivente que é passível de ser contemplado apenas fugazmente, só mostra sua capacidade de verdade como aparição. Sobre a questão dessa frágil condição, o teórico da arte pergunta-se: Mas, como falar desta fragilidade senão desde o ponto de vista de uma tenacidade mais sutil, a que surge da possessão, da aparição, da sobrevivência?2 Em nossa pesquisa, percebendo desde o inicio que Polaroids demandava uma abordagem sutil que abraçasse sua complexidade, tratamos de delinear os aspectos sutis que apareciam e se repetiam ao longo da série. Desse modo é que formamos um conjunto de sintomas que sustentam a trama de onde é possível reconhecer o campo singular do pensamento artístico das proposições em questão. Tomamos a idéia de sintoma como as estruturas latentes e fundantes que atravessam a imagem interrompendo a normalidade e a ordem das coisas. Para Didi-Huberman, ele se apresenta em dois eixos críticos: o visual, no que diz respeito à interrupção do curso normal da representação através do aparecimento espontâneo da imagem; e o temporal, no que se refere à dinâmica do anacronismo como composto de tempos não cronológicos que aparecem em durações múltiplas, tempos heterogêneos e memórias entrelaçadas.3 Uma dinâmica que emerge como plano do inconsciente e advém colada ao fluxo subterrâneo do ser da imagem, trazendo no primeiro eixo o plano crítico do inconsciente da representação e, no segundo eixo, o plano crítico do inconsciente da história. Nesta perspectiva é que concebemos o fundamento do método empregado nessa investigação, buscando nas imagens de Polaroids o que sobrevive enquanto gesto em suas memórias e a dimensão desse processo memorativo. Compreendendo que essas contraposições e atravessamentos que se repetem sintomaticamente integram a verdadeira complexidade dessa obra, pareceu-nos inevitável abordá-la como uma operação de montagem, montagem de memórias involuntárias e tempos 2 3 DIDI-HUBERMAN, 2007, p.09. Id., 2000, p.44. 12 heterogêneos. Pois, se, conforme Didi-Huberman, o trabalho artístico traz consigo uma organização de tempos impuros, implicando um procedimento de montagem, não-científico, do saber4, o que Robert Frank apresenta em Polaroids nada mais parece ser do que uma poética da visualidade, onde figuram problemáticas e questões que dizem respeito a suas condições, e também aos limites e rebatimentos da imagem. No primeiro capítulo, O estrangeiro, tomamos Polaroids a partir da relação que parece estar imbuída de modo geral em todas as imagens do conjunto: na concepção do estrangeiro como uma linguagem que desnaturaliza um campo criando um território híbrido em interlocução com diversas determinações. Nesse sentido, vale lembrar que Robert Frank nasce apátrida, na Suíça, em 1924, e apesar de que nosso recorte epistemológico tenha afastado a inserção de dados biográficos, não descartamos que o impulso ocasionado por esse não-lugar se reflete em seu trabalho. Assim, nesse caso, entendemos o rompimento estrutural com a noção de pertencimento como o mecanismo instaurador de criação. Como alguém pode ser Suíço?5, interroga-se Frank quando emigra para a América em 1947, como se a nacionalidade suíça tardiamente conseguida sugerisse alguma espécie de incongruência. De mesmo modo, em seu trabalho, as imagens parecem sempre sugerir essa pergunta: como uma imagem pode ser uma imagem, como uma fotografia pode ser uma fotografia, concluindo sem respostas que a impermanência é inerente às coisas da vida. Todo o capítulo se novela em torno desta mesma concepção, porém o dividimos em três assuntos para bem enfatizar o caráter de cada qual. São eles: linguagem, fotografia e imagem. Para conceber teoricamente o termo estranho, recorremos à inquietante estranheza elaborada por Freud a partir da ambígua estrutura do estranho-familiar. Na imagem, o estranho-familiar apresenta-se como a experiência de deslocalização, provocada pelo encontro casual de algo exterior que também diz respeito a algo íntimo. Um encontro que rompe as bordas desfazendo as fronteiras e, por isso, adquire o poder de nos afetar. Se as imagens de Polaroids falam de um lugar indeterminado também causam o espectador nesse mesmo ponto: desestabilizando-o na apreensão visual da obra. Trata-se de uma indeterminação que põe em questão o sentido de origem como dimensão de um vir a ser em movimento constante, que sempre recoloca o passado e o futuro como matérias do presente, numa dimensão latente da imagem como sintoma, ou seja, do que volta nela como recalque. 4 5 Id., 2006, p.59. FRANK, in: coleção Photofile, n.10. 1991. Sem paginação. 13 Se Robert Frank sempre opera a partir da fotografia, fez-se necessário entender os aspectos discursivos deste aparato técnico e como o artista realiza-se ou não nesses preceitos. Aqui a noção de estrangeiro baliza o intuito de Frank em desfazer o efeito de real construído pelo discurso positivista em relação à fotografia e eternamente estigmatizado pelo corpo social. Ao invés de confirmar o estatuto da fotografia como análogo ao real, Robert Frank assume a irrealização inerente ao fotográfico: que a fotografia seja o que é feito dela, quando olhada como um documento separado do referente. O que o interessa é a foto como objeto que ocupa o lugar, como resume Jean Baudrillard, de desaparecimento do sujeito e do sentido6. Afastada da responsabilidade de assemelhar-se à aparência do mundo, a fotografia manejada por Frank toma a cena enquadrada como potência de criação de realidades. Para concluir nosso esquema de pensar a condição estrangeira da imagem, ampliamos nosso debate da esfera do fotográfico para a imagética, compreendendo Polaroids como um trabalho capaz de gerar um conflito com o sistema que o engendra. Revendo e ampliando os limites da imagem, Robert Frank desenvolve proposições de modo a formular problemáticas no campo da linguagem. O que ele cria são enunciações na superfície bidimensional que ainda não nasceram para o mundo, e o faz a partir da fotografia tirando partido de seu efeito de realidade. Esse é o viés em que tomamos Polaroids como imagens-acontecimento, em sua condição de pensamento na esfera da arte. Segundo Gilles Deleuze, o acontecimento vislumbra, como um conjunto de singularidades, pontos de retrocesso, de inflexão, etc.; desfiladeiros, nós, núcleos, centros; pontos de fusão, de condensação, de ebulição, etc; pontos de choro e de alegria, de doença e de saúde, de esperança e de angustia, pontos sensíveis,...7 caracterizando-se como processo multilinear que não se prende à consciência de um sujeito, mas afirma o próprio inconsciente da experiência da criação. No conjunto de imagens em Polaroids o jogo múltiplo e a introdução do sem-sentido validam princípios inaplicáveis como novas formas de identidade. No segundo capítulo, Visível x dizível, tratamos dos aspectos renitentes acerca dos processos e procedimentos de confecção e fatura das imagens da série, incluindo as referências técnicas, usos de materiais, escolhas de tamanho, etc. Nosso esforço almejou alcançar os pressupostos e noções operatórias ou conceituais que parecem servir de ponto de partida ou fundamento poético para a operação de montagem em questão. Os elementos encontrados foram respectivamente: as imagens dentro de imagens – como colagem ou 6 7 BAUDRILLARD, 2003, p.125. DELEUZE, 1998, p.55. 14 sobreposição cênica; as palavras escritas, inscritas e sobredeterminadas no plano visual; a repetição de fotografias dentro de uma mesma imagem e das mesmas imagens ao longo da série; e, finalmente, os gestos pictóricos incluídos na pós-produção através da manipulação da superfície fotográfica. Buscando um raciocínio que articulasse novas configurações para o poder de figurabilidade das imagens, encontramos na lógica figural dos sonhos, como elaborada por Freud, a possibilidade de elaborar a sintaxe imagética de Polaroids. Na imagem que cede seu impulso para o plano do sintoma e fulgura no interstício entre o que se desvenda e oculta. Também encontramos na lógica da retícula, através da sobreposição da superfície esquadrinhada na imagem, a afirmação da fotografia tanto como a menor parte de um todo de alcance infinito quanto como um fragmento que se sustenta em si e por si. Na trama pictórica que recobre a superfície como uma grade, a retícula opõe-se, na concepção de Rosalind Krauss, à narrativa e ao discurso representativo, forçando o caráter anti-evolutivo e anti-mimético da imagem da arte8. Outro sintoma que advém nas imagens em Polaroids, é que as palavras funcionam não só como verbo, mas também como elementos visuais. Para Maurice Blanchot, essas duas inscrições, verbo e visual, evocam um campo que contêm tanto o apreensível quanto o inesgotável, somando num território heterogêneo uma categoria da ordem do fascínio. Nos últimos dois pontos deste capítulo, o dizível aparece a partir da insistência do visível, cujo caráter renitente concebe o gesto como operação plástica. Estrategicamente voltamos a Deleuze para considerar a repetição como ação criativa, pois, nesse autor a repetição é caracterizada como potência de linguagem e de transgressão da ordem e da lei.9 Nesse caráter, o que a repetição faz é apresentar a partir de sua diferença, ao invés de reapresentar a partir de um mesmo, confiando no próprio movimento uma obra, sem interposição, tratando de substituir representações imediatas por signos diretos10. Mas, se podemos tocar o que se repete plasticamente em Polaroids é porque essa operação inclui uma repetição outra, mais discreta e mais profunda, e a que não temos acesso diretamente. Para o filósofo, a repetição sempre está atrelada a essas duas condições, que a repetição exterior carregue outra que lhe é intrínseca. Nesse sentido, aproximamo-nos novamente do estado onírico em que algo pulsa anteriormente a sua inserção no tempo e no espaço. O isso- 8 KRAUSS, 2002, p.23. DELEUZE, 2006, p.21. 10 Id., 2006, p.29. 9 15 mostra dos sonhos aparece como o si da repetição, o elemento constituinte e vital para a dinâmica do ser, também do ser da imagem. Por último, neste capítulo, dirigimo-nos aos traços pictóricos que Frank gesticula como operação de significação. Tratando de situar uma problemática que é da pintura, na adição de elementos na tela e no gesto como habilidade de finalização da obra, criamos uma analogia entre a noção de encarnação, desenvolvida por Georges Didi-Huberman, em “La pintura encarnada” e a perspectiva lacaniana do instante do ver, que concebe o tempo de resignificar àquele que engendra o tempo para trás, delimitando certa noção de significância e forma. A relação entre visualidade e linguagem distingue o terceiro capítulo. Investigando como os procedimentos de Polaroids refletem no território do olhar, acercamo-nos das questões inerentes ao processo de criação da imagem e também das possíveis abordagens estéticas que circundam o vazio através de suas relações adjacentes: o visível e o invisível, e o legível e o irrepresentável. Finalizamos com a premissa de que, em Polaroids, o paradoxo entre olho e olhar está sempre presente, não só como um lugar que é próprio do trabalho artístico, mas literalmente materializado através da soma de elementos na operação de montagem. Para abrir nosso caminho de maneira a nos conduzir para a hipótese final, partimos da concepção de alteração, termo empregado por Freud em “Além do princípio do prazer”, e que se refere ao processo de simbolização no mundo da linguagem. Tomamos o parâmetro formulado por Didi-Huberman sobre o relato do artista Tony Smith e o deslocamos para o processo de Frank, sempre enfatizando que o movimento de alteração da coisa a sua imagem é impulsionado por uma falta e constituído pelo ritmo de fluxo e refluxo do jogo anadiômeno, termo que se refere à Vênus anadiômena (emergida do mar ou nascida das ondas), gerada do caimento dos órgãos sexuais de seu pai, Urano, no mar. Porém, no projeto de transfiguração em Polaroids há algo que não alcança figurar-se na linguagem e para poder conceber teoricamente esse lugar na proposição, criamos, no segundo ponto deste capítulo, uma analogia do trabalho de Frank com o parâmetro lacaniano da cadeia de significantes na linguagem. A noção de ruptura da cadeia que introduz o sem-sentido delineará nossa questão sobre o irrepresentável, ou seja, aquilo que não pode ser mediado nem pelo imaginário, nem pelo simbólico, e deste modo tem o poder de despertar o sujeito. Para finalizarmos o capítulo e também concluirmos nossas considerações, estruturamos neste último momento a formulação do campo do olhar apresentando nossa 16 hipótese de que, em Polaroids, a questão essencial é o paradoxo entre olho e olhar, construído pela operação de montagem. Partimos de Maurice Merleau-Ponty, que identifica, através da relação entre o visível e o invisível, um ponto que preexiste ao nosso olhar. Aqui o sujeito da consciência se desfaz dando lugar a uma visibilidade anônima que cria a possibilidade da reversibilidade entre vidente e visível, ou seja, daquele que vê e o objeto visto. Passamos para Jacques Lacan que usa essa espessura de entrelaçamento, como desenvolvida por Ponty, articulando-a ao desejo do sujeito e criando o que chamará a partir de então de campo escópico. Neste campo, o olho desempenha uma organicidade enquanto é o olhar que se constitui como função, função que se nos apresenta na forma de uma estranha contingência, simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia da castração.11 Logo, com Didi-Huberman, traremos a inelutável cisão entre o que vemos e o que nos olha para o campo da arte. Tentando aprofundar os termos do que nos olha na função do olhar, nos aproximamos da noção de objeto a no campo do olhar, como concebido por Lacan. O objeto a sendo uma espécie de cintilação invisível de um ponto opaco da imagem que nos aponta uma falta latente e nos desperta na medida em que nos causa. Será então, baseando-nos nesta explanação, que conceberemos a série Polaroids a partir de uma operação de montagem que toca a problemática do campo escópico. Apontando que a proposição imagética de Frank apresenta-se tanto como sedução do visível relacionada ao olho, quanto como imperativo da função do olhar, concluímos o serviço tautológico deste procedimento: que o que acontece na imagem opera concomitantemente com o que acontece na esfera relacional com o espectador. 11 LACAN, 1998, p.75. 17 CAPÍTULO I O ESTRANGEIRO Nossa verdadeira terra natal é aquela em que lançamos pela primeira vez um olhar interessante a nós mesmos. Marguerite Yourcenar Diante da série Polaroids, de Robert Frank, somos tocados por uma sensação de desnorteio, como se essas imagens tivessem o poder de nos provocar em algo que não podemos responder, ou porque não estamos instrumentalizados para tal, ou porque simplesmente não falamos o mesmo idioma. Nosso empreendimento neste capítulo será o de namorar esta sensação inquietante até que entre essas imagens e nosso entendimento haja a leveza de um mar tranqüilo, sem perder, entretanto, o mistério que pertence a toda vida que pulsa. Se a condição de estrangeiro é o argumento daquele que cruza as fronteiras anulando suas demarcações, essa será a perspectiva de onde tomamos as imagens da série Polaroids. Fundando um novo lugar no campo da fotografia e da imagética, Frank denuncia a suposta função da câmera fotográfica como naturalização da ideologia da reprodução do mundo visível, investigando em cada imagem a possibilidade de um campo sensível construído no entrelaçamento do visível e do invisível, campo do indizível e do irrepresentável. Sua operação causa um ruído ao hábito desestabilizando as concepções sobre realidade, reprodução e representação. Se o estrangeiro, na concepção de Vilém Flusser, está à margem e destoa, é na sua “feiúra” que ele arranha a ilusão do que pode parecer bonito, o que vem a ser um determinante nas imagens que veremos a seguir. 