Purus - inct brasil plural

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Purus - inct brasil plural
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
NÚCLEO DE ESTUDOS DA AMAZÔNIA INDÍGENA
Relatório Final
Expedição Purus 2012
Realização:
Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/PPGAS/UFAM)
Apoio:
Instituto Nacional de Pesquisa Brasil Plural (IBP)
(FAPEAM/CNPq)
Pronex - Condições de Vida e Saúde de Populações
Indígenas na Amazônia (FAPEAM)
Pró-Reitoria de Extensão e Interiorização (PROEXTI/UFAM)
Manaus, 2013
Relatório Final
Expedição Purus 2012
Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/PPGAS/UFAM)
SUMÁRIO
SUMÁRIO .................................................................................3
LISTA DE FIGURAS ..................................................................8
LISTA DE TABELAS ................................................................10
APRESENTAÇÃO .....................................................................12
HISTÓRIA E MEMÓRIA NO PURUS .........................................17
INTRODUÇÃO .............................................................................. 17
O Barco ...................................................................................... 21
Tapauá ....................................................................................... 27
Canutama ................................................................................... 34
Lábrea ........................................................................................ 46
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 57
NARRATIVAS DO PURUS ........................................................60
INTRODUÇÃO .............................................................................. 60
A vida no barco: o avesso do tempo/espaço e a convivência íntima com
o “outro estranho”........................................................................ 61
Tapauá, a cidade de nordestinos que sobem, e de índios que descem o
rio Purus ..................................................................................... 63
Os nordestinos falam: as trajetórias de vida, andanças e anseios ....... 66
Raimundo Nival descendente de nordestinos e ‘filho’ do Purus ........... 70
Família paumari e vivência entre dois mundos: brancos/índios cidade/aldeia ............................................................................... 73
Maraza cacique mamori relembra o “ajuntamento” de seu povo aos
paumari ...................................................................................... 76
Canutama a cidade de Manoel Urbano, Karipuna Maué e coronel
Botinelly ..................................................................................... 78
Lista de documentos do arquivo público de Canutama ...................... 81
A fala de Sebastião Banawa, trajetos e andanças de um povo em
contato com os brancos ................................................................ 84
João Cícero fala dos coronéis de barranco ....................................... 86
Raimundo Gomes cearense seringalista .......................................... 87
Marcelino Apurinã: feirante, agricultor e cacique na cidade de Lábrea . 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 94
O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA,
MÉDIO PURUS (PARTE I) .......................................................96
INTRODUCCIÓN ........................................................................... 96
Carácterísticas del contexto donde se realizó la investigación............. 97
Importancia de la mandioca con respecto a las otras especies vegetales
en la cosmovisión canutamense ..................................................... 98
Proceso de la elaboración de la farinha ........................................... 99
Articulación y funcionamiento de las unidades productivas para la
obtención de la farinha de mandioca ............................................. 103
De la unidad familiar a la unidad productiva. Proceso de formación y
organización .............................................................................. 106
Estrategias adaptativas de las unidades productivas para garantizar la
producción en situaciones extremas ............................................. 110
Forma de repartir la farinha ......................................................... 112
Aspectos simbólicos entorno al proceso productivo ......................... 113
La casa de farinha como espacio físico y simbólico ......................... 114
O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA,
MÉDIO PURUS (PARTE II) ................................................... 118
INTRODUÇÃO ............................................................................ 118
Várzea ...................................................................................... 129
Praia ........................................................................................ 129
Área do Seringueiro (composta pela área de cultivo da Beira do Lago do
Seringueiro e área da Baixa Grande) ............................................ 132
Organização do Sistema Produtivo na Várzea: a área da Baixa Grande
............................................................................................... 135
Variedades de Mandioca e Macaxeiras........................................... 150
Mandioca .................................................................................. 150
Macaxeira ................................................................................. 151
Casa de Farinha ......................................................................... 154
Aquisição das sementes pelos agricultores da várzea ...................... 158
ROÇADOS E MANDIOCAS JAMAMADI ...................................165
INTRODUÇÃO ............................................................................ 165
Meu retorno a Lábrea ................................................................. 165
A chegada à TI Jarawara/Jamamadi/Kanamati ............................... 169
Aldeia Carapanazal ..................................................................... 174
ETNOGRAFIA E SISTEMAS PRODUTIVOS DOS PAUMARI DO RIO
TAPAUÁ ............................................................................... 190
INTRODUÇÃO ............................................................................ 190
Notas sobre a Leishmaniose no Município de Tapauá ...................... 191
FOZ DE TAPAUÁ: ADENTRANDO O UNIVERSO PAUMARI .................. 192
Breve caracterização dos Paumari ................................................ 192
O contexto da Aldeia .................................................................. 196
Tipo de Moradia ......................................................................... 199
Os Mamori e Juberi..................................................................... 202
ATIVIDADES ECONÔMICAS E EXTRATIVISTAS ......................... 206
Agricultura ................................................................................ 206
Caça ......................................................................................... 206
Pesca........................................................................................ 207
Coleta de Castanha .................................................................... 207
Notas sobre Leishmaniose nos Paumari do Rio Tapauá .................... 208
ETNOGRAFIA DA QUEBRA DA CASTANHA JUNTO AOS PAUMARI
DO RIO TAPAUÁ: PRIMEIRAS IDEIAS E APROXIMAÇÕES .....210
INTRODUÇÃO ............................................................................ 210
Métodos utilizados ...................................................................... 212
O desenrolar do campo ............................................................... 213
O TEMPO NA CIDADE .................................................................. 216
A cidade de Tapauá .................................................................... 216
“Índios urbanos” ........................................................................ 218
Conversa com um Paumari .......................................................... 219
Entrevista com um ex-seringueiro que quase virou Pajé .................. 220
A “ferida braba”: notas em relação à Leishmaniose ........................ 221
Notas sobre a farinha de mandioca em Tapauá .............................. 223
Notas sobre o esquema da castanha em Tapauá ............................ 225
O TEMPO NAS ALDEIAS .............................................................. 231
A Relação com os Paumari .......................................................... 231
Atividades produtivas ................................................................. 233
Pesca........................................................................................ 233
Caça ......................................................................................... 238
Roças ....................................................................................... 239
Coleta ....................................................................................... 241
A Castanha................................................................................ 242
“Comercialização das relações” .................................................... 242
As relações comerciais ................................................................ 243
Ações e relações sociais .............................................................. 245
O transporte .............................................................................. 246
As distâncias ............................................................................. 246
As expedições de coleta .............................................................. 247
Regime de trabalho .................................................................... 249
Uso e territorialidade dos castanhais............................................. 249
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................ 252
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Barco Vovô Osvaldo II no rio Solimões. Foto: Alexandre Isidio. . 21
Figura 2 – Encontro rio Ipixuna/rio Purus. Foto: Alexandre Isidio............ 27
Figura 3 – Cidade de Canutama. Foto: Alexandre Isidio. ........................ 34
Figura 4 – Decote de las manivas. Foto: Alba Garcia. .......................... 100
Figura 5 – Tubérculos en remojo. Foto: Alba Garcia. ........................... 100
Figura 6 – Prensa de la masa de la mandioca. Foto: Alba Garcia. ......... 101
Figura 7 – Família penerando farinha. Foto: Alba Garcia. ..................... 102
Figura 8 – Varones torrando la farinha. Foto: Alba Garcia. ................... 102
Figura 9 – Una casa de farinha. Foto: Alba Garcia. ............................. 114
Figura 10 - Croqui de uma área de produção de farinha. Autora: Thayná
Ferraz da Cunha. ............................................................................. 123
Figura 12 - Casa de Farinha e depósito na beira do rio Purus. Foto: Thayná
Ferraz da Cunha .............................................................................. 130
Figura 13 - Beira do Lago do Seringueiro. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.
..................................................................................................... 134
Figura 14 – Retirada das partes aéreas e decotagem das manivas. Foto:
Thayná Ferraz da Cunha. .................................................................. 141
Figura 15 - Demolhagem nas áreas baixas. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.
..................................................................................................... 142
Figura 16 - Retirando as mandiocas d’água. Foto: Thayná Ferraz da Cunha
..................................................................................................... 144
Figura 17 - Massa puba na gareira. Foto: Thayná Ferraz da Cunha ....... 145
Figura 18 – Prensagem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha....................... 146
Figura 19 – Peneiragem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha...................... 147
Figura 20 – Macaxeira sendo lavada na área baixa; macaxeiras assadas no
forno. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ................................................ 153
Figura 21 – Estacas de mandioca. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ........ 163
Figura 22 - Cobrança de Pênaltis, aldeia “Casa Nova” dos Jarawara. Foto:
Ingrid Daiane. ................................................................................. 170
Figura 23 - Campo de Futebol visto da casa onde estava (I e II Jamamadi
sentados na “varanda)”, III (campo onde jogavam futebol). Foto: Ingrid
Daiane. .......................................................................................... 171
Figura 24 - Aniversariantes na festa Jarawara. Foto: Ingrid Daiane. ..... 173
Figura 25 – A banda arrumando os instrumentos. Foto: Ingrid Daiane. . 174
Figura 26 - Varadouro próximo à comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid
Daiane. .......................................................................................... 175
Figura
27
-
Chico
Inácio
em
um
de
seus
roçados,
Comunidade
Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane. ...................................................... 176
Figura 28 - Vane chegando à comunidade Carapanzal. Foto: Ingrid Daiane.
..................................................................................................... 179
Figura 29 - Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane. ........ 186
Figura 30 - Prensa, localizada na Casa de Farinha do Carapanazal. Foto:
Ingrid Daiane. ................................................................................. 187
Figura 31 - Mapa de Localização das Terras Indígenas Paumari. Fonte:
Instituto Socioambiental - ISA ........................................................... 193
Figura 32 – Genealogia de algumas famílias Paumari. ......................... 205
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Livro de Actas.Arquivo Municipal de Canutama. Livro de
actas das sessões da Intendência Municipal de Canutama.
Segunda
Reunião Ordinária da Legislatura – Presidente Monteiro Pantoja, 31 de
outubro de 1927.* ............................................................................. 39
Tabela 2 - Notas dos baptisados e casamentos effectuados na freguesia de
Lábrea, Estado do Amazonas nos anos de 1878 a 1908. ......................... 51
Tabela 3 – Calendário agrícola. Autora: Thayná Ferraz da Cunha. ......... 124
Tabela 4 - Mandiocas levantadas no São Francisco. ............................ 167
Tabela 5 – Divisão de atividades agrícolas por gênero. ........................ 168
Tabela 6 - Distribuição das casas Jamamadi - aldeia Carapanazal. ........ 180
Tabela 7 - Levantamento demográfico das aldeias. Fonte: Vieira, 2012. 198
Tabela 8 - Distribuição espacial e habitação dos Paumari. Fonte: Vieira,
2012. ............................................................................................. 201
Tabela 9 - Motivações que levam os Paumari a quebrar castanha. Fonte:
Caderno de campo, 2012. ................................................................. 245
A partida para o Alto Purus é ainda o meu maior, o meu
mais belo e arrojado ideal. Estou pronto à primeira voz.
Partirei sem temores; e nada absolutamente (a não ser
um desastre de ordem física, que me invalide), nada
absolutamente me demoverá de um tal propósito.
Euclides da Cunha
APRESENTAÇÃO
A Expedição Purus teve sua motivação a partir dos preparativos para o
trabalho de campo das pesquisas de mestrado em Antropologia Social
(PPGAS/UFAM) de Ingrid Pedrosa e Angélica Vieira entre os Jamamadi e
Paumari, respectivamente. No contexto dessas pesquisas acadêmicas
estavam
em
início
dois
projetos
coletivos
com
participação
de
pesquisadores do NEAI: “Sistemas Produtivos no Médio Purus”, integrante
da rede de pesquisa intitulada (Política e redes) x (Heterogêneas e
comparadas), coordenado pelo Professor Gilton Mendes dos Santos e
desenvolvido no âmbito do Instituto Brasil Plural (IBP), com financiamento
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) e
CNPq; e o projeto “Natureza, Cultura, Saúde e Doença no Médio Purus Condições de Vida e Saúde de Populações Indígenas na Amazônia,
vinculada
ao
PRONEX
e
também
financiado
pela
FAPEAM,
com
a
coordenação de Luiza Garnelo, pesquisadora da Fiocruz. Soma-se a isso,
ainda, um pequeno projeto de extensão (Purus Indígena II – Saberes e
territorialidades), com apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Interiorização da
UFAM, que financiou algumas passagens fluviais e diárias.
A somatória de todos estes interesses de estudos e pesquisas sobre os
povos indígenas do Purus, levados adiante pelo NEAI, estimulou a formação
de uma viagem mais abrangente (expedição) de cunho exploratório, de
modo a envolver outros jovens pesquisadores, abordando diferentes temas
de interesses do núcleo, sendo todos tributários dos referidos projetos
coletivos.
A
expedição
envolveu
objetivos
que
se
cruzaram
e
se
complementaram - indo dos sistemas produtivos, como a coleta de
castanha
e
os
roçados
de
mandioca,
passando
pelo
estudo
das
especificidades da vivência de algumas populações indígenas do rio, até um
levantamento sobre a documentação histórica com vistas ao entendimento
do avanço das frentes extrativistas na região.
A palavra expedição, já muito utilizada em outros momentos, nessa
nova empreitada tomou uma fundamentação distante do significado
associado aos “pioneiros” do século XIX ou mesmo dos arrazoados de
homens de “ciência” do início do século XX, que traduziram o território
como uma terra sem história, inculta, sonhando com sua incorporação à
“civilização”. Bem diferente de outros tempos, não foi nosso objetivo
traduzir o rio através de uma leitura preestabelecida, e sim tentar entender
e aprender com quem vive e viveu a realidade do Purus.
Os preparativos para a expedição começaram bem antes da viagem,
compreendendo reuniões periódicas no NEAI para troca de informações
sobre a região, como: seus povos, as cidades, o regime das águas, as
atividades desenvolvidas nesse período do ano, etc; divisão das tarefas
práticas (tomar vacinas contra a Hepatite, a compra de material básico e
alimentos, etc) e sessões de estudos e leituras dos trabalhos produzidos
sobre os temas de interesse do grupo e os povos do Purus. Nesses
encontros preparativos no NEAI também se definiu a organização da equipe
para o trabalho de campo propriamente dito. A equipe se dividiu em duplas
que de acordo com a familiaridade e interesse nos temas de pesquisa
tomaria diferentes destinos a partir de Tapauá.
A expedição durou cerca de 45 dias - entre 7 de janeiro a 18 de
fevereiro de 2012 - partindo de Manaus com destino a Lábrea, passando e
parando nas cidades de Tapauá e Canutama. Ao todo foram envolvidos sete
pesquisadores de áreas diversas, que foram distribuídos de acordo com as
temáticas investigadas. Angélica Maia e Ingrid Daiane, mestrandas do
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – PPGAS/UFAM foram
incumbidas de pesquisar a dinâmica de vida dos povos indígenas,
especialmente dos Paumari e Jamamadi, que contemplavam não só os
objetivos da expedição, mas também suas respectivas pesquisas de
mestrado; Alba Garcia, Antropóloga pela Universidad Complutense de
Madrid e Thayná Ferraz da Cunha, aluna da graduação em Biologia pela
UFRJ, ficaram responsáveis pela observação dos sistemas produtivos dos
roçados de mandioca e de produção de farinha no perímetro urbano de
Canutama;
Mario
Rique,
ecólogo
e
mestre
em
Desenvolvimento
Sustentável pela Universidade de Brasília (CDS/UnB), ficou encarregado
pelo acompanhamento das atividades de coleta da castanha do Brasil entre
os
índios
Paumari;
Admilton
Freitas,
licenciado
em
História
pela
Universidade Federal do Amazonas e graduando em Ciências Sociais pela
mesma universidade e Alexandre Cardoso, mestre em História Social pela
Universidade Federal do Ceará, tiveram a tarefa de compulsar o material
histórico sobre o Purus, buscando documentos, arquivos e testemunhos
orais, de modo a dar vazão a possibilidade do estudo da historicidade das
relações humanas e suas dinâmicas na região. (FALTA THAYNA)
Diante do exposto, é possível observar um panorama de interesses de
pesquisa e de áreas de estudo diversas, que embora distintas, atuaram de
maneira convergente, de modo a somar e agregar ao debate sobre o rio
Purus, cruzando informações e formas de ver o mundo.
O relatório a seguir é uma espécie de súmula, contendo informações,
descrições, impressões e análises pessoais sobre a experiência e o tema
que cada um se ocupou ao longo da viagem.
O relatório é composto por sete textos, organizados em três blocos. O
primeiro versa sobre a história e a memória oral do Purus (Alexandre e
Admilton). O segundo trata dos sistemas produtivos com destaque aos
sistemas de cultivo de mandioca em Canutama (Alba, Thayná) e em Lábrea
entre os índios Jamamadi (Ingrid). O terceiro bloco traz os relatos
etnográficos de Angélica e Mario entre os índios Paumari do rio Tapauá,
destacando-se as atividades produtivas praticadas pelo grupo.
É preciso salientar que tal divisão foi pensada com uma intenção
organizativa, e não como uma arbitrária separação ou recorte das vivências
da expedição. Estas devem ser vistas em conjunto, pois todos os
pesquisadores interagiram e contribuíram uns com os outros. Cada relato
traz sua interpretação, e cada autor discorre sobre suas experiências de
campo.
~
Francisco, Maraza, Raimunda, Barrai, Brígida, Silvino, Feliciano, Iva,
Diva, Geraldo, Damazia, Lauro, José, Francisco, Eládio, Titicurari, Feitosa,
Chicó, Angélica, Juracy, Edilson, Luzia, Maria, Sebastião, Macacari, Dave,
Pedro, João, Robson, Marcos, Nival, Moacir, Miguel, Ana, Regina, Maquiry,
Normando, Bida, Vânia, Roberto, Zé, Jorge, Catarruri, Cícero, Marcelino,
entre
tantos
outros,
merecem
destaque
por
serem
os
verdadeiros
expedicionários do rio Purus.
Todos foram interlocutores dos relatórios que seguem, fazendo parte
das experiências de campo dos pesquisados. Seus relatos guardam os
ritmos da natureza, das relações sociais, da cultura e da história
multifacetada que permeia as meandrosas voltas do rio. Indígenas e não
indígenas, que podem ser enxergados como parte do estrato das trajetórias
de vida historicamente constituídas em território amazônico. Eles e elas
carregam experiências significativas, não sendo simplesmente “fontes” ou
“objetos” de estudo, mas legítimos detentores do saber local e construtores
de seus cotidianos e da vida no Purus.
Desse modo, entendemos que os significados dos meandros de um rio,
a exemplo da vida das pessoas, ultrapassam simples deduções sobre seu
curso. Além de transportarem sedimentos, de abrigarem várias espécies de
animais
e
vegetais,
sua
corrente
também
carrega
a
fluidez
de
acontecimentos humanos, que muitas vezes compartilham e constroem no
espaço aquático referencias de vida e leituras de mundo. O território
amazônico, atravessado por muitos rios, teve e continua tendo seu
cotidiano e sua história erigidos através das vários povos que singram suas
águas barrentas, pretas, esverdeadas... As cores dos rios são plurais, assim
como a diversidade cultural de sua gente que atribuem sentidos à natureza,
influenciando e sendo influenciados pela torrente que entrecorta a floresta.
Portanto, é preciso muito critério para pensar a vida desses sujeitos, de
modo a entender seus movimentos e trajetórias, acompanhar suas batalhas
pela sobrevivência, compreender suas experiências.
Esta foi à intenção do grupo de pesquisadores que vivenciou a
Expedição Purus, que ao invés de simplesmente enquadrar e classificar o rio
e seus habitantes buscou ouvir e aprender. Para tanto, foi necessário
bastante planejamento e clareza em nossos objetivos, levando a “viagem” a
ter início muito antes da travessia em si.
Para além das narrativas e relatórios aqui apresentados, a Expedição
Purus rendeu outros frutos. Dentre eles, vale destacar o envolvimento dos
pesquisadores e seus interlocutores na região. Por um lado, os moradores e
atores locais sentiram-se personagens ativos, narrando suas histórias e
contando suas experiências na região com muita confiança e familiaridade
com a equipe do NEAI; por outro lado, a maioria dos membros da equipe
desdobrou essa experiência em futuros projetos de pesquisa, trazendo à
tona impressionantes histórias e achados antropológicos, apontando para
futuras pesquisas etnográficas na região: Alexandre ingressou no doutorado
em História na USP com um projeto sobre a influência de Manoel Urbano da
Encarnação na Bacia do Purus; Mario Rique foi aprovado no doutorado do
PPGAS/UFAM com um projeto sobre o conhecimento e uso da castanheira
no contexto do povos do Médio Purus; Thayná e Admilton estão elaborando
suas monografias de final de curso de graduação com temas derivados
desse levantamento exploratório; Ingrid e Angélica, a partir da expedição,
negociaram e aprofundaram suas pesquisas de campo de mestrado junto
aos Jamamadi e Paumari.
Por fim, vale lembrar que muito do material recolhido durante a
Expedição carece de sistematização e análise, a exemplo da documentação
compulsada e do acervo audio-visual. Importante dizer ainda que boa parte
dos dados etnográficos encontra-se presente nos textos monográficos em
elaboração, programados para virem à luz em breve.
Gilton Mendes
Angélica Vieira
Antonio Alexandre Cardoso
HISTÓRIA E MEMÓRIA NO PURUS
Antonio Alexandre Isidio Cardoso
INTRODUÇÃO
A Expedição Purus foi concebida a partir de um viés interdisciplinar e
pensada coletivamente, composta pelas experiências de pesquisa de várias
pessoas, de áreas diversas, como a História, campo de atuação do qual me
ocupei durante os 45 dias de trabalho. A palavra expedição, já muito
utilizada em outros momentos, nessa nova empreitada tomou uma
fundamentação distante do significado associado aos “pioneiros” do século
XIX ou mesmo dos arrazoados de homens de “ciência” do início do século
XX (Euclides da Cunha, por exemplo), que traduziram o território como uma
terra sem história, inculta, sonhando com sua incorporação à “civilização”.
Bem diferente de outros tempos, não foi nosso objetivo enquadrar,
adequar, classificar, traduzir o rio através de uma leitura preestabelecida, e
sim ouvir, tentar entender e aprender com quem vive e viveu o Purus. O
cerne da questão que moveu a atividade de pesquisa foi o estudo dos
arquivos do médio Purus, nas cidades de Tapauá, Canutama e Lábrea,
juntamente com as possibilidades de entrevistas, mobilizadas através da
história oral, que também foram importantes componentes no processo.
Partindo com tais objetivos o trabalho foi tomando forma,contudo, a
pesquisa em si, no sentido da vivência e fruição da viagem, começou muito
antes da chegada as cidades ou com as entrevistas de seus habitantes. Já
no barco, nas expectativas de cada dia, no contato com a errância dos
sujeitos, que há tantos séculos constroem sua história no território
amazônico, foi possível começar a sentir o trabalho de campo, sensação que
ajudaria a esquentar o trato com as fontes, geralmente pensadas de
maneira fria e distanciadas. Houve vários momentos nos quais ao ver as
faces do Purus tornou-se possível enxergar alguns lampejos da história do
rio. As idas e vindas diante da grande floresta, os encontros e desencontros
entre povos, as conversas sobre castanha, sorva, pau rosa, seringais,
empreendidas no barco (e que se repetiriam em várias outras ocasiões),
ditaram o tom dos diálogos sobre os chamados “outros tempos”. Tendo em
vista tais especificidades, o conteúdo dessas temporalidades não foi
17
pensado através de um viés estático, rígido, alheio ao presente, como se o
passado fosse refém de si mesmo, masao contrário, a cada passo tornavase perceptível a historicidade dos testemunhos, como fragmentos do
passado que não respeitam barreiras, que cruzam as fronteiras do tempo, e
que ajudam a atribuir sentidos a vivência das pessoas no presente.
Foi assim, a cada ponto de parada e de partida, regado de conversas e
muitas expectativas. Essa dinâmica acompanhou a chegada às cidades,
espécies de entrepostos diante das atividades empreendidas pelos rios e
florestas. A primeira foi Tapauá, após mais de três dias de viagem, cidade
que em sua história administrativa já pertencera ao território de Canutama
e também de Lábrea, mas que desde os anos 50 adquiriu autonomia
política. Esse indicativo foi feito por alguns dos habitantes da cidade, e que
ajudaram a pensar os passos da pesquisa, posto que, tendo tal referencia,
certamente haveria pouca documentação na cidade, devido a seu caráter de
subordinação administrativa no passado. Foram visitados o Cartório e a
Igreja, onde foram encontradas algumas referências. Contudo, foi no campo
das entrevistas que a cidade mais se destacou no âmbito da investigação.
Foram
ouvidas
várias
pessoas,
que
tocaram
em
questões
muito
interessantes, como o processo migratório até a cidade, as problemáticas
do contato indígena-não indígena, circuitos produtivos, tensões agrárias,
dentre outros temas.
Cenário semelhante foi encontrado em Canutama, embora tenha
havido
uma
incursão
muito
fecunda
no
âmbito
do
levantamento
documental, já que foi aberta a possibilidade de pesquisar no Arquivo
Público Municipal da cidade. Em tal local existe um grande acervo de fontes,
onde consta uma periodicidade que abarca desde o final do século XIX até o
tempo presente. Foi feita uma triagem do material, devido a sua grande
quantidade, que guarda uma larga tipologia, que basicamente corresponde
à documentação de caráter oficial. Na cidade também foram compulsadas
fontes no Cartório, que diferente do Arquivo Municipal, tinha um acervo
bem restrito. O funcionário do Cartório relatou que grande parte das fontes
antigas existentes no espaço foramdestruídas numa enchente ocorrida no
ano de 1997, restando somente uma pequena parte do material.
18
Já no que diz respeito às entrevistas o cenário foi mais promissor,
foram encontrados um ex-soldado da borracha, o Sr. João Silvino dos
Santos, além de Ana Banawá, liderança indígena na cidade e o Snr. Juraci
Nogueira, antigo habitante que chegara do Rio de Janeiro acompanhado de
seu pai à época da chamada Batalha da Borracha nos anos 1940. Além de
outros, que foram consultados, mas que optaram por não registrar seus
relatos. Mas que guardam, assim como os outros, a atualidade de suas
memórias, seleções do passado, caras ao entendimento da história do
Purus.
Assim a viagem continuou, e o próximo destino foi Lábrea, a maior
cidade em população da bacia do rio. Lá foi encontrado o maior contingente
de documentação, presentes na Casa do Bispo (da ordem dos Agostinianos
Recoletos) e no Cartório Judicial, onde existe uma grande quantidade de
fontes, em condições bastante precárias. Basicamente foram compulsadas
Escrituras de terras, Inventários, livros de batizamento (sic) e livros de
tombo, que guardam ricas referências sobre a história da região. Sujeitos
como o padre Francisco Leite, um dos primeiros religiosos a fazer incursões
pelo Purus na segunda metade do século XIX, Manoel Urbano da
Encarnação, homem ligado aos interesses do Estado que guiou muitas
expedições ao rio, Antonio Rodrigues Pereira Labre, considerado fundador
da cidade de Lábrea, dentre outros nomes, apareceram na documentação.
Essas pessoas, no entanto, não devem aparecer solitárias, devem ser
observadas como chaves de análise, como espécies de janelas que
proporcionam vislumbrar experiências de outros tantos sujeitos, atentando
a noções do contexto histórico. Até porque, almeja-se escrever algo sobre a
região do médio Purus e seus habitantes guardando proximidade com a
vivência e a história de seus povos, em sua pluralidade, e não somente
reservando lugar especial a nomes que já aparecem contemplados na
historiografia, muitas vezes até como tributários de uma versão da história
que exclui a maior parte das pessoas.
Mais uma vez, semelhante às experiências de Tapauá e Canutama, fica
explícita a importância dos testemunhos orais, que ajudam a desanuviar
esse cenário muitas vezes tolhido pelo discurso e interesses eminentemente
elitistas. Ciente da importância desses testemunhos, no decorrer do
19
percurso da Expedição foi sendo trabalhado o indicativo de cruzamento das
fontes levantadas, tendo o indicativo que documentação “primária” e
entrevistas devem encontrar-se, dialogar entre si, mas não de maneira
arbitrária. Cada uma dessas fontes guarda índices analíticos, rastros do
passado que o tempo ainda não teve a capacidade de apagar, e que podem
ser potencializados se cruzados com outros indícios, atribuindo uma
complexidade maior ao entendimento da História.
Escrever sobre o passado através de fontes oficiais, portanto, não
necessariamente quer dizer fazer um trabalho sobre o Estado, assim como
escrever através de relatos pessoaise de entrevistas, não prescinde uma
escrita de caráter biográfico. Os sujeitos e suas vivências podem aparecer
mesmo na documentação administrativa mais sisuda, assim como as
“estruturas” econômicas e políticas, estão presentes nas falas cotidianas das
pessoas comuns. Logo, a história não pode ser vista através de uma
indumentária monocausal, atada a um assentado tipo de fonte, e sim em
sua pluralidade, fugindo de determinismos e estreitamentos analíticos, daí o
saudável exercício de cruzamento de fontes. Esse encontro nem sempre é
harmônico e plausível, assim como não o são os encontros entre pessoas e
sua produção material e discursiva. As maneiras de dizer e fazer o mundo
entram em choque em todo momento, assim como as formas de ver, sentir
e escrever história. A historiografia configura-se como um campo de
disputas e de poder.
Diante disso é necessário posicionar-se. O viés analítico concebido na
Expedição afina-se com uma “história vista de baixo”, que busca farejar o
cotidiano, o rotineiro, o vulgar, a luta pela sobrevivência, e a construção da
história das pessoas que não tem suas vidas registradas nos Anaes dos
grandes nomes. Tudo isso afinado a uma perspectiva da História Social que
nutre por tal demanda um especial apreço. Com isso, por fim, é importante
salientar, que não se tem o objetivo de obliterar qualquer referência sobre
outros sujeitos sociais, ou sobre questões gerais do âmbito político ou
econômico, e sim entender suas interconexões e posicionamentos, sem
delegar as rédeas da história a um lado em detrimento do outro.
20
O Barco
Figura 1. Barco Vovô Osvaldo II no rio Solimões. Foto: Alexandre Isidio.
Seria de grande presunção tentar auscultar e entender todos os
olhares que já foram voltados ao Purus a partir de embarcações. Muitos
foram os que navegaram e viveram a experiência de conhecer os tortuosos
meandros do rio, mas poucos ficaram registrados, a maioria composto pela
roupagem do mundo letrado, principalmente no século XIX. São falas1
preocupadas com rotas comerciais, questões políticas e territoriais, conflitos
com
povos
indígenas,
produtos
da
floresta,
dentre
outros
temas,
produzidas, em seu maior contingente, por órgãos oficiais e também por
casas comerciais. Para além desses registros, também ficaram para a
posteridade as impressões de estrangeiros, viajantes2 que buscavam
corresponder às expectativas do velho mundo, onde havia pessoas que
ansiavam pelos relatos de exotismos regados por potenciais riquezas. Esse
cenário longe de impedir a análise de outros sujeitos (que mesmo
silenciados teimam em aparecer) traduz-se num desafio do ponto de vista
metodológico para o pesquisador da História. Afinal, como enxergar entre
1
Relatórios de Presidentes de Província (Império), Relatórios de Presidentes de Estado
(República), documentos comerciais (Casa de Visconde de Santo Elias, Casa de J.G. Araújo,
dentre outros).
2
Cristóbal de Acunhã, William Chandless, entre outros.
21
as malhas das fontes, entre as tramas do tempo embutidas na produção
documental ecos de vozes que emudeceram?
As experiências do passado não se perdem em sua totalidade com a
fruição e a passagem do tempo, encarnando-se na fala dos vivos, como um
substrato que atribui sentido e dialoga com o presente. Um importante
vetor
desse
processo
é
a
memória,
que
articula
lembranças,
acontecimentos, visões e sensações. Foi através de conversas com pessoas
no barco, entrando em contato com suas reminiscências, que a concretude
dessa reflexão veio à tona. Foram ouvidas histórias de décadas de trabalho
em seringais, de aventuras na mata, de encontro com onças, de viagens
pelos rios, de companheiros de trabalho, de festejos, de lugares visitados,
tudo isso acompanhado do olhar sobre o Purus, debruçado no parapeito do
barco, onde entre um assunto e outro, abria-se um parênteses para o
reconhecimento de uma praia, de um estirão, de uma boca de igarapé.
Um desses interlocutores foi o Sr. Francisco, que estava também no
barco Vovô Osvaldo II, quando a Expedição Purus destinava-se a Tapauá.
Meu contato com ele começou numa madrugada de lua cheia, quando a
embarcação começou a fazer movimentos incomuns, singrando o rio como
se estivesse desviando de alguma coisa, com movimentos um pouco
bruscos. Nesse momento algumas pessoas levantaram, e as redes
interligadas, encostadas umas nas outras, começaram a balançar, num
movimento que atingia praticamente todos que estavam deitados, e me fez
despertar do sono. Foi nessa ocasião que avistei o Sr. Francisco debruçado
sobre o parapeito do barco, fumando um cigarro de palha, e olhando
fixamente para o rio, que estava com suas águas espelhando a luz da lua,
que reinava plena no céu. Sua figura naquela circunstância, diante da
penumbra que se movimentava, tinha uma aura de fantasmagoria, como
algo que bruxuleava como a chama de uma vela, ou como o reflexo da luz
da lua nas águas do Purus. Aquilo definitivamente chamou minha atenção, e
resolvi levantar e me dirigir até ele para puxar assunto.
Começando pelos tratamentos triviais, depois de um silencioso “boa
noite”, respondido por uma grave réplica de conteúdo homônimo, perguntei
como ele se chamava, e depois de sanada a dúvida, questionei sobre a
trajetória
incongruente
do
barco.
Ele
prontamente
me
respondeu,
22
argumentando que já fazia algumas horas que nossa embarcação navegava
“emparelhada” com outra, e esta por ser de menor porte, ficava alternando
as margens do rio. Essas manobras eram feitas para evitar a correnteza,
que é menor nas margens. Enquanto conversávamos por várias vezes a tal
embarcação cruzou muita próxima a nossa, e ao longe se podia ouvir um
som vindo de cima, da cabine do Comandante do Barco, o Sr. Manoel, que
esbravejava: “Esse leso deve tá é bebo!”. 3
Durante o diálogo descobri que o Sr. Francisco destinava-se à Lábrea,
onde residia, e que naquela ocasião estava retornando de Manaus, onde
fora fazer um tratamento de saúde, situação compartilhada por muitos dos
tripulantes do Vovô Osvaldo II. Entrando mais na conversa, perguntei se ele
já havia viajado muitas vezes pelo Purus, o que já tinha visto em suas
andanças, em quê trabalhara, coisas do tipo. Foi então que ele começou a
nomear algumas praias, a me explicar que em cada “volta” do rio existe um
barranco e uma praia, sempre um oposto ao outro nas margens, falando
ainda que o rio, em sua opinião, ainda iria encher muito e que as águas
iriam crescer. Certamente tal vocabulário e conhecimento não adviriam de
quem olha o Purus não apenas como passante, mas de quem somente
transpõe todos aqueles lugares. Ficava claro que o Sr. Francisco era um
interlocutor que vivenciara aquele conhecimento.
Sua vida enquanto trabalhador fora atravessada pelo corte da seringa,
pela retirada da sorva, e posteriormente do pau rosa, ofícios que foram
descritos sem uma organização temporal precisa. Um ponto interessante da
nossa conversa foi quando ele ficou sabendo que eu era cearense, momento
em que ele começou a narrar várias histórias de antigos companheiros de
trabalho naturais do Ceará. Segundo sua fala, no passado havia uma
grande quantidade de cearenses no Purus, mas que hoje estes estão já
misturados,
tornados
amazonenses.
Mas
antes
dessa
espécie
de
“adaptação”, ele discorreu sobre um processo nasquais estavam inseridos
não só cearenses, mas todos os adventícios que chegavam a terras
3
Ouvindo essas palavras também, Admilton, um dos companheiros de expedição, que já
dormia com o colete salva-vida na rede, revirava-se, abraçando-o, como sua tábua de
salvação.
23
amazônicas, e que se destinavam a labuta na floresta. Ele nomeou-os de
“brabos”, que não sabiam manobrar a canoa, que desconheciam o manejo
do corte das seringueiras, que não entendiam os modos de pescar ou caçar
da terra, que não conheciam os animais, nem as plantas, nem as doenças,
que estranhavam o clima, o calor, as chuvas, e até o regime de trabalho.
Estes sujeitos passavam por uma espécie de escola, da qual o Sr. Francisco
fora muitas vezes professor. Após alguns meses de “aulas”, quando os
recém-egressos eram tutorados pelos já afeiçoados aos ritmos do trabalho
da floresta, aos poucos, os “brabos” tornavam-se “mansos”, ou seja,
começavam a andar “com as próprias pernas” definitivamente, entendendo
pelo menos algumas feições superficiais da vida nas paragens amazônicas.
A fala do Sr. Francisco sobre as categorias, “brabo” e “manso” guarda
uma estreita relação com o processo histórico relacionado aos contingentes
de migrantes que chegaram ao Purus, especialmente a partir da segunda
metade do século XIX, em sua maioria, vindos de outras províncias no
Norte4, como o Ceará, de onde vinham sujeitos alheios ao modo de vida na
floresta, ambientados a outro tipo de trabalho, de lida com o mundo.
Portanto, o relato do velho tripulante do Vovô Osvaldo II imprime sentidos
ao passado, articulados através da memória. É interessante perceber a
sutileza dessas composições, cuja base está em arranjos, em seleções de
experiências passadas, que se materializam no presente através das
lembranças, que podem ser analisadas, ajudando a entender as tintas do
vivido. O processo de “amansamento” descrito pelo Sr. Francisco pode ser
encontrado em vários trabalhos, que dão vazão a argumentos semelhantes,
como no texto de Eurípedes Funes, que utilizou algumas entrevistas
coletadas nos anos 1940 por Samuel Benchimol.
5
Entre os interlocutores
havia um cearense que definiu seus sentimentos, suas sensações, numa
4
A ideia de Nordeste, assim como sua atribuição de sentidos ao território, somente se
articula a partir da República Velha. Antes disso, a nomenclatura e seus significados não
tinham ligação com a noção de região que existe no presente. O território do Brasil era
dividido, grosso modo, apenas em Norte e Sul. Ver. JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque.
A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massaranga, 2001.
5
BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco antes e além depois. Manaus: Ed. Umberto
Calderaro, 1977.
24
frase bastante significativa, que serviu de mote para o trabalho de autor.
“Quem vive no inferno se acostuma com os cães”. 6
Funes discute as noções de Eldorado e Inferno Verde historicamente
através de experiências migratórias, que, segundo sua argumentação,
também ajudaram a atribuir sentido a composição do que conhecemos
como Amazônia. Tais referências comungam de conotações antípodas, que
ora estabelece relação com uma ideia benfazeja, paradisíaca e enredada em
riquezas, e ora mostra uma face maléfica, penosa, de uma vida de
dificuldades. Tudo leva a crer que as experiências de deslocamento, do
olhar a partir do barco, dos mundos do trabalho, dos estranhamentos e
adaptações, foram ajudando a compor essas representações. “Ao levar em
consideração
este
postulado,
é
necessário
frisar
que
as
lutas
de
representação são tão importantes quanto às lutas econômicas e políticas,
envolvendo dinâmicas de confronto muitas vezes negligenciadas nos
processos históricos”. 7
Todas essas facetas de atribuição de sentidos ao longo do tempo foram
iniciadas com o deslocamento em embarcações, seja nas sumacas, que
faziam navegação de cabotagem no período colonial, ou nos vapores que
passaram a singrar águas amazônicas no século XIX, ou ainda nos navios
com casco de ferro, que nos anos 1940 transportaram os chamados
Soldados da Borracha. Essas embarcações não carregavam apenas pessoas
e mercadorias, mas também notícias, ideias, visões de mundo, impressões
e experiências que eram transmitidas a muitos outros sujeitos através do
seu incessante movimento, de porto em porto. Pode-se dizer que essas
travessias ajudaram a compor uma larga base conceitual que empresta
sentidos ao que hoje entendemos como Amazônia.
6
FUNES, Eurípedes. El Dorado no Inferno Verde – Quem vive no inferno se acostuma com os
cães. In: GONÇALVES, Adelaide; EYMAR, Pedro (orgs). Mais borracha para a Vitória.
Fortaleza: MAUC;NUDOC; Brasília: Ideal Gráfico, 2008.
7
CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio. Nem sina, Nem acaso: a tessitura das migrações
entre a Província do Ceará e o território amazônico. (1847-1877). Fortaleza, dissertação de
mestrado em História Social – Universidade Federal do Ceará, 2011.p.165
25
O olhar dos migrantes, em sua pluralidade, que se deslocavam rumo à
floresta por diversas razões8, ajudaram a definir os significados, a
emprestar cores ao mundo amazônico. É interessante lembrar que essa
articulação de sentidos, assim como os olhares que o conformaram ao longo
do tempo, não épassível de uma só definição, de modo atemporal e rígido.
Essa reflexão torna-se válida em sua argumentação quando se entende que
“os conceitos dos quais participamos não são conceitos, mas problemas, e
não problemas analíticos, mas movimentos históricos ainda não definidos.”
Falar em “brabo” e “manso”, “eldorado” e “inferno verde”, é discorrer
também sobre um movimento similar ao de um barco, pois esses conceitos
se movimentam nos meandros do tempo, mudam e permanecem a cada
parada, como passageiros que embarcam e desembarcam, ajudando a
compor elementos da memória das pessoas que vivem nas florestas e
cidades amazônicas.
O testemunho do Sr. Francisco pode ser inserido dentro desse grande
movimento. Seu olhar fixo voltado ao rio, suas falas e memórias, seu
conhecimento sobre cada praia, cada barranco, sobre cada volta do Purus,
carrega grandes fardos de historicidade. Ao detectar essa composição e
refletir sobre tais questões percebe-se que a travessia do barco não se faz
somente através das águas de um rio, também se vive uma viagem no
tempo.
Debruçado sobre o parapeito do barco, o velho falava palavras e
baforadas de fumaça. Nada se dissolvia no ar, misturava-se nele, etéreo e
concreto ao mesmo tempo. Seu testemunho carregava ecos de vozes que
emudeceram,
revelando
o
rendez-vous
incessante
entre
passado
e
presente. Amostra das marcas que o tempo deixa em tudo.
8
Ver. CARDOSO, Ibid.
26
Tapauá
Figura 2 – Encontro rio Ipixuna/rio Purus. Foto: Alexandre Isidio.
Era por volta de 14 horas quando chegamos a Tapauá. Depois de três
dias de viagem, após muitas conversas e expectativas, descemos no nosso
primeiro destino em terra. A partir dessa ocasião a cidade começou a tomar
forma. Situada em terra firme, no alto de um extenso beiradão, Tapauá se
espraia em ruas asfaltadas, que serpenteiam ignorando qualquer precisão
cartesiana. De
cima é
possível contemplar as inúmeras
habitações
flutuantes que emolduram a orla, principalmente na parte que corresponde
ao rio Ipixuna, que se encontra com o Purus bem em frente da cidade,
formando um encontro de águas pretas e brancas que seguem brevemente
lado a lado, até se misturarem, acontecimento peculiar em terras
amazônicas.
Os primeiros passos na cidade incidiram sobre um levantamento das
possibilidades de pesquisa, tanto no campo dos acervos documentais
quanto diante de possíveis entrevistas. Em conversas com as pessoas que
nos viam chegar à cidade, sempre entre uma pergunta trivial e outra (como
uma orientação na rua, etc) questionava-se sobre a história da cidade,
sobre possíveis locais de guarda de fontes, sobre moradores antigos, e
outros possíveis interlocutores. Muitos apontaram locais e pessoas que se
repetiam a cada fala, sendo este um indicativo para começar o caminho de
27
pesquisa em Tapauá.
Um nome apontado pela maioria das pessoas foi
Daniel Albuquerque, pertencente a uma família com grande influência
política no município. Infelizmente, este não se encontrava em Tapauá,
restando-nos continuar o caminho, sem seu contato, devido à exiguidade do
tempo. Então, seguimos para os locais de pesquisa mais citados, o primeiro
foi o cartório da cidade, onde segundo sua Tabeliã (que recebeu nossa
proposta com certa surpresa), certamente havia pouco material histórico,
tendo em vista a história administrativa de o município estar vinculada em
sua produção documental à Canutama e Lábrea. Somente a partir da
segunda metade do século XX que Tapauá foi adquirindo autonomia política.
Mesmo assim, foi encontrado no cartório livros de registro de casamento de
uma localidade chamada Itatuba, correspondente aos anos da década de
1900. Certamente, trata-se de uma espécie de distrito, do que a época era
o território de Canutama.
Através da leitura de tal tipologia de fonte, é possível examinar alguns
índices analíticos, como a “naturalidade” dos pais e dos próprios noivos e a
faixa etária dos que casavam, sendo possível observar através da
ancestralidade e da idade, os locais de nascimento dos envolvido (pais e
filhos). Essas informações podem ser levantadas no sentido de examinar os
fluxos de pessoas pelo Purus e alguns de seus arranjos matrimoniais. Lendo
tais
índices
fica
claro
que
a
maioria
das
pessoas
presentes
na
documentação não é de Itatuba, aparecendo alguns como “naturais” do
estado do Amazonas, mas nascidos em outras localidades, sendo que a
maioria figura como “filho” do Ceará (aparecendo ainda alguns de outros
estados do que hoje chamamos de Nordeste).
Não há um indicativo direto sobre as presenças indígenas nessas
ocasiões, embora a fonte permita uma análise do significado do “natural” do
Amazonas, seria ingênuo afirmar de maneira direta que essa classificação
fosse necessariamente relacionada a algum povo indígena. Contudo,
cumpre notar que, sendo a maioria dos registrados “filhos” de outros
estados, percebe-se que a composição das uniões civis e as migrações de
pessoas para o Purus apresentavam uma estreita relação. Observando a
origem masculina percebe-se que a maioria advem de outros lugares para o
Purus, principalmente do Ceará, não sendo possível afirmar o mesmo para
28
as mulheres, pois muitas afiguram como “naturais” do Amazonas. Isto
demonstra uma das facetas do fluxo migratório que se conformava desde
longa data, mas que engrossou suas fileiras nas três últimas décadas do
século XIX, onde a maioria dos que empreendiam a travessia eram homens.
O caráter eminentemente masculino dessas migrações permite denotar
que nos casamentos ocorridos em Itatuba muitas das mulheres certamente
já viviam na localidade, restando questionar sua origem. Algumas já eram
filhas de migrantes, como a própria fonte indica numa breve observação da
naturalidade de seus pais, mas algumas outras não, o que permite inferir a
possibilidade de sua origem ser indígena. Resta investigar, diante dessa
informação, as composições matrimoniais desses possíveis arranjos, que
certamente uniram muitos migrantes e indígenas. Esse raciocínio pode ser
estendido aos outros livros de registro de casamento levantados durante a
expedição que apresentam compleição bastante semelhante.
A materialidade desses arrazoados pode ser cruzada com os relatos
coletados através das entrevistas, que igualmente revelaram através do
índice analítico “união” ou “casamento” possibilidades para o entendimento
da história do Purus, principalmente no que tange as características dos
“contatos”. Do ponto de vista histórico, esse é um eixo bastante
significativo, pois ao analisarmos a composição social da população do rio,
percebe-se que existiu (e continua existindo) um forte processo de
associação entre pessoas de origens e culturas diversas, indígenas e não
indígenas, em sua heterogeneidade, que foi acelerado desde o vertiginoso
avanço das frentes pioneiras oitocentistas. Essa referência não pode ser
obliterada, posto que, faz parte da historicidade do povo que vive no rio,
devendo ser analisada respeitando sua complexidade.
Um testemunho bastante interessante e que corrobora com a
argumentação acima foi a do Sr. Feliciano Reis, filho de maranhenses, que
viveu a maior parte de sua vida nos rio Piranha, pertencente à bacia do rio
Tapauá.9 Hoje o Sr. Feliciano reside no município e trabalha no Hotel Aline,
onde os membros da expedição ficaram hospedados. Desde criança
acompanhava seu pai nos trabalhos na floresta, principalmente nos coleta
9
O rio Tapauá é afluente do Purus, sua foz localiza-se no curso acima da cidade de Tapauá.
29
da sorva e a castanha, característica das feições da economia após o forte
declínio da borracha, após os anos 1940. Além disso, em seu relato existem
várias pistas da relação de “contato” entre indígenas e migrantes, sendo o
pai do Sr. Feliciano um interlocutor, responsável pela tentativa de
arregimentar indígenas Iafi (etnia que hoje é associada aos Banawá) para o
trabalho de coleta.
Diante dessa empreitada, havia trocas culturais muito significativas.
Primeiramente, os agentes “brancos” aproximavam-se oferecendo “rancho”,
contendo desde alimentos até ferramentas de trabalho diversas (terçados,
facas, etc). Ocasião muitas vezes atravessada por diversos conflitos, mas
que segundo Sr. Feliciano, também guardava espaço para anuência por
parte de alguns indígenas, que passaram paulatinamente a coletar os
produtos das matas em troca dos ranchos. Configurava-se, assim, uma
relação de trocas, entre mercadorias e produtos extrativos, cuja base tinha
no secular sistema de aviamento seu eixo principal. Esse processo de trocas
e arregimentação para o trabalho compreendia a presença de diversos
sujeitos, inclusive, com o passar do tempo, os próprios indígenas, que
também foram abrindo novas frentes para exploração, conseguindo fontes
de
trabalhadores
(também
indígenas).
Era
uma
tentativa
de
“amansamento”, palavra que é utilizada pelo Sr. Feliciano para definir a
incorporação de novos valores e costumes através da vivencia no mundo do
trabalho, entendido como disciplinador, como meio de transformar os que
eram chamados de “brabos” em “mansos”, semelhante ao processo que
atingia os migrantes adventícios. Tudo leva a crer que a labuta em troca
das mercadorias, a relação patronal, o aprendizado da língua do outro
(tanto por parte dos “brancos” como pelo lado dos indígenas) os
intercâmbios culturais diversos, tudo isso transformava de maneira decisiva
os ritmos do cotidiano e do trabalho.
Entretanto, tal cenário não deve ser concebido como uma via de mão
única, pois não era só o “mundo do trabalho branco” do extrativismo que
influía na vida dos diversos povos que já habitavam a floresta. Estes
também tinham um papel ativo nessa interlocução cultural. Foi nesse
sentido que o Sr. Feliciano narrou algumas de suas experiências, que
podem exemplificar a atmosfera de vivido, configuradas em ricas memórias.
30
Uma em especial chamou atenção pela tom grave, quando Sr. Feliciano
narrou à ocasião da perda de seu pai. Na hora da conversa, que ocorreu a
noite, um acontecimento em especial acrescentou ainda mais ingredientes à
entrevista, pois houve uma interrupção no fornecimento de energia elétrica.
Começamos a conversa a claras, e logo em seguida ficamos as escuras.
Nessa hora percebi que o Sr. Feliciano ficou mais desenvolto, articulado,
pois ele era muito tímido, falando sempre baixo e pouco, aguardando
nossas perguntas (na ocasião estavam presentes Angélica e Mario). A
escuridão trouxe para suas palavras um timbre diferente, ele falava sem
nos ver, sem divisar nossas presenças, somente as vozes, ou melhor, nessa
ocasião em especial a única voz emitida é a do entrevistado, que narrou o
episódio da morte de seu pai.
A memória narrada se passa numa trilha na mata, quando o Sr.
Feliciano, à época com seis anos de idade, acompanhava seu pai no
trabalho. Segundo seu testemunho numa certa altura da caminhada, de
surpresa, “na passagem de um pau”, camuflada entre as folhagens, estava
uma cobra “surucucu pico de jaca”, que surpreendida pela presença dos
passantes, mordeu a perna do pai do entrevistado. Os dois estavam muito
distantes da base das trilhas, e sem conseguir caminhar por muito tempo,
“arrastando-se”, o pai do Sr. Feliciano o pediu para que fosse a frente o
mais rápido possível para pedir ajuda. Foi nessa ocasião que, muito
assustado, o menino de seis anos se perdeu, passando seis dias vagando
sozinho na floresta. O maior medo do menino, além de recear a morte do
pai, foi expresso através dos bichos da mata, e não somente das possíveis
onças, grupos de queixadas, ou serpentes, mas dos muitos entes
encantados. O menino ouvia pios, rangidos, barulhos estranhos, dormia nas
árvores e passava os dias caminhando tentando encontrar sua trilha,
alimentando-se dos frutos da mata que conhecia e bebendo água. Temia
muito encontrar o mapinguari, descrito como um gigante em forma humana
que comia gente e que possuía uma pele praticamente impermeável a
ataques (salvo por um ponto fraco, que aparecia quando ele abria a boca que fica à altura do umbigo - para emitir seus gritos, podendo ser atingido
em cheio). Os traçados do desenho do “monstro” que povoava os medos do
31
Sr. Feliciano fazem parte de falas do mundo indígena, que atribuíam sentido
a cada som estranho, a cada sombra movediça nos recantos da floresta.
Durante o tempo em que passou perdido, o entrevistado não sabia o
que se passava com o pai, que havia, com grandes dificuldades, conseguido
chegar até o local habitado mais próximo. Infelizmente, após pedir socorro
e chamar um grupo de pessoas para tentar localizar seu filho, o pai do Sr.
Feliciano veio a falecer. Foram empreendidos vários dias de busca, onde
estavam empregadas muitas pessoas, inclusive indígenas, que deixavam
“mensagens” nos caminhos, ou gritavam chamando pela criança, mas seus
sons eram confundidos com os emitidos pelo mapinguari, acarretando um
efeito inverso ao esperado. O menino ao invés de seguir os sons se
escondia receoso. E somente depois de muito tempo, combalido pelos
vários dias de alimentação escassa, ele passou responder aos chamados e
foi encontrado. Após esse fatídico acontecimento Sr. Feliciano passou a
viver com o irmão mais velho e com a mãe (sobre ela não foram feitas
referências de origem, se também era originária do Maranhão, ou não), que
assumiram os encargos da sobrevivência da família. A faina extrativa
continuou sendo a base do cotidiano da labuta, vivenciada não só pelos
parentes, mas também por outros “brancos” e também por indígenas, que
compartilhavam referenciais de sobrevivência e leituras de mundo.
Sr. Feliciano, além de narrar o episódio da morte de seu pai, também
falou sobre sua amizade com os indígenas (principalmente os que hoje se
afirmam como Banawá). Ele explicou detalhes da divisão de suas tarefas
com os “caboclos” (designação utilizada em seu relato quando fazia
referência aos indígenas) e testemunhou ocasiões de encontro na mata com
outros povos, com etnias “brabas”, quando estas tentavam fazer contatos
diversos, buscando comunicar-se, fazendo perguntas, apontando caminhos,
barganhando, empreendendo trocas de produtos, etc. Uma imagem muito
distante do estereótipo do indígena arredio e esgueirado pelas matas.
Portanto, é difícil falar num processo de “amansamento”, principalmente se
este for entendido no singular, visto somente a partir de um lado, sem
incluir a tentativa de comunicação dos costumes e códigos por parte dos
indígenas, que experimentavam entrar em contato com os “brancos” talvez
almejando transformar o “branco brabo”, que era “o estranho”, em
32
“manso”. O estudo do significado desses eventos pode abrir uma brecha
para o entendimento da complexidade desses contatos, virando “de ponta
cabeça” o que é tratado muitas vezes como consensual. Arrisco afirmar que
tal relacionamento e troca de experiências teve grande transito nos mundos
do
trabalho,
fronteiras.
Os
embora
seus
formatos
desdobramentos
desses
encontros
não
tenham
extrapolam
respeitado
os
conceitos
preestabelecidos. Certamente as categorias, “manso” e “brabo”, “conflito” e
“aliança”, não dão conta de explicitar a complexidade dessas situações,
principalmente se forem observadas a partir de viés rígido, tentando
enquadrar comportamentos e experiências. Esses conceitos devem ser
percebidos como problemas históricos, distantes das generalizações de uma
intransigência teórica que tente moldar a vivência dos sujeitos. Ao
contrário, o importante seria perseguirmos a fluidez da memória dos
interlocutores em sua historicidade.
Em Tapauá foram encontrados muitos personagens que reforçam a
complexidade afirmada diante dessas dimensões históricas, que atropelam
pressuposições
complexidade,
generalizantes.
podem-se
No
apontar
entanto,
mesmo
características
que
diante
de
tal
atravessam
as
trajetórias da maioria dos sujeitos não índios e índios, como as memórias
de
suas
experiências
migratórias
e
de
seus
antepassados,
os
estranhamentos no contato com “outros”, onde figuram os desafios da
alteridade e da sedimentação do mundo do trabalho amazônico.
Esses são índices analíticos importantíssimos, na medida em que
entram em questão as várias dimensões da territorialidade e suas
mudanças no tempo, assim como as novas configurações das trocas
culturais, com a chegada dos migrantes ante a presença dos povos
indígenas (e destes com outros indígenas). Ao analisar esse quadro
historicamente, deve-se levar em conta os dois lados desse cenário (seriam
somente dois lados?), em sua pluralidade, atentando as mudanças e
permanências estabelecidas desde o século XIX, período no qual se
estabeleceu uma massificação das explorações do Purus. Portanto, é salutar
enxergar as experiências relatadas e demais informações em sintonia com a
atribuição de sentidos emprestada pela historicidade do processo de
contato,
evitando
o
risco
de
um
danoso
isolamento
temporal
ou
33
presentismo. A memória, apesar de configurar-se como uma seleção de
lembranças feita no presente, é embebida de vivências passadas que
sempre remetem há outros tempos. Afinal, considera-se que o presente e o
passado sempre andam de mãos dadas, mesmo que, por vezes, essa
relação seja um tanto atribulada.
Canutama
Figura 3 – Cidade de Canutama. Foto: Alexandre Isidio.
A cidade de Canutama está situada numa área de várzea, apenas com
pequenos pontos de terra firme. No século XIX foi um importante
entreposto de exploração do Purus, base para incursões que buscavam
gêneros na floresta. Foi local de “pouso” no percurso das incursões de
Manoel Urbano da Encarnação, homem que tinha fortes ligações com o
Estado à época da Província do Amazonas, como informante, prático de
embarcações e Diretor de índios. Invariavelmente, a história de Canutama
vem se confundindo com os processos de expansão da economia extrativa,
destacando-se suas feições eminentemente econômicas, jungidas aos
“feitos” dos homens de Estado.
Temos uma proposta diferente. Cremos que é possível enxergar outros
sujeitos, outras experiências históricas, outras culturas e modos de vida.
Isto, sem excluir a produção historiográfica já estabelecida, ou melhor,
usando-a como “janela” para contemplar novos vieses, outras versões do
34
processo. Assim também podem ser entendidas as fontes de natureza
oficial, que apesar de sinalizarem para aspectos a primeira vista somente
ligados ao nível do Estado, deixam entrever em suas linhas outros sujeitos,
que muitas vezes não tiveram suas experiências registradas diretamente.
Foram com essa intenção metodológica que se buscou os arquivos do Purus
(não só os de Canutama), de modo a arriscar uma escrita em sintonia com
demandas esgueiradas dos que não tem seus nomes registrados nos anais
da História. Busca-se, portanto, os migrantes, os indígenas, os regatões, as
rusgas cotidianas, os conflitos, os acordos, os espaços de entendimento e
outras dimensões do político. Foi com esses indicativos que os arquivos e as
falas dos entrevistados foram analisados.
Chegando a Canutama, logo nos primeiros passos da pesquisa, tornouse perceptível que a cidade guardava mais fontes documentais (oficiais) do
que Tapauá. Nas primeiras investidas descobrimos o Arquivo Municipal,
sediado no prédio da Prefeitura, onde existe um volume bastante
significativo de documentos. Foram listados documentos da Intendência e
da Prefeitura (de anos diversos a partir de 1906), ofícios, circulares, folhas
de pagamento, atas, receitas do município, impostos municipais e alvarás,
regulamentos para o serviço público e registros de impostos, com
periodicidades diversas, de maneira geral situada entre a partir final do
século XIX adentrando no século XX. Esses fragmentos do passado têm sua
produção
ligada
aos
governamentais,
que,
desígnios
ao
do
contrário
poder,
do
do
que
Estado,
se
dos
poderia
olhares
considerar
apressadamente, não falam somente do palco decisório.
