o que está em jogo nestes - Observatório das Metrópoles

Transcription

o que está em jogo nestes - Observatório das Metrópoles
DOSSIÊ
O QUE ESTÁ EM JOGO NESTES
JOGOS?
Olimpíadas 2016 e a mercantilização da cidade do
Rio de Janeiro
FICHA TÉCNICA
Coordenação
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Breno Procópio
Juciano Martins Rodrigues
Pedro Paulo Machado Bastos
Revisão
Breno Procópio
Pedro Paulo Machado Bastos
Imagens
Pedro Paulo Machado Bastos
Edição e Diagramação
Thais Velasco
Tradução
Marcelo Fonseca
Anthony Cleaver
www.observatoriodasmetropoles.net
Avenida Pedro Calmon, 550, sala 537 - Cidade Universitária, Rio de Janeiro-RJ - CEP: 21941-485
ÍNDICE
A gentrificação como estratégia de neoliberalização
das cidades brasileiras
Orlando Alves dos Santos Jr.
Direito à Cidade S/A: a casa de máquinas da
financeirização urbana
Thiago Hoshino e Júlia Franzoni
...........22
Investimentos e Parcerias Público-Privadas: a
urbanização neoliberal da Cidade Olímpica
Larissa Lacerda, Mariana Werneck,
Orlando A.dos Santos Jr. e Patricia Novaes
...........13
MEGAEVENTOS
Apresentação ...........04
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
AP
ARTIGOS
01
02
03
04
Transporte urbano na cidade do Rio de Janeiro: uma
reflexão sobre a racionalização da frota de ônibus
Juciano Martins Rodrigues e Pedro Paulo Machado Bastos
...........33
...........43
Porto Maravilha: o imaginário da revitalização ...........65
Olimpíadas 2016 e os impactos da "revolução dos
transportes" sobre a justiça socioespacial
Transição regulatória no transporte por ônibus na
cidade do Rio de Janeiro ...........82
...........71
E
05
06
07
08
Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e
neoliberalização ...........56
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
LIVROS, TESES E DISSERTAÇÕES
09
Olimpíada Rio 2016: para o benefício de quem?
Entrevista com Christopher Gaffney
...........89
Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos
Humanos no Rio de Janeiro
........104
10
JOGOS OLÍMPICOS
RESISTÊNCIA POPULAR
E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
ENTREVISTA
AP
APRESENTAÇÃO
D
Figura 1 - Praça Mauá, no Centro do Rio de Janeiro: símbolo do Porto Maravilha
esde o momento em que foi anunciada a escolha do Rio de
Janeiro como sede das Olimpíadas, os discursos oficiais
enunciados pela classe política e por parte da grande imprensa
passaram a destacar a grande oportunidade que o megaevento
esportivo iria trazer para a cidade. Com ela, a cidade seria
contemplada por investimentos capazes de enfrentar graves problemas, como o da
mobilidade urbana e o da recuperação de espaços degradados para a habitação,
comércio e turismo, como no caso da região portuária. Dessa maneira, havia nesses
discursos a promessa do “legado olímpico” para toda a população, o que estava bem
claro no Dossiê de Candidatura da cidade:
Os Jogos do Rio 2016 serão fundamentais para antecipar a realização
de aspirações de longo prazo do Rio de Janeiro, aprimorando o
tecido social, físico e ambiental da cidade, um processo que já está
em andamento graças à própria candidatura aos Jogos de 2016. 1
Porém, às vésperas do início dos Jogos Rio 2016, a realidade é outra. No caso da
mobilidade, o poder público investiu, por exemplo, R$ 19 bilhões em 16 quilômetros
de metrô para atender a menos de 1% da população da cidade – ou seja, cerca de
300 mil pessoas. Só o município do Rio de Janeiro tem 6,4 milhões de pessoas. Já o
Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), que liga o Aeroporto Santos Dumont à Rodoviária
Novo Rio, saiu ao custo de R$ 1,5 bilhão, com R$ 600 milhões vindos de recursos
públicos. Enquanto isso, a maior concentração da população do Rio está na Zona
Oeste (41%) e Norte (36,5%), justo as regiões com o maior gargalo de transporte de
massa para o acesso ao Centro da cidade (onde estão concentrados grande parte
dos postos de trabalho).
1
Disponível
em:
<https://www.rio2016.com/sites/default/files/parceiros/dossie_de_
candidatura_v1.pdf>. Acesso em 2 ago. 2016.
5
A Prefeitura do Rio tem argumentado a favor dos investimentos nos corredores
de Bus Rapid Transit (BRT) como representativos de uma solução de transporte para
as classes populares. No entanto, os fatos e análises têm apontado para problemas
frequentes no novo sistema — acidentes e superlotação —, como também para o
favorecimento da construção de uma nova centralidade dentro do município, localizada
na Barra da Tijuca. As classes populares têm sido estimuladas a irem trabalhar na
Barra, servindo de mão de obra barata para uma região que almeja o símbolo de
centro de negócios e de empreendedorismo no Brasil. Enquanto isso, as barreiras
para o acesso a outras áreas do Rio de Janeiro foi ampliado por meio de um processo
de racionalização das linhas de ônibus.
No caso da Região Metropolitana do Rio, ao que se sabe, foi esquecida do
projeto olímpico. As linhas de trem do Grande Rio, por exemplo, atendem a cerca de
750 mil passageiros por dia e possuem 270 quilômetros de trilhos, com 102 estações.
Além disso, estão presentes em 12 municípios, onde há 9 milhões de habitantes. No
entanto, não receberam investimentos efetivos para recuperação do seu sistema. As
poucas estações reformadas estão todas no entorno de equipamentos olímpicos.
Já no caso dos investimentos para recuperação de espaços degradados, o Projeto
Porto Maravilha serve como melhor símbolo deste novo ciclo de mercantilização das
cidades brasileiras, caracterizado pela estratégia de renovação urbana. Trata-se de
uma estratégia capitaneada pela progressiva elitização de certas áreas da cidade
marcadas pela centralidade social, política e econômica, e pela simultânea expulsão
das classes populares que residiam anteriormente nesses mesmos locais.
Tal processo tem sido evidenciado no contexto da realização das Olimpíadas,
no qual a Prefeitura do Rio de Janeiro aparece direta e indiretamente envolvida. Seja
atuando na promoção da gentrificação, seja favorecendo a eliminação os obstáculos
políticos e econômicos existentes para tal, a Prefeitura do Rio de Janeiro tem tornado
possível a realização das Olimpíadas especialmente através do empoderamento dos
mecanismos de mercado.
Em suma, as profundas transformações em curso na dinâmica urbana da cidade
6
do Rio de Janeiro envolvem, de um lado, novos processos de mercantilização da
cidade e, de outro, novos padrões de relação entre o poder público e o setor privado,
caracterizados pela subordinação do poder público à lógica do mercado.
Para analisar esse processo e subsidiar o debate sobre o “legado real” dos
megaeventos esportivos para o Brasil e para o Rio de Janeiro, a Rede INCT
Observatório das Metrópoles lança o Dossiê O que está em jogo nestes Jogos?
Olimpíadas 2016 e a mercantilização da cidade do Rio de Janeiro. A publicação,
em versão bilíngue (português e inglês), é destinada tanto à comunidade científica
nacional e internacional como aos jornalistas brasileiros e estrangeiros e à sociedade
civil.
Na primeira seção, este Dossiê apresenta análises sobre o processo de
neoliberalização das cidades brasileiras no contexto dos megaeventos esportivos, e
a disputa entre o chamado liberalismo urbano e o ideário do direito à cidade.
No artigo A gentrificação como estratégia de neoliberalização das cidades
brasileiras, Orlando Alves dos Santos Jr. mostra que o golpe político institucional
em curso no Brasil representa uma nova inflexão na política urbana brasileira, desta
vez de caráter conservador. O autor tece uma análise histórica das políticas urbanas
brasileiras — do modelo inicial de urbanismo segregador, passando pelo período da
contrarreforma dos governos Collor de Mello e FHC, baseados na agenda neoliberal,
até o período progressista, a partir de 2003, com a criação do Ministério das Cidades
— para mostrar que a coalizão conservadora almeja o poder com o propósito de
aprofundamento do paradigma da cidade-mercado na política urbana brasileira. A
cidade deixa de ser tratada como totalidade, ao passo que a esfera pública também
deixa de ser a expressão do interesse coletivo.
Já no artigo Direito à Cidade S/A: a casa de máquinas da financeirização
urbana, Thiago Hoshino e Júlia Franzoni mostram que a financeirização do espaço
é uma prática (ou melhor, uma racionalidade prática) associada ao neoliberalismo
como “nova razão do mundo”. Segundo os autores, muito do que era o chão de fábrica
passa a ser o chão das cidades e, agora, são os próprios espaços e seus sujeitos
7
aqueles transformados em máquina de extrair mais-valia. Fruto de uma urbanização
segregadora, à cidade tem se somado um conjunto de ameaças legislativas de viés
especulativo cujo intuito e marca registrada é a tentativa de transformar o espaço
urbano num ativo financeiro sempre mais rentável.
Ainda integram essa parte outros dois artigos relacionados ao tema “Jogos
Olímpicos 2016 e a mercantilização do Rio de Janeiro”, cujo foco são as obras e
projetos que integram o Projeto Rio Olímpico relacionados à infraestrutura —
equipamentos esportivos, transporte e renovação urbana —, e mais a análise dos
atores envolvidos no processo, recursos financeiros (matriz financeira), transparência
pública e governança urbana.
No artigo Investimentos e Parcerias Público-Privadas: a urbanização
neoliberal da Cidade Olímpica, Larissa Lacerda, Mariana Werneck, Orlando Alves
dos Santos Jr. e Patrícia Novaes analisam os investimentos previstos na preparação
dos Jogos Olímpicos. Os autores põem em evidência que a participação pública
supera a participação privada nos investimentos realizados para a Olimpíada 2016,
contrariando o que vem sendo divulgado pela Prefeitura do Rio de Janeiro.
O estudo apresenta ainda de que maneira os investimentos no território estão
distribuídos espacialmente, apontando para um processo de reestruturação urbana
da cidade que caminha em três direções: no fortalecimento da centralidade da Zona
Sul; na revitalização da centralidade, considerada decadente, da Zona Portuária; e
na criação de uma nova centralidade na Barra da Tijuca. Segundo os autores, todos
os casos apontam para processos de elitização e gentrificação, acompanhados de
remoções das classes populares. Ao final, discutem como este tipo de desenvolvimento
da reestruturação urbana também estaria sendo acompanhado da adoção e difusão
de um novo padrão de governança empreendedorista neoliberal fundada no
estabelecimento de Parcerias Público-Privadas (PPPs), que transfere para o setor
privado a gestão de equipamentos e espaços públicos.
Já no artigo Transporte urbano na cidade do Rio de Janeiro: uma reflexão
sobre a racionalização da frota de ônibus, os pesquisadores Juciano Martins
8
Rodrigues e Pedro Paulo Bastos analisam o plano de reorganização do sistema
de ônibus pela Prefeitura do Rio, implantado em 2015. Tendo como foco espacial a
Zona Sul carioca, área de alta concentração de renda na metrópole, o plano previa a
eliminação de 28 linhas e o seccionamento de 21 itinerários que passassem pelo local.
Segundo os autores, a ação de racionalização da frota tem impactado negativamente
no cotidiano dos usuários oriundos das regiões mais periféricas, acirrando ainda mais
as desigualdades sociais e a segregação urbana.
Na segunda seção do Dossiê — Livros, Teses e Dissertações —, apresentamos
resultados de pesquisas da Rede INCT Observatório das Metrópoles sobre o tema
dos megaeventos esportivos.
No estudo Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização,
Mariana Werneck demonstra que o projeto de revitalização da zona portuária do Rio
de Janeiro se insere em um processo global de financeirização da cidade, marcado,
no caso do Porto Maravilha, por um arranjo inédito que combina parcerias públicoprivadas e instrumentos do mercado de capitais. Trata-se, portanto, de um caso
que determina um novo padrão de relação entre o poder público e o setor privado,
inaugurando, por um lado, um novo modelo de gestão da cidade, e, por outro, acirrando
as desigualdades socioespaciais dentro do Rio.
Em seguida, a publicação apresenta a resenha do e-book Porto Maravilha: o
imaginário da revitalização, do geógrafo Nelson Diniz. O estudo assinala que o
Projeto Porto Maravilha, concebido pelo discurso do “imaginário da revitalização” a
partir de modelos como o do Porto de Baltimore (EUA) e o de Port Vell (Barcelona),
tem grande proximidade com o modelo clássico de renovação urbana, definido pela
demolição de imóveis, pelo rompimento com a comunidade local, e pelo uso de
recursos públicos para gerar benefícios a investidores privados.
Nos discursos oficiais, as transformações urbanas da “Cidade Olímpica” irão
gerar impactos positivos para os seus habitantes e para aqueles residentes na Região
Metropolitana. Neste contexto, os investimentos em infraestruturas de mobilidade
foram os mais importantes, representando 55% dos investimentos realizados tanto
9
para a Copa do Mundo de 2014, como para as Olimpíadas 2016. Em Olimpíadas 2016
e os impactos da “revolução dos transportes” sobre a justiça socioespacial,
o pesquisador Jean Legroux apresenta os resultados de sua tese desenvolvida em
colaboração acadêmica entre a Université Lyon 2 e o IPPUR/UFRJ, uma contribuição
inovadora ao avaliar, através de uma análise multiescalar e multicritério, os impactos
dos projetos de transporte sobre a justiça socioespacial no Rio de Janeiro. O trabalho
demonstra que os impactos da “revolução dos transportes” provocaram mudanças
que não rompem com o modelo de mobilidade rodoviarista brasileiro, tampouco com
as lógicas de segregação da cidade neoliberal.
Dando continuidade ao tema da mobilidade, inclui-se a resenha do e-book
Transição regulatória no transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro,
do geógrafo Igor Pouchain Matela. A obra toma como ponto de partida o ano de 2010,
quando a Prefeitura do Rio realizou pela primeira vez licitação para estabelecer a
concessão privada de todo o sistema de transporte de ônibus da cidade. Com isso,
Matela procura mostrar que tal ação faz parte do processo de neoliberalização das
cidades brasileiras, não representando uma ruptura, mas sim uma transição regulatória
para um novo ciclo de acumulação do setor.
O Dossiê O que está em jogo nestes Jogos? Olimpíadas 2016 e a mercantilização
da cidade do Rio de Janeiro traz, ainda, uma entrevista com o pesquisador
estadunidense Christopher Gaffney, quem tem realizado pesquisas no Brasil
nos últimos 12 anos, monitorando e avaliando os impactos sociais e urbanos dos
megaeventos esportivos no Brasil e no Rio de Janeiro. Entre 2009 e 2014, Gaffney
manteve o blog Hunting White Elephants, que narrou as provações e agruras de uma
cidade contorcendo-se às exigências do espetáculo. Ele também colaborou com a
Rede INCT Observatório das Metrópoles, participando do projeto “Metropolização e
Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016”.
Nessa entrevista, o pesquisador defende que os megaeventos esportivos
mundiais, como a Copa do Mundo FIFA e os Jogos Olímpicos, transformaram-se
em um modelo de negócio na era globalizada responsável pela atração de fluxos
financeiros, pela reestruturação de circuitos de circulação e pela acumulação local.
10
Afirma, também, que os Jogos Olímpicos Rio 2016 representam mais uma etapa desse
modelo formado pela coalizão de interesses entre a classe política, a elite econômica
local e os fluxos de capital internacional. Em síntese, alega ser um processo com
poucos ganhadores e muitos perdedores.
Para fechar este Dossiê, a seção intitulada “Resistência Popular” apresenta o
outro Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro,
documento mais completo referente à luta dos movimentos sociais, organizações
populares, organizações não governamentais e sociedade civil contra as violações de
direitos humanos e os impactos das obras no Rio para a realização dos megaeventos
esportivos.
Dentre as ações de resistência, um dos destaques é o “Mapa da Exclusão — Rio
2016”, assinalando o verdadeiro legado das Olimpíadas no Rio de Janeiro, reunindo
informações sobre as comunidades removidas, as favelas ocupadas, os crimes
ambientais e as obras repletas de irregularidades. O mapa aponta, por exemplo,
todos os locais onde ocorreram remoções na cidade desde 2009, resultando em um
processo de retirada de aproximadamente 77 mil pessoas de suas casas.
O “Mapa da Exclusão” mostra também o impacto ambiental dos jogos, denunciando
que nenhuma meta de despoluição foi cumprida. Do mesmo modo, aponta o processo
de privatização dos equipamentos esportivos; a falta de transparência das grandes
obras de intervenções urbanas, como o Porto Maravilha, no qual as empresas do
consórcio estão envolvidas em denúncias na operação Lava Jato; e as violações ao
trabalho, com a perseguição aos trabalhadores tradicionais de rua — os camelôs — e
a morte de 11 pessoas durante as obras dos Jogos desde 2013.