18 1. O ESTRANGEIRO COMO UMA CONDIÇÃO DA IMAGEM Fig.01: Robert Frank, New Years Day, cópia de gelatina de prata de 2 negativos polaróides, 50,8 X 40,6 cm, 1981. Fonte: The Lines of My Hand, 1989. Em New Years Day (figura 01), a dinâmica de enquadramentos constitui uma cadeia de figuráveis: natureza apreendida como paisagem, paisagem apreendida como visão, visão apreendida em seu limite, que é finalmente imagem. Uma imagem que, em si, contém a pergunta de ser imagem, o que é uma imagem, o que é uma fotografia? Robert Frank usa a linguagem para interrogar os dados fixos e constitui seu trabalho no próprio movimento de 19 busca que engendra sobre a superfície imagética. É na errância de seu gesto como artista, quando desvia dos caminhos precisos e das respostas plausíveis, que ele relaciona um pensamento criador com aquilo que se inscreve como experiência primeira, como ação. Trata-se de poder instaurar uma pergunta que interrogue sobre os dados fixos do pensamento, das relações humanas e do próprio lugar, uma procura que é a de uma andança, ou seja, um método, e sendo esse método a conduta, o modo de comportar-se e de avançar de uma pessoa que se interroga, como aponta Maurice Blanchot.12 As imagens em Polaroids são as pátrias de um estrangeiro, pátrias que pertencem a Frank na medida em que as cria e são também nossas, dos espectadores, na medida em que as habitamos, pois estranhamente, diz Julia Kristeva, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta de nossa identidade...13 O interstício entre o pertencimento e o desengajamento do estrangeiro surge como a descontinuidade que funda a condição para o campo artístico, pois olhar de cima é a visão que abre horizontes de um céu infinito, e quem foi arrancado da ordem vê o mundo todo, diz Flusser.14 A operação de Robert Frank procede de um vazio inicial à constituição de novos territórios da imagem. Um lugar que não serve à perpetuação de valores conquistados ao longo da história da fotografia, mas de onde será possível uma reflexão que engendre novos posicionamentos e procedimentos. Se New Years Day (figura 01, p.19) desvalora certas qualidades que circundam o paradigma da fotografia em suas instâncias formais, do mesmo modo toda a série Polaroids passa longe de categorias como ensaio, viés humanista, da escola do instante decisivo inaugurada por Henri Cartier-Bresson ou de qualquer eixo temático. Inclassificáveis, as imagens de Frank desfazem os gêneros que compõem o campo fotográfico inaugurando desde dentro – pois todo o ponto de partida de seu trabalho é sempre fotográfico – uma zona de ambivalência. Voltemos ao que nos oferece New Years Day (figura 01, p.19). Nessa imagem o espectador não é colocado diretamente em confronto com a paisagem. Uma moldura intermedia a cena em ambas as fotografias do díptico vertical, fazendo ver um lugar de dentro que mira o fora. Por sua vez, a atmosfera de fora também contamina o dentro e por rebatimento as duas dimensões somam-se num mesmo lado. Ao confluir tantos elementos, enunciações de ânimo e de tempos como a rasura da superfície de prata, a nota de dólar pendurada no varal, a apresentação de paisagem, as bordas frágeis e imperfeitas, perde-se a 12 BLANCHOT, 2001, p. 37. KRISTEVA, 1994, p. 09. 14 FLUSSER, 2007, p 37. 13 20 noção da hierarquia de leitura sígnica e já não se pode alegar o que domina ou o que está dominado, tudo parece estar do mesmo lado e ao mesmo tempo numa coexistência de opostos que até põe em dúvida a questão sobre o antagonismo. Excluir-se de toda valoração, abandonar o engajamento, esta é a verdadeira condição do estrangeiro, segundo Flusser, num transcender que equivale a um esvaziamento constante do próprio “eu”.15 Também para Roland Barthes, pôr em questão a própria identidade é o que faz vacilar os direitos da língua paterna, aquela que nos vem de nossos pais e que nos torna, por nossa vez, pais e proprietários de uma cultura que, precisamente, a história transforma em “natureza” 16 , sendo essa a condição para a criação. New Years Day (figura 01, p. 19) é uma imagem indeterminada, que faz vacilar os direitos e as propriedades, os valores e as associações, e ao mesmo tempo em que domina a natureza e organiza o caos, inclui elementos do sem-sentido causando um ruído perturbador na suposta organização. Devido à simultaneidade de fabulações que se articulam em sua superfície, gerando a atmosfera de perturbação e desorganização, podemos pensar no estranho como uma condição que advém desse impacto. Para Freud, essa seria a categoria de coisas assustadoras que estavam ocultas por alguma espécie de recalque e que veio à luz17, apagando a noção de espaço, instigando imagens indesejadas, rompendo os parâmetros do simbólico e do imaginário e confundindo o real e o ficcional. Nesses termos, os espaços intertextuais da imagem em questão sugerem a ausência de limites entre objetividade e subjetividade, fazendo ver o íntimo como uma espécie de aparição que convoca simultaneamente uma sensação de angústia. No texto “O estranho”, de 1919, Freud buscou investigar, entre parâmetros como os contos assustadores e as crenças populares, o lugar paradoxal do uso lingüístico do termo estranho nas raízes de diversas línguas, concluindo que seus significados contrários aproximam-se em direção a um mesmo conceito. Em alemão, por exemplo, heimlich designa o que é da ordem do doméstico, nativo e familiar; enquanto que, e ao mesmo tempo, seu significado desenvolve-se na direção oposta: unheimlich, que pode ser traduzido como o que escapa ou como estranho. A inquietante estranheza é na imagem de Frank o que sugere essa ambivalência entre o que dominamos, realmente esse caráter intimista das imagens que parece nos implicar diretamente, e aquilo que totalmente, angustiadamente, nos escapa e por isso nos domina. 15 FLUSSER, 2007, p.69. BARTHES, 2007, p.11. 17 SCHELLING apud Freud, 1976, p.283. 16 21 New Years Day (figura 01, p.19) possui uma espécie de autonomia que se torna estranha porque em seu aspecto virtual tem vida própria e nos olha. Como uma dinâmica que se auto-sustenta num círculo infinito de determinações alimentando-se a cada volta do espiral. É desse lugar que impõe sua especificidade de objeto. Para Georges Didi-Huberman, a especificidade é a eliminação de toda ilusão representativa que não seja o lugar mesmo do objeto.18 Ele aponta, baseado na idéia freudiana do duplo como um elemento de inquietante estranheza, a especificidade do objeto como um elemento ameaçador, uma forma animada de sua própria vida de objeto puro, eficaz até o diabólico, ou até a capacidade de se autoengendrar19. O objeto, em sua presença de quase-sujeito adquire então um caráter antropomórfico que sugere a materialização da possibilidade de um ser vivo. Em New Years Day, esse quase corpo, quase rosto, revela seu caráter específico também através de sua escala (a peça mede não mais que 50,8 X 40,6 cm), e é desse tamanho não humano, reduzido, que mostra sua presença latente. Um tamanho que nem nos fala em segredo porque não é tão pequeno para isso, nem nos impõe um encontro abrupto porque tão pouco é grande para tal. A novidade provém da discrição do tamanho da obra, que se desvela na medida em que se faz passar por uma mera fotografia inanimada e emoldurada na parede, e se nos acercamos não é no propósito de encontrar o que de fato encontramos: uma imagem que, como nós, enreda seu próprio jogo de linguagem, e aí seu caráter de duplo e o assombro de que, diante da imagem, podemos ver-nos vendo esse algo inanimado que se manifesta como pensamento, e nos vê. A noção da inquietante estranheza de Freud é equiparada, por Didi-Huberman, à noção de aura concebida por Walter Benjamin. O paradoxo entre a proximidade e a distância associados ao estranho-familiar aparece como a singularidade e a estranheza da trama singular do espaço e tempo da imagem aurática. Ambos funcionando como poder do olhar, do desejo e da memória simultaneamente, enfim, como poder da distância20. Na experiência visual em New Years Day (figura 01, p.19), somos colocados diante desse algo que saiu da sombra, que estava recalcado e que retorna em elementos em destempos que sugerem uma lógica anacrônica e sem hierarquias. Desse modo perdemos a localização, numa desorientação do olhar que implica, segundo Didi-Huberman, ao mesmo tempo ser dilacerados pelo outro e ser dilacerados por nós mesmos, dentro de nós mesmos21. 18 DIDI-HUBERMAN, 1998, p.118. Ibid, p.229. 20 Ibid, p. 228. 21 Ibid, p. 231. 19 22 Fig. 02: Robert Frank, Roots, cópia de gelatina de prata de 2 negativos polaróides, 50,8 X 40,6 cm, 1996. Fonte: Hold Still Keep Going, 2001. No díptico intitulado Roots (figura 02), a vista da janela de um apartamento em Manhattan é colocada paralelamente a um mapa da Palestina. No que deveria ser uma reprodução precisa, uma veladura excede a sensibilidade da gelatina de prata e apaga a informação. No que deveria ser uma janela, as bordas imperfeitas deflagram a fragilidade do aspecto mimético da fotografia. Dois tempos e dois espaços que se afetam mutuamente acumulando-se em imprecisões, e sob esse enlace criam uma relação, se desindividualizam. A frase escrita ao pé da obra, eles viajarão com você, remete-nos à concepção de Flusser sobre o expatriamento, na qual o estrangeiro arrasta consigo em seu inconsciente fragmentos de mistérios de todas as pátrias por quais passou, apesar de não se encontrar ancorado em nenhum desses mistérios...22 Talvez maior mistério do que o que se traz de um passado (e aqui possivelmente nos encontremos mais próximos do campo do enigma que, ao contrário 22 FLUSSER, 2007, p.235. 23 do mistério, não se resolve e maneja sempre um resto irresolvível) possa ser como isso pertence também ao futuro, pois ao mesmo tempo em que as fotografias do passado são os souvenires da memória, também constituem o espelho do porvir. Ver o presente através da elaboração do passado implica que nenhuma memória é estática, e que a confluência de tempos embaralha as verdades. Nessa proposição imagética de Robert Frank, o papel do fotógrafo acaba sobreposto por outra função, a do cartógrafo. Em “Cartografia Sentimental, Transformações Contemporâneas do Desejo”, Suely Rolnik define como a tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem. Assim o vemos em Roots, uma cartografia que se difere de um mapa, pois se este é uma representação de um todo estático, aquela se faz ao mesmo tempo em que a paisagem e o destino se transformam acompanhando suas nuances23. As fotografias que estão neste díptico, tanto a janela do apartamento em Manhattan quanto o mapa da palestina, mostram-se soltas de seus universos referenciais, negam a reapresentação de seus referentes para apresentar o que está contido na própria superfície de emulsão de prata. O que se desvela nas bordas veladas da primeira foto e o que se vela na segunda pontuam um espaço que se deixa infiltrar pelo vazio e o sustenta até o apagamento do lugar. Mas não há cristalização, pois, se estamos falando de cartografia, ela é sempre acompanhada de movimento e fluxo, ou, como coloca Rolnik, movimentos do desejo -, que vão transfigurando, imperceptivelmente, a paisagem vigente 24. Nesta terra de múltiplos, a de estrangeiros, no mesmo momento em que o traço se faz também se desfaz, pois o mote é a travessia, uma passagem que nunca afirma uma forma, pois está sempre em movimento. A travessia aparece em nosso argumento como a busca do sentido de origem, o atravessamento do estrangeiro no que se refere ao “livre de quê” para o “livre para quê”, como aponta Flusser25, uma libertação que é o potencial da criação. Sobre essa questão, tanto Roots (figura 02, p.23) quanto Untitled, Me and My Sister, de Feliz Gonzalez-Torres (figura 03, p.25), problematizam a diferença entre a idéia de início e origem, noções que absolutamente não coincidem. O início é circunstancial, determinável e fixo. Por sua vez, a origem é mutante e depende de um conjunto de possibilidades que estão sempre se transformando. Mas o que é a origem, pergunta Didi-Huberman, senão o que aparece diante de nós como um sintoma?26 Segundo Walter Benjamin, a origem não tem a ver com a gênese 23 ROLNIK, 2007, p. 23. Ibid, p. 62. 25 FLUSSER, 2007, p.223. 26 DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 171. 24 24 das coisas, não designa o devir do que nasceu, mas sim o que está em via de nascer no devir e no declínio. O dilema em Roots é o que parece tocar a ordem do indeterminável, aquilo que a cada momento se reconfigura inesperada e sintomaticamente, trazendo junto consigo o que, nas palavras de Benjamin, se relaciona com sua pré e pós-história.27 Fig. 03: Felix González-Torres, Untitled (Me and My Sister), quebra-cabeças de fotografia colorida com saco plástico, 19,1 x 24,1 cm, 1998. Fonte: catálogo da exposição Somewhere/ Nowhere, 2007. Os canais de efetuação da vida não têm princípios morais. Seus princípios são vitais, diz Suely Rolnik. Na travessia, despe-se de um nome próprio para sustentar a vida em seu momento de expansão28. Essa é a ética do cartógrafo. Em Untitled, Me and My Sister (figura 03), o quebra-cabeça pertence ao presente e não ao passado porque é daqui que se impera um “livre para quê” como espaço potencial. Quando o jovem fotógrafo Robert Frank deixa Zurich, em 1947, carrega consigo um quadro com que seu mestre de fotografia, Hermann Segesser, lhe havia presenteado, sem 27 28 BENJAMIN, 1984, pp. 67 e 68. Ibid, p. 70. 25 saber que naquele momento carregava os desejos e as interrogações que singularizariam sua trajetória. Quarenta e seis anos depois, seu quebra-cabeças se completa e a travessia pode ser tocada, pensada e elaborada, como um desejo que matura em silêncio e quando se percebe já se infiltrou na vida como uma cartografia. É o que comenta Frank numa carta para seu mestre em 1993: É somente a água (o mar), é tranqüilo, é vivo e movente, com o vento e as correntezas debaixo. Parece ter uma sensação de qualidade profética – esse homem no seu pequeno quarto no porão da Schulhausstrasse 73 dá ao rapaz – partindo de casa – seu entendimento e expectativa de liberdade de espaço, de mistério, de natureza. Tudo isso eu começaria a entender muito depois... E tentaria expressá-lo em meu trabalho.29 29 FRANK, 1991, p. 50. (tradução nossa) 26 2. A FOTOGRAFIA E SUAS IMPLICAÇÕES Levando em conta que Robert Frank é um artista visual que parte sempre da imagem técnica, interessa-nos nesse momento compreender de que modo sua operação, especificamente em fotografia, é articulada em relação aos parâmetros que vão aparecer dentro deste campo. Outra vez, como um estrangeiro, em Polaroids, o fotógrafo desestabiliza as noções relativas à imagem e desmistifica a fotografia como testemunho de um mundo objetivo, de efeito de real. Perguntamo-nos, então, como as imagens da série em questão logram desfuncionalizar os mecanismos ideológicos do aparato técnico. . Fig 04: Monuments for my daughter Andrea, 1954-1974. Impressão de gelatina de prata de negativo Polaroid, 49,6 x 39,8 cm, Mabou, 1975. Fonte: The Lines of my Hand, 1989. Robert Frank muito cedo compreendeu que o domínio da fotografia pela habilidade nada mais traria do que uma falsa ilusão de contabilizar as aparências do mundo. A objetividade calcada no mito de real revela-se como um efeito, sendo a fotografia nada mais do que o que pode ser feito dela. Em Monuments for my daughter Andrea (figura 04), por exemplo, um simples poste de luz ou uma madeira feita totem jamais voltarão a ser simplesmente dados do mundo. Frank abstrai a natureza dos objetos e também os objetos da 27 natureza recolhendo-os em seu olhar e, quando os recupera numa mesma superfície e os repete criando um jogo do ver e do rever, mostra um algo que já é outro, separado dos referenciais do mundo que em princípio o constituíram através da impressão de luz na sensibilidade da prata. Estou sempre olhando para fora, tentando ver para dentro. Tentando dizer algo que seja verdadeiro, diz Robert Frank. E depois problematiza: Mas talvez nada seja realmente verdadeiro. Com exceção do que está lá fora. E o que está lá fora está sempre mudando30. Assim como a idéia de inapreensibilidade da realidade que está em suas palavras, a suposta objetividade da fotografia também se esvai em suas imagens. Como demonstra na imagem referenciada anteriormente, a fotografia não apreende e reproduz um fora, mas aponta a um íntimo que está tocado pela cultura, como num anel de moebius onde a superfície faz parte de uma topologia de borda. A topologia de borda diz respeito, em psicanálise, à continuidade dos lados, como quando passamos o dedo pela extensão de fita de moebius, margeando sua borda sem mudar de lado. Na topologia de borda, assim como em Monuments... um interno é simultâneo a um externo e vice-versa, e nesse encontro constituem um novo. Fig 05: Fita de Moebius. Fonte: retirada em 12/01/09 às 18hs http://witilongi.blogspot.com/2006/11/la-banda-de-mebius-y-la-botella-de.html, 30 FRANK, 1991, p.12. 28 Tomemos aqui o valor do termo extimidade, introduzido por Lacan em 1960, no seminário sobre ética31. Em sua concepção, extímio faz referência ao externo que é ao mesmo tempo um interno, um íntimo. Extimidade seria então esse novo espaço criado da sobreposição destes adjetivos. Podemos pensar que, em Monuments for my daughter Andrea (figura 04, p.27), o caráter de extimidade acontece pela fotografia, num dentro e fora que estão neste lugar. Porque, se a fotografia pode ideologicamente apresentar-se como representação presentificando a aparência de uma ausência, nesta imagem, o poder de figurabilidade e o sintoma desfazem este estigma. Assim, no memorial que se sobrepõe ao referente, a noção de representação é engolida pelo texto do artista porque o que presentifica é a ausência de uma filha, não a ausência do mundo. E, se isto só procede no campo da linguagem e aqui é resolvido justamente pela fotografia, não seria então uma subversão ao paradigma do fotográfico? Não há dúvida de que Robert Frank maneje esse meio para que sejam feitas elucubrações de linguagem, inclusive desfazendo às noções entre realidade e ficção, mas poderíamos tomar o procedimento em Polaroids como uma possibilidade de elucidação da trama da caixa-preta? Para responder a essas perguntas, comecemos por compreender o estatuto da caixapreta. No ensaio “A utilidade da arte”, César Aira lembra o momento neste último meio século quando a humanidade deixou de compreender o mecanismo das próprias máquinas (automóveis, rádios, máquinas de lavar, etc.). Parecendo um fenômeno recente, o fato é que atualmente, segundo o escritor, usamos os artefatos tal como as damas de antigamente usavam os automóveis: como “caixa-pretas”, com um Input (apertar o botão) e um Output (desliga-se o motor), na mais completa ignorância entre o que acontece entre esses dois pólos.32 A caixa-preta é, segundo Arlindo Machado, um termo da eletrônica, e designa uma parte complexa de um circuito. Essa parte é omitida intencionalmente no desenho de um circuito maior (geralmente para fins de simplificação) e substituída por uma caixa (box) vazia, sobre a qual se escreve o nome do circuito omitido.33 O indício da caixa-preta na sociedade contemporânea avança na imprevisibilidade de tudo o que nos cerca. Por não entendermos o funcionamento do entorno, perdemos os parâmetros gerais e atrofiamos nossa capacidade de lucidez sobre nossos próprios atos. Mesmo a revolução era, segundo Aira, o desmonte da sociedade até seu último parafuso, no intuito de poder remontá-la sob novos prospectos. Mas estamos todos cegos, como diz 31 Lição de 10/02/1960 do Seminário, livro 07: a ética da psicanálise. AIRA, 2007, PP. 49 a 54. 