Por exemplo, no ano de 1911, na mensagem dirigida à Intendência
Municipal
de
Canutama,
existe
a
oficialização
de
uma
reclamação
relacionada aos locais de moradia da maior parte da população da cidade,
feita pelo então Superintendente Coronel Theodoro dos Reis Botinelly. De
acordo com o Coronel Botinelly, os munícipes não estavam a par dos
interesses das leis, construindo suas casas em áreas não permitidas, como
as áreas de várzea. Portanto, era urgente a definição de meios para
equacionar o problema diante dos “abusos” da população, pois todos
deveriam habitar a área de terra firme como rezava os desígnios legais.
35
Um ponto Srs. Intendentes que reclama a atenção dos poderes
competentes e que já é tempo de tratar-se delle, é o cumprimento
da lei n. 22 de 10 de outubro de 1891 que creou o Município de
Canutama.
Diz essa lei que a sede da Villa é na terra firme e que na várzea
apenas haverão armazéns e o porto de embarque e desembarque.
Ora, por um abuso, a população tem-se concentrado toda na
várzea, deixando a terra firme em quase completo abandono.
É do cumprimento da minha administração o convergir as minhas
vistas para a terra firme, empregando todos os meios e esforços
para que aquella lei seja cumprida. 10
Percebe-se diante da fala oficial um posicionamento contrário aos
habitantes da cidade, que insistiam no “abuso” de construíam suas
habitações nas áreas de várzeas. Acompanhando a tessitura da fonte, é
importante destacar que no contexto da virada do século XIX e início do
século XX havia uma preocupação generalizada dos poderes públicos com o
ordenamento
urbano,
que
consistia
também
numa
tentativa
de
ordenamento social, desdobrando-se, desse modo, não somente nas ruas,
mas também nos hábitos e na vida dos cidadãos. Havia uma tentativa de
“reformar” os costumes, incutir hábitos burgueses, impondo padrões de
sociabilidade trazidos do Velho Mundo. Ora, as moradias da várzea, com
habitações cobertas de palha, distantes dos padrões de arruamento ou
higienização, apresentavam-se inadequadas diante do modelo almejado
pelo Superintende. Além disso, a terra firme, situada a uma distancia
significativa das margens do Purus, talvez tornasse a presença desses
habitantes “menos” incômoda, distantes dos olhares de quem contemplasse
Canutama de sua orla, onde somente deveriam ser avistados somente
armazéns e o porto.
10
Arquivo Municipal de Canutama. Livro de Registros de Decretos, Mensagens e
Resoluções da Superintendência (1909 – 1917) - Mensagem apresentada a Intendência
Municipal de Canutama, em sua primeira reunião de 1911 pelo Superintendente Coronel
Theodoro dos Reis Botinelly.
36
O
almejado
deslocamento
dos
habitantes
para
a
terra
firma
certamente não era desejável para muitos dos moradores da várzea, que
muitas vezes, como até hoje acontece, retiravam seus sustentos desses
locais, sintonizados ao regime de cheias e vazantes do Purus, pescando e
plantando seus roçados. Esse cenário traduz uma atmosfera de tensão, que
seguramente não era uma novidade no ano de 1911. Os hábitos herdados
das populações indígenas, como as construções erigidas na várzea (como
era de costume dos Paumari), ou mesmo o material utilizado na edificação
das casas (principalmente dos mais pobres), que eram cobertas de palha,
não entravam em acordo com os valores da administração pública de
Canutama (e também da maioria dos Municípios).
Ainda tratando do mesmo conjunto de fontes, mas com referência ao
ano de 1904, é possível analisar atraves da mensagem do Superintendente
Raymundo Carlos de Moraes, intenções bastante semelhantes às traçados
pelo Coronel Botinelly em 1911. Dirigindo-se à Intendência Municipal, no
que diz respeito ao item “Construções”, existe a intenção de proibir a
construção de casas de palha na área da várzea, anuindo tais edificações
somente na área de terra firme.
Construções
A lei d’esta Intendência de 1⁰ de novembro de 1904 prohibe a
edificação e reedificação na rua da Instalação e na av. Botinelly,
que não recebão cobertura com telhas de barro. Acho que essa lei
deve ser ampliada e que a prohibição deve ser mais lacta (sic). Não
se devem consentir mais construções de palha e pacheuba a não
ser na terra firme. (...)
Será mesmo conveniente marcar-se um prazo para que os
proprietários de cazas na quellas (sic) condicções existentes na
várzea as reformem ou mudem-se para terra firme. 11
11
Arquivo Municipal de Canutama. Livro de Registros de Decretos, Mensagens e
Resoluções da Superintendência (1909 – 1917) - Mensagem apresentada a Intendência
Municipal de Canutama, em sua primeira reunião de 1909 pelo Superintendente Raymundo
Carlos de Moraes.
37
Fica claro que existia um posicionamento contrário às edificações na
área de várzea. Além disso, outro aspecto de destaque trata da orientação
das construções das habitações, que não deveriam receber cobertura de
palha, e sim de telhas de barro. Esse posicionamento atingia diretamente os
que não tinham meio econômicos para adquirir telhas de barro, objeto de
distinção,
e
que
simbolizava
um
modo
de
vida
ligado
a
padrões
arquitetônicos alheios a população local. A palha que era o material de uso
costumeiro na cobertura dos tapiris, das casas de farinha, das habitações
da maioria dos habitantes, não se afinava com o ideal de cidade que o
Superintendente Raymundo Carlos de Moraes almejava. Observando o
contexto desses arrazoados, é possível enxergar também uma preocupação
com a transitoriedade das habitações de palha, que figuravam distantes de
um padrão sedentário rígido, posto que seus moradores deslocavam-se
paulatinamente construindo novas casas (em semelhança a muitos povos
indígenas), dificultando o “papel” do Estado de fiscalização e cobrança de
impostos.
Apesar de não terem sido encontradas entre as fontes informações
sobre a composição étnica da população de Canutama de 1911, não seria
inócuo apontar a possibilidade da presença de indígenas nesse contingente
de moradores atingidos pelas ordenações legais. Assim, é interessante
analisar as ações do Superintendente em cruzamento com o plano maior
das ações do Estado, que em sintonia com o avanço das frentes pioneiras
pelo Purus desde meados do século XIX atingia de modo significativo o
modo de vida das populações indígenas. Portanto, no plano urbano (assim
como no plano das atividades rurais)12 havia um interesse em reformar os
costumes, tentando disseminar um ideal de cidadão, que seria cumpridor de
seus deveres, disciplinado, pagador de seus impostos. Esse plano ideal,
seguramente, não era entendido, nem obedecido por todos.
Diante dessa problemática, ainda tratando dos desígnios “legais”, foi
encontrada no percurso da pesquisa uma tabela contendo informações
12
Contudo, com outras configurações, já que a presença do Estado era mais fluída nas
atividades empreendidas na floresta. Ou melhor, as relações de poder tinham mais peso
diante dos mandos dos “senhores” donos dos locais de exploração.
38
sobre as cobranças de impostos para o ano de 1927, que pode ser
verificado no livro de atas da Intendência Municipal de Canutama. Em tal
documento estão contidas ainda algumas discussões sobre a composição
urbana da época, nomeações de cargos, exonerações, definições do
funcionamento do mercado público, folhas de pagamento, entre outros
índices, que podem trazer a lume muitos e interessantes fragmentos do
passado da cidade. No que tange a cobrança dos impostos, chama atenção
a
variedade
de
tipos
de
taxação,
que
além
de
incidirem
nos
empreendimentos comerciais, como botequins, também tributam, por
exemplo, pessoas empregadas na quebra de castanha, além de outras
atividades. O documento foi elaborado na segunda reunião ordinária da
legislatura do Presidente da Intendência Monteiro Pantoja, em 31 de
outubro de 1927.
Tabela 1 - Livro de Actas. Arquivo Municipal de Canutama. Livro de actas das
sessões da Intendência Municipal de Canutama.
Segunda Reunião Ordinária da
Legislatura – Presidente Monteiro Pantoja, 31 de outubro de 1927.*
Registros
Alvará de licença para casa comercial que, Tributo
no
Município
vender
todos
os
gêneros
excepto bebidas alcoólicas, fumos, cigarros e
tabaco, que tem sua tributação especial;
Alvará
de
licença
para
vender
Primeira Classe
150$000
Segunda Classe
100$000
Terceira Classe
80$000
bebidas Tributo
100$000
Tributo
100$000
alcoólicas, fumos, cigarros e tabaco;
Advogado diplomado;
Advogado não diplomado, por cada causa Tributo
50$000
que patrocinar;
Botequim;
Tributo
100$000
Barbeiro e Cabeleireiro;
Tributo
30$000
Bilhar;
Tributo
10$000
Carpintaria;
Tributo
30$000
Dentista com consultório;
Tributo
100$000
Dentista sem consultório;
Tributo
50$000
39
Estaleiro de construção de embarcação de Tributo
80$000
madeira;
Engenho de tracção animal ou a motor Tributo
200$000
fabricando cachaça e assucar (sic);
Engenho
a
vapor
fabricando
cachaça
e Tributo
300$000
assucar;
Joalheiro fixo ou ambulante;
Licenças
para
jogos
lícitos
em
Tributo
50$000
festas Tributo
10$000
públicas;
Licença para ter cão solto ou que transite Tributo
2$000
nas ruas da Villa;
Marchante – talhador de gado vacum;
Tributo
50$000
Marchante – talhador de gado suíno, lavigno Tributo
20$000
(sic) ou caprino.
Marceneiro com oficina
Tributo
Negociante ou comerciante que no Município Tributo
20$000
300$000
vender mercadorias em vapor ou lancha
Ourives com officina
Tributo
50$000
Officina outra de qualquer arte
Tributo
20$000
Padaria
Tributo
30$000
Pessoa empregada na quebra de castanha
Tributo
20$000
Quitanda
Tributo
10$000
Em vapor
800$000
Em lancha
400$000
Regatão no Município
Tributo
Em lancha indo ao território 250$000
do Acre
Em batelão
400$000
Em canoa
150$000
Obs. A palavra tributo figura como um grifo meu.
No conjunto do documento ainda constam as tabelas B, referente às
taxações voltadas aos portos de lenha; C, referente aos tributos sobre o
gado de corte e leiteiro e sobre o aluguel de animais; D, atinente aos
40
impostos do cemitério público; E, concernente aos valores cobrados para a
aquisição de licenças para construção ou demolição de muros, averbações e
transferências de terras; F, relativo a cobranças de “décimas” e foros
urbanos e taxação sobre os preços de alugueis e G, atinente aos
emolumentos da intendência municipal (cobranças por petições, certidões,
averbações, etc). Uma mostra da variedade das cobranças feitas pela
prefeitura, que tentava regular a vida urbana e seus mecanismos de
funcionamento.
Além da enumeração dos impostos, existe em anexo à fonte uma série
de
observações
sobre
interdições,
portarias
sobre
os
horários
de
funcionamento dos estabelecimentos e observações sobre a regularidade de
construções, produtos e serviços. Pode-se inferir, nesse sentido, que existia
uma tentativa concreta de controle e disciplinarização de um largo conjunto
de relações sociais estabelecidas no espaço urbano, composto atraves das
taxações e ordenações estipuladas para as mais diversas atividades. Desta
feita, a prefeitura de Canutama no final dos anos 1920 queria ter o controle
e enviar suas cobranças de impostos para todos os citadinos, desde os
donos de botequins e barbearias, passando pelos profissionais liberais,
como dentistas e advogados, até os proprietários de cachorros vadios, pois
todos deveriam obedecer às regras e contribuir com o erário público.
Um aspecto interessante a ser observado, indo além da leitura das
taxações acima esboçadas, consiste num exame dos diversos ramos de
trabalho e sistemas produtivos, pois é possível entrever uma significativa
variedade de atividades empreendidas pela população (ou pelo menos ter
uma ideia das suas possibilidades). Canutama, olhando por esse lado,
aparece como um cenário urbano com atividades e serviços bastante
variados, com engenhos a vapor e a tração animal que fabricavam açúcar e
cachaça,
estaleiros
para
construção
de
embarcações
de
madeira,
marchantes responsáveis pelo corte de distribuição de carne, coletores de
castanha, além de quitandas, padarias, marcenarias, e até oficinas de
ourivesaria. A variedade de serviços pode denotar a força dos fluxos
econômicos da época, que por sua vez permitem vislumbrar algumas das
características de uma sociedade de consumo monetarizada, que detinha ou
mesmo buscava acompanhar os valores traçados no plano das grandes
41
aglomerações urbanas. Embora estejamos analisando a cidade no contexto
de 1927, não seria inócuo inferir que tais facetas seja ainda eco do período
áureo da borracha, quando o Purus, até a década de 1910, fora o maior
produtor da bacia amazônica. Entretanto, nos idos da legislatura do
Presidente Monteiro Pantoja não havia seguramente mais a força econômica
de décadas anteriores, mas é importante não deixar de apontar certa
efervescência
em
Canutama,
principalmente
no
que
diz
respeito
à
pluralidade do seu contexto urbano e de suas atividades econômicas.
Por outro lado, tudo leva a crer que diante desse cenário multifacetado
da economia alguns sujeitos eram empurrados para as “margens” do social,
tendo suas casas de palha, seus hábitos locais de moradia, e certamente
também suas atividades produtivas afetadas, comprometidas perante as
novas demandas de impostos e demais regulações públicas. Pode-se
considerar que o lócus do urbano trazia também desafios para muitos dos
habitantes do Purus no início do século XX, desdobrando-se em desacordos
e conflitos, em intervenções diretas nas mais diversas esferas do cotidiano.
Os desdobramentos das frentes pioneiras incidiam diretamente nesse
cenário. As cidades passavam a serem bases para as explorações,
entrepostos
para
os
produtos
destinados
ao
comercio,
recebendo
rotineiramente fluxos de mercadorias e pessoas envolvidas na labuta. Esses
movimentos ajudavam a compor muitos dos desafios de alteridade,
firmados através dos encontros entre modos de vida diversos. A própria
noção de urbanidade, definida através de códigos de conduta, cobrança de
impostos e demais regras, deve ser posicionada diante desse quadro
conflituoso da alteridade, pois havia intenções impositivas de intervenção
na vivência dos outros, tentativas de adequação, entre outras medidas.
Apesar de todos seus mecanismos de “controle”, nos idos dos anos
1920 ainda eram relativamente novas as experiências urbanas no rio, que
somente foram ganhando fôlego no final do século XIX, quando já
figuravam as cidades de Lábrea e Canutama, que mesmo recém-nascidas já
contribuíam com o devassamento das matas, assistiam a chegada de
migrantes, colaboravam como bases para abertura de novas fontes de
exploração, participavam comercialmente do deslocamento de mercadorias
e gêneros extrativos, etc. No entanto, apesar de todo esse aparato, é certo
42
que as cidades do Purus não eram centros aglutinadores de um significativo
contingente populacional, e nem dos sistemas produtivos, se comparadas
ao mundo rural (se é que havia uma fronteira bem definida entre o rural e o
urbano).
A maior parte dos habitantes continuava vivendo na floresta, ou
melhor, nas localidades espalhadas pelas margens do rio que sediavam
pontos de exploração. Essa dimensão, apesar de conter uma configuração
diferente
da
urbana,
também
gerava
uma
série
de
problemáticas,
assentadas no avanço do sistema de aviamento e na entrada de muitos
adventícios, trabalhadores que passavam a lidar com o sistema de
aviamento e os demais códigos de sobrevivência das matas. Porém, esses
homens e mulheres migrantes não eram os únicos que vivenciavam tal
processo, posto que ao seu lado estivessemoutros que conheciam de
maneira muito mais detida os rios e a floresta, mas que também eram
afetados pelas empreitadas do extrativismo.
Os povos indígenas dividiam com os migrantes, experiências nos
mundos do trabalho na floresta, e desse interrelacionamento eram tecidas
redes de sociabilidade, evidenciando tanto conflitos, quanto ocasiões de
entendimento. A feição desses contatos foi sendo erigida através das
dinâmicas do avanço do regime de trabalho extrativista, firmado em
consonância com as relações do sistema de aviamento. É interessante notar
que as várias facetas dessas relações ajudaram a atribuir sentidos aos
papeis dos sujeitos da história do Purus. Como podem ser analisado atraves
das memórias do Srs. Moacir e Sebastião (o primeiro morador de Tapauá e
o segundo residente em Canutama), ambos indígenas da etnia Banawá com
mais de 60 anos. Filhos de mãe cearense e pai indígena, eles vivenciaram
os contornos da alteridade, guardando ricos relatos sobre suas trajetórias.
De início é importante salientar um ponto de intercessão de memórias
entre os irmãos, pois ambos narraram os percursos da mãe, Dona Diva,
filha do “patrão” que aviava a família do avô índio dos Srs. Moacir e
Sebastião. Segundo o relato, havia uma relação de aviamento firmada entre
os índios e um patrão, na região do Piranhã, rio pertencente à bacia do
Tapauá (que por sua vez é afluente do Purus). A família cearense tinha
certa proximidade com os indígenas, empreendendo trocas de produtos
43
extrativos, como castanha, sorva, copaíba, por aviamentos, como café,
açúcar, farinha e instrumentos de trabalho. A relação, segundo os
interlocutores, acontecia sem grandes atribulações, inclusive porque a avó
“branca” dos Banawá, esposa do patrão, que era conhecida como índia
“Ceará” tinha uma proximidade ainda maior com os indígenas, pois
dominava o idioma, costurava, cozinhava e trocava amabilidades com os
habitantes da floresta. A Sra “Ceará” vivia com o marido e suas duas filhas
pequenas, Iva e Diva, na sede das explorações, próximo ao armazém onde
eram guardados os gêneros do aviamento.
A mistura entre esses mundos, que em princípio parecia harmônica,
entrou em choque de forma decisiva quando dois indígenas insatisfeitos
com suas recompensas de trabalho, e desafiando a autoridade do Cacique
(que não pregava, segundo os Srs. Moacir e Sebastião, o conflito com os
patrões), atacaram a residência dos exploradores. A “Ceará” estava sozinha
com suas duas filhas e foi morta na incursão, e as crianças foram levadas
juntamente com o material pilhado do armazém pelos indígenas. No
caminho de volta, uma das meninas, Iva, a mais nova, começou a chorar
copiosamente e a relutar em continuar a jornada de fuga. Então, enquanto
um dos índios foi procurar uma fonte de água para matar a sede do grupo,
o
outro
“arpoou”
Iva,
matando-a,
sendo
resolutamente
reprovado
posteriormente pelo seu companheiro de viagem, que não permitiu que ele
fizesse o mesmo com outra menina, Diva. Ao chegar à maloca, houve uma
séria consternação ante do ocorrido, tendo em vista tanto a quebra das
regras estipuladas pela liderança, quanto diante do temor das represálias
que certamente ocorreriam em virtude da morte da esposa e da filha do
patrão.
Assim, ao tomar conhecimento do cenário de conflito que se
avizinhava o Cacique não deu guarida aos salteadores, pelo contrário, puniu
os dois indígenas com a morte. Mas, temendo maiores perigos, resolveu
deslocar-se juntamente com todos os membros da comunidade para
refugiar-se de possíveis conflitos, levando consigo Diva, a filha do antigo
patrão. A comunidade indígena, após incorrer na fuga, situou-se próximo ao
Igarapé
Banawá, a uma distância considerada segura de
possíveis
expedições em retaliação ao grupo. Nesse local Diva cresceu e constituiu
44
família, casando-se com um indígena, e dessa união nasceram Moacir e
Sebastião. Diva, que faleceu no início dos anos 2000, permaneceu por toda
vida com o grupo, educando seus filhos na cultura indígena, mas sem
esquecer do mundo “branco”, nem obliterar sua trajetória, que foi passada
oralmente para seus familiares. Várias versões desse relato são contadas
por outros habitantes de Canutama, passando de geração para geração,
inclusive por outros familiares de Diva, como sua neta Ana Banawá (filha do
Sr. Sebastião), liderança indígena que vive na cidade.
Percebem-se, diante dessas memórias, algumas das dimensões das
experiências de contato, que envolvia um rol de relações multifacetado.
Desde o século XIX, quando foi iniciada de modo mais incisivo a exploração
econômica
na
bacia
do
Purus,
esse
cenário
foi
se
desenhando,
acrescentando outros atores e novas interações sociais. Não é possível,
diante do exposto, pensar esses papeis e ocasiões de maneira estanque e
rígida, principalmente quando levamos em conta os relatos dos Srs. Moacir
e Sebastião, que tratam de memórias de conflitos, mas também de relações
de proximidade, de situações de entendimento. Tais aspectos foram
vislumbrados pelos interlocutores como fundamentais na seleção de suas
lembranças, que também fazem parte de um processo de afirmação de
identidade, tecida através de suas experiências. Certamente esses são
apenas pequenos indícios da complexidade das relações dos habitantes do
Purus em sua historicidade. Todavia, diante desses arrazoados alguns
“varadouros” podem ser abertos nos debates sobre a temática em questão
(a do contato) que muitas vezes é tratada a partir de uma ótica
demasiadamente rígida, colocando, de modo compartimentado, indígenas
de um lado, e os demais sujeitos, de outro.
Nos mundos do trabalho do rio Purus, em suas florestas e cidades, em
seus locais de exploração nas matas, barracões, armazéns e seringais,
havia além de povos indígenas, muitas outras pessoas, que se deslocavam
e que interagiam entre si (como pode ser verificado numa pesquisa
45
realizada13 em outras fontes que foram cruzadas às informações aqui
trabalhadas). Por isso, essas categorias de sujeitos, mesmo sendo
heterogêneas, não podem ser entendidas de modo separado. Esses atores
ao longo do tempo dividiram/disputaram os mesmos espaços, muitas vezes
entrando
em conflito, mas
também compartilhando
experiências de
trabalho, contraindo matrimônio, tecendo relações de parentesco, em suma,
elaborando sociabilidades que passavam a permear seus modos de vida.
Essas facetas são pouco exploradas, e se tornam inviáveis para a pesquisa
se pensadas de modo estanque. É preciso entendê-las também em suas
sincronias e diacronias, em seus intercruzamentos, situando o papel das
pessoas que viveram o processo na pele, buscando entender suas
experiências historicamente.
Lábrea
A última cidade que a Expedição Purus visitou foi Lábrea, atualmente o
município com a maior população do Purus. Sua história, semelhante às
demais
urbes,
foi
atravessada
em
seus
alvores
por
incursões
de
exploradores da economia gumífera e por membros de expedições de
reconhecimento encabeçadas pelo Estado e por viajantes estrangeiros. Os
registros dessas viagens conformam a maior parte do que foi escrito até
hoje sobre Lábrea. Nomes como o do Coronel Antônio Rodrigues Pereira
Labre (tido como fundador da cidade), assim como o de Coronel Luis da
Silva Gomes (conhecido como Rei do Ituxi, por ter estalebecido nesse rio
uma grande exploração) e o do Padre Francisco Leite Barbosa (primeiro
sacerdote a se estabelecer na cidade), são os mais citados nas narrativas
sobre o passado da localidade.
Vê-se, portanto, que a documentação que trata da cidade, vide os
nomes e posições dos sujeitos arrolados acima, têm sido orientada através
13
Essa reflexão faz parte do conjunto de problemas da minha pesquisa pessoal que está em
andamento, cujo projeto tem como título: Nos meandros da história do rio Purus:
mundos do trabalho, migrações e fronteiras (1852-1877).
46
de grandes “vultos”, sobremaneira relacionadas a pessoas ligadas ao poder.
Estes personagens são importantes para o entendimento da configuração
dos acontecimentos, mas não deveriam figurar solitários. Esse quadro deve
ser repensado. Existem muitos relatos sobre a opulência de Lábrea na
época do surto gumífero, que falam em grandes fortunas, da construção da
suntuosa Igreja matriz, cuja cúpula de metal fora importada de Hamburgo,
entre outros empreendimentos. Mas, diante desses detalhes algumas
questões ficam sem respostas, aliás, muitas problemáticas são emudecidas,
juntamente com os outros sujeitos anônimos que participaram de um modo
ou de outro em todos esses episódios. Urge, nesse sentido, repetir alguns
dos questionamentos levantados por Berthold Brecht em suas “Perguntas
de um trabalhador que lê”:
Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas?
Nos livros estão nomes de reis; os reis carregaram pedras?
E Babilônia, tantas vezes destruída, quem a reconstruía sempre?
Em que casas da dourada Lima viviam aqueles que a edificaram?
No dia em que a Muralha da China ficou pronta, para onde foram os pedreiros?A
grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo: quem os erigiu? Quem eram aqueles
que foram vencidos pelos césares?
Bizâncio, tão famosa, tinha somente palácios para seus moradores?
Na legendária Atlântida, quando o mar a engoliu, os afogados continuaram a dar
ordens a seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho?
César ocupou a Gália. Não estava com ele nem mesmo um cozinheiro? Felipe da
Espanha chorou quando sua frota naufragou. Foi o único a chorar?Frederico
Segundo venceu a guerra dos sete anos. Quem partilhou da vitória?A cada página
uma vitória.
Quem preparava os banquetes comemorativos?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas informações.Tantas questões. 14
14
Disponível em http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1568771. Ultimo acesso:
15/05/2012
47
Brecht chama atenção para algumas pessoas para quem não são
dirigidas loas, para os que não produziram material escrito sobre suas
experiências (mas, que também viveram e fizeram sua história). As
perguntas elencadas pelo teatrólogo e dramaturgo alemão são dirigidas aos
historiadores, de modo a provocá-los a atravessar os discursos do poder, a
examiná-los de modo mais detido, burlando e evitando as danosas
homogeneizações de uma escrita permeada por heróis e acontecimentos
monocausais. Tal desafio toma forma a partir da leitura das fontes,
principalmente da documentação dita “primária”, em cuja superfície podem
aparecer imagens inteiriças, como um “reflexo” diante do espelho, como se
o passado fosse auto-evidente, uma imagem fiel. Resta ao historiador,
diante das provocações de Brecht, quebrar esses espelhos, estilhaçá-los, de
modo a desmontar a fonte, e contemplá-la em suas especificidades,
juntando
cada
pedaço
quebrado,
mas
sem
incorrer
na
pretensão
inalcançável de reabilitar um passado tal como ocorreu. O reflexo, assim
como o passado, não será mais o mesmo depois de estilhaçado o espelho,
depois do exame de sua feição multifacetada. A riqueza desse exercício de
quebra das fontes está na leitura de suas fissuras, no diálogo com os que
não aparecem em sua superfície, que não figurariam numa imagem de um
espelho inteiriço.
Não é preciso para tanto descredibilizar por completo a produção
historiográfica que se ocupou em citar apenas nomes e datas de modo
linear, reproduzindo as tessituras de um passado comprometido com a
conservação das imagens do poder. Um caminho interessante é utilizar
essas referências sem reproduzir seu conteúdo uniformizador e retilíneo,
mas através desses, enxergar outros caminhos para a análise das fontes.
Existe ainda a possibilidade de empreender reflexões através da memória,
examinada através das falas do presente, que guardam referências muitas
vezes inexistentes na documentação oficial escrita. Esses dois caminhos de
análise podem caminhar de modo independente, mas são grandemente
enriquecidos quando cruzados, quando o historiador os põe em diálogo,
possibilitando contrapô-los, mostrando suas fissuras e suas junções.
Em Lábrea, assim como nas outras cidades, houve uma tentativa de
tornar esse cruzamento possível. Foram buscados interlocutores que
48
contassem suas experiências, como o Sr. Zé Catuquina de 70 anos, filho de
pais indígenas, mas que fora “criado” por um cearense seringueiro,
trabalhando na maior parte de sua vida seguindo a profissão do seu tutor,
assim como Dona Brígida, de 88 anos, neta de sujeitos emigrados no final
do século XIX que trabalharam, segundo seus relatos, para o Coronel Labre
nos primeiros tempos de Lábrea, ou ainda Dona Maria Júlia de 99 anos, que
viera do Ceará com 14 anos acompanhando a família, e que falou com
lucidez sobre a composição da cidade nas primeiras décadas do século XX,
tratando do seu cotidiano de trabalhadora ao lado do marido, coletando
castanha, borracha, pescando, e cuidando da família. Suas vidas não estão
pormenorizadas em relatos de fontes oficiais, seus nomes não figuram entre
no rol dos “grandes” de Lábrea, mas isto não implica na anulação da
possibilidade de suas memórias ajudarem a pensar a história do Purus.
Além dos relatos orais ao chegar ao município também foram buscados
locais de pesquisa “oficiais”, como a prefeitura, o cartório eleitoral, a casa
do bispo e o cartório judicial. Foram vistas muitas fontes, porém, salvo as
eclesiásticas, guardadas em péssimas condições, amontoadas e sem
nenhuma
organização.
Esse
quadro
é
muito
preocupante,
pois
foi
encontrada uma extensa lista de tipologias (principalmente no cartório
judicial), onde constam Inventários, documentos do Juizado de Órfãos,
processos diversos, atas de reuniões, dentre outros fragmentos do passado
completamente desordenados, a maior parte centrada entre as ultimas
décadas do século XIX e as primeiras do XX. Esse é um recorte “clássico”,
fortalecido pelo apelo que o surto da borracha, ocorrido nesses tempos,
sempre teve entre a historiografia amazônica preocupada em narrar sua
faustosa ilusão. Para Lábrea, contudo, ficou claro que certamente não
devem existir fontes anteriores a essa temporalidade, até porque a
produção documental foi iniciada somente com a elevação da Vila no final
do século XIX.
Um grupo muito interessante entre os documentos levantados foi o
eclesiástico, onde constam entre livros de tombo e livros de batizamento, os
relatos do Padre Francisco Leite Barbosa. O religioso chegou a Lábrea em
1878, tendo sido recém-ordenado no seminário da prainha situado em
Fortaleza. Começou seu sacerdócio ainda jovem no Purus, ante um
49
território que estranhava, com seus rios e florestas e sua população
disseminada pelos locais de exploração e malocas indígenas. No início do
século XX, quando já era conhecido e possuía bastante prestígio na cidade e
na Igreja (nesses tempos ele já detinha o título de Monsenhor), o padre
escreveu o que chamou de “Resumo Histórico da Paróchia”, contando sua
trajetória e seus enfrentamentos diários, arrolando informações sobre
casamentos e batizados, além de listar os beneméritos que doavam
recursos para a Igreja. Nesse testemunho, Francisco Leite confidencia que
nos idos de 1878, tempos de sua chegada, “era então a Lábrea uma feitoria
de seringueiros, e um dos mais atrazados logares do rio Purus, não tendo
barracão, nem logar especial onde podesse celebrar o Santo Sacrifício da
missa”. 15
Sua preocupação nesses primeiros tempos consistia em sedimentar um
local para as celebrações religiosas, buscando angariar com as elites locais
recursos para construir um templo. Além disso, esteve por muitas vezes
singrando o rio Purus e seus afluentes buscando os seus “parochianos”,
fazendo suas desobrigas, ou seja, indo aos mais recônditos locais ministrar
sacramentos, como batismos e casamentos. Os números desses trabalhos
foram também arrolados como anexo em sua súmula sobre a história de
Lábrea, discriminando os sacramentos, as datas e o sexo de seus
catecúmenos. É possível vislumbrar através dos números a significativa
atuação de Francisco Leite pelo rio, com um crescimento das atividades com
o avançar dos anos.
O padre foi tecendo seus espaços de atuação relacionando-se com os
chamados “coronéis”, como Luís da Silva Gomes, o maior contribuinte nas
doações que propiciaram a construção da Igreja de Nossa Senhora de
Nazaré em Lábrea, disponibilizando uma quantia de mais de dezessete
contos de réis (uma pequena fortuna para a época) como consta no mesmo
relatório de cunho histórico. É possível inferir, nesse sentido, que as
preocupações do religioso estavam estreitamente ligadas com os desígnios
do poder local.
15
Casa do bispo de Lábrea. Livro de Tombo da Freguesia de Nossa Senhora de Nazareh
da Lábrea – 1902/1909.
50
Essa reflexão torna-se ainda mais plausível com a leitura dos números
das desobrigas, que aparecem listados em linear ascensão, uma mostra do
alcance das pregações do padre que alcançavam lugares cada vez mais
distantes. Não por acaso, nessa mesma época, é possível também ver um
avanço paulatino dos empreendimentos dos “grandes homens”, que
levavam adiante as explorações pelo Purus através do regime de trabalho
com base no sistema de aviamento (que no final do século XIX já alcançava
pela calha do rio Acre). Portanto, o crescimento da atuação do religioso
pode ser entendido em sua relação com avanço do extrativismo, que tinha
na figura de Francisco Leite um evangelizador, não só no sentido católico,
mas também na acepção dos interesses de homens como Luis da Silva
Gomes.
Tabela 2 - Notas dos baptisados e casamentos effectuados na freguesia de
Lábrea, Estado do Amazonas nos anos de 1878 a 1908.
CASAMENTOS
BAPTISADOS
Anno Sexo masculino Sexo feminino Legítimos Ilegítimos
Total
1878
58
67
63
62
125
45
1879
110
195
201
104
305
53
1880
162
239
290
111
401
68
1881
197
187
274
170
384
89
1882
215
190
280
125
405
103
1883
236
221
263
184
457
104
1884
251
270
365
156
521
99
1885
237
321
490
168
658
145
1886
243
239
360
122
482
152
1887
277
378
501
154
655
90
1888
378
353
434
297
731
119
1889
377
341
504
194
698
130
51
1890
420
509
639
290
929
160
1891
374
513
304
283
887
135
1892
425
407
674
158
832
165
1893
377
441
304
114
818
129
1894
413
290
596
110
706
154
1895
375
474
694
155
849
172
1896
317
391
593
115
798
103
1897
466
536
498
204
1002
242
1898
479
460
604
285
889
182
1899
331
331
544
108
662
71
1900
504
547
997
54
1051
158
1901
680
501
974
157
1131
199
1902
490
571
970
81
1051
211
1903
480
559
889
150
1039
142
1904
403
311
587
127
714
147
1905
840
532
934
438
1372
107
1906
428
352
408
372
780
258
1907
798
398
804
392
1196
177
1908
350
391
521
190
711
68
Total
11721
11428
17499
5650
23149
4117
Ao analisar os números dos 31 anos de atuação do padre no Purus
listados acima, percebe-se que no primeiro decênio foram feitos uma média
de aproximadamente 439 batizados por ano, nos dez anos subsequentes a
média sobe para 825 batizados anuais, e nos dez anos restantes a média
dos
sacramentos
aproximadamente
ainda
988
alcança,
pessoas
sem
por
contar
ano.
No
com
que
ano
diz
de
1908,
respeito
aos
casamentos o grau de crescimento também é significativo, pois nos
primeiros dez anos chegam a uma média anual de 94 uniões, no decênio
seguinte sobem para uma média de 150 matrimônios a cada 12 meses, e
nos últimos anos (também sem contar 1908) alcançam uma média por ano
52
de 165 uniões aproximadamente. Outro aspecto que chama atenção que é a
quantificação dos números de ilegítimos (pessoas nascidas a partir de
uniões não endossadas pelos ritos católicos), que alcançam em detrimento
dos esforços do padre, ao final das mais de três décadas de sacerdócio, um
total de quase 25% dos sujeitos no total.
Desses números pode-se pensar pelo menos dois aspectos da
historicidade do período. O primeiro dialoga com a ordem crescente dos
números de batizados e casamentos, tendo relação (além do avanço do
poderio e influencia de Francisco Leite) com a escalada igualmente
ascendente do fluxo migratório de trabalhadores que se dirigiam para o
Purus em todos os anos listado acima. Já o segundo aspecto a ser
considerado está relacionado à significativa quantidade de batismos de
filhos ilegítimos, que seguramente também tem ligação com o contingente
de migrantes, mais especificamente em seus contatos com a população
indígena, que não eram somente eram vivenciados em ocasiões de conflito,
ou nos sentidos formais do cotidiano de trabalho.
A questão da migração, nesse sentido, estava na ordem do dia
naqueles tempos, tendo inclusive o próprio padre, na ocasião em que
estava empreendendo a construção do primeiro templo de Lábrea, ido
pessoalmente ao Ceará arregimentar trabalhadores, de modo a empregálos como pedreiros na edificação da igreja. Esse tipo de ação era um dos
vetores que vinha impulsionando as travessias rumo ao amazonas, pois
muitos outros sujeitos, a exemplo do religioso, faziam esse tipo de
percurso. Tal empresa era dirigida grandemente para o Ceará porque os
contratadores de mão-de-obra em sua grande maioria também eram
cearenses (como o próprio Francisco Leite e muitos outros exploradores e
seringalistas), que acionavam redes de contato, semeando ideias de
possíveis melhorias entre seus patrícios. Eram, no final das contas e para
todos
os
efeitos,
também
agentes
da
cadeia
de
aviamento,
que
necessitavam de trabalhadores em quantidade suficiente para multiplicar
seus dividendos.
O pároco de Lábrea também teve seu papel nessa empreitada, embora
não diretamente ligado à empresa aviadora, como ele mesmo esboça em
seu relato histórico sobre a cidade escrito no início século XX.
53
Em 1880, com o producto das esmolas e mais uma verba de quatro
contos de réis, votada por lei provincial, fui ao Ceará d’onde trouxe
vinte famílias, ao todo oitenta pessoas, entre os quaes os operários
necessários para os trabalhos da matriz. (...)
Ao pessoal trazido por mim do Ceará dei collocação e trabalho
mandando fazer grandes derrubadas no perímetro da freguesia, que
ainda estava coberta por matta virgem, montando olarias, oficinas
de carpintaria e dando começo aos trabalhos da matriz, que com o
auxílio de mais dezesseis contos de réis, dados pelo governo
provincial e esmolas arrecadadas, foi concluída e inaugurada em
1882. 16
Esses “operários”, como se vê, tiveram um papel decisivo na
constituição dos primeiros rastros da composição urbana de Lábrea,
conformando uma parcela considerável da ainda pequena população da
cidade. Contudo, apesar de figurarem como um contingente significativo, os
migrantes não eram os únicos a habitarem a cidade, que também tinha
outros sujeitos em sua composição populacional. Ao chegarem ao território
amazônico os adventícios passaram a dividir espaço com os outros
habitantes do Purus, em sua maioria povos indígenas, que não estavam no
rol dos trabalhadores desejados por Francisco Leite (vide sua ação de busca
de migrantes no Ceará). Esse encontro (que também pode ser entendido
como desencontro) tinha variados desencadeamentos, sendo um deles
provavelmente refletido na incidência significativa de filhos “ilegítimos”,
como pode ser observado na tabela das desobrigas do padre, onde alcança
25% do total.
Os rebentos dessas uniões eram batizados e descritos nos livros de
registros na maioria das vezes apenas com o nome da mãe, constando um
primeiro nome em língua portuguesa e um segundo alusivo a “tribo”, como
pode ser lido nos registros dos livros de “batisamento” do padre17 (que
também foram arrolados no percurso da expedição). Apesar de ministrar o
16
Idem
17
Esse tipo de prática remonta aos artifícios da catequese jesuítica levada a cabo por vários
séculos no período colonial.
54
sacramento também aos “ilegítimos”, é patente o tom de reprovação
utilizado pelo religioso ao descrever as referidas práticas, que são
relacionadas com muito mais ênfase aos costumes indígenas.
Ao fazer alusão aos índios que viviam na floresta, principalmente aos
que relutavam em aceitar a fé católica, Francisco Leite é bastante taxativo
em relacioná-los a um ideário de barbárie e vadiagem. Para ele urgia uma
ação mais firme de catequese dos indígenas, que poderia facilitar o trabalho
de cristianização e defesa dos “maus” costumes. Essas intenções podem ser
analisadas também a partir do relato de cunho histórico que o padre deixou
registrado:
Existem n’esse rio e em muitos de seus affluentes muitos índios
rudes e pagãos, que precisão dos recursos da religião os quaes só
poderão chegar até eles por intermédio de missionários, que os
chamem e os aggremiem, afim de catechisal-os e instruil-os nos
sãos princípios da fé christã.
Em 1888 foi estabelecida uma missão no rio Ituxy, affluente do rio
Purus, pertencente a esta paróchia, por Frei Jesualdo Macheti,
superior dos franciscanos menores residentes naquela epocha em
Manáos e dirigida por Frei Matheus, porém os resultados foram
improfícuos por falta de recursos necessários a sua manutenção. 18
O trabalho de evangelização dos indígenas tinha um duplo objetivo. O
primeiro vinculado a tarefa de arrebanhar almas para a fé cristã, e os
segundo, que pode ser entendido como uma extensão do primeiro, de
torná-los aptos a singrarem as águas da celebrada civilização e seus
costumes. Era preciso, para tanto, fortalecer o trabalho de catequese, ao
passo que os frutos dessa ação seriam colhidos à medida que os indígenas
deixassem ou mesmo relegassem a um segundo plano seus referenciais
culturais. Desta feita, seria mais simples torná-los aptos a um regime de
trabalho em bases disciplinadas, congregando códigos e mensagens do
mundo capitalista. Tendo em vista todos esses aspectos, não torna-se
possível enxergar a relação de Francisco Leite com os “coronéis” através de
18
Idem
55
uma ótica de isenção de interesses. Tudo leva a crer que havia uma relação
de proximidade e cumplicidade entre ambos.
Entretanto, para o desapontamento geral, nem tudo saia como o
planejado. Os indígenas não correspondiam às expectativas a contento.
Havia muitos episódios de dissensões e conflitos, não só no Purus, mas em
todo o território amazônico. Muitos não aceitando a condição servil diante
do avanço sobre seus territórios e entraram em conflito com os objetivos
gerais dos invasores, havendo muitas vezes luta direta, com grande número
de mortos de ambos os lados da disputa. Nessas contendas muitos
indígenas refugiavam-se em locais distantes dos seus originários, ganhando
uma injusta alcunha de indolentes, que fugiam do trabalho. É possível
afirmar que “os seringais invadiram as terras indígenas, e aos índios restou
emigrar para o centro da mata ou vaguear de um lugar para outro. Esta
nova situação fez com que fossem conhecidos como preguiçosos, malandros
e mendigos, enfim, atrapalhando o progresso”. 19-20
Os
sentidos
desse
progresso
devem
ser
entendidos
em
seu
desencadeamento multiforme, distante da apregoada idéia de linearidade.
Seu formato não deve ser entendido como generalizado e único, posto que
seu significado, olhando para o passado, não servia para os “rudes e
pagãos”. Sem esse entendimento, não é possível, através da analise das
fontes, falar sobre aqueles que não entraram em sintonia com os adágios
da mensagem progressista da dita civilização, como no caso dos povos
indígenas, classificados por muitos como avessos aos seus valores.
Contudo, empreender esse trabalho de observação das minúcias e
sentidos do progresso não figura como uma tarefa fácil para o historiador.
Por muito tempo houve a ideia, inclusive bastante arraigada entre os
estudiosos das humanidades, que a historiografia acompanhava os sentidos
da linearidade positiva da ideia de progresso, apagando de sua escrita, ou
mesmo relegando a um plano secundário suas dissensões. Mas, ao contrário
dessas prerrogativas, atualmente muitos historiadores tentam escrever uma
19
KROEMER, Gunter. Cuxiuara: O Purus dos indígenas - ensaio étnico-histórico e
etnográfico sobre os índios do médio Purus. São Paulo: Edições Loyola, 1985.p. 89.
20
CARDOSO, ibid. p. 119-120
56
historia a contrapelo, seguindo os arrazoados de Walter Benjamin,
buscando os sentidos contrários, as características consideradas incomuns
ou desviantes. Os significados do passado entendidos através dessa ótica
também podem ser analisados através de uma reflexão de Benjamin sobre
a pintura Ângelus Novus de Paul Klee, que retrata um anjo de olhos
arregalados e asas abertas, vislumbrando algo, que seria o passado e sua
fluidez irreparável. É diante desse quadro que tentamos escrever Historia.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas
abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está
dirigido
para
o
acontecimentos,
passado.
ele
vê
Onde
uma
nós
vemos
catástrofe
uma
única,
cadeia
que
de
acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele
gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas
com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade
o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas,
enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade
é o que chamamos progresso.21
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente relatório não foi escrito como um relato uniforme. Ele foi
tecido na tentativa de traduzir as experiências dissonantes da pesquisa.
Aqui foram esboçados muitos indicativos de reflexão sem nenhuma
pretensão conclusiva sobre os temas abordados. Na verdade, diante da
grande quantidade de fontes coletadas na Expedição Purus, trata-se
somente de um vôo rasante sobre a documentação e os relatos, uma
piscadela fugidia. Ainda há muito trabalho a ser feito, principalmente no que
diz respeito à inventariação e sumarização da documentação coletada. Uma
empreitada necessária para facilitar o recurso à pesquisa, possibilitando um
entendimento mais pormenorizado das fontes.
21
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de Historia: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994.
57
Na medida do possível a escrita desse relatório tentou parecer
inteligível, mas hora ou outra, devido ao gosto por um antiacademicismo
narrativo do seu autor, certamente houve desvios dos caminhos da norma
(que não considero tão culta assim). Foram ensaiadas questões sobre
historiografia e teoria da história, acopladas a análise das fontes e das
vivências de pesquisa empreendida no campo. Tentou-se captar através
desse exercício centelhas de vida, como muito bem aconselhou um dos
maiores, Marc Bloch, em busca de sentir e farejar carne humana em meio
aos papeis empoeirados. Entendo que o tempo deixa suas marcas de
maneira bem mais profundas do que o tom amarelado dos documentos
velhos. Considero que ele está impresso nos gestos, nos gritos e na mudez,
no que é belo e no que é feio, no que é considerado vivo e no que é
decretado como morto. O passado é presente, ou melhor, está sendo
presente, pelo menos desde que o tempo e a História se encontraram, num
rendez-vous tão íntimo que muitos confundem um com o outro.
Portanto, ao pensar a história do Purus no geral, e de Tapauá,
Canutama e Lábrea, em particular, não estive numa posição distanciada,
pois semelhante à relação entre passado e presente, me “encontrei” com
esses lugares, participei de suas historicidades, e ao mesmo tentei entendêlos. Esse foi um primeiro exercício, um primário ensaio sobre a leitura das
fontes e da experiência de campo, que merecem uma atenção muito maior
do que a que foi dada neste relatório. É preciso ainda esmiuçar muitas
questões, refletir sobre suas conexões.
Tenho uma queda pelos estudos dos mundos do trabalho, e por isso
talvez essa categoria tenha aparecido por vezes em demasia. Outro ponto
que considero importante, mas que pelo vicio do olhar também pode ter
aparecido de modo repetitivo, trata das dimensões do contato entre os
sujeitos envolvidos nesses mundos, que no caso do Purus, eram compostos
por uma cartela de cores grandemente heterogênea. Gostaria de ter
avançado mais sobre as fronteiras, ou melhor, de ter colocado em questões
de modo mais enfático o relacionamento entre História e Antropologia, pois
nutro por esses terrenos especial predileção. Falta ainda neste relatório um
diagnóstico mais “fechado” sobre as fontes, um arrolamento minucioso de
58
tudo que foi pesquisado. Esse trabalho está sendo feito, mas infelizmente
não foi contemplado aqui.
Tentei na medida do possível cruzar fontes orais e escritas, que em
minha opinião enriquecem de maneira significativa a construção do texto,
atribuindo uma complexidade maior a tessitura da narrativa histórica,
principalmente quando se busca se fazer entender, fugindo dos vazios
“teoréticos” e “enroléticos”.
Gostaria de agradecer as conversas, as bagunças, a cumplicidade, a
atenção, ao carinho, a amizade, as discordâncias, aos debates acalorados,
as experiências compartilhas com todos os membros da Expedição Purus,
Alba, Angélica, Admilton, Ingrid, Mario e Thayná. Sem eles e elas nada teria
tido o mesmo gosto. Sem a turma da Expedição eu não teria pensado a
maior parte das questões elencadas aqui. Mas, os equívocos e fragilidades,
que seguramente fazem parte do corpo deste relatório, são de minha inteira
responsabilidade. Por fim, mas sem nenhum somenos, agradeço ao Gilton
pelo apoio, pelas palavras francas de entusiasmo, e por ter ajudado a levar
adiante a ideia da Expedição.
59
NARRATIVAS DO PURUS
Admilton Freitas das Chagas Filho
INTRODUÇÃO
Seguimos o roteiro da viagem descrevendo no barco as impressões e
relatando as características das cidades do médio Purus. Iniciando o
desembarque da equipe em Tapauá, localizada na entrada do rio Ipixuna, e
em seguida em Canutama, e por fim em Lábrea. Ao todo o período de
viagem durou 42 dias.
Visitamos várias instituições e casas de moradores com intuito de
conversar com os mais variados grupos sociais possíveis, entre cearense e
índios encontramos seringalistas, ex-prefeitos, seringueiros, comerciantes e
muitos outros tipos sociais. Na cidade de Tapauá, há uma constante
presença indígena atuante no movimento e falante da língua, mantendo
laços de proximidade com a aldeia.
Saindo de Tapauá após dois dias de viagem de barco, chegamos a
Canutama situada a margem direita de quem sobe o rio Purus, terra baixa
marcada por constantes alagações descritas pela população como algo
corriqueiro, é parte integrante da identidade da cidade. Quanto aos povos
indígenas parecem não apresentar vínculos tão próximos com as aldeias,
com exceção dos índios Banawa que mantem um constante fluxo entre
cidade/aldeia e aldeia/cidade.
Lábrea é a maior cidade do Médio Purus, é cercada por extensas terras
indígenas demarcadas e com uma área urbana excessivamente povoada por
brancos, estando quase sempre os indígenas de passagem ou residindo,
temporariamente,
em
áreas
menos
valorizadas
e
ocupando
cargos
subalternos de emprego informal. Há expectativa de um avanço social nas
comunidades indígenas por meios de implementações de programas, como
Piraraura e Pedagogia Indígenas, voltado para a formação de professores,
buscando reverter o quadro atual de baixo acesso a educação que se
encontram os povos indígenas.
60
A vida no barco: o avesso do tempo/espaço e a convivência íntima
com o “outro estranho”
A expedição Purus teve inicio no dia 07 de janeiro de 2012, com saída
da cidade de Manaus no barco de recreio Vovô Osvaldo II, traçamos a
principio o panorama de conhecer as pessoas comuns que viajavam para o
Purus no período de férias e de sua ligação com as cidades de Tapauá,
Canutama e Lábrea. Pelas conversas, descobrimos as diversas relações
familiares que envolvem a rota Purus/Manaus, filhos que visitariam os pais,
idosos que moravam há muito tempo em Manaus indo visitar os filhos,
netos, irmãos e amigos, e que trabalharam a vida inteira no Purus na coleta
de borracha, castanha, roçados, extração de madeira, pescando peixe,
tartaruga, peixe boi e jacaré.
A viagem perdurou três dias até a chegada em Tapauá, durante o
percurso atravessamos o Solimões em sua longa extensão bastante
povoada, em suas margens apresentavam comunidades e embarcações
escolares, em comparação ao Purus às comunidades "ribeirinhas" são
distantes umas das outras, e as terras indígenas demarcadas e conhecidas
pela tripulação e passageiros como "terra vermelha", não apresentavam a
“cara” dos povos indígenas, porque uma de suas características é habitar
áreas de terras firme e/ou igarapés distante do rio Purus.
Adentramos o rio Purus no domingo as 17h00 da tarde, localizado a
margem esquerda do Solimões, avistamos alguns poucos flutuantes, sem
dúvida o Purus se mostrou mais estreito e de muitas curvas. O capitão da
embarcação manobrava com destreza cortando o rio em busca de pequenos
atalhos se desviando das praias que concentrava bancos de areias, o que
poderia encalhar ou segundo eles até mesmo virar a embarcação.
Conversando com um passageiro, o Sr. Raimundo Jr. falava da vida
em Manaus e de como estava disposto a recomeçar a vida em Canutama,
tendo ajuda de parentes moradores da cidade, onde trabalharia com vendas
de mercadorias trazidas de Manaus. Após quinze dias ao chegarmos a
Canutama, ele já se encontravainstalado trabalhando na praça com a
venda, entretenimento e também na distribuição de merenda das escolas
públicas na zona rural.
61
Maria, cobradora de ônibus em Manaus levava o pai a Tapauá para
ficar com a irmã, ele tinha sofrido um derrame e trabalhara a vida inteira no
Purus, comentou sobre uma pequena propriedade de castanhal, empolgada
porque a época coincidia com a coleta da castanha e esperava participar de
alguma forma da atividade, e falava que aquele era o momento de
encontrar velhos amigos que participavam todos os anos da coleta. O que
nos deixa perceber que a coleta da castanha vai além dos valores
econômicos, mas também como um espaço de sociabilidade entre as
comunidades.
Dona Luzia uma senhora que vinha de Manaus e que acabara de
perder o filho de 30 anos, a morte segundo ela foi causada por hepatite e
seguidas malárias malcuradas. Essa moradora de Lábrea contou do gosto
pelo terreno no ramal do km 26, e descreveu o roçado destacando em sua
fala a produção da "farinhada". Perguntei sobre o tucumã e ela afirmou que
tinha bastante, e que plantou abacaxi mais "com o tempo o "bicho" (o
abacaxi) fica pequeno a terra não é boa para esse tipo de plantação" ainda
na conversa ela contou que não comercializa a produção, deixando a
entender que era somente para subsistência da familia.
Chegando às cidades ficou mais claro entender a agricultura familiar,
os moradores em geral confirmaram a situação "não valorizam nossa
produção, ninguém quer pagar o preço por causo que só querem dar
migalha, tá todo mundo produzindo as merma coisas, então o produto fica
desvalorizado, nem vale a pena a gente trabalhar pra vender” – um
exemplo claro pode ser visto na produção da farinha, que é basicamente
para estocar na casa das famílias para o consumo anual.
Conheci Jaysse de aproximadamente 25 anos, que voltava de
Manaus, após alguns meses de tratamento e exames feitos em um hospital
particular, por conta da família, estava voltando para casa em busca de
mais recursos financeiros para dar continuidade ao procedimento cirúrgico.
O motivo das consultas seria o sangramento do seu seio esquerdo, após
cinco anos saindo uma secreção que se transformou em sangramento, a
jovem falou "achava que era normal não me preocupava depois as dores
foram aumentando aí busquei um médico na capital indicado por uma
amiga da família".
62
Depois teria de retornar a capital para dar continuidade ao tratamento,
comentou que o médico a informou da probabilidade de passar por uma
cirurgia de retirada do seio. Seu pai é um pequeno produtor rural do
município de Canutama, dono de uma propriedade descrita por ela com
muitas plantações, na qual a venda de hortifrútis garante parte do sustento
da família, juntamente com a criação de animais, agora parte deste dinheiro
arrecadado será destinada ao tratamento, o pai já havia vendido algumas
cabeças de gado para manter a primeira parte do tratamento em Manaus.
Conversei também com Dave, um vendedor representante de duas
grandes empresas, a primeira de medicamentos e a segunda voltada para o
ramo de motores, baterias e equipamentos náuticos. Como filho da terra e
viajante constate conhece muito bem as estradas e rios que conectam o
abastecimento das cidades do médio Purus, segundo ele os produtos
abastecidos provêm de Manaus e Rondônia, passando por Humaitá e
chegando aos municípios através de embarcações, por uma rota terrestre e
de trechos hidroviários.
Estas são as impressões resgatadas nas falas das pessoas que se
deslocavam no barco subindo o Purus, as histórias individuais de pessoas
comuns que aos poucos se cruzavam no cenário e no modo de ser da
"gente" que iriamos encontrar nas cidades. O barco naquele momento era o
primeiro contato com pessoas da região, os conhecedores da realidade local
e que poderiam falar horas e horas da fauna, da flora, do uso e dos
costumes tapauenses, canutamenses e lábreanos.
Tapauá, a cidade de nordestinos que sobem, e de índios que descem
o rio Purus
A chegada em Tapauá
foi às 13hs; avistamos os flutuantes; o
encontro entre o Ipixuna de água preta e o Purus de água barrenta
destacava na paisagem; a entrada do rio Ituxi apresentava o modo de vida
da população branca e indígena, peculiaridades dentro de uma relação
social imbricada e cercada de contextos que envolvem cada cidade: crianças
brincavam e nadavam, adultos compravam gelo, outros trabalhavam na
casa de farinha flutuante da prefeitura; nas entradas dos igarapés os
pescadores estavam em canoas, ou melhor "rabetas" e malhadeiras. O
barco atracou na fábrica de gelo e depois seguiu para o porto flutuante,
63
onde a equipe teve de se dividir pela primeira vez. Ficamos em Tapauá um
grupo de quatro pessoas, Admilton, Alexandre, Angélica e Mario, enquanto
outra parte da equipe seguiu viagem para Canutama: Alba, Ingrid e Thayná
indo estudar o circuito da produção familiar da farinha.
Ao atracarmos no porto flutuante encontramos o senhor Pedro
“frentista”, que nos levou até o hotel, nos contou de sua farinhada, da
quantidade de pessoas que trabalham com ele em sua propriedade, e que
no outro dia subiria para o local procurando saber como estava sua
produção, contou também que estava envolvido na coleta da castanha. Os
dois eventos ocorrem ao mesmo tempo, a farinhada para muitos vai até a
metade do mês de fevereiro, enquanto a coleta da castanha dura um pouco
além, estendendo-se ao mês de março. Outro negociante forte nos negócios
na coleta da castanha é conhecido como Louro, é um forte negociante de
castanha do Abufari uma reserva de proteção permanente, onde está
proibida a exploração dos recursos naturais, parece haver uma continua
atividade econômica da castanha.
O circuito envolve inúmeras famílias, algumas dezenas de ribeirinhos e
indígenas identificados como parentes distantes, primos e compadres,
assim o sistema de produção familiar atende a demanda de escala
industrial, a coleta se faz diariamente e algumas famílias viajam para terras
distantes de suas residências,montando acampamento e fixando-se no
castanhal por todos os meses de coleta, retornando após o termino da
temporada de extração da castanha. A relação dono do castanhal e
coletores se mistura aos valores da amizade, em ambos os discursos patrão
e empregado remetem sua função como a parte essencial para o
andamento do negócio, e que se não o fizesse o outro não daria conta do
trabalho. Na realidade o negocio da castanha monta toda uma engrenagem
dos agentes envolvidos, e há uma dependência do conjunto envolvido para
dar conta da cadeia extrativista.
Juntam-se coletores, donos de propriedades e atravessadores –
responsáveis pela venda da castanha no mercado – apontam a parte do seu
trabalho como a mais importante para o funcionamento do negócio. Todo o
sistema integra uma parte importante do circuito da coleta, compra e
venda. As relações sociais e familiares são regidas pelo grau de parentesco
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entre consanguíneos, pais e filhos e não consanguíneos cunhados, sogros,
esposos e outros laços que determinam a castanha para além da mera
atividade econômica.
Em Tapauá ficou definido desenvolver a primeira parte da pesquisa no
qual a proposta de campo era realizar o levantamento dos documentos
oficiais resguardados em arquivos públicos dos cartórios, da igreja o CIMI –
Conselho Indigenista Missionário, da prefeitura e secretarias de educação e
saúde, em um segundo momento, com mesmo valor e importância. Ao
conversar com os moradores antigos que vivenciaram os acontecimentos
históricos, são capazes de dar respostas abertas as lacunas que os
documentos históricos não dão conta de esclarecer, é importante ressaltar,
que o encontro destas fontes possibilitará correlacionar à reconstrução
histórica dos acontecimentos, os pontos entre documentos escritos e
memorias se complementam e elucidam a história das cidades do médio
Purus.
Na prelazia da Igreja católica da cidade de Tapauá, conseguimos com
frei Miguel alguns livros antigos e conhecemos o seminarista Robson e o
radialista Marcos, no mesmo dia conhecemos Raimundo Nival um pároco
que presta serviço à igreja. Essas pessoas nos encaminharam a conversar
com muitos moradores e o próprio Nival nos concedeu uma entrevista
contando sua vida de trabalho, também nos levou para conversar com o
padrasto, a mãe e a avó, moradores que viveram grande parte de sua vida
ou nasceram na região do Purus.
A conversa não registrada com Frei Miguel narrou a história dos Jumas
e como eles foram massacrados pela população Tapauense incitada por um
grande proprietário de terras e político insatisfeito com o ataque dos jumas
a seus empregados que invadiam constantemente a terra indígena. A
população “encolerizada” por Daniel Albuquerque o promotor da cidade e
prefeito, organizou um ataque armado com espingardas, matando homens,
mulheres e crianças, sobrevivendo apenas dois velhos e duas crianças,
deixando reprodução humana e sociocultural do povo Juma comprometida.
Ana Clara responsável pelo cartório civil contou que o processo de
autonomia da cidade de Tapauá que se tornou Comarca a partir de 1970,
antes disso a comarca oficial era Canutama, a instalação do cartório só
65
consta no CNJ - Conselho Nacional de Justiça no ano de 1988. Portanto,
poucos documentos estariam arquivados naquele cartório, mas informou
que o grosso mesmo dos documentos estariam no arquivo público de
Canutama. Fotografamos somente dois livros um de 1909 e outro de
1970/9 registro de casamento e imóveis.