Coordenação
Breno Procópio
Pedro Paulo Machado Bastos
Juciano Martins Rodrigues
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
11
ARTIGOS
01
A gentrificação como
estratégia de
neoliberalização das cidades
brasileiras
Orlando Alves dos Santos Junior
Sociólogo, Doutor em Planejamento Urbano e Regional, professor do Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), pesquisador
do Observatório das Metrópoles – CNPq
[email protected]
Artigo publicado no site do Le Monde Diplomatique Brasil, no dia 2 de junho de 2016.
Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3227
MEGAEVENTOS
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
O
golpe político institucional ocorrido no país com o
afastamento ilegítimo da presidenta Dilma Rousseff
representa uma nova inflexão na política urbana brasileira,
desta vez de caráter conservador. No entanto, ao invés de
se considerar o momento de afastamento da presidenta,
decorrente da abertura do processo de impeachment, como um evento isolado, há
que se considerar o golpe político do bloco conservador como um processo que já
vinha sendo arquitetado e implementado no interior do próprio governo Dilma. Isto
fica evidente na mudança do posicionamento dos partidos e políticos, considerados
“aliados”, no momento da votação no Congresso Nacional.
Para entender o golpe político e seus impactos na política urbana, portanto, há
que se retroceder um pouco na história recente e identificar as inflexões ocorridas
neste processo.
No Brasil, o final da década de 1980 e a década de 1990 representaram uma
verdadeira guinada contrarreformista. Com o início do governo Collor de Melo (1989),
passando pelos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), uma
agenda de reformas econômicas estruturais de caráter neoliberal começou a ser
implementada com a adoção de políticas de liberalização econômica e a privatização
de empresas estatais, marcando um novo ciclo de mercantilização das cidades. Como
resultado do modelo de desenvolvimento adotado, as cidades brasileiras chegaram
ao ano 2000 marcadas por contradições - que, como sabemos, têm raízes históricas
– e caracterizadas por profundas desigualdades nos padrões de qualidade de vida,
14
cidadania e inclusão social. Naquele contexto, as condições de vida nas grandes
urbanos se tornavam polos econômicos marcados pela fragmentação, dualização,
MEGAEVENTOS
violência, poluição e degradação ambiental.
As raízes desse processo estão ligadas à modernização excludente do Brasil.
Como afirma Ermínia Maricato, “é com o início da República que se afirma o
urbanismo modernista segregador” 1. Mas é a partir de 1950, com a intensificação
do processo de industrialização, que vamos verificar as mudanças mais profundas
no padrão de urbanização brasileira, em um processo que combina um gigantesco
processo migratório do campo para as cidades, metropolização, expansão da classe
média e assalariamento da mão-de-obra. De fato, “o aparato legal urbano, fundiário
e imobiliário, que se desenvolveu na segunda metade do século XX, forneceu base
para o início do mercado imobiliário fundado em relações capitalistas e também para
a exclusão territorial” (MARICATO, op. cit. p. 38).
No entanto, a partir da década de 1990, pode-se verificar mudanças no padrão de
urbanização brasileira em grande parte decorrentes das transformações no capitalismo
internacional e das formas de inserção do Brasil no processo de globalização, tal como
tem indicado a literatura nacional e internacional. De um lado, o aprofundamento da
periferização das grandes metrópoles, com o aumento populacional nos municípios
da fronteira metropolitana e expansão das favelas e loteamentos irregulares; de outro,
o aparecimento de núcleos de classe média e condomínios fechados na periferia,
tornando o espaço urbano mais complexo, desigual e heterogêneo. A questão é
que o modelo de produção e gestão das cidades brasileiras adotado neste período
foi resultado da combinação de processos de inserção seletiva de regiões e áreas
competitivas e dinâmicas integradas aos circuitos internacionais de capitais,
concentração populacional em áreas metropolitanas, segregação urbana e exclusão
socioeconômica, produzindo uma nova ordem socioespacial dividida entre ricos e
pobres, entre cidadãos e não cidadãos.
1
MARICATO, Ermínia. Metrópole na Periferia do Capitalismo: ilegalidade, desigualdade e
violência. São Paulo: Editora Hucitec, 1996, p. 38.
15
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
cidades, principalmente nas metrópoles, estavam se deteriorando e os centros
Ao mesmo tempo, em termos institucionais, a política urbana não era assumida
estratégico para as cidades brasileiras envolvendo, de forma articulada, as intervenções
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
MEGAEVENTOS
como uma política de Estado. Os sucessivos governos nunca tiveram um projeto
no campo da regulação do solo urbano, da habitação, do saneamento ambiental, e da
mobilidade e do transporte público. Sempre de forma fragmentada e subordinada à
lógica de favorecimento que caracterizava a relação intergovernamental, as políticas
urbanas foram de responsabilidade de diferentes órgãos federais. Tomando como
referência a política de habitação, vale a pena registrar que, de 1985 a 2002, esteve
sob a responsabilidade de diferentes Ministérios: de 1985 a 1987, do Ministério do
Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente; de 1987 a 1988, do Ministério da Habitação,
Urbanismo e Meio Ambiente; de 1988 a 1990, do Ministério do Bem Estar Social; de
1990 a 1995, do Ministério da Ação Social; de 1995 a 1999, da Secretaria de Política
Urbana, vinculada ao Ministério do Planejamento; de 1999 a 2002, da Secretaria
Especial de Desenvolvimento Urbano, vinculada à Presidência da República.
Assim, podemos dizer que, em 2003, a política urbana viveu uma nova inflexão,
desta vez de caráter progressista, com a eleição do presidente Lula. A criação do
Ministério das Cidades representou uma resposta a um vazio institucional, de ausência
de uma política nacional de desenvolvimento urbano comprometida com a construção
de um novo projeto de cidades sustentáveis e democráticas. Por isso, a criação
desse Ministério, teria expressado o reconhecimento por parte do governo federal
da questão urbana como uma questão nacional a ser enfrentada por macro políticas
públicas. De fato, grande parte da competência em matéria de política urbana está
hoje descentralizada, principalmente depois da aprovação do Estatuto da Cidade, em
2001, que consolidou e fortaleceu o papel dos municípios no planejamento e na gestão
das cidades. No entanto, os problemas urbanos – envolvendo a questão habitacional,
o saneamento ambiental, a mobilidade e os transportes – têm dimensões que
necessitam de tratamento nacional, seja pela sua importância ou pela sua amplitude,
nos quais o governo federal continua tendo um papel relevante. Em especial no que
se refere às metrópoles, percebe-se a importância de uma intervenção nacional, tanto
na definição de diretrizes como no desenvolvimento de planos e projetos, de forma
a impulsionar políticas cooperadas e integradas que respondam à complexidade da
16
Analisando em uma perspectiva histórica, pode-se dizer que tanto a criação do
MEGAEVENTOS
Ministério das Cidades como a implantação do Conselho das Cidades, ambos em
2003, e a realização das conferências nacionais das cidades, em 2003 e 2005, são
conquistas do movimento pela reforma urbana brasileira que, desde os anos 1980,
vem construindo um diagnóstico em torno da produção e gestão das cidades e
propondo uma agenda centrada (a) na institucionalização da gestão democrática das
cidades; (b) na regulação pública do solo urbano com base no princípio da função
social da propriedade imobiliária e da função social da cidade; e (c) na inversão de
prioridade no tocante à política de investimentos urbanos, voltado para a promoção
da justiça socioespacial.
Na perspectiva da agenda da reforma urbana, a realização das conferências
nacionais, bem como a implantação e o funcionamento do Conselho das Cidades
deveria criar uma nova dinâmica para a gestão das políticas urbanas, com
a participação do poder público e dos movimentos populares, organizações
nãogovernamentais, segmentos profissionais e empresariais. E, de fato, podemos
considerar bastante significativas as políticas aprovadas a partir de 2003: o Plano
Nacional de Saneamento Ambiental; o Plano Nacional de Habitação; a criação do
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, do Sistema Nacional de Habitação
de Interesse Social; da Política Nacional de Mobilidade Urbana; e do Programa Minha
Casa Minha Vida Entidades, são exemplos de políticas que visaram desmercantilizar
as cidades e promover a função social da propriedade e a função social da cidade.
Apesar de a política urbana ser uma atribuição dos municípios, é preciso considerar
que este novo arcabouço institucional nacional criava um ambiente propício para a
adoção de políticas progressistas no âmbito local.
Mas os avanços institucionais são apenas uma das dimensões desse processo,
que envolveu contradições e lutas cotidianas. De fato, é possível perceber ao longo
deste período uma efervescência dessas lutas, com o incremento das ocupações de
terras urbanas e prédios vazios, nas manifestações públicas pelo acesso aos serviços
de saneamento ambiental e pelo barateamento do transporte público, nas ações de
17
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
problemática urbana-metropolitana no país.
pressão pela melhoria dos serviços de saúde e educação, por lazer e cultura, entre
urbanos comuns e maior democracia na gestão das cidades.
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
MEGAEVENTOS
outras tantas reivindicações e conflitos urbanos em torno da reivindicação de bens
A questão é reconhecer que nesse processo que combinou lutas sociais, políticas
institucionais e reflexões conceituais se desenvolveu um novo paradigma, ou mais
precisamente, as bases de um novo paradigma, identificado com o ideário do direito
à cidade, que se pode denominar da cidade-direito, caracterizado pela construção de
diagnósticos críticos da questão urbana brasileira e pela proposição de estratégicas
para um projeto alternativo de cidades.
No entanto, a efetivação deste novo arcabouço institucional e das políticas
urbanas nacionais identificadas com este paradigma encontrou diversas barreiras e
muitos entraves, não apenas nos setores conservadores fora do governo, o que já
seria esperado, mas na coalizão de poder dentro do governo, configurando as bases
para o golpe político institucional de 2016, e para a nova inflexão conservadora na
política urbana neste contexto. Este processo tem início exatamente na substituição
do ministro Olívio Dutra (PT), em julho de 2005. A partir daí, o Ministério das Cidades
seria ocupado pelo PP (Márcio Fortes de Almeida, Mário Negromonte, Aguinaldo
Ribeiro e Gilberto Occhi) e pelo PSD (Gilberto Kasab), partidos que votaram pelo
afastamento da presidenta Dilma e pela abertura do processo de impeachment, até
que o presidente interino Michel Temer entregasse a pasta para o PSDB, que indicou
o ministro Bruno Araújo.
A partir da captura do Ministério das Cidades pelos setores conservadores,
pode-se dizer que a política urbana nacional vem sendo progressivamente marcada
por quatro grandes políticas desenvolvidas pelo governo federal: (i) o PAC – programa
de Aceleração do Crescimento, lançado em 2007, com grande impacto sobre as
intervenções nas cidades, sobretudo no campo da mobilidade, do saneamento e da
habitação; (ii) o Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, destinado a
promover a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais, ou a requalificação
de imóveis urbanos, para famílias com renda mensal de até R$ 5.000,00; (iii) o projeto
da Copa do Mundo de Futebol 2014 e das Olimpíadas 2016, com intervenções
18
estruturais vinculadas à realização desses megaeventos em 12 cidades brasileiras,
Privadas – PPPs para a gestão de equipamentos urbanos, impulsionada em grande
MEGAEVENTOS
medida pela realização dos megaeventos esportivos, que promoveu a adoção deste
modelo de gestão em estádios de futebol, aeroportos, sistemas de mobilidade e
gestão de espaços urbanos vinculados à operações urbanas consorciadas.
Impulsionado por essas políticas, as cidades brasileiras passaram a ser palco
de grandes intervenções com abundância de recursos para obras de infraestrutura
e de reestruturação das suas áreas urbanas, em especial das suas áreas centrais,
enquanto que os instrumentos de promoção da função social da propriedade previstos
no Estatuto da Cidade ficavam praticamente sem efetividade, encontrando diversas
barreiras políticas e institucionais na sua implementação.
Em especial no caso dos grandes projetos urbanos, constata-se que as
intervenções implementadas nas cidades brasileiras, em geral, não são acompanhadas
por políticas de promoção e garantia do direito à cidade, especialmente do direito
à moradia dos cidadãos situados nas áreas de intervenção desses projetos, que
sofrem diretamente seus efeitos perversos. Assim, em que pese a necessidade
de reconhecer, durante a primeira década de 2000, avanços gerais no país no que
diz respeito à política nacional de habitação, saneamento ambiental e mobilidade
urbana, percebe-se também graves situações de violação do direito humano à
cidade, expressas, sobretudo, no alto número de remoções vinculados às grandes
intervenções urbanas implementadas, em especial, aquelas vinculadas à Copa do
Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016.
A inflexão conservadora já vinha mostrando sua força nestes projetos, e as
intervenções urbanas implementadas já expressavam claramente um novo ciclo
de mercantilização das cidades, com a entrega de seus espaços mais rentáveis e
valorizados à iniciativa privada e transferência da população pobre para regiões cada
vez mais afastadas do centro, muitas vezes situadas em áreas de risco. Neste novo
ciclo de mercantilização das cidades, pode-se observar a progressiva adoção da
gentrificação como estratégia de renovação urbana, entendida como a progressiva
19
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
em especial no Rio de Janeiro; e (iv) a difusão do modelo das Parcerias Público-
elitização de certas áreas da cidade marcadas pela centralidade social, política e
mesmas áreas.
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
MEGAEVENTOS
econômica, e a simultânea expulsão das classes populares que residiam nestas
Tal processo é evidenciado no contexto da realização das Olimpíadas, no
qual a Prefeitura do Rio de Janeiro aparece diretamente envolvida na promoção
da gentrificação, atuando tanto na retirada dos obstáculos políticos e econômicos
existentes, tornando-a possível através dos mecanismos de mercado, como
diretamente, promovendo a remoção das comunidades de baixa renda e sua
transferência para localidades mais distantes. Nesse sentido, os processos de
gentrificação deixam de ser apenas o resultado da lógica do mercado imobiliário, e
passam a configurar uma estratégia de classe, da coalizão dominante, envolvendo
uma particular interação entre o poder público e os agentes privados, na qual são
adotadas políticas e implementadas ações voltadas para a sua promoção em áreas
consideradas atraentes para o capital imobiliário e grandes investidores.
Mas os setores conservadores não se mostravam satisfeitos com as concessões
feitas em nome do direito à cidade e o golpe político institucional cria as novas
condições para esta nova inflexão, de aprofundamento do ciclo de mercantilização
das cidades. Nas primeiras semanas após o golpe, o governo do presidente interino
Michel Temer anunciaria mudanças políticas radicais, com cortes consideráveis nas
políticas sociais, entre os quais no programa Bolsa Família, a suspensão do edital
do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades (PMCMV-Entidades - programa
complementar do Programa Minha Casa Minha Vida voltado para a construção
de moradia pelas cooperativas e entidades populares), e a anúncio da criação do
Programa de Parcerias de Investimento (PPI), que tem por objetivo promover a
privatização e o investimento do setor privado em projetos públicos.
Com o golpe, a perspectiva é de aprofundamento do paradigma da cidademercado na política urbana, envolvendo a difusão de estratégias de empresariamento
urbano, city marketing, e certos modelos de planejamento estratégico. A política
urbana deve ser progressivamente transformada em relações de mercado, no qual
ganha quem tem maior poder para impor os lucros e os custos da ação do poder
20
público. Nessa concepção, a participação estaria fundada no reconhecimento dos
a construção de uma esfera pública que seja a expressão do interesse coletivo.
MEGAEVENTOS
A cidade deixa de ser tratada como totalidade e a noção de cidadania perde sua
conexão com a ideia de universalidade.
Nesse cenário, os avanços decorrentes do ideário do direito à cidade e do
paradigma da cidade direito, que foram conquistados através das lutas das classes
populares e das políticas institucionais progressistas ao longo dos últimos anos,
estão em risco de serem perdidos pela hegemonia do pensamento neoliberal. No
contexto das contradições desta inflexão conservadora, cabe avaliar a natureza dos
novos conflitos urbanos decorrentes da implementação deste projeto excludente e a
capacidade das forças progressistas de se articularem para resistir contra o golpe e
lutarem pelo direito à cidade como um bem comum.