33 MACHADO, 1998, p.11. 32 29 Saramago, e se estamos marcados por essa irreversibilidade, será a prática artística o campo de exceção que tornará possível o desmascaramento do conflito entre sensibilidade e tecnologia, fundado em bases discursivas. Como argumenta Ronaldo Brito: É indispensável, contudo, conhecer por dentro as articulações do processo para não ficar preso à sensibilidade do olho empírico. Esta sensibilidade, contra a suposição comum, é a que existe de menos espontânea: está totalmente determinada pela estrutura dos códigos vigentes de inteligibilidade. Gostar ou não gostar, nesse sentido amplo, é a mesma coisa – em qualquer dos casos já se perdeu a chance de ver o real do trabalho ao traduzi-lo na rede instituída do visível possível. E este, vale insistir, não representa o limite do olho humano, mas sim o de uma dada construção da visualidade, coerente com a implantação e manutenção da ordem burguesa34. Em “Filosofia da caixa-preta, Ensaios para uma futura filosofia da fotografia”, de 1983, Vilém Flusser tenta compreender os paradigmas da imagem técnica e como a concepção dessa ideologia criou as bases da experiência das sociedades ditas pós-históricas, ou seja, as sociedades que se compõem de imagens técnicas construídas pela mediação de aparelhos. Inicia o livro desfazendo a transparência calcada ideologicamente nas imagens fotográficas até apontar a alienação do homem no imperialismo pós-industrial conduzido pelos aparatos técnicos. O que afirma é que a imagética magicizante e seu efeito de caixapreta só fariam reproduzir conceitos pré-figurados já implicados nos programas. O fotógrafo, ou qualquer usuário de um aparato, seria mero funcionário deste sistema, servindo subservientemente às suas bases ideológicas. O único gesto de liberdade, dentro deste acaso cego, seria a experimentação capaz de problematizar a imagem, o aparelho, o programa e a informação. Usando a fotografia como criação e fazendo com que a mediação substitua seu potencial representacional, Robert Frank desarticula a carga ideológica de um regime de visualidade calcado no limite do visível amparado pela imagem técnica. Ruma em direção a outro cálculo, apontando na filosofia da fotografia um caminho de liberdade, que como diz Flusser, constitui uma filosofia urgente por ser ela, talvez, a única revolução ainda possível35. 34 35 BRITO, 2005, pp. 78 e 79. FLUSSER, 2002, p. 76. 30 Para Frank, a realidade existe na medida em que podemos pensá-la e construí-la; o que sua câmera perscruta são concepções de linguagem. Em seu filme “Life Dances on...” 36, surge a pergunta se fotografias podem apreender o invisível. O personagem Billy, que está com medo de que as pessoas leiam a sua mente, diz: você não deveria estar apontando a câmera. Os meus pensamentos íntimos são meu segredo... Isto está invadindo a minha privacidade.37 Como se a câmera pudesse perscrutar verdades, como se os documentos íntimos e os pensamentos fossem passíveis de apreensão. Sim e não. Sim porque o que se apresenta em Polaroids são construções, invenções de dinâmicas que imbricam pensamentos abarcando novas lógicas, e que até poderíamos chamar documentos. Mas não como reflexo de um indivíduo subjetivo, o que as fotos apresentam são a própria encarnação de algo que se pensa, separado do contato com o instante de luz e forma que a geraram. O que a imagem fotográfica concretiza, segundo Jean Baudrillard, é a ausência de uma realidade sendo a operadora mágica de seu desaparecimento38. O ato fotográfico, no instante de sua materialização, põe fim simultaneamente à presença real do objeto e a do sujeito, e é nesse desaparecimento recíproco que se opera uma transfusão de dois39. O que surge desse desaparecimento recíproco é uma superfície bidimensional como nova aparência, nova realidade. Um “Outro” que, antes de parecer ser o mundo, a sua imagem e semelhança, é enigma. O artista plástico Nuno Ramos resume as implicações entre imagem, aparência e realidade, numa frase bastante sucinta: a semelhança é o melhor disfarce40, e similarmente Baudrillard configura: trata-se de um crime quase perfeito, uma resolução quase total do mundo que apenas deixa brilhar a ilusão de tal objeto...41 Sob os auspícios de Frank qualquer imagem fotográfica é uma imagem em potencial, nada mais que um suporte destituído de seus referenciais e que se expressa em sua pura literalidade de coisa. Para ele, a imagem-foto não é representação, mas criação. Da mesma forma que para Baudrillard entre fotografia e referente não há correspondências, como diz: Entre a realidade e sua imagem, a troca é impossível. Há, na melhor das hipóteses, uma correlação figurativa. A realidade “pura”, se é que isto existe, permanece uma pergunta sem resposta. E a foto é também uma 36 Robert Frank também é cineasta, e em muitos de seus filmes edita trechos onde debate sobre imagem e fotografia, como, por exemplo, em Life Dances On, 1980, PB e cor, 30 minutos, em16mm 37 Citado por BROOKMAN, 1991, p.159. 38 BAUDRILLARD, 2002, p.144. 39 Ibid, p. 147. 40 RAMOS, 1997, p.66. 41 BAUDRILLARD, 1997, p.35. 31 pergunta à realidade pura, uma pergunta ao Outro, que não espera resposta42. A condição a que se refere Baudrillard, da troca impossível, é a própria irrealização inerente ao fotográfico. Entre o mundo e sua imagem, mas também entre a imagem fotográfica e espectador. À decepção com uma realidade entregue à superficialidade da imagem seria preciso opor a decepção com uma imagem entregue à expressão do real, problematiza o filósofo. Uma foto é puro efeito de superfície, que atrai na mesma medida em que joga ao vazio. Sem dúvida, isso engendra um mecanismo que nos mantém reféns do desejo de desejar porque o atravessamento do profético só existe enquanto imagética. A promessa que ressoa da fotografia envolve a cintilação de um desejo, inapreensível como matéria fora do mundo dos afetos. E, supondo que este pulso de vida desperte da vigília constante a qual estamos submetidos, poderíamos até pensar na fotografia como uma espécie de terrorismo. Assim, em Polaroids, a fotografia não é expressão de mundo ou de um autor. Frank opera onde vislumbra Baudrillard, na recuperação da potência da imagem como encarnação e de sua libertação do real, pois é somente conferindo à imagem a sua especificidade (seu “idiotismo”, diria Rosset) que o próprio real pode encontrar sua verdadeira imagem...43 42 43 Id., 2002, p.146. Ibid, p.148. 32 3. IMAGEM-ACONTECIMENTO OU A INVENÇÃO DO PRÓPRIO ROSTO Na série Polaroids, Robert Frank constrói situações submetendo-as à organização do imaginado, premeditações que somente podem ser concretizadas no plano da imagem e do pensamento. O que ele realiza, no sentido de tornar real uma enunciação, é sempre invenção de novos termos para um jogo que se supõe infinito. O que nos interessa compreender nesse momento é a identidade desse rosto inventado que se dá como imagem. Fig. 06: Robert Frank, No projector could do justice... Colagem com quatro impressões de gelatina de prata com negativos polaróides e faixas de papel datilografadas, montados num papel cartão, 54,6 x 67,3 cm, 1996. Fonte: Hold Still Keep Going, 2001. Em No projector could do justice... (figura 06) a proposição é performática, os corpos, corpos-fotografias, são colocados diante de uma tela, a mesma tela que está contida nas imagens fotográficas. Toda a dinâmica da situação se passa diante dela e diante da janela, não havendo o outro lado que seria o detrás. Esta estrutura topológica nos remete à descoberta de Alice, a personagem dos livros em suas aventuras de Lewis Carroll, de que 33 tudo se passa na fronteira e ao longo da cortina, desmistificando a idéia de uma falsa profundidade, segundo Deleuze44. A performance que acontece nesta imagem também faz negar a condição de uso da fotografia como fixação de eventos passados, de instrumento de memória e testemunho, colocando-a em outro tempo. Para Roland Barthes a idéia de performance só existe no tempo presente da enunciação na medida em que todo Texto é escrito eternamente aqui e agora, como diz: ...escrever não pode mais designar uma operação de registro, de verificação, de representação, de “pintura” (como diziam os clássicos), mas sim aquilo que os lingüistas, em seguida à filosofia oxfordiana, chamam de performativo, forma verbal rara (usada exclusivamente na primeira pessoa e no presente), na qual a enunciação não tem outro conteúdo (outro enunciado) que não seja o ato pelo qual ela se profere...45 Assim, a encenação de No projector could do justice... (figura 06, p.33) desloca a idéia de “acontecido” para o que “acontece”, requerendo com esse deslocamento um novo cálculo em torno do trabalho. Ela extingue a noção temática, ou referências formais em relação à fotografia, exigindo novos pressupostos e instrumentalizações de abordagem, por exemplo, em relação à noção temporal. Assim, uma analogia que No projector could do justice... pode sugerir é a noção de tempo a partir da concepção platônica, que inclui tanto o tempo cronológico como o Aion, como analisados por Deleuze em “A Lógica do Sentido”. O tempo cronológico é o tempo linear dividido em passado, presente e futuro e cuja efetuação dá-se somente no presente, pois, como explana Deleuze, só os corpos existem no espaço e só o presente no tempo46. O Aion, por sua vez, é o tempo sentido como puro devir, em que passado coexiste com futuro de modo indissociável e vice-versa. Este tempo remete à ordem do incalculável e do fora dos eixos, e não se efetua no presente. Nesta imagem propositiva de Frank, esses dois tempos sobrepõem-se; se, por um lado, algo acontece pela via da performance deslocando o passado para o presente, e é quando temos a experiência de Chronos; por outro lado, o devir aparece como identidade-infinita. A identidade-infinita compõe a impossibilidade de cristalização de um estado dado pelo saber, sua característica é o paradoxo que desliza incessantemente em dois sentidos ao mesmo tempo e infinitamente. Se finalizassem não viriam a ser, mas seriam, diz Deleuze47. E assim lidamos com a tela em branco que insiste em ser, em ordens diferentes e tempos concomitantes, como um fluxo que sempre avança. “Em que sentido, em 44 DELEUZE, 1998, p.10. BARTHES,1984, p. 68. 46 DELEUZE, 1998, p.05. 47 Ibid, p 02. 45 34 que sentido?” pergunta Alice, no País das Maravilhas, pressentindo que é nos dois sentidos ao mesmo tempo...48. New Years Day (figura 01, p.19) também nos provoca a criar uma analogia em relação aos dois tempos analisados por Deleuze. Uma paisagem murmurante é fixada pela fotografia na qual uma data passada, New Years Day 1981, inscreve-se no presente (para o leitor). Tudo está congelado nos dois fotogramas deste díptico. Matéria-morta? Deleuze nos alerta: nada mais perturbador que os movimentos incessantes do que parece imóvel49. O leitor lê no seu presente um passado que esteve sendo presente, vislumbrando imbricações de tempos juntados num bloco de várias medidas. Diante deste bloco, o devir: a paisagem que flutua na janela sem alcançar sua cristalização, uma paisagem que está sempre se transformando, no “entre” de um paraíso perdido e na desolação de um futuro que a toda natureza destrói. Para Deleuze, o paradoxo é o da contemporaneidade do passado com o presente que ele foi: nunca um presente passaria se ele não fosse “ao mesmo tempo” passado e presente, nunca um passado existiria se ele não tivesse sido constituído “ao mesmo tempo” em que foi presente50. E assim, as proposições de Frank traçam outra história do tempo que agora é pelo menos duas, e que estão entrelaçadas de tal modo que não há como destramá-las. 48 Citado por DELEUZE, 1998, p.03, grifo do autor. DELEUZE, 1992, p.195. 50 DELEUZE, citado por SALEM, 2003, p.108. 49 35 Fig.07: Robert Frank, 4 AM, Make Love to Me, impressão de gelatina e prata de negativo Polaroid, 40,4 x 50,8 cm, 1979. Fonte: The Lines of My Hand, 1989. Em 4 AM, Make Love to Me (figura 07), num quarto supostamente de hotel iluminado pela tela da televisão, uma mulher aparece nua encarando a câmera. Enquanto ela acena dessa atmosfera opaca, as palavras escritas sobre a emulsão do papel mediam uma fala. Poderíamos deter-nos em analisar a ausência de um caráter emblemático nesta imagem onde o corpo de personagem feminino e a caligrafia que duplamente escreve o desejo não fazem parte nem de uma ideologização do erotismo nem de uma vertente caracterizada pela promoção fetichista de valores que distanciam imagem e realidade num apelo voyeurístico, seja ele depositado no imaginário sobre o exótico, seja no mundo das celebridades. Poderíamos sustentar a colocação do professor de literatura Christoph Ribbat que, na dúvida sobre pensar este trabalho a partir de um erotismo barato e boêmio, descobre na cena da presença feminina, o desengajamento de Frank do projeto fotográfico norte-americano de incluir-se nas Belas Artes através do escrutínio dos elementos intrínsecos do meio fotográfico, como assim deflagra: 36 Orgulhosa, flexível, gentil, forte, presente e ausente, qualquer papel que ela atue no trabalho de Frank, ela está lá. Isto indica a partida de Frank da corrente central do modernismo americano, caracterizado esteticamente e ideologicamente pelos mitos da masculinidade... com 51 mulheres objetos e personagens masculinos . Fig.08: Edward Weston, Tina on the azotea, reprodução, 1923. Fonte: HOOKS, Margaret. Tina Modotti - photographer and revolutionary. London: Pandora, 1993, p.25. De fato Robert Frank enfatiza o despojamento e o ruído, a fragmentação e o êxtase, categorias que confiscariam seu trabalho para a idéia de anti-mercadoria na sociedade contemporânea. Ao contrário de Edward Weston, fotógrafo-ícone do modernismo norteamericano que alcançou reconhecimento promovendo através de belas paisagens e corpos sensuais a idealização da sensualidade, Frank não se relaciona com a construção de um ideal relacionado ao mundo do vivido, o que ele faz é gerar situações no plano imagético. Mesmo que as fotografias de onde parte Robert Frank sejam fotos íntimas, essa ligação desaparece em nome de uma questão mais apropriada: a de alcançar o campo do sujeito que por si é indeterminado. Em 4 AM, Make Love to Me (figura 07, p.36), o que impera na escrita da luxúria não é um desejo pessoal. Trata-se do desejo em seu alcance mais amplo, cidadão do mundo52. Nesse sentido, a singularidade desta imagem é pré-individual, e podemos pensar que sucede sem fechar-se sobre si num dentro, mas participa do movimento imanente da vida. Importante reiterar essa distinção, pois, se a inscrição de Robert Frank no mundo se 51 52 RIBBAT, 2001, pp. 118 e 119. DELEUZE, 1998, p.151. 37 desse de forma expressiva, na pura reflexão de um “eu”, seu trabalho ficaria reduzido. Em “gramática da intimidade”, por exemplo, texto em que Ribbat explora Frank como um poeta americano, seu título não deve ser confundido com a intimidade do fotógrafo. Porque, se tomássemos o espaço deste trabalho a partir da biografia do autor, todo o esforço de conceber Polaroids como inflexão de linguagem no campo da arte falharia, voltaríamos a cair nas categorias obra, significado e representação, das quais, em respeito às linhas teóricas que escolhemos para o desenvolvimento deste trabalho, estamos nos apartando. Sobre a relação entre autor, biografia e obra, Marguerite Duras comenta: Nunca se conhece a história antes que ela seja escrita. Antes que tenham desaparecido as circunstâncias que levaram o autor a escrevê-la. E, sobretudo, antes que tenha sofrido no livro a mutilação do passado, do corpo, do seu rosto, de sua voz, antes que ela se torne irremediável, que adquira um caráter fatal. Eu diria também: que num livro ela tenha se tornado exterior, carregada para longe, separada de seu autor e para ele perdida pela eternidade por vir53. Se nas imagens de Polaroids encontramos a combinatória de elementos múltiplos de linguagem que performam a partir, e muito além, do que se poderia considerar uma obra concreta com um significado a ser encontrado, a noção de prática significante é que nos serve de guia condutor para a reflexão sobre as problematizações que estão colocadas no trabalho do fotógrafo. Roland Barthes, nos textos “A Morte do Autor”, de 1968, e “Texto (teoria do)”, de 1973, reflete sobre a possibilidade de ver surgir através de um encontro de diferentes campos (e no caso cita o marxismo, o freudismo e o estruturalismo), um objeto que seja verdadeiramente novo, o Texto. Parece importante ressaltar que, para ele, o Texto nasce de uma nova ordem e não como uma nova abordagem de um objeto antigo54. Barthes assim coloca: O sentido, ou se preferirem, o escopo dessa busca é substituir a instância da realidade (ou instância do referente), álibi mítico que dominou e ainda domina a idéia da literatura, pela própria escritura55. O que entra em jogo na literatura, e por extensão em nosso argumento porque também articula o trabalho artístico incluindo o campo imagético, é a destituição do discurso do autor como forma de expressão para o que Barthes, baseado nas definições de Julia Kristeva, chama de prática significante. A prática significante abole a idéia de significado e 53 DURAS, 1993, pp.12 e 13. BARTHES, 2004, pp. 267 e 268. 