Marcos e Raimundo Nival nos conduziram a casa de Feitosa, de
Raimundo Januário, de Regina Belmiro e de Normando padrasto de
Raimundo Nival todos contaram muitas histórias do povo nordestino que
migraram para viver no Purus. Os pais e a avós de Nival passaram o
conhecimento do trabalho na região, a retirada de madeira, o corte de
seringa, o caucho, a castanha e muitas outras atividades produtivas foram
ensinadas e herdadas pela técnica familiar.
Os nordestinos falam: as trajetórias de vida, andanças e anseios
Raimundo Feitosa veio do Ceará com amigos em busca de trabalho, no
decorrer da viagem poucos ficaram. Após dias longe de casa, ficava cada
vez mais difícil e faltava emprego. Por intermédio de alguém conseguiu
emprego na polícia militar do Amazonas o que garantiu a residência
definitiva. Com o tempo foi transferido para o “interior” do Amazonas,
município de Boca do Acre, anos depois chegou a Tapauá, onde constituiu
família. A história desse cearense é como de muitas outras pessoas
representante de um ciclo social de nordestinos na Amazônia, reproduzindo
um sincretismo de festas, trabalhos, rezas, remédios e crenças que permeia
o Médio Purus.
Um andarilho nascido em Fortaleza, conta as andanças na época da
ditadura militar e descreve o pai como um comunista contra o governo,
morador da rua Parque Junior Bela Vista, serviu o exército em Itapipoca e
quando deu baixa foi morar no Rio de Janeiro, trabalhou na Petrobras
1972/73/74
“aí deu saudade dos coroas – os pais” decidiu regressar ao
Ceará, trabalhou em uma empresa de calculadoras como vendedor.Certo
dia juntando-se com três colegas na beira do bar, decidiram viajar para o
Amazonas em busca de emprego, foram de ônibus até Belém, residindo na
rodoviária até o dia de pegar o barco de saída a Manaus.
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Após três dias de viagem atracaram às duas horas da madrugada na
escadaria dos remédios e subiram o barranco que seguia diretamente em
direção à igreja. A experiência de barco foi diferente, chegando à cidade no
ano de 1977, eles ouviram falar do bairro de Educandos, o local dos
cearenses, conheceram um conterrâneo e foram vender redes nos bairros e
pelo centro, o dinheiro mal dava para se alimentar comendo somente pão e
mortadela, depois de um tempo já sozinho se mudou para o bairro da raiz.
A primeira oportunidade de emprego surgiu em uma seleção na empresa
Andrade Gutierrez na área de datilografia, a vaga era para trabalhar na
Arábia e ganhar em dólar, mas não conseguiu e saiu pensando “o que é que
eu vou fazer” saiu sem direção, próximo à bola da Suframa a pé, triste com
as dificuldades de desemprego avistou na Avenida Tefé um caminhão com a
placa de são Paulo decidiu conversar com o motorista e perguntou se
poderia ir trabalhar como ajudante acertando a viagem para aquela
semana.
Um vizinho próximo da casa recebeu a informação de que a polícia
estaria recrutando soldados, Raimundo foi ao comando geral atrás de
informações e para grata surpresa falou com o comandante que estava
procurando emprego. Em uma curta conversa recebeu a noticia “você já
está na polícia, amanhã você compareça em Petrópolis no 1º batalhão”,
chegando lá, chamaram Raimundo Feitosa, “será que eu sou da polícia
mesmo, não porque a gente não acredita” entregaram a farda “aí eu já
fiquei no quartel, casa, comida roupa lavada eu fiquei logo no quartel,
depois de uma semana voltei ao quarto para buscar minhas coisas, passou
quatro meses quando me formei fui lotado no aeroporto, em quase um ano
de trabalho veio o dia D”. Multou um tenente do exército às dez horas,
multou um capitão da aeronáutica e a tarde o carro do advogado Simonete,
à noite o carro do coronel da Polícia Militar, o comandante geral.
Devido o acontecimento no dia seguinte o major o transferiu para a
Boca do Acre, no mesmo dia, pegou o fuzil e de ônibus pela BR 319,
seguindo até Porto Velho, Rio Branco e Boca do Acre. Feitosa disse que os
conflitos eram resolvidos a bala e que os estrangeiros eram bons de tiro, na
cidade havia muitos índios Apurinã em busca de bebida alcoólica, mais que
não eram de confusão, segundo ele os outros índios embriagados ficavam
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brabos e violentos pelo efeito da cachaça. Descontente com delegado que
sempre dobrava seu turno de serviço retornou a Manaus se apresentando
no comando geral.
Informado que tinha vaga no município de Tapauá e sabendo que o
prefeito ajudava com casa e rancho, ligou para Daniel Albuquerque que
disponibilizou a vaga de um avião saindo no mesmo dia as 12h00 e
chegando a Tapauá as 14h00. A pista relembra ele, era de barro batido no
ano de 1979 e no dia dois de março Feitosa foi lotado em Tapauá. Conta
que do aeroporto para o triangulo próximo de sua casa era um
caminhozinho, e do triangulo da praça até a delegacia havia uma estrada de
pedras, e que a energia era apagada as 23h00 e a cidade ficava em
silencio.
Algum tempo depois conheceu uma moça na missa diz “acertamos
tudo e com oito meses de namoro a pedi em casamento, o pai consentiu
casei com o paletó emprestado para dar sorte, meti logo um fiado, depois
que casa o cara sai logo metendo fiado, aí essa casa apareceu à venda por
140,00 cruzeiros aí comecei a vida”. Uma transferência repentina o ano de
1980 para Santa Izabel do Rio Negro, onde passou apenas um mês, o
motivo “escute o que aconteceu pra eu saí de lá um homem bêbado entrou
na igreja e rasgou a roupa da irmã e eu prendi ele.
“Passei um rádio pra Manaus comunicando o ocorrido, no dia seguinte
chegou o comunicado pra eu soltar o cara, eu e o juiz pegamo o barco e
fumo pra Manaus lá chagando o capitão me lotou na companhia de choque,
trabalhei um bom tempo, aí à mulher chegou com o menino e fui pegar ela
no centro ela ficou um tempo comigo e depois foi embora, falei com o
comandante Câmara ele deu minha transferência para Tapauá”.
“Quando cheguei aqui em 1979 não tinha índio, não tinha sim, vieram
de Pauini, uns quatro ou cinco, não trabalhavam não, até hoje eles andam
por aqui, vendendo as coisas da natureza, eles não tiveram o costume de
plantar, tiram as coisas da natureza. Aqui tem Apurinã, o Paumari só tem
no cuniuá, aqui não tem Paumari”. Em contra partida ao reconhecimento de
Feitosa a cidade de Tapauá está repleta de famílias paumari ao descreve o
modo de ser do índio como povo coletores dependentes do meio natural
fornecedor por excelência dos recursos indígenas.
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Feitosa conta que um índio matou o rapaz que vendia as coisas –
regatão – porque se negou a vender cachaça ao índio, isso ocorreu numa
festa da comunidade do jacaré e diz indignando “mais não ficou preso não,
agora ele mora aí pra dentro desse rio Ipixuna de água preta com uma
família grande”. Feitosa detém informação do período que trabalhou na
secretaria de educação e comenta sobre a zona rural e da relação da
merenda escolar, conhece muito bem a quantidade de índios, relatando
mais ou menos umas 22 “tribos” segundo ele “nunca vi um índio vender
uma fruta, abacaxi, banana, uma plantação que você cultiva, ele só vende o
que dá na natureza”. A sua fala expõe a ideia de que o índio ao terminar o
ensino fundamental deixa de ser índio.
Esta fala remonta à capacidade de adaptação e de movimento que
fizeram dos nordestinos um povo bem sucedido na Amazônia. A trajetória
deles firma uma identidade social inacabada, sempre em processo de
reconstrução inserindo-se ao sentido cultural amazônico. Feitosa expressa o
pensamento coletivo carregado dos valores de sua terra e arraigado aos
costumes dos povos indígenas tornando-se um perfeito caboclo conhecedor
da floresta e do rio Purus.
O discurso incomum da população delineia quem pode ser e quem
deixou de ser índio a partir dos valores do branco, o indígena ao partilhar
do espaço urbano e usufruir dos mesmos direitos são tachados assim “rapaz
não são índio não, esse povo quer é o dinheiro do governo” citando os
povos indígenas como cheios de regalias e em outro instante a mesma
pessoa diz “esses índios são mermo é um bando de preguiçoso não trabalha
só sabe pedir, não plantam nada”.
As afirmativas levantadas acima refletem uma sociedade permeada
por valores do branco e a tradição indígena imbricadas no cotidiano e
estabelecem regras de ralação social. A entrevista possibilitou entender
como o indígena é descrito na fala do branco, uma parte nega à existência
contestando os direitos do índio e em outra fala o reconhece pelo modo de
vida tradicional e sua característica coletora da natureza.
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Raimundo Nival descendente de nordestinos e ‘filho’ do Purus
Nasceu na comunidade Linda Vista, o pai faleceu e o avô o pegou para
criar, começou a jornada de trabalho aos 07 anos “eu me lembro naquela
época é muito triste a convivência pra hoje tá muito mais melhor um dia o
vô me chamou e disse rapaz agora você vai trabalhar, aí ele colocou uma
estrada pra mim de cinquenta tigela e lá eu aprendi muito com ele porque
eu não conhecia quase nada”. Saindo de casa as sete, às vezes as cinco,
seis da manhã e voltando a casa por volta de (11h00) onze horas o horário
de fechamento do corte, retornando as duas horas no mesmo trilho para
fazer a coleta “cortava seringueira, pra que pudesse tirar o leite dali pra
gente se sustentar”.
Raimundo Nival “essa foi uma experiência pra mim que considero
muito importante, o corte eu via, ele me ensinava e eu via como nós fumo
criado desde pequeno, se chamava parelha de estrada aí a gente rapava na
árvore aquele pedaço e daí ele me deu uma faca enquanto eu fui ajudando
e por ali pegando experiência muito rápido, e aprendia com ele aí depois
nós usava, quando chegava difuma que era borracha enrolada no pau, não
sei se vocês chegaram a ver, nu sei se vocês já deve ter conseguido já,
chamava borracha, enrolava num pau e lá no pau a gente ia rodando
jogando o leite em cima e em baixo no buiao, onde nós buntava caroço de
urucuri que era fumaça, aquela fumaça, o leite ia secando e você rodando o
pau e jogando leite em cima rodando até acabar o leite, era desse tamanho
assim mais ou menos quase da grossura de um tambor com uns oitenta
quilo, cem quilo e dalí quando o patrão passava na época era o Raimundo
marques e Zé Marques
“Lembro benzinho tinha nove anos dez anos a gente vendia pra que
comprasse o alimento, fartura tinha muito, vamo supor, peixe, o quelônio
que é o bicho de casco que nós chamamos aqui, pra nós tinha muito, isso ai
ninguém dava conta nas praia, cê podia ir a noite, principalmente, a noite
que formava tempo cê olhava sim chega ficava pretinho camarada, assim
incima tudo desovando qualquer criança chegava via aquilo não fazia nem
conta, isso pra mim foi uma experiência que hoje tenho o que 36 anos pra
idade que eu tenho pra mim nu vô apagar nunca da memoria... essa pra
mim foi a maior experiência de vida, sim ver como era aquilo ali porque no
70
nosso caso nós trabalhava pro nosso pai que era meu pai de criação tudo
que nós fazia era uma conta só, nós era oito numa casa
e era ele que
administrava tudo, nós muito pobre as vez ele dizia olha vamos trabalhar o
mês todo”.
O avô combinava no mês de outubro próximo ao final do ano período
que o patrão passava e compraria uma muda roupa para cada um deles
“aquilo pra nós era uma alegria aqueles calçãozinho, nossa ropia que nós
tinha era duas três mudas de ropa só pra sair pras outras comunidades
vizinhas porque nós era pobre num tinha, nosso rancho era ali contado
mesmo, e ele sempre contava meu filho isso aqui foi que eu aprendi com
meu pai e vocês cuido muito disso aqui, porque um dia isso aqui vai sumir
vai se acabar e eu achava assim como que vai se acabar, e ele dizia vai se
acabar vai diminuir isso ai foi uma experiência pra mim, não apagou da
memoria não.
Nival lembra a época que morou na Linda vista,há três horas do local
chamado ponta do camaleão, “onde até hoje se eu for andar na estrada eu
sei onde é, conheço as estradas, depois da ponta do camaleão fui pra
insiada bem próxima daqui uma hora e meia essas foi as três localidade que
a gente ficou bem próxima aqui do município e nós só vivia aqui, quando
era final de mês nós via pra cá passava dois três dias na época a cidade era
só mato, uma vez eu me perdi aqui hoje eu falando isso pro meu filho ele
pensa que é brincadeira, eu me perdi porque eu lembro que era só uns
caminhozinho, isso aqui era tudo palha mais eu tinha uma memoria –
lembranças – isso pra mim é uma experiência, que do que eu vejo hoje não
apaga nunca da memoria
Raimundo conta que na sua época não tinha muito contato com os
povos indígenas, a partir de então narra uma série de episódios de
encontros e convivência com índios “nosso contato era muito pouco com
indígena passava aquelas canoas que nós morava no camaleão e tinha uma
localidade pro tauamirim e foi justamente aqui em Tapauá, teve alguns
conflito e muitos deles foram embora mais ficaram alguns” é notório os
indígenas residentes na cidade, construíram família e das seguintes
divergências entre índios e brancos relatados nas histórias do avô “...não
71
gostava de abrir muito pra gente porque naquela tempo era muito mais
difícil eles tinham medo né...”
Meu avô comentava com outros da mesma idade dele, mas pra nós
crianças não comentavam, ele não gostava assim de comentar muito não,
ele era muito assim cismado, até mesmo ele falava que tinha tido esse
conflito, mas ele não explicava qual era as pessoas, porque ele tinha medo
naquela época eles tinham medo... depois de grande não, não comentava
muito não, sabemos que teve aqui em Tapauá na história, mais ele não
comentava muito assim não...”
Enquanto residia no lago camaleão relembra as passagens dos índios
na direção do tauamirim, sempre trafegando o rio passavam remando,
“durmiam lá em casa as vez, jantavam de noite” quase sempre batiam na
porta da casa de Raimundo querendo um agasalho esperando o dia
amanhecer, em sua fala Raimundo expressa o sentimento de acolhimento
para com os viajantes moradores de outras comunidades, o vizinho que
necessitasse de abrigo e alimentação, ou parando para descanso pela parte
da noite ele diz “normal qualquer um, isso ai pra nós não tinha problema
não”.
Um costume típico amazônico abrigar os viajantes no caso do índio
cansados viajando a “remo” às vezes cinco, seis, oito e dez pessoas, em
uma canoa indígena, “pediam agasalho do meu avô, posso ficar aqui, não
tem problema já jantaram, não mandava minha vó servir comida, ainda
hoje tá viva, meu avô morreu, ela mora lá no açaí, ela tem umas memória
boa porque eles vieram de cima da banda de cima, o jacaré fica aqui pra
cima do Purus a gente se baseia muito por base da hora fica uma faixa três
hora, três hora e quarenta, a boca do jacaré num quarenta” – voadeira de
motor quarenta”.
Raimundo recorda dos tempos de infância, principalmente, a fartura. O
verão trabalhando na seringa, no inverno com madeira, a relação com o
patrão pelo nome de o Edilson Freitas dono de embarcação fazia muitos
negócios por todo o rio Purus, chegando a comunidades ribeirinhas,
negociando a troca de borracha e pegava toda a produção da família de
Raimundo por meio do aviamento de produtos e seguindo viagem,
72
atualmente o barco se encontra naufragado próximo à fábrica de gelo a
beira da cidade.
O comércio girava em torno da borracha e madeira diz Raimundo “a
gente fazia aquelas jangadas grande muito grande no meio do rio mais a
borracha era muito assim, o mermo que ser hoje um salário numa capital
hoje, quem tinha seringal porque os que nu cortavam eles arrendavam por
muito dinheiro era o mermo que ter uma renda normal, se você plantasse
uma vazante qualquer coisa, um roçado pra comer tirasse um leite tudo
você tinha que pagar renda... que lá tinha o dono do lugar mermo que o
camaleão, era dele do Henrique pra entrar lá, e o cara dissesse eu vou fazer
uma casa e morar aqui, não tinha que primeiro falar com ele se ele
autorizasse ainda tinha que pagar renda, essa renda era na época, a gente
produzia numa base por dia doze frascos de leite cada, um litro só prum
frasco e dava a parte do patrão”.
A narrativa expõe a história de vida de um seringueiro que explica
todo o processo de elaboração da borracha desde o corte e defumação do
látex até o rolo da borracha pronta. As trocas com os patrões às formas de
contratos de arrendamento de terra e o funcionamento da rede de
aviamento se efetivaram entre patrões e trabalhadores.
Na sua fala
aparecem os povos indígenas descidos de terras altas ocupando extensas
áreas em torno de Tapauá chocando-se com interesses dos grandes
proprietários de terras, também se pode observar que o convívio entre
índios e o cearense firmou novos pactos sociais.
Família paumari e vivência entre dois mundos: brancos/índios cidade/aldeia
Nascido na aldeia manissuã o Francisco apelidado de bida e na língua
paumari banú que significa peixe piranha, afirma que as festas prologavam
os dias de vida do índio. Descreve sua infância já em contato com os
brancos e trabalhando na coleta da castanha, da seringa, cortando madeira,
tirando óleos de copaíba, itauba, viróla, marupá e louro. Conta Francisco na
mata utilizava a seringa para fazer boia bolando madeira da terra firme até
o rio percorrendo grandes distâncias. Registra que muitos seringais eram
dos índios paumari porque estavam na terra deles enfatizando sobre a
mudança ocorrida desde a chegada do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio
73
Ambiente
e
dos
Recursos
Naturais, “não
se
pode cortar madeira”
atualmente é o ICMBIO – instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade que instituíram as reservas proibindo a retirada da madeira.
O Francisco explica “o índio não trabalha nessas coisas, somente, se
for incentivado pelo de fora – o trabalho do índio é pesca e o roçado, mas
quando chegava o patrão incentivando, o serviço dava conta de a gente
sobreviver retirando um tantinho de dinheiro” “nós trabalha na agricultura
aí trás para a cidade para vender e comprar as coisas necessárias para a
aldeia, o rancho e o combustou”. Estas falas relatam a condição do índio, o
modo de vida subsistente a natureza e de como se deu a modificação a
partir da entrada do branco com o extrativismo lucrativo.
Francisco conta “na aldeia o índio vivia sua tradição, festa, feitiço –
arabani – o pajé era quem curava e fazia a festa – ele se lembra do tio
“Nico” como um grande pajé. A época de festa os índios passavam dias na
floresta tirando o punã – uma lapa de pau, rapava e queimava, depois de
alguns dias estava pronto o rapé, partiam para a caçada e pescavam, este
era, somente, o preparatório da festa que durava entre dois a quatro dias e
noites, chamada de – xiguiné – hoje comemorada nas aldeias juntamente
as festas dos santos católicos.
Naqueles dias de festas não se coletava castanha Francisco paumari
compara a festa como o festejo dos santos católicos atualmente, na
comemoração acontecia “curação”, o pajé paumari chupava as pessoas
fazendo cura, e distribuía comida a cada criança, após a alimentação elas
estariam liberadas para fazer as refeições. O rito funcionava como modo de
proteção, os avós diziam que era a proteção para que o espirito da criança
não fosse levado pelo animal.
Segundo Francisco na mesma época da borracha os índios praticavam
suas tradições, quando a mulher se formava passando a ser moça, segue,
na “aldeia do Palhal” o roteiro é assim, logo que se forma a moça diz à mãe
que avisa o pai e o pai se reporta ao pajé, o responsável por colocar a
menina na esteira a qual fica por um ano, onde ninguém pode vê-la, ao sair
do curral é surrada sendo inserida novamente a sociedade adulta das
mulheres podendo assumir compromisso de casamento.
74
O Paumari Francisco compara o modo de fazer farinha na época dos
pais diferente dos dias de hoje, os antigos “machucavam” na mão a farinha
que era levada ao fogo para cozimento. Antes do contato não se torrava a
farinha, na gíria – língua indígena se chamava damadamarí – cozida no fogo
com panela de barro e enrolada na folha ficava na forma de um pão,
Francisco conta também que hoje em dia as crianças gostam da farrinha
torrada não acostumam com modo antigo. Parte essencial da alimentação
os índios comem os mais variados tipos de alimento a farinha, nos vinhos
do açaí, do taperebá, com pupunha, melancia, tucumã e muitos outros
pratos do dia-dia.
Maria Vania fala da descriminação e de como isso inibiu o uso da
língua e das tradições na cidade e de como foi difícil no início conviver com
os brancos na escola, as crianças não queriam falar mais a língua porque as
crianças da cidade “riam” delas. Apesar de todos os preconceitos eles
ficaram e conquistaram espaço, afirma ela que os índios têm o direito de
estar na cidade por atendimento à saúde, acesso a escola, e envolvidos no
movimento indígena buscando cobrar do governo os direitos dos parentes
que vivem na aldeia. Os paumari Roberto e Maria Vania são lideranças e
participam das reuniões representando os paumari o que segundo eles só é
possível residindo na cidade “porque é aqui que as coisas acontecem”.
Roberto “nós estamos incentivado ao abandono de nossa cultura, na
época antiga quando entraram os brancos” – frentes extrativistas – foram,
primeiramente, negociando e a barganha convencia os índios a consumir
roupas e outros gêneros trazidos pelos patrões que forçavam as pessoas a
produzir para vender, hoje o problema da entrada de pessoas nas terras
indígenas são constates movidos pela retirada de madeira e outros produtos
nativos que atraem invasores as terras indígenas. Ameaçados e tendo de
fiscalizar e proteger a terra porque o contingente de fiscalização e
insuficiente para cobrir os extensos territórios.
Roberto diz “tem branco que tem consciência e outros que invadem
dando morte”, ele conta um caso da reserva a qual o branco tirou madeira
sem a permissão dos índios e eles prenderam a madeira. Fala Roberto “na
época dos nossos pais o feitiço era uma guerra, por exemplo, se o branco –
patrão – fosse buscar algum objeto por falta de pagamento, causaria
75
revolta e o índio se via obrigado a devolver, índio integraria não tendo como
reagir, agiria com o feitiço colocando um bicho – no estomago do inimigo –
um tracajá como muitos causos que aconteceram em nossa comunidade”.
Assim se mostram dois planos a esfera das armas que os índios descrevem
como insuficiente para resistir o conflito com os brancos e a guerra de
feitiço que os índios utilizavam bastante e que trazia um equilíbrio no
confronto.
Os conflitos estão vivos na memoria, a pajelança e o feitiço
mostraram-se
eficazes,
arma
bastante
utilizada
contra
os
brancos,
considerada uma forte proteção ou em muitos casos a única, a guerra de
feitiço realizava-se no mundo espiritual e materializava-se na relação com o
patrão explorador os índios sempre se utilizaram do feitiço na vida “interétnica” ou praticado internamente pelas famílias na disputa do poder da
autoridade de cacique na aldeia. O pajé exerce a função de conduzir a
vingança, é o ser dotado de capacidade, ou melhor, preparado para
transitar entre os dois mundos, o espiritual e o material. Roberto conta que
os pajés estão divididos em duas categorias, aqueles que servem para curar
e outros para maltratar as pessoas.
Maraza cacique mamori relembra o “ajuntamento” de seu povo aos
paumari
Maraza lembra “antigamente todos respeitava o tuxaua, quando ele
falava “pega aquele cara ali e mata, os índios pegavam e matavam, quando
agente era brabo mermo os brancos não podia morar na aldeia”. Maraza
retoma a questão da discriminação que sofreram os índios, “agora há
mistura de branco com índio” o que de certa forma possibilitou a inserção
do índio a sociedade branca, ele explica como se deu o casamento do pai
branco e a mãe índia mamori, e do fato do pai dela ser paumari e sua avó
mamori.
Segundo o cacique a relação de casamento com o branco e com outras
etnias aconteceu devido aos contantes conflitos, onde os perdedores tinham
as mulheres e filhos tomados e criados pelos rivais, quase sempre as
mortes
eram
tão
grandes
que
alguns
povos
foram
considerados
exterminados. Novas formas de casamentos convencionadas na aldeia de
Maraza que hoje carrega os traços destes acontecimentos: as etnias
76
mamori e Deni descendentes de paumari constam em dados da FUNAI –
Fundação Nacional de Apoio ao Índio e em outros registros bibliográficos os
mamori aparecem extintos.
A descida de sua família do alto cuniua se deu para o igarapé do
mamori chegando ao moco. O cacique Maraza faz uma pequena correlação
de parentesco começando pelo barrari, tio de sua mãe e irmão da sua avó e
diz que os primos são camadeni. Maraza conta a história da reconfiguração
do povo mamori juntando-se aos paumari; o casamento da avó se deu no
momento de guerra contra os catukina ela já estava grávida. O motivo da
barbárie segundo o cacique foi incentivado pelos brancos que invadiam a
terra dos mamori e juntos com os catukina atacavam com armas de fogo os
mamori.
Na época o tuxaua era o marrecão morto em conflito tendo os irmãos
Barrai, Macacari, Titicurari, Catarruri. Maraza conhece alguns primos
descendentes destes tios avôs. E conta que hoje em dia a praia ficou
conhecida como praia do marrecão em homenagem a morte do tuxaua que
morreu defendendo o povo mamori dos Katukina, e enfatiza que os mamori
tiveram perda maior tendo as mulheres de viver casadas com os Katukina
ou fugindo para casar com outros povos indígenas ou brancos, no caso da
avó, casada com paumari.
Fala do cacique “os katukina tomaram a finada vovó, a batará e a
abariranã a duas aceitaram”, mas vó de Maraza revoltada porque os
katukina mataram o marido fugiu e se juntou com os paumari. Maraza diz
que os mamori estão espalhados e misturados com os paumari, existindo
alguns velhos mamori legítimos e conta do aprisionamento de índios pelos
brancos “pego a dente de cachorro”, após o ataque catukina as crianças
mamori fugiam para o mato e se escondiam na toca do pau os jovens índios
Curari, nurru e outro maior que não se “adomava” com os brancos fugindo,
constantemente, um dia em uma fuga atravessando o lago a nado o índio
Katukina o perseguiu de canoa alcançando-o no meio do lago, o arpoo.
Maraza fazendo referência de uma conversa com um primo remonta a
história dos pais e avôs dizendo que o nome de seu povo é camadeni e
segundo o sogro makiri chama-se abadeni, mamori significa matrinxã e foi
um apelido dado pelas outras etnias. O relato revela diante as guerras
77
construíram-se
novas
formas
de
casamentos
e
parentesco,
grupos
diferentes casaram-se pela estratégia de sobrevivência. Maraza explica
“fumo atacado duas vez uma lá pra cima e outra no moco o pessoal correro
e foro espatifado”, seguiram e se espalharam ninguém sabe, mas se for
saber a história, os camadeni estão no mamoriá e outros se encontram no
xeruã e o Valdeci falou, se tua mãe for subir mermo, nós samo parente”. As
palavras de Maraza ditam um termo de auto-afirmação e deixa registrada:
“essa
tribo
existe
mermo
o
povo
mamori”.
É
preciso
um
estudo
aprofundado para reconhecer as alianças e os níveis de parentescos que
evolveram estes grupos indígenas no decorrer de duas a três gerações
anteriores.
Canutama a cidade de Manoel Urbano, Karipuna Maué e coronel
Botinelly
A história destes três personagens ocupa a cidade, os registros estão
presentes na documentação e na memoria dos moradores que contam
diversos “causos” dos desbravadores da terra na época dos coronéis de
barrancos. Canutama era um ponto estratégico de parada após dias de
viagem subindo o Purus e também dotada de extensos seringais e
castanhais o que valorizava ainda mais a localidade.
Segundo os moradores seu fundador Manuel Urbano era dono da terra
viajante do Purus subia e descia o rio com os filhos deixando trabalhadores
espalhados na região para a coleta da seringa. Contemporâneo à chegada
de Manuel Urbano, o índio Karipuna Maués e Botinelly arrendaram terra e
construíram a base de seus negócios residindo, definitivamente, em
Canutama, enquanto Manuel Urbano esteve de passagem, como posseiro de
outras localidades do baixo ao alto Purus não tinha uma parada fixa.
A primeira impressão na cidade é de que não havia tantos indígenas
quanto em Tapauá, parece que os índios não detinham vínculos com os
parentes da aldeia. Eles contam que estavam amuito tempo sem manter
contato com a aldeia, a maior parte dos índios idosos relata que nasceram e
viveram na aldeia, saindo conforme as necessidades do trabalho e convívio
com os patrões, enquanto os adultos entre 30 e 40 anos nascidos na cidade
não conviveram com os parentes e contam que perderam vínculos com os
“parentes dos pais” os índios aldeados.
78
Fotografamos diversos documentos datados de (1900 a 1978) e
encontramos algumas relíquias da segunda metade do século XIX, de (1870
e/ou 1890), os documentos de casamento servem de fonte para o
entendimento das relações de parentesco que se efetivavam por interesses
sociais e podem demonstrar as relações predominantes, por exemplo,
casamentos entre índios, brancos e negros, ou quais famílias casavam-se
entre si por enlaces políticos e econômicos.
O registro de batismo abre a possibilidade de revelar apadrinhamento
que se misturava aos negócios como forma de dominação e de amenizar os
ânimos conflituosos entre patrão e trabalhadores. Essa prática envolveu os
donos de embarcação, os proprietário terra de seringa e castanha, os
negociantes de madeiras, todos aderiram o “compadrio” angariando uma
rede de laços familiares afetivos que definia em muitos pontos a mão de
obra disponível por fidelidade e gratidão de parentesco, assim o trabalho
poderia ser realizado com êxito num universo escasso de trabalhadores.
O registro de imóveis apresenta os donos das propriedades na área
urbana e rural da cidade. Este documento dá um panorama geral da
população e as atividades econômicas mais realizadas do período, a
agricultura familiar, a pesca, o comércio, a hotelaria, os detentores do
grande latifúndio. A leitura destes livros possibilita a compreensão de como
se concentrava a população a partir das trocas, dos aviamentos e remonta
as dependências externas da cidade aos produtos de fora.
Karipuna Maué apresenta uma descendência indígena reconhecida pela
nova cartografia social no processo de reconhecimento dos remanescentes
indígenas do médio Purus, os registros públicos apontam cargos ocupados
pelos Karipuna na prefeitura da cidade, atualmente encontra-se apenas
uma família residente da área urbana e de parentesco com cearenses.
Enquanto Manuel Urbano da Encarnação está presente na memoria dos
moradores como o patrono da cidade, não consta registro do fundador
Manuel Urbano e de seus filhos na documentação do arquivo público da
cidade já que grande parte de sua vida esteve ativa nos meados do século
XIX a partir da década de (40).
O coronel Botinelly encontra-se registrado em muitos documentos,
grande proprietário de seringais adjacentes à cidade, dono de imóveis na
79
área urbana, muitos moradores conhecem-no como homem trabalhador
e/ou violento, pai de muitos filhos requerentes da partilha aparecem no
livro de registro solicitando a parte na herança. O coronel foi o mais
presente na documentação histórica, desempenhando diversos cargos
públicos, por um longo período fez parte da vida política de Canutama.
Canutama detêm um cervo documental do cartório civil e judiciário,
assim como os arquivos públicos municipais da saúde e documentação
pessoal, um seringueiro aposentado como “soldado da borracha” é portador
da carteira de trabalho oficial distribuída pelo governo federal entre os anos
de (1940). As fotografias são acervos que documentam a história visual da
cidade de Canutama sobre guarda de particulares.
A
equipe
epidemiológicos
estava
responsável
registrados
pela
por
coletar
secretaria
de
os
possíveis
saúde
do
dados
município,
procurando viabilizar o acesso aos pesquisadores da FIOCRUZ para o estudo
de endemias no médio Purus. Os casos mais comuns apresentados pela
população
segundo
os
registros
são
a
tuberculose,
a
hepatite,
a
leishmaniose e acidentes com animais peçonhentos.
A tabela demonstrativa da secretaria de saúde remete uma escala de
trabalhadores e zonas, onde mais acontecem os casos – zona rural dispõe o
maior índice de incidentes e pode revelar que tipos de trabalhadores são
mais infectados ou os ataques mais recorrentes. Os casos de abandono são
constantes devido às vitimas serem trabalhadores de áreas rurais distantes,
tendo de tomar durante trinta dias o medicamento no posto de atendimento
na cidade.
Os pacientes abandonam o tratamento devido ao trabalho diário na
roça ou a pesca, alegando que não podem deixar de alimentar a família
ficando tanto tempo na cidade. No caso o doente do sexo masculino ou
feminino exerce uma função fundamental no manejo “alimentar de
subsistência” da família que necessita de cada braço para manter a comida
em casa. Após os constantes abandonos o doente retorna ao tratamento
devido ao agravamento da doença.
80
Lista de documentos do arquivo público de Canutama
1909 – livro de registro de decretos, resoluções e mensagens do
superintendente na ocasião e por um longo período da história de
Canutama Theodoro dos Reis Botinelly elaborador do regulamento de
serviço do mercado público, do arrendamento de seringal, outras obras
públicas e construções vigentes entre os anos de 1904/07 a 1910, pelos
registros documentais figura pertinente envolvida em negócios com a
prefeitura em diversos documentos, este personagem está presente.
1911 – folha de pagamento da prefeitura quantidade de funcionários,
valores
de
vencimento
distribuídos
os
seguintes
cargos:
secretario,
procurador, escriturário, fiscal, superintendente e os salários variavam
sendo os valores mais altos entre 150,00 e 400,00 reis esse demonstrativo
do corpo administrativo elucida diversas atividades econômicas que
envolvia a cidade de Canutama no seu perímetro urbano e rural.
1911 – livro de demonstrativo das verbas da receita do orçamento
vigente no 1º semestre e a classificação das secretarias por verbas
arrecadadas e orçadas. Resumo do balancete apresentado pela procuradoria
relativo ao 2º semestre dispondo dados da saúde Pública e estatísticos das
inundações anuais.
1923 – Folha de pagamento de da Superintendência do município de
Canutama.
1926 – a receita do município determina o valor oficial da borracha
exportada, contando ainda a renda do seringal municipal, apresenta os
alvarás e licenças. Consta também as despesas orçamentarias: subsídios
dos intendentes e do prefeito, manutenção do posto de fiscalização e os
gastos com profilaxia rural.
1927 – ata de reunião da superintendência municipal de Canutama
aparece o nome de Lyrio Botinelly, as primeiras sessões marcaram as
nomeações e encaminhamentos internos; votações e projetos de leis
aprovados.
1928 – O livro de terras apropriadas da Prefeitura Municipal de
Canutama, apresenta o termo conveniente das propriedades reconhecidas e
produtivas, neste documento o lançamento dos contribuintes das terras
apropriadas – indicativo de um dono ou proprietário eram extensas faixas
81
vinculadas
a
floresta
nativa
consideradas
propriedades
privadas
ou
particular – essas áreas variavam de 2,00 a 102.00 equitaries, na qual a
segunda maior propriedade do município registrada no livro pertencia a
Joaquim Freitas dos Santos Theodoro dos Reis Botinelly.
1932 – livro de imposto dispõe dos negócios circulantes da cidade e do
meio rural demostrando os mais variados arrimes de vida encontrado pela
população registrando-se o comercio de regatão forte agente atuante nas
comunidades rurais aviando produtos de Manaus a credito em troca de
borracha e outros produtos nativos pescado, agricultura, caça e madeira.
Compra e vendas de terrenos, pagamento de sepultamento, pagamento de
dividas ativas.
1932 – livro de cobrança de alvará e aferições de pesos e medidas,
registro de pagamentos de terrenos baldios, localizados no espaço urbano –
Renda do mercado público – serviço de agua – renda pecuária cobrança de
divida ativa e outros.
1932 – livro de lançamento do imposto e alvará do ramo da indústria e
do comércio este documento discorre sobre muitas localidades que
potencialmente apresentam características de propriedades atuantes no
ramo da economia gomífera: a primeira citada é o cafezal situado na terra
firma, localizado a margem direita do Purus, mesmo não especificando as
atividades comerciais o documento nos dá o nome da propriedade ou
comunidade, o nome dos donos, a extensão das terras e as taxas dos
impostos.
1939 – livro de contrato de arrendamento do seringal Havana da
Prefeitura de Canutama.
No ano de 1951 há um documento de indicação da Assembleia
Legislativa do Estado do Amazonas, enviando ao município de Canutama
um
protesto
enviando
perante
o
Ministério
da
Agricultura
contra
permanência do Sr. Feliberto Camargo na direção do Instituto Agronômico
do Norte segundo o documento em virtude dos seus constantes atos de
traição a Amazônia, dissidência – falta de cuidado, negligencia – pelos
interesses econômicos da região. O ano de 1971 o livro registrava a
prestação de contas Fundo de participação dos municípios no período o
82
prefeito de Canutama seria Geraldo Monteiro da Silva que administrava o
seringal Havana propriedade da prefeitura.
1963 – pasta de ofícios de recebidos pela prefeitura de Canutama.
1965 – lei orçamentaria Municipal orçou a despesa e estimou a receita
para o exercício de 1966.
Ainda no ano de 1970 encontramos a demonstração da receita global
do exercício fundiário de prestação de contas do Fundo dos municípios ao
TCU. Outro documento que registra a importância das atividades nos
extrativistas da coleta da borracha foi o Projeto da Câmara municipal de
Canutama – Projeto lei nº 6 do vereador Abelardo Jardim Maués, onde
procuramos depreender do texto a essência do negócio. No artigo: 1. Ficou
definido que cada seringueiro arrendatário teria de pagar (40,00) quarenta
cruzeiros de imposto. 2. O agente descontaria o pagamento no ato do
arrendamento de suas estradas. 3. Também estando sujeito ao imposto de
(5,00) cinco por cada tartaruga comercializada. 4. Imposto de (5,00)
cruzeiro por cada alqueire de farinha produzida e retirada para outro
município. 5º Imposto de (20,00) cruzeiros para cada pescador considerado
profissional e (100,00) cem cruzeiros para proprietário de feituria.
1968 – O relatório de contribuintes do município de Canutama
destinando a prestação de contas a Secretaria da Fazenda estava a errata
dos anos de 1968/69/70/71 registrada as rendas com os nomes de
contribuintes em destaque consideramos os seguintes modelos vinculados a
atividade produtiva de Canutama: 16 seringalistas ,11 comerciantes e sete
ambulantes – este estereótipo se refere no documento como de motor,
embarcações que transportavam passageiros e as especiarias extrativas.
Ainda no ano de 1971 está registrado um fato de estrema relevância e
que não havíamos encontrado noticias de tal ocorrência uma pasta com
contratos de locação de um seringal pertencente a prefeitura e que
comumente firma contratos de locação de estradas a seringueiros que
individualmente solicitavam as parelhas de estradas a prefeitura, estando
registrado no documento a forma de pagamento seria por meio de 60 kg.
de borracha bruta dividido em duas parcelas com o pagamento de 50% em
quinze dias de trabalho e o restante quinze dias depois. O contrato de
locação detinha (9) nove clausulas que continha em anexo, o requerimento
83
do seringueiro escrito a mão ou datilografado perante a prefeitura. Cabe a
nossa reflexão indagar, primeiramente, qual o procedimento no caso
daqueles não alfabetizados? E quem eram as testemunhas? Apresentandose a partir daí uma serie de questões pertinentes ainda em procedimento de
analise.
A fala de Sebastião Banawa, trajetos e andanças de um povo em
contato com os brancos
Sua avó era branca, subindo o Purus de navio perdeu o marido por
picada de cobra, então a viúva não quis mais subir ao Acre, decidiu ficar no
Santo Antônio, onde ela namorou e se juntou com um homem branco.
Foram residir no centro – terra firme. Havia dois “cabocos banawa”
perversos mataram a família dela e levaram duas meninas, matando uma
em viagem, chegando à aldeia confessaram ao avô de Sebastião o tuxaua
retirou todo o grupo da aldeia entrando a mata sem deixar rastros, em suas
palavras não quebrando mato e proibiram os índios assassinos de
prosseguir com o grupo, segundo Sebastião ele sabia que os brancos iriam
atrás para vingar a morte.
A punição de pena de morte aplicada determinava que os condenados
deveriam ficar e esperar as consequências, e assim aconteceu, a regra
moral instituída na figura do cacique se fez valer, os índios descritos como
perversos ficaram acatando a palavra do Cacique e consequentemente
mortos. O cacique criou a menina e ela passou por todo o ritual banawa,
ficando por um ano presa no curral e ao sair foi surrada assim incorporada
ao mundo dos adultos. Com o tempo foi cortejada e o avô de Sebastião
decidiu casa-la com o próprio filho.
Sabastião banawa narra a fuga. Viajou a noite inteira sem paragem,
o caboco subiu no galho do pau e ouviu o sapo, e então deduziu o igarapé
está perto chegou ao local conhecido como banawa cheio de matrinxã.
Conta também que antes no Apituã o pessoal – branco tinha medo deles. O
tempo passou e o pai de Sebastião decidiu ser amansado pelo branco, um
período que faltava tudo, não tinha ferramenta para brocar e a falta de
roupa e alimento, a roça era pouca e não dava conta de sustentar o grupo.
Os banawa vivem do recurso da terra, devido à escassez alimentar se
deram
os
primeiros
contatos,
Sebastião
acompanhou
o
pai
em
84
determinados pontos da mata onde os brancos deixavam fósforos e
terçados. Certo dia os índios escondidos observando os brancos, sem serem
vistos, decidiram conversar aproximaram-se e conheceram os jamamadi
amigos dos brancos e responsáveis por amansar os banawa que fecharam
negócio. Como a terra indígena era muito distante decidiram vender a
castanha sem precisar sair para transportar até a cidade.
Dentro de uma negociação tensa, ambos os grupos se reconhecendo,
os jamamadi convenceram os banawa que decidiram descer, dias depois
Sebastiao foi para a cidade em busca de negociar castanha, fechando
negócio com o rapaz que namorou sua irmã e Sebastião casou-se com uma
moça branca de Canutama, após o casamento ficou um ano residindo na
aldeia e como tinha muita malária, voltou para Canutama com a esposa
grávida. As filhas cresciam e necessitavam da escola o que levou Sebastião
a viver mais próximo a cidade.
Ana Banawa complementa a fala do pai e conta o motivo do
descimento da aldeia do pai tuxaua, por ser casado com uma mulher branca
que não aceitava o confinamento e nem a surra que as filhas teriam de
sofrer – rito de passagem realizado para a troca do sangue da menina. Ela
tinha poderes maléficos podendo matar um homem pelo olhar, amarrando-a
em um tronco de madeira os homens adultos com quatro cipós iriam surrala, a finalidade é o sangramento e a retirada do sangue significa a perda
dos poderes maléficos agora a moça estaria apta a conviver com o grupo
sem representar perigo.
Ana falou do problema enfrentado pelo pai ao não deixa-las serem
“peiadas” tiveram de sair da aldeia, o pai juntamente com o tio tiveram a
autoridade questionadaperdendo a função de cacique, mas segundo ela o
respeito de liderança continua com eles, o fator que influenciou a decisão de
Sebastião foi à esposa branca não aderir aos costumes, nas palavras de Ana
Banawa “era muita judiação”. Mesmo assim Ana Banawa ressalta a
importância da tradição e afirma que a prática ainda acontece na aldeia
Banawa, o período é sucedido por uma grande festa.
O projeto nova cartografia social que se realizou na região do Médio
Purus mapeando as terras indígenas e reconhecendo os povos indígenas
apresentou uma inusitada questão dos banawa entre a geração de
85
Sebastião e a geração de seu pai, quando crianças foram registradas na
certidão de batismo consta o nome jamamadi e no momento do
reconhecimento da RANI documento de identidade indígena os filhos e
netos não se reconheciam mais como jamamadi, pedindo para serem
reconhecidos como povo Banawa. Este acontecimento revela a dinâmica da
cultura e as mudanças ocorridas por três gerações no reconhecimento
“indentitario” do grupo em um curto espaço de tempo.
Ana Banawa conta que os coronéis donos dos seringais e castanhais
dentro do igarapé do Quaru e Gessuã adentravam território indígena
ocasionando conflitos, a entrada dos brancos se dá até os dias de hoje em
busca da riqueza das terras dos índios. Após a demarcação da FUNAI, os
castanhais e seringueiras ficaram dentro da terra indígena e os coronéis
tiveram de sair, ela contou ainda que conhece a família dos Gomes donos
de seringais e que tiveram um filho, prefeito de Canutama chamado coronel
Gomes.
O Forte Veneza, terra de seringal que os patrões brancos se
consideram dono, agora fica dentro de uma RESEX – Reserva Extrativista,
Ana afirma as pessoas estão sabendo que os brancos não são donos, e sim
a terra é área indígena, cita a comunidade de santo Antônio do Apituã
residência dos banawa e paumari como outro ponto em disputa. Segundo
ela o movimento indígena está em luta pela demarcação da terra e os
patrões devem reconhecer que não tem direito sobre a terra.
João Cícero fala dos coronéis de barranco
Os proprietários da terra mandavam na terra, quem escravizava o
índio e o cearense eram os coronéis, muito dos refugiados do nordeste,
vinham em busca de abundancia e riqueza, na chegada encontrava um
ambiente diferente, e tendo enormes dificuldades de adaptação teriam de
trabalhar para os coronéis, segundo João Cícero nada poderia ser tirado da
propriedade do patrão sem autorização, pescado, caça e frutas. O poder de
domínio era hegemônico, citando o nome do grande coronel Botinelly, visto
como um grande reprodutor dono de prestígio, servido de todo tipo de
honraria, inclusive
os seringueiros entregavam a própria filha para
engravidar do coronel, o laço era visto como honra.
86
Cicero descreve algumas propriedades e os nomes dos donos o
Coronel Luiz Gomes no são Luiz do Cassianã, no Sepatini o coronel Cesar,
no sebastopol tinha outro coronel, Meteripuá o mais perverso coronel
Ambarino temido pelos seus capangas os guarda costas, quando o freguês
estava reclamando não aceitando o jugo o coronel dava o bilhete dele –
mandava matar – a desculpa era que a cobra comeu ou o jacaré pegou, isso
funcionava como explicação para o sumiço de pessoas, João Cícero lembra
ainda da época da eleição o velho Pedro Noronha e seus trabalhadores
trazidos do rio grande do norte a terra natal, seu filho Vicente Noronha dizia
“aqui tem oitenta eleitores (80) são oitenta votos para o candidato que nós
queremos, e ai deles que não votem para os nossos candidatos”.
Raimundo Gomes cearense seringalista
Nascido no seringal forte Veneza herdou e comprou a propriedade dos
irmãos que não gostavam do negócio da borracha preferiram levar a vida
na cidade de Manaus. Conta sua experiência como seringalista e de como a
defumação de borracha passou pelo processo de mudança até o sistema da
borracha prensada, afirma que a crise retirou a grande maioria das pessoas
do seringal. No trabalho com o pai aprendeu marcar cada seringueiro tinha
um número para o controle de qualidade, porque os seringueiros colocavam
impurezas na borracha aumentando o peso da borracha, quando isso
acontecia à empresa J. leite trazia de volta a borracha e “nós ficávamos no
prejuízo então dava a conta do seringueiro”. Essa atitude era servia para
não dar mau exemplo aos outros.
Ainda hoje Raimundo atua no negócio o principal freguês é a prefeitura
fornecendo para o IDAM – Raimundo conta que atualmente tem uma
empresa de beneficiamento de borracha no Iranduba. Conhecedor da
história do seringal Havana administrado pela prefeitura, e de como
funcionava o pagamento dos contratos e da atuação dosficais responsáveis
por não deixar acontecer corte indevido que mata a seringueira. O contrato
estabelecia
que
o
seringueiro
pagaria
a
renda
em
cima
de
uma
porcentagem em torno de 20% para a prefeitura manter os funcionários.
O seringal da família de Raimundo Gomes fica a quatro praias da
cidade de Canutama, e diz que hoje em dia ninguém quer mais colher
87
seringa. A família Gomes era também aviadores, Raimundo conta que os
principais fregueses do avô e do pai eram os indígenas coletores de sova e
seringa, trocando produtos por borracha, para conquistar a confiança deles
o avô passava uma temporada no meio dos índios. Raimundo Gomes
comprou a parte de todos os outros herdeiros, a propriedade tem título
definitivo e hoje fica dentro da reserva demarcada e só quem pode coletar
na área são os moradores.
A produção de borracha no seringal dos Gomes girava em torno de 20
e 30 toneladas Raimundo contou que os barcos já atracavam em Canutama
lotados de borracha e de como o sistema borracha prensada foi implantado
há uns 20 anos. Raimundo relembra a variedade de seus produtos; seringa,
castanha, madeira sempre envolvido em diversos negócios para manter o
lucro. Hoje o peixe aparece na fala de Raimundo como um produto bastante
atrativo ao comércio, mas que há uma dispendiosa engenharia de
transporte pelo rio mucuim até chegar à estrada, onde os caminhões
embarcam o peixe para Rondônia.
Raimundo Gomes conta que na sua gestão de prefeito implantou
reserva que melhoraram a vida dos moradores locais, e proporcionará o
crescimento da região, a reserva do jamanduá é modelo criada no ano de
1997, hoje tem uma safra de mais de mil tartaruguinhas, pirarucu,
tambaqui e outros pescados, existem três flutuantes funcionando como
posto
de
fiscalização
havendo
uma
política
de
manejo
visando
à
conservação das espécies. Canutama é um município que depende
essencialmente do transporte fluvial por não ter saída pela BR, os lagos, os
igarapés e riozinhos – pequenos rios – são a fonte da subsistência daqueles
que vivem no Purus.
Marcelino Apurinã: feirante, agricultor e cacique na cidade de
Lábrea
A terra indígena Caititu fica situada na BR-230, Lábrea/Humaitá, a
entrada se dá pela fazenda Ernesto de Almeida, curiosamente, essa é
entrada mais próxima das comunidades indígenas. Uma segunda opção é o
rio Ituxi que dá acesso aos lagos e igarapés e ligam as comunidades
distribuídas numa área bastante extensa, a maior parte da atividade
produtiva dos indígenas é a agricultura e o extrativismo, depende do
88
escoamento da produçãopela estrada, rios, lagos e igarapés alternando no
decorrer do ano devido a cheia e vazante dos rios.
A liderança da comunidade Nova Esperança é Marcelino Apurinã,
pessoa muito bem articulada, possui um ponto de venda na feira da cidade
vendendo produtos cultivados por sua comunidade; o principal produto é a
farinha de mandioca, piquiá, goma de tapioca, açaí e babaçu. Os muitos
anos de feira fez de Marcelino uma referência, muito procurado pelas
demais comunidades para vender a produção que sobra por falta de
conhecimento, os indígenas que encontram dificuldade nas vendas o
procuram como intermediário.
A entrada de Marcelino como intermediário é acordada pelo sistema de
meia, comprando dos demais produtores indígenas revende os produtos
responsabilizando-se pela qualidade do produto, dizendo “ajudo os coitados
que não tem para quem vender” com experiência o agricultor Marcelino
quebrou a presença do intermediário de suas vendas, ele é o próprio
negociante e se tornou intermediário dos “parentes” índios que não tem a
mesma habilidade do negocio na cidade.
Presenciei a compra de três latões de goma de tapioca os dois garotos
chegando do quilometro 26 carregando numa moto os galões. Marcelino
logo perguntou se a goma estava misturada com água afirmando que a
goma rocha mesmo sendo gostosa perderia seu valor porque as pessoas da
cidade não gostam muito dessa cor, os garotos responderam que sim
estava conservada da forma que Marcelino aprovava.
Descansaram, jogaram bola, conversaram tomaram pinga e quase
duas horas depois foram pesar a goma, Marcelino pegou sua balança
manual pendurou no esteio da casa e pesou os latões, adiantando quarenta
reais deixando para pagar o restante no apurado dizendo “levaram meus
últimos quarenta reais mais vou ajudar e ver o que faço vieram lá do (26)
vinte seis – quilometro – e não tem venda, ninguém quer, eu fico pra ver se
ajudo” o sistema é de meia e sustenta os interessados na venda, as
relações
de
dependências
são
mutuas
entre
os
indígenas
daquela
comunidade.
Marcelino tem boa credibilidade na cidade, na feira as pessoas o
procuram bastante atrás de produtos de boa qualidade, ao fechar com um
89
parceiro a “meia” é ele quem avalia a qualidade e logo diz qual nível se
encaixa o produto, se é de primeira, segunda ou terceira qualidade e diz
que vai vender conforme o produto se encaixe. O trajeto ocupado por
Marcelino atuante como feirante e pequeno agricultor.
Marcelino Apurinã conta sua história e como foi difícil à saída da aldeia
segundo ele “faltava preparo”, idas e vindas marcam as tentativas de se
estabelecer na cidade, ao todo foram três tentativas. Em todas as
colocações que ele trabalhou colocou roçado um costume ensinado pelo pai,
um momento extremo narrado por ele foi estar desempregado na cidade,
com fome, a esposa e o filho pediam para voltar ao centro – aldeia indígena
– Marcelino aponta uma das dificuldades de se viver na cidade é querer
manter o mesmo estilo de vida da aldeia.
Passando por estas dificuldades foi até um proprietário e pediu um
pedaço de terra para plantar, concedido o espaço resolveu chamar a terra
de “nova esperança” que depois se chamou “novo Paraiso” porque hoje
disfrutam aos benefícios da terra. Conversando com sua esposa decidiu
pedir emprego ao gaúcho próximo ao seu roçado, em suas palavras havia
apenas brocado a terra – fase de derrubar, queimar e abrir o roçado.
Meses
depois
chegou
um
garimpeiro
experiente,
sabedor
que
Marcelino possuía conhecimento da mata, estava atrás de uma cassiterita
encontrada há 28 anos por um parceiro que ficou doente retornando e
deixando a descoberta para tráz. O patrão gaúcho não queria que Marcelino
saísse, mas o dono da fazenda, o prefeito autorizou a viagem de Marcelino,
como forma de retaliação o gaúcho cortou o salário que só foi pago o
primeiro mês a mulher de Marcelino, ao chegar de viagem ele decidiu não
trabalhar mais com o gaúcho e o prefeito.
Desempregado mudou-se para a terra, a roça estava pronta na época
em que os técnicos do IDAM – Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e
Florestal Sustentável do Estado do Amazonas veio observar a comunidade,
chegando a orientarem que Marcelino fizesse coloral do urucum, mesmo
sem preparo – projeto de treinamento – e nem os mecanismos adequados
deu andamento a produção. O primeiro financiamento pelo BEA – Banco do
Estado do Amazonas o valor de 1.600,00 reais não deu certo porque o
90
alqueire da farinha estava avaliado 25 cruzeiro por alqueiro saindo 50
cruzeiro a saca plantaram esperando a renda para quitar o empréstimo.
No outro ano quando desmancharam dez alqueires de farinha, não
encontraram venda, não tinha comprador porque o preço da farinha caiu
consideravelmente a 5,00 cruzeiro o alqueire. A falta de informação e
planejamento anual derrubou o negocio e por não saber negociar com o
banco caiu inadimplente, chegando à dívida a doze mil reais (12,00 mil)
ficando doze anos sem poder fazer empréstimo, na ocasião o promotor
chegou a requerer alguns bens da comunidade como forma de pagamento
da dívida.
O novo financiamento feito pela esposa para compra do forno, segundo
Marcelino o valor do financiamento não é ineficaz, o crédito precisa ser
aumentado, o valor pretendido seria de 10,00 mil, voltado exclusivamente
para o plantio da mandioca porque o governo não tem a flexibilidade de ver
uma plantação diversificada como a indígena que cultiva milho, macaxeira,
mandioca e outros cultivos simultaneamente,descontente Marcelino lamenta
“agente não trabalha só com mandioca, minha propriedade tem tucumã,
babaçu, tem que ser levado em consideração o que eu têio na terra, eu
trabalho com muita coisas”. A lógica indígena de plantio é incrivelmente
extensa, não se planta apenas um tipo, mas vários o roçado é diferente da
agricultura do branco.
Os técnicos da FUNAI – Fundação Nacional de Apoio ao Índio,
recomendaram a Marcelino não trabalhar com septícida alertando sobre os
riscos e a desvalorização da propriedade. Uma roçadeira é aguardada pela
comunidade que enfrenta a resistência governamental de liberação de um
motosserra. Para resolução de tais empasses Marcelino solicita a visita
periódica de fiscais em cada comunidade avaliando, a exemplo a madeira,
especificaria aqueles que derrubam a madeira e as comunidades que
utilizam a ferramenta somente no manejo do roçado.
Para Marcelino o ideal é trabalhar com reflorestamento “temos que
produzir e vender para comprar a comida, pois na terra indígena não tem
um rio de grande porte ou igarapé que sustente a comunidade com peixe e
a caça que é pouca”, Marcelino em suas palavras não deseja derrubar mais
árvores, juntou os jovens da comunidade para reflorestar o pasto da
91
extensão de 60 a 80 equitaries e enfatiza nas comunidade a dificuldade de
recurso é muito grande.
Ainda em Lábrea fomos convidados pela FOCIMP – Federação das
organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus a participar de uma
reunião que aconteceria com os paumari moradores do rio Ituxi na
comunidade do Araçá, o assunto seria a divergência entre os indígenas
sobre a retirada ilegal de madeira das terras indígenas e os eventuais
roubos de castanha que estavam acontecendo nas terras do (Bit - apelido)
um vizinho branco morador antigo que tem parte da extrema do terreno
fazendo extrema com a terra indígena.
Estavam presentes na reunião as comunidades do Araçá, de ilha
verde, sicibú, tacuapé, a reunião foi dirigida pelo cacique Raimundo Lopes,
João Baiano da FUNAI, e o coordenador executivo da FOCIMP Zé Bajaga, o
objetivo era trazer propostas e encaminhamentos para a resolução do
problema no intuito de evitar possíveis conflitos nas comunidades. Uma
breve avalição dos indígenas apontou como causa de conflitos na área a
entrada das frentes extrativistas – madeireiras invadindo diretamente as
terras indígenas, ou incentivando a entrada de posseiros.
Uma causa em comum marcou a discussão da reunião, o problema
principal segundo os indígenas, estava acontecendo devido aos próprios
parentes – índios – que não moravam mais na terra indígena. Residentes na
cidade de Lábrea formaram laços familiares com brancos e adentram a terra
indígena, somente, para usufruir a riqueza no período de coleta ou para
caçar e pescar, trazendo consigo os parentes brancos retiram e vendem a
madeira sem o consentimento das lideranças locais.
Zé Bajaga falou das necessidades do Purus como um todo e afirmou
que há necessidade de se fazer aliança com forças institucionais de âmbito
nacional, reivindicando políticas territoriais direcionadas ao Purus. Para isso,
as comunidades devem permanecer unidas visando organizar projetos de
melhorias aos povos indígenas porque se isso não acontecer as conquistas
das lideranças do passado estarão comprometidas, Bajaga aponta o
caminho dizendo que a juventude deve ser preparada e questiona os
parentes por haver tantos problemas internos, o que fragiliza o movimento
indígena.
92
Bajaga fala da intenção de divulgar os povos indígenas do Purus e
compara as outras partes da Amazônia, citando o caso dos tukano do alto
Rio Negro, formados pelos padres, mesmo com toda a violência e punição,
conquistaram
os
ensinamentos
do
branco.
Enquanto
no
Purus
os
missionários não passam o conhecimento da escola, apenas aprendem a
cultura do índio, não dando nada em troca. O objetivo do movimento
indígena é organizar com autonomia participativa as políticas direcionas em
assembleias, seminários e reuniões em conjunto com governo Federal
programas sociais de acordo com a realidade do Purus.
Para Zé Bajaga divulgar o Purus trará muitos benefícios, ajuda médica,
relata a conquista da CASAI – Casa de Saúde indígena, criada para atender
os índios de forma diferenciada com uma melhor logística, visitando as
aldeias e com uma base de atendimento e internação no perímetro urbano,
a partir de então a proposta é de avançar e conquistar cada vez mais os
programas, de nível nacional, implantados no Purus, eventualmente,
proporcionará o bem estar social aos povos indígenas.
João Batista conhecido como – baiano – agradeceu o convite do
cacique
Raimundo
paumari
solicitante
da
reunião
motivado
pelos
recorrentes fatos ocorridos na terra indígena. Segundo João baiano os
problemas internos devem ser resolvidos pela liderança porque a equipe
técnica responsável de organização e gestão da terra deve atuar a partir de
um prévio levantamento feito e solicitado pela liderança da comunidade
apontando as reais necessidades dos paumari do Ituxi.
