Samurai X – A História Fictícia de Um Ronin Real
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Samurai X – A História Fictícia de Um Ronin Real
Samurai X – A História Fictícia de Um Ronin Real Pedro Henrique Castro Teixeira da Silva e Bruna Petrus do Prado Silva Atenção: Os quadrinhos japoneses são tradicionalmente lidos da direita para a esquerda, aqui no Brasil, as publicações também seguem este padrão, portanto, sempre veja as imagens, textos ou diálogos ao contrário do que está acostumado, ou seja, leia-os da direita para a esquerda. Introdução ao Estudo de Mangás e Animes: A cultura popular mundial não tem o hábito de freqüentar grandes salões, estar presente em debates televisivos ou ser mencionada nas escolas e universidades, isso até então, porque não era bem-vinda, pouco se conhecia sobre ela e o que sabíamos parecia infantil ou vulgar. Enquanto nos espaços de sociabilidade das grandes instituições modernas esse tipo de manifestação ficava obscurecido por aquilo que se diz erudito, na parcela majoritária da população esses simbolismos pareciam ganhar o imaginário das pessoas, que começaram a falar de si mesmas como membros de uma cultura underground. Hoje, uma quantidade significativa de pessoas continua desprezando essa cultura, mas a diferença é que já não podem mais ignorá-la. A verdade é que ela cresceu a ponto de não poder mais ser obscurecida, ela se impõe onde antes não a queriam e ganha os espaços de sociabilidade que não eram seus de fato, mas que ela exige por direito de suas proporções. Afinal, talvez este seja o grande paradigma da modernidade, a justaposição de espaços, de culturas e ideologias. Dessa convivência nem sempre harmoniosa saem os movimentos e a cultura pop foi um deles, começando com pequenas proporções e rapidamente ganhando adeptos até chegar às manifestações artísticas de massa como o cinema. Dissecar os simbolismos da cultura pop é provavelmente o melhor meio de dialogar com a juventude contemporânea, ensinar e aprender com ela. Dentro da cultura pop atual um dos segmentos que mais se destaca é o dos seus filhos nipônicos. A cultura pop japonesa cresceu na identidade deste país ao longo da década de 1990 e chegou ao Ocidente dentro daquele já mencionado modelo underground, se inserindo no universo pop de milhões de jovens principalmente através das histórias em quadrinhos (Mangás) e de suas versões animadas para televisão (Anime). Mas estas duas manifestações podem e devem realmente ser estudadas do ponto de vista artístico e histórico? Como apreciação artística, possivelmente é mais visível a importância destas formas, uma vez que ambas possuem influência de antigas tradições culturais japonesas como o kabuki ou a pintura em bloco de madeira, esta, originalmente, também uma cultura popular, com algumas formas artísticas da atualidade como a fotografia ou o cinema. Na verdade, a discussão sobre a validade artística destes dois elementos provavelmente não teria lugar no Japão propriamente dito, onde a vida de mangaká (algo equivalente ao 2 cartunista) tem grande reconhecimento e concorrência, a profissão já foi até tema de história no mangá e anime Bakuman. Em seu país de origem, os mangás respondem por cerca de 40% das vendas de artigos literários e 50% dos ingressos de cinema vão para as versões em Anime. Resolvida a primeira questão, resta saber da validade do estudo histórico. Para este fim cabe uma anedota, aliás, penso que sempre cabe uma anedota. Em 1993, ainda no início da expansão da cultura pop japonesa pelo mundo, o crítico Ueno Toshyia fez uma visita à cidade bombardeada de Sarajevo e, enquanto andava pelos escombros, se deparou com três diferentes painéis, pintados por jovens politizados; no primeiro, uma imagem de Mao Zedong com as orelhas do rato Mickey Mouse, no segundo, um slogan do Exército Zapatista de Libertação Nacional, mas o terceiro viria a impressioná-lo, era uma cena do Mangá e Anime Akira, muito antes do que se poderia pensar este tipo de influência, em uma zona de guerra. Ora, se Animes e Mangás foram bons o suficiente para servir como símbolo de resistência política pela juventude de um país devastado por uma guerra, por que não seriam dignos de estudo? Esta é a pergunta que fica dezenove anos depois, com quadrinhos e animações japonesas espalhadas pelo mundo. Dentro desse