21
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
agentes como clientes-consumidores, portadores de interesses privados, impedindo
02
Direito à Cidade S/A:
a casa de máquinas da
financeirização urbana
Thiago A. P. Hoshino
Associado da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos,
pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles, doutorando em direito do
PPGD/UFPR e professor universitário
Julia Ávila Franzoni
Advogada popular, associada da Terra de Direitos – Organização de Direitos
Humanos, pesquisadora do Indisciplinar-UFMG, doutoranda em direito da
UFMG e professora de Direito Urbanístico
Texto publicado originalmente em julho de 2016 na Série Especial - O Direito à Cidade
em Tempos de Crise, parceria do Le Monde Diplomatique Brasil e do INCT
Observatório das Metrópoles.
dos pés à cabeça. Da cabeça, mais obviamente, porque se faz
imprescindível neste contexto revisitar a vasta tradição teórica
que, desde Henri Lefebvre, passando por Milton Santos, tem se
debruçado sobre o conceito, politizando a relação entre espaço,
estado e cidadania. Dos pés, com grave urgência, porque é a partir dos efeitos mais
concretos e nefastos do avanço da precarização e da mercantilização do urbano que
a tão afaimada “crise” se instala nos territórios, (de/con)formando o espaço vivido
pelos pobres e marginalizados da cidade.
Pés e cabeça “metonimizam”, ainda, a necessidade de entrelaçamento da práxis
com a teoria, onde o discurso (ou melhor, o contra-discurso) tem a estratégica missão
de ecoar as experiências cotidianas de desigualdade socioespacial que eclodem
nas lutas travadas nas cidades brasileiras. Em tempos de crise, pés e cabeça devem
andar juntos para situar a conjuntura, trazendo-a à terra – afinal, trata-se de uma crise
encarnada – dando vez, assim, às vozes silenciadas e aos sujeitos invisibilizados no
território.
A financeirização do espaço é uma prática, ou melhor, uma racionalidade prática
associada ao neoliberalismo como “nova razão do mundo”. E, sob os auspícios de um
suposto “fim da história”, a financeirização é a única razão advogada como válida num
mundo colonizado pelo mercado. A cartilha, adaptável às diferentes escalas (global,
nacional, regional e local), combina um forte discurso legitimador um arcabouço
jurídico-político que lhe confere segurança e dispositivos institucionais garantidores
23
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
MEGAEVENTOS
P
ensar e pulsar o direito à cidade em tempos de crise é tarefa
de sua efetividade. A ontologia neoliberal financeira no espaço urbano é assim
compartilhada (com o mercado). Para combatê-la, no viés do direito à cidade em
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
MEGAEVENTOS
sumarizável: menos Estado, mais instrumentos jurídicos negociais e governança
comum, é necessário, antes de tudo, destrinchar seus modos de operação – ou seja,
incidir na casa de máquinas.
No nível do discurso, o enredo oficial combina a falência do welfare state com
a necessidade de autofinanciamento das políticas públicas urbanas – o velho/novo
conto das cidades como global players. E, a isso, no caso das grandes cidades, se
adicionam fabulações repletas de propaganda pró-legado, os “novos” extrativismos
urbanos do turismo, dos megaeventos eventos esportivos, dos grandes negócios e
projetos.
Tripudiando sobre a alardeada “crise” (que é, afinal de contas, permanente no
capitalismo), expande-se o domínio intensivo do capital – não só extensivo, visto
restarem poucas fronteiras geográficas a sucumbir – inclusive “para dentro de si”,
onde a forma urbana ganha evidente centralidade no girar a roda de produção
e acumulação de riquezas. O salto qualitativo da tecnologia do capital permite
que ele se (des/re)territorialize nas cidades e, entre elas, com maior velocidade e
flexibilidade, subjetivando-se num particular modo de vida urbano e determinando as
principais formas de organização e consumo da vida e da natureza no contexto da
financeirização. Sobra para a inventividade jurídica e institucional a função de resolver
o descompasso entre o aparato regulatório e as prementes demandas do capital,
redesenhando as relações de produção. Muito do que era o chão de fábrica passa
a ser o chão das cidades e, agora, são os próprios espaços e seus sujeitos que se
tornam a máquina de extrair mais-valia.
Tudo isso ocorre, mas não sem resistências. Por trás do mote “cidades para as
pessoas, não para o capital”, persiste uma tensão entre valor-de-uso e valor-de-troca,
dois modos de apropriação do espaço urbano cujos portadores invocam, cada um
à sua maneira, certo tipo de direito à cidade: o direito de frui-la coletivamente ou o
“direito” de explorá-la cumulativamente.
24
Essa disputa sobre o próprio sentido e sobre os usos estratégicos do(s) direito(s),
e as contestações aos retrocessos que assomam no horizonte próximo. À cidade
MEGAEVENTOS
historicamente limitada - Cidade Ltda. –, fruto de uma urbanização segregadora,
soma-se um conjunto de ameaças legislativas de viés especulativo – Direito® – cujo
intuito e marca registrada é a tentativa de transformar o espaço urbano num ativo
financeiro sempre mais rentável a despeito dos custos humanos dessa jogada: o
Direito à Cidade S/A.
CIDADE LTDA.
Sustenta a reinvenção corporativa das cidades um discurso corrente de crise
fiscal e inchaço estatal que descamba, rápido, para o empresariamento urbano e
para o planejamento estratégico (notoriamente market friendly) como panaceia rumo
à retomada do desenvolvimento econômico e da competitividade dos municípios
(sempre em face e em detrimento de outros municípios, vale lembrar).
Enquanto modelo de gestão, são três os pilares dessa fórmula que se quer
mágica: parceria público-privada, empreendedorismo e a ênfase na economia
política do lugar e não do território integral/integrado. No Brasil, a implementação
dessa receita, longe de ampliar o acesso “à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho
e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” e de assegurar a “justa distribuição
dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”, tem se mostrado um
verdadeiro entrave a essas diretrizes constitucionais e do Estatuto da Cidade.
A captura do público pelo privado, com progressiva flexibilização dos pactos
participativos esculpidos, por exemplo, no Plano Diretor; a assunção pelo Estado
dos riscos e despesas de vultosos empreendimentos, sem a respectiva distribuição
de seus ganhos; e o aprofundamento da cisão social por intervenções pontuais que
concentram ilhas globais num mar de exclusão são alguns dos efeitos perversos de
uma política urbana que responde mais aos vetores da financeirização do que aos da
democratização urbana. Financeirização que é, (in)justamente, um dos epicentros
25
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
da(s) cidade(s) e do direito à cidade atravessa as lutas sociais contemporâneas
distintivos do capitalismo tardio e implica em novas dinâmicas das “máquinas de
MEGAEVENTOS
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
crescimento” que se tornaram as cidades de nossos dias.
Mas se a face local do desenvolvimento geográfico desigual passa pelo
acirramento dos conflitos fundiários e das remoções em massa, pela privativazação
e gentrificação de parcelas expressivas do território, pela desregulação exigida pelos
megaeventos e grandes projetos urbanos, quais são, na prática, os instrumentos
acionados para tanto? E em que medida a conjuntura política nacional impõe novos
desafios e ameaças ao direito à cidade em comum, à cidade das e para as pessoas?
Nossa intuição é que os operadores da lei, que também operam a casa de máquinas
da financeirização urbana, têm mais a ver com tudo isso do que talvez gostariam de
admitir.
DIREITO®
Produz-se direito como se produz espaço: seletivamente. Mais do que isso, o
próprio direito produz e modifica o espaço, sobretudo ao estabelecer, ao menos como
virtualidade, os limites do uso e exploração do solo urbano em cada circunstância.
Simultaneamente, a lei inventa, neste espaço, valores-de-troca não previstos e, por
isso mesmo, é sempre alvo de conflito e contradição. Nesse limiar, e na contramão
do que se convencionou chamar a função social da propriedade e da cidade, uma
avalanche de funções societárias abriram brechas e forçaram passagem por meio de
alterações legais, nos últimos anos.
No Brasil, embora não seja novidade, a investida bifronte de desregulação e de
privatização de funções e bens públicos em nome da governança urbana ganhou
fôlego no marco dos megaeventos esportivos. Nessa toada, a Lei Geral da Copa
(Lei 12.663/2012) autorizou a delimitação de “áreas de restrição”, sintomaticamente
apelidadas de “zonas de exclusão”, nas cidades-sede. Dispositivos semelhantes
foram replicados na Lei Geral das Olimpíadas (Lei 13.284/2016), que entrou em vigor
em maio deste ano, demonstrando a intenção de se aplicar sobre a titularidade do
espaço urbano, sobretudo sobre o espaço público, a mesma lógica de copyright dos
direitos autorais. Eis o direito à cidade da FIFA, do COI e seus investidores como
26
Para além dos inúmeros impactos urbanísticos e violações de direitos humanos
MEGAEVENTOS
já denunciados, constam também do legado desses eventos medidas regressivas
de caráter mais permanente, aquilo que Ribeiro alcunhou de “reformas institucionais
mercantilizadoras”, como o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC).
Instituído pela Lei 12.462/2011, originalmente apenas para os jogos, as alterações do
RDC sobre o marco regulatório das licitações expandiram-se para outros programas
estatais, alcançando, no ano de 2015, quaisquer “obras e serviços de engenharia,
relacionadas a melhorias na mobilidade urbana ou ampliação de infraestrutura
logística” (art. 1º, VIII).
Não se restringindo, porém, às contratações e obras públicas, a sanha da
flexibilização tem-se valido de outros mecanismos jurídicos, como as Operações
Urbanas Consorciadas (OUC), hoje na linha de frente do urbanismo neoliberal. A
OUC do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, e a OUC Água Espraiada, em São Paulo,
bem ilustram esse cenário de drástica ruptura do tecido urbano e dos parâmetros
urbanísticos, com interesses e procedimentos que vêm sendo questionados pela
sociedade civil, pela academia e pelos órgãos de fiscalização. A confecção de planos
e índices específicos que desconsideram, via de regra, o zoneamento vigente,
também é a tônica de projetos como o do Cais José Estelita, na cidade do Recife,
desencadeando controvérsias muitas vezes judicializadas. No caso das OUCs,
especialmente, o emprego dos Certificados de Potencial Construtivo (CEPACs),
comercializados nas bolsas de valores para aterrizarem como metros quadrados
construídos nalguma parte, refletem a sombra financeirizada da cidade que extrapola
e sobrepõe-se mesmo ao interesse rentista tradicional dos proprietários da terra. Um
novo pool de donos virtuais da cidade está em emergência.
Poder-se-ia admitir que o Plano Diretor, levado a sério como ponto de gravitação
do ordenamento territorial, fosse um filtro para este tipo de fragmentação, não
estivesse ele mesmo em risco com o Projeto de Lei do Senado 667/2015. Em suma, de
instrumento básico da política urbana, pretende-se convertê-lo em mero documento
de intenções para as políticas setoriais, desnaturando a previsão do art. 182 da
27
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
marca registrada.
Constituição de 1988. Isso sem mencionar a Proposta de Emenda à Constituição
“celeridade” e “desburocratização”, parece desconsiderar por completo catástrofes
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
MEGAEVENTOS
nº 65, tiro de misericórdia no licenciamento ambiental que, em nome de supostas
(anunciadas, diga-se de passagem) como a de Mariana, município do Estado de
Minas Gerais1 , propondo que se autorizem empreendimentos de impacto com a
simples apresentação do estudo prévio e antes mesmo de sua análise pelo poder
público.
Sem embargo, o pacote de retrocessos em curso é ainda mais acachapante.
Entre os instrumentos de financeirização da cidade manejados pelos “parceiros da
exclusão”, assistimos à ampliação de poderes dos parceiros da desapropriação.
Vide a confusão entre interesses públicos e privados da Medida Provisória 700/2015
a qual, conquanto não tenha sido convertida em lei, expressa bem a tendência
disseminada de delegação das funções e prerrogativas estatais mais básicas, como
o poder expropriatório. Em nada aleatória, ela casa com as demandas dos agentes de
mercado por concessões urbanísticas e Parcerias Públicas-Privada (PPPs) em novos
ramos de investimento, como o de habitação de interesse social, um dos poucos
que ainda sobrevive, parcialmente, sob controle público (muito embora existam já
uma infinidade de sociedades de economia mista e agências de diversas naturezas,
também neste setor). Outrossim, apesar de seus inegáveis avanços, o Estatuto da
Metrópole (Lei 13.089/2015) carreou um dúbio permissivo para OUCs e PPPs de
caráter interfederativo. Se não vigiados, estas também poderão tornar-se dínamos de
financeirização e de monopolização de serviços em nível regional.
Para o maior gozo privatizador, a Medida Provisória 727/2016, um dos atos
inaugurais do governo interino – governo de crise –, visa, segundo sua exposição
de motivos, “à ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa
privada para a viabilização da infraestrutura brasileira”. Quem conta um conto aumenta
um ponto: o país estaria “passando por uma das piores crises econômicas de sua
história” e “para sair desse ciclo vicioso, o Brasil precisa, em caráter de urgência,
1
Em 5 de novembro de 2015, no município de Mariana (MG), houve o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco no Rio Doce, sendo considerado um dos piores acidentes da mineração
brasileira. O rompimento da barragem provocou uma enxurrada de lama que devastou o distrito de
Bento Rodrigues, incitando sérios prejuízos materiais e ambientais.
28
implementar medidas que estimulem o crescimento da economia”. Quais seriam
concessões federais, com apoio de fundo específico e administração por conselho
MEGAEVENTOS
bastante restrito (sem cadeira para o Ministério das Cidades, por exemplo) que vai
de encontro frontal à gestão democrática. Sobremaneira preocupante, no diploma,
o rito especial para “liberação de empreendimentos” do PPI, em regime “prioritário
nacional”.
Estaríamos diante, tão somente, de uma pauta neodesenvolvimentista? Ou,
como parece ser o caso, haveria mais coisas entre o Estado e o mercado do que
supõe nossa vã analogia? Os impactos desses novos direitos® são incomensuráveis
e recuam vários passos atrás na luta pela reforma urbana brasileira.
DIREITO À CIDADE S/A
A confecção sob encomenda dessa juridicidade experimental combinada a
produtos financeiros criativos tendentes a abocanhar e disciplinar a produção do
espaço desde a lógica da rentabilidade vem sendo objeto de destaque da literatura
contemporânea. Como observa Raquel Rolnik , a “colonização da terra e da moradia
na era das finanças” submete-se a um complexo imobiliário-financeiro que, em sua
versão brasileira, implica numa simbiose também com fundos públicos, como os de
pensão dos trabalhadores. A mesma voracidade neoliberal que pretende converter
toda a natureza num grande ativo financeiro – vide os prodígios da nova economia
verde, veiculados no PL 312/2015 –, fazendo do meio ambiente não um direito, mas
um serviço a merecer contraprestação econômica e créditos (de carbono), age sobre
o meio urbano. Se antes o planejamento urbano fora a tática de Estado para dotar o
país das condições gerais de industrialização/modernização, atualmente, os planos
de exceção são a regra a comandar o processo de territorialização da crise no espaço
urbano sob o apanágio das inevitáveis parcerias público-privadas.
Numa imagem agambeniana, a cidade de exceção é o modelo urbano vigente e
os novos arranjos de “governança” que alinham Estado e mercado, o seu soberano.
Não se trata da crise de um paradigma, mas o paradigma da crise.
29
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
elas? A modelagem de um Programa de Parcerias de Investimentos destinado às
Não é por outra razão que os principais exemplos de criatividade pleiteada pelo
urbanístico: as Concessões Urbanísticas e as Operações Urbanas figuram como as
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
MEGAEVENTOS
“novo direito administrativo” no âmbito da gestão pública são oriundos do direito
protagonistas do giro negocial/contratual pós-reforma administrativa do Estado. Os
caminhos adotados pela política urbana brasileira, nesse flanco, têm pervertido o
processo de abertura cooperativa da gestão do interesse público – público para além
da administração e da burocracia –, para submetê-lo à gestão corporativa – em que o
público é irredutivelmente capturado pelo privado.
Ao longo dos últimos anos, acompanha-se uma confluência perversa entre as
promessas populares da redemocratização – tão flagrantes na pulsão das ruas porque
ainda não cumpridas – e o protagonismo empreendedor defendido pela agenda
neoliberal. O resultado é uma governança seletiva, que compartilha os processos
decisórios com os parceiros do mercado e, quando muito, conduz instâncias pro
forma de participação social. E o conceito indiscriminado de “sociedade civil”, que no
mesmo balaio coloca desde movimentos sociais a empresários, não contribui para
dirimir essa confusão, antes a potencializa.
Uma caricatura do urbanismo neoliberal, a empresa PBH Ativos S/A, ilustra o
novo tipo de institucionalidade liminar que desponta. O município de Belo Horizonte,
em franco processo de empresariamento, institui uma sociedade anônima para
administrar Parcerias Público-Privadas associadas à prestação de serviços e, ainda,
para gerir os futuros CEPACs da tão aguardada Operação Urbana Consorciada
Antônio Carlos/Leste-Oeste, a primeira no município. Não bastasse o regime jurídico
sui generis, a criação da empresa foi viabilizada pela substancial transferência de
patrimônio municipal para o ente privado – imóveis, créditos tributários e outras
espécies doados como integralização de capital.