Baiano informou que o governo Federal direciona os projetos conforme
a FUNAI recomenda, e esta atende a demanda dos pedidos do movimento
indígena, e enfatizou que no caso da terra demarcada entregue aos índios é
responsabilidade deles administrar. A quantidade de pessoal do governo é
insuficiente para a realização dos trabalhos de fiscalização e aplicação de
projetos. Para João Baiano recai sobre os indígenas realizar a guarda do
patrimônio já que a terra é sua riqueza.
Existe um sentimento de insegurança, os índios paumari estão em
menor grupo que os brancos exploradores de madeira da terra indígena, as
pessoas relatam as forma de intimidação e ameaças de morte que vem
sofrendo pelos madeireiros armados. O cacique Raimundo diz “estão
93
zombando e mentindo usando meu nome” os madeireiros invasores
espalham rumores pelas comunidades indígenas de que tem autorização do
cacique para entrar e retirarem a madeira.
O termino da reunião foi registrado o encaminhamento da comunidade
diante a FOCIMP e FUNAI referente à questão da retira ilegal da madeira e a
solicitação de possíveis projetos para a comunidade, ficou acordado a
liderança organizar a próxima reunião articulando a participação das
lideranças que não estiveram presentes naquele momento. Desta forma
cada comunidade estaria representada, encaminhando questões especificas
de suas necessidades proporcionando assim a participação de todos ou a
maioria sobre as decisões políticas da terra indígena dos paumari do Ituxi.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O
período
em
campo
ascendeu
à
interação
necessária
par
descobrirmos a dimensão humana e territorial do médio Purus, mesmo que
limitada pelo tempo, a tentativa é apreender as características das cidades
visitadas e de percebemos como elas produzem sua falas e são capazes de
reproduzir a própria narrativa histórica. Ouvimos as pessoas, olhar os
espaços e escrevemos nossas impressões. A etnografia permeia assim todo
trabalho de campo, os registros do caderno e nas reuniões diárias do grupo
compartilhando ideias sobre as conversas com os entrevistados, as
fotografias e os vídeos também revelam esta perspectiva do contato direto
e da observação participante.
A partir da coleta de documentos que remontam parte da história do
Purus procuramos criar um banco de dados a serem disponibilizados no
NEAI: o material recolhido no acervo público das cidades de Tapauá e
Canutama com oito livros raros da segunda metade do século XIX (187098); o período de 1900 apresentou uma quantidade expressiva de material,
recolhemos uma grande quantidade do arquivo público da prefeitura e do
cartório civil.
Lábrea é a cidade com a maior quantidade de documentos públicos.
Em Lábrea tivemos acesso ao acervo de livros dos irmãos marista inclusive
de
fotografias.
Infelizmente,
não
houve
tempo
suficiente
para
a
digitalização, uma vez que ficamos dependendo de uma autorização
94
institucional para fotografarmos os documentos do arquivo público. Fica a
sugestão de uma possibilidade de aquisição dos documentos, e também do
acervo público - dependendo do grau de sua importância a vida útil
estimada pode ser de dez (10) a cinquenta (50) anos aproximadamente,
com o risco de incineração por determinações legais da justiça.
O material das entrevistas está em processo de transcrição, as estórias
daqueles que viveram os acontecimentos, ou por meio da memória
contadas por seus pais e avós. Reproduzido pela oralidade o conhecimento
se estende para as gerações de filhos e netos. Assim o costume indígena ou
caboclo conserva seus modos de crenças, rezas, festas, formas de caçar e
pescar, conduzindo a relação do homem com o meio ambiente e suas
espécies nativas extraídas seja para venda ou subsistência familiar.
Para
a
análise
dos
documentos
procuraremos
confrontar
as
informações teóricas com a realidade social pensando em articular a
composição dos dados estatísticos e verificando similitudes e autonomias de
produção desenvolvidas pelas múltiplas sociedades do Médio Purus dotadas
de características singulares entrelaçadas por redes sociais muito próximas.
Portanto os documentos, as bibliografias e as etnografias produzidas sobre
o Purus formam um conjunto de fontes que devem ser reunidas para um
aprofundamento analítico.
A antropologia parte da subjetividade da nossa linha de pesquisa,
procura investigar a cosmologia indígena, para tal realização é de suma
importância à releitura de documentos oficias complementares a etnografia
dos povos do médio Purus, buscando evidenciar certos temas e assuntos.
Com os objetivos previamente estabelecidos de cruzar dados quantitativos
contidos em acervo documental histórico, contidos nos livros de casamento,
de óbitos, de imóveis, alvarás e reuni-los aos dados qualitativos por meio
de entrevistas utilizando o recurso da história oral.
Passa ainda por elaboração uma apresentação iconográfica das
imagens registradas no percurso da viagem, um recurso que antropologia
utiliza mostrando percepções humanas reveladoras do meio social, relações
de parentesco, expressão corporal, sociabilidades incomuns, nem sempre
perceptíveis na escrita ou na oralidade. Esperamos que este relatório seja o
início de uma série maior de produção acadêmica da Expedição Purus 2012.
95
O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM
CANUTAMA, MÉDIO PURUS (PARTE I)
Alba Garcia
INTRODUCCIÓN
El objetivo de la presente investigación fue estudiar los sistemas
productivos de la región del Medio Purús, en concreto, se estudió en detalle
el proceso de elaboración de la farinha de mandioca, en la localidad de
Canutama. El estudio que elaboramos fue abordado desde un punto de vista
multidisciplinar donde confluyen varios campos del saber científico para
tener, de este modo, una perspectiva más amplia del tema, y por tanto, un
conocimiento más rico de la realidad que venimos estudiando, esperando,
que favorezca de esta forma, no sólo la definición y problematización del
objeto de estudio sino también el planteamiento, desarrollo, resultados y
conclusiones de la presente investigación.
Este equipo multidisciplinar abordó por tanto aspectos de diferente
naturaleza de manera conjunta, de tal forma que aunque cada cual
supiéramos exactamente en qué aspectos debíamos centrar nuestra
investigación, de manera constante y diaria contrastábamos las nuevas
informaciones que descubríamos y las conclusiones a las que nos hacían
llegar. Esto, para mí, fue clave en la investigación, tanto a nivel individual
como conjunta, ya que de este modo entre todos ayudábamos a
complementar nuestras investigaciones individuales y nos ayudaba a tener
en cuenta ciertos criterios y aspectos de otras áreas que estarían
influenciando directamente la nuestra. Prácticamente todos los compañeros
teníamos claro que nuestra investigación formaba parte de una mayor y era
imprescindible tanto el trabajo individual como el trabajo en equipo para
sacar conclusiones que tuvieran una perspectiva lo más amplia y rica
posible. Fue éste carácter de ayuda mutua, de complementariedad y de
compañerismo durante el tiempo que duró la investigación el que, sin
ninguna duda, creo que hizo posibles los resultados finales de nuestras
investigaciones.
96
Carácterísticas del contexto donde se realizó la investigación
A continuación describiremos brevemente las características del
contexto en el que realizamos la investigación que resultan relevantes para
la siguiente pesquisa.
El lugar donde se realizó la investigación por
aproximadamente un mes es una localidad pequeña localizada en el Médio
Purús llamada Canutama, al sur oeste de Manaus. Esta comunidad está
formada
por
grandes
familias,
la
gran
mayoría
de
agricultores
y
recolectores, por tanto, existe muy poco comercio. Me llamó la atención que
en la ciudad no hay ningún mercado y en las tiendas de ultramarinos
escaseaban las frutas y verduras. Las personas que tienen huertas, plantan
para su propio autoconsumo. Solamente en ocasiones excepcionales se
puede llegar a vender el excedente, pero éste, en tal caso, es muy poco
representativo en volumen, y esto siempre acontece dentro de la ciudad
para familiares o vecinos.
En el municipio de Canutama y los alrededores, donde se encuentran
las áreas de cultivo, existe tan sólo una pequeña área de tierra firme y el
resto se inunda, lo que se viene denominando várzea. Las áreas de cultivo,
por tanto se hayan distribuidas, por tanto, en esta pequeña porción de
tierra firme y en la zona de várzea. Éste último terreno se ve afectado, por
tanto, por la dinámica del flujo de las aguas, con todas las consecuencias
que esto tiene.
Por tanto, es ese factor hídrico el principal criterio que tienen en
cuenta los agricultores de Canutama tanto a la hora de escoger los
productos hortícolas se van a plantar como en la elección de cuándo van a
ser plantados, y por tanto recolectados, para asegurar la alimentación
familiar de forma satisfactoria y estable durante todas las estaciones del
año.
Dentro de la cosmovisión de los agricultores de Canutama, en la
percepción del tiempo se tiene mucho en cuenta este aspecto sobre los
tiempos que necesita cada especie vegetal desde su plantación hasta su
colecta pasando por la fase de desarrollo y maduración de las diferentes
especies vegetales que se plantaron en los rozados. Es importante resaltar
que normalmente siempre, los agricultores de Canutama recolectan tanto
las especies que ellos/ellas mismos/as cultivaron como las que recolectan
97
en el mato. Este hecho lo constatábamos cada día en expresiones como
“casi al mismo tiempo que la mandioca está llegando el açaí”, “después del
açaí viene la melancía” y declaraciones parecidas.
Importancia de la mandioca con respecto a las otras especies
vegetales en la cosmovisión canutamense
Durante la investigación, encontramos entre la mandioca y el resto de
los productos vegetales tanto plantados como recolectados una relación
desigual en cuanto a la importancia simbólica que tiene para los habitantes
de Canutama.
La mandioca es la “estrella” de los rozados. El número y cantidad de
especies vegetales cultivados en los rozados de las diferentes personas
puede ser variable pero lo que es imprescindible es la presencia de la
mandioca en todos los rozados de todos los plantadores. Nunca se encontró
durante el trabajo en el campo personas que tuvieran plantaciones de
diferentes productos sin plantar mandioca; en cambio muchos eran los
casos en los que la única planta cultivada era la mandioca.
La elección de las variedades de manivas de mandioca que se van a
plantar, también está tomada en base a una representación simbólica de las
mismas. Hay grandes diferencias entre los diferentes tipos de especies de
mandioca, hay unas que rinden más que otras, otras que requieren mucho
más trabajo para obtener la misma cantidad de farinha, otras que dan
farinha más “bonita” etc.22 Los agricultores tienen en sus rozados una
relativamente diversa variedad de manivas de mandioca, no se limitan a
plantar solamente una especie. A diferencia de lo que se podría intuir, no
necesariamente se planta un número mayor de las manivas. (Para más
detalle consultar el relatorio de Thayná que lo explica al detalle ya que éste
fue su objeto de estudio)
Los productos que se pueden plantan además de la mandioca son
varios, entre los más comunes podríamos citar: el feijao de praia, la
22
Farinha bonita, desde el punto de vista de los habitantes de Canutama, es una farinha sin
granos demasiado grandes, sin palha y de color amarelo-mustarda, incidiendo notablemente
en esta última característica
98
macaxeira, la melancia, el milho, el jirimú etc. Al ser una zona de várzea-o
de Praia- donde se plantan estos productos, tanto la elección de los
productos que van a ser plantados (y la variedad) como el tiempo de
plantarlos y recogerlos, va a estar determinado por dos cosas: la dinámica
de las aguas (el periodo de crecida y seca del río) y el tiempo empleado en
el trabajo de la mandioca para obtener la preciada farinha.
Es importante estudiar la importancia de la farinha de mandioca, por la
importancia y valor que tiene tanto a nivel nutritivo, como a nivel simbólico
dentro de esta sociedad determinada y las implicaciones antropológicas que
tiene el proceso de elaboración de la farinha desde el punto de vista de la
cosmovisión nativa, en este caso concreto, para los moradores de
Canutama.
Para estudiar este hecho, el enfoque clave es, principalmente, el
antropológico, pero se ha pretendido combinar este con el estudio de
algunos aspectos ecológicos y biológicos, siempre desde una mirada
antropológica, para tener una visión de esta realidad más completa.
Proceso de la elaboración de la farinha
Cuando cogemos los granos amarillos de la farinha de mandioca con
nuestras manos debemos tener en mente que son el resultado de un largo y
trabajoso proceso con varias etapas que describiremos a continuación.
Utilizaremos las mismas palabras que los agricultores de Canutama utilizan
para definir las diferentes etapas:
1. Plantar. Se realiza en el mes de junio/ julio, dependiendo de la
especie de mandioca y del área donde se plante (varcea alta, varcea baja,
terra firme…. Thayná en su relatorio contempla con detalle esto.
2. Capinar. Consiste en quitar las hierbas que crecen en el terreno
donde está plantada la mandioca y que pueden dificultar el crecimiento de
esta. Normalmente se hace un par de veces o las que ellos crean
necesarias.
3. Arrancar e decotar. Consiste en cortar primero las manivas para que
después el proceso de arrancar la raíz requiera menos esfuerzo. Una vez
99
sacado el tubérculo de la tierra, se quitan los terrones de tierra con el
cuchillo y se cortan los extremos del tubérculo.
Figura 4 – Decote de las manivas. Foto: Alba Garcia.
4. Botar de molho. Una vez obtenidos los tubérculos se les deja a
remojo por dos días en un charco, lago o barreño cerca del roçado y de la
casa de farinha para que la mandioca tire su veneno. Al cabo de dos días las
mujeres y los niños/as vuelven al lago o charco y recogen los tubérculos
con las manos y les retiran la cáscara.
Figura 5 – Tubérculos en remojo. Foto: Alba Garcia.
100
5. Prensar. Esta masa formada por la mandioca ya blanda después de
haber estado en el agua, se lleva a la casa de farinha, se coloca en una
especie de molde o plancha y después se coloca en un mecanismo diseñado
especialmente para escurrir la masa. Se deja durante algunas horas hasta
que la mayor parte del agua esté eliminada. Normalmente se deja
escurriendo al final de la tarde al terminar la jornada para tenerla lista al día
siguiente a primera hora y poder continuar con el proceso aprovechando
bien el tiempo.
Figura 6 – Prensa de la masa de la mandioca. Foto: Alba Garcia.
6. Penerar. Se hace grandes peneras hechas manualmente con cipó
del mato o compradas de metal. Se va añadiendo la masa de la mandioca
poco a poco en la penera y las mujeres y los niños la mueven a lo largo y
ancho de la penera para quitarle los nudos, hebras y partes duras de la
mandioca, obteniendo así una masa libre de toda impureza (o puba como
ellos lo llaman).
101
Figura 7 – Família penerando farinha. Foto: Alba Garcia.
7. Torrrar. Es el último paso y el más costoso. Poco a poco se va
echando la masa de la penera al horno debidamente caliente e hidratado
con aceite de girasol o soja en su justa medida. Son los varones quienes se
encargan de mover con un remo de canoa sin descanso la farinha en la
superficie del horno. Al principio es removerla y al final se tiene que
levantar la farinha con el remo y dejarla caer desde una altura de unos
40cm para que el viento se lleve las pajitas que los filamentos de la
mandioca formaron. Es importante no parar porque la farinha se quemaría.
Como es un proceso que requiere mucho esfuerzo, los varones se van
turnando y combinan un rato de trabajo y otro de descanso.
Figura 8 – Varones torrando la farinha. Foto: Alba Garcia.
102
Articulación y funcionamiento de las unidades productivas para la
obtención de la farinha de mandioca
Desde el punto de vista de los habitantes de Canutama, el tener
farinha en la mesa y en casa en el almuerzo y en la cena por toda la
temporada, es como tener aseguradas las comidas en la mesa para toda la
familia por los próximos meses.
A partir de la observación directa de varias familias e de la
organización de las mismas en la producción de la farinha, se dedujeron
ciertas conclusiones que a continuación explicaremos con detalle sobre el
padrón inconsciente que los individuos siguen en la organización del sistema
productivo, mediante el cual, se va organizando esa unidad productiva para
la obtención y garantía de ese producto tan importante y tan básico, del
cual ningún miembro puede carecer en ningún momento del año.
Aclaremos en este punto que entendemos como “unidad productiva”
aquella organización específica de la fuerza de trabajo dentro de la unidad
familiar que se estructura y organiza de un modo concreto, no aleatorio ni
improvisado, formada exclusivamente con la finalidad de elaborar y
asegurar la farinha de mandioca para todas las personas que componen esa
unidad familiar. A continuación explicaremos con rigurosamente los detalles
del patrón que rige esta organización, cómo funciona, quiénes son sus
integrantes, sus características, forma de articulación etc.
Estudiando
y
comparando
genealogías
de
diferentes
familias
y
relacionándolas con los sistemas productivos familiares que se producen
dentro de las mismas percibimos una línea común de organización de esa
fuerza de trabajo en sus respectivas unidades familiar.
Lo que antes parecía una organización anárquica o espontánea resultó
ser una elaboradísima y estratégica trama, resultado de un complejo
conjunto de “decisiones” inconscientes por parte de los objetos de estudio
guiadas por “su sentido común” (sentido común propio y específico de los
plantadores de Canutama).
Precisamente, la presente investigación desveló ese “sentido común”
particular y esa lógica concreta que subyace a la formación, organización y
articulación específica de las unidades familiares de los agricultores de
103
Canutama que da lugar a la formación de esas unidades productivas que
organizan y optimizan la fuerza de trabajo que tiene la unidad familiar
Básicamente, este sistema productivo de la farinha de mandioca se
estructura en torno de la unidad familiar de pertenencia. Se puede decir,
que la unidad familiar se organiza de una forma específica que funciona
como una unidad productiva perfectamente organizada que permite integrar
a todas las personas pertenecientes a la misma, en cualquiera que sea la
circunstancia personal en la que se encuentren (por muy adversa que esta
sea), de tal forma que nadie quede fuera de ella. Esto permite así, para
todos ellos y ellas, tener asegurando durante todo el año, este producto
primordial en la alimentación, tanto a nivel nutritivo como simbólico como
es la farinha de mandioca.
A continuación vamos a explicar minuciosamente la hipótesis que
dedujimos tras la observación de campo. Cabe decir aquí, que estos
resultados procedentes de la investigación sobre una unidad familiar
concreta de referencia que es la familia de Seu Chicó y Angélica (por tanto,
la unidad productiva de Seu Chicó y Angélica y las unidades productivas que
se formaron dentro de la familia tanto de Seu Chicó como de su esposa
Angélica).
Posteriormente, el resultado de este análisis, se comparó con la
articulación de otras unidades familiares y productivas diferentes y se
planteó
una
hipótesis
de
formación,
organización,
articulación
y
funcionamiento de las unidades familiares y productivas ante diferentes
circunstancias. Esta hipótesis se corroboraba en todos los casos que
escogimos para la comparativa, confirmando,
de este modo, la hipótesis
planteada.
Se escogió la unidad productiva de la familia de Seu Chicó como
referente debido a su disposición e interés para ayudarnos con la
investigación, a su la facilidad de palabra y capacidad de reflexión y de
relacionar diferentes cosas que tiene Seu Chicó. De ahí se decidió que, ya
que el entramado del sistema está creado por relaciones de parentesco y
afinidad, él sería el conector perfecto que nos presentara al resto de la
familia y amigos implicados, debido a su don de gentes y el amor que todo
el mundo le profesa.
104
Se analizó también, por extensión, la familia de su esposa, Angélica,
que es una familia grande donde se observaron diferentes casos que nos
interesaba abordar y contemplar en la investigación, como por ejemplo
casos de viudez masculina y femenina, divorcio etc.
En primer lugar y antes de pasar a la explicación detallada es
importante hacer una aclaración.
Durante la presente investigación, vamos a diferenciar dos diferentes
tipos de unidad para el análisis de esta situación; por un lado tenemos la
unidad familiar y por otro la unidad productiva. Ambas unidades están
íntimamente relacionadas y el segundo es producto de la organización de un
modo determinado de la primera.
La farinha tiene un papel primordial a nivel simbólico e alimenticio en
la vida de las personas de la comunidad.
Esta relación queda clara la
siguiente declaración de una anciana del lugar “en la mesa puede faltar
arroz, puede faltar feijao, pero nunca puede faltar farinha”. En términos
alimenticios, es la principal fuente de hidratos de carbono en la dieta de la
mayor parte de los habitantes de Canutama.
A
un
nivel
más
simbólico,
para
todas
las
personas,
independientemente de su situación económico social, la farinha es un
producto alimenticio que tiene un valor privilegiado en el imaginario
colectivo.
En las familias de renta más baja, generalmente las principales
comidas consisten en un pedazo de pescado acompañado por la preciada
farinha. Las familias que se lo pueden permitir, alternan el pescado con
carne (pollo u otro tipo de carne como de buey o vaca…) y finalmente, las
familias de rentas más altas comen cualquier producto pero siempre
acompañado por farinha, en mayor o menor medida.
Como ya hemos explicado con anterioridad, en la cosmovisión del
agricultor Canutamense, su propio tiempo vital es vivido acorde a los
diferentes ciclos de las plantaciones y recolectas de los diferentes
productos; así tenemos el tiempo de la farinha e macaxeira por un lado, el
del feijao de praia, el del milho, y otros que se recolectan directamente del
mato sin haber necesidad de plantarlos como son el cupuaçú, el açaí, la
goiaba, la pupunha, la banana…
105
Pero para organizar este esquema temporal de obtención de los
alimentos, se tiene muy en cuenta el tiempo que se ocupa en “la farinhada”
y acorde con eso, se van programando y organizando las anteriores y
posteriores siembras y actividades de recolecta.
En las huertas pueden variar los productos que se plantan excepto la
mandioca que es una constante en todos ellos. Es decir, puede que haya
melancia o no, se puede plantar más macaxeira, menos, o incluso nada,
puede que planten feijao o no… pero, con toda certeza, la mandioca es un
vegetal que no va a faltar nunca en ninguna huerta, inclusive en muchos
casos es la única cosa que se planta.
Por causa de esta importancia que se le da a este elemento en la
alimentación y en las propias estructuras sociales y familiares implicadas y
desplegadas en la producción de
la farinha se decidió estudiar cómo
funciona este fenómeno, cuál es la lógica interna en la organización familiar
para dar como resultado ese complejo sistema productivo y este sistema de
relaciones estratégicas entre las unidades productivas tan efectivo y
estratégicamente planeado aunque de manera inconsciente.
La mandioca, en general, y todo lo relacionado con ella, tanto el
producto de la misma, la farinha, como todo el proceso generado a su
alrededor para su elaboración, es de vital importancia no sólo a nivel
simbólico, sino también desde el punto de vista de toda la estructura social
y familiar que se moviliza y articula en el proceso, y todas las
representaciones colectivas que se tienen en torno al mismo.
De la unidad familiar a la unidad productiva. Proceso de formación y
organización
Como hemos explicado con anterioridad, Canutama es una población
pequeña formada principalmente por agricultores, y estos agricultores,
generalmente suelen tener familias grandes.Teniendo en cuenta que la
norma es que las familias sean grandes la unidad productiva se establece
del siguiente modo: (adoptando el criterio “nativo” consideraremos como
“grandes” aquellas familias que tienen más de tres hijos o hijas).
Para explicar nuestra hipótesis de la formación de la unidad productiva
nos basaremos en el caso de una familia nuclear formada por un hombre y
una mujer y los hijos varones y hembras producto de la misma.
106
Pueden existir varios casos:
Mientras los hijos varones son jóvenes; esto es, si todavía no han
tenido hijos o ya se casaron y tienen pocos hijos (menos de tres). Para
abreviar usaremos la secuencia “JV” cuando hagamos referencia a este
término: hijos varones solteros o casados con pocos hijos que trabajan en
la propia unidad de producción familiar junto a sus padres.
En esta situación, estos “JV” continúan en su propia unidad de
producción de origen junto con sus padres y además, los que están
casados, incorporarán a su esposa a su propia unidad productiva. Como
vemos, en este sistema son los varones los que se quedan en la unidad
productiva de origen y además incorporan nuevos miembros para dar
continuidad a la misma y son las mujeres las que salen. La esposa de “JV”
sale de su sistema productivo original que formaba con su propia familia
para pasar a formar parte de la unidad productiva del marido y esto sólo
ocurre después del matrimonio o la el concubinato.
Cuando “JV” van creciendo y a medida que van teniendo sus propios
hijos, siempre que su familia sea pequeña –esposa y hasta tres hijospueden seguir trabajando y obteniendo farinha de su unidad de producción
de pertenencia. Ahora, a medida que la familia de este “JV” va creciendo y
ya se tienen más de tres hijos o los que se tienen se van haciendo mayores,
en esta situación, este “JV” tiene que conseguir un roçado propio y formar
otra unidad productiva independiente formada por él, su esposa, sus hijos y
sus ayudantes, en el caso de que los hubiera.
En el caso de las hijas jóvenes mujeres continuarán trabajando en la
misma unidad productiva de sus padres y ganando exclusivamente farinha
de ésta siempre y cuando sean: solteras, separadas o abandonadas por su
marido (en estos casos no importa que tenga hijos o no, si los tiene, viven
con ella y son lo suficientemente mayores como para ser de ayuda en el
proceso, se incorporarán también a la unidad productiva materna).
En caso contrario, si las hijas están casadas y con varios hijos (el caso
más habitual), como ya se ha explicado, la hija será incorporada entonces a
unidad de producción de la familia del marido (en el caso de tener pocos
hijos –menos de 3-) o en el caso de que hayan tenido más hijos y formen,
por tanto, una familia grande, adquirirán tierra y formarán una nueva
107
unidad de producción formada por ella, su marido, sus hijos y sus
ayudantes en el caso de que los necesitase.
Debido a la fortaleza de las relaciones familiares en este contexto,
especialmente de las mujeres con su familia consanguínea, esta hija nunca
se desvinculará por completo de la unidad productiva de sus padres y de
vez en cuando cooperará por el bien de su unidad familiar de procedencia
(bajo la forma de unidad de producción) en el trabajo de uno u otro modo
(a través de trabajo físico, préstamo de material, haciendo la comida para
todos en la casa de farinha…).
Si la relación con su marido termina, la mujer tiene varias opciones:
puede salir de la unidad productiva del marido (tanto si se formó una nueva
como si se trabajaba en la unidad productiva de los padres del marido) y
volver a la unidad de producción de origen junto a sus propios padres y
hermanos en las condiciones anteriormente explicadas, o bien ayudar a
algún hermano (normalmente separado, soltero o de familia pequeña) o a
alguna hermana (suele ser el caso según lo observado debido básicamente
a la fortaleza de los vínculos femeninos en este contexto) para obtener
farinha.
Si por decisiones personales, esta hembra separada de su marido, no
quiere implicarse de forma tan directa y completa a las unidades
productivas
formadas
por
los
miembros
de
su
familia
nuclear,
tambiénpuede tener un empleo asalariado en otro lugar y trabajar
esporádicamente en las roças de sus padres o hermanos/as, como se ha
explicado, para ganar la farinha.
En el caso de que la hija esté enferma, los padres o hermanos le
fornecerán a ella y a sus hijos, en caso de que los tenga.
En el caso de los hijos varones que formaron su propia unidad de
producción y por ciertas circunstancias esta se vio quebrada, se observaron
varias alternativas:
-continuar con su propia unidad de producción y vender el excedente.
Al ser poca fuerza de trabajo seguramente va a necesitar ayudantes,
normalmente suelen ser familiares, amigos o conocidos, (en este orden).
108
- volver a la unidad de producción de origen. La farinha se reparte
entre los miembros de la unidad de producción y entre los propios
miembros de la familia, asegurando de ese modo que ninguno quede sin la
farinha básica que va a necesitar durante el resto del año.
Lo que se acaba de explicar es la estructura básica de la unidad de
producción y cómo y en qué circunstancias se van creando otras nuevas.
Pero también puede ocurrir el siguiente caso: unidades de producción en las
que trabajan las hijas casadas, y el marido de estas hijas y hasta los hijos
de este matrimonio trabajando en la unidad de producción de los padres de
ella.
Esto ocurre cuando:
- Los padres del marido no plantan (por tanto no es posible
incorporarse a la unidad de producción formada por la familia del marido
como sería lo razonable según la hipótesis plantea)
- El marido tiene otro trabajo alternativo como empleado de la
prefeitura, profesor,
pedrero etc que le imposibilite por tiempo material
tener un rozado propio. Entonces la mujer en este caso, se mantiene o
vuelve a su unidad productiva de origen para asegurar la farinha para su
familia y el marido ayudará esporádicamente cuando sus obligaciones
laborales se lo permitan.
En este caso particular de que el marido tenga un empleo remunerado
estable según la hipótesis que acabamos de plantear era de esperar que,
teóricamente, la mujer se incorporase a la unidad de producción de los
padres del marido. Pero en este caso no es así. Para explicar esta situación
tenemos que tener en cuenta el carácter social de este proceso, desde que
se cortan las manivas de mandioca hasta que se almacena la dorada farinha
en sacos. Por tanto, la explicación la debemos buscar precisamente ahí, en
los vínculos familiares especialmente fuertes que las mujeres agricultoras
canutamenses mantienen con su familia consanguínea. De ahí que, ya que
el marido no está implicado en el proceso productivo por tener otras
obligaciones laborales, estas mujeres quieran pasar todo este tiempo
empleado en la obtención de la farinha y realizar todo este proceso y esas
actividades con sus familiares directos en lugar de incorporarse a la unidad
de producción de los padres del marido, en el caso de que fuera posible.
109
Porque no sólo se hace farinha sino que se trabaja de un modo totalmente
social. En definitiva, este proceso productivo en general, y el espacio tanto
físico como simbólico proporcionado en la casa de farinha todo un conjunto
de importantes consecuencias personales y sociales.
Estrategias adaptativas de las unidades productivas para garantizar
la producción en situaciones extremas
Se observó en el campo un tipo de estrategia específica que consiste
en la alianza de varias unidades productivas de tal forma que, todas ellas, a
través de la ayuda mutua, obtengan al final del proceso su parte de farinha
en situaciones límites donde la cosecha corre peligro.
Para este tipo de formaciones de estas características específicas
utilizaremos el concepto de “grupo corporativo”.
Esta alianzas son imprescindibles dadas las características de las
unidades productivas que las forman ya que son formadas en periodos de
máxima necesidad y urgencia, sin las cuales la obtención de la tan deseada
farinha no es posible para ninguna de ellas.
Tales acuerdos son realizados cuando es importante trabajar a un
ritmo rápido para aprovechar la mayor parte de mandioca posible debido,
normalmente, a una inminente inundación del rozado plantado en la várzea,
producida por fuertes lluvias y consecuentemente, una rápida crecida del
río.
Las unidades productivas que se alían formando este grupo corporativo
se caracterizan por estar formadas por pocos miembros. Por “pocos
miembros” entendemos: un matrimonio formado por un hombre y una
mujer y los hijos de estos en igual número o menor a tres y/u otros
parientes de alto grado de proximidad de parentesco.
Los casos más típicos de estas unidades productivas aliadas son las
constituidas por:
hermanos casados, divorciados o solteros con pocos hijos,
hermanas solteras o divorciadas (con o sin hijos) o casadas que no
formaron una nueva unidad productiva por tener pocos hijos o porque su
marido tenía otro trabajo que le impedía tener una roça.
cuñados que no formaron una nueva unidad productiva por no tener
hijos o tener pocos y sus padres o hermanos no tenían rozado propio, de tal
110
forma que le es imposible incorporarse a unidades productivas de parientes
pertenecientes a su propia familia nuclear.
Además
de
ser
unidades
productivas
pequeñas,
otra
de
las
características es que estos miembros que las componen están ligados
entre sí por vínculos próximos de parentesco. Además, al tener sus rozados
adyacentes pueden compartir la misma casa de farinha. Esto,posibilita que
puedan establecerse más fácilmente relaciones de ayuda, intercambio e
inclusive alianzas y ciertos vínculos especiales de colaboración y ayuda
entre todos para que, por medio de la colaboración de todos los miembros
del grupo corporativo trabajando por un bien común, se consiga el beneficio
para a todos ellos en términos de obtención de la farinha a partir del
aprovechamiento de toda o la mayor parte de la mandioca de la roça.
Sin la existencia de este tipo de alianzas, todas las unidades
productivas saldrían perjudicadas. Apropiándome de las palabras del famoso
mosquetero, se podría decir que en este caso es una especie de “uno para
todos y todos para uno”.
Estas pequeñas unidades productivas se alían funcionando como si
fuera una sola, trabajando todas las personas de todas las universidades
productivas para multiplicar la fuerza de trabajo y realizar el trabajo en un
menor tiempo. En primer lugar se trabaja en los roçados que tiene más
peligro de inundarse para pasar posteriormente al resto.
Sólamente gracias a esta estrategia de compromiso y ayuda recíproca
de todas las unidades productivas se obtienen resultados que benefician a
todos los miembros en momentos inesperados y dramáticos donde está en
riesgo para todas las unidades productivas la posibilidad de recoger a
tiempo toda la mandioca que se plantó y torrarla, para obtener la tan
preciada farinha.
Ilustremos este planteamiento teórico con un caso práctico.
Pongamos por ejemplo el caso de la familia de Dona María de Fátima.
El grupo corporativo formado en torno a ella está formado por las siguientes
unidades productivas:
María de Fátima, su esposo Augusto (Chiquiño) y su hermano, Joao
Batista.
111
Raimundo Nonato (hijo de Maria de Fátima), su esposa Luciclene, sus
tres hijos (dos varones y una mujer) y un ayudante, Dinio, también
pariente.
Josemar (hijo de María de Fátima), su esposa y dos ayudantes: su
primo
Totó
(hijo
de
Joao
Batista)
el
hermano
de
su
esposa
y
ocasionalmente el hermano de su esposa que normalmente trabaja en la
roça de los padres.
Antonio de Jesús (hijo de María de Fátima), su esposa Francisca, su
único hijo Neném y un ayudante. Ese ayudante normalmente era el padrino
de Neném pero este año comenzó a trabajar en un puesto remunerado
mensualmente y ahora es la esposa de este padrino quien ayuda a Antonio
de Jesús (madre viuda que trabaja con la tía).
Forma de repartir la farinha
La cantidad de farinha obtenida dependerá del trabajo que se haya
realizado en la unidad de producción.
Si la unidad productiva que va a repartir es la familiar y tiene que
repartir entre los hijos varones (y puede que alguna hembra en las
condiciones que hemos explicado más arriba) se repartirá en función de las
necesidades de cada familia, porque normalmente se trabaja por igual. En
el caso de que se tenga que hacer el pago a ayudantes varones, la forma
más popular es hacerlo mediante “meia” es decir, a partes iguales, mitad y
mitad. Y se hace “meia” aunque el ayudante solo trabaje en la torrada
dejando el resto de los pasos a cargo de el y la cabeza de familia. Éste
último paso, el de torrar la farinha se considera el que requiere más
esfuerzo físico.
También debemos poner en relevancia que aunque algunos de los hijos
o hijas estén viviendo fuera de Canutama, los padres o los hermanos
varones integrantes de la unidad productiva familiar de referencia les
fornecerán de farinha (se constató este hecho especialmente en mujeres.
Eran varias las madres, los padres o hermanos que decían que mandaban
farinha a sus hijas que vivían en Manaus, a su hermana que vivía en Lábrea
etc.
112
En el caso de las ayudantes que sean mujeres, lo normal es que no se
obtenga “meia”, sino que se establezca un acuerdo previo de un
determinado número de alqueros23 por el trabajo realizado. Las mujeres
ayudantes suelen obtener menos farinha que los ayudantes varones al final
del proceso ya que se considera que el trabajo que hacen no es tan pesado,
tiene un valor social menor y, por tanto, está peor pagado.
Existen también otros casos, pero menos representativos, que se paga
a los ayudantes con dinero. Esto ocurre cuando el ayudante en cuestión no
precisa farinha por estar fornecido por otro lado. Este era el caso por
ejemplo de “el Pelao”, un sobrino de Dude. “El Pelao” vivía actualmente con
su abuela, la madre de Dude, porque la madre de “el Pelao”, hermana de
Dude, nunca se había hecho cargo de él. Como los padres de Dude tienen
rozado propio y el “Pelao” tiene garantizada la farinha en la mesa, “el Pelao”
trabaja en la unidad de producción de la abuela ya que vive en la casa de
ésta y come y bebe (como ellos decían) allí, y además, ayuda a su tío Dude
del que recibe dinero como pago.
Aspectos simbólicos entorno al proceso productivo
A continuación pasaremos a explicar todo el entramado simbólico
existente alrededor del proceso productivo de la farinha. Conviene aclarar
que se entiende este espacio simbólico como un espacio abierto y flexible,
en constante reconstrucción y resignificación que va tomando nuevas
formas y valores nuevos con el paso del tiempo y de las circunstancias
sociales, lo consideramos un proceso dinámico en lugar de algo fijo y
cerrado.
En primer lugar, hablaremos de la importancia de tener rozado propio.
Esto está referido a los varones especialmente. Las personas que
configuran la sociedad que venimos estudiando atribuyen un valor muy
positivo a los varones que tienen un rozado propio en las circunstancias de
que se tenga una familia de más de tres hijos o hijas. Socialmente se
espera eso de un varón en dichas circunstancias. Como ya hemos explicado,
23
1 alquero = 40 litros de farinha
113
desde el punto de vista de los agricultores canutamenses se considera el
hecho de tener farinha en casa una garantía del cuidado y el bienestar
alimentario de la familia; por tanto el varón que asegura esto para los
suyos, tiene la aprobación social de buen padre y cabeza de familia.
El caso contrario no está muy bien visto en este contexto. Este varón
del que
socialmente se espera que, por sus circunstancias personales
tuviera rozado y no lo tiene, no obtiene la aprobación de su sociedad y se le
atribuyen calificativos bien despectivos como vago, irresponsable o se
piensa que no cuida bien de su familia.
Todo ello es resultado del valor simbólico que tiene en esta sociedad
que estudiamos la farinha de mandioca unido al hecho de que en este
contexto es el varón es el cabeza de familia y está bajo su responsabilidad
abastecer a su familia de comida suficiente con la que alimentarse y de algo
de dinero para comprar los productos imprescindibles para llevar una vida
sin grandes carencias.
La casa de farinha como espacio físico y simbólico
Figura 9 – Una casa de farinha. Foto: Alba Garcia.
La casa de farinha es un lugar de trabajo y también es la extensión del
espacio privado, es un espacio público y también privado. Es el lugar de
trabajo pero también es el lugar donde toda la familia se reúne y conversa.
El proceso de producción de la farinha es el espacio simbólico que posibilita
114
las trocas entre los familiares, las relaciones de ayuda, de solidaridad, de
cooperación, de intercambio de cosas de diferente naturaleza, de trueque…
en fin, es un lugar de encuentro donde se fortalecen (todavía más) las
relaciones familiares y los vínculos de proximidad con otras personas
procedentes de otras unidades de producción sean procedentes tanto de
dentro como de fuera de unidad familiar. Por tanto, podemos decir que en
torno de esta actividad productiva y gracias a ella se establecen vínculos y
relaciones que crean y favorecen un clima de cooperación y solidaridad en
la comunidad donde el ambiente es hostil debido a las difíciles condiciones
de vida y la vulnerabilidad de las personas en este ambiente con
condiciones ambientales tan duras.
La casa de farinha, por tanto, no es solamente es un lugar de trabajo
sino también un lugar de encuentro, de diálogo, de diversión, de
intercambio de fortalecimiento y consolidación de relaciones. Ahí las
personas se reúnen diariamente en tanto dura la época de la farinhada y se
prepara gran cantidad de comida para todos para comer, beber, se ríe... Por
tanto, podemos decir que la casa de farinha es un espacio tanto público
como privado al mismo tiempo.
Los familiares directos como hijos, hermanos e inclusive losamigos
cercanos… suelen hacer todo lo posible para conseguir tener los rozados
cerca físicamente los unos de los otros y poder compartir la casa de farinha
o ayudarse más facilmente, y lo cierto es que según se observó en el campo
ocurre que casi siempre se consiguen pegando unos con los otros.
La sincronización entre dos unidades productivas en los diferentes
pasos del el proceso de productivo, posibilita que pueda compartirse ese
mismo espacio de trabajo simultáneamente entre ambas unidades.
El esquema sería el siguiente:
Por un lado tenemos una unidad productiva que está arrancando las
manivas
de
mandioca
y
poniendo
de
molho
(esto
va
a
durar
aproximadamente 3 dias). A partir deese mismo día los individuos de la otra
unidad productiva pueden tirar masa, prensar y penerar y usar la casa de
farinha para torrar durante esos tres días en el que la otra unidad
productiva no va a precisar de ella y viceversa.
115
Todo esto es posible gracias a una coordinación adecuada y exacta de
las actividades de ambas unidades.
Normalmente la casa de farinha es compartida por familiares que
tienen los rozados próximos aunque puede acontecer que se comparta con
amigos de rozados próximos. También puede darse el caso de que
familiares o amigos que no vayan a utilizar por ese año la casa de farinha la
presten sin pedir nada a cambio.
Cuando en la casa de farinha trabajan varias unidad pertenecientes a
la misma familia, la propia unidad familiar va a ocuparse de adoptar
diferentes estrategias para así adaptar las diferentes unidades productivas
dentro de ella para así garantizar que todos los miembros y sus respectivas
familias queden abastecidos. En muchas ocasiones para conseguirlo, se
necesita de los intercambios y colaboración de otros familiares y amigos
para completar el proceso y obtener así la cantidad de farinha necesaria
para abastecer a todos los miembros y pagar a los ayudantes, en caso de
que los hubiera.
Casi siempre las unidades productivas en algún momento del proceso
necesitan de ayuda extra. Esta ayuda puede tener dos formas: una más
formal, permanente o estable que se materializaría en la contratación de
ayudantes para torrar o arrancar. Y la otra es otro tipo de ayudas en las que
no hay ningún tipo de retribución pactada de modo explícito, pero que son
muy importantes ya que favorecen la buena relación entre ellos y
fortalecen y crean lazos afectivos. Puede considerarse como tipo “favores”
que se hacen. Con frecuencia las personas de diferentes unidades
productivas van a necesitar este tipo de ayudas que serán proporcionadas
básicamente por familiares y amigos.
A lo largo de la presente investigación queda reflejada en todos los
puntos la importancia que tienen en este contexto los vínculos familiares y
sociales. Tener una amplia y fortalecida red de parientes y amigos asegura,
como hemos visto, el éxito productivo de la unidad familiar en la obtención
de la farinha como en otros muchos aspectos de la vida en los que se pueda
precisar de algún tipo de “favor”, ya que como se ha observado en el
campo, en esta sociedad se producen muy frecuentemente este tipo de
116
intercambios sin pedir nada a cambio pero de los que se espera una
reciprocidad cuando en otra ocasión se precisare.
Este hecho de la importancia de tener muchos parientes se constata
cuando nos enteramos que, a después de casarse una pareja (o irse a vivir
juntos), la persona pasa a adquirir como propios los parientes de su pareja,
tanto próximos como lejanos. Es decir, que para la esposa, por ejemplo, la
hermana del marido de su cuñada pasaría a ser considerada una parienta
próxima como una cuñada o como una prima. Y la hija de ésta parienta
pasaría a ser como su sobrina. De este modo, y teniendo en cuenta que en
este contexto que venimos estudiando las familias son muy grandes, el
matrimonio es el mecanismo que posibilita ese aumento exponencial del
número de parientes y con ello el número de ayudas que pueden ser dadas
y recibidas.
Por tanto queda reflejado en el presente trabajo, el funcionamiento
sumamente colectivo de esta sociedad de agricultores canutamenses en
todos los aspectos de su vida y, en concreto, de la actividad productiva que
venimos analizando: la producción de farinha de mandioca. En este
contexto, no sería posible éxito de dicha actividad productiva sin la ayuda,
intercambios y diferentes formaciones estratégicas como ya hemos visto,
con otras personas que suelen ser parientes. Este último aspecto al mismo
tiempo, revela que esta sociedad además de funcionar de una forma muy
colectiva, lo cual favorece positivamente a todos sus integrantes, su
garantía de éxito asegurado, en prácticamente en cualquier aspecto de la
vida, se basa en tener muchos vínculos familiares fuertes y estables.
117
O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM
CANUTAMA, MÉDIO PURUS (PARTE II)
Thayná Ferraz da Cunha
INTRODUÇÃO
O presente estudo teve como objetivo investigar como se organizam
os sistemas de cultivo e beneficiamento da mandioca, focando-se assim em
descrever
e
analisar
os
aspectos
sociais,
cognitivos
e
simbólicos
relacionados ao complexo de produção da farinha na cidade de Canutama,
localizada no sudoeste do Amazonas, às margens do rio Purus.
Para alcançar os objetivos propostos, a equipe lançou mão de certos
procedimentos metodológicos como leituras gerais acerca da região do
Médio Purus e também sobre o tema proposto, realização de trabalho de
campo
(observação
participante),
utilização
de
caderno
de
campo,
gravador, filmadoras e máquinas fotográficas e elaboração de etnografias
temáticas, croquis e genealogias. Desde o início do trabalho de campo, a
equipe guiou suas observações a partir de certos elementos-chaves que
viriam a ter inúmeros desdobramentos ao longo de sua duração: critérios
de identificação das variedades da espécie, técnicas de beneficiamento
adotadas, calendário da produção e organização/mobilização dos grupos
sociais em torno da produção de farinha. Além disso, tentamos também
descrever e compreender os conhecimentos nativos sobre o ambiente de
cultivo e as formas de diferenciação entre mandioca e macaxeira entre os
agricultores de Canutama.
O trabalho de campo na cidade de Canutama foi realizado em trinta
dias, entre os dias 11 de janeiro e 11 de fevereiro de 2012. Optamos
(Ingrid, Alba e eu) por realizar apenas a descrição na cidade de Canutama,
onde a rede de relações tecidas a partir do processamento de mandioca e
sua descrição técnica já pareciam por demais complexas.
Assim que chegamos, fomos recebidas no porto por Leandro, um
funcionário do IDAM que havíamos contactado previamente, justamente por
ser a única referência que possuíamos na cidade. Após alocarmos nossas
coisas no alojamento, fomos realizar uma visita inicial as áreas de cultivo
próximas à cidade (chamada de Baixa Grande). Nesse dia, conhecemos e
118
conversamos com alguns agricultores que nos receberam muito bem em
suas casas de farinha. No fim dessa mesma tarde, enquanto estávamos
andando perdidas em uma parte da cidade mais afastada do Centro,
encontramos por acaso a primeira família que havíamos conhecido durante
a visita inicial daquele dia: a família de seu Chicó, composta por ele, sua
esposa Angélica e seus cinco filhos. Convidaram-nos para entrar e ficamos
conversando por horas com eles, com quem tivemos grande empatia. Como
no dia seguinte não iriam trabalhar na roça, nos convidaram para
apresentar uma área mais afastada da cidade onde há uma grande
quantidade de agricultores de Canutama plantando: a área da Beira do
Seringueiro. A partir desse passeio, nosso envolvimento com a família foi se
fazendo
diariamente
enquanto
íamos
acompanhando
essa
unidade
produtiva fazendo sua farinha. Esse tempo que nos dedicamos a isso foi
essencial não apenas pelas amizades que íamos construindo entre nós da
equipe que cada vez compartilhava informações e construía mais analises,
mas também com a família com quem convivíamos fundamentais no estudo
não só como observados, mas também como aqueles que muitas vezes
construíam esquemas de compreensão que iam de acordo com aquilo que
sabiam que observávamos.
O tempo em que nos focamos na convivência com essa única família
exclusivamente - mais por opção deles do que por alguma escolha nossa –
foi de inestimável importância por três principais aspectos: 1. participando
da produção de farinha deles íamos aos poucos ganhando familiaridade com
as categorias nativas, posto que eles tivessem paciência e generosidade
para nos explicar aquilo que perguntávamos ou que não entendíamos; 2.
conforme éramos apresentadas a diferentes agricultores íamos ganhando
confiança aos poucos e, sem precisar de nenhum tipo de aproximação
forçada, fomos construindo nossa rede de relações próprias que, baseadas
nessa aproximação, nos afastaram do universo de desconfiança dentro do
qual nos estávamos sendo classificadas como as ‘mulheres do IBAMA’ ou as
‘mulheres do governo’; 3. foi a partir dessa família que percebemos que era
a partir da unidade familiar que todo o sistema produtivo de farinha se
organizava.
119
A partir dessa última percepção, ajustamos o foco de nossa pesquisa
para, a partir dessa família extensa inicial, descobrir as dinâmicas sociais de
diversas outras ligadas a ela por parentesco. Como a maioria dos parentes
da família da esposa de seu Chicó – Angélica - morava na mesma rua,
traçamos a genealogia a partir das tias de Angélica, chamando atenção para
perguntas como: quem planta junto com quem? Quem ajuda quem? Quem
compartilha casa de farinha? Quem recebe farinha?
Além disso, começamos também a dividir a equipe, de maneira que
cada um costumava acompanhar etapas de preparo da farinha com
diferentes unidades produtivas, realizando comparações e diferenciando os
espaços. Nesse sentido, estar familiarizado com algumas categorias nativas
básicas foi de extrema importância, a fim de potencializar as observações
em um tempo mais reduzido. A partir disso, conseguimos observar alguns
padrões de organização social que foram de fundamental importância para
o prosseguimento da pesquisa. Passada a euforia a descoberta, as
observações começaram a se repetir e, a partir disso, optamos por nos
aprofundar em outros temas que tinham surgido mais recentemente e que
não tinham sido minunciosamente descritos e analisados, como interação
entre agricultores que plantam em diferentes ecossistemas: terra firme e
várzea.
Após esse esboço sobre o desenvolvimento do trabalho de campo, fazse necessário traçar um breve panorama a respeito da cidade de Canutama
a fim de que se coloque claro que a área de cultivo e a dinâmica social aqui
descrita e analisada é apenas uma dentre as diversas outras nas quais se
inserem os moradores dessa cidade.
Com uma população de aproximadamente 8.181habitantes, a cidade de
Canutama é formada principalmente por agricultores, funcionários públicos
e alguns comerciantes. Donos de pequenas vendas no centro da cidade, os
comerciantes são aqueles que, além de trazerem ou encomendarem
mercadorias de polos urbanos como Manaus, Porto Velho, Cruzeiro do Sul e
Lábrea, compram farinha e castanha de alguns moradores de Canutama
para vender para empresas ou outros compradores nesses polos urbanos
maiores. Muitos dos comerciantes são aqueles considerados como os mais
ricos da cidade e são justamente eles os donos dos barcos recreios que
120
realizam a rota Manaus- Canutama-Lábrea e também aqueles que possuem
fazendas com criação de gado.
A maior porcentagem da população de Canutama, contudo, é formada
por agricultores assalariados. A maioria desses plantadores é também
pescador durante certas épocas do ano e alguns também são coletores de
açaí e castanha. Embora alguns também extraiam seringa, essa atividade
se mostra pouco expressiva em Canutama: embora essa matéria-prima
atualmente
apresente
certa
valorização,
apenas
alguns
dos
antigos
seringueiros voltaram a trabalhar com essa atividade, enquanto a maioria
dos jovens e adultos habitantes de Canutama não possui nenhum tipo de
interesse nela.
No
que
diz
respeito
à
agricultura,
os
moradores
cultivam
principalmente mandioca (mandioca-brava), macaxeira (mandioca-mansa),
milho, jerimum, batata-doce, maxixe, feijão (apenas nas chamadas praias)
e banana (ver calendário agrícola). Dentre esses cultivos, destaca-se a
importância da mandioca, cujo calendário agrícola e beneficiamento
desencadeiam uma profunda mobilização de grupos familiares a fim de
abastecer todos os seus membros com farinha, produto este último de alta
importância alimentícia e simbólica para os agricultores canutamenses. Os
mesmos produzem farinha principalmente para o consumo de sua unidade
produtiva (aspectos que serão
abordados
em outros
tópicos
desse
relatório), podendo ocorrer um eventual comércio caso seja requerido por
alguém.
Contudo, a comercialização é muito incipiente e ocorre geralmente em
nível local (entre vizinhos ou, em alguns casos, com comerciantes
próximos), visto que não há mercados ou feiras onde a produção possa ser
vendida em maior escala, nem cooperativa de agricultores que organize a
distribuição dessa farinha para polos urbanos maiores. A renda dos
agricultores usada na compra de outros gêneros alimentícios se baseia em
benefícios sociais concedidos pelo governo federal, como Bolsa Família e,
para a maioria que também é pescador, Bolsa Pescador (para que não haja
pesca durante a época reprodutiva de algumas espécies de peixe, de
novembro a março).
121
As principais áreas de cultivo relacionadas diretamente com a dinâmica
da cidade de Canutama e seus moradores estão localizadas em dois
ecossistemas distintos dentro do bioma amazônico: várzea e terra firme.
Enquanto o primeiro corresponde à faixa de terras marginais aos rios de
águas brancas (ricos em minerais e matéria orgânica) que compõe uma
planície aluvial de grande largura sujeita a inundações sazonais, onde se
forma um sistema complexo de canais, lagos e ilhas com vegetação
adaptada à dinâmica de cheia e vazante dos rios (SIOLI, 1951) O segundo
corresponde ao ecossistema mais extenso dentre aqueles do bioma
amazônico, apresentando terras com relevo mais alto e, portanto, não
afetadas por alagamento, com vegetação mais densa e escura que mantem
maior umidade no ambiente.
Para além das particularidades em relação à formação e composição
do solo, distribuição e características da fitofisionomia, ciclagem de
nutrientes e fluxo de energia, essas duas ordens de paisagem constituemse também como áreas onde os sistemas produtivos e as formas de
organização social em torno deles se deram de maneira muito distinta.
Tentaremos, a partir desse momento, apresentar as diferentes áreas de
cultivo em que os agricultores moradores de Canutama cultivam e como
costumam separa-las em seu discurso. É importante ressaltar que essa
exposição irá se focar justamente na dinâmica dos cultivos empreendidas
por grupos familiares agricultores que moram em Canutama, o que muitas
vezes está para além da área urbana. O trânsito constante entre área
urbana (cidade de Canutama) e área rural do município de Canutama faz
dos mesmos um verdadeiro continuum, de maneira que determinados
períodos do ano são passados em diferentes espaços, mas a residência na
cidade sempre é mantida.
Essa apresentação servirá também para fornecer informações um
pouco mais detalhadas sobre aspectos do cultivo na terra firme, ambiente
sobre o qual não iremos nos debruçar nesse trabalho. Logo em seguida,
portanto, nos aprofundaremos nos sistemas produtivos e relações sociais
que acontecem no ambiente de várzea, especificamente na área chamada
de Baixa Grande, na qual se realizou grande parte do trabalho de campo e,
portanto, sobre o qual tentaremos descrever com mais precisão e riqueza
122
de detalhes. Por fim, serão apresentadas as relações que se tecem entre
agricultores de terra firme e várzea e como as plantas estão envolvidas
nessas redes.
Figura 10 - Croqui de uma área de produção de farinha. Autora: Thayná Ferraz da Cunha.
123
Tabela 3 – Calendário agrícola. Autora: Thayná Ferraz da Cunha.
Plantio
Jan
Fev
Mar
Abril
Maio
Junho
Julho
Agosto
Setembro
Outubro
Novembro
Dezembro
______
______
_____
______
_____
Mandioca
Milho
Milho
Milho
Milho
Banana
_______
Macaxeira
Feijão-de-
Banana
praia
(época da pesca)
Batata-doce
(época da pesca)
Jerimum
Maxixe
Milho
Feijão-de-praia
Capinagem
Colheita
______
______
Mandioca
Mandioca
Maxixe
Macaxeira
Batata-
_____
_____
______
______
_____
Banana
_____
Mandioca
Mandioca
Mandioca
Mandioca
Mandioca
Mandioca
Macaxeira
Macaxeira
Macaxeira
Macaxeira
Macaxeira
Macaxeira
Feijão-de-praia
Feijão-de-praia
Milho
Milho
Maxixe
Maxixe
Maxixe
Maxixe
Maxixe
Milho
Milho
Milho
Milho
Maxixe
Feijão-de-praia
Macaxeira
Jerimum
Batata-
doce
doce
124
Terra firme
Muitos agricultores de terra firme possuem duas habitações: uma na
terra firme e outra na cidade de Canutama. Os roçados na terra firme da
maior parte moradores de Canutama se localizam ao longo do rio Mucuim.
Costumam passar por volta de quinze dias na terra firme e sete em suas
residências em Canutama. As esposas, em geral, permanecem morando na
cidade ao longo do ano inteiro, só indo para a terra firme durante os meses
de janeiro e fevereiro, época das férias escolares dos filhos. Algumas
também
costumam
ir
por
vezes
para
ajudar
na
capinagem
e,
principalmente, no plantio. O homem, portanto, costuma trabalhar na terra
firme sozinho, acompanhado de algum filho, irmão, cunhado ou de algum
ajudante que more próximo ao roçado. As etapas da roçagem e derrubada
ocorrem em maio ou junho, a queima acontece em agosto e, em setembro,
realizam o plantio. A primeira capina é realizada em janeiro e acontece
depois disso de três em três meses.
Durante a época que fazem farinha, o que pode acontecer em qualquer
momento do ano, mas em geral ocorre entre maio e novembro, apenas os
homens trabalham. Quando estão sozinhos, muitas vezes contratam um
ajudante que mora próximo ao seu roçado na terra firme. Durante o inverno
(janeiro, fevereiro, março, abril, maio), os agricultores de terra firme
produzem farinha em pequena escala apenas para consumo próprio. Em
meados de maio, antes de começar a época de verão (junho, julho, agosto,
setembro, outubro, novembro e meados de dezembro), dão início ao
beneficiamento da farinha para que possam aproveitar e transportar a
farinha de barco até a cidade. Os agricultores produzem farinha em grande
quantidade a fim de comercializa-las em Canutama. Embora prefiram
vender sua produção para amigos que vão até suas casas e compram litros
avulsos - os quais costumam pagar um preço mais elevado porque
reconhecem o esforço empreendido na produção e no transporte - por vezes
acabam tendo que negociar com comerciantes dos mercadinhos da cidade,
os quais acabam pagando pouco pela farinha ou a trocando por gêneros
alimentícios (rancho) pedidos pelo agricultor – levam esse rancho para suas
casas localizadas em áreas rurais que são curiosamente chamadas de
centro.
125
Transportam desde 15 alqueiros de farinha até 30 sacos de lona. É
importante chamar atenção para o fato de que a farinhada, em geral, é
programada para ser realizada na época em que o estoque de farinha dos
agricultores da várzea já está baixo, isto é, costumam aguardar até “falhar
a farinhada deles” para trazer então seus produtos para venda, que terão
seus preços elevados ao dobro. A variedade de mandioca majoritariamente
utilizada na produção de farinha é chamada de samauma, havendo outros
que plantam também janauaca, orana, cubiçada, jabuti, pirarucu. Em geral,
os agricultores de terra firme não gostam de plantar variedades de
mandioca que tenham tempo de maturação de seis meses, pois caso
ultrapasse esse tempo a plantação o tubérculo estraga e o agricultor acaba
tendo grande prejuízo. Em geral, estão habituados com variedades de terra
firme que não apreciam ter épocas certas para serem arrancadas. Segundo
muitos deles, preferem variedades de ano ou mais, pois com elas podem
“fazer uma farinha mais descansada”. Os poucos preparam farinha de
variedades de seis meses, como a ituqui e flecha, costumam preparar
apenas o suficiente para consumo próprio e não para venda. Nesse caso, ao
plantar separam essas variedades em áreas mais baixas do terreno para
arrancarem mais rápido, enquanto aquelas com tempo de maturação maior
plantam em locais mais altos para arrancar os tubérculos apenas quando
quiserem fazer farinha para vender. Em muitos casos também os
agricultores plantam variedades de seis meses (adaptadas à várzea) apenas
para manter as sementes (fragmentos para reprodução vegetativa), pois
apreciam sua farinha resultante, embora não tenham o costume de
prepara-la com frequência.
Quando são confrontados com a comparação entre o cultivo na terra
firme e na várzea, os agricultores de terra firme afirmam preferir a terra
firme por não estar sujeita a inundações da cheia do rio (nessas condições a
mandioca apodrece), por não terem pressa em processar a farinha, por não
precisarem realizar plantios todos os anos (fazem apenas um único
replantio na mesma área) e por poderem plantar árvores frutíferas no
roçado. Contudo, ressalvam que a capinagem na terra firme é mais penosa,
pois a quantidade de espécies gramíneas aumenta rapidamente do primeiro
126
ano de plantio para o segundo, sendo necessárias praticamente capinas
mensais.
Uma parte dos agricultores de terra firme planta variedade de
mandioca adaptadas à várzea apenas para vender seus fragmentos
propagativos (sementes) para os plantadores da várzea. Chegam a trazer
para cidade até 70 feixes (cada um possui de 40 a 50 varas de mandioca).