55 Id., 1984, p. 38. 54 38 obra com um sentido dado, apontando para um sistema sem fim nem centro que conquista uma amplitude infinita de possibilidades a partir de uma tessitura de combinações56. A prática significante é ativa no Texto quando sugere um trabalho perpétuo de jogo onde o leitor está incluído como criador de sentidos e, desprendendo-se da metáfora da janela, alcança apreender a complexidade da própria trama inscrita na linguagem. Para nomear a constituição da trama textual em Polaroids, servimo-nos do que Gilberto Safra aponta como possibilidades de existência, sendo elas a noção de máscara, de cara ou de rosto57. Poderíamos pensar o trabalho de Weston (figura 08, p.37) como uma imagem-máscara. A máscara sendo aquilo que assinala a ausência de uma presença, onde o ser humano é aprisionado nos códigos sociais, podendo ocorrer uma experiência de um vazio existencial profundo. Ao trabalho de Frank não cabe esta categoria, nem a de imagem-cara, já que esta se refere ao organismo biológico e não carrega a possibilidade de transcendência de sua entidade natural. O trabalho de Frank se enquadraria na categoria imagem-rosto, pois é esse o lugar de um gesto de desejo para além da necessidade, no sentido de um devir. A imagem-rosto não pode ser conhecida, só buscada, pois ela é justamente esse vir-a-ser incessante. Proposição em aberto, a espera de sentidos que só podem ser criados pelo leitorespectador, trama inesgotável que sugere imbricações infinitas e múltiplos lugares, para cada um e cada qual. É a noção de imagem-rosto que imbui Polaroids de um espaço reflexivo no campo da arte. Para Deleuze, o trabalho artístico, assim como o pensamento, surge a partir do que chama de plano de imanência. Para ele, este plano remete aos mundos possíveis ainda sem forma nem visibilidade, onde as coisas ainda estão virtualmente por acontecerem. Forças, devires e potências coexistindo como puro pensamento, desprendidos de qualquer noção de subjetividade ou de objetividade. Nesta perspectiva, a arte ou o pensamento nasceriam da experimentação da realidade deste plano e de sua atualização. Para o filósofo, a atualização do virtual é criação porque dá vida ao novo. A arte é tanto isso como também a possibilidade do contrário, uma virtualização do atual, ou seja, quando a partir de algo que já se tem delineado, aparece um novo caos e assim provoca desestabilizações. Sobre isso Deleuze se expressa do seguinte modo: ...quando a imagem virtual se torna atual, então é visível e límpida, como num espelho ou na solidez do cristal terminado. Mas a imagem atual 56 57 Ibid,p.74. SAFRA, 2004, p. 65. 39 também se torna virtual, por seu lado, remetida a outra parte, invisível, opaca e tenebrosa, como um cristal que mal foi tirado da terra.58 Virtual e atual estão assim em relação constante e se alimentam reciprocamente. Se tomarmos a proposição artística por um objeto real, o virtual e o atual são suas faces, partes próprias e determinadas que se comunicam: enquanto o atual é o complemento, o produto, ou ainda o objeto da atualização, o virtual, por sua vez, é o sujeito dessa atualização59. Isso nos serve neste momento para pensar a imagem-rosto em Polaroids, não como a realização de um possível, mas como o processo de criação que deriva da relação virtual x atual a partir do plano de imanência. Fig.09: Robert Frank, Boston, March 20, impressão de negativo polaroid, 51,1 x 60,6 cm, 1985. Fonte: Moving Out, 1994. 58 59 DELEUZE, 2007, p.90 LEVY, 2003, p.103. 40 Em Boston, March 20 (figura 09) seis fotografias verticais apresentam uma série de encenações em pequenas telas sobrepostas num cavalete. Palavras, nomes próprios, datas, verbos, imagens, recortes de imprensa e pronomes adicionam-se e subtraem-se num jogo sem regras aparentes onde o sem-sentido e o acaso figuram o absurdo. Seriam essas proposições imperativas colocando no mundo suas asserções, ou seriam proposições interrogativas em demanda de resposta? O esquema de Frank suspende o senso comum e, nesta via, propõe um novo jogo com séries infinitas que desliza no campo da linguagem. Assim, o que impera ou interroga, numa nova dimensão de entendimento, são suas possíveis associações. Estabelecendo limites e ultrapassando-os, o jogo da linguagem, diz Deleuze, compreende termos que não param de deslocar sua extensão e de tornar possível uma reversão da ligação em uma série considerada60, numa série em que algo de sua sequência desvia já constituindo uma nova série, e assim infinitamente. Para o filósofo, não é nem um homem nem um deus que realiza o jogo em questão, pois este é inconsciente de pensamento e só existe em si e enquanto tal, ou seja, no próprio pensamento ou na arte, como argumenta: é, pois, o jogo reservado ao pensamento e à arte, lá onde não há mais vitórias para aqueles que souberam jogar, isto é, afirmar e ramificar o acaso, ao invés de dividi-lo para dominá-lo, para apostar, para ganhar61. Boston, March 20 joga o jogo ideal ao qual se refere Deleuze, o jogo dos problemas e da pergunta, não mais categórico e hipotético62, imaginando desta maneira outros princípios aparentemente inaplicáveis onde cada lance carrega consigo sua própria regra... Se a proposição imagética em questão demanda ou afirma é para deslocar associações, dado que as respostas não suprimem as perguntas, mas podem gerá-las em novos termos, e só assim há traçado no avançar do jogo ideal. Concluindo que o campo em Polaroids é o da linguagem, logo despertamos para o conceito de acontecimento discutido por Deleuze em “A Lógica do Sentido” e também em outras publicações. Segundo o filósofo, o acontecimento é um campo transcendental e potencial feito de pontos singulares que precedem a individualidade, não é o que acontece (acidente), diz ele, mas o que deve ser compreendido, o que deve ser querido, o que deve ser representado63. Detectamos assim que, no trabalho de Frank, o acontecimento não é a 60 DELEUZE, 1998, p. 09. Ibid, p.63. 62 Ibid, p.62. 63 Ibid, p.62. 61 41 proposição expressa pela operação plástica no plano da imagem, mas seu efeito incorporal, ou seja, as questões a que engendra. O filósofo nos esclarece a concepção de acontecimento através do exemplo da noção de batalha, Onde está a batalha? Senão em nossas cabeças e nas cabeças dos envolvidos, acontecendo para cada qual de modo diferente. A batalha, que não pode ser vista simplesmente como um evento cristalizado numa significância, é a soma de tudo o que se diz dela, o que a irrompe e a recorda. Ela sobrevoa seu próprio campo, neutra com relação a todas as suas efetuações temporais, neutra e impassível com relação aos vencedores e vencidos, com relação aos covardes e aos bravos, e por isso tanto mais terrível, nunca presente, sempre ainda por vir e já passada...64 Na série Polaroids, as imagens não narram, não contam uma história, nem se dirigem aos dados figurais do mundo; assim como as batalhas, geram acontecimentos que envolvem problemáticas que não são objetos, porém processos de pensamento inapreensíveis como um todo, mas que se impõem e interrogam as bases do campo conceitual sobre a imagem. E se nos perguntamos sobre o verdadeiro ponto de inflexão deste trabalho, dentre tantos movimentos e rupturas, não será justamente esta a sua compreensão, de que não há sentido além da proposição artística, de que ela é o sentido? De que não há possibilidade de aproximar-se da verdade, senão produzindo-a, refazendo-a, inventando-a? De que a imagem que se pensa é uma imagem-acontecimento? 64 Ibid, p.103. 42 CAPÍTULO II VISÍVEL X DIZÍVEL A vida não existe, ela tem que ser inventada. Souza, Tessler e Slavutzky No trabalho de Robert Frank a proposição imagética engendra seus próprios termos de pensamento, sua ética. Interessa-nos estudar neste capítulo como e a partir de que lógica operam essas imagens. Se o fotógrafo diz: Eu destruo os elementos descritivos na fotografia então eu posso mostrar quem eu sou, reiterando que é no movimento de destruição que alcança o si da questão, o que constrói quando acredita destruir? Os procedimentos plásticos que ganham visibilidade no que poderíamos chamar de uma operação de montagem são: a dinâmica do processo de figurabilidade, a inscrição da palavra como transgressão do limite do visível, a repetição como criação e o gesto pictórico como empreendimento de re-significação. Acreditamos que, nesse ponto, a determinação do processo de fatura das imagens é o que nos apontará as noções conceituais e poéticas deste fotógrafo. 43 1. A LÓGICA FIGURAL NOS SONHOS Fig. 10: Robert Frank, End Of Dream, Mabou, impressão revelada de gelatina de prata com polaroid tranfer colorido e tinta esmaltada, 1992. Fonte: Moving Out, 1994. End Of Dream, Mabou (figura 10), de 1992, contém uma questão latente que opera por imagens, algo que se mostra visualmente desdobrado para indicar uma questão. Nesta imagem, fotografias situam outras fotografias menores que, por sua vez, revelam o reflexo de uma pessoa. Enquanto diversos riscos coloridos feitos à caneta traçam uma linha paralela ao horizonte que atravessa o tríptico gerando uma continuidade entre as partes, um espaço vazio (na fotografia do meio) é determinado pela ausência da foto que lhe falta. Finalmente o título End Of Dream está escrito na base da obra, em caneta verde. O que leva a pensar tal repertório visual? A que imbricações sustenta? Importa então pensar o campo plástico como a superfície de uma elaboração, como a nudez onde será possível acercar-se da questão mais íntima. No campo dos sonhos estás em casa65, diz Freud sobre a possibilidade do mais íntimo subir à superfície, instigando-nos a aproximarmos das imagens de Frank abordandoas a partir da lógica figural que configura a linguagem dos sonhos. Ambos os mecanismos, do sonho e das imagens de Frank, operam por um poder de condensação e deslocamento a partir de figuras compostas de caráter multifacetário e múltiplos pontos de vista. A demanda é de que uma imagem convoque o potencial de um livro para pensar-se, pois, como coloca Freud, os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos66. Trata-se de um pensamento (conteúdo latente) que só pode ser apreendido pela elucidação do sentido das 65 66 Citado por LACAN, 1985, p. 47. FREUD, 2006, p.305. 44 imagens (conteúdo manifesto). Em outras palavras, a percepção funda-se na imagética enquanto serão as conexões feitas a partir dela que situará o que o sonho deseja mostrar. Para Lacan, o mecanismo do isso mostra nos sonhos é um cálculo do inconsciente, anterior a qualquer razão, como ele diz: ...nossa posição no sonho é, no fim das contas, a de sermos fundamentalmente aquele que não vê. O sujeito não vê onde isso vai dar, ele segue, ele pode até mesmo oportunamente se destacar, dizer para si mesmo que é um sonho, mas não poderia em nenhum caso se apreender dentro do sonho à maneira como, no cogito cartesiano, ele se apreende como pensamento67. Polaroids se relaciona com o universo onírico como uma trama aberta que cintila na medida em que provoca um desejo de fabulação e de criação de sentido no espectador. De caráter inesgotável, serve de ponto de partida para cada um disposto a conectar seus fios de Ariadne. Entretanto não caímos no campo da significação, mas sim no da imagem dialética68, que é a imagem atravessada por uma inquietação e capaz de engendrar um diálogo a partir de seu potencial de linguagem. Se, no sonho, estamos no campo da realização de desejos onde as imagens são distorcidas e determinadas numa tal situação que desprezam as conjunções lógicas para manipular seu conteúdo substantivo69, em Polaroids a lógica do si da repetição, sua própria razão de ser, provém daquilo que impulsiona e gera o trabalho artístico sem se desvendar. Da mesma forma que o sonho é, segundo Freud, como um palimpsesto, que revela sob seus caracteres superficiais destituídos de valor, vestígios de uma comunicação antiga e preciosa70, no campo artístico a imagem dialética formula o campo visual recolocando, num trabalho de sintoma, questões do passado articuladas com e no presente. Um sintoma da memória, diz Didi-Huberman, concebida na estrutura latente e fundante que atravessa a imagem sem jamais saber por inteiro o que acumula71. A essa comunicação que se revela sob a manta do esquecimento tanto na arte quanto no sonho, Lacan a nomeia rememoração entendendo que sua ética constitui-se a partir da estrutura do inconsciente, como coloca: A rememoração não é a reminiscência platônica, não é o retorno de uma forma, de uma impressão, de um dos eidos de beleza e de bem que nos vem do além, dum verdadeiro supremo. É algo que nos vem das necessidades de 67 LACAN, 1985, p. 76. DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 95 69 FREUD, 2006, p. 338. 70 Ibid, p.170 (pé de página). 71 DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 115. 68 45 estrutura, de algo humilde, nascido no nível dos mais baixos encontros e de toda a turba falante que nos precede, da estrutura do significante, das línguas faladas de modo balbuciante, tropeçante, mas que não podem escapar a constrangimentos cujos ecos, cujo modelo, cujo estilo, são curiosamente de serem encontrados, em nossos dias, nas matemáticas.72 Fig.11: Amélia Toledo, O Parque das Cores do Escuro, 1975. Fonte: catálogo da artista, 2004. Podemos usar O Parque das Cores do Escuro73 (figura 11), de Amélia Toledo, para pensar ao que nos remete Freud sobre a perspectiva de um dentro aflorar à superfície e também para pensar a rememoração como fundo estrutural, como analisada por Lacan. Nesse trabalho, pedras minerais de inúmeros tipos são extraídas de minas distantes do nordeste brasileiro e recolocadas no centro da cidade de São Paulo74. A partir delas é feito um projeto de urbanismo e paisagismo para um parque integrando-as aos espaços de sociabilidade. O que essas pedras, dispostas em pleno dia e em plena cidade, convocam é um choque de estar diante de algo tão bruto. Uma nudez que nos desestabiliza diante de toda roupagem, máscara, lapidação e ruído aos quais estamos expostos. Também funcionam 72 LACAN, 1985, p.50. executada na cidade de São Paulo, no Parque do Ibirapuera, em 2001/2002, e na Vila Mariana, em 2003. 74 quartzos rosa, branco, marrom e verde, serpentinito verde e preto, quartzito azul, granito azul, nefrita roxa, basalto e blocos de mármore trabalhados pela água. 73 46 como um espelho, como se reconhecêssemos o nosso próprio interior exposto e vulnerável. O que se revela na superfície então é essa estrutura que forma toda a humanidade, estrutura que nos torna iguais e irmãos de nascimento. Talvez pudéssemos pensar O Parque das Cores do Escuro como um revelador de nossa condição mais humana, daquilo que mostra que nascemos e retornamos dos meandros submersos da terra e que, quando menos se espera, deparamo-nos com esse lugar do dentro em plena luz. Em End Of Dream (figura10, p.44), o mesmo dentro que aparece no trabalho de Amélia revela-se pelas formas das rochas oceânicas em contato com o gelo acumulado devido às baixas temperaturas e pelas sementes e frutos espalhados na neve. Também aqui os elementos naturais assumem o aspecto orgânico do mundo, uma natureza em três estados, sólido, líquido e gasoso, que assinala o fluxo da vida e suas transformações. Imagens sobre imagens sob traços e faltas que compõem a espessura para o olhar. Nas palavras de Frank, o que entra em questão é o sintoma na medida em que sempre retorna e pressiona para trás e para frente, no tempo: eu tenho muito atrás de mim, e isso é uma tremenda influência, do que aconteceu na minha vida, para trás. E na minha frente eu tenho o mar.75 75 BROOKMAN, 1994, p. 159. 47 Fig. 12: Robert Frank, BonJour Maestro, impressão de gelatina de prata, 24,6 x 32,3 cm, 1971. Fonte: The Lines of my Hand, 1989. Em BonJour Maestro (figura 12), duas paisagens panorâmicas fragmentam-se dentro de uma moldura disposta numa paisagem remota. Como uma obstrução, a moldura impede o olho de penetrar a perspectiva da foto, remetendo o espectador para uma paisagem multiplicável, para uma paisagem enquanto conceito. Dentro da lógica figural elaborada por Freud em “A interpretação dos sonhos”, o sonho dentro do sonho é a mais pura afirmação de um desejo, é o que o desejo do sonho procura colocar no lugar de uma realidade obliterada76. Quando há repúdio dentro do sonho, tal realidade de desejo revela-se como sonho dentro do sonho, como uma realidade que se distancia pelo temor ao confronto de sua verdadeira existência. Da mesma maneira, nessa imagem a repetição da paisagem faz caminho para sua afirmação, metalinguagem que faz ver a paisagem como fotografia na fotografia como Texto, e o todo como impossibilidade e inapreensibilidade. Em End Of 76 FREUD, 2006, p.362. 