A Cidade Limitada (Ltda), experimentada pela maioria da população como espaço
de exercício desigual de direitos e obstáculos de acesso aos recursos e oportunidades
de vida urbana corre o risco de transformar-se, também, na Cidade Anônima (Cidade
S/A), onde os bens comuns que deveriam atender às necessidades sociais são
titularizados pelos impenetráveis gabinetes empresariais. Quem governa toda essa
30
(des)governança? A queda de braço com essa tomada de assalto do “comum-urbano”
urbanas e nas assembleias populares que reivindicam soberania sobre os espaços
MEGAEVENTOS
comuns – praças, viadutos, prédios vazios e/ou subutilizados –, nas jornadas de
manifestações e protestos que impulsionam mudanças, ainda que provisórias, ainda
que heterotópicas, na rota unidirecional da privatização.
POR UM DIREITO À CIDADE EM COMUM
Os conflitos associados à cidade não escancaram apenas os problemas
imediatos de efetivação de direitos básicos: mobilidade, moradia, saneamento público,
educação, lazer, saúde. Falam, antes de mais nada, do clamor, nas palavras de Peter
Marcuse , por “um direito num plano moral superior que reivindica um sistema melhor no
qual os potenciais benefícios da vida urbana possam ser plenamente concretizados.”
O direito não apenas de consumir, mas de produzir o espaço urbano e de ser nele
protagonista. Cada uma dessas lutas situadas, às vezes inadvertidamente, soma-se
à luta contra a colonização do mundo pelo valor-de-troca, troca essa, agora, que se
processa nos circuitos financeiros. Disputar e, possivelmente, exceder a trincheira
local, exige exercitar a transescalaridade da ação política que desenterra e expõe as
raízes da “crise”.
Diante do cenário que se esboça, como fica ou para onde vai o direito à cidade?
Em contraponto ao direito à cidade do capital, um direito à cidade do comum, à
cidade em comum é uma (res/a)posta que vem sendo construída em várias partes.
Primaveras políticas para enfrentar o inverno dos direitos? É verdade que existem
riscos e armadilhas também no processo de institucionalização desse direito à cidade.
Até que ponto, por exemplo, ele será a tônica da consolidação de uma Nova Agenda
Urbana, alavancada para a Conferência Habitat III das Nações Unidas, é algo que só
a disputa de forças dirá. A radicalidade que a pauta merece apenas será contemplada
numa agenda que supere a dinâmica liberal dos direitos subjetivos como individuais
e desponte no paradigma dos direitos intersubjetivos, coletivos e comuns. Recuperar
a sério o direito à cidade, atualizando-o e percorrendo as redes já não do mercado
globalizado, mas da resistência conectada e multitudinária da metrópole biopolítica,
31
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
vem das ruas, na forma de autogestão para construção das moradias, nas ocupações
pode ajudar a forjar, parafraseando M. Foucault, dentro da caixinha de nossas
na casa de máquinas da financeirização urbana.
E O DIREITO À CIDADE NO BRASIL
MEGAEVENTOS
ferramentas teóricas, dispositivos práticos ousados para promover um curto circuito
32
03
Investimentos e Parcerias
Público-Privadas:
a urbanização neoliberal da
Cidade Olímpica
Larissa Gdynia Lacerda
Mestranda em planejamento urbano e regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional –IPPUR/UFRJ, pesquisadora do Observatório das Metrópoles
Mariana da Gama e Silva Werneck
Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional –IPPUR/UFRJ, pesquisadora do Observatório das Metrópoles
Orlando Alves dos Santos Junior
Doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), professor do Instituto de Pesquisa
e Planejamento Urbano e Regional –IPPUR, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ,
pesquisador do Observatório das Metrópoles
Patrícia Ramos Novaes
Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional –IPPUR/UFRJ, pesquisadora do Observatório das Metrópoles
T
endo como foco central a análise dos investimentos realizados,
o argumento central deste ensaio é de que a realização das
Olimpíadas têm servido como veículo para promoção de um
novo ciclo de mercantilização neoliberal da cidade do Rio de
Janeiro expresso em um projeto de reestruturação urbana de
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
certas áreas e na promoção de novos arranjos institucionais de gestão fundados nas
Parcerias Público-Privadas - PPPs.
Para travar esta discussão, o artigo está organizado em três itens. No primeiro,
busca-se fazer uma análise dos investimentos previstos na preparação dos Jogos
Olímpicos, evidenciando-se que a participação pública nos investimentos realizados
E
para as Olimpíadas de 2016 superam a participação privada, contrariando o que vem
sendo divulgado pela Prefeitura do Rio de Janeiro.
Em seguida, analisam-se como os investimentos estão distribuídos espacialmente,
apontando para um processo de reestruturação urbana da cidade que caminha em
três direções: no fortalecimento da centralidade da Zona Sul; na revitalização da
centralidade, considerada decadente, da Zona Portuária; e na criação de uma nova
centralidade na Barra da Tijuca. Em todos os casos, estar-se-ia diante de processos
de elitização e gentrificação, acompanhado de remoções das classes populares.
Por fim, discute-se como este processo de reestruturação urbana também
estaria sendo acompanhado da adoção e difusão de um novo padrão de governança
empreendedorista neoliberal, fundada no estabelecimento de Parcerias Público34
Privadas (PPPs), que transfere para o setor privado a gestão de equipamentos e
espaços públicos.
1. O orçamento das Olimpíadas no Rio de Janeiro
O orçamento olímpico, segundo as autoridades públicas, é dividido em três
grupos: a Matriz de Responsabilidade; o Plano de Políticas Públicas; e os gastos
do Comitê Organizador1. Já em sua terceira versão, a Matriz de Responsabilidade
dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, divulgada pela Autoridade Pública
Olímpica (APO) em 21 de agosto de 2015, previu investimentos de R$ 6,67 bilhões
para o custeio de itens essenciais à sua realização, como a construção e manutenção
de arenas esportivas. Além disso, também foram previstos R$ 24,6 bilhões para o
Plano de Políticas Públicas, também chamado de “Legado”, e outros R$ 7,4 bilhões
em gastos do Comitê Organizador. Assim, o orçamento atual da Olimpíada Rio 2016
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
alcançaria o valor de RS 38,7 bilhões de reais, superando em mais de R$ 10 bilhões
o orçamento da Copa do Mundo de 2014. Segundo a Prefeitura, aproximadamente
60% desses gastos são custeados pela iniciativa privada.
Esse resultado, que surge como uma verdadeira alquimia, no entanto, foi
alcançada por meio de alguns artifícios. Em primeiro lugar, a omissão de custos
E
públicos vinculados ao evento, os quais envolvem: a construção de arquibancadas
temporárias para o Estádio Nilton Santos (Engenhão); a compra de móveis para a Vila
dos Atletas e de Mídia; o custeio de órgãos criados para os Jogos: e a indenização
dos moradores da Vila Autódromo. Somadas, tais despesas custam cerca de R$ 409
milhões aos cofres públicos2.
Além disso, dissimulou-se na Matriz de Responsabilidade o valor das
contraprestações públicas vinculadas à PPP do Parque Olímpico. Indicados como
gasto privado, o contrato prevê, na verdade, que o governo municipal desembolse
em favor do consórcio aproximadamente R$ 1,352 bilhão – sendo R$ 850 milhões
1
Disponível em: <https://br.fsc.org/sobre-o-comit-organizador-rio-2016.311.htm>. Acesso em
20 jul. 2016.
2
Ver jornal “Governos omitem mais de R$ 400 milhões do gasto da Olimpíada”. Folha de S. Paulo,
21 ago. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/esporte/2015/08/1671753-governosomitem-r-450-milhoes-de-documento-de-gasto-da-olimpiada.shtml>. Acesso em 20 jul. 2016.
35
decorrentes da transferência do terreno municipal do Parque Olímpico, antigo
Autódromo de Jacarepaguá, para o consórcio, conforme a avaliação presente
no edital de licitação produzido em 2011. Com a transferência concluída somente
após a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016 e depois da retirada
de todos os equipamentos olímpicos provisórios, o consórcio privado receberá o
terreno valorizado, que chegava a R$ 2,7 bilhões em setembro de 20153, para futura
exploração imobiliária.
O Plano de Políticas Públicas, por sua vez, não contabilizou os custos municipais
relativos à PPP do VLT, indicando apenas o financiamento federal, que dispôs de R$
532 milhões por meio do PAC Mobilidade. Os pagamentos do município ao consórcio,
apresentados mais uma vez como investimentos privados, oneram, todavia, o
município em, no mínimo, R$ 1,6 bilhão pagos ao longo de 25 anos4. O Plano de
Legado também subestima a participação do município na PPP do Porto Maravilha,
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
uma vez que nove termos aditivos ao contrato, firmados até janeiro de 2016, somam
R$ 667,4 milhões, contra os R$ 592 milhões declarados pelo poder público. Os
outros 7,609 bilhões, que correspondem ao valor original do contrato, são custeados
pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), fundo público formado pela
poupança dos trabalhadores, que, não obstante, é contabilizado como investimento
E
privado.
As isenções e renúncias fiscais do Governo Federal, as quais chegam a R$ 3
bilhões segundo a Associação Contas Abertas (http://www.contasabertas.com.br/
website/arquivos/11861), também não são computadas. Na contramão, entra na conta
olímpica o orçamento do Comitê Organizador5. Apesar de aumentar o montante de
recursos, ampliando a proporção de investimentos privados, o orçamento do Comitê
3
O valor, apresentado no Dossiê do ComitêoPopular da Copa e das Olimpíadas do Rio de
Janeiro de 2015, foi calculado a partir do custo médio de terrenos na Barra da Tijuca, de R$ 3.381,00
por m²ino mês de setembro de 2015, conforme http://www.agenteimovel.com.br/mercado-imobiliario/
a-venda/barra-da-tijuca,rio-de-janeiro,rj/tipo_terreno/preco_medio_m2/, acessado em outubro de
2015.
4
O contrato ainda prevêvpagamentos adicionais, por parte do município, nos meses em que a
arrecadação do Sistema VLT for inferior à receita tarifária mensal apresentada na proposta econômica
do Consórcio VLT Carioca. Desse modo, o município cobre eventuais prejuízos do ente privado.
5
Não incluímos aqui as isenções fiscais municipais, previstas, por exemplo, na lei municipal
n°s5.230/2010.
36
Organizador, como bem indica o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de
Janeiro (2015, p. 146)6, “se referem a gastos e receitas privados, sem qualquer controle
público e que se esgotam na própria realização do megaevento [...] fortalecendo [no
entanto] o falso argumento de que a maioria dos gastos da Olimpíada seria privado”.
De acordo com dados do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas
do Rio de Janeiro, quando se exclui o orçamento do Comitê Organizador e passase a considerar os itens não incluídos nos cálculos oficiais – sem contabilizar o
investimento do FGTS no Porto Maravilha –, ocorre uma inversão nas participações
do poder público e da iniciativa privada: contra os dados divulgados pelo governo,
que apresentam uma participação pública de 42,6% e uma participação privada de
57,4%; a participação pública passa a valer nada menos que 63,19%, ao passo que
a participação privada decai para 36,81%. O volume total de gastos apresenta ligeiro
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
aumento quando comparado aos dados oficiais: de R$ 38,6 para R$ 40,23 bilhões.
2. Os investimentos olímpicos e o projeto de cidade
A partir dos projetos incluídos na Matriz de Responsabilidade – os quais reúnem,
como esclarecido previamente, os projetos diretamente relacionados com a realização
dos Jogos Olímpicos – observa-se que a concentração geográfica dos equipamentos
E
esportivos e dos recursos se localiza na macrorregião da Barra da Tijuca, ocupada
majoritariamente pelas elites da cidade.
Por seu turno, ao analisarmos o Plano de Políticas Públicas, encontram-se 27
projetos previstos ou em desenvolvimento que são considerados oficialmente parte
do legado olímpico, e que estão discursivamente vinculados aos Jogos Olímpicos. Do
total, 13 projetos, os quais somam R$ 13,76 bilhões dos R$ 24,6 bilhões previstos pelo
Plano de Legado, estão localizados na macrozona da Barra da Tijuca, privilegiando,
mais uma vez, esta região da cidade. Dentre eles, destacam-se: a implantação da
Linha Quatro do metrô; a construção dos corredores de Bus Rapid Transit (BRT)
Transolímpica e Transoeste; a duplicação do Elevado do Joá; a realização do viário do
Parque Olímpico, com a duplicação da Avenida Salvador Allende; e a recuperação do
6
Disponível em: <http://issuu.com/mantelli/docs/dossiecomiterio2015_issuu_01>. Acesso em
20 jul. 2016.
37
complexo lagunar da Baixada de Jacarepaguá, entre outras obras de esgotamento e
saneamento. Em seguida, vem a região central, com R$ 9.388,75 bilhões, referentes
à execução do projeto de requalificação urbana da área portuária, o Porto Maravilha,
e à implantação do VLT.
Desse modo, os investimentos encontram-se massivamente concentrados
espacialmente, visando a criação de uma nova centralidade na Barra da Tijuca
e a promoção da revitalização da centralidade, considerada decadente, da Zona
Portuária. Por centralidade, consideram-se os núcleos de negócios e de relevância
econômica, que exercem uma influência sobre um determinado entorno, que pode
ser considerado como sua periferia. Nesse sentido, a centralidade remete a um papel
de comando sobre os processos de acumulação de capital e de reprodução social,
estando associada à intensidade de fluxos de dinheiro, mercadorias e pessoas. Além
disso, as áreas centrais se distinguem por sua multifuncionalidade, concentrando,
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
entre outros, centros de comércio e de negócios, atividades de gestão pública
e privada, redes de escolas e universidades, instituições de saúde, serviços de
transportes, áreas turísticas e centros culturais, e áreas residenciais de alta renda
(CORRÊA, 1995; GLUSZEVICZ; MARTINS, 2013).
Apesar dos investimentos realizados na Zona Sul serem de pequeno porte
E
quando comparado aos demais, é possível afirmar que as intervenções previstas, que
incluem as obras do Estádio de Remo da Lagoa, fortalecem uma área já consolidada
e dotada de ampla infraestrutura – especialmente, quando comparada às demais
regiões da cidade.
Nestas três áreas observam-se processos de destruição criativa que podem
ser caracterizas como urbanização neoliberal (THEODORE, PECK, BRENNER,
2009). De acordo com dados do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas,
as intervenções urbanas, em especial aquelas vinculadas aos novos sistemas de
mobilidade urbana, foram responsáveis pela remoção de mais de 4.100 famílias
nessas áreas. Só para a construção do BRT Transoeste, destacam-se as remoções
de comunidades inteiras, tais como Restinga, Vila Harmonia, Recreio II, Notredame e
Vila da Amoedo, totalizando aproximadamente 400 famílias removidas. 38
3. A difusão das Parcerias Público-Privadas (PPPs) no projeto olímpico
No processo de renovação urbana promovido no contexto das Olimpíadas,
percebe-se a criação de novos arranjos de gestão de serviços e equipamentos públicos
e dos próprios espaços urbanos reconfigurados, sobretudo por meio da instituição
de Parcerias Público-Privadas. Como destaca Hackworth (2007, p. 61), “um dos
fundamentos da governança neoliberal a nível local é a cooperação público-privada.
Estas alianças podem variar consideravelmente na forma, mas crescentemente
espera-se que os governos municipais sirvam como facilitadores do mercado, em vez
de atuar nas falhas dos mercados”.
No caso do Rio de Janeiro, constata-se o estabelecimento de quatro grandes
contratos de PPPs7 pelo governo municipal, descritos sinteticamente a seguir.
1.Porto Maravilha – firmado em novembro de 2010 entre o Consórcio Porto
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Novo, formado pelas empreiteiras Odebrecht, OAS e Carioca Christiani-Nielsen, e a
Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto, empresa criada pela Lei
Complementar nº 102/2009 e controlada unicamente pelo município. Com valor inicial
de R$ 7,609 bilhões e previsão de 15 anos, é responsável por realizar grandes obras
na área portuária, como a derrubada do Elevado da Perimetral, e uma gama ampla de
E
serviços em toda área portuária, como limpeza urbana e coleta de lixo, operação do
tráfego e manutenção de infraestruturas, ruas, praças e áreas verdes;
2.Parque Olímpico – celebrado em abril de 2012 entre o município e o
Consórcio Rio Mais, formado por Odebrecht, Andrade Gutierrez, Carvalho Hosken e
AG Participações. O contrato, de valor igual a R$ 1,352 bilhão e previsão de 15 anos,
prevê: (a) construção e manutenção dos equipamentos olímpicos e da infraestrutura
da área do Parque Olímpico; (b) a construção da infraestrutura da Vila Olímpica e
Paralímpica; (c) a prestação dos serviços de manutenção e operação na área do
Parque Olímpico; e (d) a remoção do Centro Esportivo de Ultraleve;
3.Transolímpica – também de abril de 2012, tendo como vencedor o Consórcio
7
A PPP do Maracanã, realizada pelo governo do Estado, está diretamente associada àiMatriz
de Responsabilidade da Copa do Mundo de 2014.