Os principais cultivares plantados é olho verde e mantegueira amarela,
sendo também encontrados os tipos: flecha, ituqui, baixota. Escolhem
principalmente os dois primeiros por acharem que mantegueira amarela e
olho verde apodrecem menos em solo úmido. Tanto talo encarnado, quanto
mineva, socó e mantegueira preta são plantadas por poucos deles, pois
acham, por exemplo, talo encarnado é dura para arrancar do solo e com
muita fibra.Esse tipo de interação entre os agricultores desses dois
ambientes será descrito com maiores detalhes nos últimos tópicos desse
relatório.
Os
agricultores
afirmam
que
as
variedades
de
mandioca
adaptadas à terra firme possuem raízes tuberosas mais grossas que as de
várzea, além de serem mais saborosas e menos aguadas. As de terra firme
também possuema casca da batata de mandioca mais grossa, massa mais
fina e amarela e a farinha menos avermelhada. Outra diferença percebida
nas de terra firme é a coloração mais escura, tanto das partes aéreas da
planta (caule e folhas), quanto da casca do tubérculo, admitindo essa
diferença à “força da terra”.
Em relação ao cultivo de macaxeira, a maioria prefere plantar
principalmente macaxeira-juriti porque ela engrossa mais que as outras. O
plantio é feito em pequena escala, apenas para consumo. Alguns, no
entanto, vendem sacos de macaxeira para lanchonetes e comércios da
cidade, realizando grandes plantios da mesma.
Alguns plantam também
macaxeira-pão, pois amadurece mais rápido que as demais, embora
também apodreça mais rápido, pois tem tempo de maturação de seis
meses. Não produzem farinha seca de macaxeira.
Em relação ao solo, os agricultores dizem que terra firme possui uma
composição com maior teor de areia do que argila, mas justamente por isso
a percolação é mais rápida e o solo tem alto potencial de drenagem, por
isso os tubérculos não apodrecem facilmente com a umidade. Por outro
127
lado, o solo também é mais quente, o que não é muito vantajoso. As áreas
que possuem composição mais misturada do teor de areia com argila
costumam ser melhores para o plantio de mandioca.
Para além da maioria dos agricultores de terra firme que possuem
seus roçados no rio Mucuim, alguns possuem suas áreas de cultivo na ilha
de terra firme localizada na própria cidade de Canutama, área localizada ao
lado do clube aéreo da cidade e conhecida pelos moradores como “banda da
terra firme”, a única parte da cidade que não alaga durante inundações
intensas. São poucos os que plantam nesses locais, pois além da prefeitura
retira dai barro avermelhado para aterrar suas principais obras, existe
também aí o depósito de lixo da cidade, restringindo muito a área onde se é
possível plantar. Os que ali plantam, portanto, possuem terreno pequeno
apenas com a função de manter as sementes de mandioca e macaxeira que
plantam em maior escala em suas roças localizadas no ambiente de várzea.
Contam que não realizam a retirada da batata de mandioca, apenas cortam
as partes aéreas da planta para que ela volte a se desenvolver. Isso pode
ser realizado por três anos seguidos sem ocorrer o esgotamento do solo,
pois “sem tirar a batata, não puxa muito da terra”. Passados esses três
anos, a pessoa deve retirar a batata do solo e realizar um primeiro
replantio. Passados mais três anos, deve-se então preparar outro roçado.
Disse que possuía apenas variedades de mandioca de várzea: olho verde,
talo encarnado, flecha amarela, socó e mantegueira-preta; e uma variedade
de macaxeira de várzea chamada de macaxeira-pão. Também plantam
algumas árvores frutíferas, aproveitando que o terreno não alaga. Possuem
também, logo na área paralela ao roçado de terra firme, um roçado de
banana e milho localizado num ambiente de várzea.
Além desses dois grupos de terra firme que tem seus agricultores
ligados a Canutama, existe ainda uma terceira, localizada próxima à beira
do lago da Padaria (ver mapa), onde a maior parte dos roçados são
também para manutenção de semente de mandioca e macaxeira e também
para cultivo de banana, ingá e outras frutíferas.
128
Várzea
Praia
As áreas de cultivo de várzea que se localizam na beira do rio Purus
são conhecidas pelos moradores de Canutama como praia. Trata-se da área
de cultivo localizada na cidade de Canutama que possui cultivo mais antigo,
sendo encontradas até três gerações de uma família que plantam em uma
mesma praia. Os terrenos pertencem à marinha brasileira, sendo permitido
utiliza-los para plantio. Um agricultor pode fazer o tamanho de roça que
bem entender desde que não ultrapasse o limite do plantador ao lado. As
roças são separadas por tornos, pedaços de madeira colocados em suas
duas extremidades.
Assim como a área da Beira do Seringueiro, nas praias o inicio do
beneficiamento da mandioca também tem que começar cedo, o que
também é facilitado pelo fato de existir muita água disponível para colocar a
mandioca de molho. É possível, portanto, encontrar agricultores colhendo a
mandioca com apenas cinco meses, mas a maior parte prefere esperar até
janeiro para que as raízes tuberosas engrossem mais. Essa espera, porém,
implica na realização de um processamento da mandioca mais intenso e
acelerado desde do princípio, tendo em vista que são as primeiras áreas de
várzea a serem atingidas pela inundação do rio Purus. Os agricultores que
cultivam nessa área, portanto, acabam tendo que fazer uma dita “farinha
mais ligeira”. Na época que a alagação começa a se intensificar, entre o
final do mês de janeiro e inicio de fevereiro, os plantadores costumam dizer
que estão “aperrados” e frases como “ou a gente faz ou o rio faz pela
gente” e “a gente espera pelo rio, mas ele não espera pela gente” se
tornam
corriqueiras
entre
os
agricultores.
Nessa
fase
ocorre
uma
intensificação expressiva das interações e ajudas mútuas não só entre
parentes, como entre amigos que moram próximo. Não é raro encontrar
dois amigos torrando junto, cada um com um remo, mexendo a farinha no
forno. Cada dia beneficiam a farinha de um e assim todo processo é
agilizado, sem que ninguém tenha sua colheita prejudicada.
129
Figura 11 - Casa de Farinha e depósito na beira do rio Purus. Foto: Thayná Ferraz da
Cunha
Segundo os agricultores das praias, nas faixas de terra marginais ao
rio de águas brancas, cada inundação da várzea permite que o fluxo do rio
mude o relevo do terreno. Isto é, após cada alagação anual do rio Purus, a
área alta, chamada de lombo, onde estão depositados um grande nível de
sedimentos (chamado de aterro ou adubo) cresce para frente. Atrás do
novo lombo que surgiu existia antes um barranco, que acaba se desfazendo
ou quebrando com a nova alagação, tornando-se assim uma área um pouco
mais baixa, com menos sedimento/aterro acumulado do que antes.
Conforme os anos vão passando, esses antigos lombos vão assim ficando
cada vez mais para trás, sendo esses locais utilizados para o plantio de
arroz, jirimum (abóbora), melancia e milho. Nesses locais há um maior
crescimento de espécies de gramínea, como capim-de-burro. Além disso,
neles nasce também à espécie embaúba e, por isso, dão o nome do local de
embauzal.
Conforme vai ficando para trás e também mais baixo, com o
passar do tempo esses antigos lombos irão virar áreas de chavascal,
constantemente alagadas, mudando também sua distribuição de espécies
vegetais. Atrás dessas áreas de chavascal e, conforme a faixa de terra vai
se afastando mais da margem fluvial, o terreno torna-se grutião (área baixa
e área alta), onde existe apenas mata.
Os agricultores contam que essa
dinâmica de mudança na deposição de sedimentos durante as cheias é
esperada todo o ano e, por isso, calculam o local onde irão realizar o
próximo cultivo de acordo com aquilo que irá aparecer durante a época de
vazante: “A natureza é perfeita: faz e desfaz”.
130
O plantio realizado em julho na areia branca mais próxima a margem
do rio é o de feijão-de-praia, que inclui diversas variedades como feijão
barrigudinho; branco/leite; vermelho, manteguinha, curujinha, arrombahomem, cujas sementes são guardadas de um ano para o outro em
garrafas pets bem fechadas. A capinagem do feijão-de-praia é realizada nos
meses de julho e agosto e, sua colheita, em outubro. Os agricultores da
praia afirmam que é bom de plantar na areia branca porque alaga todo ano,
o que acaba esfriando a terra, mas no verão não é possível plantar nela
praticamente nenhum cultivo, pois a areia fica muito quente e, como possui
alta capacidade de drenagem, não retém umidade, fazendo com que as
plantas morram ressecadas.
Já o plantio de mandioca é realizado em junho, na chamada terra de
lombo ou na parte de seu entre-vão com uma área baixa. Essa faixa que
fica atrás da areia branca e possui temporariamente um relevo mais
elevado pela deposição de sedimentos que ocorreu ao fim da última cheia. A
composição do solo nessas faixas, segundo os agricultores, é de areia e
barro misturados, sendo predominante a presença de barro conforme o
relevo da terra aumenta. Essa composição dos lombos é considerada boa
para que tubérculos da mandioca se desenvolvam mais, mas é maior
também a dificuldade de arranca-los. Já nas áreas de entre-vão, como a
composição do solo é formada por um teor proporcionalmente maior de
areia que de barro, acaba sendo mais frouxo e a colheita, mais fácil.
Passado o plantio nessas áreas, a primeira capinagem ocorre em julho,
ocorrendo duas vezes ao longo desse mês. Nos meses de agosto e
setembro a roça já está grande e não precisa mais de capina. No final de
dezembro iniciam a farinhada, durando o mês de janeiro e inicio de
fevereiro.
Os agricultores mais novos costumam cultivar as variedades de
mandioca chamadasmantegueira amarela, flecha amarela, olho verde. Já os
mais velhos, que plantam na região há muito tempo e cujos pais também
plantaram no mesmo local, costumam plantar apenas mantegueira-preta.
131
Área do Seringueiro (composta pela área de cultivo da Beira do Lago
do Seringueiro e área da Baixa Grande)
A macro-área do Seringueiro é um complexo que engloba duas outras
áreas menores localizadas próximas uma da outra, mas que podem ser
diferenciadas
pela
distância
espacial,
relevo,
nível
de
inundação,
proximidade com a cidade, práticas agrícolas, momento inicial e duração do
beneficiamento da farinha e até mesmo por sua composição social. Essas
dois espaços menores podem ser chamados de área da Beira do Lago do
Seringueiro e área da Baixa Grande.
Enquanto as praias do rio Purus já são utilizadas para o cultivo há
muito tempo, o
plantio
naquilo
que
chamamos
de
macro-área do
Seringueiro é bastante recente. Há quatorze anos alguns fragmentos de
vegetação foram derrubados nas proximidades da beira do lago do
Seringueiro (ver croqui) para a plantação de arroz e milho. Contudo, essa
iniciativa nunca se concretizou e as áreas ficaram desocupadas, de maneira
que alguns moradores de Canutama começaram a utilizá-la para plantar
principalmente mandioca e macaxeira para próprio consumo. Passados
cerca de dois anos do inicio do plantio, nesse espaço, alguns dos
agricultores que lá plantavam resolveram tentar transferir sua área de
cultivo para uma mais próxima da cidade, vindo a plantar então na
chamada Baixa Grande.
No inicio, a maior parte dos agricultores da Praia e da Beira do lago do
Seringueiro não acreditava que o solo daquela área iria ser próspero para o
cultivo e, por isso, apenas poucos agricultores tomaram a atitude de mudar
o local de cultivo. Porém, conforme a produtividade dos mesmos foi se
mostrando alta, além de outros tantos realizarem essa transferência, muitos
moradores da cidade começaram a plantar também. Segundo os próprios
agricultores, estimam que atualmente cerca de 80% da população da
cidade de Canutama plante, produzindo sua própria farinha. Tentaremos
então
apresentar
as
duas
áreas
englobadas
pela
macro-área
do
Seringueiro: Beira do lago do Seringueiro e Baixa Grande. Será sobre a
segunda, contudo, que iremos nos debruçar ao longo dos próximos tópicos
desse relatório.
132
A Beira do Lago do Seringueiro é considerada área rural do município
de Canutama. O terreno localizado em uma das margens do lago do
Seringueiro é uma área bastante baixa, que alaga fundo. Do outro lado da
margem, existe uma parte que alaga raso (onde estão as roças) e uma
parte alta (várzea alta), onde se localizam as casas de farinha (que
raramente alagam). Essas áreas de cultivo na várzea (chamada de vazante)
que estão justamente na beira do lago Seringueiro tem seu nível de água
acrescido durante a época cheia por conta do enchimento do igarapé que o
liga a um lago muito maior, chamado Itapá (este sim possui conexão com o
rio Purus através do igarapé do Sacado, sendo através dele que se dá a
entrada do fluxo de água). É justamente essa área, portanto, uma das
primeiras a sofrer inundações provenientes da cheia do rio Purus e também
uma das que tem o nível de alagação mais profundo. Quem possui roça aí,
logicamente são os primeiros a começar a dita farinhada.
Como possuem uma parte de seu terreno localizados num ambiente de
várzea com relevo mais alto, nessa área da Beira do Seringueiro se
encontram as casas de farinha mais equipadas de recursos e equipamentos,
como telha de alumínio e uma espécie de homogeneizador da massa. Os
donos, em geral, são funcionários públicos da cidade, isto é, diferenciadas
pelos demais agricultores como pessoa ‘que tem renda’, tendo assim
recurso para investir na produção de uma farinha mais trabalhada, que em
geral é comercializada.
Nesses meses de janeiro, esses funcionários públicos que aí possuem
roça costumam pedir suas férias e levam consigo toda a família para morar
nessa área durante todo o processo de produção de farinha. Há nessa área
alta, portanto, pequenas casas de madeira onde a família passa todo o mês
de janeiro e que, posteriormente, servirão de depósito para a farinha. Ao
final do processo voltam para Canutama, mas deixam a produção naqueles
depósitos e, quando os terrenos estão amplamente alagados, realizam o
transporte até a residência em Canutama. Como possuem um lago próximo
de água corrente, podem retirar a goma da mandioca quando bem
entendem. Além disso, o lago lhes permite colocar a mandioca de molho,
podendo assim começar o processamento de mandioca mais cedo que os
agricultores da área da Baixa Grande.
São, portanto, os primeiros a
133
terminar a farinhada e, muitas vezes, emprestam suas casas de farinha
para amigos, vizinhos ou parentes agricultores da Baixa Grande terminarem
de torrar sua farinha, tendo em vista que as suas próprias acabam sendo
alagadas.
Figura 12 - Beira do Lago do Seringueiro. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.
É
importante
ressaltar
que,
embora
a
composição
social
dos
agricultores dessa área seja majoritariamente formada por funcionários
públicos, existem diversas pessoas aí que fogem a regra e se dedicam
integralmente a agricultura e a pesca.
Voltando a seguir a dinâmica das águas durante a cheia do Purus, após
a cheia do lago do Seringueiro, essa água começa gradualmente a encher o
chamado igarapé da Baixa Grande, o qual conecta justamente as áreas da
Beira do Lago do Seringueiro e Baixa Grande. Quando então esse igarapé
começa a transbordar se diz então que “o rio represou”, isto é, começou a
inundar o terreno. O terreno da área da Baixa Grande, partindo desse
igarapé até o centro da cidade de Canutama, apresenta crescimento de
134
relevo e, portanto, vai sendo alagado gradualmente tanto pela inundação do
igarapé quanto pelo acúmulo das chuvas principalmente nas áreas mais
rebaixadas da área. É justamente o que se passa com o sistema produtivo
dessa área da Baixa Grande que iremos, nos próximos tópicos, tentar
descrever e analisar a partir não só da dinâmica ecológica, mas também
dos mecanismos sociais dinamizados por essa forma de produzir.
Organização do Sistema Produtivo na Várzea: a área da Baixa
Grande
A área da Baixa Grande, localizada próxima ao centro de Canutama, é
um vasto terreno pertencente ao Estado, onde se é permitido que qualquer
morador de Canutama cultive o tamanho de terra que desejar para
consumo de sua unidade familiar. Considerando que a maior parte da
população de Canutama planta e que as proximidades da cidade são áreas
valorizadas para isso, pode-se encontrar no local uma extensa quantidade
de plantações que, aos olhos de qualquer visitante, parecem indistinguíveis
limites entre elas. Contudo, nessa grande faixa de terra existem inúmeros
agricultores que sabem precisamente onde começa e onde termina suas
áreas de cultivo. Cada uma dessas áreas de cultivo, como se encontram no
ambiente de várzea, é chamada de vazante pelos agricultores. Cada
vazante é delimitada pelo início da vazante do vizinho, sendo separadas por
uma extrema, isto é, pedaços de tronco queimados fincados em linha no
terreno (“na cidade, uma parede não divide a casa? Pois é... aqui é a
extrema que divide a roça”). Cada vazante, portanto, possui quatro
extremas, visto que faz fronteira com quatro outras vazantes. As extremas,
contudo, apenas são colocadas para separar áreas de cultivo de vizinhos
que não sejam parentes ou amigos próximos. Caso o sejam, as delimitações
são feitas apenas por acordos verbais no qual separam as vazantes por
características físicas do terreno como árvores ou relevo e até mesmo por
afastamento das linhas de plantio.
Um espaço que ainda não tenha sido plantado, depois que passa pelas
etapas de roçagem (extração das plantas de menor porte, como as
herbáceas) e derrubada (retirada das espécies arbóreas) e, posteriormente,
pela queima, coivara e plantio no ano seguinte, passa a ter um determinado
dono, pois todos sabem que o agricultor começou ali um cultivo. Portanto, a
135
propriedade do espaço não se dá no nível burocrático, mas é legitimada
socialmente através do trabalho que determinada pessoa teve ao retirar
toda sua vegetação e queima-la.
Por isso, uma terra usada pode ser
anunciada no rádio e vendida de um dono para outro através de um
contrato oral, no qual o proprietário irá calcular o preço da vazante de
acordo com seus dias de trabalho para prepará-la. Caso o proprietário tenha
a intenção de algum dia ainda utilizar aquela área, pode também negocia-la
temporariamente por algum tipo de troca, como, por exemplo, três sacos de
farinha do que foi produzido anualmente naquela terra. Muitos dos
agricultores, contudo, apenas estabelece esse tipo de negociação com
parentes, posto que outros por vezes repassem a terra para outras pessoas
e quebram o acordo anterior. Esses parentes podem plantar na área sob a
condição de não o repassarem a ninguém quando não queiram mais plantar
nele, devolvendo-o automaticamente a seu antigo dono.
A outra possibilidade é o dono não repassar aquela terra a ninguém,
abandoná-la por alguns anos, deixando que vire capoeira. Mesmo não
sendo utilizada, ninguém plantará na área, pois todos sabem quem é o
dono que já plantou ali, sendo então preciso comprar do mesmo ou recebela de doação. A maior parte dos agricultores possui uma vazante sendo
usada e outra abandonada. As terras mais valorizadas e cobiçadas para
compra são aquelas que estão mais próximas da cidade, tendo em vista que
essa disponibilidade já está muito restrita atualmente. A distância da
vazante até a residência do plantador na cidade de Canutama configura-se,
portanto, como um fator muito importante na escolha da área de cultivo,
tendo em vista que o transporte da farinha até a residência é algo
considerado trabalhoso.
O tempo de utilização de uma mesma roça varia muito, podendo
atingir mais de doze anos consecutivos. Durante esse tempo, quando
alguma parte da vazante - terreno em que plantam a roça de mandioca –
começa a não apresentar boa safra de mandioca, são realizadas estratégias
para que aquele espaço continue sendo incorporado ao plantio, como por
exemplo, a introdução de variedades de mandioca que estejam mais
adaptadas a solos mais utilizados ou empobrecidos; transferência de
variedades para outras partes do terreno ou até mesmo a realização de
136
pequenas expansões do terreno para plantio (onde plantam macaxeira e
variedades de mandioca que crescem bem em terra nova).
Quando, contudo, a produtividade da roça se mantem baixa, os
agricultores abandonam a área, deixando que a mesma permaneça dois ou
três anos sem nenhum tipo de plantio, passando para o estágio sucessional
de capoeira, quando estão podem ou não retomar as atividades na mesma.
Durante esses anos, o agricultor procura uma área para sua nova roça que
esteja relativamente próxima da antiga, visando assim utilizar a mesma
casa de farinha. Caso não haja terreno disponível para preparar uma área
de plantio (vazante) ou até mesmo comprá-la, o agricultor terá que
desfazer-se de sua casa de farinha anterior, levando todos os componentes
e instrumentos nela contidos para assim construir uma mais próxima da
nova roça. É importante ressaltar que esse deslocamento da casa de farinha
implica em um distanciamento entre o local onde a farinha é produzida e
onde a mesma é armazenada (residência na cidade), tornando assim o
transporte
da
produção
mais
trabalhoso.
Por
esse
motivo,
alguns
agricultores preferem manter a casa de farinha próxima à residência e
transportar a massa de mandioca até ela, onde todo o processo de
beneficiamento ocorre.
O plantio de mandioca e macaxeira é realizado tanto por homens
quanto por mulheres durante os meses de junho, julho e agosto. Embora a
vazante (época em que a água do rio começa a reduzir o nível e o solo
aparece) ocorra principalmente no mês de maio, a maior parte agricultores
de Canutama prefere realizar o plantio nos próximos meses, visto que
durante essa época a terra já está mais enxuta, de maneira a garantir que o
pedaço de maniva plantado (pau) não apodreça (“fique pubo”) em meio a
solo úmido e também que o enraizamento do plantio seja satisfatório. Além
disso, procuram plantar durante o período de lua nova ou crescente, a fim
de que assim a roça prospere mais.
O trabalho da capina é tarefa predominantemente masculina e, em
geral, ocorre pela primeira vez, de acordo com o calendário agrícola, após
vinte dias do plantio (no mês de julho) e, em geral, uma vez ao mês em
agosto, setembro, outubro, novembro, totalizando cerca de cinco capinas
anuais. Contudo, passado o primeiro mês de plantio as plantas cultivadas já
137
se apresentam suficientemente crescidas a ponto de diminuir a entrada de
luz solar nos estratos vegetais inferiores e controlando, dessa forma, as
espécies de gramíneas que ocupavam o terreno. Deve-se ter em vista,
contudo, que os agricultores diferenciam áreas onde o crescimento de mato
(gramíneas) é maior de acordo com a altura do relevo. Isto é: segundo
eles, em áreas que alagam menos (15-30 centímetros) existe maior
desenvolvimento de espécies gramíneas, exigindo assim que o trabalho de
capinagem ocorra mais vezes. Esse tipo de comparação entre alturas do
relevo é relacional, podendo ser realizado entre espaços dentro da própria
área de cultivo (área baixa: “baixa” e área alta: “lombo”) ou entre
diferentes regiões de plantio (“Baixa Grande” e “Beira do lago do
Seringueiro”).
Durante as primeiras chuvas do mês de janeiro, as primeiras áreas de
cultivo a serem alagadas são as chamadas baixas, espaços da várzea
característicos por seu relevo mais rebaixado para onde a água escorre das
áreas mais altas – os chamados lombos. Como o solo do local é composto
principalmente
por
argila
(barro)
misturada
com
uma
determinada
proporção de areia, a tendência da água é se acumular em tais locais, posto
que a argila possui baixa permeabilidade. Segundo os agricultores, caso
emposse água na plantação de mandioca e se passe dia ensolarado, os
tubérculos já apodrecem (“ficam pubos”) e pode-se perceber isso vendo a
própria parte aérea da planta, posto que suas folhas murcham rapidamente.
Por essa razão, os agricultores plantam nessas áreas baixas apenas
variedades que possam ser retiradas da terra mais rapidamente, isto é, que
tenham amadurecimento mais rápido.
Esses espaços cultiváveis de baixo relevo são caracterizados pelos
agricultores como áreas mais prósperas e mais facilmente manipuláveis,
tendo em vista que o aterro/adubo se acumula aí em maior espessura (3 a
4 centímetros) por conta do maior tempo de duração e altura que a água do
rio atinge. O solo aí, considerado mais frouxo, possui uma camada primeira
de terra preta (mistura de areia, barro e matéria orgânica proveniente da
cheia) e uma segunda da chamada tabatinga (mistura de argila e areia,
estando o primeiro em maior proporção). Devido a sua composição, nesse
solo se torna, portanto, menos trabalhoso arrancar a mandioca. Por outro
138
lado, nas áreas cultiváveis mais altas do terreno o depósito de aterro é
menor (1 a 2 cm), sendo o solo, portanto, composto majoritariamente por
argila misturada com uma pequena proporção de areia – chamado de
tabatinga. Por ser mais endurecido e menos poroso, arrancar os tubérculos
desse solo configura-se uma tarefa muito mais árdua. Em algumas áreas
altas que alagam mais, contudo, pode-se encontrar o chamado solo
areiusco, formado por argila misturada com uma proporção maior de areia.
A colheita, processo conhecido pelos agricultores de Canutama como
arrancada,
constitui-se
como
tarefa
predominantemente
masculina.
Contudo, as mulheres que o fazem, geralmente constituintes de unidade de
produção
pequena
(as
unidades
de
produção
serão
abordadas
posteriormente), são vistas socialmente com admiração, tanto pelos
homens quanto pelas mulheres. A colheita da roça de mandioca é realizada
ao longo de todo mês de janeiro e fevereiro, podendo em alguns casos
prolongar-se até março. Nessa região chamada Baixa Grande, localizada
bem próxima do centro da cidade, a colheita só tem início quando as áreas
baixas do terreno já estão parcialmente alagadas com as primeiras chuvas
do mês de janeiro. A quantidade de tubérculos arrancados do solo naquilo
que chamam de arrancada tem como padrão de medição sacos de lona e é,
sobretudo, altamente variável, vindo a depender geralmente da quantidade
de mão de obra masculina disponível na unidade de produção, da
velocidade em que os terrenos estão se alagando com a cheia do rio Purus,
da necessidade do agricultor de dedicar seu tempo em outra atividade
(como a pesca ou coleta de castanha), da quantidade de farinha que o
grupo quer estocar e, principalmente, do interesse e ritmo que cada
unidade de produção escolhe para si, levando em consideração aí todo
processo de interação social desencadeado durante as diferentes etapas de
beneficiamento.
Em dias de colheita, os homens de uma unidade produtiva saem de
suas respectivas residências na cidade de Canutama por volta das cinco e
meia da manhã a fim de evitar o excesso de sol durante a atividade, mas
deixam, em alguns casos, tanto as mulheres quanto as crianças dormindo
mais algumas horas para que depois se direcionem até a respectiva roça.
Durante as primeiras arrancadas, os homens costumam escolher apenas
139
uma variedade de mandioca para arrancar do solo por dia, tendo em vista
que a mistura de variedades na farinha em geral não é apreciada (deve-se
ter em vista, contudo, que à medida que a área de cultivo vai se alagando
com a cheia do rio, as últimas colheitas vão sendo feitas mais rapidamente
e, portanto, a mistura de variedades se torna corriqueira).
Os homens cortam com um terçado o tronco da maniva (parte aérea
da mandioca), descartando-as nas extremidades da roça logo em seguida.
Puxando o restante final de tronco que permaneceu ligado a raiz, arrancam
os tubérculos do solo e, utilizando outra vez o terçado, os separam e
retiram de cada um deles o excesso de barro e as extremidades (etapa esta
chamada de decotagem), a fim de amoleçam mais rapidamente quando
colocados de molho na água para fermentação. Às vezes, quando está
muito difícil de arrancar a mandioca, utilizam uma madeira que chamam de
eleva para auxiliar na extração das raízes tuberosas.
Enquanto alguns homens do grupo retiram essas raízes do solo e as
amontoam em um canto, as mulheres ou outros homens decotam, cortando
e limpando superficialmente cada batata de mandioca. No mesmo dia,
depois de acumulado certa quantidade, os homens colocam os tubérculos
em um saco que é carregado até a área baixa do terreno, alagada desde as
primeiras chuvas. Essa área baixa constitui-se, portanto, como o depósito
em que as mandiocas são colocadas de molho para fermentação durante
dois até quatro dias (tempo que irá depender do volume de chuvas, isto é,
quanto mais chuva, menos quente se torna a água do depósito e, portanto,
mais dias são necessários para fermentação).
140
Figura 13 – Retirada das partes aéreas e decotagem das manivas. Foto: Thayná Ferraz
da Cunha.
Decotagem:
Nos
depósitos, também chamados
de
baixas, enquanto
alguns
agricultores costumam colocar os tubérculos de molho dentro do próprio
saco, outros os depositam dentro de caixas/balsas de madeira, canoas
velha, lonas de plástico ou no chamado paiol (cercado de palha). Deve-se
ter em vista que uma área de baixa pode ser utilizada por qualquer unidade
produtiva que tenha roça próxima, entretanto os instrumentos onde a
mandioca é colocada pertencem apenas a quem a construiu, o que não
exclui, contudo, a possibilidade de empréstimos, doações e trocas. A essa
141
etapa de deixar a mandioca fermentando dá-se o nome de demolhagem,
que ocorre necessariamente no mesmo dia da colheita (arrancada).
Figura 14 - Demolhagem nas áreas baixas. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.
Durante a média de três dias nos quais a mandioca deve fermentar,
ou “ficar de molho”, os agricultores podem descansar, dedicar-se a outras
atividades ou até mesmo trabalhar em outras unidades de produção.
Ademais, são esses dias de intervalo no beneficiamento da mandioca que
142
permite o chamado revezamento de casa de farinha - local este de
beneficiamento
da
mandioca,
incluindo
nessa
categoria
todos
seus
instrumentos constituintes. Ou seja: acordos (que serão posteriormente
detalhados ao longo deste relatório) entre unidades produtivas que
funcionam na medida em que, enquanto um grupo espera o amolecimento
dos tubérculos, o outro utiliza a casa de farinha para torrar sua própria
massa de mandioca. É importante ressaltar, contudo, que conforme a água
da cheia do rio Purus vai alagando as áreas de cultivo (chamadas de
vazantes), a tendência é a produção de farinha se acelerar para que não
haja perda de mandioca e, dessa forma, tais intervalos de tempo citados
acima acabam sendo suprimidos pelos próprios agricultores. Nessa fase
realizam colheitas de muita mandioca e, consequentemente, a rotatividade
de entrada e saída do estágio de fermentação é muito grande, restringindo
assim o compartilhamento de casa de farinha apenas a parcerias estáveis
ou até mesmo parcialmente estáveis (as quais serão explicadas no tópico
“Casa de Farinha”).
Passado o intervalo de dias necessários para o inicio do processo
fermentativo, a mandioca já escurecida e amolecida pela absorção de água
torna-se facilmente destacável de sua casca. Nesses dias, homens e
mulheres saem da residência por volta das 7 horas, levando as crianças
quando o terreno não está excessivamente enlameado após as chuvas, e
direcionam-se até a casa de farinha da unidade produtiva. Lá, sabendo que
no mesmo dia irão retirar a mandioca d’água e torrar farinha, vão
preparados para almoçar e ir embora apenas por volta da 17 horas. Logo
de manhã, mulheres e crianças, todos sentados em suportes de madeira,
retiram a mandioca do depósito em que se encontrava, passando água nas
extremidades de cada raiz tuberosa a fim de retirar a camada escurecida
decorrente da fermentação e de facilitar também a separação entre massa e
casca. A casca é descartada na própria água acumulada na área baixa,
servindo também para atrair peixes que tentarão capturar com auxilio de
malhadeira para almoçar durante o dia intenso de torragem da farinha. A
massa de mandioca fermentada, ainda encharcada de água, é chamada de
massa puba, categoria esta última bastante recorrente entre os agricultores
da cidade de Canutama que designa, na maior parte das vezes, algo já
143
apodrecido. A massa puba é então acumulada em cima de algum suporte
até que um dos homens venha amassá-la e coloca-la em um balde para
realizar o transporte até a casa de farinha, em geral construída próxima da
área baixa alagada de depósito. Quando lá, é colocada aos montes em uma
caixa de madeira conhecida como gareira, local onde será mais uma vez
amassada e sofrerá uma primeira triagem das fibras (os chamados paus ou
crueira) que na massa se encontram. Neste local permanecerá até ser
introduzida na prensa. Algumas variedades de mandioca precisam ter sua
massa torrada no mesmo dia em que é tirada da água, caso contrário o
processo de fermentação pode prosseguir e a farinha tornar-se escura
(arroxeada) e amarga (amaruja). Outros cultivares, por outro lado, é
justamente o contrário, sendo então necessário deixar suas massas puba
acumulado na caixa/gareira desde o final da tarde do dia anterior até a
manhã do dia seguinte, quando pode então passar para a prensa de
madeira. É esse um dos motivos importantes pelos quais a maior parte dos
agricultores prefere separar, no momento da colheita e beneficiamento, as
variedades de mandioca.
Figura 15 - Retirando as mandiocas d’água. Foto: Thayná Ferraz da Cunha
144
Figura 16 - Massa puba na gareira. Foto: Thayná Ferraz da Cunha
A
etapa
seguinte
é
justamente
a
prensagem,
tarefa
predominantemente masculina. Cada casa de farinha deve possuir uma
prensa de alavanca, constituída por madeiras nobres como maçaranduba,
piranheira, entaúba trazidas pelo próprio dono da casa de farinha, membros
de sua unidade produtiva ou parceiros de casa de farinha e talhada por
algum serrilheiro conhecido. Durante o processo, enquanto o homem
levanta a alavanca da prensa, as crianças vão enchendo um balde pequeno,
chamado de tambor, até que possa ser levado para uma rede porosa
conhecida como estopa, onde a massa puba é depositada, passando a ser
sustentada pela montagem de um gradiamento formado por varas de
pedaços longos de madeira que impedem que ela caia para os lados quando
prensada. A quantidade de massa envolvida por essa rede/estopa passa
então a ser chamada de estopa, correspondendo assim a um tambor
pequeno. Cada duas estopas são colocadas, após serem peneiradas, no
forno, correspondendo assim a uma fornada. Portanto, caso o agricultor
possua dois fornos, por exemplo, colocarão em sua prensa quatro estopas
verticalmente posicionadas para serem espremidas. Depois de colocada a
quantidade desejada, o homem em geral ajudado em parte pelas crianças
que estão aprendendo, coloca uma espécie de tampa e alguns pesos como
troncos de madeira para permitir que a pressão se coloque adequadamente
sobre a massa. Prende, em seguida, a corda no chamado burinete e
puxando para trás a alavanca, espreme grande parte da umidade que havia
145
na massa e gera a chamada manipuera, líquido leitoso de cheiro forte com
alto teor de ácido cianídrico. A corda é apertada inicialmente com três
voltas, deixando 20 minutos para que parte da água escorra, dando espaço
para que se dê mais uma volta, deixando dessa vez de 15 a 20 minutos,
momento em que se dá faz a última para secar bastante. Não se deve,
contudo, ultrapassar essa quantidade de voltas na corda durante a
prensagem, visto que uma massa resultante muito seca é mais suscetível a
queimar durante a torragem, ao que os agricultores chamam de “tostar o
pó”. Feito isso, retira-se as duas primeiras estopas, levando-as em direção
a chamada caixa para peneirar (divida em duas partes, sendo que em cada
uma delas cabem duas estopas de massa prensada).
Figura 17 – Prensagem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.
Nesse momento se dá mais uma etapa do processo de beneficiamento,
esta majoritariamente feminina, recebendo a colaboração das crianças.
Durante essa fase de peneiração, na medida em que algumas das crianças
vão manualmente amolgando a massa, as mulheres vão peneirando,
acumulando assim a massa peneirada na segunda parte da caixa de
madeira. A malha da peneira utilizada definirá a granulometria da farinha,
146
mas em geral um balde de massa rendem dois baldes após ter sido
peneirada. Enquanto as mulheres se dedicam a essa atividade e a de
preparar o almoço para o grupo, os homens vão limpando o forno (chapa de
ferro sustentada por um suporte de barro montado anualmente), colocando
óleo e retirando a massa puba peneirada com o auxilio de uma cuia ou
balde pequeno (chamado de tambor) e, em intervalos de dez minutos,
colocam um balde em cada forno, de maneira a completarem três baldes
(lembrando que cada estopa equivale, depois de peneirada, a um balde e
meio). Ou seja: uma fornada é o equivalente a três pequenos baldes e são
realizadas simultaneamente, de acordo com o número de fornos que existe
na casa de farinha. Todo tipo de fibra ou massa que ficou retida na peneira
é chamada pelos agricultores de crueira e, após passar por breve processo
de torragem, é utilizada como ração para animais como porcos, patos,
galinhas e cachorros.
Figura 18 – Peneiragem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.
147
O veneno da mandioca, para os agricultores de Canutama, está
intimamente associado ao cheiro da massa. Segundo eles, após a etapa da
prensagem e a liberação do líquido chamado de manipuera, o cheiro se
torna bem menos acentuado, mas apenas quando a massa passa pela fase
da torragem, entrando em contato com o calor do fogo, que o odor do
veneno realmente cessa e eles sabem que aquele produto pode então ser
consumido.
A última etapa do processamento da mandioca é justamente aquilo
que chamam dão o nome de torragem. Essa tarefa, essencialmente
masculina, é um trabalho bastante árduo e delicado, sendo bastante
valorizado socialmente. Um torrador que prepara o que chamam de “uma
farinha bonita” tem prestigio e costuma orgulhar-se de sua própria
produção, mostrando e oferecendo um punhado da mesma para aqueles
que falam sobre o assunto. Durante a torragem, a farinha é mexida e
sacudida por mais de uma hora e, quem realiza o preparo deve estar muito
atento ao que chamam de “posição de fogo”, isto é, a administração da
quantidade de lenha que deve ser colocado para o processo. Caso haja fogo
em excesso, a massa seca demais e, em questão de minutos, os pequenos
grãos da massa se agregam em uma única pelota, impedindo assim que seu
interior seja torrado adequadamente. No caso oposto, em que o fogo está
baixo demais, a farinha acaba ficando branca, não adquirindo assim a
qualidade amarelada pretendida e valorizada pelo agricultor. Para evitar o
erro, muitos torradores costumam manter um balde com água próximo ao
fogo, a fim de assim manejarem sua intensidade.
Além da importância da habilidade do torrador no processo, outros
importantes fatores para que uma farinha seja bem torrada é tanto o
estágio de maturação em que a mandioca é colhida, quanto o tempo
decorrido desde que foi retirada d’água, isto é, o nível de fermentação em
que a mesma se encontra. Isto é: caso uma variedade de mandioca que
possua tempo de maturação de seis meses for colhida com apenas quatro
ou cinco meses, a farinha acabará apresentando aquilo que chamam de pó,
isto é, ficará excessivamente fina. Além disso, no caso de certas variedades
de mandioca, se a massa puba for retirada d’água e não for torrada no
mesmo dia, fermentará em excesso e sua farinha apresentará gosto azedo.
148
A maior parte dos agricultores deixa sua produção armazenada em
sacos de lona embaixo de suas casas de farinha, localizadas na região mais
alta do terreno. Segundo os padrões de medição local, um saco de lona é
equivalente a dois alqueiros, considerando que um alqueiro é 40 litros. Um
saco é também o resultado de três fornadas de farinha produzidas. Os
agricultores costumam realizar o transporte dos sacos de farinha quando
grande parte do terreno já está alagada, facilitando assim deslocar a
produção até a residência na cidade através de canoa. Chegando à
residência, a farinha é armazenada em tinas grandes, chamadas de tambor,
onde cabem cinco alqueiros (isto é: duas sacas e meia). Nesse recipiente a
produção pode ficar guardada até o próximo ano, caso haja quantidade
suficiente.
Na época logo após a produção, estação chamada de inverno devido a
grande quantidade de chuvas, a fartura de farinha é muito grande, pois a
maior parte da população planta mandioca. Nessa época, portanto, a venda
é muito restrita e, quando ocorre, os preços são muito baixos (cerca de 40
reais por um saco). Já na estação de estiagem, chamada de verão,
configura-se como uma época em que a produção armazenada já foi em
grande parte consumida, ocorrendo com isso mais vendas e preços
valorizados (um saco pode chegar a custar 120 reais). Segundo os próprios
agricultores, é justamente pela necessidade de armazenar a maior
quantidade de farinha possível - para que não haja falta ao longo do ano –
que o tipo de beneficiamento da mandioca entre os moradores de
Canutama deve ser rápido e em abundância. De acordo com eles, oficinas
para produção de uma farinha dita de maior qualidade, chamada de “toco
mole” foram realizadas entre os agricultores, porém afirmam que esse tipo
de beneficiamento - no qual a mandioca é descascada, cevada e colocada
de molho – não se aplicaria a várzea, posto que o tempo de beneficiamento
é inadequado para um armazenamento de grande quantidade de farinha.
Além disso, a questão da qualidade da farinha, no caso dos agricultores
canutamenses, está focada principalmente no gradiente de coloração de sua
produção: quanto mais intenso o amarelo da farinha, mais apreciada ela é.
Depois que a área de cultivo está alagada, os agricultores fazem
visitas relativamente frequentes ao local, empurrando constantemente
149
todos os restos das partes aéreas da mandioca colhida anteriormente para a
beira do terreno, chamada de aceiro. Posteriormente, quando houver a
vazante do rio e o terreno estiver enxuto, esses restos vegetais são
queimados e, em tais locais, os agricultores plantam milho.
Além da farinha, grande parte dos agricultores também costuma
utilizar a mandioca para obter sua goma e, posteriormente, utiliza-la para
preparar tapiocas, por exemplo. No entanto, a obtenção de goma não se
trata de uma prioridade, diferente da farinha, sendo realizada apenas
quando conseguem tempo em meio a intensificação da cheia anual. Esse
processo é apenas realizado justamente no final da “época de farinhada”,
em meados de fevereiro, momento em que a cheia do rio Purus já atingiu
seus terrenos e, portanto, a água contida em suas áreas baixas deixa de ser
água parada e passa a ser água corrente, isto é, limpa o suficiente para
preparar a massa bem branca.
Além da farinha d’água e da obtenção da goma, a mandioca pode
também ser utilizada para produção de bolos (da massa puba) e farinha
seca, esta ultima costuma ter sua produção restrita a apenas aquelas
pessoas que não podem alimentar-se da farinha d’água por se encontrarem
com algum tipo de doença, inflamação ou até com problemas digestivos. De
acordo com os agricultores, a farinha seca é considerada uma farinha mais
suave, que não absorve água e, por isso, não causa enchimento no
estômago. Não é produzida em grande escala, pois dizem que torrá-la é
muito demorado e é preciso muita paciência, uma vez que a intensidade do
fogo deve ser baixa, caso contrário seus grãos se aglomeram e a farinha
embola.
Variedades de Mandioca e Macaxeiras
Mandioca
Os agricultores de Canutama listaram 11 variedades de mandioca e
três de macaxeira adaptadas ao ambiente de várzea. A identificação das
variedades se apoia principalmente em critérios como: a cor, tamanho e
espessura do tubérculo; tempo de maturação e resistência no solo;
arquitetura e características das partes aéreas; quantidade de fibras
(crueira) em sua massa; coloração e rendimento da farinha após a
150
torragem (variedades rendosas são aquelas que a farinha não diminui muito
de tamanho depois que seca no forno, isto é, “não quebra muito no forno,
não diminui na farinha, é rendosa”); quantidade de goma (inversamente
proporcional à quantidade de manipuera, “quanto mais goma, mais rendosa
e mais saborosa fica a farinha”, porém é mais trabalhosa de torrar porque é
mais úmida, mais pesada, tem que ser muito mexida no forno, senão os
grãos se aglomeram); tempo de resistência ao alagamento do terreno.
Segundo os agricultores, as variedades de mandioca cujo tempo de
maturação é por volta de um ano ou mais são reconhecidas como
tubérculos que fornecem uma farinha mais saborosa. Reconhecem que são
poucas as variedades adaptadas ao ambiente de várzea por conta dos
poucos meses (em torno de seis) que o tubérculo tem para se desenvolver
no solo. Quando, por vezes, plantam algum cultivar adaptado à terra firme,
isto é, com tempo de maturação de um ano ou mais, os tubérculos chegam
a crescer, porém sua grossura é menor e a qualidade e coloração da farinha
são, respectivamente, menos saborosa e menos amarela.
Segundo os agricultores, as variedades mineva, mantegueira amarela,
camarão, ituqui, mantegueira preta, flecha amarela e socó são aquelas que
fornecem farinha mais amarela, mas caso não encontrem sementes delas
(as mais difíceis de encontrar são camarão e mineva), plantam outras. As
variedades que fornecem mais goma são olho verde, mantegueira preta,
samauma (terra firme) e orana (terra firme). Os agricultores mais jovens
costumam variar constantemente as variedades plantadas, introduzindo
sempre variedades que não haviam plantado antes a fim de experimentálas. No entanto, certas variedades como olho verde, mantegueira amarela,
talo encarnado e ituqui são aquelas plantadas pela maior parte dos
agricultores que cultivam na grande área chamada de Seringueiro, a qual
inclui a Baixa Grande e a Beira do Lago do Seringueiro.
Macaxeira
A maioria dos agricultores planta macaxeira em pouca quantidade,
visto que é apenas para consumo próprio e possui caráter complementar na
dieta da população canutamense. Segundo eles, as pessoas apenas plantam
macaxeira em maior quantidade quando pretendem vender o tubérculo em
151
sacos para lanchonete e comerciante da cidade ou então vender seus
subprodutos, posto que a mesma seja utilizada para o preparo de bolos,
salgados, farofas, carinas ou é consumida apenas cozida ou frita. Os
agricultores não tem o costume de preparar farinha de macaxeira,
afirmando que sua torragem é muito demorada por conta do cuidado com o
excesso de fogo (em um dia, conseguem obter apenas duas fornadas) e,
além disso, dizem que a farinha seca da macaxeira possui coloração muito
esbranquiçada e o gosto muito adocicado, características essas não
apreciadas em uma farinha. Alguns, no entanto, fazem esse processamento
ou destinada ao consumo de pessoas com problemas no estômago, ou para
consumi-la acompanhada de açaí – este último consumido em abundância
na cidade de Canutama – ou ainda para complementar a nutrição dos filhos
pequenos.
O plantio da macaxeira é realizado um mês antes da mandioca, em
maio, visto que seus tubérculos demoram mais para se desenvolver. Além
disso, os agricultores em geral plantam a macaxeira em uma área de solo
novo e afastada da mandioca, caso contrário ela pode amargar. Sua
colheita também nunca é feita em concomitância com a de mandioca,
ocorrendo antes (desde meados de outubro até dezembro) ou depois (de
meados de fevereiro até março) da época da mesma, posto que o
beneficiamento da mandioca é um complexo de atividades que consome
praticamente todo o tempo dos agricultores. Isto é: durante certa época, a
prioridade é a produção da farinha de mandioca, alimento principal da
população de Canutama que deverá ser estocado durante o ano inteiro. A
colheita e preparo da macaxeira então apareceria nesse momento como
atividade secundária, visto que tem caráter mais complementar na dieta
dos agricultores (“só fazemos bolo quando não estamos ocupados”).
A macaxeira depois de colhida em geral passa pelo mesma etapa de
decotagem que a mandioca, é lavada na área baixa do terreno e depois
transportada até a residência na cidade, onde então é descascada, lavada
com água limpa e aí pode ou ser colocada de molho por um dia (como sua
casca é mais fina que a mandioca, se passar desse tempo na água poderá
aguar), levada para a prensa da casa de farinha, posta para secar e depois
ser armazenada enquanto massa (Carina) ou então pode ser ralada
152
manualmente, coada com uma tela para que sua goma seja descartada,
temperada sua massa, levada para casa de farinha e assada no forno
envolto por folhas de bananeira (bolo). A macaxeira não costuma ser
armazenada, pois ela rapidamente fermenta e adquire coloração arroxeada,
porém algumas pessoas chegam a congelá-la.
Figura 19 – Macaxeira sendo lavada na área baixa; macaxeiras assadas no
forno. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.
Um aspecto interessante relacionado à macaxeira é que, embora sua
importância na dieta dos moradores de Canutama seja secundária, a maior
parte agricultores evita ao máximo a perda dos feixes, chamados por eles
sementes, os quais serão utilizados no próximo plantio. Para isso,
costumam encanteirar tais feixes nos quintais de casa ou podem ainda
mantê-los em áreas de várzea alta, as quais raramente são alagadas. Em
contrapartida, não veem nenhum problema em perder os feixes de
mandioca,
visto
que
os
mesmos
podem
ser
facilmente
obtidos
posteriormente com os agricultores da terra firme. Iremos, contudo,
abordar o tema da obtenção e manutenção de sementes de mandioca e
macaxeira mais adiante.
153
Casa de Farinha
Em geral, todos aquelas pessoas que plantam, devem ter casa de
farinha, visto que é algo valorizado socialmente. Em diversos casos,
contudo, isso não acontece. Alguns podem ainda não ter condições
financeiras (caso queira colocar alumínio no teto), outros não possuem uma
unidade produtiva suficientemente grande para ajudar na construção da
casa, outros não tem interesse (visto que a construção implica em
processos bastante trabalhosos e demorados) e outros ainda preferem
simplesmente compartilhar casa de farinha pelo processo de interação e
ajuda mútua que nela ocorre. É importante salientar que todos esses
motivos podem ser simultâneos e, somados, corroboram para os diversos
casos de compartilhamento de casa de farinha que citaremos a seguir. O
primeiro caso se trata de uma parceria estável que se dá geralmente entre
familiares (pais e filhos; irmãos; genro e sogro; cunhados) ou entre amigos
muito próximos. A casa de farinha, nesse caso, pode ser resultado de uma
construção em conjunto ou então pode pertencer a uma das partes, mas
receber colaborações através de ajudas na sua manutenção. Além dessas
colaborações, em tais parcerias de longo prazo cada um dos parceiros de
casa de farinha costuma realizar o embarriamento (preparo de um suporte
de barro) de seu próprio forno (ou até de um forno emprestado), embora
todo o resto do material incluído na casa de farinha seja revezado entre os
parceiros. O estabelecimento de um novo forno na casa de farinha é
vantajoso para ambas às partes visto que, através do revezamento nos dias
de “torragem” (ver BENEFICIAMENTO DA MANDIOCA), aumenta-se a
quantidade de farinha produzida por dia, algo essencial quando as vazantes
começam a alagar rapidamente pelas chuvas.
É importante ter em vista, portanto, que essa inclusão de mais um
forno por parte do parceiro permite que ambos tenham os mesmos direitos
de utilizar a casa de farinha, realizando para isso um acordo prévio de
revezamento que deve ser mantido durante toda época da farinha
(farinhada). Em geral, tais acordos estáveis são estabelecidos com
antecedência a farinhada e, caso dêem certo e seja de interesse de ambos,
podem se manter por anos. Tais parcerias estáveis podem ou não se
desenvolver para a formação de grupos coorporativos (explicação!). Além
154
disso, a potencialidade para compartilhamento de casa de farinha com
parentes ou amigos próximos é um dos fatores que influencia no momento
de escolher a localização de sua própria vazante.
O segundo caso se trata, em geral, de acordos eventuais, parcialmente
estáveis, mas de curta duração. Geralmente o combinado se dá entre
conhecidos, amigos ou parentes em função de alguma razão recente, como
uma parceria que foi rompida durante a última farinhada, constituindo-se
assim como uma espécie de suporte momentâneo até que pessoa se
estabeleça outra vez (através de outra parceria ou de construção de sua
própria casa de farinha). O novo ‘parceiro eventual’ geralmente faz o
suporte de barro (embarriamento) de seu próprio forno na casa de farinha
do dono. Caso não o faça, por não possuir forno ou disposição para
construir seu suporte (embarriá-lo), subentende-se que ficará dependente
da disponibilidade do dono de farinha, isto é, o dono da casa de farinha terá
prioridade em sua utilização. Isto é, aquele que utiliza eventualmente a
casa de farinha fica sujeito a não poder usá-la quando o alagamento da
roça do dono esteja sendo intenso, visto que o mesmo precisará torrar
farinha praticamente todos os dias. Nesses casos em que o parceiro
eventual não tem seu próprio forno, a tendência é que realizem o
beneficiamento de sua colheita num período anterior ao que o dono da casa
de farinha a utilizará. É importante ressaltar que os acordos eventuais têm
uma tendência a se estabilizar caso o parceiro possua seu próprio forno e a
parceria dê certo naquele ano (o que envolve o cumprimento de certas
regras reciprocidade entre os parceiros, como deixar a casa de farinha limpa
após o uso, ajudar a carregar palha para manutenção de seu teto,
emprestar forno nos dias que não está utilizando, realizar acordo para
revezamento de materiais e dias de “torragem”).
Esses acordos eventuais estão intimamente relacionados ao terceiro
caso de compartilhamento de casa de farinha, no qual existe uma espécie
de constância de acordos não fixos. Isto é, alguns agricultores que possuem
roça e não tem casa de farinha própria preferem realizar todos os anos
acordos imediatos (em contraposição aos previamente combinados, como
os do primeiro caso apresentado), eventuais e de curta duração. Tais
agricultores, em geral, não possuem forno nem contribuem com algum tipo
155
de ajuda para o proprietário da casa de farinha. É justamente por isso que o
local de beneficiamento de sua colheita não será estável, dependendo assim
de sua afinidade com o dono da casa de farinha (em geral parentes ou
vizinhos de casa na cidade), da disponibilidade de uso dessa casa, da
proximidade da mesma com sua roça e até mesmo dependente do nível de
alagamento em que a água se encontra. Embora essa forma de acordo não
seja estável como a parceria, existe uma espécie de rota pré-estabelecida
de casas de farinha que tais agricultores procuram, solicitam e, quando
possível, percorrem para produção de sua farinha. São justamente essas
rotas, formadas por um conjunto de acordos eventuais com pequena
duração, que caracterizam esse terceiro tipo de compartilhamento de casa
de farinha. Subentende-se, no acordo, que devem levar sua própria lenha.
Em geral, quando as pessoas são conhecidas ou parentas, os donos da casa
de farinha não costumam cobrar pela utilização de seu forno. Caso não
sejam, costumam cobrar de dois a três alqueiros de farinha em troca da
utilização do forno por três a sete dias.
É importante salientar, contudo, que esse tipo de compartilhamento é
percebido de maneira negativa pelos demais agricultores da cidade de
Canutama. É esperado socialmente que uma pessoa que possua roça e
família grande vise construir uma casa de farinha própria ou, se ainda não
possuir condições para tal, estabeleça um acordo constante e estável com
um parceiro. Tomemos para ilustrar esse terceiro tipo, o caso de um
marido, sua esposa e três filhos que possuem vazante na chamada ‘beira do
lago do Seringueiro’ e realizam, logo no início da época da farinha, o
beneficiamento da mandioca na casa de farinha dos pais da esposa.
Conforme o lago vai subindo e as roças alagando, os pais da esposa
precisam fazer a farinha muito rapidamente, utilizando a casa todos os dias,
não tendo assim disponibilidade para que a mulher e seu esposo usem. Por
isso, procuram nessa semana o irmão da esposa, perguntando se poderiam
usar sua casa de farinha no próximo dia. Vendo que o cunhado não terá sua
casa disponível e tendo sido facilitado o acesso de canoa por conta da cheia
do terreno, o esposo vai solicitar casas de farinha de seus amigos ou
conhecidos (em geral vizinhos da própria cidade de Canutama) que se
localizam numa área mais distante de sua roça, chamada ‘Baixa Grande’.
156
Como esse local enche mais tardiamente que a beira do lago do Seringueiro
(onde possuem roça), as casas de farinha aí localizadas ainda não estão
sendo utilizadas com tanta intensidade, visto que seus proprietários ainda
não estão “aperreados com a cheia”.
Perguntando com um dia de
antecedência para os donos que lá se encontram, conseguem então o aval
dos mesmos para que beneficiem lá sua massa de mandioca, realizando o
transporte através de canoa.
Em geral, as pessoas que possuem roça próxima a cidade, constroem
a casa de farinha na parte alta próxima a baixa onde depositam a caixa com
a mandioca, pois nesse local não precisam carregar a massa por uma
distancia grande. Outras pessoas, possuindo roça distante, preferem colocar
a casa de farinha perto da cidade para não precisar carregar a farinha por
uma distância grande. Isto é, preferem carregar a massa por distancia mais
longa (da baixa de seu terreno até a casa de farinha próxima da cidade).
Quando os pais tem uma vazante grande e possuem filhos que estão
começando a constituir uma família (com apenas um filho ainda), dividem a
área, ficando com um parte e dando as outras para cada filho varão. Alguns
pais ajudam seus filhos homens a comprar algum pequeno terreno próximo
aos seus, para que compartilhem a mesma casa de farinha. Contudo,
quando o terreno não é grande os filhos podem continuar a trabalhar na
vazante dos pais até terem filhos suficientes para constituir uma unidade
produtiva e fazer sua própria vazante. A maior parte dos filhos procura
fazer suas vazantes próxima a dos pais para poderem compartilhar casa de
farinha e tudo que a atividade dentro dela representa. Caso não haja
terreno próximo, fazem distante mesmo e podem construir sua própria casa
de farinha ou realizar acordo com conhecidos que torrem próximo.
-As casas de farinha que se localizam em áreas de várzea alta
possuem plantações de árvores frutíferas, variedades de pimenta e hortas
com temperos a fim de temperar o peixe do almoço.
- Uma casa de farinha pode ser vendida junto com a roça, custando
cerca de 1.500 reais.
- Espaço de interação: “Aqui, se tiver com cara feia vai embora... aqui
é alegria, grito, brincadeira... um lugar de alegria”.
157
Aquisição das sementes pelos agricultores da várzea
Um aspecto importante relacionado ao plantio na várzea em Canutama
é a obtenção das chamadas sementes de mandioca, isto é, fragmentos das
partes aéreas da planta que são utilizados para sua propagação vegetativa.
Como suas áreas de cultivo estão sujeitas a mudanças sazonais na dinâmica
das águas, não é possível manter as sementes de um ano para o outro em
tais locais. Para obter essas sementes, portanto, as alternativas são:
Comprar dos agricultores que possuem roça nas áreas de terra firme
do rio Mucuim, localizado relativamente próximo de Canutama (colocar
mapa);
Manter um pequeno cultivo na várzea alta (área com relevo um pouco
mais elevado que raramente alaga) ou na ilha de terra firme próxima à
cidade para assim guardar suas sementes de mandioca e macaxeira;
Encanteirar seus feixes de maniva nos quintais da residência ou
próximo à casa de farinha. Ambos os locais, contudo, estão sujeitos a
alagações e, caso a mesma seja intensa, os agricultores irão recorrer aos
vendedores da terra firme ou, por vezes, aos da várzea alta para obtenção
de suas sementes.
No primeiro caso, quando tratamos da venda de sementes por
agricultores do ambiente de terra firme, existem duas formas básicas em
que isso pode ocorrer. A primeira delas se dá através de encomendas
realizadas com antecedência (entre os meses de janeiro e fevereiro) aos
agricultores da terra firme. Durante esses meses, justamente os mesmos
em que ocorre a época da farinhada, quem plantou na várzea já sabe quais
os resultados de sua produção e, portanto, pode decidir que variedades de
mandioca continuarão plantando. Cada agricultor da várzea possui sua
própria rede de agricultores de terra firme que irá acionar quando precisar
de sementes e, como entre eles se estabelece uma relação de confiança, os
da terra firme irão conferir se sua cota de encomendas ainda não se
esgotou. Caso não possa se comprometer com o agricultor da várzea
durante aquele ano, irá adverti-lo com bastante antecedência para que não
corra o risco de não obter feixes e, além disso, recomendará alguém de
confiança com quem possa comprar os feixes naquele ano. É importante
chamar atenção que não são todos que fazem esse tipo de negociação,
158
posto que, além do transporte dos feixes ser bastante trabalhoso, suas
áreas de roçado na terra firme estão localizadas distantes da cidade de
Canutama, sendo assim necessário gastar muito com gasolina para o barco.
As sementes são então trazidas durante o mês de maio, final da época
cheia do rio Purus, quando os agricultores de terra firma ainda podem
realizar a maior parte do trajeto de seus roçados até a cidade de barco. São
trazidas com eles as sementes agrupadas nos chamados feixes que contem,
cada um, cerca de 30 a 40 varas de maniva, custando um valor que
dependerá da grossura do feixe, em geral oscilando a cada ano entre 15 a
20 reais. Alguns avisam por telefone quando estão chegando à cidade e
realizam a entrega no pequeno porto da cidade, enquanto os que possuem
residência na cidade entregam nos próximos dias em que lá ficarão. Além
da compra, também é possível para os agricultores da várzea adquirir essas
sementes por meio de trocas com os agricultores da terra firme, em geral
negociando semanas de trabalho com capinagem ou derrubada nos roçados
de terra firme. Outra forma de troca ocorre quando os agricultores de terra
firme perdem suas sementes de algum cultivar específico, trocando com os
de várzea pelos tipos que os últimos desejarem.