48 Dream (figura 10, p.44), recaí-se no mesmo procedimento, fotografias que se ocupam em conter fotografias num caminho circular que volta a si mesmo. No mesmo sentido destas proposições que pensam o dentro no dentro, podemos incluir o trabalho do fotógrafo Gustavo Frittegotto para pensar a metalinguagem que encontramos em ambos os trabalhos imagéticos citados anteriormente. Nas imagens do ensaio Estilo Pampeano (figura 13, p.49), o horizonte do pampa argentino é obstruído por um recorte de nitidez dentro da imagem, formando uma ou mais molduras de diferentes níveis de opacidade dentro do enquadramento. Como fazer ver o infinito senão por sua própria negação? Trata-se de uma linha que só existe para os olhos, uma planície que é pura abstração e só pode ser apropriada pela imagem técnica. Pois, se na medida em que se avança, a linha do horizonte se afasta, será a fotografia sua medida do visível. Imagens que se fazem ver em dimensões variadas, como as molduras das imagens em Polaroids, tanto em End of Dream (figura 10, p.44) quanto em Bounjour Maestro (figura 12, p.48), quando se interpõem claramente como Texto impedindo a naturalização da transparência da linguagem fotográfica. Fig. 13: Gustavo Frittegotto, Cirrus, da série Estilo Pampeano, 100 cm x 250 cm, coleção do artista, 2005. 49 Uma teoria do detalhe parece cabível na analogia que estamos tentando construir. Pois, se a interpretação dos sonhos concentra-se no potencial das decifrações en détail e não en masse77, de mesmo modo o enquadramento fotográfico constitui-se de fragmentos espaços-temporais através de um recorte do espaço e da fixidez temporal. O detalhe carrega a ambivalência de sugerir o extra-quadro ao mesmo tempo em que se comporta como entidade autônoma, reiterando sempre seu potencial de descontinuidade. Como expõe DidiHuberman: acercar-se vem a ser, epistemologicamente, desligar o pensamento da realidade, o que equivale a dizer que a proximidade obstaculariza a visão até borrar o limite entre realidade e ficção. E o fotógrafo assim o sabe: então você descobre que sua visão era um sonho..., diz Frank, sobre End Of Dream (figura 10, p.44), ...todo ano o gelo derrete, os ventos e as marés levam os pedaços quebrados para o mar. É também o retrato de um homem esperando por outra primavera, outra primavera, outra visão... Outro sonho...78. Freud, ao longo de seus estudos, reconsiderou sua posição sobre a técnica psicanalítica abandonando o método da livre associação através da recordação e o substituiu para o da livre associação daquilo que se apresenta na mente. Trocou desse modo a noção de recordação pela de repetição, tratando do trauma somente quando aparece em tempo presente como um acontecimento para ser analisado. Em suas palavras, podemos dizer que o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo79. Em BonJour Maestro (figura 12, p.48), assim como nas outras imagens dessa série, Robert Frank também processa um mecanismo de substituição da fotografia como recordação, recolocando-a como atuação, como tempo presente da performance. Uma atuação que não narra, não representa, nem mimetiza. Como nos sonhos, a atuação nesta imagem repete sua estrutura através de seu potencial de figurabilidade e, por isso, provoca-nos a invocar um assunto bem caro às artes visuais que é a retícula. Superfície plana e esquadrinhada que reveste a tela como uma grade, a retícula é, segundo Rosalind Krauss, um emblema da arte moderna no século XX. Ela nega a imitação dos objetos naturais, suas narrativas e discursos, para reiterar sua determinação estética unindo artes visuais e linguagem. Não tem precedentes no século XIX e sua eficácia está em 77 FREUD, 2006, p.138. FRANK, 1994, p.266. 79 FREUD, 1976, p. 196. 78 50 reafirmar sua própria modernidade, delimitando sua autonomia e auto-referencialidade na história da arte. Na fotografia, pensar o conceito de retícula nos remete a pelo menos dois pontos elementares. O primeiro é o fato de que o próprio recorte fotográfico faz parte de uma organização visual que sugere um fragmento a partir de um todo, e, por isso, se incluiria como a menor parte duma superfície bidimensional. O segundo ponto é o fato de que a concepção da ótica fotográfica (objetiva) está fundada (e perpetuada) na perspectiva renascentista, que tem como projeto o desenvolvimento de uma ciência de integração entre a realidade e sua representação. Mas, ao contrário do plano perspectivo, a retícula não projeta nada além de si mesma, de sua própria superfície, encarnando justamente o oposto do projeto renascentista. Desse modo, o que ela consequentemente cria é um plano paradoxal para o campo visual, sustentando a própria negação da condição daquilo que se naturaliza como dado da superfície bidimensional, ou sua perspectiva. Para Rosalind Krauss, é na retícula justamente que esses dois planos – o físico e o estético – resultam ser o mesmo plano: co-extenso e, através das abscissas e ordenadas reticulares, coordenado.80 Outro problema levantado por Krauss sobre a retícula, discutido em “La Originalidad de la Vanguardia y Otros Mitos Modernos”, é sobre seu caráter centrípeto e/ou centrífugo. O caráter centrípeto é uma leitura do objeto em direção ao seu próprio interior, uma introjeção dos limites do mundo no interior da obra, é uma projeção da moldura sobre si mesma. É uma modalidade de repetição, cujo conteúdo é a natureza convencional da própria arte81, como diz Krauss. É também o que está contido em BonJour Maestro (figura 12, p.48) onde a imagem desdobra-se em si mesma numa fragmentação da menor parte, e instaura um paradigma circular que não narra nem conta uma história, mas acontece pura e simplesmente para dentro de si. 80 81 KRAUSS, 2002, p. 24. Id., p. 33. 51 Fig: 14: Robert Frank, Studio, Mabou, impressão de gelatina de prata, 38,89 cm X 49,85cm, 2002. Fonte: Storylines, 2004. Em Studio, Mabou (figura 14), encontramos o exemplo do caráter centrífugo da retícula configurado como um fragmento de um mundo que se expande além da moldura. Nesta imagem a rasura da superfície tira a emulsão de gelatina de prata, indiferentemente se feita numa operação pós-revelação fotográfica ou numa possível inscrição pré-sensibilização química do papel. Uma grade que está além da figuração da imagem, carregando dentro de sua impressão outros jogos de fotografias. Poderíamos nos perguntar sobre o debate ao qual Krauss referencia a obra de Piet Mondrian: é o que vemos numa pintura concreta uma mera seção de uma suposta continuidade, ou uma entidade orgânica autônoma? Mas, se no caso de Mondrian o pintor alterna entre um modelo e outro (como nos exemplos das figuras 15 e 16, p.53), em Studio, Mabou vemos ambas as lógicas, centrífuga e centrípeta, funcionarem concomitantemente nas duas direções: uma fotografia que se inscreve como fragmento autônomo e ao mesmo tempo um pequeno pedaço de um tecido infinitamente maior. 52 Figs: 15 (esquerda) e 16 (direita) - Piet Mondrian - Composição em vermelho, amarelo, azul. Tela de 0,61 X0,41 m, Amsterdam, Stedelik Museum New York City, tela, de gelatina de prata, 1,20 x 1,44 m. coleção Harry Holtzman. 1971. Fonte: Arte Moderna de Giulio Carlo Argan, ps. 410 e 411, 2001. Podemos entender o potencial da retícula para o campo das artes visuais ao longo do século XX fazendo uma analogia à peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, no campo das artes cênicas. Nesta, duas duplas de personagens passam o tempo esperando um encontro inadiável com Godot, que nunca chega. Não há história nem enredo e o tempo prolongado da espera é o que se desenvolve no espaço. Concebida sem começo nem fim, numa estrutura fixa que se repete nos dois atos, Godot não é representação, mas acontecimento. Se a retícula, na perspectiva estruturalista de Lévi-Strauss, como analisada por Rosalind Krauss, investe na reordenação do mito não mais pela história linear e temporal, mas através de sua organização espacial, da mesma maneira Esperando Godot prescinde de uma narrativa linear e alcança uma dimensão mítica que se performa a partir do espaço cênico circular. Em ambas trata-se do que se organiza espacialmente e não do caráter evolutivo do que se desenvolve no tempo. Se a noção de estrutura é sempre a mesma, será pelas frestas que a diferença encontra terreno para instaurar-se. Assim em Godot, em Polaroids e também nos sonhos, a ação é sempre atualizada no presente, numa repetição que carrega sua diferença, seus desvios. Como vemos na marcação de Beckett quando, no fim do primeiro e do 53 segundo ato, os personagens mesmo instalados na imobilidade, sabem que tudo já está acontecendo pelo meio: Estragon: Então, vamos embora? Vladimir: Vamos lá. Não se mexem. Cortina. 54 2. PALAVRA E IMAGEM Se, na lógica dos sonhos, sonhamos em imagens, mas a elucidação se dá através da palavra, esses dois tipos de inscrição engendram diferentes mecanismos. Para Maurice Blanchot palavra e imagem têm diferentes lógicas: a visão está calcada dentro dos limites de um horizonte e supõe uma apreensão do tangível baseada na tradição ocidental do olhar; a palavra, por sua vez, transgride e desorienta82. Esses termos não se referem à palavra cotidiana, aquela destinada a apontar no mundo e comunicar. A palavra em questão é aquela que se desvia do caminho preciso e alcança uma ambigüidade inquietante. Assim, em Polaroids, a palavra assume-se errante e, num processo de busca, circunda o centro sem nunca tocá-lo. Para Blanchot, a linguagem não re-apresenta o mundo exterior, mas funda sua própria realidade. É uma forma de pensamento que está calcada num apelo interior, ultrapassando a concepção histórica e suas verdades. O autor chama de experiência do fora o espaço potencial da escrita como dimensão de existência, para além do previsível e do conhecido. Nessa busca e criação de mundo, a palavra é o recurso que materializa esse movimento. A palavra obscura, da qual tratamos aqui, abre um leque de percursos na dimensão de um vir a ser. Sua experiência é latente e, como no sonho, sem encobrir nem desvelar, impõese como traço no mundo, como argumenta Blanchot: Escrever, não é expor a palavra ao olhar. O jogo da etimologia corrente faz da escrita um corte, um dilaceramento, uma crise.83 82 83 BLANCHOT, 2001, p.63. Id., p. 66. 55 Fig: 17 Robert Frank, Blind, Love, Faith, impressão de gelatina de prata, 60,5 x 51 cm, 1981. Fonte: Storylines, 2004. Na imagem Blind, Love, Faith (figura 17), Robert Frank escreve sobre a emulsão da superfície da gelatina de prata da fotografia. A caligrafia é vulnerável e aponta certa descontinuidade de traço que passeia do fino ao grosso, repetindo-se reiteradamente num mesmo trecho diversas vezes até somar-se um pequeno borrão. Num outro instante, o traço torna-se evanescente a ponto de diluir-se no fundo. O tríptico vertical é construído a partir de certa repetição de cena onde as paisagens se alternam em distâncias - perto, longe, nem tão perto – causando o ritmo imperfeito na dinâmica da imagem. As três palavras começam em letras maiúsculas e sugerem três inícios: Cegueira, Amor e Fé. De eterno início, a promessa 56 ecoa na palavra porvir, abrindo perspectiva de inscrição e continuidade na medida em que está sendo escrita, palavra tanto mais exigente porque designa e engaja o futuro, que é também um futuro a ser dito, diz Blanchot.84 Se ver depende de uma realidade palpável, de um condicionamento construído culturalmente, talvez seja essa, para Robert Frank, a impossibilidade de abandonar-se na crença da fotografia única, direta, sem manipulação ou sobreposição. Os elementos intrínsecos da fotografia apontam para a lógica ótica calcada no olho fisiológico quando toda a obra de Robert Frank depõe o seu contrário, o que a circunda é justamente a transgressão dos limites do visível e do dizível. Em New Years Day (figura 01, p.19), por exemplo, a arranhadura da caligrafia arranca literalmente a emulsão do papel, inscrevendo a letra na própria carne da superfície de prata. Em letras maiúsculas que estão na área de sombra BE HAPPY pronuncia-se imperativamente como um slogan que murmura insistentemente. Uma palavra que aqui não é legenda, mas latência que reverbera paralelamente à visão de uma paisagem remota que se localiza no tempo. Fig.18: Robert Frank, Words, de 1987. Fonte: The Lines of My Hand, 1989. 84 BLANCHOT, 2001, p.72 57 Em Words (figura 18), a palavra se desdobra em texto, conceito e imagem. Sobredeterminada ela compete com a fotografia direta a sua esquerda. Como num teatro, a cena montada expõe seus personagens-significantes. Se pensarmos que os retratos de estúdio, a partir da metade do século XIX, tinham a função de retirar o sujeito de seu contexto para afirmá-lo socialmente através de signos externos, o que vemos em Words é sua inversão. O cenário não investe os personagens com estereótipos, mas é investido a partir deles, funcionando como filtros de intermediação. O procedimento que articula os campos do verbo e do visual nesta imagem joga uma equação que nega o momento de síntese mantendo em suspenso sua realização. Palavra e fotografia se afetam mutuamente criando um campo miscigenado onde entra em cena, diante do horizonte abruptamente interrompido, a mediação do olhar pela linguagem. Se, ver é talvez esquecer de falar e falar é puxar do fundo da palavra o esquecimento que é o inesgotável85, Robert Frank soma essas duas inscrições e constrói imagens. Enquanto a visão distancia e aproxima o visível e o falar desenreda a matéria incessante da qual somos feitos, a imagem é a que habita a tenra fronteira entre eles, e joga no campo além do visível e invisível. Transcendendo o jogo do olhar, ela inscreve-se na ordem do fascínio como parâmetro do limiar entre os olhos e o desejo onde o figurável se faz. 85 Ibid, p.68. 58 Fig.19: Peter Downsbrough. Public Comission, 2006. Fonte: www.barbarakrakowgallery.com Ao contrário do desdobramento da palavra em Polaroids, que de um interno inscreve-se no visível, em Public Comission (figura 19), de Peter Downsbrough, ela volta-se para o exterior para inscrever-se no espaço. Sua escultura/instalação se apresenta como uma estrutura de passagem materializada através de uma barra de ferro onde está anexada a palavra AND. Public Comission não é um objeto estético. Seu texto inclui o contexto da cidade, da arquitetura e do fluxo humano e o que parece propor, através da sugestão do atravessamento do conectivo AND, é a adição de duas esferas que não estão nem lógica nem necessariamente integradas. Mas, se de um lado a conjunção AND une dois elementos, por outro lado também o que parece somar engana e subtrai, afinal só pode ser adicionado o que não está junto e não se representa. 59 Ao contrário da palavra em Polaroids, que altera a superfície da imagem criando uma condição de latência onde a duração de tempo metamorfoseia a apreensão dos signos, o trabalho de Downsbrough altera o espaço urbano numa equação direta, como comenta o artista James Welling: o trabalho de Downsbrough é catalítico. Ele muda o espaço ao redor, enquanto os objetos ficam estáveis, insubstituíveis.86 Além de criar territórios em não-espaços, em que converge o debate sobre trabalhos tão diferentes? Em ambos os casos e de diferentes formas entra em pauta a questão da hibridação dos campos verbo-visual dentro do trabalho plástico. Frank e Downsbrough confluem para que ambos os mecanismos migrem como elementos que integram uma mesma estrutura, que já não pode mais anunciar-se como um campo que sustenta dois diferentes, mas dá forma a um novo, território heterogêneo. A experiência do enunciado é inserida e contamina a noção da pura visualidade com um gesto conceitual que amplia o território de articulação dos significantes. Já não se trata de contemplação, mas de um texto que adquire mais tessituras e amplia sua esfera relacional, o que se coloca é um potencial de jogo que demanda um espectador ativo. 86 CHAMPESME, 2007, p.08. 