39
Rio Olímpico, formado pelas empresas Invepar, Odebrecht e CCR, que conta com
participação da Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e do grupo Soares Penido.
Firmada com o município por aproximadamente R$ 1,9 bilhão, responde à construção
do BRT Transolímpica. Além disso, o consórcio poderá explorar a concessão por 35
anos8;
4.VLT – assinado em junho de 2013 entre o município e o Consórcio VLT Carioca,
formada pela CCR Actua (do grupo CCR), Invepar (criada pela OAS junto ao fundo
de pensão do Banco do Brasil, Previ); Odebrecht Transport (do grupo Odebrecht);
RIOPAR; Benito Roggio e RAPT do Brasil, as duas últimas, de origem, respectivamente,
argentina e francês, constituindo parcerias técnicas. Com um contrato que soma
pouco mais de R$ 1,6 bilhão e tem vigência de pelo menos 25 anos, a PPP do VLT diz
E
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
respeito à implantação e à gestão do modal de transporte.
Figura 2. O Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT), na estação Parada dos Museus, Boulevard Olímpico da
Zona Portuária carioca.
Esses contratos de Parcerias Público-Privadas (PPPs) revelam duas questões
importantes. A primeira é a mudança no padrão de atuação das empresas privadas
que passam de executoras de grandes obras a gestão de equipamentos públicos. O
8
Ver “Consórcio da CCR assume a Transolímpica” (Jornal O Globo, 20 abr. 2012), Disponível
em: <http://oglobo.globo.com/rio/transito/consorcio-da-ccr-assume-transolimpica-4694935>. Acesso
em 20 jul. 2016.
40
segundo diz respeito à subordinação da gestão de equipamentos e espaços públicos
à lógica do mercado, tendo em vista que as empresas gestoras destes equipamentos
e espaços públicos passam a tomar decisões vinculadas à eficácia econômica e à
maximização do lucro de seus investimentos. No caso do Porto Maravilha e do Parque
Olímpico há que se ressaltar que a gestão privada diz respeito a grandes espaços
urbanos da cidade do Rio de Janeiro.
Considerações Finais
A realização de um megaevento tal como os Jogos Olímpicos envolve um
vultoso montante de recursos com intervenções de grande impacto para a cidade.
Não obstante, as decisões relativas a tais investimentos não passam por uma ampla
discussão democrática que envolva todos os segmentos sociais e coloque em pauta
o projeto de cidade que está sendo construído. Tal padrão autoritário de intervenção
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
pública, além de contrariar as diretrizes do Estatuto da Cidade (Lei nº 10257/2001)
– que, em seu segundo artigo, estabelece o direito à participação da população na
definição de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano –, instaurou
perigosos precedentes, ganhando contornos mais críticos com a recente decretação
de calamidade pública9 por parte do Estado do Rio de Janeiro.
E
Neste sentido pode-se dizer que as profundas transformações em curso na
dinâmica urbana da cidade do Rio de Janeiro envolvem, de um lado, novos processos
de mercantilização da cidade, expressas na elitização de certas áreas e no risco de
processos de segregação urbana das classes populares, e de outro, novos padrões de
relação entre o Estado e os agentes econômicos, caracterizados pela subordinação
do interesse público à lógica do mercado e à adoção de padrões de gestão marcados
pela exceção e pela ausência de transparência e democracia.
9
Ver “Governo do RJ decreta estado de calamidade pública devido à crise”. G1, 17 jun. 2016.
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/06/governo-do-rj-decreta-estado-decalamidade-publica-devido-crise.html>. Acesso em 20 jul. 2016.
41
Referências
COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Dossiê:
Megaeventos e Violação de Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Novembro de 2015.
Disponível em: <http://rio.portalpopulardacopa.org.br/?page_id=2972>. Acessado
em junho de 2016.
CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Editora Ática, 1995.
EICK, Volker. Secure Our Profits! The Fifatm in Germany 2006. In: BENNETT, C. and
HAGGERTY, K. (eds.), Security Games: Surveillance and Control at Mega-Events,
Routledge, New York, 2011 p. 87-102.
GLUSZEVICZ, Ana Cristina; MARTINS, Solismar Fraga. Conceito de Centralidade
Urbana: estudo no Município de Pelotas, RS. Trabalho apresentado no II SEURB -
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Simpósio de Estudos Urbanos: a dinâmica das cidades e a produção do espaço. 19
a 21 de agosto de 2013.
HACKWORTH, Jason. The Neoliberal City: governance, ideology, and development
in American Urbanism. New York: Cornell University Press, 2007.
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; NOVAES, Patrícia Ramos. “O projeto olímpico
E
da cidade do Rio de Janeiro: investimentos públicos e participação do setor privado”.
In: CASTRO, Demian Garcia; GAFFNEY, Christopher; NOVAES, Patrícia Ramos,
SANTOS, Carolina Pereira; SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Rio de Janeiro:
os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016. Rio de Janeiro: Letra
Capital; Observatório das Metrópoles, 2015, p. 41-62.
42
04
Transporte urbano na
cidade do Rio de Janeiro:
uma reflexão sobre a
racionalização da frota de
ônibus
Juciano Martins Rodrigues
Bolsista do Programa de Pós-Doutorado Nota 10 da FAPERJ no IPPUR/UFRJ
e pesquisador do Observatório das Metrópoles
Pedro Paulo Machado Bastos
Mestrando em Planejamento Urbano e Regional no IPPUR/UFRJ e
pesquisador do Observatório das Metrópoles
D
esde o fim da operação dos bondes na década de 1960, o
transporte público coletivo na cidade do Rio de Janeiro é
dominado pelos ônibus. Atualmente, aproximadamente 100
milhões de viagens são realizadas mensalmente, somando
o transporte através dos ônibus convencionais e daqueles
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
vinculados ao Bus Rapid Transit (BRT). A preponderância desse modal e a menor
presença do transporte sobre trilhos torna a metrópole de 12 milhões de habitantes
altamente dependente deles. Os ônibus transportam, por exemplo, cinco vezes
mais passageiros que o metrô, representando 77% dos deslocamentos na região
E
metropolitana1.
Essa dependência foi construída ao longo das últimas décadas e se consolida,
principalmente, em função do poder político e econômico das empresas prestadoras
do serviço. Assim, o sistema de mobilidade da metrópole do Rio de Janeiro apresenta
como um dos seus principais aspectos o desequilíbrio entre a oferta de modais
caracterizado, em primeiro lugar, por essa alta dependência e, em segundo, pelo
peso crescente da motorização individual junto à implantação de grandes projetos de
infraestrutura viária.
Assim sendo, há por um lado um sistema de mobilidade extremamente
desequilibrado em favor de um só modal de transporte coletivo, os ônibus, e por outro
1
Dados preliminares do Plano Diretor de Transporte Urbano da Região Metropolitana do Rio de
Janeiro citados por Igor Matela (2014).
44
a presença cada vez maior de carros e motos. Esse cenário dá contorno ao que tem
sido denominado de crise da mobilidade urbana2, que se adiciona de ingredientes
ainda mais trágicos como os acidentes – tanto os que envolvem o transporte
individual quanto o transporte coletivo –, e o enorme tempo que a população passa
nos deslocamentos diários. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD) de 2013 o tempo médio no deslocamento casa-trabalho no Rio de
Janeiro era de 50,7 minutos contra, por exemplo, 47,2 minutos de São Paulo.
No contexto dessa crise, a ação do poder público no campo do transporte inclui
a implementação de grandes projetos viários e a reorganização do sistema de ônibus
municipais. Essas ações têm sido colocadas – pelo menos no campo das promessas
– como a solução para a crise da mobilidade e, por serem obras relacionadas à
realização da Copa do Mundo de Futebol e dos Jogos Olímpicos, também são listadas
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
como legados sociais desses eventos. Contudo, como alega Christopher Gaffney
(2014), esses grandes projetos “negam as necessidades, carências e demandas da
cidade e atende unicamente às demandas geradas pelo projeto”.
Neste sentido, pode-se supor que a iniciativa de reorganização do sistema de
ônibus municipais na cidade do Rio de Janeiro não esteja fora dessa lógica. Vale
E
destacar a importante investigação realizada por Igor Matela sobre as mudanças
indicadas pelo novo marco regulatório do serviço. Dentre as mudanças, podemos
citar a implantação de uma política de integração física e tarifária, o estabelecimento
de contrato com atribuições definidas entre ambas as partes (Prefeitura e consórcios)
e, especialmente, o fim da disputa territorial entre itinerários nas áreas mais rentáveis
da cidade.
Uma dessas áreas consideradas “rentáveis”, a Zona Sul do Rio de Janeiro, vem
sendo objeto espacial dessa nova política desde 2011. A implantação dos corredores
2
Tal expressão tem sido frequentemente utilizada para se referir ao conjunto dos graves
problemas de transporte urbano existentes hoje no país e que, por sua vez, impactam diretamente
no bem-estar individual e coletivo, representariam barreiras à superação das desigualdades sociais
e que poderiam também inviabilizar economicamente as cidades (SCARINGELLA, 2001; ROLNIK;
KLINTOWITZ et al, 2010; RODRIGUES; LEGROUX, 2015).
45
viários Bus Rapid System (BRS), por exemplo, deu-se pioneiramente naquela região,
induzindo as primeiras reformas efetivas na exclusão e no encurtamento de itinerários
das linhas de ônibus municipais.
A segunda etapa desse plano foi implantada em outubro de 2015 mediante um
arsenal de argumentos técnicos ancorados, centralmente, numa suposta otimização
do sistema. Nessa etapa, instituiu-se um sistema de baldeações (a partir da extinção
e do seccionamento de outros itinerários, especialmente das linhas oriundas da Zona
Norte), além de um remodelamento visual da frota circulante entre a Zona Sul e o
Centro e entre aquela e a Barra da Tijuca, que desponta desde os anos 1980 como
uma nova centralidade urbana no Rio de Janeiro.
Em que pese o processo ainda em andamento, visto que muitos ajustes vêm sendo
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
realizados amiúde, consideramos que um plano objetivado a reorganizar o sistema de
ônibus tendo como enfoque a área mais rica da metrópole já pode ser merecedor
de observação mais profunda do ponto de vista de seus efeitos sociais. A nosso ver,
isso se justifica de certo modo porque temos um Estado que atua historicamente na
promoção das desigualdades (RIBEIRO, 1985; ABREU, 2008), seja pela promoção
de políticas públicas que induzem a fragmentação socioespacial, seja pela expulsão
E
de população pobre das vizinhanças mais abastadas.
A partir dessas considerações, é importante refletir sobre essas ações do Estado
e como elas podem porventura impactar no acirramento das desigualdades e da
segregação urbana. Isto porque o sistema de mobilidade urbana se apresenta como
um aspecto central da organização social do território, contribuindo diretamente com
as condições de vida, de reprodução e interação social. Em segundo lugar, Maurício
de Almeida Abreu (2008) já afirmava, nos anos 1980, que “o modelo segregador do
espaço carioca teria sido estruturado principalmente a partir dos interesses do capital,
sendo legitimado e consolidado indiretamente pelo Estado” (p. 11).
46
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Figura 3. Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio: Troncal 8, uma das novas linhas com itinerário otimizado
entre a Zona Sul e o Centro proposta pelo plano de racionalização.
A arqueologia do plano
Após quatro anos desde a instalação dos corredores Bus Rapid System (BRS)
E
em vias importantes da Zona Sul, como a Avenida Nossa Senhora de Copacabana
e a Rua Visconde de Pirajá, a Prefeitura do Rio de Janeiro colocou em prática o que
seria a segunda parte do plano de reorganização do seu sistema de ônibus naquele
recorte espacial. Ao todo, foi prevista a eliminação de 28 linhas até o final de 2015,
enquanto outras 21 teriam seu trajeto seccionado. A principal justificativa era a de
solucionar o problema de sobreposição de itinerários, que fazia com que ônibus de
determinadas linhas circulassem vazios mesmo em horário de pico.
Conforme o relatório operacional divulgado no site Transparência da Mobilidade,
em maio de 2015, o sistema de transporte por ônibus tinha 467 linhas, que
transportavam 92,5 milhões de passageiros por mês. Somando, portanto, as linhas
eliminadas e encurtadas, aproximadamente 10% delas seriam alteradas, com um
47
percentual equivalente ao número de passageiros que seriam atingidos.
No processo de divulgação do plano, a Secretaria Municipal de Transportes
procurava mostrar que o projeto de racionalização da frota traria mais eficiência para o
sistema, principalmente por gerar impactos positivos no trânsito dos corredores BRS.
Segundo o órgão, para eliminar a sobreposição das linhas, a disputa por passageiros
nos pontos e, com isso, garantir mais fluidez no trânsito e menos tempo de viagem,
70% das linhas que trafegavam pela Zona Sul seriam aglutinadas.
De acordo com o Jornal O Globo (07 mar. 2015), o número de ônibus que deixaria
de circular correspondia a 35% de todos que passavam ou tinham como destino e/ou
origem a Zona Sul da cidade. Região com alta concentração de renda, a paisagem da
Zona Sul é popularmente representada pelos cartões postais, sendo ainda um lugar
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
que exerce forte centralidade urbana.
Todas as mudanças foram anunciadas como produto de mensurações técnicas
que, por sua vez, apontavam a necessidade da racionalização para melhor fluidez do
tráfego e para maior otimização do serviço oferecido. No entanto, essas informações
não foram divulgadas em nenhum momento, excluindo qualquer possibilidade de
E
controle social. Ademais, é essencial considerar o que a extinção e o encurtamento
de itinerários de linhas de ônibus, dentro de uma cidade cuja circulação depende
exageradamente delas, pode acarretar no cotidiano dos usuários. Tratando-se ainda
de linhas que ligavam diretamente a Zona Norte (região tradicionalmente periférica)
ao Centro (lugar do emprego) e à Zona Sul (lugar da praia e do lazer, mas que também
concentra muitos postos de trabalho), tal medida pode ser preocupante do ponto de
vista de suas consequências sociais.
Sendo uma proposta que abrangia um número considerável de linhas – algumas
com largo alcance territorial –, é fundamental indagar quais os seus impactos sobre
a segregação urbana ao tratarmos de uma cidade onde a organização do território
espelha a sua própria desigualdade social. Existem separações físicas e simbólicas
48
muito fortes no Rio de Janeiro, engendrando processos que dificultam e bloqueiam
a interação social. Além disso, são separações que tendem a acirrar a inferiorização
de certos segmentos sociais, sobretudo o dos moradores de favelas e das periferias.
Os primeiros impactos do plano
Curiosamente, 11 das 21 linhas que seriam encurtadas faziam a ligação entre as
Zona Sul e a região da Zona Norte suburbana, opostas em termos de renda e demais
indicadores sociais. Dessas 11, seis tinham os bairros do Leblon e de Ipanema como
origem ou como destino, justamente as áreas mais ricas da cidade. De quatro linhas
que conectavam a região da Zona Norte suburbana ao bairro do Leblon, uma deixaria
de existir, e duas seriam encurtadas. Com isso, apenas uma linha, a 476 (MéierLeblon), continuaria chegando até o bairro, de acordo com os anúncios preliminares.
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Já no caso de Ipanema, as mudanças implicariam na extinção completa de qualquer
ligação direta entre a Zona Norte suburbana e o bairro, com o encurtamento de três
E
linhas e a exclusão de uma.
Figura 4. Exemplo da metodologia de seccionamento de itinerários entre a Zona Norte e a Zona Sul.
(Elaboração: Observatório das Metrópoles).
Contudo, em dezembro de 2015, o panorama das linhas seccionadas já mostrava
se mostrava mais intrigante. Das nove linhas que restaram ligando a região da Zona
49
Norte suburbana à Zona Sul, quatro haviam tido seus itinerários encurtados ou
alterados. Já nos bairros mais ricos da Zona Norte, e geograficamente mais próximos
da Zona Sul, o impacto foi mais brando. Na área da Tijuca, das 16 linhas de ônibus
que ligavam a região à Zona Sul, apenas três delas tiveram seu itinerário reduzido. Em
São Cristóvão, de seis linhas, apenas uma teve sua rota diminuída.