Os principais cultivares comprados com agricultores da terra firme é
olho verde e mantegueira amarela, sendo também encontrada flecha,
ituqui, baixota. Em geral, optam por sempre cultivar os dois primeiros por
acharem que mantegueira amarela e olho verde apodrecem menos em solo
úmido. Tanto talo encarnado, quanto mineva, socó e mantegueira preta são
plantados por poucos deles, pois acham, por exemplo, talo encarnada dura
para arrancar do solo e com muita fibra.
É importante diferenciar mais uma vez aqui as variedades adaptadas a
terra firme (cujo tempo de maturação ultrapassa 12 meses e pode chegar a
três anos) daquelas propícias para a várzea (tempo de maturação entre 5 a
6 meses). Os agricultores de terra firme que costumam vender feixes de
mandioca cultivam tanto os tipos próprios à terra firme – como, por
exemplo, samauma, janauaca, orana, flechinha, jabuti – para com eles
prepararem a farinha para consumo e venda, quanto também variedades de
várzea, destinadas apenas a venda dos feixes de mandioca. Por vezes,
contudo, cultivares próprios da terra firme vem entrelaçado por engano em
159
meio aos feixes vendidos aos agricultores da várzea, que acabam
plantando-os para que não haja nenhum tipo de perda. Procuram plantar
essa variedade sempre em solos que tenham menos teor de argila em sua
composição e proporcionalmente mais areia, de maneira que seja mais
frouxa e permita o melhor desenvolvimento de suas raízes tuberosas.
Deve-se atentar para o fato de que esse tipo de obtenção de sementes
é o que ocorre majoritariamente na cidade de Canutama, de maneira que a
maior parte das variedades que é plantada pelos agricultores da várzea de
certa forma é determinada por aqueles da terra firme. Isto é, a terra firme
e os critérios de seleção de seus agricultores tem uma espécie de controle
sobre o banco fitogenético daquilo que poderá ser plantado na várzea.
Conversando com alguns agricultores de terra firme percebi que eles
costumam plantar as variedades que acreditam que os moradores da várzea
gostam mais, por pedirem mais, como por exemplo, olho verde e
mantegueira amarela. Essas duas variedades são realmente as mais
encontradas nas áreas de cultivo da várzea.
Uma informação interessante é a de que, se por um lado há grande
oferta de sementes de mandioca em Canutama, por outro não há
praticamente nenhum tipo de comercialização de sementes de macaxeira. O
fato é que praticamente todos os agricultores de várzea guardam suas
sementes em áreas de várzea alta ou encanteiradas nos quintais ou
proximidades de casa de farinha. Há uma espécie de cuidado especial para
que essa semente não seja perdida e, caso isso porventura aconteça, sua
obtenção em geral ocorre por meio de doações de parentes que morem
próximo. Não há como afirmar o motivo pelo qual isso acontece, isto é, se
as pessoas dão tanta importância para manutenção dessas sementes por
conta da baixa oferta por parte dos agricultores de terra firme ou se é
justamente o inverso: aqueles da terra firme não trazem por não ocorrer
esse tipo de demanda. O fato é de que a quantidade de varas de macaxeira
mantidas por cada agricultor é tão pequena que não atinge a escala
comercial, pairando apenas no universo dos consanguíneos que moram
próximo. Veja a informação abaixo dada por um dos agricultores da várzea:
160
É raro as pessoas perderem, pois é muita preocupação correr atrás
de semente de macaxeira, porque tem gente que não gosta de
vender e quando encomenda não traz... acham que é pouco para
trazer de tão longe, aí preferem trazer o que dá para vender mais
(Dude).
O segundo caso que enumeramos anteriormente diz respeito a
agricultores da várzea ou da praia (beira do Purus) que mantém, além de
suas roças, outro pequeno espaço de cultivo. Nessas áreas de várzea alta
ou aquelas de terra firme que se localizam na própria cidade de Canutama
são mantidas não só variedades de mandioca e macaxeira, mas também
uma ampla diversidade de espécies como maxixe, quiabo, limoeiro,
azeitona, goiabeira, bananeira, mangueira, urucuzeiro, açaí, urucurizeiro,
milho, pupunha, coco, biribá, cana, cajueiro, ingazeiro, mamão.
Os
agricultores costumam visitar com frequência a área para ver o estado da
plantação e se alguém mexeu em algo. Alguns costumam chamar as
plantas que cultivam na várzea alta de “bens de raiz”, isto é, uma espécie
de patrimônio para vida toda que garante no caso da prefeitura de
Canutama precisar da área, que seja pago um valor por cada uma das
árvores, considerando que oferecem alimentação e renda para seu
proprietário ao longo de toda sua vida e de seus herdeiros.
Em geral, os donos dos roçados (chamam de roçado quando se localiza
no ambiente de várzea e terra firme) realizam no final da época cheia do rio
Purus, em meados de maio, a escolha das varas de mandioca que irão
plantar no próximo mês em suas vazantes. Selecionam, em geral, um feixe
(cerca de 50 varas) de plantas que possuam caules mais finos - por serem
mais fáceis de juntar no feixe e de plantar- e compridos – pois poderão
render mais quando forem cortados em pedaços. Realizam um corte em
cada um desses caules para verificar se possuem bastante seiva, também
chamado de leite por conta de sua coloração esbranquiçada. As plantas de
mandioca possuem apenas suas partes aéreas extraídas, enquanto seus
tubérculos em geral não são colhidos por três principais motivos: a várzea
alta em geral se localiza distante da casa de farinha; os tubérculos que
crescem nesse ambiente não apresentam crescimento satisfatório devido ao
pouco nível de adubo depositado; não realizando sua extração mantem-se
aqueles nutrientes no ambiente, postergando assim o esgotamento dos
161
mesmos no solo e permitindo mais anos de cultivo no mesmo local. É
importante diferenciar aqui alguns tubérculos da macaxeira são retirados,
escolhendo apenas as plantas de tronco mais grosso para isso. O transporte
das sementes até a residência, tanto as de mandioca quanto as de
macaxeira, é realizado de barco, diminuindo o esforço empreendido, e as
varas são encanteiradas no quintal até que sejam plantadas em junho.
Alguns dos agricultores que possuem roçado na ilha de terra firme de
Canutama ou na várzea alta também realizam a venda de sementes de
mandioca, mas em uma escala muito menor do que os vendedores de terra
firme que possuem roçados mais distantes. Em geral, vendem apenas para
conhecidos ou amigos vizinhos, enquanto para parentes costumam dar.
Nessa doação, as pessoas que devem ir até o roçado buscar as sementes e,
em geral, como forma de retribuição, o que recebe a maniva costuma
capinar o roçado daquele que realizou a doação.
Mesmo que seja raro, a várzea alta por vezes é alagada em épocas
que a cheia do rio Purus é muito intensa. Contudo, como esses locais
possuem relevo mais alto e alagação neles é rasa (atingindo cerca de 15
cm), pode-se ainda assim retirar a mandioca ou a macaxeira sem que a
mesma estrague. Sua extração, no entanto, deve ser feita antes que a água
da cheia baixe caso contrário à planta seca. Em alguns casos, quando a
alagação é maior, o plantio é perdido e torna-se necessário obter as
sementes por meio de compra com pessoas da terra firme ou de doações
por parte de parentes.
No terceiro caso mencionado, os plantadores mantem suas sementes
de mandioca e macaxeira no quintal de sua própria residência na cidade ou,
no caso na mandioca, nas proximidades da casa de farinha. Ao final de cada
colheita, encanteiram cerca de sete feixes (lembrando que cada feixe é
formado por 40 a 50 varas) das plantas mais prósperas, finas e com mais
seiva para serem mantidas até o próximo plantio. Tomam particular cuidado
para não realizar o transporte de sementes leves e secas, isto é, com pouca
seiva, visto que esta é de fundamental importância no desenvolvimento das
raízes tuberosas. Depois do transporte, a tarefa de manutenção das
sementes em geral é feminina. As varas são escoradas em um fio de
barbante amarrado em diversas madeiras espalhadas pelo quintal e, assim
162
encanteiradas, são realizadas podas nas folhas que começam a nascer dos
nós do caule, deixando que apenas os apicais se desenvolvam. Dessa
forma, segundo os agricultores, evitam que a seiva se divida e perca sua
força. Contudo, afirmam que ainda realizando um manejo constante, as
manivas encanteiradas sempre acabam por perder um pouco de sua seiva e
algumas delas chegam a ficar muito secas, leves, com o “miolo tufado”. Por
isso costumam encanteirar uma quantidade maior do que aquela que
realmente precisarão durante o plantio.
Figura 20 – Estacas de mandioca. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.
Quando chega a época de plantio, os agricultores escolhem justamente
as varas mais pesadas, cortando sua extremidade para verificarem a
quantidade de seiva nela. Aquelas com pouca são enterradas no próprio
local para ver se a seiva se renova. Caso renove, entre oito a dez dias,
utilizam apenas a parte da vara mais próxima ao chão. No momento do
163
plantio, as varas são cortadas em pedaços com três nós. Caso haja pouca
vara para utilizarem, enterram dois pedaços provenientes das que tem
pouca seiva em uma única cova, aumentando assim as chances de sucesso.
Embora seja uma alternativa bastante utilizada, sobretudo para
manter sementes de macaxeira, a maior parte dos agricultores não aprecia
varas de mandioca que tenham sido encanteirados, dizendo que a plantam
perde sua seiva (leite) e nasce com menos vigor quando replantada do que
aquelas
que
foram
tiradas
recentemente
da
roça.
Além
disso,
o
encanteiramento de mandioca costuma apenas ser realizado quando a cheia
do rio não é demasiada intensa, pois nessas condições os agricultores
possuem tempo suficiente para empreender essa tarefa. A macaxeira, por
outro lado, é uma prioridade e deve ser encanteirada, algo facilitado pelo
fato de serem poucas varas necessárias, tornando assim o trabalho muito
mais fácil e rápido.
164
ROÇADOS E MANDIOCAS JAMAMADI
Ingrid Daiane Pedrosa de Souza
INTRODUÇÃO
Parte do grupo que ficou na cidade de Canutama (Thayná, Alba e eu)
deu início ao estudo sobre o evento conhecido como farinhada. A pesquisa,
vinculada ao projeto “Sistemas Produtivos no Médio Purus Indígena” do IBP,
coordenado pelo Prof. Gilton Mendes, objetivava o acompanhamento dos
agricultores de várzea do município, investigando prioritariamente os
aspectos sociais e simbólicos por detrás da atividade produtiva.
Este primeiro momento serviu como uma espécie de “pré-campo”,
uma vez que me possibilitou estar na região do Purus, conhecendo uma
área de roçados24, acompanhando um grupo de agricultores que fazem
desta sua principal atividade; compreendendo, entre outras coisas, a
dinâmica das relações entre nordestinos e indígenas, impressa na história
destes grupos. Esta última parte, de modo mais específico, de suma
importância para compreensão dos reflexos do extrativismo na história
social dos coletivos indígenas e não indígenas da região.
Meu retorno a Lábrea
Informada que o professor Gilton não poderia ir para Lábrea, fui por
ele instruída a entrar em contato com os professores do curso de pedagogia
indígena da UEA que haviam sido vinculados ao projeto sobre os sistemas
produtivos do IBP. A intenção era saber como estavam sendo conduzidos os
levantamentos e as pesquisas nas comunidades Jarawara, Paumari, Apurinã
e Jamamadi, onde os mesmos davam aulas, bem como realizar reuniões de
orientação ao grupo. Nesse sentido, tanto auxiliaria no andamento dos
trabalhos,
24
quanto
tomaria
conhecimento
do
material
referente
aos
Embora os roçados que conheci no município de Canutama sejam do tipo “vazante”, ou
seja, “roça de mês”, enquanto que nos Jamamadi as roças são de terra firme, roçados de
ano, a experiência de estudo trouxe grandes contribuições quando na pesquisa com os
Jamamadi.
165
Jamamadi, de modo a me situar do atual contexto agrícola do grupo, uma
prévia do que encontraria durante o trabalho de campo.
Nesta ocasião conheci a professora Apurinã Lucilene, que também
fazia parte do grupo de professores do projeto e era responsável por dar
aulas nas comunidades Jamamadi. Durante os encontros, a mesma
disponibilizou quatro desenhos de alunos seus produzidos já de acordo com
a proposta e objetivos do projeto. A partir de diálogos durante as aulas,
havia sido elaborado um modelo de “calendário dos roçados” orientando a
produção dos desenhos, os quais findaram sendo entregues à professora
como parte das atividades de uma das disciplinas por ela ministrada.
Além deste material, Lucilene trouxe ainda algumas informações
iniciais - baseadas em um questionário, uma espécie de “roteiro” que havia
sido elaborado e entregue pelo próprio professor Gilton - sobre o cultivo de
roçados e a produção de farinha entre o grupo. A mesma havia realizado
um pequeno levantamento na Comunidade São Francisco, bem como, em
uma casa de farinha localizada próxima ao Igarapé Preto, pertencente ao
cacique Bada.
De acordo a professora, no São Francisco vivem cerca de trinta e
quatro famílias, somando o total de 175 pessoas. Dos cultivos de mandioca
citados em seu levantamento constavam as espécies “Samaúma, Mineve e
Joaquim Grande”, as quais são descritas25 da seguinte forma:
25
Em nenhum momento do levantamento Lucilene explica como foi feito o levantamento, se
baseado nas suas observações ou na fala dos próprios Jamamadi.
166
MANDIOCAS LEVANTADAS
Espécies de Mandioca26
Descrição
Possui folha verde, talo roxo. O tubérculo tem a
casa preta e massa branca. O caule é branco (?).
Samaúma
Ela a espécie “aguenta” até três anos. Seu pé é
alto e “galhado” e rende farinha branca.
Toda verde, caule amarelo, roxo. Não é muito
alta. Aguenta cerca de dois anos. Possui massa
Mineve
amarela e rende uma farinha de cor “bem
amarelinha”.
Dura aproximadamente dois anos, sendo que
com onze meses já é possível fazer farinha desta
espécie de mandioca (confirmar). Sua planta é
alta, folha verde, caule cinzento, talo verde,
Joaquim Grande
batata “esbranquiçada”. Rende uma farinha que
não é nem muito branca e nem muito amarela.
Tabela 4 - Mandiocas levantadas no São Francisco.
Além das espécies de mandioca mencionadas, a professora conta que
os Jamamadi do São Francisco cultivam ainda milho, batata, ariar, cará,
banana, abacaxi, cana, caju, tingui, arroz e macaxeira (mandioca mansa).
Quanto à produção de farinha, Lucilene descreve algumas etapas do
processo. Conta que primeiro arrancam o tubérculo, decotam, carregam e
colocam
de
molho.
Com
aproximadamente
três
dias,
retiram-no
transferindo para cima da palha da bananeira braba. Para prensar, utilizam
o tipiti, que é preso na forquilha de uma árvore e com o auxilio de uma vara
fina (de aproximadamente dois metros e meio), presa na raiz da árvore,
26
Não sei se estes nomes foram grafados corretamente e nem os nomes científicos de cada
uma das espécies citadas. Muito menos saberia informar os nomes correspondentes na
língua Jamamadi.
167
espremem a massa. Acontece que “aterram” e engancham o tipiti tanto na
parte superior quanto inferior e, em seguida, a mulher senta em uma das
extremidades da vara de modo a fazer o peso necessário para que a água
escorra. O processo é repetido algumas vezes até que a massa enxugue por
completo. De acordo com o levantamento de Lucilene esta é a única
atividade onde apenas as mulheres participam, conforme o esquema
abaixo:
Tabela 5 – Divisão de atividades agrícolas por gênero.
DIVISÃO DE ATIVIDADES AGRÍCOLAS POR GÊNERO
Homens
Mulheres
Homens e Mulheres
- Coivara;
- Ir atrás das manivas
(?);
- Broca;
- Espremer a massa
- Derrubada;
(tipiti).
- Plantar (Cavar covas e
pôr as manivas);
- Limpar;
- Arrancar;
- Queima.
- Decotar ou cortar;
- Carregar;
- Peneirar;
- Torrar.
Após terem escorrido a massa, ela é levada até a casa de farinha onde
já pode ser torrada. Quando não é possível torrar no mesmo dia, pode-se
optar ainda por realizar a atividade no dia seguinte.
Dando continuidade ao processo de produção da farinha, partem a
lenha e fazem o fogo, de modo que após a massa ter sido peneirada e o
forno estar bem quente a jogam dentro. Enquanto um mexe o outro vai
168
jogando. No começo mexem com movimentos mais devagar, pois ainda
estão escaldando a massa. Depois, mexem com mais força até “secar a
farinha”. Segundo a professora, o tempo máximo que levam mexendo até
que se tenha uma fornada é de uma hora.
Na casa de farinha visitada, Lucilene registrou alguns dos materiais
utilizados no processo, entre os quais menciona: três tipitis, uma peneira,
uma caixa de peneirar massa, um forno, uma cuia para botar a massa no
formo, um remo para mexer, paneiro para carregar a mandioca, um pedaço
de pano molhado de óleo para passar no forno e um pano seco para puxar o
pó de farinha que fica quando a retiram do forno.
A chegada à TI Jarawara/Jamamadi/Kanamati
Embora estivesse ansiosa após a espera pelo retorno de André, tive
que conter minhas expectativas por mais um dia. Isso porque iniciei a
viagem de campo conhecendo primeiro a aldeia “Casa Nova”, também
situada
na
TI
Jarawara/Jamamadi/Kanamati,
mas
pertencente
aos
Jarawara. Neste local estava previsto ocorrer um campeonato de futebol
que contaria com presença de vários Jamamadi e ribeirinhos.
André por algumas vezes durante o trajeto havia mencionado seu
interesse em ir até lá para assistir e participar do campeonato, contudo,
fiquei bastante receosa que isso pudesse atrasar minha entrada, prejudicar
no sentindo de limitar meu tempo de trabalho, minha estadia nas
comunidades Jamamadi.
O comentário sobre o evento aumentava à medida que os demais
Jarawara que estavam no bote conosco – e desceriam em um ponto
próximo de onde ocorreria o campeonato – também aguardavam minha
decisão para seguirem direto até o local.
Apesar de expressar seu interesse, André procurou todo tempo me
deixar bastante a vontade para decidir, dizendo sempre que a gasolina era
minha e eu diria o que faríamos. “O que Daiane decidir”.
Sempre
gostei
de
futebol,
fiquei
interessada,
todavia,
estava
preocupada em manter o foco, imaginando que após André encontrar
parentes e amigos, poderia dispersar do ponto final da viagem. Assim, após
169
conversar com o agente sobre a proximidade das aldeias Jamamadi27 e dele
me garantir que logo pela manhã estaríamos no porto de uma delas - a
aldeia “Buritirana” do cacique Gasparino -, findei aceitando a proposta.
Logo que chegamos ao porto Jarawara, tratei de guardar minhas
coisas em uma casa localizada próximo a margem, para seguir a caminhada
até o local onde ocorreriam as partidas de futebol. Os Jarawara me
ajudaram a guardar e trancar a casa, alertando para o fato de muitos
poderem mexer no material que eu levava, não havendo controle com
tantas
pessoas
(indígenas
e
ribeirinhos)
de
diferentes
lugares.
Aconselharam-me a escrever em letras garrafais “OPAN” e “FUNAI” no
garrafão de gasolina e no rancho deixado.
Figura 21 - Cobrança de Pênaltis, aldeia “Casa Nova” dos Jarawara. Foto: Ingrid
Daiane.
Chegando lá, assisti a umas partidas, enquanto observava o local e as
pessoas, conhecia alguns Jarawara e era também por eles observada. À
tarde, sem comer nada, cansada, adormeci. Cochilava deitada no chão de
uma das casas altas, de madeira, ao redor do campo, apoiando a cabeça na
rede que havia levado.
27
Jarawara e Jamamadi dividem a mesma T.I., em uma área extensa onde os Jamamadi
detém maior parte.
170
Não demorou e um Jamamadi chamado Vane (ou Vande, como muitos
brancos o chamam), da aldeia São Francisco, se ofereceu para ajudar,
atando minha rede, me acomodando no local. Sempre atencioso e
preocupado em saber se estava tudo certo, foi a ele que reclamei/exclamei
de fome, enquanto ele ria de mim. Na frente da casa onde estávamos,
haviam mulheres Jamamadi sentadas com seus filhos, expectadoras atentas
das partidas.
Figura 22 - Campo de Futebol visto da casa onde estava (I e II
Jamamadi sentados na “varanda)”, III (campo onde jogavam
futebol). Foto: Ingrid Daiane.
Ir até lá assistir o campeonato, me fez perceber (e depois, através do
campo junto aos Jamamadi, confirmar), entre outras coisas, o quanto os
grupos indígenas da região também são afeitos ao futebol. Lá estavam
presentes vários Jamamadi, homens, mulheres, adultos, jovens e crianças,
de diferentes aldeias, participando e/ou assistindo. Mas, era Vane quem de
todos os presentes redobrava as atenções e dispensava cuidados.
Dentre os Jarawara que conheci, estava um jovem cacique que se
aproximou de mim para conversar. Ele tentou apresentar-me sua esposa,
que era branca, mas sorrimos e nos cumprimentamos, pois, já nos
171
conhecíamos de Lábrea, de uma das vezes que visitei a casa do cacique
Bada, localizada no Bairro da Fonte.28
Entre outras coisas, o cacique Jarawara falou sobre uma antropóloga
que havia feito um trabalho sobre o grupo. Referia-se a Fabiana Maizza,
cuja dissertação eu havia dado importante atenção pelas proximidades
históricas e culturais entre o grupo por ela pesquisado e os Jamamadi desta
pesquisa. O cacique comentou que havia sido ajudante dela na pesquisa e
lamentava que a mesma nunca mais tivesse mandado notícias ou aparecido
para visitá-los. De acordo com ele, a antropóloga havia sido muito bem
tratada, que não a deixavam carregar nada, sempre dispostos a ajudar no
que fosse preciso. Ansiava cada vez mais saber como seria recebida pelos
Jamamadi.
À noite, acordei e percebi que estava cercada de pessoas que não
conhecia. Eram os donos da casa onde havia ficado. Falei rapidamente com
dois homens e logo André chegou, me direcionando para a escola da
comunidade, onde eu dormiria. Já completamente escuro, desci em direção
ao igarapé da comunidade, onde tomei banho ao lado de algumas mulheres
Jarawara que ali se encontravam. Em seguida, após organizar minhas
coisas e me instalar na escola, segui com Vane e André para enfim comer
algo.
Nas casas do outro lado do campo acontecia uma festa em
comemoração ao aniversário de alguns Jarawara. Havia bastante comida e
muita gente reunida conversando e sem dar muita atenção ao fato de eu
não ser dali. Os Jarawara são bastante animados, gostam de festa.
Observá-los me fazia imaginar todo tempo os Jamamadi, como seria estar
com eles.
Apesar de ter deixado meu rancho no porto, não precisei mais me
preocupar com comida, pois na ocasião da festa era farta e composta por
todo tipo de carne de caça. Dentre as opções, experimentei porco do mato,
28
O Bairro da Fonte é bastante conhecido por sua forte presença indígena. O local é
bastante procurado por grupos indígenas tanto para fixar moradia quanto para comprar
casas onde permanecem durante sua estadia na cidade - como no caso de Seu Bada. O líder
Jamamadi havia comprado a casa há pouco tempo em um local cercado de vizinhos
Jarawara.
172
com farinha e bastante arroz. O gosto é diferente, mas ao mesmo tempo
referenciável. Gostei bastante, mais ainda pela fome que sentia.
Senti-me bem acolhida e pelo fato de não me cercarem todo tempo,
de não ser o centro das atenções (claramente a “de fora”, diferente), tive
tranquilidade em estar ali, conversando com naturalidade com as pessoas
sentadas próximas a mim. De modo especial, atenta a meus novos amigos
Jamamadi.
Depois do jantar, fomos até uma casa onde muitos Jarawara se
aglomeravam para assistir em um canal de TV a cabo um evento de luta do
tipo telecatch, impressionando-se com cada cena, que era por eles
comentada com grande excitação. Nos intervalos, mudavam de canal para
uma partida de futebol onde Neymar findava sendo o centro das conversas.
Em seguida, dando continuidade as comemorações, houve um culto
evangélico curto, onde cantaram parabéns para os aniversariantes e
repartiram o bolo. Várias mulheres saíram distribuindo, em bacias enormes,
fatias de bolo feito de uma massa bem pesada, além de pipoca, sucos e
refrigerantes, de modo que a etiqueta de aceitar o que me era oferecido já
não poderia mais ser seguida fisiologicamente, o que causava risos em
Vane que recordava do comentário de fome feito por mim horas antes.
Figura 23 - Aniversariantes na festa Jarawara. Foto: Ingrid
Daiane.
173
Uma banda formada pelos próprios Jarawara começou a tocar músicas
animadas no estilo “forró gospel”, com letras entoadas na língua nativa.
Não demorou e logo casais se formaram. Vane comentou que os Jarawara
gostavam muito de festa e que agora que eram crentes dançavam ao som
de hinos da igreja, o que era mal visto pelos Jamamadi, cristãos mais
conservadores.
Figura 24 – A banda arrumando os instrumentos. Foto: Ingrid Daiane.
A música continuou durante a noite toda, mas cansada e sonolenta fui
para escola organizar as ultimas coisas, pensando no dia cheio que teria. De
manhã
cedo,
enquanto
quase
todos
dormiam,
conforme
havíamos
combinado, seguimos viagem.
Aldeia Carapanazal
A caminho da Aldeia Carapanazal comecei a ficar preocupada, não
apenas com as histórias de cobras que haviam contado, mas com meu
condicionamento para a viagem mais longa. Estava extremamente cansada
pelas noites corridas, mal dormidas, pelas manhãs nas aldeias que
começavam mais cedo do que eu estava habituada, e mesmo pela mudança
de locais, deslocamentos que havia feitos nos últimos dias. A caminhada
mal havia iniciado e já estava cansada, desejando chegar logo ao destino
final.
Na cidade sempre caminhei com certa rapidez e por caminhos longos,
principalmente quando tinha um objetivo: passadas longas e precisas, sem
174
perder o ritmo. Mesmo quando me falaram das distâncias e longas
caminhadas que me aguardavam nos Jamamadi (principalmente no verão)
em momento algum desanimei, sempre encarando com muita tranquilidade.
Contudo, a partir da experiência de campo, pude perceber que andar por
entre varadouros era completamente diferente do que eu fazia na cidade,
outra referência. Tenho certa tendência a ser desastrada: tropeço e caio
sem tanta dificuldade e não sem frequência. Andar na mata potencializou
consideravelmente isso.
Lamentei não ter seguido minha meta (pensada justamente por conta
do campo) de fazer caminhadas frequentes durante os últimos meses,
enquanto ainda estava na cidade. Vontade não faltou, mas a correria dos
preparativos para a viagem realmente dificultou por o plano em prática.
Meu condicionamento definitivamente não era dos melhores, mas
segui
firme,
mesmo
carregando
comigo
uma
mochila
pesando
aproximadamente 15 kg (e aumentando consideravelmente a cada passo),
que só reiterava o cansaço e preocupação com a viagem mais longa, rumo
ao São Francisco.
Quando já estávamos bem próximos à comunidade, avistei uma
grande área queimada, repleta de troncos caídos, por onde um menino
Jamamadi caminhava.
Figura 25 - Varadouro próximo à comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane.
175
Mais adiante, vi um senhor de boné caminhando por entre os troncos,
cuidando do roçado que ali crescia. O homem, que tinha cabelos e bigode
branco, era Chico Inácio, filho do primeiro cacique dos Jamamadi, irmão de
criação de Bada e o garoto que havíamos visto primeiro, era seu neto.
Muito sorridente e conversador, Chico Inácio é um dos Jamamadi mais
velhos29, conhecedor de inúmeras histórias que foram, ao longo da minha
curta estadia no local, gentilmente compartilhadas. Vane e eu nos
aproximamos do local onde ele estava e, nesse primeiro momento,
conversamos rapidamente a respeito do roçado que orgulhosamente exibia.
Figura 26 - Chico Inácio em um de seus roçados, Comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid
Daiane.
Como parecia estar relativamente claro para os Jamamadi que meu
interesse estava de modo especial voltado para seus cultivos - desde a
cidade comentávamos -, durante as conversas o tema parecia algumas
29
Isso se não for de fato o mais velho. Reza a lenda (disseminada em conversas
descontraídas pelos membros de instituições) que seu Chico é muito velho, mais do que se
imagina, um centenário. A brincadeira é sustentada pelo fato do próprio Chico Inácio afirmar
ter criado o cacique Bada Jamamadi, que já é um senhor velho.
176
vezes fluir com certa tranquilidade.30 Por vezes durante o trabalho de
campo31 eles mesmos iniciavam o assunto, chegando até a avisar-me
quando determinada pessoa estaria indo ao roçado ou torrando farinha.
Mesmo quando Vane não tomava a frente, explicando meu interesse em
saber mais a respeito da agricultura que exerciam - dizendo repetidamente
a todos que estava me acompanhando e ajudando a fazer trabalho [de
campo] -, eles mesmos findavam percebendo a partir do andamento que
tomava boa parte das conversas.
Assim, mesmo cansada da caminhada, estava definitivamente animada
em conhecer o roçado de Chico Inácio, o primeiro que eu visitava. Mais
ainda por ele parecer disposto a conversar.
Com Vane iniciando as perguntas (ciente do meu interesse), aproveitei
a oportunidade para, com mais naturalidade, também dialogar com o
Jamamadi, que sorridente nos respondia.
Durante a curta conversa, Chico Inácio mencionou as variedades de
mandioca cultivadas: Cobiçada, Flecha Amarela, Janauacá e Mareão,
mostrando-me as que estavam mais próximas. Além das roças de
mandioca, ele possui outros cultivos como os de milho, cana, caju e
abacaxi, sendo descrito por Vane como proprietário de vistosos roçados.
Sem nos estender, cansados, seguimos caminhada. Não demorou e
logo adentramos a comunidade Carapanazal, onde alguns Jamamadi já
almoçavam. Vane de imediato anuncia: “Terra boa Carapanazal... Tem
muita planta”. Mal pude conhecer naquele momento o local, descansei um
pouco, coloquei meu rancho e mochila em uma das casas e tratei de comer
algo.
Recorreria naturalmente ao meu rancho para fazer a refeição não fosse
o gosto deles pelos enlatados. Vane me abordou comentando que algumas
mulheres queriam saber quanto à lata de sardinha havia me custado, pois
queriam comprá-la de mim. Embora soubesse que absolutamente tudo era
por eles negociado (favores, serviços, alimentos, artesanatos, etc.),
30
Com exceção apenas das limitações e problemas de comunicação decorrentes de minha
falta de compreensão da língua.
31
Aqui faço referência ao trabalho realizado no São Francisco, onde fiquei por mais tempo.
177
expliquei que eu não poderia vender, e, mesmo tendo pouca, daria para
que dividissem.
Não sabia como seria quando meu rancho estivesse chegando ao fim,
mas naquele momento não gostaria de iniciar (muito menos ter) uma
relação com eles nesses moldes. Esperava, ao contrário, algo semelhante
ao que Vane vinha construindo comigo: certamente eu saberia recompensar
tamanha dedicação e cooperação para comigo e com a pesquisa e ele sabia
disso. Chegou a sugerir sutilmente interesse em alguns objetos meus,
demonstrando curiosidade e admiração. Compreendendo algumas das
nuances por detrás de sua aparente despretensão, mencionei que daria um
presente especial pela ajuda, a faca que ele tanto tinha gostado. Feliz, por
onde passávamos ele comentava “quando minha amiga Daiane for embora
vai me dar faca dela!”. Isso parecia valer bem mais do que qualquer
dinheiro que eu pudesse dar pela ajuda, era uma dádiva que nos ligaria
mesmo após minha saída.
Confiante de que seria a melhor decisão naquele momento, cedi um
dos enlatados, a (desejada) sardinha. Peguei outra e com ajuda de uma
mulher, preparei meu almoço, comi uma parte e dividi o restante com Vane
e os demais. Não demorou a me retornarem um prato com caldo e matrinxã
fresquinha, o melhor almoço que eu poderia ter!
Satisfeita - com o almoço e a reciprocidade manifesta-, planejava
minha tarde quando Vane procurou-me para avisar que seguiríamos para
São Francisco naquele mesmo dia. Tentei durante o dia anterior persuadi-lo
a continuar nas comunidades, mas ele parecia determinado a seguir
viagem. Ainda cansada, vi no céu cinza a chance de permanecer no local.
Avisei que o clima parecia anunciar que iria chover e alguns Jamamadi que
estavam próximos concordaram. O céu de fato estava fechado, nublado e
Vane findou concordando em permanecer no local por mais uma noite,
avisando de antemão que logo pela manhã a viagem continuaria.
Não choveu e, ao contrário, tivemos um produtivo dia de trabalho.32
Dando início as atividades daquele dia, resolvi partir do levantamento do
32
Uma das coisas engraçadas e inusitadas do meu trabalho de campo foi a expectativa e
cobrança que cercava minhas atividades. Quando não saia para fazer levantamento do
parentesco ou para ir ao roçado Vane estranhava e perguntava se naquele dia eu não iria
178
parentesco, adotando a mesma estratégia utilizada no Buritirana, ou seja, a
partir das casas e seus respectivos proprietários/moradores.
Notei que o local, apesar de um pouco maior que o Buritirana, estava
um tanto deserto, “desfalcado”. Só não estava mais vazio pelo fato de
pessoas de outras comunidades estarem no local, “passando dias” – o que
inclusive, no começo, dificultou um pouco o levantamento.
Figura 27 - Vane chegando à comunidade Carapanzal. Foto: Ingrid
Daiane.
Ocorre que, justamente durante minha estadia na T.I, vários homens
desta e de outras comunidades haviam partido para os “centros”, pois o
calendário coincidia com o período de extração do óleo de copaíba. Entre
eles Dino, filho solteiro do seu Gasparino, do Buritirana, José, um dos filhos
de seu Chico Inácio e o cacique Ricardo, estes últimos, ambos do
Carapanazal.
Partindo em grupos de aproximadamente 15 homens, costumam levar
com eles algumas mulheres que, apesar de não retirarem copaíba, são
essenciais para o desempenho da atividade. Segundo disseram-me, elas
auxiliam seus parceiros dando suporte, entre outras coisas, cozinhando e
lavando roupas.
Geralmente o grupo abriga-se nas casas temporárias, construídas com
este intuito, onde ficam apenas quando estão de passagem pelo local,
trabalhar, não entendendo que o simples fato de estar com eles conversando ou
compartilhando uma refeição fazia parte do “trabalho”.
179
empregados nas atividades de extração. De acordo com seu Chico, embora
não haja manutenção das casas, as mesmas não são destruídas após o
término da extração, permanecendo justamente para quando precisem
retornar; até que se “acabe sozinha”, não resistindo ao tempo. Conforme
explicam, “cai porque é no mato”.
Assim,
implicâncias
levando
deste
em
consideração
momento
específico
o
calendário
no
trabalho
do
de
grupo
e
as
campo33,
o
levantamento das casas e dos respectivos moradores foi feito, de modo que
a distribuição das casas no Carapanazal pode ser visualizada no quadro
abaixo.
Tabela 6 - Distribuição das casas Jamamadi - aldeia Carapanazal.
Distribuição de Casas – Comunidade Carapanazal
Casa 1. Pode ser vista logo que se adentra a comunidade. A mesma pertence
ao cacique Ricardo e sua família nuclear. No local são realizados cultos e
também a tradução da bíblia.
Casa 2. Localizada ao lado da primeira casa, é onde vive Seu Chico Inácio e os
filhos Salgado e José, bem como sua nora Cleonice.
Casa 3. Embora a casa pertença ao cacique Ricardo, ele não mora mais no
local. Pelo que me foi dito, qualquer pessoa de passagem pela aldeia pode
abrigar-se lá.
Casa 4. Pertence a Abadia, filho do cacique Gasparino. Lá ele mora com sua
esposa Cléia e seus três filhos.
33
Por certo tais ausências influenciaram no resultado das informações e levantamentos
realizados durante esta primeira entrada. Exemplificando um destes aspectos, cito o fato de
não estarem torrando no Carapanazal durante este período. Segundo Vane, haviam torrado
na semana anterior e como neste momento estão no centro, apenas retomariam a atividade
quando voltassem à comunidade.
180
Casa 5. No local vive Nilton (irmão do cacique Moacir, do São Francisco) com
sua esposa Nadime e os filhos solteiros. Lá eles recebem ainda (por vezes
durante meses) a visita da filha Eulina com o marido Raimundo e o filho do
casal. Eles ficam na casa de Nilton, pois possuem casa apenas no Pauzinho.
Casa 6. Pertence a Marildo, filho de Nilton e Nadime. Ele vive no local com a
esposa Rubina e os três filhos do casal.
Casa 7. Pertence a outro filho de Nilton, Isaac, que é casado com Rita (filha de
Gasparino), que moram ainda com seus dois filhos. Possuem casa nas aldeias
Buritirana (onde os conheci) e Carapanazal.
Casa 8. Lá vive Elton (filho de Gasparino) e Melista (filha de Nilton) com os
três filhos do casal.
Quanto aos moradores de cada uma das casas, optei por incluí-los no
esquema de parentesco (nos moldes clássicos da antropologia), imaginando
que deste modo poderia, futuramente, traçar as genealogias e análises de
modo mais satisfatório. Contudo, para organização no presente relatório,
decidi fazer algumas pequenas adaptações34, para uma melhor leitura do
material. Deste modo, dividi por cores os respectivos familiares incluídos no
levantamento mais “genérico”, de maneira que de vermelho constam as
pessoas que moram na casa, de azul aqueles que costumam ficar “de
passagem” (geralmente os filhos casados, seus respectivos cônjuges, com
ou sem filhos); verde para aqueles que possuem casa em outros locais
(“moram lá e aqui”) e cinza para membros da família nuclear falecidos.
Conforme encontrei o local, segue a descrição abaixo, seguida do esquema
de parentesco:
Casa 1: Durante minha visita na comunidade, a casa 1 do cacique
Ricardo estava sob os cuidados de Socorro (esposa de Dentista), uma
Jamamadi do São Francisco de passagem pelo local. Ricardo, que é casado
34
Semelhantes ao esquema acima, referente ao Buritirana, que destacava de vermelho o
ego.
181
com Maura (filha de Chico Inácio), como mencionado acima, estava para o
centro.
Chico
nácio
Ricardo
Eduardo
Jairo
Maura
Ketinha Kátia ?
?
?
Casa 2: Já a casa 2, no dia de minha visita, abrigava apenas seu Chico
Inácio, estando o restante dos moradores no centro, extraindo copaíba inclusive a esposa de José, Cleonice, que fora auxiliar o marido (o casal não
tem filhos). Seu Chico Inácio foi casado com Tamará, irmã do cacique
Gasparino. Pelo que me foi dito ela faleceu em um acidente que ocorreu
quando Tamará alcoolizada alagou a canoa onde estava, juntamente com
uma criança, um dos filhos do casal.
Chico Inácio
Tamará
_
+
=
+
Cleonice
José Salgado
França
Maura
Casa 3: Já na casa 3, também pertencente ao cacique Ricardo, estava
Carlo (cunhado do cacique Moacir), um Jamamadi do São Francisco,
passando uns dias. Segundo me foi dito, geralmente quem fica no local é
182
Barriga (Bahika), que naquele momento era mais um dos que estavam no
centro, juntamente com a esposa Raimunda (Bonoidiha).
Casa 4: Na casa 4, por sua vez, o que me chamou atenção foi o fato
de estar um casal sem aparentes vínculos diretos com demais membros da
comunidade, o que abre para a possibilidade do mesmo existir e ter,
contudo, passado desapercebido durante o levantamento, ou o contexto ser
de alguma outra motivação até então desconhecida. Embora Abadia seja
sobrinho da falecida esposa de Chico Inácio (Tamará) e de dois irmãos seus
(Rita e Elton) morarem no local, nem ele e nem sua esposa possui pai e/ou
mãe na comunidade, o que os difere dos demais. Como mencionado
anteriormente, o casal e os filhos estavam, na ocasião de minha visita, na
cidade de Lábrea, onde Abadia participava das aulas do Pirayawara. Assim,
quando visitei o local, era Margarida, uma Jamamadi do São Francisco,
quem estava passando uns dias. Próximo a casa, notei uma casinha “anexa”
que funciona como cozinha, padrão que se revelará bastante comum em
comunidades maiores como São Franscico e Pauzinho.
Gasparino
Morena
?
Creia
Abadia
?
Neuza
?
Casa 5: O local, que abriga a família nuclear de Nilton (Bokakari) e
Nadime, esporadicamente recebe ainda o casal Eulina e Raimundo, com a
filha Soeki, que permanece no local durante semanas e até meses. Eulina é
uma das filhas de Nilton e possui casa somente no Pauzinho.
183
Nilton
Nadi
Raimundo
me
Mari
Isa
Fran
ldo
ac
ça
Sáli
Iv
Melist
o
an
a
Euli
na
Sam
Sili
ia
a
Casa 6: Já na casa 6 vive mais um dos filhos de
Eulina
Soeki
Nilton, Marildo,
juntamente com sua esposa Rubina (sobrinha de Vane) e os três filhos do
casal.
Nadim
Deca
e
Noca
Nilto
Vane
n
Rubina
Marildo
Nira
?
Gabriel
Casa 7: A casa 7 da comunidade Carapanazal pertence a Isaac (filho
de Nilton) e Rita (filha do cacique Gasparino). O casal e seus filhos possuem
ainda
outra
casa,
listada
anteriormente,
localizada
na
comunidade
Buritirana, onde revezam a estadia.
184
Gasparino
Morena
Nilton
Nadime
Rita
Isaac
Brenda
João
Casa 8: A ultima casa listada pertence a Elton (filho do cacique
Gasparino) e a Melista (filha de Nilton), que moram no local com seus três
filhos.
Gasparino
More
na
Elton
Nilton
Nadim
e
Melista
A partir do levantamento realizado, podemos notar que a comunidade
é formada, basicamente, por membros de duas famílias principais, a de
Chico Inácio e a de Nilton. Esta segunda, por sua vez, além de mais
representativa aparece diretamente relacionada com outra família, a do
cacique do Buritirana, Gasparino Jamamadi. Foram identificados dois casos
de casamento estabelecido entre os filhos de Gasparino e Nilton, de modo
que em ambos os casos optaram por construir – somente ou também residência no Carapanazal.
185
Além das casas onde o grupo vive, a paisagem da aldeia é composta
ainda por uma casa de farinha, localizada próxima à cozinha de Abadia. O
local, compartilhado por membros da comunidade, estava com aspectos
visíveis de recente (e frequente) utilização, muito embora durante todo o
dia em que estive no local ninguém tenha torrado farinha.
De acordo com Vane, apesar de utilizarem a casa com certa
frequência, nem mesmo haviam arrancado e colocado de molho a
mandioca, o que provavelmente ocorreria apenas quando parte do grupo
retornasse dos centros.
Figura 28 - Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid
Daiane.
Pude notar que o local é composto, entre outras coisas, por uma
prensa onde espremem a massa fermentada (mandioca-puba). De acordo
com Vane, o desempenho da atividade no equipamento fica a cargo dos
homens enquanto que as mulheres recorrem ao tipiti, ainda bastante
utilizado, para auxiliar na mesma tarefa, já que a prensa é pequena e não
cabe muita massa.
Mais adiante, em outras comunidades, findei notando que, quando o
local não possui casa de farinha com prensa, apenas as mulheres
186
espremem a massa no tipiti, não cabendo, portanto, em ambos os casos,
sua utilização pelos homens.35
Figura 29 - Prensa, localizada na Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane.
Vane comenta que mesmo quando eles estão espremendo, as
mulheres também estão presentes, sempre ajudando. Seja tirando a
mandioca de molho ou carregando a massa, as mulheres tem grande
participação durante todo o processo de produção da farinha. Sobre esta
divisão de tarefas, Vane explica que tanto os homens quanto as mulheres
podem arrancar e cortar (decotar) a mandioca, contudo, quando é
necessário carregar (transportar) grandes quantidades, é o homem que
finda sendo responsável. As mulheres carregam quantidades menores,
“mais maneiro, mulher força pouca”.
Cabe, por sua vez, a elas retirarem a mandioca que fica de molho - no
caso do Carapanazal, no porto da comunidade -, de modo que, após terem
espremido a massa, retirando o suco, elas seguem peneirando. Os homens
cuidam da lenha utilizada para aquecer os fornos, todavia, na ausência
35
Muito embora o tipiti seja uma das únicas “cestarias” que os homens produzem. De
acordo com os relatos, apenas as mulheres fazem os cestos comercializados pelo grupo chegaram a rir quando perguntei se os homens também sabiam fazer, respondendo que era
coisa de mulher -, contudo, seu Bada contou-me que os homens confeccionam o espremedor
artesanal. O artefato não é voltado para fins comerciais, mas para uso interno do grupo.
187
deles, elas também se encarregam desta etapa.36 Ao fim do processo,
ambos podem participar, torrando a farinha.
Durante o diálogo na casa de farinha, Vane lista ainda algumas “tribos
de mandioca37”, espécies cultivadas pelos Jamamadi, entre as quais cita:
Cobiçada, Janauacá, Flecha amarela (“do branco... Jamamadi chama fowa
sauwa”), Samaúma e Mereão, que segundo ele, rende farinha amarela. Sem
mencionar as variedades, comenta ainda que cultivam macaxeira (mandioca
mansa), que chamam na língua de cuiu.
A partir da casa de farinha, Vane segue apontando ainda uns pés de
caju, mamão e pupunha que cercam a comunidade, além de mostrar a
embaúba e a planta a partir da qual produzem flechas.
Esse aqui mesmo fazer flecha, né? (...) pra flechar alguma coisa,
flechar peixe, flechar bicho, né? (...) fazer um ponta dele mesmo
aí... fazer um ponta dele mesmo bem fina e coloca também um
veneno do mato (...), mas isso quem saber só velho mesmo (...)
agora nós não tamo fazendo mais não, ninguém aprende não, só
velho. 38
Mais adiante, Vane exibe uns pés de tucumã e explica que também é
“planta mesmo”, todavia, faz clara distinção entre estas e as demais
árvores frutíferas cultivadas ao redor da comunidade; esclarecendo que,
36
Embora Vane tenha explicado assim, cheguei a ver no São Francisco uma mulher (nova,
por volta dos 25 anos) que sozinha transportava a lenha (um tronco de árvore enorme e
pesado) para uma das casas de farinha, mesmo havendo muitos homens presentes no local.
37
A expressão “tribo” utilizada por Vane para se referir aos diferentes tipos de mandioca
cultivada pelo grupo chamou bastante atenção. A curiosa forma de se referir surpreendeume desde que foi mencionada pela primeira vez, durante uma conversa informal, ainda no
Buritirana. A partir daí o vi recorrer algumas vezes a analogia durante novas conversas, sem
conseguir – por hora - obter mais informações que me levassem a grandes conclusões de
cunho perspectivista, muito embora de imediato tenha me ocorrido como possibilidade
analítica. Deixei em aberto.
38 De acordo com informações extraídas do relato do cacique Bada Jamamadi para a Cartilha
do Plano de Vida do Médio Purus (2011), antigamente, na ausência de ferramentas como
“ferro, machado, terçado, era usado dente de anta para fazer flecha, na etnia Jamamadi.
Para flechar tinha que fazer a ponta do dente da anta, assim trabalhava o velho Jamamadi”.
188
diferente das outras, esta primeira nasce no mato. Ainda sobre o fruto, o
Jamamadi comenta que na manhã seguinte passaríamos por uma área de
capoeira que antigamente era uma grande região de roçado, mencionando
haver no local bastante árvore de tucumã.
O lugar datado por Vane da “época dos nossos avós, dos nossos tios”,
abrange uma região bastante rica em árvores frutíferas, porém, “do mato”
(como
eles
dizem),
tendo
ocorrido
no
local
à
sucessão
ecológica
secundária39, tornando o local mais enriquecido.
39 A sucessão do tipo secundária ocorre em um determinado ambiente a partir de certas
“perturbações”. No caso mencionado, por tratar-se de uma área de roçados, compreende-se
que a “perturbação” está diretamente relacionada à interação do homem com o ambiente
através, por exemplo, do corte de árvores, queimadas e dos cultivos empreendidos no local.
189
ETNOGRAFIA E SISTEMAS PRODUTIVOS DOS
PAUMARI DO RIO TAPAUÁ
Angélica Maia Vieira
INTRODUÇÃO
Tudo começou em dezembro de 2011, quando o NEAI, motivado pelo
interesse comum acerca dos estudos e pesquisas que se tem sobre os
povos que habitam o rio Purus, organizou uma viagem para a região com a
proposta
de
contemplar
alguns
dos
objetivos
dos
projetos
que
desenvolvíamos no âmbito do NEAI, bem como as pesquisas de mestrado
que eu e Ingrid Daiane, que estuda os Jamamadi Ocidentais, realizamos
dentro do PPGAS/UFAM. E foi assim que eu, juntamente com outros seis
colegas, parti rumo ao rio Purus na então chamada Expedição Purus-2012:
150 anos depois.
Assim, em 07 de Janeiro de 2012, ao entardecer do sábado, no barco
“Vovô Osvaldo II”, partimos rumo ao Purus. Três dias se passaram; e eu,
na companhia de Alexandre, Admilton e Mario, descemos na cidade de
Tapauá, na terça-feira (dia 10/01/2012), com a proposta de realizar alguns
estudos etnográficos na cidade, bem como conhecer os Paumari que ali
moravam. O restante da equipe – Alba Garcia, Ingrid Daiane e Thayná
Ferraz, seguiram viagem por mais dois dias até a cidade de Canutama.
Deste modo, a Expedição Purus foi concebida coletivamente a partir de um
viés interdisciplinar composta pelas experiências de pesquisa de várias
pessoas, que comungavam a mesma expectativa: conhecer a região do
Purus.
Cada pesquisador ficou responsável por uma temática, cujo objetivo
era montar um panorama tanto histórico, quanto produtivo e social da
região por onde passaríamos. Eu, por sua vez, realizei minha pesquisa nas
Terras Indígenas Paumari do Lago Manissuã e Paricá, localizadas logo acima
da foz do rio Tapauá, cujo objetivo era analisar a relação dos Paumari com
o universo aquático, de modo a seguir as evidências dos registros históricos
do século XIX do estilo de vida dos Paumari bem como as formas pelas
quais estes índios tecem relações com o seu ambiente fluvial. A partir disso,
pretendo refletir se a relação estabelecida com o ambiente aquático se
190
traduz como a “relação preferencial” de sociabilidade entre os Paumari e os
demais seres que habitam o cosmo e/ou o mundo subaquático dos seres
não humanos.
Notas sobre a Leishmaniose no Município de Tapauá
Um dos objetivos da viagem “Expedição Purus” era o de compreender
e etnografar o ciclo anual das atividades produtivas que os povos indígenas
que habitam a região do Purus e suas adjacências exerciam durante os
meses em que estavam realizando as atividades de campo, bem como o de
apreender informações das demais atividades realizadas no decorrer dos
meses, tendo assim um panorama do calendário de atividades executadas
durante o ano todo. A preocupação em compreender os processos
produtivos está associada ao aparecimento da Leishmaniose após uns
meses de execução das atividades cotidianas – coleta de castanha, caça,
abertura de roçado.
Em meio a este objetivo comum, buscamos os órgãos de saúde para
conversarmos sobre os casos que sucedem na região acerca desta doença e
de como é diagnósticada e quais as formas de tratamento que os órgãos de
saúde dispõem para os indígenas. No entanto, não tivemos respostas
positivas e nem dados acerca da doença e dos processos de contaminação,
a não ser o acesso há um caso de óbito por Leishmaniose e de um possível
caso de contaminação por Leishmania em uma senhora da Etnia Mamori. Ao
saber deste caso em particular, procuramos conhecer esta senhora e buscar
informações que nos mostrasse alguma ligação entre a doença e as
atividades por ela desenvolvida bem como de sua percepção em relação à
doença.
Esta senhora se chama Leontina. Fomos até a casa de Dona Leontina,
filha de uma índia Mamori com um índio Paumari. Apresentamos-nos,
explicamos nossa pesquisa e expressamos nossa “curiosidade” sobre a
ferida braba. Começamos a conversar; e ao longo da conversa Dona
Leontina nos disse que a possível ferida braba lhe apareceu no mesmo dia
em que ela recusou um pedido de casamento vindo de um pajé do Lago
Marahã. A mesma chegou a dizer que esses pajés são fortes e tem muito
poder, e por não aceitar o pedido de casamento, o então pajé lhe lançou um
191
feitiço que se transformou na ferida que acomete seu rosto há mais três
anos. Contudo, não há nenhum diagnóstico que confirme a ferida como um
caso de Leishmaniose, embora a CASAI apresente-a como um dos casos
registrados da doença na região. Assim como Dona Leontina, tivemos a
informação de que um jovem rapaz havia falecido em função da
Leishmaniose, uma vez que a doença estava muito avançada no paciente e
já havia corroído parte de sua cavidade nasal. Não há nenhuma estrutura
no Município que dê conta do diagnóstico da doença, uma vez que a
instituição carece de médicos, de recursos financeiros e principalmente de
profissionais capacitados para este tipo de análise.
Cabe registrar que o Município de Tapauá concentra um grande
número de populações indígenas, seja ao redor do município como também
no rio que corre a frente da cidade (Ipixuna). À frente da cidade há
inúmeras casas flutuantes, quase todas elas são habitadas pelos índios
Paumari que migraram das terras indígenas Paumari do Lago Manissuã,
Paricá e Cuniuá, localizadas na foz do rio Tapauá, com o objetivo de
buscarem melhores condições de vida, educação para seus filhos e
atendimento médico. Das pessoas que conhecemos e que conversamos
tomamos conhecimento de que todas elas têm roçados em áreas de várzea
e algumas possuem pequenas áreas de terra firme, onde plantam pupunha,
banana pacovã e outras variedades de frutas. A pesca é praticada no
decorrer do dia, dependendo muito de quem vai pescar. No entanto, a
pesca acontece, geralmente, quando toda a família vai para o roçado colher
parte da produção que está “madura” enquanto que o pai ou um dos filhos
lança a rede de pesca nas proximidades do roçado da família.
FOZ DE TAPAUÁ: ADENTRANDO O UNIVERSO PAUMARI
Breve caracterização dos Paumari
Pertencentes à família linguística Arawá, os índios Paumari habitam
atualmente a região do Médio rio Purus, ao sul do Estado do Amazonas.
Ocupam áreas geográficas distantes uma das outras, entre elas, as áreas do
rio Ituxi e lago Marahã, localizados nas proximidades do município de
Lábrea e as áreas dos lagos Manissuã, Paricá e Cuniuá, localizados pouco
acima da foz do rio Tapauá (BONILLA, 2005, pg.1).
192
Figura 30 - Mapa de Localização das Terras Indígenas
Paumari. Fonte: Instituto Socioambiental - ISA
Os Paumari têm por principal atividade a pesca de peixes e quelônios,
seu ciclo econômico está marcado pela mobilidade de seus grupos locais e
seus deslocamentos entre as diversas zonas de exploração (terra firme,
várzea, praias e castanhais). A pesca é praticada nos rios, igarapés e lagos
da bacia do Médio Purus e constitui-se como atividade fundamental na
economia de autosustento Paumari. Além do peixe, a preferência por
quelônios - da qual chamam de "bichos de casco" - tem especial destaque
nos hábitos alimentares deste povo (SCHRÖDER, 2002, p. 2).
A preferência por estes animais é, também, apontada por quase toda a
documentação histórica. O geógrafo Willian Chandless ([1864]1949), chega
a observá-los em mais de sessenta canoas descendo rio abaixo a procura de
tartarugas. Segundo o autor, em cada uma delas ia uma mulher a remar e
um homem em pé, na proa do barco, só na expectativa de encontrar o
referido quelônio. Já Ehrenreich (1905), descreve que entre os índios da
Amazônia Ocidental, os Paumari e os Aruanas se destacam por uma
particularidade: são índios que levam uma vida de puros pescadores que se
193
alimentam principalmente de tartarugas e jacarés, morando em balsas que
acompanham o fluxo do rio.
É preciso ressaltar que a pesca é a atividade mais descrita nos relatos
dos viajantes, sendo que pouco se sabe a respeito da exploração da terra
firme pelos Paumari. No entanto, alguns viajantes chegam a narrar o uso da
terra firme para o cultivo de pequenas hortas e leguminosas. Embora, haja
essas informações, são de comum acordo, nos escritos dos viajantes,
informações que narram o não cultivo de mandioca por parte dos Paumari,
que estes índios não são dados à agricultura, antes, preparavam farinha de
uma leguminosa e de um tubérculo.
Porém, para Schröder (op.cit.) e Pohl (1998), os Paumari praticam a
“agricultura” tanto nas áreas de várzea quanto nas áreas terra firme,
estando a mandioca entre as principais espécies cultivada nos roçados. É
importante ressaltar que estas afirmações baseiam-se nos dados coletados
durante a expedição dos biólogos norte-americanos Ghillean Prance, David
Campbell e Bruce Nelson à região do rio Purus. Esta expedição revelou uma
situação contrária àquela apresentada pelos viajantes no século XIX,
porquanto os biólogos descobriram diversas variedades de mandioca nas
roças Paumari - mais de quatorze –, logo, tal “achado” incidiu como uma
surpresa para os que estavam na expedição, pois não se esperava
encontrar tantas variedades de mandiocas em meio a um povo que é
considerado aquático, nômade e não dado à agricultura.
Deste modo, ambos os autores assinalam que os Paumari praticam
agricultura na várzea e/ou na terra firme e além de serem agricultores, são
também
cultivadores
de
diversas
fruteiras,
leguminosas
e
plantas
medicinais. Coletam diversas frutas silvestres que lhes servem tanto para
seu consumo quanto para matéria-prima (principalmente cipós e enviras).
Essas matérias-primas são utilizadas na construção de casas, cestos,
embarcações e na confecção de objetos diversos.
Por sua vez, os Paumari são conhecidos por sua orientação aquática,
que se manifesta nos hábitats tradicionalmente preferidos: várzeas, rios e
lagos. São denominados por Kroemer (1985) como índios fluviais; Labre
(1872) como verdadeiros canoeiros; Steere (1949) como índios ribeirinhos,
hábeis nadadores e barqueiros, vivendo quase que exclusivamente de
194
peixes e tartarugas; ou como acrescenta Cunha (1960) habilíssimos
fabricantes
de
ubás
e
incomparáveis
remadores;
ou
como
conclui
Associação Comercial do Amazonas (1893):
(...) exímios remeiros, nadadores e pescadores, capazes de pegar
peixes e jacarés, com as mãos, após um mergulho. (...) Os Paumari
foram os criadores das casas flutuantes da Amazônia, construídas
nos lagos, sobre jangadas ou balsas (...) (1893, p.33 - 38).
Spix e Martius (1817/1820) relatam que os Paumari costumavam fugir
das brumosas e úmidas espessuras mudando-se para o próprio rio,
estabelecendo-se sobre a madeira flutuante que se aglomerava nas
enseadas em enormes pilhas, oferecendo uma base vacilante para suas
humildes choupanas. E acrescentam os autores: “(...) Deve-se procurar sua
origem na sua vida quase anfíbia (...)” (op.cit, p.187).
“Eles não abandonam as águas pela terra e passam pouco tempo em
terra durante a estação chuvosa", escreve Silva Coutinho (1862, p.68).
Eles, diz o etnológo americano Joseph Steere (1949 [1873], p.365),
“permanecem sempre às margens dos rios e lagos em habitações
flutuantes, sem se internarem na floresta”. Já o etnólogo alemão Ehrenreich
(1948, [1888] p.96), arrisca-se a dizer que “os Paumari são representantes
modernos da idade palafítica” e, são descritos por Euclides da Cunha (1960,
[1904] p.81) (...) “em enormes malocas flutuantes, numa permanente
viagem, ancorando ao acaso nas praias e barreiras”.
Já o cearense e Coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre, que fundou a
cidade de Lábrea na localidade denominada Terra Firme do Amaciary, sítio
pertencente aos índios Paumari, os descreve nos seguintes termos:
(...) as suas cabanas são feitas nos lagos em jangadas ou balsas,
pelo que suas habitações são flutuantes. São destros remadores,
entregando-se ao trabalho do mar; são verdadeiros canoeiros. (...)
são os selvagens mais conhecidos por não arredarem-se das
margens dos rios e lagos (...). (LABRE, 1872, p. 27)
Deste modo, os Paumari continuam sendo apresentados como índios
fluviais que habitam/habitavam excepcionalmente as ilhas e lagos do Médio
rio Purus. Entregam-se integralmente à prática pesqueira e à caça de
195
tartarugas. Steere (idem) reconhece-os, também, como moradores de
aldeias de caráter permanente nos lagos e rios da região puruense. E os
expõe neste contexto:
(...) Entre as tribus do Purus, os Paumari são os mais conhecidos.