60 3. A REPETIÇÃO QUE INSTAURA A DIFERENÇA Fig.20: Robert Frank, Andrea, impressões reveladas em gelatina de prata, várias mídias, 27,5 x 35,4 cm, 1975. Fonte: Moving Out, 1994. Outro procedimento muito sintomático como o uso de palavras em Polaroids é a repetição, tanto de imagens num mesmo trabalho quanto de trabalhos similares ao longo dos anos em diferentes publicações. Assim a repetição atua como visibilidade, fazendose dizer pelo que insiste e pelo que da insistência sobrevive, num lugar que a cada retorno se faz outro. Concentremo-nos em Andrea (figura 20), de 1975, para considerar de que maneira podemos nos relacionar com esse mecanismo. Nessa imagem vemos apresentar-se um espaço de elo entre as fotografias da casa, da paisagem e de Andrea. Entenderíamos esse procedimento como o Isso-Foi, de Roland Barthes, na sua tentativa de fazer acreditar na realidade tangível do objeto fotográfico como invólucro de uma memória e a eternização de sua fixidez. Para o pensador, esta é a essência da fotografia, 61 seu noema, de dupla posição conjunta: de realidade e de passado87. Mas diante da necessidade de repetição das fotos da paisagem e da casa, o impulso dessa crença esvanece-se denunciando a fragilidade de uma possível ontologia da fotografia. Não poderíamos pensar que essas fotografias entrariam em jogo para atestar sua existência falando-nos com certeza daquilo que foi, equivalendo-se ao modo como Barthes confia à imagem de sua mãe: diante da foto de minha mãe criança, eu me digo: ela vai morrer!88. Se representar é tornar presente o que foi e não mais pode ser num tempo cronológico e linear, o acontecimento, onde pensamos o trabalho de Frank, carrega consigo o paradoxo de ser a própria apresentação no espaço e tempo, ou sua atualização. Ao contrário da manifestação do aspecto ratificador da imagem fotográfica situada no plano do consciente, o processo de repetição de imagens sugere a resistência do sujeito em aproximar-se do que lhe mostra o inconsciente. A repetição das imagens fotográficas em Andrea aponta para o recalque daquilo que não pode vir à luz e repetirse-á compulsivamente até que encontre uma possibilidade de desvio. Concluímos então que a imagem fotográfica não concretiza neste trabalho a noção de representação, pois nela o repetido significa ao invés de representar. Desse modo, o procedimento fotográfico atua como movimento de linguagem e alteração, ou seja, desenvolvendo seu potencial de transfigurar a coisa até alcançar-lhe sua imagem, ou seja, projetando-a para além de sua literalidade de objeto. Para Gilles Deleuze, a representação (e para tal ele refere-se ao teatro da representação) é algo morto que eterniza sempre o mesmo, enquanto que, e em oposição, o teatro da repetição gera o movimento, aquilo que põe em cena a própria mutação, como coloca o autor: ... Não lhes basta, pois, propor uma nova representação do movimento; a representação é já mediação. Pelo contrário, trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda a representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição; de substituir representações imediatas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, voltas, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito. Esta é uma idéia de homem de teatro, uma idéia de encenador – avançado para o seu tempo.89 87 BARTHES, 1984, p.115. Ibid, p.142. 89 DELEUZE, 2006, p. 29. 88 62 Fig. 21: Carmela Gross, Carimbos, 1977/1978. Fonte: site da artista, 2007. Conceitualmente, a repetição divide-se em duas, a repetição do mesmo e a que compreende uma diferença90. Para pensar a repetição do mesmo, poderíamos usar a série Carimbos (1977-1978) de Carmela Gross (figura 21). Nessa série a artista subtrai a cor, a materialidade pictórica, as nuances e a organicidade da pintura, serializando a pincelada através de 80 unidades de carimbo (cada carimbo da série contém um traço pictórico reproduzível em folhas de papel de tamanho 0,70m x 1,00m). Carmela subverte o procedimento plástico da pintura destituindo a singularidade do traço e desarticulando a expectativa da obra artística calcada na habilidade, como comenta: aquela pincelada que antes fazia parte de um universo que forma um todo, que é um desenho, que é uma pintura, que se posiciona frente ao mundo com uma integridade, vira um fragmento, vira repetição, um gesto burocrático91. Os carimbos reproduzem cópias ao infinito, e como explora Walter Zanini sobre o trabalho de Carmela Gross, a automatização do gesto concebe a uniformidade da leitura sígnica e, sem possibilidade de desvio, é calcado na repetição do mesmo. 92 90 Ibid, p.396. Arte e Ensaios no 12, Revista do PPGAV EBA UFRJ, 2005, p.09. 92 ZANINI, Walter. Os carimbos de Carmela. Folha de S. Paulo, São Paulo, 09 de julho de 1978. 91 63 Ao contrário da repetição que não carrega sua diferença, as imagens de Polaroids tratam daquilo que não pára de configurar-se e a cada concretização é investido de novas singularidades. Trabalhos que detêm uma história e recuperam seu destino através da possibilidade de significar o passado na diferença da repetição no presente. Em Andrea (figura 20, p.61), a repetição reitera o mesmo procedimento que acontece em outras de suas imagens, gerando a diferença entre o uso de uma e outra fotografia que se encontram na mesma imagem. O que se repete nunca é o mesmo, mas sim uma potência que a cada aparição revela o que lhe é mais interior e secreto, sugere Gilles Deleuze. Repetir não é um pensamento, mas uma ação que põe em movimento o impulso capaz de gerar um acontecimento, deslocando sua direção e re-significando o dado fixo, como comenta Deleuze: Se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um notável contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é transgressão. Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma realidade mais profunda e mais artística.93 A repetição com diferença é a potência de linguagem que instaura o novo a partir da experiência. Sempre atrelada a duas manifestações, sendo uma o gesto e a outra o invólucro, ela forma-se, disfarçando-se; não preexiste aos seus próprios disfarces e, formando-se, constitui a repetição nua em que se envolve94. Em Andrea (figura 20, p.61), é possível aproximar-se dos elementos que se repetem através dos gestos materializados plasticamente na imagem; porém o si da repetição, o que está na origem do próprio gesto, escapa à possibilidade de apreensão, é o próprio inominável. 93 94 DELEUZE, 2006, p. 21. Ibid, p.50. 64 4. O GESTO QUE DESEMPATA O que é um gesto? Como através dele o procedimento plástico articula a repetição com seu viés significante? Do mesmo modo que na fotografia, onde o gesto depende do encontro do olho com uma questão que se encontra no mundo requerendo um impulso hábil em direção ao ato para congelar um espaço-tempo no fotograma, na pintura o gesto também depende da continuidade do pensamento pela inteligência do tato. Em “A obra-prima desconhecida”, Honoré De Balzac conta a história do pintor Frenhofer, único aluno do grande mestre Marbuse, em sua obssessiva busca por pintar a carne sublime através da imagem de sua musa Catherine Lescault. Sem ter encontrado uma mulher à altura de sua obra que lhe servisse de modelo, Frenhofer acaba produzindo somente um delírio, uma obra que acontece dentro de seu imaginário e não na tela da pintura. Mas antes do dar-se conta fatal, Frenhofer, acreditando deter a verdade sobre a pintura onde o gesto final é o que termina a obra, reprova a incompletude da obra de Porbus (outro personagem-pintor do romance) dizendo: apesar de tão louváveis esforços não consigo crer que este belo corpo está animado pelo morno alento da vida... Vossa senhoria contenta-se com a primeira aparência que se oferece, ou como muito a segunda, ou a terceira; Não é assim que se comportam os lutadores vitoriosos!...Que é o que falta? Um nada, mas esse nada é tudo.95 E com o pincel em punho, paf, paf, paf, pon, pon, pon, termina o quadro de Porbus. 95 BALZAC, 2007, p. 177. 65 Fig. 22: Robert Frank, Mabou, técnica: impressão revelada de gelatina de prata com tinta acrílica, 51,1 x 60,6 cm, 1979. Fonte: The Lines of my hand, 1989. Em Mabou (figura 22), de 1979, um gesto pictórico irrompe a superfície fotográfica unindo as três imagens inferiores da imagem. A pincelada cintila na superfície com tal potência que parece relegar às fotografias o papel de fundo insípido, como um cenário para sua aparição. Balzac escreve nas palavras do enfático Fenhofer: Vê rapaz? Só conta a última pincelada. Porbus deu cem, e eu só dei uma. Ninguém saberia nos dizer o que há debaixo.96 Para os personagens de Balzac, a obra só se define no seu último momento de criação quando, através do gesto, o acabamento da pintura é eficaz ou torna-se um total fracasso, invalidando o quadro como um todo. O gesto final é o que decide seu desempate e é também, segundo Didi-Huberman, onde se espera uma construção ideal do sujeito pintor, mesmo que esta espera seja super heróica, pode-se dizer assim, sobre-humana, heróica em qualquer caso, aporética sem dúvida, desesperada.97 Em “La pintura encarnada”, Didi96 97 BALZAC, 2007, p.180. DIDI-HUBERMAN, 2007, p.16. 66 Huberman parte da novela de Balzac para problematizar os procedimentos inerentes à carne da pintura. A questão essencial de seu argumento é o paradigma da encarnação tomado como limite da obra de arte. Esta noção diz respeito à possibilidade dos pigmentos sobre a tela em produzir uma aparência de entidade viva e natural, atravessando o espectador com a carga de sua potência. A pintura encarnada seria então a tela imaginada como dotada de vida, como um corpo vivo onde poderíamos sentir as pulsações e mesmo as emanações de sua respiração. Assim, Didi-Huberman conceitua o colorido-sintoma como a pintura que poderia imaginar-se como corpo e como sujeito: colorido de vicissitude e, portanto, do despertar do desejo.98 Mas se Frenhofer intervêm no quadro de Porbus com tanta autoridade e alcança o poder da encarnação no gesto final, na sua própria tela ele estremece diante de dar à obra seu lugar no mundo, imerso na velha fantasia de como calcular o humor da tela. Diante da dúvida do tato, o sujeito da certeza é substituído pela loucura da consciência e imobiliza-se. Imobilidade que também indica um evitamento da cristalização do movimento. Para Lacan, distinguimos um gesto de um ato em seu instante terminal, enquanto o ato se perde, o gesto é o que gera a possibilidade de sentido, do novo olhar sobre o acabado. Não esqueçamos que a pincelada do pintor é algo onde termina um movimento. Encontramo-nos aí diante de algo que dá novo e diverso sentido ao termo regressão – encontramo-nos diante do elemento motor, no sentido de resposta, no que ele engendra, para trás, seu próprio estímulo.99 Ao contrário de Frenhofer, Robert Frank, depois de vagar através das seis fotografias verticais da proposição pela paisagem ensaiando a busca de sua paragem, assume finalmente o instante terminal quando sustenta a intervenção pictórica na imagem Mabou (figura 22, p.66). Em oposição à subtração inerente ao processo fotográfico, quando há escolha de parte do todo que constituirá o fotograma, em Polaroids a adição da tinta à superfície é o que sugere a possibilidade de significação do gesto no trabalho. Um gesto que presume que o todo possa ser re-significado, tomando nova via de articulação. Uma elaboração que não depende de um, mas de dois, quando é June, sua mulher, que concretiza o esboço pictórico sobre a superfície. 98 99 Ibid, p.31. LACAN, 1985, p.111. 67 Fig. 23: Robert Frank, Mabou, impressão revelada de gelatina de prata com tinta acrílica, 51,1 x 60,6 cm, 1994. Fonte: Moving Out, 1994. Quinze anos mais tarde, em 1994, na republicação de Mabou (figura 23), em Moving Out, a imagem ganha uma nova proposição. Na nova versão, outras pinceladas são adicionadas (entre as fotografias cinco e seis e na parte inferior da imagem) além do gesto principal se deslocar e mudar de cor. Voltemos a Frenhofer e sua intervenção na obra de Porbus, quando ele diz: vê como com três ou quatro pinceladas e uma pequena veladura azulada poder-se-ia fazer circular o ar ao redor da cabeça dessa pobre santa que devia estar se afogando e se sentir prisioneira nessa atmosfera carregada? Observa como esta roupagem agora ondula e como se tem a sensação de que a levanta a brisa100. Esta é a concepção que articula o potencial da imagem em questão, onde o gesto pictórico encarna na superfície como pós-produção, engendrando uma repetição que desvela materialmente sua diferença ao mesmo tempo em que encobre aquela que a impulsionou. Um gesto que engendra para trás sua significação e esboça para frente, através das vibrações, rotações, voltas, gravitações, danças ou saltos101, certa idéia de infinito. 100 101 BALZAC, 2007, p.179. Referimo-nos a esta citação de Deleuze na página 48 desta dissertação. 68 CAPÍTULO III VISÍVEL X VISUAL Um dia de manhã o céu é de laca azul, o sol ainda está atrás das colinas. Sobre o caminho de tábuas o menino passou. Eu o olho até que ele desaparece. E depois fecho os olhos para reencontrar ainda a imensidão do olhar cinzento. Marguerite Duras A criação artística é a experiência capaz de romper com a atividade repetitiva do mundo instaurando um novo lugar. O olhar brutal, diz Flusser sobre os artistas, rasga as superfícies e revela abismos por detrás das coisas102. Mas o que são os abismos detrás das coisas senão o que pré-existe ao nosso olhar? O que propomos a partir de então, baseandonos na teoria da arte de corrente francesa e na psicanálise, é a hipótese de que o que se revela na série Polaroids é o movimento do desejo como causa da imagem. Uma problematização do campo do olhar em que a falta é o elemento instaurador do processo de simbolização da linguagem e a função do olhar é o que permite ver, não em primeira instância, mas como resposta a um dado a ver. 102 FLUSSER, 2007, p.186. 69 1. JOGO ANADIÔMENO E A INSTAURAÇÃO DA VISUALIDADE Interessa-nos nesse momento esmiuçar os procedimentos a ponto de entender como as questões em Polaroids fundamentam-se poeticamente na linguagem criando suas bases no campo visual. Para pensar o processo criativo de Frank, retomamos Andrea (figura 20, p.61), já discutida anteriormente como repetição com singularidade e diferença. Nesta imagem um movimento se constrói a partir do ritmo dos elementos que estão colocados no trabalho; as palavras, imagens, cores, espaços vazios e também sua forma, sugerem uma modelagem incompleta em espera de desfecho. O que o encontro destes procedimentos sobre a mesma superfície aponta é uma operação como um processo de montagem de onde emerge a dinâmica das relações. Aqui o jogo em questão é o da alteração, ou seja, um movimento de linguagem que instaura a imagem de um novo, transfigurado desde seu caráter de coisa. Para minha filha Andrea que morreu num acidente de avião em Tical, na Guatemala, em 23 de dezembro, ano passado. Ela tinha 21 anos de idade e viveu nessa casa e eu penso nela todo dia103; em Andrea (figura 20, p.61) essas são as frases que se encontram manualmente escritas sobre a superfície. Um pouco mais abaixo é possível ainda ler os trechos: dentro de velhos apetrechos... não manter...diário...agora as coisas estão melhores104, além da assinatura: 1975, Robert Frank, em Mabou, Nova Scotia, Canada. Ao contrário de muitos de seus trabalhos, onde a palavra existe como significante numa perspectiva anônima e obscura, aqui as palavras comunicam um relato que narra um fato passado e seu contexto (que a filha tenha morrido, onde e quando) em conjunção com seu presente (que agora as coisas estão melhores a partir de Mabou). Encontro de tempos onde o passado é tornado presente numa proximidade que desdobra o distante em agora e as noções temporais, tanto do pretérito imperfeito (died, was, lived, last year) quanto do presente (think, every day, now), passam a coexistir em gerúndio, como ação que está acontecendo. Também na disposição entre a fotografia e o vácuo de imagem há uma operação que varia entre esses dois extremos quando jogam em alternâncias, ora pulsando preenchidos ora esvaziados. Se deste modo temos dois momentos que se diferenciam, o que gera um movimento rítmico, tanto a foto quanto o vácuo de imagem se apresentam como significantes. Aqui não se trata de um tudo ou um nada. A sutileza está em que o nada é 103 For my daughter Andrea who died in an airplane crash in Tical in Guatemala on Dec 23, last year. She was 21 years old and she lived in this house and I think of Andrea every day. (Tradução nossa). 104 s within the old nick nacks ...not kee(p)...diary ...now things are better. (Tradução nossa). 70 também preenchimento. O movimento de oposições de mesmo modo também acontece entre o colorido de azul-céu e as pinceladas amarelo-sol quando concorrem suas cores suaves com os pedaços agudos de negro que grudam na parte inferior da obra como coágulos de sangue que não se dissolvem. Vazios, cores suaves, gama tonal de cinzas em fotografias em preto e branco, palavras e tempo, camadas que vão surgindo de uma base de papel de fibra organicamente imperfeito. Aos pólos de um duelo onde os elementos jogam para expressar-se no campo da linguagem, Freud os nomeia Fort-Da. A noção desta expressão (traduzida do alemão em aqui-lá) vem da observação da brincadeira de seu neto de um ano e meio de idade durante suas investigações sobre a relação entre prazer, repetição e pulsão de morte. Instigado pela repetição das mesmas palavras e dos mesmos procedimentos no menino, ele compreende que é o jogo infantil o campo, e nesse sentido inclui um método, para a elaboração do sujeito na linguagem. Fort-da é o que articulava a criança diante do fio esticado e recolhido durante o aparecimento e desaparecimento de seu carretel. Na ausência da mãe, a criança repetia inúmeras vezes esse jogo realizando o que Freud chamaria de renúncia instintual, sendo esta a troca de uma satisfação (no caso a presença da mãe) por uma nova satisfação (a volta do carretel como alusão ao alívio da volta da mãe a casa). Através da introdução de uma falta (no caso a ausência da mãe), e somente a partir desse lugar instituído é que se tornará possível que a criança se lance no processo de simbolização do objeto, ocorrendo, por consequência, o assassinato da coisa: o carretel deixado no canto como um resto qualquer depois de implicado na exigência de um desejo. Segundo Georges Didi-Huberman, esses jogos de ocultamento que Freud, numa intuição genial, produziu, a nosso ver, para que neles reconhecêssemos que o momento no qual o desejo se humaniza é também aquele no qual a criança nasce para a linguagem105. O que Freud investiga em “Além do princípio do prazer”, de 1920, onde encontramos a análise da concepção de alteração, é na verdade o fator econômico da tendência do prazer no sujeito e de que modo isso se inscreve como experiência no que chama de repetição traumática. Segundo ele, a neurose traumática é a condição que ocorre após graves traumas gerando sintomas de indisposição subjetiva e incapacidade mental e seu conteúdo tende a repetir-se enquanto não alcance ser elaborado pelo inconsciente. Freud compreende que o princípio do prazer faz parte de uma tendência do aparelho psíquico de liberar-se de qualquer excitação que altere sua constância, num esforço de reduzi-la a zero. 105 DIDI-HUBERMAN, 1998, p.82. 