mundo de representações, um mangá que chegou por aqui e certamente se tornou um dos mais famosos, é conhecido como “Rurouni Kenshin”, ou em português “Samurai X”. O nome dado no Brasil engana, já que a história é baseada na vida real de um ronin da era Tokugawa e não um samurai, como pode parecer. O protagonista, Kenshin Himura, lutou ao lado dos exércitos imperiais pela Restauração Meiji e ficou conhecido nas fileiras militares como “Hitokiri Battousai” no original, ou “Battousai, o retalhador”. Durante os últimos e mais turbulentos anos dos conflitos, no entanto, ele desaparece. Para o mangá ou sua versão em anime, a história começa quando ele retorna como um andarilho anônimo que, em busca de redenção, encontra paz no dojo Kamiya, da professora Kaoru Kamiya. 3 O Corpo de Um Ronin Tokugawa... A Era Edo ou Tokugawa teve início quando o Imperador do Japão outorgou a Ieyasu Tokugawa o título de Shogun, legitimando sua vasta influência direta ou indireta sobre as terras do império e dando início a um período de duzentos e cinqüenta anos de domínio desta família. O modelo de sociedade construído a partir daí, concorre ligeiramente ao título de feudal. A base de poder do shogunato residia na cidade de Edo 4 (atual Tókio) e ao redor dela foram distribuídas terras. As primeiras, imediatamente circundantes, foram dadas aos vassalos hereditários, dependentes históricos da família, depois, a servidores diretos de confiança e só então às outras famílias que sobreviveram ao processo centralizador do poder, tudo de maneira a manter a segurança. As relações de poder no seio deste país se davam, pois, basicamente em torno da posse ou não da terra, o meio rural sobrepujava a importância do meio urbano e por muito tempo procurou obscurecê-lo. Assim, o imperador mantinha seu poder simbólico, mas durante este período suas ações pouco passaram de endossamentos da política dos shoguns Tokugawa. Estes, por sua vez, ocupavam o centro da política, podendo conceder ou retirar a posse da terra dos senhores locais, os daimyo, que apesar de não possuírem suas terras de direito, as ocupavam de fato, o que lhes dava uma posição social destacada, ficando a seu encargo a manutenção da ordem nas cercanias. Como produto de uma sociedade eminentemente rural, existia uma classe guerreira a serviço dos daymio, cujos membros eram os chamados samurais. Também conhecido como bushi, o samurai seguia os princípios básicos de um código de conduta chamado bushido que, em resumo, pautava suas ações em uma essência moral de lealdade ao seu chefe daymio, o que pressupunha total desapego à sua própria vida. Durante todo o período o sentimento de fidelidade é reiterado pelos senhores como o mais digno, em contraste com a indignidade da traição. Ao longo do mangá, Kenshin faz sua busca por redenção. Veja bem, voltada para a superação de quem foi um dia e não para o esquecimento, e nem poderia, uma vez que os elementos que o construíram são típicos da Era Tokugawa e sem isso se perderia parte significativa de sua personalidade. Então, quando reaparece na Era Meiji, a mera visualização de seus elementos mais básicos já é suficiente para singularizálo. Kenshin ainda carrega uma espada, sua concepção das artes marciais é predominantemente guerreira e fortemente pessimista e, é claro, seu estilo de luta ainda é o Hiten Mitsorugi Ryu, utilizado durante os conflitos armados do Bakumatsu para derrubar o maior número de adversários possíveis através da enorme velocidade da espada. 5 Esses elementos, contudo, não são mais usados com os mesmos objetivos da sociedade agrária que os criou, uma vez que a modernidade trazida pela Era Meiji dilui as antigas concepções e os laços comunitários. A questão é que o Hitokiri Battousai só foi possível na sociedade feudal criada pelos shoguns e daimyos, mas ele já não lutava por ela. Assim, temos que a modernidade muda os fins pelos quais se utiliza um meio, mas não necessariamente muda o meio com o qual se busca um determinado fim. Esta justaposição de paradigmas é essencial para compreender o andarilho anônimo que busca construir uma vida nova com praticamente os mesmos meios que lhe deram sua antiga. 