São
principalmente
barqueiros,
vivendo
índios
quase
ribeirinhos,
que
hábeis
exclusivamente
nadadores
e
de
e
peixes
tartarugas. (STEERE, 1949, p.364)
Além disto, um relatório técnico da Fundação Nacional do Índio FUNAI (S/D) assinala que a particularidade deste grupo é a sua afinidade
com as águas; cuja origem é intrínseca à vida quase anfíbia que este povo
possui. De igual modo, Bonilla (2005:07) ressalta que o que se “sobressai
da literatura é o componente aquático da vida dos Paumari”. Deste modo,
feita esta breve apresentação dos Paumari, faço uma descrição do contexto
vivido na aldeia e de algumas das atividades que pude acompanhar no
período de 16 dias nas Terras Indígenas Paumari do Lago Manissuã e
Paricá.
O contexto da Aldeia
No dia 23 de Janeiro de 2012, cheguei a Terra Indígena Paumari do
Lago Manissuã. Fui recebida por Sara Paumari, esposa do Professor
Germano Cassiano Paumari. No momento em que cheguei à aldeia,
Germano encontrava-se “internado” na mata com seus dois filhos, pois
estavam quebrando castanha no “ponto” que pertence à família Cassiano
Paumari.
Passei dezesseis dias nas terras indígenas Paumari; viajei por
algumas comunidades e conheci diversas pessoas e inúmeras crianças. O
tempo na aldeia foram os melhores, bons momentos estão registrados na
memória e no coração, pois esta gente, de tenra simplicidade e carisma,
ensinaram-me muitas coisas e cuidaram de mim como se cuida de um filho,
de um parente próximo. Visitei as roças, as casas de farinhas, fui para as
estradas de castanha e conheci um pouco de cada um. Aprendi a fazer açaí;
colhi frutas e macaxeiras, acompanhei uma pesca de peixe-boi e aprendi
um dos exercícios mais significativos para os Paumari: observar o ambiente
que nos cerca e se concentrar na atividade a ser executada. Coletei
196
castanha com duas jovens moças da comunidade Abaquadi, da Terra
indígena Abaquadi, que conjeturavam pagar o regatão de quem haviam
comprado roupas e alguns gêneros alimentícios.
Registrei tudo o que podia, aprendi, ou melhor, tentei soletrar algumas
palavras na língua Pamoari bem como tentei responder, também em
Pamoari, as perguntas que eles me faziam. Tudo era motivo de risos e
brincadeiras, mas em meio a tantos risos e brincadeiras, fui adentrando no
cotidiano Paumari e com eles aprendendo muitas lições de vida. Ouvi
histórias sobre os antigos Paumari, sobre a fabricação dos balaios e do picapau que confeccionava a canoa. Perguntei sobre os “outros”, sobre quem
eram os Mamori e os Juberi, de como estes se diferenciavam dos Paumari e
de como eles “desapareceram” ao longo dos anos. As inúmeras informações
eram intensamente guardadas em minha memória para que depois eu as
registrasse no caderno de campo. Toda a familiaridade que fomos
conquistando durante os dias, nos permitia e nos possibilitava adentrar
ainda mais no cotidiano das famílias, de suas brigas internas, das grandes
disputas e nos demais contextos que durante os dias iam surgindo.
Depois
de
sentir
a
familiaridade
e
a
confiança
que
tínhamos
conquistado, passei a fazer o recenseamento das famílias, a etnografar a
aldeia, a entender as relações com outrem e com os próprios parentes. Com
isto, apresento o levantamento básico que fiz na aldeia e demonstro por
meio de tabelas o senso demográfico que realizei no período em que estive
com eles e entre eles.
Vejamos a tabela a seguir:
197
Tabela 7 - Levantamento demográfico das aldeias. Fonte: Vieira, 2012.
TI
Manissuã
Paricá
Cuniuá
Aldeia
Nº de
Nº de
Ambiente de
Pessoas
Famílias
moradia
Sete Bocas
10
3
Flutuante
Centro
27
6
Terra firme
Bacia
#########
#########
#########
Abaquadi
25
5
Terra firme
Terra Nova
#########
#########
Terra firme
Xila
#########
#########
#########
Açaí
#########
#########
#########
A tabela acima assinala o número de pessoas residentes nas aldeias,
onde moram, se é em terra firme ou em flutuantes, bem como as
respectivas comunidades a que pertencem cada família. Os campos em que
consta o símbolo jogo da velha representam as comunidades que eu não
visitei e de onde não obtive informação sobre seus moradores, tipo de
moradia etc.
O que podemos extrair deste levantamento é que boa parte da aldeia é
formada por indivíduos mais jovens, sem muitos anciões. Outro indicativo
que me chamou a atenção foi a constante migração dos Paumari para o
município de Tapauá, onde a maior justificativa é a busca por melhores
condições de vida e educação. Os Paumari que ainda residem na aldeia
relataram-me que muitos Paumari estão se mudando e indo habitar em
outras regiões e que as causas para tanta mudanças são diversas e há
casos de índios Paumari morando no Rio Negro, Porto Velho, Tapauá e até
mesmo em vilas bem próximas as aldeias. Eu lhes perguntei sobre os
198
motivos das migrações, e obtive a mesma resposta que recebi dos Paumari
que conheci no município de Tapauá: educação de qualidade para os filhos,
saúde e melhores condições de vida.
Portanto, os que permanecem na aldeia são geralmente os jovens,
adultos e são poucos os anciões que existem. Durante as conversas e
registros das famílias da aldeia, Sara mencionou-me a saída dos rapazes
Paumari para o mundo dos brancos, ou seja, quando o menino alcança
certa idade – não me foi relatado à idade em que os meninos costumam
sair de suas casas, mas neste caso a idade não é determinante e pode
variar de rapaz para rapaz -, o garoto sai do seio de sua família e vai
trabalhar para um regatão por tempo indeterminado ou até que ele sinta a
vontade para regressar para a aldeia e se casar com alguém de seu meio ou
pode até mesmo se casar com a filha de algum regatão. Sobre isto, Sara
contou-me que seu filho trabalha para um regatão de Manaus e que o
Irmão do “Preto”, liderança da aldeia Xila, tem um irmão casado com a filha
de um regatão e que ele faz um preço “mais acessível” para os demais
Paumari. Sobre esta informação, os Paumari relataram-me que este ato se
configura como uma “espécie” de saída para conhecer o mundo do outro,
ter acesso ao mundo dos bens, aprender o português e a comercializar,
assim como os regatões comercializam com os outros. Portanto, é comum
ver um jovem sair de sua casa e ir trabalhar para um barqueiro de Manaus,
porto velho e outros lugares.
Tipo de Moradia
Os Paumari constroem suas moradias em lugares situados nas
proximidades das margens do rio, de preferência nas praias fluviais, ilhas
de terra firme, nas várzeas e áreas que não alagam; localizadas na
interface entre as planícies fluviais alagáveis e a terra firme, denominadas
na região de "pé da terra firme" (ver relatório da OPAN, 2009).
De
acordo
com
alguns
estudos
realizados
pelo
PPTAL,
os
assentamentos permanentes na terra firme é um fenômeno recente, pois os
Paumari são um povo nômade, que vive a perambular nas áreas fluviais.
Referências do século XIX apontam a existência de oito a quinze casas
flutuantes em cada aldeia, com uma ou duas famílias em cada uma delas.
199
Outras habitações menores são utilizadas na época da seca e, em muitos
casos elas ficaram despercebidas, trata-se dos ranchos simples de folha de
palmeira, de forma semicircular que eram fincadas nas praias fluviais dos
Purus.
No
entanto, na atualidade,
os
"flutuantes" concebem um tipo
minoritário de habitação paumari. No Manissuã presenciei cerca de seis
flutuantes, sendo que em alguns casos, os donos desses flutuantes
possuem também uma casa na terra firme. Assim, a maioria dos Paumari
mora pelo menos uma parte do ano em casas do tipo regional, enquanto
que alguns preferem os flutuantes e/ou passam o ano dividindo os dois
tipos de habitação.
As casas mais comuns são sobre as palafitas, seguindo o estilo
regional
de
habitação.
As
residências
podem
ter
um
ou
mais
compartimentos. Suas paredes são forradas de palha e em alguns casos são
cobertas de palhas trançadas ou de alumínio. Esta moradia é a preferida na
época da cheia, pois facilita o trabalho nos roçados e permite um
deslocamento adequado dos produtos das roças bem como no auxílio na
fabricação de farinha.
Os atuais "flutuantes", por sua vez, são balsas com o mesmo tipo de
casa, porém sem palafitas; estando apenas ancoradas em grandes trocos
de árvores. Por causa das grossas toras que as sustentam, são de difícil
remoção e permanecem amarrados por longas temporadas na beira de
lagos, acompanhando somente as mudanças dos níveis de água. No
entanto, esse tipo de moradia pode ser removido, dependendo muito do
anseio de seu dono, que muitas vezes deseja mudar-se para outro lugar ou
ir para a outra margem do rio. Ademais, morar em um flutuante não
impede os Paumari de exercerem suas atividades em terra firme.
Vejamos a seguir uma tabela demonstrativa dos tipos de habitação e
da tipologia de construção dessas moradias:
200
Tabela 8 - Distribuição espacial e habitação dos Paumari. Fonte: Vieira, 2012.
TI
Aldeia
Casa
Casa de
Flutuante
terra firme
Tipologia da Construção
Estrutura
Sete Bocas
4
Nenhuma
de
madeira
com
cobertura
de
alumínio
e,
flutuante
todo
coberto
de
folha palha.
Manissuã
Estrutura
Centro
Nenhum
5
de
madeira
com
cobertura de palha e algumas
com cobertura de alumínio
Bacia
####
1
####
Estrutura
Abaquadi
Nenhuma
5
Paricá
de
madeira
cobertura de palha e algumas
com cobertura de folha de
alumínio.
Estrutura
Terra Nova
Nenhuma
6
de
madeira
com
cobertura de palha e algumas
com cobertura de folha de
alumínio.
Cuniuá
com
Xila
####
####
####
Açaí
####
####
####
O conjunto da aldeia Paumari é construído por essas paisagens – casas
de terra firme e flutuantes que seguem um modelo regional. Um caso a ser
registrado é que esta configuração social está – ao que me parece –
associada às disputas políticas que existem no interior do grupo. No caso da
aldeia Manissuã, foi-me relatado que todos se concentravam na terra firme
e que depois de algumas “brigas” e “desentendimentos” com a liderança da
aldeia, Germano e Sara, juntamente com seus filhos, se mudaram para a
201
entrada do lago Sete Bocas e com eles se mudaram o Sr. Luiz e D.
Laurinda, liderança da aldeia. Há algumas versões sobre a mudança desta
família, alguns afirmam que o Sr. Luiz está velho demais para ser um
“líder”, que não tem mais forças para lutar pelos ideais do povo e que sua
filha Sara, esposa de Germano, saiu da aldeia por conta dos conflitos que
envolviam seus pais. Assim, toda a família que habita o lago Sete Bocas é
formada pela Família de Germano, Luiz e Gerson.
Os Mamori e Juberi
No proceder do campo, deparei-me com uma curiosidade que percorria
toda a minha trajetória de pesquisa bibliográfica com os Paumari, que em
muitos contextos pareciam estar difundidos em outros grupos ou que
desapareceram completamente no decorrer dos processos em que eram
submetidos. Neste sentido, os registros históricos apontam, para além do
Paumari, outros três grupos – os Mamory, Arawá e Jubery - como
subgrupos que formavam o antigo grupo dos Purupurus, sendo que os
Paumari representam hoje, o único subgrupo remanescente do período de
colonização e ocupação do rio Purus, após o avanço da civilização branca na
região.
Sobre os Arawá nada se sabe e não obtive sequer informações sobre a
possível existência desse grupo nas áreas que circunvizinham o rio Tapauá.
No entanto, sobre os Mamory e Jubery, muito se ouviu falar! Foi
surpreendente perceber a maneira como eles eram descritos e de como aos
poucos
iam
“surgindo”
remanescentes
destas
tribos
até
então
“desaparecidas”. A primeira figura a aparecer foi os Mamory, na pessoa de
Dona Leontina, que foi logo se autodenominando índia Mamory, nos
descrevendo, principalmente, que as pessoas dessa tribo formavam família
apenas com os índios Paumari, sendo considerado casamento preferencial
entre ambos os grupos. Os filhos, fruto desse casamento, pertenceriam à
nação Paumari.
De
acordo
com
a
descrição
de
algumas
pessoas
com
quem
conversamos, foi-nos dito que os Mamory são oriundos do rio Cuniuá,
habitando, antigamente, o mesmo lugar onde os Deni habitam na
atualidade. Este relato se vê confirmado não só na fala dos habitantes que
202
tiveram contatos com os indígenas, como também pela fala de seu Maquiri,
índio Deni que conhecemos na aldeia Bela Vista, localizado na Ponta do
Evaristo, no rio Tapauá. Conforme seu Maquiri, os Deni são os Mamori, pois
eles eram assim chamados pelo fato de habitarem as intermediações do
lago Mamori.
Deste modo, os Mamory aparecem como um grupo que mantinham
alianças
matrimoniais
com
os
Paumari
e
que
ainda
hoje
existem
remanescentes Mamory entre os Paumari e Catuquina. Vale Lembrar
também, que Kroemer relata que os Mamory eram perseguidos pelos
Catuquina, sendo obrigados a se embrenharem pela mata e realizarem
casamento com outros povos, realizando uma miscigenação. Sobre este
fato, contou-me o senhor Ademazinho Katuquina, habitante da Terra
Indígena Paumari do Lago Manissuã, que os Mamori foram exterminados
por sua tribo por conta de conflitos entre ambos e que esses conflitos
recebiam toda a motivação dos “patrões seringalistas” que forneciam
munições para as expedições de guerra entre eles. Assim, ele diz que os
Mamori foram mortos nas imediações do riozinho, e que havia um Mamori
muito conhecido naquela região que se chamava Marrecão.
As informações não paravam, eram inúmeras as descrições e
apontamentos que se faziam sobre o suposto desaparecimento dessas
tribos, contudo, ao conversar sobre isto na aldeia, outra surpresa aparece,
pois esses grupos aparecem com muita força na ascendência dos Paumari
que habitam a região do rio Tapauá. Eles contavam-me que os Paumari
entendem a língua dos Mamori e que elas são bem parecidas, e que
provavelmente, a língua Mamori seja a mesma língua que os Deni falam,
pois eles justificavam que tanto os Deni quanto os Paumari tem muitas
semelhanças gramaticais.
Sobre os Juberi, não se sabe muita coisa, mas o que me contavam
com muita frequência era que os índios que faziam parte desta tribo eram
ágeis guerreiros e muito bravos com os demais índios e com os próprios de
sua família. Uma das pessoas com quem eu conversava, chegou a dizer que
os Juberi amarravam seus filhos no tronco de uma árvore, caso ele não
parasse de chorar, pois eles deveriam ser valentes, caso contrário, a onça
os comeria. Na aldeia, também apareceu alguns remanescente de Jubery,
203
entre eles, tive a oportunidade de conhecer seu Agostinho Cassiano, que
mora no lago do Tamanduá, que se encontra fora do perímetro da TI, mas
eles lutam para que esta área seja demarcada como território indígena, pois
conta ele, que o lago do tamanduá é um uma antiga morada dos índios
Jubery, e lá estão vão corpos de seus descendentes, como também agrupa
uma das áreas de castanhais mais importantes para os Paumari.
Ainda que a pesquisa apresente poucos dados sobre esta questão, os
Paumari, por sua vez, eram bem enfáticos sobre as características desses
grupos, sobre suas descendências e as diferenças internas que existem
entre os descendentes destes grupos quando comparados aos Paumari.
Germano, filho de seu Agostinho e Dona Odete, filha de Mamori, não soube
dizer a que grupo ele pertencia, entretanto, ressaltou que ele é Paumari
porque todos os são, mas que ele, quando comparado a uma Paumari,
exibe uma característica completamente distinta daquela que os Paumari
apresentam quando são filhos gerados a partir de dois Paumari “puros”.
Assim, ele ressaltava as diferenças existentes na estatura dos Paumari,
Mamori e Jubery, o formato do corpo e do rosto como marcadores de
diferenças entre esses grupos. Neste sentido, todos aqueles que estão de
fora (nós) os chamam de Paumari, mas aqueles que estão lá dentro (eles)
sabem muito bem discernir quem descende de Paumari, quem descende
dos Juberi ou Mamori e tais diferenças não são apenas ponderadas, mas são
constatadas a partir das diferenças corporais, da estatura de cada um e da
história oral que cada um carrega.
No entanto, Bonilla (2005), que atuou entre os Paumari do Lago
Marahã e rio Ituxi, em seu trabalho etnográfico sobre os subgrupos
Paumari, assinala que o grupo mencionado não têm configurações sociais
do tipo madiha e que talvez os paumari não apresentem uma organização
sociológica que possa ser configurada como subgrupo. Assim, a autora voga
que mesmo não tendo grupos nomeados e localizados, os Paumari tendem
a organizar, no plano cosmológico, os seres, animais e objetos como
subgrupos nomeados que se comparam a organização social do tipo
madiha.
Sobre este evento, Bonilla há de dizer que os Paumari tendem a um
“perspectivismo generalizado”, onde a “socialidade potencial dos seres é
204
projetada na totalidade do cosmos, coincidindo, portanto, ao que foi
chamado de subgrupos madiha”. Assim propõe a autora:
(...)
É interessante pensar o perspectivismo generalizado dos
Paumari em relação à questão dos subgrupos arauá (que também
foram chamados de clãs), pois aqui, a socialidade potencial é
projetada
na
totalidade
do
cosmos
e
coincide,
ao
menos
lingüisticamente, com o que foi chamado de subgrupos madiha
(conforme o modelo e o termo kulina). Os Paumari não apresentam
hoje
em dia configurações
sociológicas do
tipo
madiha. Os
subgrupos localizados, nomeados e idealmente endógamos não
existem enquanto tais. Os grupos locais são unidades idealmente
endógamas, mas não são associadas a nomes de animais ou plantas
e são conhecidas por seus nomes próprios (...). Aqui é como se a
configuração madiha tivesse sido projetada no cosmos incluindo,
então, as relações entre os Paumari como um todo e todos os
outros seres potencialmente sociais. Os ‘subgrupos’ coincidem,
então, com as espécies ou subespécies vegetais e animais, ou
mesmo com os objetos, com os quais os Paumari têm de se
relacionar no cotidiano (Bonilla 2005: 50 – grifos meus).
Porém, pensar esse cenário entre os Paumari do rio Tapauá é um tanto
complexo e paradoxo, pois para eles, tanto os Mamori quanto os Jubery são
grupos presentes em suas histórias de vida, possuem assentos simbólicos
bem delimitados nas mediações da TI – antigos cemitérios, antigos
castanhais e lugares de moradias. Portanto, partindo desses apontamentos,
realizamos um levantamento genealógico de algumas famílias, partindo do
pressuposto de que esses grupos habitavam aquela área e que juntamente
com os Paumari, estabeleciam diversas alianças.
205
Figura 31 – Genealogia de algumas famílias Paumari.
ATIVIDADES ECONÔMICAS E EXTRATIVISTAS
Agricultura
A agricultura é praticada tanto na várzea quanto na terra firme, sendo
a
mandioca
a
principal
planta
cultivada.
As
informações,
ainda
generalizadas consideram as principais espécies agrícolas nas roças:
macaxeira, mandioca, banana, cará, cana, ananá, abacaxi, batata, cupuaçu,
castanha.
Também coletam uma série de frutas silvestres e cipós e enviras para
a construção de casas, embarcações e a fabricação de diversos objetos.
Caça
Entre os Paumari, a caça configura-se como uma atividade secundária
que é exercida apenas em casos particulares e ou em momentos de grandes
festejos. Diferentemente do que acontece com a pesca, atividade primordial
deste povo, a caça acaba sendo um exercício para as “empreitadas” que são
montadas no período de grandes festejos – aniversários, dia do índio,
campeonato entre as comunidades indígenas com as comunidades da foz de
Tapauá; jogo de futebol etc. – ou quando vão para os acampamentos de
castanhas e por lá topam com alguma caça, mas geralmente o grupo que
vai para os castanhais tende a levar gêneros alimentícios (arroz, sardinha,
conserva de boi, farinha, etc.) para acompanhar o peixe que há de ser
pescado nas proximidades do castanhal.
É importante registrar que alguns Paumari, principalmente os da
aldeia Manissuã (área de terra firme), criam alguns porcos do mato em
pequenos cercados com o objetivo de comercializá-los com os demais
habitantes da aldeia ou troca-los por gêneros alimentícios com os
comerciantes que moram na vila localizada na Foz do Rio Tapauá. Este
processo, ao menos é o que aparentemente podemos deduzir, acarreta uma
possível eliminação do ato de caçar na floresta, uma vez que se têm alguns
pontos de comercialização de caça pelos próprios índios ou por uma família
de “brancos” que ocupam uma área de terra firme dentro das localizações
da Terra Indígena Paumari. Deste modo, a caça acontece somente em
206
alguns casos, dependendo muito da ocasião e da atividade exercida pelos
Paumari.
Pesca
Esta é a principal atividade de subsistência do grupo. São sempre
realizadas nos rios, igarapés, lagos e lagoas que cercam a região. Em
alguns casos, os Paumari tendem a pescar nas proximidades de suas casas,
como pude notar no dia em que observava o casal de lideranças Snr. Luiz e
D. Laurinda. Ambos pescavam próximo a sua casa, apenas com uma vara e
uma linha amarrada sobre ela. Pegaram algumas piranhas pretas, pois
buscavam apenas alimentos para si mesmos, já que seu filho e sua nora
estavam viajando.
Os Paumari são conhecedores de diferentes técnicas de pesca, sendo
os peixes, precisamente, o principal alimento na sua dieta cotidiana. Em
alguns momentos, me foi relatado que muitos Paumari costumam pescar
com a ajuda da “malhadeira” e que esta foi um presente dos brancos,
facilitando em muito a execução da atividade. Há também quem goste de
pescar apenas com arco e flecha, mas sendo esta uma técnica cansativa e
que requer paciência, principalmente na época da cheia, quando os peixes
estão espalhados ao longo do rio e não mais concentrados nos canais ou
lagos da região.
Coleta de Castanha
É no início do mês de Dezembro que a coleta de castanha se torna a
principal atividade exercida pelas Comunidades Paumari do rio Tapauá. No
contexto das aldeias, diferentemente do que foi observado entre os Paumari
e demais pessoas no município de Tapauá, a castanha se configura como o
“elemento” de negociação entre o patrão e o empregado, regatões e
comerciantes, entre sogros e genros; filhos e pais etc. A castanha não
compõe o rol dos hábitos alimentares dos Paumari, sendo apenas usada
como meio de troca e como forma de pagamento das dívidas adquiridas
com os regatões. Assim, a castanha é dada ao patrão como forma de
pagamento de uma dívida anterior que ao ser saldado abre-lhes o
precedente para uma nova dívida. Logo, este cenário está associado à
207
permanência do sistema de aviamento, fenômeno que perdurou por longos
anos na região Amazônica.
Para saldar a dívida, como também para adquirir novos bens, produtos
industrializados, os Paumari passam a compor “expedições esporádicas” nos
castanhais que estão localizados há algumas horas ou dias da aldeia. Do
recenseamento que realizei na aldeia, registramos que quase todas as
famílias possuem dois pontos de castanhas, muitos deles localizados no
mesmo lugar (rio, lago) e alguns tem pontos de castanhas em diversos
lugares distintos (rio, lago). Há também aqueles que não possuem
castanhal, pois não são oriundos da região do Tapauá, mas da região do
Marahã ou Ituxi, localizados na proximidade de Lábrea. Estes, por sua vez,
são “emprestados” aos sogros, tios ou a qualquer outro Paumari que
necessite de mão de obra na quebra de castanha.
O resultado deste
“empréstimo” pode ser pago por meio de uma saca de castanha ou o
numero de latas que o “emprestado” conseguir quebrar. Todavia, isso pode
variar, ficando a cargo da negociação que há de se estabelecer com o
indivíduo que necessita de ajuda na quebra de castanha.
Nas expedições de quebra de castanha, é comum ir um grupo de
homens da mesma família e/ou aquele está sendo “emprestado” para o
serviço. Geralmente, são os pais com seus respectivos filhos ou cunhados
que seguem para os castanhais, onde irão limpar as estradas, montar
acampamento, amontoar os ouriços para depois quebrá-los e ensaca-los.
De acordo com Germano Cassiano Paumari, dependendo do período (mês)
as expedições podem durar mais de um mês ou duas semanas na floresta.
O fator determinante do período de acampamento nos castanhais está
associado à produtividade das árvores, a queda dos ouriços e o mês em que
a coleta há de acontecer.
Notas sobre Leishmaniose nos Paumari do Rio Tapauá
Paralelamente a atividade de campo sobre o peixe-boi, buscou-se
obter o mínimo de informações sobre a tão chamada “ferida braba”
(Leishmaniose), as formas de contágio, tratamento e até mesmo as
percepções dos Paumari em relação à doença em questão. Pelo que
conseguimos registrar, há indicativos de dois casos de ferida braba entre os
208
indivíduos que habitavam a aldeia Manissuã e um caso na aldeia Paricá. Um
dos casos registrados no Manissuã foi tratado pela CASAI de Lábrea, onde o
indígena passou mais de dois meses, tratando a ferida que acometia parte
de sua perna. Ao ser questionado sobre a possível contaminação, o mesmo
nos respondeu que a ferida apareceu logo após uma picada de carrapato
que sucedeu em sua passagem pela floresta. Os outros dois casos
(Manissuã e Paricá) foram tratados na própria aldeia com o sumo da casca
de capurana e ambos atestavam que foram picados por carrapatos. É
importante registrar que os Paumari criam porcos e cachorros, este último,
em muitos casos, é o companheiro na hora das caçadas, nos passeios na
floresta e principalmente na coleta de castanha, pois ele “pode latir e
assustar a onça” – informações de um indígena da aldeia Paricá.
209
ETNOGRAFIA DA QUEBRA DA CASTANHA JUNTO AOS
PAUMARI DO RIO TAPAUÁ: PRIMEIRAS IDEIAS E
APROXIMAÇÕES
Mario Rique Fernandes
INTRODUÇÃO
Foi com friozinho na barriga que eu recebi, no fim de novembro de
2011,
o
convite
do
professor
Gilton
Mendes
para
participar
da
carinhosamente chamada “Expedição Purus 2012: 150 anos depois”.
Tratava-se para mim, há apenas dois anos morando no Norte, da primeira
oportunidade de experenciar o que eu considero uma “Amazônia profunda”.
Não havia ainda tido a experiência única de viajar dias nesses grandes
barcos-recreio apinhados de gente e mercadorias – apelidados de “gaiolões”
- que nos remetiam aos porões dessas embarcações no século XIX descritas
por Ferreira de Castro. Também nunca havia entrado e permanecido
durante dias em uma terra indígena, compartilhando o cotidiano com
índios; enfim, não somente para mim, mas para todos da equipe, esta foi
uma experiência amazônica por excelência.
A região do Médio rio Purus é um lugar fascinante e um excelente
campo de pesquisas para as mais diversas áreas, considerando a riqueza de
temas que abarca em termos históricos, sociais, culturais e biológicos - só
para citar alguns. E aqui gostaria de compartilhar um paradoxo purulesco (e
amazônico de forma geral), no qual me vi enredado ao longo da viagem: o
lugar é lindo e tem um campo de pesquisa imenso, mas é longe demais, de
difícil acesso e isolado de tudo. E talvez seja justamente por ser longe
demais e isolado de tudo que o lugar seja lindo e ótimo para pesquisas.
Como resolver essa contradição? Trazer esse campo pra perto, torná-lo
mais acessível, seria afastar seus mistérios e quem sabe acabar com sua
beleza, mas por outro lado, seria justo aceitar deixar o lugar e as pessoas
que ali vivem à margem da história e do desenvolvimento do País? Não sei
se tenho uma resposta, mas prefiro deixar a questão em aberto.
A possibilidade de conhecer esses rincões do Brasil foi ao mesmo
tempo um privilégio e um exercício de desapego e de entrega. Privilégio por
compartilhar histórias de vida e a vida de pessoas que habitam esse lugar
210
esquecido e distante, o que exigiu um trabalho de desapego - pela distancia
e pelo isolamento - do meu ego-centrismo (ou quem sabe do meu
etnocentrismo). A entrega foi ocaminho para lidar com o medo do
desconhecido e de amor a tanta beleza, diversidade e vida pulsante neste
mundo de florestas, águas, pessoas e bichos. Mas para quem ama viagens,
todos os percalços e imprevistos que passamos, servem para poder contar
história depois. A vida é feita de momentos e esta expedição certamente
marcou a vida de todos que participaram dela. Quem sabe um dia,
contaremos para nossos filhos e netos, “memórias de árvores, de água, de
luz e menino”.
Fui convidado para participar da expedição com a incumbência de
acompanhar a quebra da castanha a partir de uma perspectiva etnográfica.
A ideia foi fazer uma primeira aproximação com essa realidade na região e
investigar a economia da castanha entre os indígenas. Ficou decidido que
eu então acompanhasse a Angélica em seu trabalho de campo de mestrado
com os Paumari que vivem próximos da foz do rio Tapauá - afluente de
águas
pretas
do
rio
Purus
-,
assessorando-a
e
aproveitando
para
acompanhar o extrativismo indígena da castanha. A proposta inicial, um
tanto ousada para uma primeira ida à região, foi investigar os conceitos
Paumari a respeito da castanha e como se dá o seu processo de produção e
distribuição, partindo-se do pressuposto da existência de uma trama de
relações sociais e simbólicas em torno desta atividade - com raízes
históricas profundas -, tecidas pelas unidades sociais e os esquemas
cosmológicos ali operantes.
Entretanto, ainda que com esse objetivo em pauta, parti nessa viagem
sem muita pretensão além de estabelecer primeiros contatos, ideias e
impressões a respeito do objeto de pesquisa, pensando em um possível
projeto de doutorado num futuro talvez não muito distante. O que de certa
forma foi bom, porque possibilitou que eu me relacionasse com as pessoas
do lugar e com os Paumari como um ser humano “comum”, sem aquela
pressão em coletar dados que todo pesquisador tem em campo, o que me
deixou bastante a vontade e permitiu estabelecer boas relações.
211
O
presente
relatório
constitui
assim
um
primeiro
esforço
de
sistematização das informações e impressões recolhidas durante esta
viagem, cujos resultados e discussão são ainda bem preliminares.
Métodos utilizados
A ideia de fazer uma etnografia daquebra da castanha foi algo um
tanto desafiadora.40 A ideia inicial foi considerar as práticas sociais em volta
da castanha como um fato social de longa duração, nesse sentido, seguindo
a proposta metodológica de Durkheim, considerando-a como “coisa”, ou
seja, como realidade fenomênica externa, que é dada, que se impõe à
observação.41 Para tanto, a proposta foi usar o aporte metodológico próprio
da antropologia, que parte da premissa de uma longa familiaridade, desde
dentro, no dia-a-dia do grupo observado, a qual se dá o nome de
observação participante.
A ideia inicial para descrever o trabalho com a castanha de uma
maneira interessante foi utilizar conceitos weberianos como os de ação e
relação social.42 Tais conceitos serviram-me como instrumentos teórico-
40
Atrás de respostas à pergunta “o que é etnografia?”, encontrei uma perspectiva
interessante feita pelo antropólogo Luiz Fernando Duarte, a qual me inspirou ao longo desta
viagem. Diz ele que o objeto da etnografia é o sentido ou o significado da experiência
humana no mundo – as relações sociais, instituições, sistemas de valores e crenças,
linguagens, etc. – a partir de uma imersão nessas unidades de significação em estudo –
conhecida
como
observação
participante
(Disponível
em:
www.cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo).
41
Durckheim, Emile. (2007). As regras do método sociológico. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes.
42
Weber dizia que toda conduta humana é dotada de sentido, isto é, de uma justificativa
subjetivamente elaborada. Cada indivíduo age em relação a outros, levado por motivos que
resultam da influência da tradição, dos interesses racionais e/ou da emotividade. O motivo
que transparece na ação social - que pode ser expresso pelo sujeito ou estar implícito em
sua conduta - permite ao observador desvendar o seu sentido, que é sempre social na
medida em que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou a reação de outros
indivíduos. Por outro lado, Weber distingue a ação da relação social. Para que se estabeleça
uma relação social é preciso que o sentido da ação seja compartilhado. Ver em: Weber, Max.
(1994). Economia e Sociedade. 3. ed. Brasília, UnB.
212
metodológicos para interpretar em campo os possíveis sentidos das ações
dos indivíduos que trabalham com a castanha. Isso facilitou que eu olhasse
e interpretasse os sentidos por trás das ações e relações sociais em torno
da castanha, buscando entrever “aquilo que está sob a casca das coisas”.
Todavia, creio não ter ido muito longe, tendo em vista que a ideia
também era entender os conceitos e as categorias nativas a respeito da
castanha,
isto
é,
o
lugar
desta
árvore
no
conjunto
das
crenças,
conhecimentos, práticas, do pensamento, das instituições de parentesco,
etc. em outras palavras, o lugar da castanha na totalidade da cultura
Paumari.
O desenrolar do campo
No total, meu tempo de permanência no “campo” durou 36 dias,
contando do dia em que saímos do porto de Manaus ao dia da minha
chegada ao mesmo porto (que não coincidiu com o restante da equipe).
Considerando o campo a viagem como um todo, nesse período foram cerca
de dez dias viajando em barco, onze dias na cidade de Tapauá e dezesseis
dias em terras Paumari. Ter ido ao Purus nesses barcos-recreio – ao invés
de avião - foi importante, pois nessas viagens temos oportunidade de
conhecer pessoas que vivem na região – cada qual ali no barco exercendo
um tipo de ação e relação social -, com tempo de sobra para ouvir suas
histórias, sonhos, anseios, problemas, conhecimentos, sabedorias, enfim, o
barco nos serviu como o início da imersão na “unidade de significação em
estudo”. Foi possível, assim, começar um exercício etnográfico no próprio
barco. Além disso, viajando assim temos contato direto com o ambiente,
com o grande rio e a floresta, as condições do tempo, o vento, a chuva, o
sol, o céu, as estrelas.
Quando partimos no fim da tarde de sábado, no barco-recreio “Vovô
Osvaldo II”, no dia 07 de janeiro de 2012, nossa equipe contava com sete
pessoas – eu, Alexandre, Admilton, Alba, Thainá, Angélica e Ingrid – que ao
longo da viagem foi se dividindo. Eu, Angélica, Alexandre e Admilton,
213
descemos na cidade de Tapauá, na terça-feira (dia 10). O restante da
equipe, contando só com as meninas, continuaram a viagem por mais dois
dias até a cidade de Canutama. O período de viagem juntos, foi dividido
entre confraternizações e reuniões. Filmamos e fotografamos o momento da
entrada na foz do rio Purus, no final da tarde de domingo, um marco
importante da viagem, sabendo que entrávamos a partir dali dentro da
unidade geográfica de estudo.
Os imprevistos da viagem fizeram com que demorássemos mais que o
previsto na cidade de Tapauá, pois a ideia era ficar, eu e Angélica, apenas
uns cinco dias na cidade para tentar aproveitar o máximo de tempo nas
Terras Indígenas. Porém, problemas de atraso no depósito de dinheiro para
dar continuidade à viagem, junto com a falta de regularidade de barcos
subindo o rio, fez com que ficássemos onze dias em Tapauá.
Entretanto, o campo na cidade foi também bastante interessante.
Durante esses dias, foi possível conhecer e entrevistar uma série de
personagens que compõem a paisagem humana do Purus. Estabelecemos
contato com Apurinãs e Paumaris que vivem e trabalham na cidade;
fizemos bons contatos com funcionários (muitos indígenas) da FUNAI e da
Casa de Saúde do Índio (CASAI); foi possível fazer longas e interessantes
entrevistas com ex-seringueiros descendentes de nordestinos; foi possível
conversar com os principais atravessadores e comerciantes de castanha e
compreender um pouco a lógica subjacente dessa atividade na região; foi
possível também acompanhar todo o processo de produção de farinha de
mandioca acompanhando uma família, inclusive visitar sua roça, etc. Enfim,
nesses dias construímos uma rede de relações sociais – com direito a
dádivas e contradádivas -, e muito ainda ficou por se fazer, dada a
diversidade de pessoas interessantes que de uma forma ou outra fazem
parte do tema da expedição e das nossas pesquisas, mas que ficaram ainda
por se conhecer ou se conhecer melhor.
A primeira entrada em território Paumari foi outro marco importante
da viagem. Saímos da cidade de Tapauá em direção à Vila da Foz do rio
Tapauá (o rio tem o mesmo nome do município), no sábado, dia 21 de
janeiro, ao meio dia, e chegamos ao vilarejo ribeirinho no fim da tarde do
dia seguinte (domingo, 22 de janeiro). Vale ressaltar que dessa vez
214
pegamos o barco “Comandante Maia” muito mais apinhado de gente e
abarrotado de mercadorias do que o “Vovô Osvaldo II”, uma vez que
embarcamos no “meio do caminho” - o barco vinha de Manaus rumo à Boca
do Acre. Na foz do rio Tapauá deu-se a separação total da equipe; a partir
dali, Alexandre e Admilton continuariam a viagem rumo a Canutama, eu e
Angélica, continuaríamos agora pelo rio Tapauá. Como já era quase noite não permitindo que fossemos direto para a TI - aceitamos o convite de
Edelson (um morador da Vila), para pousar na casa de Dona Ardete (sua
irmã), comerciante e evangélica. Nessa noite escura de domingo demos
ainda uma “volta” na vila, que estava “agitada”; dia de missa na igreja
evangélica; jovens sentados nas bancadas das casas de madeira e crianças
correndo à meia luz pela rua principal; homens jogando sinuca nos bares ao
som de brega; tomamos coca-cola e sorvete.
A segunda-feira amanheceu com “rompante de chuva”; durante a
manhã conseguimos uma pessoa para nos levar à casa do seu Germano –
um professor Paumari, que seria nosso anfitrião nos primeiros dias no
Manissuã. Mas só conseguimos sair da vila depois do almoço, - na verdade,
depois que a chuva amenizou, mas não sem antes ter encontrado com seu
Nilson, agente de saúde Paumari, que havia trazido seu Ademarzinho – um
Katukina que mora no Manissuã - ao posto de saúde, picado de cobra no dia
anterior atrás de sua casa.
A sensação de entrar pela primeira vez em uma TI daquele porte foi
emocionante. Enquanto íamos subindo o rio Tapauá, naquela tarde nublada
e branca, a floresta verde-escura da terra firme, com enormes castanheiras
sobressaindo-se, formava uma muralha gigante ao longo do rio, impondo
um ar de mistério e respeito; ao mesmo tempo vinha uma sensação de a
cada segundo estar me afastando do meu mundo, indo para mundos
outros, para o desconhecido. Quando entramos em um igapó para fazer um
furo (atalho dentro da floresta alagada) a emoção transbordou. Era tanta
beleza e mistério naquele ambiente que meus olhos se encheram d’água.
Quando chegamos ao flutuante do Germano – num local do Lago manissuã
chamado de “Sete Bocas” -, recebemos as “boas vindas” de um “jacarétronco” logo atrás da casa, que nos avistou e mergulhou pro-fundo nas
águas.
215
Ao desembarcarmos não encontramos ninguém no casa-flutuante;
após alguns minutos avistamos a esposa do nosso anfitrião - Sara e suas
duas filhas (Kamelícia e Klícia) –, remando na canoa tranquilamente vindo
nos receber. Germano e os seus dois filhos tinham ido de manhã ao
castanhal quebrar castanha, de onde voltariam somente dias depois.
Começava ali nossa entrada no mundo dos Paumari.
O TEMPO NA CIDADE
O que eu chamo de “campo na cidade” foi o tempo despendido na
cidade de Tapauá, que no total foram de onze dias. Embora tenha durado
mais que o previsto, o campo na cidade, como mencionado anteriormente,
serviu como período de adaptação e inserção no contexto sociológico da
região. Faço a seguir um breve relato sobre as primeiras ideias e
impressões a respeito do nosso trabalho na cidade e de nossas relações
com os moradores e trabalhadores do lugar.
A cidade de Tapauá
A ocupação urbana de Tapauá distribui-se entre áreas de terra firme e
áreas de várzea. Parte da cidade situa-se ao longo da foz do rio Ipixuna,
com várias casas e comércios flutuantes, formando literalmente um “bairro
aquático”. A escadaria do porto onde desembarcamos indica a terra firme na qual boa parte da cidade se assenta. No entanto, essa parte da cidade
em terra firme apresenta um relevo bastante descontínuo, com muitas
ladeiras, ruas estreitas e casas de palafita. Como a maioria das cidades do
interior do Amazonas, o que move a economia de Tapauá é o setor de
comércio (formal e informal) e de serviços.
Caminhando pelas ruas, é comum observar residências e ao lado uma
pequena
venda
de
roupa,
de
bebida,
produtos
eletrônicos
e
eletrodomésticos, pequenos mercadinhos, peixarias, etc. sugerindo que
muita gente transforma parte de suas casas em um tipo de comércio. A
maioria das casas é feita inteiramente de madeira. Como as frentes das
casas e vendas nas ruas principais dão direto para calçada (raras são as
casas com muro), há muita sociabilidade (e pouca privacidade) nas ruas e
nas esquinas e um intenso trânsito de motos. Como quase não há calçadas,
216
as pessoas andam praticamente no meio da rua sendo desviadas pelas
motos.
O centro fica na parte mais alta da cidade, com a Igreja Matriz, uma
praça e uma pequena orla com vista para o encontro das águas do rio Purus
- de água branca – com o rio Ipixuna – de água preta -, proporcionando um
espetáculo tão belo quanto o famoso “encontro das águas” em Manaus;
alguns bares, comércio e serviços (correios e banco). Na Praça da Matriz é o
local onde os jovens costumam se encontrar a noite e onde são realizadas
as festas e os eventos públicos da cidade. 43
O sistema de comunicação é limitado, sendo a Vivo a única operadora
celular que funciona - durante a nossa permanência a Vivo literalmente saiu
do ar - “morreu” - deixando seus usuários sem contato com o mundo
exterior durante três ou quatro dias (só quem tinha telefonia fixa podia se
comunicar). Quanto aos serviços de internet, não havia uma única lanhouse
na cidade funcionando, sendo que a única forma de ter acesso à rede era ou
nas instituições públicas (ICMBio, Casai e Funasa) ou nas escolas
municipais. Por outro lado, a televisão está presente em praticamente todas
as casas e a globo é onipresente. A cidade é abastecida de energia por uma
termelétrica.
O município tem sérios problemas com a questão política local. Desde
a última eleição, dois prefeitos, tanto o da situação como o da oposição que havia tomado posse com a saída do primeiro -, foram afastados, sendo
que um foi preso por ter relações com o tráfico, e o próprio presidente da
câmara (o atual gestor na época) estava sendo investigado. Essa disputa
política mobiliza boa parte da população, uma vez que a prefeitura acaba
servindo como “cabide de empregos” – um funcionário chegou a relatar que
a prefeitura estava empregando mais de mil pessoas -, o que mostra como
esse embate entre grupos políticos locais constitui um forte agente
43
De acordo com Censo do IBGE de 2010, a população total do município de Tapauá era de
19.077 moradores, sendo 10.618 pessoas vivendo no “meio urbano” e 8.449 no meio rural
(Disponível em: www.ibge.gov.br). Um indicador interessante apresentado no Censo é que
do total de moradores, aproximadamente 90% se disseram naturais do próprio município, o
que vai ao encontro dessas minhas observações e impressões na cidade, cujo padrão de
sociabilidade deve guardar característica arraigadas na região.
217
mobilizador entre os moradores, já que muitas pessoas e famílias
dependem desses empregos para sobreviver. Apesar de termos sido bem
recebidos em todas as instituições que visitamos, tivemos que tomar muito
cuidado com essa questão política, buscando se esquivar ou não se envolver
quando o assunto aparecesse, para evitar que “portas fossem fechadas”.
“Índios urbanos”
O aumento de indígenas vivendo nas cidades do Médio Purus (Tapauá,
Canutama e Lábrea) é um fato marcante que vem se estabelecendo no
panorama socioambiental da região ao longo dos últimos anos (Aparício,
2011). Pesquisas recentes mostram como as cidades hoje passaram a estar
inseridas no itinerário e na cosmologia desses povos (Oiara), porém, esse é
um tema que precisaria ser mais bem explorado em todas as suas nuances.
Por trabalharmos em torno dessa temática, tivemos a oportunidade de
entrar em contato com vários indígenas – funcionários da Casai e da FUNAI,
entre outros (Apurinã, Deni e Paumari) -, que por motivos diversos vivem
na cidade.
Antes de comentar a minha experiência com esses indivíduos, é
preciso ressaltar que logo quando chegamos se tornou perceptível na fala
da população certo rancor (ou preconceito?) em relação aos índios,
considerados hoje como agentes de direitos e regalias especiais. Há de fato
uma diferenciação na cidade entre quem é índio e quem não é, porém, essa
diferença acontece hoje não tanto pelas diferenças culturais, mas sim pelo
status jurídico de “ser índio”, o que de certa forma acaba contribuindo (às
avessas) a desentendimentos entre a população não índia (a maioria) com
os indígenas que vivem e passam pela cidade.
Um bom exemplo disso é a queixa feita pelos índios - em uma reunião
com agentes de governo sobre saúde indígena - no atendimento que
recebem dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Os índios alegam que os
médicos do SUS tem resistência em atendê-los, porque eles já possuem
cobertura da Casa de Saúde Indígena (Casai), que é o órgão de
atendimento à saúde do indígena. O problema é que a Casai não tem
estrutura para tratar problemas mais graves e acaba mandando o índio
para o SUS, que chega no hospital já com a resistência dos médicos e
218
enfermeiros, seja pelo motivo alegado, seja porque também “índio chega
sujo, descalço, suado, fede, etc.”.
Foi interessante observar nesse sentido - numa oportunidade de
acompanhar um grupo de índios voltando a pé para casa após essa reunião
sobre saúde indígena - como a cidade parece constituir um ambiente
“estranho” para os mais velhos. Percebe-se claramente a falta de jeito e a
agonia deles em atravessar uma rua, o medo que sentem das motos, o
andar lento, os olhares - o ver e o não ver e o não ser visto. Fiquei
pensando de como o ambiente está dentro - “estruturalmente” - das
pessoas, como o índio, acostumado a andar na mata e nos rios, caminha
na/pela cidade. Mais interessante ainda foi verificar que todos eles
moravam no “beiradão” ou o que eu considero o “bairro aquático” da cidade
- fenômeno mais perceptível entre os Paumari, famosos por sua forte
relação com os ambientes aquáticos que, sem exceção, todos moravam em
flutuantes. Fica a questão: o que é ser um índio urbano no Purus?
Conversa com um Paumari
Seu Jorge e sua família foram os primeiros Paumari que tive contato
durante a viagem e a primeira impressão foi muito boa. Visitei-o em sua
casa, um flutuante de madeira no rio Ipixuna, numa tarde ensolarada, junto
com a Angélica e o seu Orlando - agente de saúde da Casai. Seu Jorge tem
um problema sério de hérnia na coluna que quando entra em crise deixa-o
praticamente paralisado, tendo de ficar deitado o tempo todo em uma rede;
embora seus olhos tenham brilhado ao falar da sua terra, o problema na
coluna foi uma das causas dele ir morar na cidade, junto com o desejo dos
filhos de estudar na cidade, já que consideram a escola na aldeia muito
fraca – segundo eles as crianças terminam a 4° série sem saber ler nem
escrever. Seu Jorge e sua esposa - dona Leontina - são da aldeia do Lago
Manissuã; ele é filho de seu Luis, o cacique, e irmão de seu Nilson, agente
de saúde e uma das jovens lideranças da aldeia.
Seu Jorge me contou que sua família teve um papel protagonista na
criação da TI dos Paumari e no projeto de “manejo” da OPAN. Em sua fala
articulada e esclarecida ele se mostrou um defensor da causa da
“sustentabilidade” em suas terras, introduzindo a problemática em torno do
219
projeto de manejo dos lagos, pois nem todas as famílias são adeptas da
proposta em se fazer a despesca, ou seja, deixar de pescar pirarucu em um
lago por certo tempo (geralmente um período de três anos). A questão
parece nem tanto ser falta de paciência ou “visão” ou talvez necessidade,
mas sim as relações de parentesco e de compadrio estabelecidas com os
pescadores de fora, não índios, que arrendam os lagos em troca de rancho
e mercadoria.
Entre os Paumari é muito comum que os jovens saiam das aldeias para
trabalhar durante alguns anos em barcos de pesca, depois voltam e se
casam. Essa relação com o branco é sempre de subordinação. Antigamente
costumava-se sair para trabalhar nos seringais, na coleta castanha ou de
sorva; hoje é nos barcos peixeiros. O próprio Jorge trabalhou durante anos
num barco desses, aprendendo a língua, o modo de ser, os valores dos
brancos, etc. Sem dúvida sua experiência nesses barcos, tanto positiva
quanto negativa, contribuiu para seu protagonismo na comunidade frente
às
relações
com
os
agentes
externos
que
atuam
em
prol
da
“sustentabilidade” na região. Nossa conversa durou mais ou menos
quarenta minutos, mas foi importante por ver que se trata de um povo
receptivo e que vive numa terra especial.
Entrevista com um ex-seringueiro que quase virou Pajé44
Seu Eladio é filho de um paraibano de Catolé do Rocha, mais um
dentre tantos descendentes de nordestinos que vivem no Purus. Porém, a
história
de
seu
Eládio
é
bastante
representativa
do
processo
de
“caboclização” dos nordestinos que vieram à Amazonia nos dois ciclos da
borracha que devassaram a região em meados dos séculos XIX e XX.
Conhecemos-nos rapidamente por acaso em meio a conversas informais no
porto. Ele me foi apresentado como um ex-seringueiro que conhecia tudo
sobre a região. Quem o vê na rua – senhor de meia idade, franzino, usando
óculos, de bermuda e chinelo - não imagina a riqueza da “micro-história” do
Purus que existe ali dentro. Na ocasião, conversamos rapidamente e
44
Entrevista gravada em 15 de janeiro de 2012.
220
marcamos uma conversa no hotel para o dia seguinte pela manhã. Ele não
compareceu na hora marcada; quando dava como perdida a nossa
entrevista, ele apareceu no fim da tarde, meio tímido, se desculpando por
faltar de manhã.
Como tínhamos nos conhecido rapidamente no dia anterior, aquele
caboclo ainda era um mistério; de certa forma foi uma aposta que eu tinha
feito em marcar a nossa conversa, a entrevista podia ser uma “furada”, sem
muitas novidades, etc. Mas bastaram dez minutos para que o homem
começasse a crescer e ganhar confiança e quando nos demos conta (eu e
Alexandre) ele já estava narrando histórias de índios, pajés, feitiços, bichos,
rios, viagens... Sempre intercaladas com um “trago” de rapé. Seu Eládio é o
caso típico do homem sertanejo que se transformou em caboclo na
Amazônia. Nascido num seringal do Purus, aos oito anos passou a conviver
com os Apurinã e aos dezoito anos por pouco não se casa com uma índia na
aldeia e vira aprendiz de pajé, mas preferiu ir embora e servir o exército.
Seu Eladio é um bom exemplo do caboclo que herdou o conhecimento
indígena sobre a floresta, as crenças, o imaginário, as técnicas, etc. e até
mesmo o saber narrar estórias, os gestos, os tons, envolvendo os ouvintes
como se estivéssemos à beira de uma fogueira. Por trás daquele pequeno
homem uma grande história e uma pequena história amazônica. Ao longo
de mais de duas horas de conversa, sem parar de falar, ele apresentou uma
memória fora do comum e um grande conhecedor dos povos indígenas do
Purus (fala Apurinã fluente e um pouco de três outras línguas). Histórias
ocorridas nos seringais, encontros com os Suruahá no meio da floresta,
onças, cobras e muitas outras coisas. A história de seu Eládio é um exemplo
de que a história do Purus não se resume à guerra, confrontos armados,
violência, etnocídios, etc. Houve também espaços de entendimento e
integração no encontro entre os dois mundos.
A “ferida braba”: notas em relação à Leishmaniose
Durante
os
dias
passados
em
Tapauá,
questões
interessantes
apareceram sobre a leishmaniose - o que não quer dizer que as dúvidas
acabaram ou que chegamos perto de compreender o fenômeno da doença
na região. Antes de tudo é preciso destacar a precariedade do sistema de
221
diagnóstico e de compilação de dados (registros) oficiais no município. Logo
no primeiro dia fomos à Funasa e só havia dados referentes à malária. No
discurso do coordenador e dos funcionários de saúde, a leishmaniose não é
um problema de saúde pública na região. De acordo com um funcionário da
Casai o maior problema de doença entre os índios é a tuberculose, a
hepatite B e A e a hanseníase (essa mais entre os Deni). Na fala dos
coordenadores parece que a leishmaniose nem existe, mas ela existe sim,
embora não epidêmica.
A ocorrência da doença foi-nos revelado logo no primeiro dia por um
funcionário da Casai, ao falar do caso da dona Leontina (que depois
viríamos descobrir que era a sogra de seu Jorge), que apresentava uma
ferida no olho bastante suspeita. Fomos à casa desta senhora e ela nos
contou como a doença apareceu: há mais ou menos três anos ela foi pegar
água perto de casa e “espocou” uma bola de sangue pequena e que depois
foi crescendo; os sintomas relatados são pele escura ao redor da ferida
(como se tivesse tomado uma pancada e ficado roxo) e forte quentura no
corpo - não apresentava sinais de leishmaniose tegumentar na boca nem no
nariz. Os médicos do município não sabiam se era leishmaniose. Ela
esperava na ocasião uma oportunidade para ir a Manaus fazer os exames.
Talvez o maior problema sobre essa doença seja a precariedade nos
diagnósticos dentro do município, seja por falta de capacitação dos agentes
de saúde, seja pela precariedade de equipamentos para realizar exames.
Segundo relatos de moradores, os diagnósticos costumam generalizar as
doenças (um mal-estar na barriga, dizem que é “dor de barriga”, por
exemplo), quando na verdade poderia ser um problema mais sério.
Posteriormente alguns Apurinãs me mostraram cicatrizes em suas pernas e
costas, a que chamavam de “ferida brava”. Segundo eles as feridas se
originaram pela picada de carrapato (um carrapato que dá em anta) e não
de mosquito.
Os sintomas foram os mesmos em todos os casos relatados: forma-se
uma bola de sangue que depois de “espocar” abre uma ferida que vai se
aprofundando e necrosando a pele. Os dois informantes foram medicados
em Lábrea, o que indica haver algum tipo de diagnóstico na região. Em
todos os casos relatados não houve proliferação da ferida. Resumindo:
222
casos de leishmaniose existem na região, porém não podemos saber em
que nível, devido à falta de informações oficiais e de confusões a níveis
conceituais, uma vez que para os índios e moradores em geral parece
tratar-se apenas de uma “ferida brava”.
Notas sobre a farinha de mandioca em Tapauá
O mês de janeiro é marcado por uma intensa movimentação em torno
da produção de farinha. Bastava ir até a beira do rio Ipixuna e ver o intenso
movimento de canoas e pessoas indo e vindo, trazendo a mandioca colhida
nas “vazantes” para serem transformadas em farinha nas “oficinas”. Pude
acompanhar a família de seu Francisco durante alguns dias produzindo
farinha em sua propriedade na beira do rio Ipixuna. Nessa oportunidade foi
possível entender um pouco as ações e relações sociais em torno dessa
planta, registrar o processo de produção da farinha, visitar sua roça de
vazante e de terra firme.
O intenso movimento em torno da mandioca é comandado pelo ritmo
da cheia do rio, pois se deve fazer a colheita antes que as águas do Ipixuna
e do Purus cubram os roçados nas várzeas – “vazantes” - e a produção se
perca. É uma corrida contra o tempo das águas. A produção de farinha dá
muito trabalho, desde o plantio da mandioca, o cuidado com a roça, até a
colheita, e depois todo o processo de transformá-la em farinha. A colheita
nas vazantes vai sendo feita conforme a farinha vai sendo produzida. O
trabalho é feito em regime familiar e de compadrio. Famílias inteiras se
mobilizam para a produção nessa época, inclusive os jovens e as crianças,
que neste período estão em férias.
A torração da farinha nas oficinas (barracões onde estão armazenados
os fornos de torrar) constitui assim um espaço de sociabilidade familiar,
onde se reúne cunhados, genros, sogros, noras, filhos e netos, etc. em
torno de um objetivo comum. A produção é praticamente toda voltada para
o autoconsumo. Cada família se arranja do jeito que pode durante a safra;
se alguém está doente ou adoece, vai o compadre, algum familiar ou o
vizinho ajudar a colher, descascar, torrar, etc. tudo porque senão perde-se
a produção.
223
Contando com a paciência de seu Francisco foi possível entender um
pouco mais como funciona o processo de produção da farinha:
O plantio de “vazante” - mandioca plantada nas várzeas - começa no
final do mês de julho, contudo, o ciclo inicia quando a maniva (semente)
da vazante é colhida na roça de terra firme em maio/junho, para depois
ser plantada nas várzeas - nesse sentido, a roça de terra firme funciona
como um tipo de banco de semente da mandioca plantada nas várzeas.
Entretanto, existe variedades da terra firme e variedades da vazante.
Diz seu Francisco que a da vazante é uma variedade mais “ligeira” chamada “socó”, que dura apenas sete meses pra ficar madura justamente no período em que o rio começa a encher - depois disso,
não presta mais, fica “desgostosa”, “aguada”, nas palavras dele. A
qualidade de mandioca da terra firme é conhecida como “cobiçada”, que
aguenta de um a dois anos na terra. Como o próprio nome sugere,
trata-se de uma variedade que produz uma farinha mais gostosa –
amarelada - devido ao maior tempo de maturação na terra. É comum
misturar as duas variedades - a da terra firme e a da vazante – na
mesma farinhada.
A mandioca colhida na vazante é colocada de molho – em canoas
submersas na beira do rio - por cerca de três dias, processo esse
chamado “pubar a farinha”. A mandioca pubada fica com uma
consistência mole, permitindo que seja descascada facilmente com as
mãos – trabalho que é feito dentro do rio – formando uma massa
pastosa branca. Já a variedade da terra firme não é pubada; ela é
“decotada” – isto é, descascada - tal como foi tirada da terra, e depois
ela é “sevada” - triturada - num “sevador” – um tipo de rolo dentado
movido por uma correia movimentada por um motor - formando uma
massa pastosa e mais amarelada que a massa de puba. As duas massas
são então misturadas e depois vão para a prensa de madeira –
construída artesanalmente -, pra que a água escorra da massa. Começa
aí processo de secagem da mandioca. Cerca de três horas na prensa, a
massa seca, mas ainda úmida, é peneirada em uma peneira feita de
palha e daí está pronta para ir ao forno pra ser torrada. Torrar significa
a última etapa do processo de secagem da massa da farinha; uma
fornada precisa de duas demãos para farinha ficar totalmente seca,
levando na base de 1h a 1h30 de duração – 30 minutos a primeira
224
demão e 1h a segunda. A farinha no forno tem que ser mexida
constantemente para não queimar e às vezes é lançada ao ar para que o
vapor se desfaça dela com mais facilidade.
Uma safra de farinha dessas pode render de 20 a 30 sacas por família. A
farinha é armazenada em tambores, podendo durar mais de um ano.
Notas sobre o esquema da castanha em Tapauá
A castanha, o peixe e a farinha constituem os principais produtos que
movimentam a economia de Tapauá. No entanto, ao contrário do peixe e da
farinha em que boa parte da produção é consumida dentro do município, a
castanha, apesar de seus valores nutricionais, praticamente é toda voltada
ao mercado externo. É claro que existe um mercado interno, mas este é
irrelevante. De acordo com as estimativas de um comerciante, praticamente
99% da castanha coletada dentro do município é exportada. Nesse sentido,
o valor de receita que fica no município deve ser pífio se comparado à
receita que é obtida na ponta final da cadeia produtiva. A economia da
castanha dentro do município se resume ao extrativismo puro e simples,
praticamente sem nenhuma forma de beneficiamento.