71 Na medida em que ele vai desenvolvendo seu pensamento, e criando oposições para provocar a dialética que o fará caminhar em seus descobrimentos, compreende que existe uma instância para além do princípio do prazer que é, ao mesmo tempo, independente desse e comum a todos os seres humanos, a pulsão de morte. Em oposição à pulsão de vida que funciona em direção ao seu prolongamento, a pulsão de morte dirige a vida do sujeito em função de um retorno ao mundo inorgânico. A conclusão que tira naquele momento é que o conteúdo que faz com que a repetição se perpetue está atrelado ao inconsciente e relacionase ao princípio do prazer na medida em que, através de sua compulsão não libera o material recalcado, evitando assim o desprazer que surgiria com sua liberação. A partir de então, ampliando o campo de elaboração sobre a instância da repetição, para além do viés daquela que ocorre determinada por um trauma de guerra ou físico, Freud põe-se a examinar como ela, a repetição, engendra diferentes dinâmicas psicológicas na construção do sujeito. Este mecanismo interessa-nos não como campo clínico, mas na medida em que a repetição aparece como dinâmica criativa na esfera da arte. Do mesmo modo que a criança, o artista mergulha no jogo anadiômeno de repetição que flui e reflui, para constituir a criação no campo artístico. No movimento rítmico do jogo de preenchimento e esvaziamento do objeto, seu estatuto altera-se simbolicamente transformando-se em visualidade. A repetição na criação artística não é necessariamente da ordem do traumático, mas constitui o procedimento da criação e o movimento rítmico do qual surgirão o trabalho e sua imagem. Como assinala Didi-Huberman, o momento do desaparecimento do carretel enquanto objeto visível, e a criança olhando seu jogo como se sofre a ausência repetida - e cedo ou tarde fixada, inelutável, definitiva – de uma mãe106, é o que o torna uma imagem visual. 106 Ibid, p.86, pp. 189-195. 72 Fig. 24: Tony Smith. The Black Box, madeira pintada, 57 x 84 x 84 cm, 1961. Em “O que vemos, o que nos olha”, Didi-Huberman passeia pelo relato poético do artista Tony Smith sobre a constituição de The Black Box para compreender seu processo criativo. Durante as conversas de Tony Smith com seu amigo e crítico de arte E.C. Goossen sobre questões como dimensão específica e volumetria na escultura, o artista percebe um velho fichário em forma de uma caixa preta que o surpreende e o fascina pelo fato de sua dimensão assemelhar-se ao tamanho de um ser humano sepultado. Outra experiência que lhe chama atenção e que aparece em seu relato, como uma percepção relacionada à criação de The Black Box, é a ocorrência numa noite escura e maciça quando sentiu-se privado de visibilidade em relação ao entorno. Segundo Smith, essas duas situações, do fichário enigmático e da privação noturna, nas quais os objetos e suas fragilidades desaparecem mesmo quando estão muito próximos, acabam impulsionando o aparecimento de The Black Box. Para Didi-Huberman, a dinâmica da alteração que se joga a partir do que percebemos no relato de Smith é também a textura de sua constituição, como diz: Compreende-se então que no vaivém rítmico, na escansão interna ao próprio jogo de palavras – a dimensão, o homem, o desaparecimento, o homem, a dimensão novamente – terá se projetado a existência de um objeto virtual: um objeto ele próprio capaz de uma associatividade e de uma latência às quais ele devia no começo a existência; um “objeto complexo”, como dirá mais tarde Tony Smith107. 107 DIDI-HUBERMAN, 1998, p.93. 73 Se o neto de Freud empreende o jogo de elaboração a partir da falta da mãe, essa também é uma prerrogativa para o impulso da criação artística. Tony Smith engendra o ato criativo a partir de uma falta, transferindo as faltas interiores constituintes da condição humana para a ausência que suspeita no dentro do fichário negro, na invisibilidade da noite profunda e na incompreensão do sentido da morte. Faltas que acabam projetadas exteriormente como em suas esculturas, fazendo-nos hesitar constantemente entre o ato de ver sua demasiado escura forma exterior e o ato de sempre prever sua espécie de interioridade desdobrada, vazia, invisível em si108. The Black Box é um objeto virtual, assim como as próximas esculturas nas quais Tony Smith se debruçará serão, segundo DidiHuberman, monumentos de absorção e de pura solidão melancólica109. Em Andrea (figura20, p.61), o deslocamento do Fort-da (presente-ausente, longe-aí) também é responsável pelo nascimento do trabalho para o mundo da linguagem. Entre a distância e a proximidade da morte de uma filha, ou entre a possibilidade da elaboração de uma perda e sua impossibilidade, constitui-se paradoxalmente o momento quando se abre a ameaça de ser olhado pela perda, quando o que vemos é suportado por uma obra de perda, e quando disto alguma coisa resta110. Uma perda que introduz a falta que causa a proposição e toda a sua dialética visual, que faz do trabalho um resto, já que sua força consiste no processo em progresso e seu potencial de alteração. Em “Eu gostaria de fazer um filme...”, texto escrito por Frank, publicado como introdução ao volume dedicado ao seu trabalho na coleção Photofile, o fotógrafo ensaia os aspectos de desejo que o impulsionam a trabalhar, compreendendo que tudo que existe enquanto imagem deixa para trás suas referências, referentes e significados, sem apagar, entretanto, o que ali se sustenta enquanto projeção virtual do objeto, como comenta: Enquanto eu aceito a melancolia e as dificuldades encontradas quando uso trabalhos feitos no passado, eu preferiria que essas velhas fotografias aparecessem no filme como elas aparecem para mim hoje, do mesmo modo bizarro e fragmentário... estranhos objetos de outro tempo ... parcialmente escondidos e curiosamente ressonantes, trazendo informações, mensagens que podem ou não ser bem-vindas, podem ou não ser reais. Objetos perturbadores que têm uma lenda para contar ou somente ficam encostados silenciosamente, freqüentemente justificando o interesse que se tem por eles111. 108 Ibid, p.106. Ibid, p.104. 110 Ibid, p.80. 111 FRANK, 1991a, sem paginação. 109 74 A ressonância dos objetos a que se refere Frank, e o fato de estarem parcialmente escondidos, aponta o potencial de alteração de coisa à imagem, fotografias que deixam de relacionar-se ao referente para instaurar um outro na projeção virtual do objeto artístico. Ambas as operações propositivas, de Tony Smith e Robert Frank, dão dessa maneira um lugar ao novo, àquilo que é criado no próprio movimento de inscrição no mundo da linguagem. 75 2. A ESTÉTICA DA TIQUÊ E O IRREPRESENTÁVEL Fig.25: Robert Frank, Sick of Good by´s, impressão de gelatina de prata, 50,8 x 40,6 cm, 1978. Fonte: Storylines, 2004. Em Sick of good by´s (figura 25), duelos do jogo anadiômeno também ressoam em várias medidas. Em cada parte da frase (dividida entre as duas imagens do díptico) alternamse letras minúsculas e maiúsculas fazendo um trocadilho onde o teor brutal da significação do termo (em nossa tradução: enfastiado de despedidas) bate em confronto com a palavra good. Palavra ou imagem? Leitura verbal ou poema visual? A estratégia de Frank cumpre sempre a adição entre os termos, e... e..., não ou... ou... Dessa forma o que faz é concretizar, 76 não uma síntese entre os elementos, mas um todo múltiplo e variante que adquire diferentes complexidades ao longo de sua trajetória de sentidos. Na imagem superior SICK OF está pintado sobre a transparência do vidro que intermedia cena e câmera, e na imagem inferior good BY’S está pintado sobre o espelho. Elaboração prévia, maturação, trabalho no mundo. Aqui a realidade é muito dura para ser confrontada diretamente, da translucidez do vidro à reflexão do espelho que desdobra o céu infinitamente, as superfícies asseguram os véus necessários para atenuar a paragem do olhar. Mas há um ponto, na imagem inferior do díptico, onde percebemos um espaço vazio causado pela hiper-exposição de um espelho à luz e que, em consequência, está velado como um ponto-cego. A que nos remete tal desvio? Como um furo na tela, a veladura aguda de Sick of good by’s parece apontar que na sua produção de visualidade há algo que escapa ao sentido e não alcança apresentar-se no mundo da linguagem. Do mesmo modo, na imagem superior do díptico, o prolongamento das bordas tenta simular um acabamento do fotograma, num esforço de preenchê-las ocultando o espaço vazio do suporte da imagem. Reaparece, então, a mesma tentativa e impossibilidade de tapar o vazio. Para pensar as superfícies vazias que aparecem em Polaroids, partimos do assunto em que Lacan discute o tecido do pensamento do inconsciente, ou a estrutura de sua gramática. Lacan postula que algo organiza o inconsciente inscrevendo linhas iniciais de força antes que se estabeleçam as relações humanas. Isso quer dizer que antes mesmo de nos reconhecermos como sujeitos, já há ali uma espécie de modelagem. Aos elementos sintáticos desta gramática chama de significantes. Os significantes funcionam numa ordem fechada articulada por correlações e sua significação ocorre pelo deslizamento de elementos entre uma sequência que compõe uma cadeia. Para exemplificar esta correlação, Lacan nos sugere a seguinte imagem: anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis112. Por sua natureza, os significantes antecipam-se ao sentido, que, por sua vez, aparece na insistência e na repetição de alguns caracteres, como nos explica Lacan: é na cadeia do significante que o sentido “insiste”, mas que nenhum dos elementos da cadeia “consiste” na significação de que ele é capaz nesse mesmo momento.113 Para pensar a operação plástica de Frank, tomamos os elementos visuais a partir das duas dinâmicas da cadeia de significantes desenvolvidas por Lacan apoiado na física de Aristóteles, sendo elas: as instâncias de autômaton e da tiquê. O autômaton é a sequência dos 112 113 LACAN, 1998, p. 505. Id., p.506. 77 significantes na linguagem que estariam concebidos em cadeia, e a tiquê é, respectivamente, o rompimento desta cadeia através da introdução de um desvio. Em outras palavras, o autômaton é a própria automatização da cadeia, e a tiquê o furo que escapa para além do sentido que estava insistindo até então. A tiquê seria provocada por um encontro abrupto e inesperado com algo que introduz um sem-sentido. Em psicanálise, esse algo exterior, do sem-sentido, que causa o sujeito e o faz deslizar na apreensão do sentido da sequência significante é denominado de Real, mais precisamente de Real Lacaniano. Tomado como um interstício na consciência, o Real seria o algo que escapa à linguagem e faz padecer o sujeito na perspectiva da ordem pré-estabelecida. Na leitura de Roland Barthes, o Real seria um ponto pungente, ou punctum, que atravessaria o sujeito como um ferimento. No conceito Lacaniano, ele é da ordem do irrepresentável, daquilo que só pode ser tocado através do imaginário e do simbólico. Em outras palavras, enquanto o registro imaginário refere-se ao campo do visível, do olho e da percepção dos objetos do mundo, o registro simbólico diz respeito à rede estrutural na qual o sujeito ingressa por nascimento, aproximando-se do que podemos entender como lei. O Real, por sua vez, remete-se ao invisível, ao que é de domínio da pulsão na ordem do olhar. Sendo o simbólico o registro responsável em interceptar, mas também em articular o imaginário e o Real, em sua ausência, o sujeito perde o parâmetro e referências. Se em Sick of good by’s (figura 25, p.76) há algo que rompe abruptamente o jogo da constituição da visualidade, também em Andrea (figura 20, p.61) há o espaço não preenchido que aponta para o rompimento provocado pelo ponto de tiquê, para além das fotografias que insistem como significantes na cadeia em autômaton. Rompido o fluxo de deslizamento da cadeia de significantes, o sentido não alcançaria figurar-se além do puro silêncio da não-imagem. Em ambos os trabalhos, como num esgotamento do próprio exercício de linguagem, a elaboração do luto em obra introduz um sem-sentido a partir de um encontro com o Real. Compreende-se assim que a criação artística em Polaroids atua também como o espaço onde é possível dizer o indizível e tocar o que é da ordem do inapreensível. Entretanto, parece importante ressaltar que o sem-sentido provocado pela tiquê não se traduz como o non-sense do movimento surrealista. Apesar de que, em certos momentos, possa haver aproximações entre o que encontram alguns fotógrafos surrealistas e Frank, suas buscas partem inicialmente de diferentes conceitos. Enquanto que o movimento artístico denominado surrealismo se apresenta como um método baseado na livre associação capaz de 78 articular duas realidades diferentes, sendo elas o sonho e a vigília (ou o inconsciente e o consciente); no encontro com o Real ocasionado pela tiquê não há articulação. Justamente esse encontro é o momento quando o sujeito esvanece e perde a capacidade de alcançar o sentido. Outra diferença fundamental é que o fluxo de pensamento em prática no surrealismo trata justamente de deixar fluir o que se encontra na mente em dado momento, confiando na inesgotável natureza do murmúrio, como coloca Breton no “Primeiro Manifesto”114, a fim de colocar no mundo uma massa de idéias brutas depondo contra a vigência do paradigma racionalista. Entretanto, mesmo no exercício de deslocar as convenções morais, sociais e culturais abrindo espaço para novos procedimentos, ainda assim o automatismo deste método é determinado dentro da linguagem, e o que faz é justamente reiterar os significantes na cadeia do autômaton. O sem-sentido a que nos referimos em relação às imagens de Frank é o que propõe um fora da linguagem, e que, ao invés de criar, como no surrealismo, outro lugar como espaço alternativo ao conhecido, desaparece com a própria noção de lugar. Fig. 26: Eli Lotar, Abattoir, 1929. 114 BRETON, 2006, p.35. 79 Em Abattoir (figura 26, p.79) de Eli Lotar, por exemplo, a atitude instantânea ocasionada pelo uso da fotografia possibilita uma escrita automática dentro da perspectiva surrealista. Aqui o non-sense aparece como a incongruência da justaposição de elementos inesperados dentro do enquadramento numa provocação ocasionada pelo conteúdo da imagem e impressa pela luz. Assim a fotografia será o que permitirá um efeito de aproximação à realidade sem, entretanto, abrir mão do caráter ambíguo e ilusório do estado onírico. E os surrealistas farão uso deste jogo no intuito de reafirmar a casualidade da atitude artística em direção a um movimento de descontinuidade em relação à lógica vigente. Afinal, a questão mais importante pelo menos conceitualmente, ou teoricamente, desse movimento de vanguarda foi o desejo de transformação social a ser conquistado pela revolução. Outra questão importante é que Frank reitera sempre o caráter imagético em seu trabalho, de criação de mundos na imagem. Por sua vez, o surrealismo apóia-se na fotografia, ou na pintura ou na escultura, mas é para mostrar e enfatizar algo na realidade, confiando deste modo no caráter indicial da fotografia. Dessa maneira o que o surrealismo assume é a fotografia como traço na realidade. Mas, alguns artistas surrealistas, entre os quais se encontravam Man Ray, Lee Miller, Jacques-André Boiffard, Grete Stern, Raoul Ubac, Maurice Tabard, André Kertész e Brassai, também operaram através de procedimentos de montagem fabricando imagens através de encenações, manipulações, sobreposições e interferências no processo químico. Neste viés é possível que o resultado técnico destes trabalhos, a nosso ver, possam se aproximar do que as imagens de Polaroids parecem produzir. Mas, conforme discutimos, a direção não é a mesma. Do modo como abordamos Polaroids, a operação de montagem só procede a partir do momento que concebe a dinâmica de alteração e alcança o que Lacan conduz como uma estética da tiquê, ou estética anamórfica. Na estética da tique, a arte aparece como a instância que provoca o encontro com o Real, o faz emergir... faz com que ele surja, ainda que em sua localização mais essencial... como a desconstrução da moldura do representável 115. Parece importante ressaltar que, para Lacan, a arte é um ensinamento para a psicanálise, e não uma matéria passível de análise. Na medida em que lida com o vazio central do homem, sem tentar evitá-lo através da religião, nem explicá-lo através da ciência, arte e psicanálise aproximam-se: o que importa é interrogar de que modo, em uma prática simbólica, tal como 115 RECALCATI, 2005, p.102. 