6 Com efeito, o corpo do protagonista é predominantemente Tokugawa, e isso inclui suas extensões, quer dizer, suas armas, movimentos, maneiras, estilo de luta, seu “cheiro de sangue” e até sua aparência, desde a cicatriz no rosto, lembrança de seu passado, até seus olhos, sempre ressaltados como os olhos de um assassino. Dito isto, a pergunta que fica é: se Kenshin era um guerreiro, fruto de uma sociedade agrária onde os samurais juravam lealdade a seus senhores, porque ele não fez o mesmo? Porque lutou ao lado dos exércitos imperiais, a favor da Restauração Meiji e contra os daimyo? ... Com a Presença na Era Meiji... Ao pensarmos sobre a questão proposta, a primeira resposta que vem à tona é a mais simples, ou seja, Kenshin não luta mais por aquela sociedade porque sua mente já não pertence mais a ela. A sociedade agrária criou um espadachim errante e a conjuntura lhe concedeu uma mentalidade alternativa. Ele pode não saber ser mais do que isto, um guerreiro, mas pode querer mais do que a situação lhe oferece. Um olhar superficial do personagem revela o Japão Tokugawa e os meios que ele utiliza para se afirmar, mas uma análise mais profunda mostra algo além. Em meados do século XIX, quando nasce Kenshin, o poder do shogunato já não é mais o mesmo. Internamente, a capacidade de articular o poder central com as forças locais já havia sido significativamente abalada. O crescimento das cidades em relação ao meio rural - fato que pode ser observado no cenário do mangá, que se passa predominantemente no ambiente urbano – levou ao enriquecimento de determinados setores sociais ligados à cidade, estes, no mínimo, podiam ser considerados escorregadios quanto às leis do governo, baseadas na posse da terra e não em relações comerciais. Já no campo, as classes menos favorecidas sofriam com sucessivas crises ligadas à fome, desde o ano de 1750, o que cada vez mais levava a levantes populares. É interessante notar que este último fato provavelmente foi de grande importância para o personagem, afinal, sua situação inicial era da mais extrema pobreza, e seu abandono social quase o levou à morte. Entretanto, nem só de convulsões internas se fazia o Japão. No horizonte do país havia algo menos abstrato que fome ou novos setores sociais, mas igualmente simbólico e relevante. Os navios estrangeiros – “navios negreiros” mencionados no primeiro quadrinho da história – finalmente batiam às portas do Japão Tokugawa. O governo de Edo pouco 7 pode fazer em relação aos gaijin e rapidamente o Japão entrou na lógica dos tratados desiguais. Sucessivamente eram feitas concessões políticas e econômicas às potências ocidentais, cada novo direito levando a um novo tipo de exigência, e a nova exigência sendo assumida pelos outros países imperialistas. De maneira crescente os ocidentais desembarcaram em águas japonesas durante o século de Kenshin Himura, sua presença mexia com os nativos, tanto no sentido de impor-lhes uma presença indesejada com a qual freqüentemente se sentiam humilhados, quanto no que diz respeito à utilização de idéias ocidentais, que circulavam, apesar da censura eventual, pelas zonas mais periféricas, longe da capital, com o nome de “saber da Holanda”. Em resumo, um conjunto de novas idéias fervilhava, chegando tanto de fora do Japão com os estrangeiros, quanto de dentro com os novos atores sociais. Pode-se dizer que a cultura transmitida pelo Shogun já não correspondia à mentalidade da população em geral. Desse modo, principalmente as regiões do sudoeste e oeste se sublevaram. Para lá haviam sido mandados os clãs que se opuseram à centralização política em Edo, afastados da capital pelas terras concedidas aos simpatizantes do governo. Esses indivíduos se organizaram em torno do ideal de trazer o imperador de volta ao centro das decisões, superando o Shogun. Assim, começava um clima de instabilidade onde espadachins como o Hitokiri Battousai participavam com pequenos serviços, assassinatos políticos ou diretamente em batalhas: “Enquanto os daimyo começavam a contestar o Shogun de forma aberta ou velada, muitos de seus samurai mais exaltados abandonavam o clã e escolhiam voluntariamente a condição de ronin, caminhando de província em província, fazendo propaganda e provocando agitações. Os mais violentos começaram a atacar estrangeiros, entre os quais a katana passou a ser um objeto de pavor, pois quase todas essas agressões resultavam na morte da vítima, horrivelmente mutilada pelo fio da espada.” 