Durante o período que estivemos na cidade foi possível entrevistar dois
grandes atravessadores, o que possibilitou ter uma ideia mais apurada
sobre como funciona o esquema da castanha na região. Buscando não
perder de vista informações importantes dessas entrevistas, peço licença
para colocá-las na íntegra, como estão nas minhas anotações do caderno de
campo - com algumas alterações:
Primeira entrevista
Hoje entrevistei um grande atravessador de castanha da cidade, seu Avilon,
que mora num flutuante próximo ao terminal portuário. Senhor de meia idade,
branco e de personalidade forte; disseram-me no porto que não era muito
receptivo, mas me recebeu bem, foi solícito e atencioso; porém, não deixou
gravar a nossa conversa. Pareceu ser uma pessoa amigável, mas sempre com
um pé atrás... Desconfiado. No início da conversa, chegou um seu cumpadre,
seu Francisco Braga Tavares, homem com seus 70 anos, nascido na região,
em uma comunidade um pouco mais acima do rio Purus. Filho de seringueiro
225
cearense, seu Francisco logo se mostrou um ótimo informante, bem humorado
e atencioso na nossa conversa, demonstrando uma postura sincera, prestativa,
respeitosa e amigável. Mostrou-se um informante com informações valiosas
sobre a vida no passado na região; se apresentou como proprietário de terras
no rio Ipixuna, onde passou boa parte da infância (a outra, o inicio, onde
nasceu, foi numa comunidade ribeirinha no Purus, chamada Recreio São
Domingos), e onde criou seus 14 filhos, hoje todos adultos (só dois moram em
Tapauá), quase todos “doutores”; trabalhou com castanha, herdou do seu pai
um castanhal no Ipixuna com cerca de 150 hectares (1.500 metros de frente
por 3.000 metros de fundo). Seu Francisco mostrou-se profundamente aberto
pra falar da sua vida, ao contrário de seu Avilon, aberto pra falar só do seu
trabalho com castanha. Enfim, a conversa foi interessante, começou com seu
Avilon, de maneira bem objetiva, falando sobre a economia da castanha e
depois com a chegada e a participação de seu Francisco, a conversa enveredou
pra outros rumos, interessantes também, pois ajudou a compreender um
pouco mais sobre o contexto histórico na região. A não permissão de gravar
nossa conversa por parte de seu Avilon é compreensível, em parte por ter sido
nosso primeiro contato, de não nos conhecermos, por ter eu chegado sozinho
me apresentando; talvez sua desconfiança deve-se ao seu trabalho de
comerciante, embora essa desconfiança tenha reverberado na minha própria
desconfiança em relação a ele, como agente explorador dos trabalhadores.
Seria este o receio dele? Qual será que foi a visão dele em relação ao meu
papel ali? Um defensor das pessoas com quem ele trabalha/explora?
Interessante foi que no dia eu usava uma camiseta do Governo Federal sobre
a Política Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (que eu ganhei num
evento em Brasília), e que seu Avilon reparou e até perguntou o que era; tive
que explicar.
~
Depois dessa tentativa de contextualizar a entrevista, das minhas impressões,
vamos agora direto ao assunto da nossa pauta castanheira com seu Avilon e
seu Francisco. Ressalta-se antes de tudo, a impossibilidade de não ter tido a
permissão de gravar
a
conversa, principalmente para
poder
pegar
o
vocabulário próprio de seu Francisco contando sobre sua vida; vocabulário de
caboclo; palavras que não se encontram nos dicionários. Minha pergunta a seu
Avilon, abrindo a nossa conversa, foi direta, objetiva e aberta: “Seu Avilon,
qual é o esquema da castanha aqui em Tapauá?” Vamos à resposta:
226
- A safra da castanha é de janeiro a maio, no período do inverno. Em 2011 ele
comprou de 800 a 1000 “medidas”. A medida é equivalente ao hecto e
corresponde a uma saca de castanha (com casca) com cinco latas, o que
equivale a 100 litros (cada lata de castanha tem 20 litros). Seu Avilon diz que
em Tapauá a medida está custando entre R$ 100 e R$ 110. Seu Francisco
lembrou que antigamente as medidas eram calculadas em caixas (que eles
chamam de “barrica”) de sabão ou de querosene.
- A maior parte da castanha produzida na região é exportada pra Manaus ou
Belém onde estão instaladas as fabricas de beneficiamento. Hoje a maior parte
da produção vai pra Belém e de lá pra São Paulo. Manaus tinha duas fábricas,
a IBESABA e a SIEX, das quais só resta a ultima (?). Eles comentaram sobre
um grande comprador de castanha no Purus, o Dário Pantoja, que é de Belém,
e que entra no Purus com uma grande embarcação comprando castanha dos
comerciantes e atravessadores – também encomenda castanha que é levada
nos barcos-recreios. Diz ele que o seu “patrão” tem fabrica de beneficiamento
em Belém. Diz que no Pará tem muita usina (citou Oriximiná e Óbidos). Seu
patrão vende por R$ 450 uma caixa com 30 quilos de castanha beneficiada.
Explicou por cima como é o processo de beneficiamento da castanha nas
fábricas: descasca - lava- leva pra estufa – leva ao forno. Ele ressaltou que a
castanha é torrada para inviabilizar seu plantio; disse que a Malásia hoje é a
maior produtora mundial de castanha, levada do Brasil, assim como fizeram
com a seringueira (?). Em Lábrea há uma cooperativa e uma grande fábrica de
beneficiamento de castanha. Parece que a prefeitura compra a castanha com
dinheiro do Governo Federal. Perguntei a eles se não seria legal uma fabrica
em Tapauá, claro que sim, ele confirmou que; e disse que o Eduardo Braga até
chegou a prometer ao prefeito, mas ficou só na promessa.
- Seu Avilon também falou que no rio Ipixuna antigamente se produzia muita
castanha. Da boca do rio até a metade era pertencente a um proprietário –
Rissa dos Santos, o “Turco” – e da metade do rio pra cima era de um tal Mario
Martim. Essa é uma informação importante e que gera algumas dúvidas: resta
checar a sua veracidade e ver se eram proprietários mesmo ou se tinham o
monopólio do comércio (já que um deles era Turco!). De toda forma, sugere
que o esquema da castanha segue o mesmo sistema da borracha, a relação
entre proprietários, donos do meio de produção, neste caso, a terra, e de
outro
lado,
trabalhadores
(seringueiros/castanheiros).
Mas
só
dois
proprietários? Seu Avilon cita um livro que conta a historia de Tapauá e que lá
tem uma foto que ilustra embarcações comprando castanha em frente ao
227
terminal portuário. Diz ele, que as embarcações iam e vinham de Manaus e
Belém, num ir e vir constante. Isso tudo demonstra a importância de se fazer
um levantamento histórico detalhado da região, no intuito de compreender a
situação atual.
- Seu Avilon só compra a castanha produzida no rio Ipixuna, sua “freguesia” é
toda de lá. Diferente do Abufari, em que o castanhal pertence a uma empresa
(trataremos disso depois), ele compra a castanha dos próprios produtores
(donos da terra?), parece que de castanhais pequenos. Ele confirmou – meio
desconfiado, reticente - o esquema de aviamento que ele pratica: avia
mercadoria, como açúcar, café, bolacha, leite, etc. e instrumentos de trabalho,
como botas, terçado, etc. ele não compra do castanhal do Abufari, o maior da
região, porque diz lá ser muito caro a castanha por ela ser graúda - “três
castanhas dá um palmo”. Mas o fato é que quem manda no comércio da
castanha do Abufari é o Louro, muito amigo dele, segundo ele. Ninguém do
Abufari faz negócio se não passa pelo Louro (veremos o porquê disso depois).
Diz ele que gente da Malásia comprou as terras do Abufari (veremos isso
depois, na entrevista com o Louro). Quando perguntei sobre o fato de os
castanhais estarem dentro de uma Reserva Biológica, ele disse que o Governo
permite a coleta dentro da área, desde que não corte a árvore, mas que
também tem castanhal fora da reserva. No Abufari são duas comunidades, São
Sebastião e Fazenda.
~
- Pela conversa com seu Francisco, a economia por essas bandas funcionava
antigamente com base na castanha e na seringa. A fala do seu Francisco
sugere que a seringa não era muito produtiva na região do Médio Purus, pelo
menos não tanto quanto no Alto. Pelo menos no tempo dele e do seu pai, as
atividades anuais dividiam-se entre a seringa (no verão) e a coleta de
castanha (no inverno). Também havia é claro comercialização das “drogas do
sertão”: pele, couros, caça e peixe - muito peixe - bichos de casco, peixe-boi e
por aí vai. Diz ele que da década de 50 pra frente, quando a seringa ficou cara
(?), trocou-se a borracha no verão pela exploração de peixes e caça – além da
madeira (?); mas a castanha de toda forma continuou. Fica a pergunta se a
exploração de castanha acompanhou o período da borracha logo no início ou
se ela veio depois. Quanto tempo tem a economia de castanha na região?
Outra questão interessante é quanto à territorialidade que existe no contexto
da castanha. Diz ele que o castanhal dele foi herdado do pai no tempo ainda
em que sua mãe era viva.
228
Segunda entrevista
Ontem entrevistei uma figura chave da economia da castanha em Tapauá. Seu
Raimundo Rabelo de Oliveira, mais conhecido como “Louro do Abufari”,
considerado o principal intermediário da castanha na cidade. O avô do Louro
foi um cearense que veio trabalhar no que antes era o Seringal do Abufari (que
depois acabou emprestando o nome à Reserva Biológica); uma área enorme
com cerca de 180 mil hectares, com muitos castanhais e também com gente
morando lá dentro - castanheiros/seringueiros (existem duas comunidades
dentro dessa área – “Fazenda” e “São Sebastião” – possivelmente constituída
pelas famílias que trabalhavam no seringal). Na década de 1980, o seringal foi
vendido para uma empresa madeireira, porém, logo no ano seguinte (1982), o
governo cria a Reserva Biológica (Rebio) do Abufari sobrepondo parte do
antigo seringal, justamente nas áreas mais ricas em madeira. A empresa
passa então a investir em projetos de manejo e reflorestamento e no
extrativismo da castanha (os castanhais ficaram de fora da Rebio). Louro
começa a trabalhar para a empresa, nos projetos de manejo e com castanha;
depois ele acaba sendo contratado para gerenciar a extração de castanha –
comprava a castanha e levava pra sede da empresa em Itacoatiara, de onde
vendia para Belém, Manaus, etc. Em determinado momento, essa empresa
para de funcionar (?); para continuar no Abufari ele passa a gerenciar
contratos de arrendamento para a empresa de forma autônoma. Ele arrenda a
propriedade da empresa, trabalhando com as famílias que estão lá dentro. O
esquema funciona assim: as famílias que ali vivem quebram a castanha e
vendem diretamente para o Louro, sendo que 20% do total do rendimento da
produção vai para a empresa proprietária da área. O trabalho do Louro é
conseguir compradores e financiamento externo para a safra da castanha bancos como o Basa ou empresas compradoras como a família Montran de
Belém, Ibesaba e Siex em Manaus, gente de São Paulo, do Acre, enfim, uma
ampla rede de contatos com interesse na castanha do Abufari, considerada de
boa produção e a maior do Brasil. Hoje ele tem essa autonomia pra vender pra
quem quiser. O sistema de trabalho funciona da seguinte maneira: antes da
safra a empresa interessada “avia” (adianta) ao Louro certa quantia de
dinheiro; este dinheiro vai servir para “aviar” os castanheiros naquilo que for
preciso para o trabalho de coleta (combustível, medicação, rabeta, terçado,
dinheiro, etc.); esse aviamento será pago pelo castanheiro com a castanha
que coletou e o excedente (se houver) poderá receber em dinheiro ou em
outro tipo de aviamento. Cerca de 100 famílias que vivem nas duas
229
comunidades (600 pessoas em média) trabalham com o Louro, segundo ele,
quase todos são seus parentes. Há um contrato meio informal que permite às
famílias continuar morando na área; elas ocupam o espaço impedindo invasões
e ao mesmo tempo cuidam da terra e da produção. Provavelmente existem
restrições de uso; funciona assim como uma espécie de reserva particular
produtiva. O Louro possui certo carisma na cidade, talvez por sua importância
como provedor de muitas famílias. As relações dele com essas famílias não são
apenas comerciais; foi difícil encontrá-lo com tempo livre para conversar,
sempre correndo de lá pra cá. Quando aparece um problema nas comunidades
é sempre a ele que se busca primeiro. Na cidade todos o conhecem.
Sem querer chegar a alguma conclusão, é possível levantar algumas
questões a partir dessas entrevistas – além das que foram levantadas
anteriormente - que poderão ser investigadas em trabalhos futuros. A
primeira questão que chama a atenção é a respeito da concentração
fundiária em torno dos castanhais. Ao que parece os maiores e mais
produtivos castanhais estão dentro de grandes propriedades e pertencem a
poucos proprietários. Isto implica que o trabalho com a castanha na região
deve
ocorrer
predominantemente
em
forma
de
parceria
ou
de
arrendamento, constituído por uma diferenciação entre o dono terra e dos
meios de produção (com pouca ou nenhuma relação com a terra), e aqueles
que vendem sua força de trabalho (os castanheiros), mas que vivem e
sobrevivem na/da terra. Isso fica muito claro na segunda entrevista quando
se verifica que o proprietário da terra é uma pessoa jurídica que não possui
vínculo com o município e que detém um território.
Seria interessante, nesse sentido, tentar entender, a partir de um
levantamento histórico, como se deu o processo de ocupação e de
estruturação fundiária no município, investigando como o domínio dos
castanhais pode estar relacionado com poderes políticos (locais, regionais e
nacionais) e econômicos. Essa questão fundiária ou territorial de domínio
em torno dos castanhais pode ser importante para entender como se dão as
relações sociais não apenas entre castanheiros e proprietários, mas também
entre os indígenas, uma vez que seus territórios são influenciados e estão
envolvidos por esse sistema econômico. Não é a toa que no discurso dos
230
Paumari, os
castanhais
e
os
lagos
– chamados
genericamente
de
“produção” – são considerados fatores determinantes no processo de
demarcação e delimitação de suas terras.
Outra questão associada a essa primeira é a permanência do sistema
de aviamento, fenômeno de longa data na economia extrativista da região e
que levanta muitas discussões a respeito das relações entre “patrão”
(comerciante, regatão) e “freguês” (o extrativista que vende ou troca o
produto).
O TEMPO NAS ALDEIAS
A sensação de estar dentro de uma terra indígena no coração da
floresta amazônica é como viver em outra dimensão de tempo e espaço.
Foram dezesseis dias de convívio, morando e participando das atividades
diárias com os Paumari. Nesse tempo curto, creio pelo menos ter tido uma
ideia de como é o dia a dia de um índio Paumari em tempos de invernada e
de águas. Os Paumari se mostraram um povo receptivo e acolhedor.
Nestes dias, visitamos e registramos castanhais e como é feita a quebra de
castanha; acompanhei uma viagem à Vila da Foz com os Paumari com o
intuito de vender castanha - e por tabela verificar como se dão as relações
comerciais com os brancos; tive oportunidade de acompanhar uma caçada
de caititu no Abaquadi e uma “pesca de mergulho de tracajá” no lago
Capanã; passear nos roçados de terra firme; entre outras coisas, como
pescar, jogar bola, tomar banho de rio, aprender a andar ou “flutuar” de
canoa, dar meu primeiro tiro de espingarda - na tentativa meio incerta de
acertar um bando de marrecos em noite de lua...
A Relação com os Paumari
Os Paumari são um dos grupos étnicos que compõem hoje a rica
paisagem etnográfica do Médio Purus (junto com os Deni, Apurinã,
Jamamadi, Jarawara, Suruahá, Himerimã e Banawá). Habitantes ancestrais
de afluentes do Purus (rio Ituxi, Sepatini e Tapauá), os Paumari são um dos
únicos povos que conseguiram sobreviver sem confrontos armados nos dois
“ciclos da borracha” que devassaram o Amazonas em meados dos séculos
XIX e XX. Diferentemente de outras etnias, acabaram se incorporando
231
rapidamente ao sistema social e econômico sobreposto, optando pela
manutenção de relações pacíficas (e submissas) ao invés da guerra ou da
fuga. 45
Relatos de viajantes do final do século XIX já os descrevem como
pacíficos e com boas relações comerciais, indicando que já estavam
incorporados ao sistema econômico dominante da borracha, entrando em
um acelerado processo de dependência. Essas reações e relações históricas
dos Paumari, submetendo-se e incorporando-se rapidamente à economia
extrativista, talvez explique o estereótipo do grupo hoje tido como “povo
manso”, “aculturado” ou “civilizado”, a ponto de eu já chegar a ouvir na
cidade frases do tipo “Paumari não é índio”. Talvez pelo curto tempo de
permanência com os indígenas, tenha sido quase impossível identificar
diferenças com a sociedade envolvente. Em geral, a arquitetura e a
disposição das casas seguem o modelo regional (casas de madeira, cobertas
de palha ou telha de amianto); o cardápio alimentar é praticamente o
mesmo (mandioca, peixe, caça, etc.); os Paumari também consomem bens
domésticos e industrializados (fogão, TV, panelas, etc.); verifica-se o
mesmo padrão na construção das canoas ou rabetas e o uso de motores e
por aí vai.
Mas talvez o que mais aproxime os Paumari coma sociedade
envolvente seja a questão da língua. Em todas as aldeias, sem exceção, as
crianças, os jovens e os adultos falam o português perfeitamente num
sotaque bem ao estilo regional. São poucos os que dominam a língua
Paumari (alguns adultos e os mais velhos) e as crianças são educadas no
dia a dia ouvindo o português. Falar Paumari é exceção e não regra.
Portanto, não houve “choque cultural” na minha relação com os Paumari.
Em poucos dias já me sentia “em casa”, com condições de entender e
45
APARÍCIO, Miguel. (2011). Panorama contemporâneo do Purus Indígena. In: SANTOS,
Gilton Mendes (org.). Álbum Purus. Manaus: EDUA, p. 113-131.
232
participar das conversas e ações do dia a dia Paumari com certa
desenvoltura. 46
Sempre busquei adotar uma postura de igual pra igual com eles e elas,
“entrevistando” e também sendo “entrevistado”, colocando minhas opiniões
e pontos de vista, como faria com qualquer outra pessoa mais próxima;
ajudando nas atividades domésticas como se estivesse na casa da minha
família; o que não quer dizer que não tenha presenciado situações
reveladoras de contraste cultural, ou de estar vivenciando experiências
novas a cada dia. O fato de não ter aquela pressão em coletar dados e
informações específicas ajudou para que eu me sentisse mais a vontade. Na
verdade, eu estava ali com a finalidade sim de coletar informações, porém,
a ideia era deixar que os dados surgissem a partir do contexto vivenciado,
de uma “escuta atenta” de “participação observante”. De fato, me sentia ali
um privilegiado “turista aprendiz”, como Mario de Andrade se reportava em
sua viagem à Amazônia.
Atividades produtivas
Pesca
Uma vez que o peixe e a farinha são os principais alimentos dos
Paumari – peixe assado e cozido com farinha, foi o que mais comemos no
campo -, a pesca é uma atividade permanente e diária na vida do índio
Paumari. Pesca-se praticamente todos os dias - como quem vai a um
mercado ou a uma feira comprar alimentos. Na maioria das vezes são os
homens que pescam, mas as mulheres também saem para pescar,
geralmente quando o marido ou os irmãos estão ocupados em outra
atividade, como a quebra da castanha por exemplo. As crianças e os jovens
geralmente acompanham os pais e quando preciso saem para pescar
sozinho - ou em dupla - o alimento do dia. Quando por algum motivo não
46
Embora o português tenha facilitado a comunicação com os Paumari, por outro lado, a
minha total ignorância da língua nativa e seu uso não corrente, não permitiram que eu
adentrasse em aspectos mais profundos do conhecimento e da visão de mundo Paumari, nas
suas relações sociais e na relação com os elementos constituintes dos ecossistemas em que
estão inseridos.
233
tem peixe ou carne, satisfaz-se a fome só com farinha, bolacha e frutas
como banana, açaí, pupunha, etc. Mesmo no inverno - quando as águas dos
rios se espraiam formando um só corpo d’água com os lagos, permitindo
que os peixes se espalhem por amplas áreas dificultando a pesca - peixe
nunca falta na rede ou na linha.
A rede ou malhadeira (de náilon) é o principal instrumento de pesca,
mas também se pesca com vara e anzol. Os Paumari sabem onde jogar sua
rede ou como atrair o peixe ao anzol. A pesca (no inverno) é feita dentro
dos igapós (ou florestas de várzea), em meio às árvores, geralmente
próximo de uma margem de terra (quando há), em locais mais rasos, com
água parada; amarra-se uma ponta da rede em um tronco e com a canoa
em movimento vai jogando a rede na água, formando um tipo de barreira
em linha reta, na horizontal ou diagonal, por quinze a vinte metros de
distância - dependendo do tamanho da rede ou do espaço disponível no
local. A rede pode ficar esticada por algumas horas ou o dia inteiro
dependendo da necessidade alimentar, mas sempre tem que ser retirada no
mesmo dia; não sendo assim, corre-se o perigo de algum peixe maior – ex.
pirarucu – ou de um jacaré furar a rede, ou mesmo, as piranhas devorarem
todos os peixes emaranhados. É comum sair com a rede, esticá-la em
algum lugar e ir fazer outro tipo de atividade, como por exemplo, caçar, e
na volta recolher a malhadeira com os peixes; o resultado sempre é
garantido.
Na maioria das vezes pesca-se de malhadeira e esta é utilizada sempre
quando há muitas bocas para alimentar. A pesca com linha e anzol parece
ser mais utilizada quando a necessidade é mais modesta – para a pessoa
que pesca ou uma família; em todo caso, sempre existe a possibilidade de
compartir o peixe ou a refeição na aldeia. A pesca pode ser feita em
qualquer igapó e a isca mais utilizada foi uma espécie de grilo,
popularmente conhecido como “esperança”; a pesca de anzol é sempre
precedida pela busca da “esperança”, pega com as mãos nas folhas e
galhos das árvores; para atrair os peixes na mata, costuma-se bater a vara
na água repetidamente por algumas vezes - imitando algum bicho? O
sentido auditivo dos índios também é aguçado em meio ao silêncio do
lugar; um barulho na água e identifica-se um peixe – cada espécie tem um
234
barulho específico? – e vai-se lá jogar a linha. Da única vez que pude
acompanhar uma pesca de anzol, durante apenas meia hora pescamos –
eu, Nilson e seus dois filhos pequenos – uma meia dúzia de tucunarés atrás
de seu flutuante. Tucunaré e piranha são os peixes mais comuns, mas
também comemos aruanã, jaraqui, matrinxã entre outras espécies. 47
Logo no segundo dia no campo, tive o privilégio de acompanhar e a
incumbência de registrar fotograficamente uma pesca de mergulho de
tracajá (Podocnemis unifilis) ao estilo tradicional Paumari. Peço licença mais
uma vez para registrar essa pesca/caça de tracajá, tal como está no meu
caderno de campo - com alterações:
Os Paumari historicamente são reconhecidos por sua forte ligação com o
universo aquático. Neste ambiente rico em lagos e rios, cercados por
águas, tanto no inverno quanto no verão, eles se aperfeiçoaram ao
longo dos séculos na arte da pesca e da caça de peixes, tracajás,
tartarugas e peixes-boi. Uma prática tradicional de pesca bastante
conhecida e documentada ainda no século XIX por viajantes (...) é a
chamada “pesca de tracajá (ou tartaruga) de mergulho”. Esta consiste
em pegar o tracajá dentro dos igapós; mergulhando e surpreendendo-o,
agarram-no em cima de um toco ou tronco na superfície, enquanto o
bicho toma seu banho de sol diário – geralmente entre 12hs e 14hs, na
hora do dia em que o sol está mais forte. Hoje a pesca de mergulho é
praticada somente por poucos. A maioria dos Paumari prefere a
facilidade da pesca com malhadeira do que os riscos em mergulhar no
meio de um igapó, que são muitos: cruzar dentro da água com um
jacaré, um puraqué (peixe-elétrico) ou um pirarucu, não seria uma coisa
das mais agradáveis.
~
O registro fotográfico desta prática foi feito num dia de sol na sua hora
mais quente (mais ou menos 13hs), numa mata de igapó a cerca de dez
47
Dentre esses não comemos tambaqui nem pirarucu. Dizem que a região era farta de
tambaqui, mas que devido à sobrepesca no passado hoje é raro encontrá-lo. Já o pirarucu
parece ser um peixe voltado à “exportação”, talvez pouco consumido pelos Paumari dado seu
alto valor de mercado.
235
minutos de motor do flutuante onde mora o Nilson e sua família, no lago
Capanã dentro da TI Paumari Manissuã. Neste dia, fomos visitá-los junto
com seus pais (seu Luis e D. Laurinda) para pegar uma lona que seria
utilizada futuramente por seu Luis para viajar à Tapauá de motor, com o
motivo de receber o pagamento da aposentadoria do casal. A visita
acabou rendendo o dia inteiro na casa dos nossos anfitriões, já que
tivemos ainda que esperar o Nilson e sua mulher voltarem do castanhal
(o que levou toda a manhã). Nilson é hoje o agente de saúde da
comunidade do Manissuã e se mostrou uma pessoa muita viva e ativa,
sempre muito disposto a nos mostrar e ensinar sobre a cultura do seu
povo. Neste dia, ao chegarem do castanhal por volta do meio dia,
aproveitando a oportunidade da nossa presença em sua casa, ele me
convidou para mostrar “como Paumari pega tracajá” - ou “Zé-prego”
como eles chamam os machos da espécie. Com o sol a pino – que é a
melhor hora, pois é quando eles saem da água e ficam em cima dos
tocos - pegamos a pequena canoa Paumari (eu munido da câmera com
a incumbência e a honra de registrar essa prática tão antiga) e partimos
rumo a um igapó próximo ao seu flutuante; quando chegamos próximo
da mata alagada ele desliga o motor, sai da popa e vai à proa. Do motor
para o remo.
[Silêncio]
Só o barulho do impulso da madeira (do remo e da canoa) na água em
meio às copas das arvores e dos troncos submersos. Jogo de luzes e
sombras conforme entravamos ou saiamos das “clareiras alagadas”,
entre folhagens e galhadas. O céu estava num azul limpo e cintilante. A
sombra da mata dava o refrescor do sol quente do dia.
Olhar atento na câmera. Olhar atento na mata. Algumas frases e
palavras soltas por vezes quebravam o silêncio. O menino, filho do
Nilson, apesar de novo, se comportou como gente grande, não fazendo
galhardes. Qualquer barulho pode espantar o bicho pra dentro d’água.
Passados uns dez minutos flutuando na mata, avista-se um casco;
longe. Silêncio e expectativa. Mais leveza na remada. Nilson então
estaciona a canoa atrás de uma galhada. Detalhe: só ele viu o bicho. Diz
para o menino ficar de pronto, esperar aviso, pra quando a hora, remar
até o toco, buscá-lo.
Ele desembarca sorrateiro como se entrando numa banheira. Pela água
vai, chega mais próximo a um tronco, e verifica uma distância calculada
236
para que o oxigênio sustente os pulmões para alcançar a presa
submerso. Atrás do tronco dá um sinal de positivo e se prepara para o
bote.
[Mergulha]
Após mais ou menos um minuto o menino ouve um chamado e começa
a remar. Desta vez sucesso! O Zé-prego vacila em cima do toco seguro
pelas mãos habilidosas do Paumari. Sorriso. Satisfação. Segundos. Pose
pra foto. O menino ainda leva uma arranhada afiada do bicho quando
tenta pegá-lo pra colocar no “porão” (fundo) da canoa. Parte do almoço
agora está garantido. O bicho, nas mãos das mulheres, logo foi para o
fogo e virou caldo. A carne cozida tem gosto de frango, eu digo ao
experimentá-la. Dona Laurinda brinca rindo dizendo que “o tracajá é a
galinha dos Paumari”.
Além do tracajá, os Paumari também se aperfeiçoaram na arte da
pesca de tartaruga e do peixe-boi. Porém, não foi possível acompanhar a
pesca de nenhum dos dois. As conversas informais indicam, no entanto, que
a pesca da tartaruga (maior e mais pesada) difere da do tracajá, uma vez
que a tartaruga é capturada no fundo das águas (e não na superfície), com
o Paumari mergulhando apanhando-a com as mãos ou usando um tipo de
arpão comprido, arpoando-a no fundo das águas. Já a relação com o peixeboi, cuja carne é muito apreciada pelos índios e pela população regional, foi
objeto de investigação da minha companheira de pesquisa - a Angélica -,
tendo ela a oportunidade de acompanhar um dos mestres nessa arte, seu
Evange, que fez a gentileza de levá-la a um local de pesca/caça.
Assim sendo, a impressão que ficou durante esses dias nas aldeias, é
que boa parte do dia a dia dos Paumari gira em torno do arranjar o de
comer: seja um peixe, um tracajá, uma caça, frutos de açaí, etc. (tudo
sempre misturado com farinha). Salvo algumas exceções, como a “mixira”
do peixe-boi48, não há excedentes alimentares (no caso das proteínas), pois
48
A “mixira” é um termo genérico referente ao processo de conservação tradicional de carne
de caça, a qual é conservada na gordura da própria banha do animal - geralmente em galões
ou latões hermeticamente fechados. A mixira mais conhecida é a do peixe-boi, mas pode-se
fazer também com caça. Além da mixira também pude observar postas de pirarucu sendo
237
não há como conservá-los durante muitos dias. Mas com isso não quero
dizer que o Paumari “pensa com o estomago” ou que “vive pra comer”.
Embora o esforço pra arranjar o de comer seja diário a tempo de sobra para
outras atividades ou simplesmente para não fazer nada. De toda forma,
vale ressaltar que é a partir dessas práticas diárias de subsistência que o
conhecimento - sobre a mata, as águas, os bichos, as plantas, os
ecossistemas, enfim, sobre o território - é construído e mantido.
Caça
Como mencionado anteriormente, os Paumari são conhecidos na
literatura como “índios aquáticos”, dada a preferência deste povo na
exploração dos recursos dos rios e lagos. O que não é de se estranhar, por
sempre viverem cercados de águas com fartura de alimentos. No entanto,
essa “especialização” aos ambientes aquáticos é uma característica que os
distingue dos outros povos do Médio Purus, mais voltados para a exploração
de recursos da terra firme. Como disse seu Ademarzinho - um Katukina
casado com uma Paumari (filha de seu Luis) – que mora no Manissuã:
“cada qual [povo] tem seu sistema”. Em nossa conversa ele fazia questão
de ressaltar sua preferência pela terra firme, que a floresta é onde se sente
em casa, etc. e que Paumari é bom pra caçar peixe-boi, pescar e pegar
tracajá, mas não para caçar. A importância da caça na história do povo
Paumari é, portanto, algo que precisaria ser melhor investigado. Minha
hipótese é que a caça tenha adquirido mais importância a partir do contato
com o branco, quando os Paumari passaram a ter acesso às armas de fogo
(espingardas).
O fato é que hoje os Paumari caçam com certa regularidade,
entretanto,
a
caça
continua
sendo
um
recurso
secundário
quando
comparado à pesca. Geralmente caça-se durante expedições na floresta,
principalmente,
durante
as
expedições de
coleta
de
castanha,
que
costumam durar vários dias. Nestes casos, a caça é feita quando algum
animal – passível de virar comida - cruza o caminho da pessoa, desde que
salgado, outro método bastante utilizado para conservar não só o pirarucu, mas também
carnes de caça.
238
se esteja com uma espingarda à mão. Presenciamos isso no campo quando
o Germano e seus filhos chegaram do castanhal com um macaco barrigudo
que acabou virando nossa janta (um picadinho de carne frita) aquela noite.
Outra situação como essa foi com o Gerson (cunhado do Germano e filho
caçula de seu Luis). Ele mais seu sobrinho (Esdrei) foram quebrar castanha
e quando montavam acampamento ouviram um bando de queixadas, foram
atrás e conseguiram matar um. Como haviam se esquecido de levar sal,
resolveram voltar pra casa e a queixada acabou se tornando nossa comida
durante dois dias na casa do Germano. Além destas, teve um dia que eu
comi uma carne de anta no Manissuã, mas acabei não perguntando de
quem era e como havia sido caçada.
Somente um dia, no Abacoadi, pude participar de uma expedição de
caça que durou algumas horas, e mesmo assim não foi exclusivamente de
caça, pois se aproveitou a ocasião para esticar a malhadeira de pesca no
caminho. Neste dia, eu, mais João, Isac e Oseas (e os cachorros), fomos
atrás de caititus (avistados em dias anteriores) na ilha do Paricá, no lago de
mesmo nome, que segundo João, é a sua fazenda ou reserva onde ele “cria
seu gado” - isto é, de “caça”. A ilha do Paricá foi um antigo local de
ocupação e de roçados, portanto, constitui uma capoeira não muito antiga,
com plantas úteis (buritis, castanheiras, etc.) e um tirirical medonho. Não
encontramos nem os rastros dos caititus, pois segundo eles, havia ainda
“muita terra”, mas seu João, que desceu antes, conseguiu matar um veado
jovem com os cachorros. Na volta, tirou-se a malhadeira da água com
muitos peixes, levando para a aldeia fartura de carne de caça e de peixe,
posteriormente distribuídas entre as famílias da aldeia.
Roças
A agricultura/horticultura é um componente essencial das atividades
produtivas Paumari, ainda que durante nosso período no campo eles não
estivessem
trabalhando
na
terra.
Embora
os
Paumari
sejam
mais
conhecidos por sua preferência pela pesca e coleta de quelônios, não há
dúvidas de que também são horticultores já de longa data, como atestam
as antigas capoeiras, indicadoras de antigos roçados dentro do território. É
preciso ressaltar, no entanto, que assim como outras atividades produtivas,
239
como a caça e a coleta de castanha, não sabemos se a horticultura e o
consumo de mandioca constituem um costume antigo ou se tem influência
da atuação do SPI nas primeiras décadas do século XX e posteriormente
dos missionários. Minha impressão é que apesar de muito da cultura
Paumari hoje estar imiscuída com elementos da nossa civilização, a roça
constitui um dos elementos culturais que permanecem relativamente
íntegros, constituindo um tema bem interessante de se pesquisa da cultura
Paumari.
Nosso período no campo não permitiu que acompanhássemos os
trabalhos na roça, pois os Paumari na época do inverno estão envolvidos
com a quebra de castanha, sendo que a lida no roçado começa quando
aquela acaba, ou seja, no início do verão (junho/julho). Mas mesmo assim,
tivemos oportunidade de visitar alguns roçados nas três aldeias que
visitamos, permitindo, ao menos, dar uma ideia do que seja uma roça típica
indígena amazônica. Seguem algumas observações bem gerais a respeito
delas:
Verificamos certo padrão na estrutura e no “funcionamento” dos
roçados nas três aldeias Paumari visitadas (Manissuã, Abacoadi e Terra
Nova).
- Em geral, estão localizados no que eles chamam “pé da terra firme”;
- O tamanho da roça varia entre um a dois hectares por família;
- Em geral estão localizadas próximas das aldeias, ao longo dos
igarapés, facilitando assim o acesso por canoa;
- São pequenas áreas abertas dentro da floresta, num sistema de
corte-e-queima, no qual os troncos são empilhados e queimados e os tocos
das árvores mantidos (daí também esse tipo de agricultura ser conhecida
como “roça de toco”);
- As roças são utilizadas em geral por dois a três anos, depois se abre
outra área de floresta ou capoeira, que pode estar contígua ou não à área
aberta utilizada, que a partir daí, vai ficar em descanso, podendo voltar a
ser utilizada após alguns anos;
- Uma família nuclear tem a sua própria roça da qual é responsável por
zelar;
240
- Os homens participam do trabalho mais pesado de “limpar” a área isto é, cortar os “paus” mais grossos e atear fogo – e do cultivo; as
mulheres podem participar do processo, mas sua responsabilidade é em
cuidar das plantas cultivadas;
- A mandioca é a grande “protagonista” das culturas plantadas,
ocupando cerca de 80 a 90% do espaço cultivado;
-
As
outras
espécies
cultivadas
nestes
espaços
agrícolas
são
“coadjuvantes”, mas que não deixam de ser boas para pensar: variedades
de abacaxi, ananás, banana, batata doce, cana-de-açúcar, cará, etc.
- O tempo de trabalho na roça é durante o verão, quando as raízes
maduras são colhidas e começa uma nova safra de produção de farinha;
-
O
tempo
de
abrir
uma
nova
roça
é
no
fim
do
verão
(setembro/outubro);
- O trabalho despendido para se fazer um roçado é enorme, e parece
não ser todos os Paumari que tem essa disposição – algumas famílias
preferem comprar farinha dos comerciantes, regatões ou mesmo de outros
Paumari.
Coleta
Afora os produtos cultivados nas roças, há uma série de frutas nativas
e outras cultivadas próximas às casas ou às aldeias, que são consumidas
diariamente pelos índios. Entre as frutíferas nativas destaca-se o açaí e a
bacaba, dos quais se prepara um tipo de caldo ou vinho, freneticamente
consumido, misturado com açúcar e farinha. Pudemos participar no
Abacoadi de uma “açaizada” que alimentou toda a aldeia. Existe todo um
processo em torno do preparo do açaí, desde a sua coleta na mata (tarefa
masculina) - na qual as crianças participaram como protagonistas,
competindo para mostrar suas agilidades em tirar os frutos em cima das
arvores -, até o preparo do vinho pós-coleta, tarefa predominantemente
feminina. O consumo do açaí apresentou-se assim como um fator
interessante de coesão social entre indivíduos e famílias. Há também a
pupunha, que é cozida durante horas, sendo seu consumo acompanhado de
café (sempre doce). Das frutas cultivadas, a goiaba e o taperebá (ou cajá),
foram as mais consumidas nas aldeias. A goiaba (de vários tipos) em
241
especial é muito apreciada e era constantemente consumida pelas crianças.
Há sem dúvida muitas outras frutas, nativas ou cultivadas, que não vimos,
registramos ou experimentamos porque não estavam na época ou porque
não houve oportunidade.
A Castanha
“Comercialização das relações”
Parece impossível falar da castanha entre os Paumari sem entrar na
questão das suas relações mercantis com os jará. Porque antes de tudo a
castanha pertence à categoria de “produto” entre os Paumari – que implica
ser mais do que um produto de coleta. Por entrar no rol classificatório de
“produto” a castanha funciona mais como uma moeda de troca do que como
alimento. De fato, mesmo sabendo que a castanha seja apreciada e
consumida como alimento, foi raro ver um Paumari comer uma castanha ou
tirar leite de castanha, salvo quando nós mesmos tomamos a iniciativa de
comprar a castanha deles. Alguns relatos de Paumari mais velhos a respeito
de antigos castanhais apontam, no entanto, que a castanha era apreciada
como recurso alimentar antes do contato (em que grau não sabemos), e
que após o surgimento de uma demanda de mercado tenha se tornado um
“produto”.
Para entender a relação dos Paumari com a castanha temos que
adentrar neste universo de dádivas e contradádivas de bens e serviços –
possivelmente mais antigas do que podemos supor - que no caso das
relações com os brancos se institucionalizam no sistema de aviamento.
Como
aponta
a
antropóloga
Oiara
Bonilla,
o
aviamento
marcou
profundamente a vida econômica e social Paumari, a ponto de ter sido
incorporado e estar presente nos rituais e na cosmologia do grupo. A autora
ressalta a importância do comércio para os Paumari, ou o que ela chama de
“comercialização das relações”, isto é, a apreensão e inversão no plano
simbólico das relações sociais ou comerciais em relações de predação. Sua
242
hipótese consiste em pensar que a relação comercial é a Relação por
excelência, para os Paumari. 49
Sem querer me aprofundar nessa questão levantada pela autora, o
fato é que no campo foi interessante verificar a “comercialização das
relações”. Os Paumari estão sempre trocando, se endividando, negociando,
comprando, etc. seja conosco, seja com os patrões, seja entre eles
próprios.
Isso
faz
com
que
bens,
serviços,
ideias,
etc.
circulem
continuamente entre as aldeias e as famílias. E a castanha, produto com
alto valor no “mercado”, contribui de certa forma para que essas relações
sejam estabelecidas, permitindo que os Paumari tenham acesso a bens e
mercadorias que, ao entrarem nas aldeias, inserem-se em uma rede de
trocas, dádivas e contradádivas, fazendo girar a roda viva social Paumari.
As relações comerciais
Os Paumari “vendem” sua castanha para os regatões, comerciantes da
Vila da Foz e da cidade de Tapauá. Os regatões, durante todo período de
safra, sobem e descem o rio Tapauá e Cuniuá, visitando aldeias e
comunidades ribeirinhas, atrás de castanha pra trocar ou comprar - em
viagens que podem levar semanas. A relação Paumari com o regatão é
contraditória. São vistos como exploradores, que inflacionam o preço das
mercadorias ou contabilizam os preços de forma a levar vantagem aproveitando-se da “ingenuidade” dos índios -, mas sempre tratados como
afins e conhecidos em detalhes - aquele é mais “solidário” nas trocas;
aquele cobra mais caro, aquele vende mais barato; etc. Por outro lado, são
eles de fato os agentes sociais externos que mais próximos estão e mais
frequentemente se relacionam com os índios, conhecendo-os também pelo
nome, pelo parentesco, pelo caráter, etc.
Essa relação de trocas - face a face - é construída na base do
aviamento, que é uma variante linguística de adiantamento, ou seja, o
regatão ou o comerciante adianta ou avia mercadorias, ferramentas,
ranchos, etc. entrando assim em um ciclo de prestações e contraprestações
49
Ver BONILLA, OIARA. (2005). O bom patrão e o inimigo voraz: predação e comércio na
cosmologia Paumari. Mana, 11(1), 41-66.
243
com o “freguês”, que sempre é paga com algum tipo de produto da floresta
– castanha, peixe, tracajá, etc. A lógica é que o “freguês” esteja sempre
endividado, que é uma garantia para o “patrão” de que vai adquirir algum
produto, pois de outra forma, haveria livre-arbítrio em vender a quem
melhor entendesse.
Se o certo é que “se a pessoa passa a dever a um regatão, pode
esperar que um dia ele vai voltar”, também é certo que mais dia menos dia,
um Paumari vai se endividar – seja por razões culturais/simbólicas (Bonilla,
2005), seja por necessidade material. É interessante pensar, como esses
laços relacionais entre os Paumari e os regatões, se tornam mais intensos
na medida em que aumenta a distância geográfica entre as aldeias e a foz
do rio. 50
Foi interessante observar que há diferenças na relação paumari com
comerciante regatão e com um comerciante da Foz. 51 Como disse acima, o
regatão é aquela pessoa que tem maior afinidade e proximidade com os
índios, que pode passar dias em uma aldeia, que conhece todo mundo, etc.,
portanto, percebe-se um tipo de relação que é motivada não só por
interesses
racionais,
mas
também
há
uma
relação
mais
aberta
à
emotividade. Já com o comerciante que vive na Foz, relativamente distante
geográfica e socialmente, predomina uma relação mais “racionalizada”,
onde não há muito espaço para brincadeiras e nem muita conversa. - há em
alguns, desconfiança de ambos os lados. Há algumas exceções, como no
caso de seu Luis e dona Laurinda, que são evangélicos e preferem vender
50
Ver BONILLA, Oiara. (2011). Os Paumari dos rios Tapauá e Cuniuá. In: SANTOS, Gilton
Mendes (org.). Álbum Purus. Manaus: EDUA, p. 206-229.
51
O sistema de trocas com os comerciantes da Foz ocorre no mesmo esquema de
endividamento. O comerciante tem a sua cadernetinha, onde se anota tudo que foi comprado
e o valor final do débito correspondente, que será subtraído numa próxima vinda, mas nunca
saldado. Percebi no caso do seu Luis, que não sabe ler nem escrever, uma total falta de
controle de sua parte nas negociações com a castanha, tendo que confiar em tudo que o
comerciante anotava e calculava. Dada a minha presença ali, o comerciante fez os cálculos e
as anotações certinhas, mas verifica-se aí a fragilidade e a vulnerabilidade que os Paumari principalmente os mais velhos e analfabetos - estão sujeitos nessas relações.
244
seus produtos aos comerciantes da Foz que também são evangélicos, que
também os recebem bem. Neste caso, observei que existe uma relaçãode
afinidade maior por conta dessa “irmandade religiosa”.
Ações e relações sociais
A ideia de aplicar conceitos como o de ação e relação social buscando
entrever os sentidos das ações dos indivíduos em torno da castanha,
permitiu observar o que faz (os motivos das ações) com que um Paumari vá
à floresta coletar castanha. Isso acabou revelando o lado “de dentro” da
ponta de uma cadeia produtiva (da castanha), que vai se estender e
movimentar outros indivíduos, com outras motivações e sentidos em suas
ações, podendo terminar em uma prateleira de supermercado em São Paulo
ou em Paris. Como mostra a tabela, são as necessidades básicas do dia a
dia que levam um Paumari a quebrar castanha na mata, desde comprar
alimento ou rancho, até comprar mercadorias diversas como xampu, calças
jeans, munição, etc.
Tabela 9 - Motivações que levam os Paumari a quebrar castanha. Fonte: Caderno de
campo, 2012.
Saldar dívidas com regatão, comerciante ou com outro Paumari
Trocar por rancho e mercadorias - xampu, roupas, munição, espingarda, etc.
Comprar combustível - que servirá para ir à Tapauá receber o dinheiro da
aposentadoria e visitar o filho que mora na cidade e que está doente
Comprar rancho de “resguardo” para a esposa, fraldas e roupas para o nenê que
nascerá em breve
Pagar serviço de um serrador que vai cortar a madeira necessária para reformar o
flutuante
Trocar por um porco (doméstico) - que depois virou churrasco de domingo e
pretexto para encontro de parentes e afins de diferentes aldeias
Comprar motor Honda 5,5 ou um motor a diesel
245
Enfim, as ideias de ação e relação social propostas por Weber, neste
caso, permitiram seguir alguns itinerários de desejos e de ações Paumari e
perceber que por trás de uma canoa no rio que carrega castanha jaz uma
pequena ação social que irá envolver uma pluralidade de outros agentes,
com sentidos diversos subjacentes às suas ações.
O transporte
De acordo com os relatos dos Paumari, a coleta (ou a quebra) de
castanha na região ocorre de janeiro a março, sendo o forte da “produção”
em fevereiro. É o período da invernada amazônica; o nível dos rios está alto
e continuando a subir, inundando matas centenas de metros adentro –
formando os igapós, um dos ecossistemas mais fascinantes da Amazônia;
rios e lagos se tornam “tudo uma coisa só”, tornando impossível aos olhos
leigos distinguir nessa geografia o que é rio e o que é lago. Arrisco-me a
falar que se não fosse assim, o extrativismo da castanha entre os Paumari –
e em boa parte da bacia amazônica -
se tornaria inviável. Isto porque a
água é um elemento essencial para transportar um produto pesado como a
castanha - uma saca de castanha pesa em média 80 quilos - sem precisar
mais do que uma canoa com um motor (ou mesmo um remo). O transporte
por terra por longas distâncias tornaria inviável a produção, pois não há
outro meio de transporte que não seja a canoa ou o barco*. As pequenas
canoas Paumari permitem ainda adentrar quilômetros de mata pelos
igarapés, acessando os castanhais mais distantes. O ambiente aquático é
nesse sentido um fator fundamental para que a castanha quebrada seja
transportada facilmente por longas distâncias, diminuindo o tempo de
viagem e possibilitando a coleta em locais de difícil acesso.
As distâncias
A distância geográfica entre os locais de habitação e os castanhais é
uma questão interessante de se pensar no que toca aos conceitos Paumari a
respeito da castanha. Os Paumari classificam as árvores de castanha em
dois tipos: as “de planta” e as “nativas”. As castanhas “de planta” são as
árvores plantadas ou cultivadas e que geralmente estão localizadas
próximas às aldeias ou ao redor das casas - espaços de transição entre o
246
“doméstico” e o “selvagem”? Já as castanhas “nativas” são as árvores não
cultivadas (pelo ser humano), que existem por “si”, que são “dadas” pela
floresta,
portanto,
se
incluem
no
domínio
do
“não
domesticado”.
Interessante verificar que as castanhas nativas parecem estar associadas
aos castanhais mais distantes das aldeias, locais de difícil acesso, e,
portanto, espaços fora do domínio doméstico. São categorias interessantes
que levantam questões para futuras investigações como o grau de
domesticação (ou de humanização) das castanhas; a influência humana na
distribuição dos castanhais; se há diferenças no tipo de relação entre a
castanha “de planta” e “nativa”; se essa classificação pode ser parte de um
sistema conceitual e de pensamento perpectivista mais amplo; quão
“selvagens” são os castanhais nativos; etc. Enfim, perguntas suscitadas por
essa experiência no campo que, seja por falta de tempo ou de percepção,
não foram tão bem aproveitadas quanto poderiam.
As expedições de coleta
As áreas mais produtivas de castanha dentro do território Paumari
localizam-se longe dos locais de habitação. Uma expedição de coleta de
castanha pode levar vários dias dentro da mata (cinco dias ou mais),
dependendo da distância, da quantidade de castanha a ser quebrada, da
demanda do produto, da quantidade de pessoas, de comida, etc. Como não
foi possível acompanhar essas expedições mais longas, minhas observações
e registros estão limitados ao que foi possível observar em visitas curtas
(de uma manhã) aos castanhais mais próximos, e nas conversas com os
índios que iam ou chegavam dos castanhais. Segue um breve relato dessas
observações:
A quebra da castanha
O meio de transporte ao castanhal é a canoa com motor; de furo em furo,
entrando e saindo de igapós, chega-se à beira da terra firme; cada castanhal
tem os seus caminhos - que no linguajar local designa-se como “varedas” –
mais abertos ou mais fechados, cujo trajeto varia de acordo com a distribuição
das castanheiras dispersas na mata; a distância entre as castanheiras pode
variar, mas não chega a ultrapassar mais de um quilometro, em geral estão
relativamente próximas; ao chegar à castanheira, o coletor apanha - com as
mãos ou com o terçado - os ouriços (frutos) caídos no chãodentro de um raio
247
que abrange a copa da árvore - que pode chegar a 50 metros ou mais - e vai
amontoando-os próximo à base do tronco da castanheira; repete-se o mesmo
procedimento até a última castanheira; o número de castanheiras em cada
“vareda” varia de acordo com o tamanho destas; na volta, o coletor “quebra” os
ouriços amontoados e coloca as castanhas dentro das sacas; para quebrar o
ouriço – fruto lenhoso e muito duro (devido à presença de lignina) - é preciso
desferir vários golpes com o terçado na parte superior do fruto, como se fosse
tirar sua “tampa”, exigindo força, destreza e equilíbrio, para que as sementes
que estão dentro não sejam também cortadas; quebra-se a castanha sentado no
chão da floresta; após abrir o fruto, pode-se ou retirar as sementes e colocá-las
direto numa saca - de fibra de plástico, com capacidade de armazenamento de
100 litros - ou ir amontoando-os abertos até terminar de quebrar todos para
então colocar as sementes na saca; os ouriços quebrados – chamados de
“quengas” ou “quengos” - vão sendo amontoados ao pé da castanheira, que
segundo um informante servem como adubo; no entanto, o acúmulo de água da
chuva dentro dos ouriços faz com que estes sirvam como focos de reprodução
de carapanãs (há muitos em volta das castanheiras), abrigo para formigas,
diversos tipos de insetos e mesmo para outros bichos como cobras; depois de
retiradas todas as castanhas dentro dos ouriços, o coletor coloca a saca nas
costas e
segue
até
a próxima castanheira onde
se
repete o
mesmo
procedimento.*
A castanha coletada e ensacada é então levada até a beira do igarapé e
embarcada na canoa; um trabalho que exige muita força e resistência - carregar
uma saca de 80 kg nas costas do “centro” até a “beira” não é uma tarefa pra
qualquer um. A produção é transportada à casa do coletor onde ficará
armazenada até ser vendida. O único tratamento que é feito antes da venda é a
lavagem das castanhas, mergulhando-as no rio em cestas de palha vazadas. O
grosso da produção é transportado e negociado na Foz (quando há combustível),
onde os preços das mercadorias são mais em conta do que o cobrado pelos
regatões.
O que se leva
O material levado ao castanhal é simples. Vale ressaltar que muitas
dessas coisas são itens que fazem parte do pacote de “aviamento” do patrão ou
do comerciante, um tipo de contrato informal que dá garantia de que o produto
será vendido a ele.
1. Terçado - instrumento fundamental para abrir trilhas, “roçar” os locais
de coleta, extrair fibras e cipós e principalmente quebrar o ouriço da castanha;
2. Camisa de manga comprida, calças - para se proteger dos mosquitos e
de outros insetos durante a quebra - ou bermuda;
248
3. Botas ou calçados (na falta de botas) - segurança para andar na mata e
contra picada de cobra -, mas não são todos que tem bota ou calçado.
4. Rede, mosquiteiro e lona (quando há);
5. Espingarda e munição (utilizado para caçar e se defender de alguma
onça);
6. Sacos de fibra de plásticode cem litros ou mais, onde se armazena a
castanha;
7. Combustível; etc.
Alimento
O alimento levado é o básico: farinha de mandioca, sal e rancho, como
café, leite em pó e bolacha; quando há, leva-se “mixira” de peixe-boi ou de
caça. O restante arranja-se no próprio local: o peixe pescado nos igarapés, o
fruto coletado na mata e uma caça quando aparece algum animal.
Regime de trabalho
O trabalho com a quebra da castanha é familiar e predominantemente
feito pelos homens. Os filhos acompanham os pais desde a infância e
constituem uma força de trabalho fundamental, de forma que quando chega
o tempo da castanha as aulas nas aldeias são suspensas até o fim da safra.
Os jovens quando se casam - formando um novo núcleo familiar – passam
a coletar para si próprios, garantindo um ponto de castanha próprio e
desvinculando-se do trabalho com o pai – esse é um dado inferido que
precisaria ser checado. As mulheres também quebram, só que mais
comumente nos castanhais próximos às aldeias.
Uso e territorialidade dos castanhais
A forma como se dá o acesso aos castanhais dentro do território
Paumari é uma questão interessante que a princípio parece simples, mas
que trás muito pano pra manga. A questão pode ser colocada nos seguintes
termos: dentro das TIs Paumari, os castanhais e as castanhas são de
usufruto comum, porém o uso dos castanhais é regulado e/ou negociado
entre os grupos familiares. De que forma se dão essas negociações, a que
interesses e motivações obedecem, são questões que podem ser levantadas
para iniciar o diálogo e abrir caminho para futuras investigações. Observase que a forma de acesso ao castanhal caracteriza-se pelo uso coletivo ou
privado.
249
No primeiro caso, observado no Abacoadi, as famílias da aldeia se
reúnem no tempo da castanha e fazem investidas coletivas aos castanhais,
onde cada qual “quebra o que pode ou aquilo que dá”. Disse-me um
informante que quem convoca essas primeiras incursões é o chefe/cacique
da aldeia – no caso, seu Evangelista. Depois dessas primeiras investidas,
onde se coleta o máximo de castanha possível, cada família tem livre
acesso para voltar e coletar as castanhas que continuam a cair - mas que já
não são muitas. No entanto, ainda que haja essas áreas de uso comum no
Abacoadi, parecem existir outras áreas de castanhais de domínio das
famílias mais proeminentes da aldeia- uma informação que precisaria ser
checada.
Nos casos em que o acesso é “privado”, como no Manissuã, a coisa fica
um pouco mais complicada. Aqui os castanhais são divididos em pontos por
família. Cada ponto é composto de uma “vareda” – caminhos ou trilhas na
mata - com uma determinada quantidade de castanheiras (esquema que
remete às chamadas estradas ou colocações nos seringais), no qual uma
família tem direito de usar e fica responsável em zelar por ela. Um
castanhal pode ter um ou mais pontos dependendo do seu tamanho. É
interessante observar que os maiores castanhais (que podem chegar a ter
mais de 400 castanhas) estão localizados na TI do Lago Manissuã. 52
Segundo o relato de seu Luis, logo após a terra ser demarcada foi feita
uma reunião para dividir os pontos entre as famílias interessadas em
trabalhar com castanha. Não compreendi muito bem quais foram os
critérios de divisão utilizados, mas seu Luis parece ter tido um papel
importante nesse processo, por ter sido ele o responsável em dividir os
pontos por família – haja vista, ser ele uma liderança importante dentro das
aldeias. Contudo, existem divergências no Manissuã entre as famílias que
52
Os principais castanhais da TI Paumari do Lago Manissuã, com os respectivos chefes de
família responsáveis pela quebra de castanha na área, são: Capanã – Boró, Davi, Germano e
Nilson; Manissuã – Ademarzinho, Davi, Dário, Germano e Gerson; Peruano – seu Luis e
família; Assinharim – seu Luis e família. Todavia, não posso precisar quem são as pessoas
que realmente usam cada castanhal – isso acabou não ficando muito claro no trabalho de
campo –; possivelmente essa lista poderia se estender mais e incluir a quantidade média de
castanha quebrada em cada local.
250
trabalham com a castanha, que alegam uma divisão desigual, de que seu
Luis se apossou dos castanhais maiores e mais produtivos - que a princípio
são áreas coletivas e de usufruto da comunidade –, sobre os quais se alega
no direito de receber parte da castanha quebrada por qualquer outra
pessoa. Além disso, dizem que o cacique se apropriou dessas áreas mais
distantes mesmo sem estar em condições físicas de quebrar a castanha,
quando poderia abrir mão delas para aqueles que estejam precisando mais.
O fato é que, por conta dessas e outras questões, as relações entre os
Paumari em torno dos castanhais no Manissuã são mais tensas quando
comparadas com o sistema de trabalho no Abacoadi.
O uso “privado” ou coletivo dos castanhais não é nenhuma novidade
quando comparados aos sistemas de acesso e uso dos castanhais em
âmbito regional. Mas chama atenção essa questão do domínio individual de
um castanhal dentro de uma terra indígena, onde a princípio os recursos
são de usufruto da comunidade. Por isso a necessidade de se colocar aspas
no “privado”, porque neste caso estamos tratando de um sistema de
territorialidade (domínio e controle de um recurso) regulado por relações de
poder e/ou de parentesco regidas dentro de uma lógica, que se aplicarmos
os conceitos de Weber, misturam tanto interesses racionais e emotivos,
quanto os que são dados pela tradição. Verificamos relações de trabalho
que refletem as de âmbito regional, como por exemplo, casos de “parceria”
ou de “meia” - em que parte da castanha quebrada fica nas mãos do “dono”
do ponto – mas que quando regidas por uma lógica de parentesco ou de
compadrio entre os núcleos familiares (genro e sogro, pai e filho, etc.),
podem nem sempre funcionar de maneira maniqueísta.
No vocabulário Paumari, castanhal é sinônimo de “produção” – assim
como os lagos de pirarucu -, e no discurso e ações deles aparecem como
um dos principais critérios a serem considerados quando se trata de
fiscalização e definição dos limites do território oficialmente demarcado. É
importante tentar entender quais são esses critérios que fazem com que se
assuma um castanhal como sendo de domínio Paumari. Tive a oportunidade
de acompanhar seu Luis num castanhal fora dos limites da TI - uma
“vareda” pequena com apenas dezessete castanheiras - que segundo ele,
era tudo “planta de parente” e por isso se via no “direito legitimado” de
251
quebrar castanha lá dentro, mesmo estando fora do território demarcado e
mesmo sabendo que a área pertence ou também é utilizada pelos brancos.
Verificamos aí uma ação social territorialista motivada por interesses dados
pela tradição (com base num critério ecológico), mas que também
apresentam razões práticas (racionais ou emotivas), por ser uma área
próxima e acessível para uma pessoa de idade mais avançada, permitindo
que ele quebre sua castanha de forma mais independente. 53 Mesmo tendo
obtido permissão da FUNAI para coletar, foi interessante observar a postura
de seu Luis neste “espaço”. Durante a nossa permanência lá dentro – havia
um clima de enfrentamento por parte dele e de certa tensão no ar, como se
estivéssemos sendo vigiados por pessoas no gratas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados e a discussão apresentados neste relatório são bem
preliminares.
importante,
Abrange
tendo
informações
em
vista
nossos
sobre
aquilo
objetivos,
que
que
eu
considerei
merecem
maior
profundidade de análise e de diálogo com a teoria – especialmente na
questão da castanha. Nesse sentido, creio ter sido este um primeiro passo
para um futuro artigo.
Pretendo
ainda
complementar
este
relatório
com
um
ensaio
fotográfico, onde serão apresentadas as fotos da viagem junto com algumas
reflexões suscitadas pelas imagens.
53
Seu Luiz diz que não tem mais condições físicas de acompanhar o ritmo de trabalho nos
grandes castanhais - os pontos pertencentes a ele estão sendo quebrados pelos filhos e
genros -, daí ele ter solicitado à FUNAI quebrar castanha nesta área mais próxima de onde
mora, porém fora dos limites da TI. A FUNAI acatou “direito legitimada”, desde que fosse só
para coletar a castanha e não para habitar - morar só dentro do território demarcado.
252