80 a prática artística, é possível isolar e encontrar a dimensão do real irredutível ao simbólico.116 Em Polaroids, a dimensão irredutível ao simbólico está nos rompimentos da cadeia significante em que a linguagem plástica não se formaliza: nos espaços vazios que subsistem ao fundo do jogo visual contido na imagem, nas bordas incompletas, nas rasuras da materialidade do processo químico e ainda nos reflexos de luz que acabam por velar o negativo reproduzindo espaços ausentes de informação na cópia fotográfica, como em Sick of good by’s (figura 25, p.76), em Roots (figura 2, p.23), ou ainda em Andrea (figura 20, p.61). O espectador, causado por este encontro da tiquê, assim como o boneco encenado na foto do díptico superior em Sick of good by’s (figura 25, p.76) não se reconhece mais como sujeito da consciência, é vencido no olho pelo jogo do olhar. 116 RECALCATI, 2005, p.102. 81 3. O JOGO DO OLHAR Em “O visível e o invisível”, Maurice Merleau-Ponty pergunta-se: O que é esta préposse do visível, esta arte de interrogá-lo segundo seus desejos? Situando que o olhar apalpa as coisas visíveis, coisas que não vemos inteiramente nuas porquanto o próprio olhar as envolve e as veste com sua carne117. Fig. 27: Robert Frank, Pour la flle impressão de gelatina de prata, 40,7 cm X50,4 cm, 1980. Fonte: Words, 2007. Em Pour la fille (figura 27), imagem visual e imagem verbal entrelaçam-se formando o sistema de interação entre os elementos significantes, num trajeto de atração que, como perscruta Merleau-Ponty, é estabelecido por alguma relação de princípio ou parentesco. Aqui cada dimensão não é sem a outra e juntas sugerem outro lugar passível de reflexão: o cruzamento sintático de seus termos, ou o entremeio. Nas imagens de Polaroids, visível e invisível atraem-se mutuamente formando uma espessura incorpórea, denominada em Merleau-Ponty de carne do visível. Nesse deslocamento intencional, algo se comunica e forma uma nova textura que abriga vidente (aquele que vê) e visível (a coisa passível de ser 117 PONTY, 2003, p.130. 82 vista) numa experiência indissociável, uma experiência do olhar. A carne do visível é a paisagem em Robert Frank, que supera o olho fisiológico em toda sua preposição e instaura a problemática da visibilidade em sua obra. Mas, se, para Merleau-Ponty, a experiência da encarnação do olhar sobre as coisas do mundo é percepção e se situa no âmago do corpo pré-reflexivo, anterior ao pensamento que a objetiva, para Lacan, toda a experiência do fenômeno já está presa à estrutura dos significantes, inscrevendo-se, assim, desde seu ponto inicial, no campo da linguagem. O que ambos convergem, e onde Lacan se apoiará para aprofundar sua investigação sobre a visualidade, é que ao visto há preexistência de um olhar. Também para ele este ponto original da visão apontado por Ponty, que faz do vidente também um visível, deslocando a posição do sujeito que olha para um ser também olhado, é o que constitui o poder de atração da carne do visível. À estrutura do olhar em relação à ação do desejo do sujeito, Lacan a nomeia de campo escópico118. Entre o olho e o olhar nenhuma semelhança. Enquanto o primeiro é um órgão que se deleita com o espetáculo do visível, pacificado, o olhar é uma função, um mais-além que impera e objetiva o sujeito a ponto de fazê-lo perder a razão. Ao que é dado ao olho, Lacan nomeia-o de função-quadro, e ao olhar, de função-mancha, pois, entregue ao olhar do outro, o sujeito vira mancha para inserir-se numa função que o apreende. O sujeito entregue à função do olhar não é o sujeito da consciência, cartesiano, mas o sujeito do inconsciente, aquele que pego de surpresa vacila e esvazia-se das determinações escorregando para o campo do desejo. Em Pour la fille (figura 27, p.82), algo é dado tanto ao olho quanto ao olhar: uma bela cena onde parar os olhos e o atravessamento de algo exterior ao campo do visível, inapreensível, que aponta o excesso de afeto na dedicatória para a falta de uma filha. Essa é a dialética para Lacan da relação olho-olhar na obra de arte, que essa se apresente sempre enganando, enquanto seduz e distrai de um lado, assalta de outro. Também para Didi-Huberman a composição olho-olhar aponta para um além intrínseco a esta relação, pois todo olho é um olho-sujeito que traz consigo sua experiência, como ele coloca: O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom visual” para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma 118 Este campo é desenvolvido no livro 11 do Seminário: “Os quatro conceitos fundamentais de psicanálise”, LACAN, 1998. 83 operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia, num certo momento, julgar-se o detentor.119 Essa á a tese que Didi-Huberman concebe em “O que vemos, o que nos olha”: que diante da obra somos atravessados pelo que nos olha e o ver divide-se em dois, momento de sua inelutável cisão. A cisão causada a partir do que vemos remetendo-nos a um vazio que nos olha e ao qual estamos submetidos. O que vemos só vale – só vive – pelo que nos olha, ele diz.... Inelutável, porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso, assim, partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois120. Fig. 28: Jeff Wall. Picture for Women, transparência em caixa de luz, 1,42 x 2,04 m, 1979. Fonte: La confusion en los géneros en fotografia, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, p. 39, 2004. 119 120 DIDI-HUBERMAN, 1998, p.77. Ibid, p. 29. 84 Tomemos a fotografia Picture for Women, de Jeff Wall (figura 28), insistindo na reflexão sobre o campo escópico a partir da relação olho/olhar. Nessa imagem, Wall confunde e engana o espectador provocando-o em sua fantasia, pois quando esse se dirige à imagem no intuito de encontrar uma representação, encontra algo que está além de uma mera cena. Por rebatimento, o espectador é confrontado pelo olhar da figura da modelo quando se vê sendo visto, e através da linha imaginária dessa conexão, imagina-se inscrito no plano do quadro. O quê ele vê é no que ele está sendo visto, além de que também vê a máquina fotografando ao mesmo tempo em que vê a fotografia concluída, num tempo e situação que na realidade seriam impossíveis. À direita da máquina, a figura do fotógrafo dispara a câmera através de um cabo enquanto olha para a modelo. Há, então, um vacilo: se o seu olhar confronta-a de frente pelo espelho, objeto que a esta altura o espectador já se deu conta que lá está, ou se a olha pelas costas, creditando à imagem seu caráter topológico onde direito e avesso estão do mesmo lado. Bem no meio do quadro está a máquina fotográfica que, em reciprocidade espacial com o espectador, detém o enigma desta trama de relações: naquilo que o espectador não pode aceder, mas só imaginar, ou seja, sua própria imagem de como está sendo visto. Nesta perspectiva, Picture for Women sugere uma relação invertida, que o vidente passe a ser o visível, imaginando-se como objeto do olhar do outro. Provocação sobre o sujeito-espectador que não tem acesso a sua imagem: a que remeteria este enigma que volta da imagem como função do olhar? O que volta do olhar, diz Antonio Quinet, não é forçosamente a face de nosso semelhante, mas também a janela atrás da qual onde supomos que ele nos espia121. A esse olhar imaginado por mim no campo do outro, Lacan aponta-o como objeto a do campo escópico. Como o isso-mostra comanda a lógica figural nos sonhos como vimos anteriormente, também o objeto a constitui e comanda a lógica da visibilidade no campo escópico. Na concepção lacaniana o objeto a é o algo que o sujeito na sua constituição se separou como órgão e que reaparece simbolicamente, através de um lampejo inapreensível, como esta falta inicial. Algo que diz respeito a uma ruptura inaugural que fez uma marca profunda no corpo e que opera, ao longo da vida do sujeito, como faltante. Na imagem, o objeto a reaparece como ponto opaco, como mancha, mas não se faz ver pela percepção. Mais do que um objeto, ele é uma presença de uma ausência que está suspensa, oblíqua, e nos olha enigmaticamente em sua invisibilidade. 121 QUINET, 2004, p.40 85 Assim é que olho e olhar determinam duas direções opostas, enquanto o olho está ligado com realidade palpável e apropriação do visível, o olhar relaciona-se com fantasia e com o que resiste a significação, com o objeto a enquanto um vazio que cinde o sujeito e o causa. Entende-se que ele atua no nível da pulsão cujo funcionamento é determinado pelo desejo inconsciente. O que significa dizer que o desejo não corre intencionalmente atrás de um objeto para se satisfazer, mas é justamente determinado por ele. É o objeto a que causa o desejo, nessa ordem. Como acontece, por exemplo, em Pour la fille (figura 27, p. 82), quando não é o artista quem vê no mundo a falta da filha, mas o próprio trabalho está determinado anteriormente por isso, está submergido, comandado por este lugar. Portanto, é o objeto a que remete ao vazio que volta do, e no, trabalho artístico, e a inelutável cisão do ato de ver nada mais articula do que o paradoxal jogo entre olho e olhar. 86 CONSIDERAÇÕES Perguntamo-nos então, de que modo, em Polaroids, o jogo do olho e do olhar encontra-se na superfície imagética? Como o procedimento plástico permite tornar real este encontro paradoxal? Fig.29: Robert Frank, Andrea, Mabou, 1977. Fonte:.The Lines of My Hand, 1989. 87 Se, assim como em Pour la fille (figura 27, p.82), é possível detectar no plano imagético o que está diante e detrás da cena, também em Andrea, Mabou, 1977 (figura 29), a concretude do visível e a nomeação do desejo que a impulsiona sustentam-se na mesma bidimensão da imagem. Na primeira fotografia da composição Andrea, está escrito esse nome, à caneta sobre a gelatina de prata, e se o olho do espectador seguisse seu percurso na linha perspectiva do horizonte gelado, seria impedido em seu trajeto por ele, em suspenso, no rebatimento do olho pelo espectro do olhar. Também na quarta fotografia da composição, um rapaz segura um quadro dentro de outro quadro, que é em questão o presente que o jovem fotógrafo carrega em sua saída da Suíça, em 1947, quando leva junto a ele o entendimento e expectativa de liberdade de espaço de mistério de natureza122. Assim como o nome Andrea e o quadro presenteado por Segesser aparecem como reflexão do olho pelo olhar, se tomarmos as outras imagens em Polaroids a partir desta abordagem chegaremos num mesmo mecanismo intencional. O que as proposições de Frank apresentam, através de uma operação de montagem, é o lugar de onde ele está sendo visto e causado quando diante daquilo que vê, dois momentos que coexistem somente no tempo da obra, equiparando-se à impossibilidade de Picture for Women, de Jeff Wall (figura 28, p.84) onde se tem acesso à foto sendo feita ao mesmo tempo em que está concluída. Dialética da visão como apreensão do visível e da função do olhar como objeto causa de desejo do sujeito, esta é a questão que surge nos seguintes procedimentos: os reenquadramentos em New Years Day (figura 1, p. 19), a sobreposição de fotografias em End of Dream e Boston, March (figuras 10 e 9, pp. 44 e 40), a palavra em Sick of goodby´s, 4 AM Make Love to Me e Blind, Love, Faith (figuras 25, 7 e 17, pp. 76, 36 e 56), a estratégia reticular em Studio (figura 14, p.52), a interrupção do horizonte com outra imagem em BonJour Maestro, Words e No projector could do justice... (figuras 12, 18 e 06, nas pp. 48, 57 e 33), o gesto pictórico em Mabou de 1979 ou Mabou de 1994 (figuras 22 e 23, pp. 66 e 68), a veladura em Roots (figura 02, p.23) ou ainda a estratégia de repetição em Monuments for my daughter Andrea e em Andrea (figuras 4 e 20, pp. 27 e 61). Porém, se conjeturamos que nessas imagens é o artista quem está causado em seu desejo e, por isso, cria uma imagem que soma os dois tempos do ver e do ser visto, dando isso literalmente a ver em seu processo de fatura, que consequência haveria para o espectador? Ele não seria também, diante da imagem, causado pelo seu próprio ponto opaco representante do objeto a? Se a implicação do jogo do olhar já está concretizada nas imagens 122 como apresentamos na página 11 desta dissertação. 88 de Polaroids, e, como espectadores, vivenciamos, diante de certas obras, a inelutável cisão do olho e do olhar, não estaríamos num campo de redundâncias sendo sujeitos da experiência e voyeurs ao mesmo tempo? Vendo a causa da imagem diante de nós e nossa própria causa a despontar? O que sugerimos é que há um duplo movimento acontecendo em Polaroids, enquanto um sucede na própria proposição imagética, o outro acontece na esfera relacional com o espectador diante destas imagens. E mesmo que ambos movimentos coexistam paralelamente, também correm o risco de confundirem-se jogando ambiguamente em suas reentrâncias. Como na situação que acontece no pequeno conto “Continuidade dos parques”, de Julio Cortázar, onde um homem que lê um romance comodamente instalado numa poltrona de veludo em sua casa, não imagina que a cena que lê no livro o alcançaria em sua habitação e que é ele o homem traído que o amante-personagem do livro corre para assassinar. Um livro que oferece uma trama em que há outra narrativa que implica todos num mesmo movimento entrelaçado, misturando realidade com ficção e personagem com leitor. Uma experiência do obscuro que aponta, no fora, algo do íntimo, conduzindo o espectador a um sentimento de deslocalização, através de uma sensação borrada, desestabilizante, que cede sua experiência à falta de parâmetros, como na inquietante estranheza investigada por Freud. Da mesma forma que no conto de Cortázar, em Las meninas, de Sergio Larraín (figura 30, p.90) o espectador é implicado na trama imagética a qual vivencia. Nessa foto, uma das meninas, a última a entrar na cena, vacila seu movimento em direção à primeira sem, entretanto, perdê-la da mira. O espectador vê então a menina de costas que por sua vez vê a outra menina de costas, numa posição topológica onde cada qual só pode ver-se como é visto. Assim, o espectador está situado diante da imagem na mesma posição onde não há relação especular e o que ele vê é também como ele é visto. Consequentemente, Las meninas repete em ato fora da bidimensionalidade da imagem a mesma dinâmica que oferece em seu dentro, convergindo os tempos e os lados para um só, o da função do olhar. 89 Fig.30: Sergio Larraín, Las meninas, 1957. Fonte: Sergio Larrain, publicado por Ivam Centre Julio Gonzalez, Valencia, 1999. O que se propõe, através da analogia entre os últimos trabalhos citados, é que a espécie de formulação circular, que captura o espectador como parte da proposição artística que acontece com o personagem da história de Cortázar e na fotografia de Larraín, remete ao espaço fundado em Polaroids: diante dessas imagens, assistimos e experimentamos concomitantemente o ato de ver, vemos e vivemos a cisão inelutável que aponta o vazio que nos olha. Essa nos parece ser a relevância de nossa argumentação nesta dissertação, de como a imagem procede para nos pensar, nos envolver e nos colocar em questão sobre o que é o olhar e como ele opera em função do desejo, não só oferecendo este mecanismo como contemplação, mas confiando em ato à experiência ao espectador. 90 Apostando que Polaroids têm como premissa uma tautologia que inclui o espectador como parte da imagem, num movimento que não cessa de rebater-se em novos empreendimentos, entendemos que escrever sobre Frank é apostar num dispositivo infinitamente modelável cujas linhas de força ora tendem de um modo ora de outro, e funcionam, mais que nada, por deslocamentos que não cessam de se reconfigurar. Tatear os esboços e examinar seus meandros faz compreender que se a operação em Polaroids é uma operação de montagem que inclui o silêncio e o vazio como matéria pulsante, destrinchá-la seria chegar a um nada, pois é o emaranhado, a soma, a adição, a sobreposição, a verdadeira maneira de fazer do fotógrafo. De forma não previsível o texto imagético de Frank inventa a cada torsão, a cada dobra, sua existência, e por isso tanto nos custa também inventar uma maneira de situar-nos diante de sua busca. Sempre escorregando na tentativa de apreendê-la, se a cada mirada nos sentimos mais próximos de um núcleo que englobaria o projeto Polaroids, também, e na mesma proporção, nos sentimos mais distantes, sentimento tal de estrangeiro, tentando abarcar o que sabemos que nos é de direito, mas que esvanece quando tentamos de fato possuí-lo. 91 Fig.31: Robert Frank, Winter footage, films stills, 1981. Fonte: Moving Out, 1991. 92 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIRA, César. 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