Uma hipótese a ser cogitada quanto às modificações efetuadas nos itinerários
entre a Zona Norte e a Zona Sul pode ter referência aos polêmicos episódios de revista
de passageiros em algumas linhas de ônibus oriundas daquela região em setembro
de 2015. Em diversas ocasiões, linhas como a 472 (Triagem-Leme) e, especialmente,
a 474 (Jacaré-Jardim de Alah)3, que interligam regiões próximas a favelas do subúrbio
carioca com a orla oceânica da Zona Sul, foram abordadas pela Polícia Militar após
denúncias de vandalismo e agressões registradas tanto pelos passageiros desses
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
coletivos, como por quem estava de fora.
Os “arrastões” ocorridos em Copacabana no dia 20 de setembro de 2015, por
exemplo, foram indiretamente responsabilizados pelos usuários dessas linhas,
reforçando, e até mesmo legitimando4, a revista policial dentro dos veículos que
operam tais itinerários. Tais medidas ganharam considerável repercussão na imprensa
E
e nas redes sociais, dividindo opiniões quanto à motivação principal da Prefeitura em
propor a “reorganização” das linhas de ônibus que circulam entre a Zona Norte e a
Zona Sul.
Assim sendo, durante a fase inicial, o plano parecia estar realmente focado em
ajustes técnicos com vistas a “enxugar” os excessos do sistema, favorecendo, por
um lado, o serviço de itinerários mais otimizados, e, por outro, a fluidez do tráfego –
3
O portal R7 Notícias, em 23 de setembro de 2015, apelidou a linha 474 de “O inferno do
Rio”. Ver mais em: <http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/ameacas-violencia-e-vandalismo-conheca-arotina-da-linha-474-o-inferno-do-rio-23092015>. Acesso em 4 dez 2015.
4
Em 22 de setembro de 2015, o governador do Estado do Rio de Janeiro Luiz Fernando Pezão
(PMDB) recomendou às autoridades policiais que não recuassem no esquema de segurança que
previa revistas em ônibus vindos do subúrbio em direção às praias da zona sul. Ver mais em: <http://
noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/09/22/pezao-defende-revistas-em-onibuse-apreensoes-preventivas-de-jovens.htm>. Acesso em 4 dez 2015.
50
inclusive de veículos particulares - em algumas vias importantes. .
Com isso, surge outra hipótese importante relacionada a essas mudanças.
Ou seja, podemos interpretar também que, ao implementar uma política focada na
retirada de veículos do transporte coletivo, a racionalização da frota visa atender
paralelamente o usuário do transporte individual, sobretudo moradores da Zona Sul
da cidade. Hoje, o Rio de Janeiro tem um dos piores trânsitos do mundo; o tempo
médio de deslocamento aumenta ano após ano. Essa situação é resultado, além da
desorganização do sistema de transporte público, de um aumento extraordinário na
frota de veículos particulares. Como destacamos inicialmente, nos últimos anos, o
número de automóveis na cidade aumentou em mais de 70%.
No principal foco espacial desse plano, a Zona Sul (bairros das Regiões
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Administrativas de Botafogo, Lagoa e Copacabana), a população corresponde a 9%
de toda a cidade, enquanto concentra 13% dos domicílios que possuem automóvel.
Assim sendo, parece também tratar-se de um plano que pretende solucionar parte
da crise da mobilidade urbana que atinge a alta classe média, atendendo a demanda
por mobilidade daqueles que usam exclusivamente o automóvel particular para seus
deslocamentos. No mesmo contexto, não podemos esquecer que existem projetos
E
viários de alto custo sendo realizados na cidade, como a construção de uma nova
pista do Elevado do Joá, enorme viaduto que liga a Zona Sul à Barra da Tijuca e as
diversas intervenções viárias na operação urbana executada na Zona Portuária.
Essa ideia parece estar em consonância com as percepções da mudança por
parte dos moradores da Zona Sul, como nessa fala de um morador reproduzida em
matéria jornalística:
“Eu acho que vai ser melhor, porque vai diminuir o número de ônibus que passam
pela Zona Sul. Tem muito ônibus e eu acho que o trânsito vai melhorar” (Nelson,
morador do Flamengo, Portal de Notícias G1-Rio).
Ainda em relação à racionalização, embora quantitativamente o impacto pareça
pequeno, a exclusão e o encurtamento dos trajetos restringe claramente a capacidade
51
de circulação de uma parcela da população. Não há dúvidas de que tomar dois ônibus
(mesmo com integração tarifária) é mais dispendioso do que realizar o trajeto em
um itinerário direto. Além disso, não há informações claras sobre o papel e quando
entrarão em operação os terminais que seriam utilizados para a integração, a exemplo
de um no bairro do Maracanã, na Zona Norte, como havia sido noticiado no início de
2015.
Se por um lado há uma expectativa positiva por parte dos adeptos de veículos
particulares (como fica evidenciado na fala acima reproduzida), até agora as
mudanças indicam um prejuízo em termos de tempo de deslocamento para usuários
do transporte coletivo. Em declaração reproduzida pelo portal de notícias G1, a usuária
de uma das linhas encurtadas dizia:
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
“Eu pego o primeiro ônibus em Olaria, depois tenho que descer em Copacabana
e depois pegar outro para a General Osório, em Ipanema. Complicou porque
eu ando com peso e agora eu também tenho que pagar mais. Agora eu tenho
que pagar duas passagens. E eu também não vi nenhuma melhora no trânsito.
Eu levava, em média, 45 minutos. Agora eu levo quase duas horas” (Portal de
Notícias G1-Rio, 28 nov. 2015).5
Considerações finais
E
Muitos ajustes ainda vêm sendo realizados na operação desse novo sistema, fato
que instabiliza a manutenção das ações implementadas. Vale destacar os frequentes
dissensos a respeito de quais linhas teriam seus itinerários extintos ou seccionados,
especialmente aqueles das linhas circulantes entre a Zona Norte e a Zona Sul diante
de sua polêmica. Mesmo hoje em dia, não há precisão sobre o número exato de linhas
(e quais) que deixou de acessar determinados espaços da Zona Sul considerados
críticos pela Prefeitura, segundo as razões mostradas neste texto.
De todo modo, é preocupante que parte do viés restritivo dessas medidas tenha
um alvo bem claro: a população mais pobre. Por outro lado, coincidentemente, tais
medidas atendem os moradores de bairros onde há muitos anos se deseja ficar livres
5
Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/11/passageiros-se-dizemconfusos-com-mudancas-nos-onibus-do-rio.html>.
52
das externalidades negativas provocadas pelos ônibus, como o trânsito e as poluições
sonoras e do ar. Em outras palavras, essas medidas parecem ir em caminho contrário
à imperiosa necessidade de se promover a integração dos espaços historicamente
apartados da cidade, ao mesmo tempo em que se torna um mecanismo para reforçar
a autossegregação da elite, garantindo amenidades dos territórios da alta classe
média.
A exclusão de algumas linhas de fato pode se justificar pela sobreposição e falta
de passageiros, o que faz com que alguns ônibus circulassem praticamente vazios.
No entanto, como se justifica o encurtamento de linhas cujos itinerários contavam com
grande demanda? Essa contradição deixa dúvidas se a racionalização das linhas de
ônibus, ao mesmo tempo sustentada por uma base técnica, não serviria também de
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
pretexto para tornar os bairros mais ricos ainda mais isolados do restante da cidade.
Por isso, consideramos que um olhar atento e crítico para os possíveis impactos
das mudanças que até agora continuam sendo anunciadas no sistema de ônibus
do Rio sobre as condições de mobilidade da população nos parece fundamental.
Dadas as intervenções realizadas recentemente, não existem garantias de que esses
investimentos e as operações de racionalização estejam sendo capazes de reverter
E
imediatamente o caos decorrente dos anos de ausência de ações no campo da
mobilidade urbana, em especial do transporte público de massa. Além disso, esses
investimentos e operações também parecem não reverter a estrutura extremamente
fragmentada do tecido social carioca. Ao contrário; elas podem acabar reafirmando a
estrutura fragmentada e a ampliação de barreiras sociais historicamente construídas
na cidade.
53
Referências
ABREU, M. A. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2008.
GAFFNEY, C. “Fronteiras, Barreiras e Mobilidades: problematizando o Projeto Olímpico
no Rio de Janeiro”. In: SANTOS, A. S. P; SANT’ANNA, M. J. G. Transformações
territoriais no Rio de Janeiro do século XXI. Rio de Janeiro: Gramma, 2014.
MATELA, Igor Pouchain. Transição regulatória no transporte por ônibus na
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Acumulação Urbana e a Cidade: reflexões sobre
os impasses atuais da Política Urbana. In: Encontro da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 19., 1985. Anais... Caxambu:
ANPOCS,1985.
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
RODRIGUES, J. M., LEGROUX, J. “A questão da mobilidade urbana na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro: reflexões a partir dos projetos de infraestrutura para
os megaeventos esportivos (Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016)”. In:
Rio de Janeiro: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olímpiadas 2016. Letra
Capital: Rio de Janeiro, 2015.
E
ROLNIK, R.; KLINTOWITZ, D. (I)Mobilidade na cidade de São Paulo. Estudos
Avançados. São Paulo, v 25 n 71.
SCARINGELLA, R. S. A crise da mobilidade urbana em São Paulo. São Paulo
Perspec., v. 15, n. 1, São Paulo, jan./mar. 2001.
54
LIVROS, TESES e
DISSERTAÇÕES
05
Porto Maravilha:
agentes, coalizões de
poder e neoliberalização
Texto adaptado por Breno Procópio (assessor de imprensa do Observatório
das Metrópoles) com base na versão publicada no Boletim Semanal do
Observatório das Metrópoles, 31 de abril de 2016.
C
omo se deu o processo de produção social do Porto
Maravilha? Quais os seus agentes e as negociações que
lhe deram corpo e o arranjo financeiro e institucional sobre o
qual a operação urbana está sustentada? No estudo “Porto
Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização”,
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Mariana Werneck1 mostra que o projeto de revitalização da zona portuária do Rio
de Janeiro se insere em um processo global de financeirização da cidade, marcado,
no caso do Porto Maravilha, por um arranjo inédito que combina parcerias públicoprivadas e instrumentos do mercado de capitais. Um processo que determina um
novo padrão de relação entre o poder público e o setor privado, inaugurando, por um
E
lado, um novo modelo de gestão da cidade, e, por outro, acirrando as desigualdades
socioespaciais do Rio.
A dissertação “Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização”2
joga luz sobre o processo de construção do projeto Porto Maravilha, lançado
oficialmente em apenas seis meses de gestão do prefeito Eduardo Paes – um
processo impulsionado pela inclusão do projeto no rol das instalações olímpicas dos
Jogos Olímpicos de 2016. Mas, diante da herança de entraves e descompassos
1
Mariana Werneck é graduada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro em 2011; e é mestre pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Atualmente é pesquisadora da
Rede INCT Observatório das Metrópoles, na qual acompanha as transformações no Rio de Janeiro,
em especial, na área portuária da cidade. E-mail: [email protected]
2
A dissertação “Porto Maravilha: agentes, coalizões de poder e neoliberalização”, de autoria de
Mariana da Gama e Silva Werneck, foi defendida em março de 2016 no âmbito do Programa de PósGraduação em Planejamento Urbano e Regional do IPPUR/UFRJ. Orientado por Orlando Alves dos
Santos Júnior, o trabalho é mais um resultado da Rede Nacional INCT Observatório das Metrópoles.
57
enfrentados ao longo de 30 anos para a revitalização da área portuária, como Eduardo
Paes conseguiu tirar o projeto do papel? Quais interesses foram arregimentados para
a viabilização desse projeto?
“A pesquisa procura debruçar-se sobre o complexo arranjo financeiro e
institucional, cuja conformação viabilizou e sustenta o conjunto de intervenções
executadas para a revitalização da área portuária do Rio de Janeiro, analisando seus
instrumentos e reconstituindo as negociações que lhe deram corpo. Ainda nessa
perspectiva, a análise empenha-se em refletir sobre os agentes e sua expressão
institucional na gestão do Porto Maravilha, o que pode contribuir para a compreensão
de uma parcela importante da coalizão de poder que põe em marcha significativas
transformações em toda a cidade do Rio de Janeiro”, explica Mariana Werneck.
O Projeto Porto Maravilha
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
De aproximadamente 5 milhões de metros quadrados, a operação urbana do
Porto Maravilha inclui os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo e as favelas da
Providência, Pedra Lisa, Moreira Pinto e São Diogo, além de trechos de São Cristóvão,
Centro, Caju e Cidade Nova; e prevê uma longa lista de intervenções urbanas e de
obras de infraestrutura, como a reestruturação das redes de abastecimento de água,
E
de esgotamento sanitário e de telecomunicações, que têm conclusão prevista para
este ano. O grande destaque é dado ao novo conceito de mobilidade proposto para a
área central da cidade, que engloba a demolição do Elevado da Perimetral, realizada
entre 2013 e 2014, e a implantação de um novo sistema de transporte público, o
Veículo Leve sobre Trilhos (VLT).
Segundo Mariana Werneck, o projeto é inspirado em experiências internacionais
de renovação do waterfront portuário que se multiplicam desde os anos 1960,
objetivando, assim, inserir o Rio de Janeiro ao movimento de cidades mundiais que
transformaram, nas palavras de Eduardo Paes, “suas centenárias e decadentes
áreas portuárias – tornadas obsoletas pela velocidade da evolução das técnicas
e dos processos de produção de riqueza – em dinâmicos centros irradiadores de
desenvolvimento econômico, social e cultural”.
58
Considerado fundamental para o reposicionamento da cidade na economia dos
serviços e do turismo, o Porto Maravilha já havia sido incluído na primeira versão
do novo plano estratégico da cidade, Pós 2016: o Rio mais integrado e competitivo,
apresentado em dezembro de 2009 – e, posteriormente, revisado e mais uma vez
publicado em abril de 2012. Com a conquista da cidade como sede das Olimpíadas,
considerada por Paes como “uma boa desculpa para a gente fazer coisa que há muito
tempo a cidade demandava e não conseguia realizar”, o prefeito apressou-se para
incluir a área portuária no rol das instalações olímpicas – contrariando o dossiê de
candidatura do Rio de Janeiro, cujo projeto inicial previa a concentração de todos os
equipamentos na Barra da Tijuca.
Após insistir na mudança, que recebeu finalmente o aval do Comitê Olímpico
Internacional em maio de 2010, o Porto Maravilha, símbolo da reinvenção da cidade,
passou a ser marco do legado olímpico, congregando em torno de si a atenção dos
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
três níveis de governo. “A boa relação junto aos governos federal e estadual seria
indispensável para a implantação do projeto de revitalização, dadas a predominância
de terrenos da União naquela área e a necessidade de implementação de uma política
de segurança capaz de combater a violência do passado”, explica Mariana Werneck.
A pesquisa mostra que, fora o cenário político favorável, Eduardo Paes
E
instaurou mudanças institucionais no corpo da prefeitura com vistas a acelerar os
projetos prioritários de sua gestão. Logo no primeiro ano de mandato, foi instituída
na Secretaria Municipal de Urbanismo, sob orientação do próprio prefeito, uma
gerência especializada para agilizar os licenciamentos de obras relacionados à Copa
do Mundo e às Olimpíadas. Também foram criadas duas secretarias: a Secretaria
Municipal de Ordem Pública (SEOP), encarregada de pôr em prática a operação
Choque de Ordem para atacar a desordem urbana, uma de suas principais promessas
de campanha; e a Secretaria Extraordinária de Desenvolvimento (SEDE),
incumbida de atrair novos negócios para a cidade – esta última foi entregue a Felipe
Goes.
Ex-sócio da consultoria McKinsey, Felipe Goes, uma vez integrado à equipe da
prefeitura, acumulou ainda as presidências do Instituto Pereira Passos e do Conselho
59
Municipal de Desenvolvimento Econômico. Considerado por Paes o “vendedor do
Rio”, Goes assumiu a tarefa de desenvolver a modelagem econômica da revitalização
da área portuária e idealizou – inspirado na inglesa Think London e na colombiana
Invest Bogotá – a Rio Negócios, agência criada em 2010 por meio de uma parceria
com a Associação Comercial do Rio de Janeiro para angariar e apoiar empresários
interessados em investir na cidade (PAES ANUNCIA..., 2008; PREFEITURA..., 2010).
Além delas, a gestão municipal instituiu por meio de lei complementar a
Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (CDURP).