1 Kenshin pode não ter sido um samurai que virou ronin, ele provavelmente foi recrutado entre as classes mais populares quando os opositores do regime Tokugawa se organizaram. Segundo o mangá ou o anime, sua participação teria sido essencial no Bakumatsu, o final mais violento de um processo em si cataclísmico, que envolveu 1 SETTE, Luiz Paulo. A Revolução Samurai. São Paulo, Brasil, Massao Ohno, Aliança Cultural Brasil-Japão, 1991, pág. 72. 8 reviravoltas na política oficial, uma guerra civil e vários embates com os estrangeiros. Ao final deste tempo ele teria desaparecido. Sua volta acontece no ano onze da Era Meiji, em outras palavras, ele volta a tempo de ver o produto de sua luta. Os símbolos elementares de sua existência, adquiridos durante o período Tokugawa, adquirem novos objetivos, as velhas relíquias representam novos conceitos. Nesta perspectiva, a espada que ele carrega tradicionalmente na cintura teve sua lâmina invertida, não podendo mais matar, apenas atordoar ou ferir. Apesar de reconhecer a realidade violenta das armas e mesmo da sociedade, o espadachim cria um ideal de defesa dos inocentes e professa uma idealização do mundo. Por fim, mesmo que utilize o estilo Hiten Mitsurugi, Kenshin obstinadamente se recusa, em diversas ocasiões, a passá-lo à diante, sua existência não é mais possível em um mundo como o que se formou. Além disso, Kenshin Himura mais de uma vez reconhece os benefícios do Governo Meiji e, em contrapartida, esporadicamente é legitimado por um membro do Estado como o General Yamagata Arimoto, que o convida a ingressar no alto oficialato do exército, o que Kenshin recusa por suas próprias idéias. Assim, quanto mais nos aprofundamos na trama, mais o Hitokiri Battousai aparece menos como o passado próximo de Kenshin e mais como um alter ego abstrato e distante. Paradoxalmente, seu passado sempre é invocado para ajudar a construir seu presente e futuro. 9 E a Conclusão nos Extremos da Modernidade. Em termos absolutos, procuramos demonstrar que o personagem é uma convergência de idéias, vindas de várias partes do mundo e de épocas diferentes. A cada passo que damos, em direção a aspectos mais pessoais da psique do personagem, é como se andássemos também sobre o tempo. Usando elementos da Era Tokugawa, Kenshin luta pela Era Meiji e mesmo esta, se pudéssemos continuar a análise, não seria suficiente para satisfazê-lo. Trazer a modernidade equivale a abrir uma porta, ou seja, o ato não é um fim em si mesmo, mas o começo de um afluxo de matéria física e abstrata, pessoas e idéias. Às vezes, o personagem fala de conceitos como se olhasse para o futuro, e quer isso seja próprio de quem é, ou uma visão do autor aplicada à história, é igualmente interessante ver até onde o Japão iria. 10 2 2 Falando sobre democracia 11 Índice de Imagens: Imagem 1. (Pág. 4): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 1. Imagem 2. (Pág. 5): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 1. Imagem 3. (Pág. 6): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 1. Imagem 4. (Pág. 6): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 1. Imagem 5. (Pág. 9): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 1. Imagem 6. (Pág. 9): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 1. Imagem 7. (Pág. 10): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 2. Imagem 8. (Pág. 11): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 2. Imagem 9. (Pág. 11): WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edição 2. 12 Bibliografia: SETTE, Luiz Paulo. A Revolução Samurai. São Paulo, Brasil, Massao Ohno, Aliança Cultural Brasil-Japão, 1991. WATSUKI, Nobuhiro. Samurai X. Editora JBC, 1999. Edições 1-9. Bibliografia Complementar: NAPIER, Susan J. Anime From Akira to Princess Mononoke: Experiencing Contemporany Japanese Animation. Palgrave Macmillan, 2001 CHANDLER-OLCOTT, Kelly; MAHAR, Donna. Adolescent AnimeInspired “Fan-Fictions”: An Exploration of Multiliteracies. Journal of adolescent & adult literacy, 2003. Filmografia: FORUHASHI, Kazuhiro. Samurai X. Direção de Kazuhiro Furuhashi. Japão, Aniplex e Fuji TV, 1998. Episódios 1-9. Filmografia Complementar: ZWICK, Edward; CRUISE, Tom. O último Samurai. Produção de Tom Cruise, direção de Eward Zwick. Estados Unidos, Warner Bros. Pictures, 2003. 13
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