Concebida para coordenar a implantação do projeto de revitalização da área portuária
da cidade, a CDURP foi confiada a Jorge Arraes, ex-diretor imobiliário do fundo de
pensão dos funcionários da Caixa Econômica Federal, a Fundação dos Economiários
Federais (FUNCEF). Alçado ao cargo de secretário municipal após a criação da
Secretaria Especial de Concessões e Parcerias Público- Privadas (SECPAR) em
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
2014, já no segundo mandato de Eduardo Paes, Arraes não deixaria de acompanhar
o andamento do Porto Maravilha, agora vinculado diretamente à nova secretaria.
“As reformas institucionais e as inovações normativas buscavam, assim, instaurar
uma administração pautada na interlocução entre o poder público e as empresas
privadas, e o Porto Maravilha expressava essa inflexão. Além de ser instituído por
E
meio de uma operação urbana consorciada, o projeto de revitalização sinalizava para
a contratação de uma Parceria Público-Privada (PPP) responsável pela execução
das obras e prestação dos serviços – a primeira da cidade e a maior já realizada no
país, lavrada em outubro de 2010 no valor global de R$ 7,6 bilhões, distribuídos ao
longo de 15 anos. Dessa forma, o Porto Maravilha representava a construção de um
novo paradigma no desenvolvimento do Rio.
Remoções forçadas
De acordo com Mariana Werneck, o projeto também soma, por outro lado, severas
críticas, que ressaltam, sobretudo, as remoções forçadas, arrefecidas na área
portuária desde o lançamento da operação urbana. Enquanto o Fórum Comunitário
do Porto denunciava, em maio de 2011, as ameaças de remoção de até 800 famílias
60
no Morro da Providência por conta do programa municipal de reurbanização de
favelas Morar Carioca, apresentado pelas autoridades em março de 2010 como
iniciativa complementar ao Porto Maravilha (FCP, 2011). O Comitê Popular da Copa
e das Olímpiadas do Rio de Janeiro indicava em março de 2013 o despejo de 430
famílias que viviam em ocupações irregulares na zona portuária desde 2009.
Logo após as grandes manifestações de 2013, a Comissão de Defesa dos
Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro,
presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ), deu destaque ao caso
da Providência em seu relatório anual, contabilizando a expulsão de 196 famílias
da comunidade até novembro daquele ano (CDDHC, 2013, p. 44). As organizações
enfatizam ainda a ausência de informação acerca dos projetos implementados, assim
como a falta de participação da população na definição das intervenções prioritárias
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
e na discussão de alternativas habitacionais.
Mariana Werneck também apresentou na pesquisa o que tem sido produzido no
campo acadêmico a fim de compreender o processo de remoções e o significado do
Porto Maravilha. “Um grupo de pesquisadores engajados têm produzido análises que,
em linhas gerais, vislumbram no projeto de revitalização da área portuária do Rio
a subordinação do direito à moradia aos interesses pela valorização da terra e
E
à mercantilização da cidade, nele salientando o papel do Estado e dos fundos
públicos no enriquecimento de investidores privados e na produção de um
novo padrão de segregação”, aponta a pesquisadora e completa:
“Alguns autores chamam atenção para as doações de campanha do então
candidato a prefeito Eduardo Paes, liderados por empresas dos setores imobiliário
e da construção civil, evidenciando ainda o papel do planejamento estratégico na
transformação da cidade”.
O setor financeiro no Porto Maravilha
Mariana Werneck destaca o emprego de fundos de investimento imobiliário e a
participação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) na aquisição
dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) da operação
61
urbana, de acordo com a arquitetura institucional-financeira desenhada para a
operação urbana.
Enquanto o fundo, cujo princípio é a rentabilidade, expressaria a conversão
da terra em um ativo financeiro, a transferência de recursos do FGTS significaria
“uma redução de riscos para os investidores privados que passam a ter, desde já,
um cenário favorável aos investimentos mediante a aceleração das obras”. Mas a
entrada de fundos públicos não elimina os riscos da operação por completo, uma vez
que “os recursos vindos do FGTS para a compra dos CEPACs, 3,5 bilhões de reais,
garantem alguns anos de obras e serviços previstos no contrato de PPP, mas não a
sua totalidade.
“Alguns autores mostram que recursos públicos e especulação, somados
ao descumprimento da função social da propriedade, levam a afirmar que o Porto
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Maravilha é uma das expressões mais acabadas da cidade como uma máquina de
crescimento urbano”, aponta Werneck e complementa:
“Dessa maneira, a cidade – impulsionada por uma coalizão de interesses que
reúne proprietários fundiários, empresários, empreendedores, imobiliários, políticos
locais, agências de serviço público, setores sindicais, instituições culturais, enfim,
E
todos aqueles que têm algo a ganhar com o crescimento da cidade – funcionaria como
uma organização empresarial devotada ao aumento do volume da renda agregada
por meio da intensificação do uso do solo urbano”.
Nesse sentido, o estudo de Mariana Werneck busca captar dinâmicas em torno
da execução do Porto Maravilha, aludindo à apropriação desigual das transformações
realizadas na área portuária. “As denúncias acerca da implementação violenta de
uma nova política de remoções e a retração da esfera pública visibilizam a existência
de um grupo que, mais que negligenciado, é deliberadamente excluído dos benefícios
prometidos pelo projeto de revitalização. Mas, passados quase sete anos de
implantação do projeto de revitalização, pouco sabemos sobre a concertação de
agentes capaz de finalmente implementar um projeto idealizado desde os anos 1980,
assim como seu envolvimento institucional, suas atribuições e contrapartidas ou seu
62
modo de ação permanecem indeterminadas”, explica a autora.
Falta de reflexão crítica do processo
Mariana Werneck argumenta que os instrumentos utilizados para a viabilização
da arquitetura institucional-financeira praticada no Porto Maravilha são pouco
conhecidos, impondo barreiras à compreensão de seu modo de funcionamento e à
formulação de uma reflexão crítica ao projeto. Apesar de haver acúmulo em torno das
premissas do plano estratégico, instrumentos tais como PPPs e fundos de investimento
imobiliário são ainda pouco explorados, e mesmo operações urbanas e CEPACs,
analisados em profundidade por autores como Mariana Fix (2004, 2007), compõem,
no Porto Maravilha, uma arquitetura bastante particular, inédita – potencializada pelas
mudanças institucionais em curso.
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Conclusões
A pesquisa de Mariana Werneck aponta que se antes a revitalização da área
portuária do Rio de Janeiro era prioritariamente um projeto urbanístico, agora o
Porto Maravilha é um arranjo institucional-financeiro de gestão do território capaz de
compatibilizar interesses – eis o passe de mágica de Eduardo Paes, sob a cortina de
E
fumaça dos Jogos Olímpicos.
“Após a entrada do novo prefeito e a conformação de um alinhamento político nas
três esferas de governo, deflagrado pela aliança PT-PMDB, foram articuladas junto ao
governo federal a participação da SPU e da Casa Civil, esvaziando a ingerência do
Ministério das Cidades sobre o projeto, e, como parecem apontar as investigações da
Operação Lava Jato, coordenando a entrada do FGTS e da CEF enquanto seu agente
operador. Valendo-se de uma legislação preexistente, mas também produzindo por
processos de destruição criativa novos aparatos normativos e institucionais, essa
arregimentação política pôde então compor interesses e viabilizar o Porto Maravilha”,
explica a pesquisadora.
Como estratégias de reestruturação, as inovações puderam conformar o arranjo
institucional-financeiro, mas as aspirações dos agentes não poderiam se desvencilhar
63
das expectativas do mercado. “Se é verdade que as massas de capital de origem
brasileira e internacional encontram no porto do Rio de Janeiro uma oportunidade
para absorver lucros mais elevados, dadas as perspectivas de valorização imobiliária
do porto, também é certo que a sua conversão em produtos imobiliários é peça
fundamental para sustentar a operação financeiramente e promover a ocupação da
área portuária, criando demanda às novas infraestruturas e aos serviços prestados
por um consórcio privado. Mesmo os empreendimentos lançados por empreiteiras
que participam dos Consórcios do arranjo institucional-financeiro não são capazes de
desencadear a transformação da AEIU da Região do Porto, uma área de 5 milhões de
metros quadrados”, aponta Mariana Werneck, e conclui:
“A reintegração da área portuária após longos anos de desinvestimento, seja
pelos efeitos da expulsão dos moradores dessas áreas, seja pela repressão ao uso
dos espaços para sua reprodução social, poderia ser interpretada como um processo
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
de espoliação urbana, o que Harvey denominou acumulação por espoliação. O
projeto de revitalização supõe a transformação das terras, majoritariamente públicas,
da área portuária em valor de troca, abrindo uma nova fronteira para sua integração
aos circuitos de valorização imobiliária promovidos pelo capital, ao mesmo tempo que
destitui as classes populares que delas se utilizam como valor de uso, e assim podem
E
praticar, ainda que precariamente, o direito à cidade. O acirramento dos conflitos
urbanos clama pela cidade como espaço de disputa”, finaliza.
64
06
Porto Maravilha:
o imaginário da revitalização
Texto adaptado por Breno Procópio com base na versão publicada no Boletim
Semanal do Observatório das Metrópoles, 12 jun. 2014.
C
oncebido pelo discurso do “imaginário da revitalização” a
partir de modelos como o do Porto de Baltimore (EUA) e Port
Vell (Barcelona), o Projeto Porto Maravilha no Rio de Janeiro
mostra que, na prática, se aproxima mais de um modelo
clássico de renovação urbana com a demolição de imóveis,
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
o rompimento com a comunidade local, e o uso de recursos públicos para gerar
benefícios a investidores privados. Essas são algumas das conclusões do e-book
“Porto Maravilha: antecedentes e perspectivas da revitalização da região portuária do
Rio de Janeiro” (Editora Letra Capital, 2014), do geógrafo Nelson Diniz1 , produzido no
âmbito da Rede INCT Observatório das Metrópoles
E
No Prefácio do livro, o professor Orlando Alves
dos Santos Jr. afirma que a obra é um convite à
reflexão sobre as políticas de revitalização urbana no
contexto de difusão do empreendedorismo neoliberal.
“Nelson Diniz propõe compreender este projeto à luz
da teoria urbana crítica. Assim, debruçando-se sobre
o processo de transformação da região portuária
e sobre os diferentes projetos de renovação desse
espaço, o autor empreende uma análise em torno da
1
Nelson Diniz é Graduado em Geografia pela Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Planejamento Urbano e Regional
pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (IPPUR/UFRJ). Atualmente é professor do Departamento de Geografia do Colégio Pedro II e
Doutorando no IPPUR/UFRJ. E-mail: [email protected]
66
construção social do discurso da revitalização das áreas centrais das cidades, no
caso em questão, da área portuária da cidade do Rio de Janeiro”.
Mas o que fundamenta discursivamente o Porto Maravilha?
Nelson Diniz aponta que o Projeto Porto Maravilha se baseia em termos da
construção social do discurso no “imaginário da revitalização”. Quando o Brasil e o
Rio de Janeiro são escolhidos, respectivamente, para sediar a Mundial FIFA 2014 e
os Jogos Olímpicos de 2016 delineia-se um momento oportuno – aliado à conjuntura
de crescimento econômico do país – para realizar o chamado “milagre carioca” do
qual emergiu uma coalizão urbana envolvendo os diferentes níveis de governo e
os tradicionais e novos atores da economia da cidade. Todos praticando um novo
modelo de governança empreendedora a fim de transformar o Rio em uma global city.
O Porto Maravilha se insere nesse processo. O modelo que o fundamenta são
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
experiências internacionais “bem-sucedidas” como as de Boston e de Baltimore
(EUA); de Puerto Madero, em Buenos Aires (Argentina); de Kop van Zuid, em Roterdã
(Holanda); e especialmente Port Vell, em Barcelona (Espanha). Nelson Diniz cita no
livro o discurso do próprio prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (2011), em que
enaltece o modelo de Barcelona:
E
Como preparar o Rio para receber o maior evento esportivo do planeta e
aproveitar essa oportunidade para transformar as condições de vida dos
cariocas? Estamos seguindo à risca o que me disse Pascal Maragal, prefeito
de Barcelona à época das Olimpíadas de 1992 e cujo modelo de organização é
uma inspiração. (p.77).
Mas quais as diferenças entre revitalização e renovação urbana? Diniz mostra,
citando Del Rio (1991; 2001; 2010), que a revitalização caracteriza-se, entre outros
aspectos, pela conservação do patrimônio, a contextualização, o estímulo aos usos
mistos e as formas “flexíveis” de gestão e planejamento. Por sua vez, os princípios
de ordem, normatização e funcionalidade caracterizariam as políticas de renovação
urbana, assim como o desprezo pelas tradições e particularidades culturais,
históricas e ambientais. Tais argumentos fundamentam-se num maniqueísmo que
opõe renovação/modernidade e revitalização/pós-modernidade.
“A partir de Boston e Baltimore, a revitalização de regiões portuárias tornou-se
67
um modelo difundido e reproduzido em diversas cidades do mundo. A revitalização
urbana contrastaria com as práticas de renovação, de demolição-reconstrução,
inspiradas no ideário do movimento modernista”, afirma Nelson.
No caso do Rio de Janeiro, porém, a opção discursiva pela revitalização urbana
não eliminou o eventual recurso à demolição-reconstrução e seus efeitos. “No Porto
Maravilha, destacam-se a demolição do Elevado da Perimetral e de antigas edificações
que abrigam ocupações populares. Apesar das controvérsias sobre a destruição
da principal ligação viária das zonas Sul e Norte do Rio de Janeiro, o que dizer da
remoção dos moradores das ocupações, além daqueles do Morro da Providência?”,
questiona Nelson e conclui:
“Ao analisar na prática o Projeto Porto Maravilha e o seu modo de implementação,
fica claro que se aproxima mais de um conceito clássico de renovação urbana
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
caracterizado por romper ligações comunitárias, favorecer a formação de centros
de negócios de luxo e por permitir, com a ajuda de recursos públicos, benefícios a
investidores e proprietários”.
Percurso histórico: projetos sucessivos de renovação do porto
No livro, Nelson Diniz investiga os vários projetos elaborados para o Porto do Rio
E
de Janeiro desde a década de 1980 com o objetivo de demonstrar que o ideário de
revitalização da zona portuária é antigo, mas sempre esbarrou nos entraves políticos
e conflitos de interesse.
De acordo com o pesquisador, as primeiras propostas de revitalização da região
portuária, elaboradas pela Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e por
outros atores da iniciativa privada, surgiram no contexto da crise econômica do
país, do estado e da cidade do Rio de Janeiro, na década de 1980. Resistências
das autoridades portuárias, dos Governos Municipal e Federal e mobilizações
comunitárias pela conservação das características históricas dos bairros da Saúde,
Gamboa e Santo Cristo, inviabilizaram os projetos.
Já nos anos 1990, às ações da ACRJ e dos órgãos da administração portuária
68
acrescentaram-se aquelas dos Governos Municipal e Federal. “A Lei de Modernização
dos Portos, de 1993, estabeleceu as bases jurídicas da revitalização de áreas
portuárias no Brasil, implicando em complexas negociações entre as autoridades
portuárias, a iniciativa privada e as esferas de governo. As relações entre esses atores
manifestaram ora tendências à cooperação, ora conflitos de interesses. No caso do
Rio de Janeiro, divergências entre os atores envolvidos comprometeram a realização
dos diversos projetos”, explica.
No início dos anos 2000, a elaboração do “Porto do Rio: Plano de Recuperação e
Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro” marcou a retomada dos debates.
O livro mostra que pela primeira vez, desde os anos 1980, construíram-se grandes
equipamentos urbanos: a Vila Olímpica da Gamboa e a Cidade do Samba. Ao mesmo
tempo, controvérsias acerca da instalação de uma filial do Museu Guggenheim no
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Píer Mauá impediram a continuidade das ações.
Somente no final da década de 2000, e em estreita relação com as propostas
que o antecederam, o Projeto Porto Maravilha foi instituído pela Lei Complementar
Municipal nº 101, de 23 de novembro de 2009. “Trata-se de uma Operação Urbana
Consorciada (OUC), numa área de aproximadamente 5 milhões de metros quadrados.
A Lei nº 101/2009 alterou os parâmetros de uso e ocupação do solo da região
E
portuária, estabeleceu intervenções prioritárias de infraestrutura e transporte, assim
como mecanismos público-privados de gestão e financiamento”, afirma.
Projeto Porto Maravilha, renovação urbana e gentrificação
Nelson Diniz aponta também a expansão da área central da cidade e a produção
dos chamados marcos de distinção; além de tendências à gentrificação da região
portuária da cidade.
Segundo o autor, em 2010 as moradias de 671 famílias do Morro da Providência
foram marcadas para demolição no âmbito do projeto Morar Carioca, programa
municipal de urbanização de favelas. “Embora o Morar Carioca não tenha sido objeto
das reflexões do meu estudo, pode-se dizer que suas intervenções, assim como a
UPP, complementam as do Porto Maravilha. Dentre elas, sobressai a construção de
69
um teleférico conectando a Central do Brasil, na Avenida Presidente Vargas, o Morro
da Providência e a Cidade do Samba, o que coincide com os princípios e diretrizes da
Lei nº 101/2009 sobre a expansão da Área Central da cidade”, argumenta.
Diniz afirma que esses projetos (Morar Carioca, UPPs, Porto Maravilha e Porto
Olímpico) fazem parte de um projeto maior de inserção do Rio de Janeiro na lista
das global cities e, também, simbolizam um aparato para receber a comunidade
internacional durante os grandes eventos esportivos.
Sobre o processo de gentrificação, o autor mostra que o discurso da Prefeitura
do Rio de Janeiro prevê um adensamento demográfico na região. Sérgio Dias, atual
Secretário de Urbanismo da cidade do Rio de Janeiro, afirmou em 2010:
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Espera-se que a população atual de 22 mil habitantes, distribuída basicamente
em seis bairros vizinhos – Centro, Santo Cristo, Gamboa, Saúde, Cidade Nova e
São Cristóvão –, chegue, numa primeira etapa, a 100 mil pessoas. Como ocorreu
em outras cidades que fizeram a reconversão da região portuária, a ideia é ter
edificações não apenas residenciais, mas que mesclem habitações com outras
funções de cunho comercial, empresarial, cultural etc.
Porém, no que se refere aos usos residenciais, destacam-se os correspondentes
às classes médias. “O projeto da Prefeitura é atrair a classe média e, num segundo
momento, as classes populares. O que se verifica até agora é que ações de promoção
de moradia de interesse social e de regularização fundiária são residuais, o que
E
coloca em questão a base social do crescimento demográfico esperado para a região
portuária”, afirma Diniz e conclui:
“O Porto Maravilha não é simplesmente o resultado de um novo momento do
Rio de Janeiro, associado à realização de megaeventos na cidade e à conjuntura
política e econômica recente do Brasil. Na verdade, o projeto realiza, sob novas e
velhas formas, o que foi transformado em consenso ao longo do debate sobre a
revitalização da região portuária. Por último, em que pese ser temerário afirmar desde
já a gentrificação da região portuária, o que exige o desenvolvimento de pesquisas
posteriores, estão dadas as condições para a reconquista do centro da cidade por
setores sociais afluentes. Resta saber se eles realmente virão”, reflete Diniz.
70
07
Olimpíadas 2016 e os impactos
da “revolução dos transportes”
sobre a justiça socioespacial
Texto adaptado por Breno Procópio com base na versão publicada no Boletim
Semanal do Observatório das Metrópoles nº 442, 30 jun. 2016.
É
possível que a revolução dos transportes anunciada pelo
Governo do Rio de Janeiro no contexto dos preparativos para
os Jogos Olímpicos de 2016 consiga reverter a grave crise
de mobilidade enfrentada em seu território? Guiado por esse
questionamento, o pesquisador Jean Legroux1 desenvolveu
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
em sua tese de doutorado uma contribuição inovadora ao avaliar os impactos dos
projetos de transporte sobre a justiça socioespacial no Rio de Janeiro por uma ótica
multiescalar e multicritério.
Titulada “A acolhida da copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016 e os impactos
da ‘revolução dos transportes’ sobre a justiça socioespacial: mudar tudo para que
E
nada mude?”, a tese foi produto de uma colaboração acadêmica da Université Lyon
2 e o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Em seus resultados, Legroux mostrou que os impactos da
“revolução dos transportes” provocaram mudanças que não rompem com o modelo
de mobilidade rodoviarista brasileiro, tampouco com as lógicas de segregação da
cidade neoliberal.
Nesta ótica, Legroux assinala que a estratégia de “cidade atrativa”, no Rio de
Janeiro, corresponde a um estágio avançado da neoliberalização e mercantilização
do seu espaço urbano baseada no trinômio formado pelos megaeventos (estratégia
consagrada com a realização da Copa do Mundo 2014 e das Olímpiadas 2016), pelo
1
Jean Legroux é pesquisador do Laboratoire d’économie des transports (LET) – ENTPE/
Université Lyon 2/CNRS, e do Observatório das Metrópoles – IPPUR/UFRJ.
72
contexto econômico favorável e pelo alinhamento conjuntural entre os três níveis
de governo. Segundo o pesquisador, esta política de construção e de governança
neoliberal do espaço urbano – que implica uma reconfiguração das coalizões de
atores historicamente presentes no circuito da acumulação urbana – funda-se na
requalificação urbanística da cidade do Rio de Janeiro para duas finalidades: inserila na competição internacional das cidades, de modo com que a cidade escape,
no plano nacional, da sua trajetória de decadência econômica e política percebida
especialmente a partir da década de 1980.
Nos discursos oficiais, as transformações urbanas em curso responderam
às necessidades da “Cidade Olímpica” e geraram impactos positivos para os seus
habitantes e aqueles da Região Metropolitana. Neste contexto, os investimentos
em infraestruturas de mobilidade foram os mais importantes, representando 55%
dos investimentos realizados tanto para a Copa do Mundo de 2014, como para as
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Olimpíadas 2016.
“Além do valor investido, os impactos dos projetos de transporte são certamente
os mais significativos sobre o espaço urbano, levando os poderes públicos a falarem
de uma ‘revolução dos transportes’ capaz de solucionar a crise da mobilidade urbana
claramente vinculada aos processos de segregação e exclusão urbana. De fato, este
E
contexto de construção da cidade atrativa permite uma concentração histórica de
investimentos em transporte coletivo com uma ‘rede estruturante’ de BRT com quatro
corredores (o Transoeste, o Transcarioca, o Transolímpica, o Transbrasil), de mais de
150 quilômetros; um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) na Zona Portuária, que passa
por uma revitalização completa através do projeto Porto Maravilha; a construção da
Linha 4 do metrô ligando a Zona Sul (bairro de Ipanema) à zona da Barra da Tijuca; a
renovação e extensão da rede de trens; e a construção de três teleféricos em favelas
ou conjunto de favelas”, descreve Jean Legroux.
Segundo o pesquisador, os principais projetos de transporte da “revolução
dos transportes” conectam entre si os clusters olímpicos (Barra da Tijuca, Deodoro,
Maracanã e a Zona Sul), beneficiando especialmente as zonas da Barra de Tijuca e
de Jacarepaguá, que recebem três das quatro linhas de BRT previstas e a Linha 4 do
73
metrô. “A revolução dos transportes - salvo as promessas de renovação do sistema de
trens que servem à Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) – concentra-se,
portanto, no território do município do Rio de Janeiro. Ela se faz acompanhar também
de uma reforma político-institucional do sistema de transporte por ônibus, que implica
esforços em termos de integração física e tarifária no sistema de transporte coletivo
como um todo”, afirma o pesquisador.
A tese mostra que essas mudanças no cenário do transporte coletivo no Rio
de Janeiro seriam capazes, segundo os discursos oficiais, de reverter o quadro da
crise da mobilidade urbana. Na RMRJ, o transporte coletivo representa 71% das
viagens motorizadas, contra 29% pelo transporte individual, o que faz desta crise
da mobilidade uma crise do transporte coletivo, principalmente do transporte por
ônibus (que representa mais de 75% das viagens quotidianas realizadas na RMRJ,
em 2014). “O abandono dos sistemas metroviários e ferroviários durante décadas
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
- correlativamente à expansão dos sistemas de ônibus (desde os anos 1950) e ao
crescimento exponencial das frotas de automóveis e de motocicletas (especialmente
a partir dos anos 2000) – são fatores que explicam a crise da mobilidade urbana no
Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que esta crise da mobilidade atinge todas as categorias
sociais (embora de forma desigual), na medida em que os congestionamentos
E
crescentes atingem tanto aos usuários de ônibus, quanto aos motoristas de carros
particulares”, aponta Legroux.
Desse modo, a revolução dos transportes seria capaz de reverter a crise da
mobilidade no Rio de Janeiro? Esse é ponto de partida da tese que busca avaliar,
através de uma análise multi-escalar (incluindo as dimensões metropolitana,
municipal e intraurbana), os diversos impactos dos projetos de transporte sobre a
justiça socioespacial no Rio de Janeiro. Em outras palavras, mesmo que se observem
impactos positivos para a população, eles serão repartidos de forma justa entre os
diferentes grupos sociais do espaço urbano do Rio?
“A escolha do paradigma da justiça para compreender os impactos diferenciados
da ‘revolução dos transportes’ tem como objetivo resolver concretamente esse tipo de
dilema: uma infraestrutura de transporte é justa, se, ao mesmo tempo em que permite
74
a 200.000 pessoas de baixa renda melhorar a sua mobilidade justifica a expropriação
de centenas de famílias pobres realocadas em periferias distantes?”, provoca Jean
Legroux.
Uma das primeiras hipóteses do trabalho de pesquisa é que a justiça socioespacial,
em qualidade de ferramenta teórica e analítica, é pertinente para o estudo dos
processos de exclusão e de diferenciação socioespacial decorrente dos megaeventos
e dos projetos de transportes. “De fato, mesmo dada a existência de uma legado dos
megaeventos para a cidade em termos de infraestruturas urbanas, os projetos não
beneficiam da mesma forma a todos os habitantes e suscitam diversas formas de
injustiças. O marco multicritério da justiça tem o objetivo de enxergar onde, como e por
que os impactos da construção da “cidade atrativa” e da “revolução dos transportes”
são injustos ou poderiam ser menos injustos do ponto de vista socioespacial”, afirma
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
o pesquisador.
Outra hipótese do trabalho postula que os impactos e desafios próprios aos
processos de metropolização e, particularmente aos processos de fragmentação do
espaço urbano – cujo cunho é um modelo de organização social do território fortemente
marcado pela segregação residencial –, são exacerbados com a organização
de megaeventos. Isso significa que o desafio da mobilidade urbana, no seio dos
E
processos de metropolização, é também um fator fundamental da organização de
um megaevento. Assim, os projetos de infraestruturas de transporte, no contexto da
cidade, seriam capazes de atender simultaneamente aos objetivos de curto prazo
(os eventos em si, os interesses turísticos, comerciais, midiáticos e imobiliários do
poder econômico e financeiro local, nacional e internacional, por exemplo) e à uma
dinâmica de planejamento urbano de médio e longo prazo voltada às necessidades
da população?
Nessa ótica, a problemática geral da tese é: detrás dos discursos oficiais e do
marketing urbano, quais são os impactos das políticas e dos projetos de transporte –
no contexto da cidade atrativa no Rio de Janeiro – sobre a justiça socioespacial?
Baseada em diversos critérios de justiça, reunidos em categorias chamadas de
75
“qualidades éticas”, o arcabouço analítico multicritério da justiça permite avaliar: a) os
impactos dos projetos de transporte sobre a satisfação da demanda, em termos da
capacidade e da qualidade; b) a capacidade da “revolução dos transportes” em reverter
o quadro da crise da mobilidade; c) os efeitos sobre outros processos, tais como as
expropriações e a especulação imobiliária. A metodologia qualitativa (entrevistas
semi-direcionadas e observação de campo), junto com o referencial multicritério de
justiça, permite identificar os diversos grupos de atores em conflito na construção da
“cidade atrativa” e, dentre estes, aqueles que “ganham” e aqueles que “perdem”.
De acordo com Jean Legroux, os resultados da investigação indicam que os
impactos da “revolução dos transportes” na cidade do Rio de Janeiro, neste contexto
de construção da “cidade atrativa”, provocam mudanças que não rompem com o
modelo de mobilidade rodoviarista brasileiro, tampouco com as lógicas de segregação
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
da cidade neoliberal. “Mudar tudo para que nada mude?”, provoca o pesquisador.
A tese analisa a construção da “cidade atrativa” no Rio de Janeiro em um
contexto de metropolização e de competição internacional das cidades, onde elas
transformam os seus espaços urbanos graças à atração de capitais internacionais
e de investimentos nacionais (maioritariamente públicos). Nesse sentido, a análise
dos projetos de transporte relacionada às dinâmicas imobiliárias e às políticas
E
habitacionais constitui uma ferramenta privilegiada para compreender os impactos e
contradições da justiça socioespacial na estratégia neoliberal de construção de uma
“cidade atrativa”. Além disso, os projetos de transporte tiveram impactos diretos sobre
as remoções de famílias e comunidades de baixa renda. A interação entre processos
da “cidade atrativa” e os impactos de “revolução dos transportes” mostrou-se evidente.
“Este trabalho não se limitou à realização de um diagnóstico geral da ‘revolução dos
transportes’ — isto é, as conclusões sobre a capacidade, a qualidade e a pertinência
de cada modo de transporte, individualmente ou como um todo — mas tratou de
avaliar as consequências, de forma geral, de um modelo neoliberal de governança e
transformação urbana – necessariamente contraditório. De fato, como sugerido por
Gotham, o contexto de acolhida de megaeventos costuma revelar as tensões latentes
da sociedade”, explica Jean Legroux.
76
Metodologia
A metodologia da tese baseou-se na Geografia atual, em que a espacialidade
das injustiças urbanas é sumamente importante, compreendendo também a cidade
através do paradigma da justiça socioespacial. Seguindo esta lógica, a análise
geográfica do espaço urbano instaura um diálogo entre diferentes conceitos éticos da
justiça advindos de diversos paradigmas de filosofia política. “Baseada em diferentes
qualidades éticas, a confrontação de diversos critérios de justiça foi útil para deslocar
a análise entre as diversas escalas urbanas, compreendendo simultaneamente
a dimensão conflitual das transformações urbanas. Os resultados da aplicação da
metodologia possibilitaram a identificação de alianças urbanas, a oposição de diversos
interesses em jogo e a definição de vencedores e perdedores”, explica Legroux.
O trabalho mostra, por exemplo, que existe uma aliança urbana “dominante”
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
composta pelos governos locais (e o Governo Federal), as empresas concessionárias
de transporte coletivo, de marketing e publicidade, os patrocinadores oficiais das
competições, as grandes empresas de construção civil e de incorporação imobiliária.
Esta aliança urbana age, ao mesmo tempo, a serviço das classes médias e altas, das
elites locais, dos setores econômicos e financeiros envolvidos nesta transformação
urbana de grande porte, e da chamada world class (investidores estrangeiros, turistas,
E
atletas, etc.).
Por outro lado, as populações de baixa renda, a maioria moradores de favelas e
comunidades de habitação precária, foram excluídas dos benefícios da construção
da “cidade atrativa” e da “revolução dos transportes”:
“As entrevistas realizadas com habitantes de favelas neste trabalho correspondem
à analise de várias zonas e comunidades urbanas afetadas direta ou indiretamente
pela cidade atrativa. Sem reduzir a compreensão dos habitantes de favelas como
um grupo homogêneo em termos de interesse, de desejos e de condição material
de vida, a identificação de coalizões de interesses permitiu identificar grandes
tendências, sempre tratando de ficar atento à descrição e distinção dos diversos
casos de estudos e/ou atores entrevistados. O mesmo vale para os outros grupos
77
de afinidades utilizados neste trabalho. Este tipo de classificação em dois grandes
grupos possui evidentemente matizes, oposições e conflitos internos, porém, permite
traçar tendências e fazer algumas generalizações”, argumenta o pesquisador.
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Figura 5. O mapa das remoções, por Lucas Faulhaber e Lena Azevedo (SMH 2016: Remoções no Rio
de Janeiro Olímpico, Mórula Editorial, 2015).
Remoções
Do ponto de vista das comunidades de baixa renda, algumas conclusões
gerais são apontadas na tese: a maioria das comunidades removidas no contexto
de megaeventos não teve direito a dialogar com os poderes públicos. Uma grande
E
maioria dos removidos foi realojada (sobretudo pelo programa Minha Casa Minha
Vida - MCMV) ou obrigada a reassentar-se em periferias distantes da cidade; outra
boa parte dos removidos e/ou ameaçados de remoção transmitiu um sentimento de
injustiça e de desclassificação social.
Já na aliança formada pelos governos, pelo setor privado e pelas elites urbanas,
Jean Legroux afirma que foi observada uma tendência a minimizar os impactos dos
projetos de transporte e de renovação urbana em termos de remoções. “A maioria
dos discursos deste grupo aborda os impactos positivos anunciados e raramente
considera qualquer caráter injusto (segundo diversos critérios de justiça) dos
processos em curso para as populações de baixa renda. Um terceiro grupo de
pessoas entrevistadas, professores, pesquisadores e membros de associações de
classe, aportou elementos fundamentais à análise”.
78
Conclusões
Segundo Jean Legroux, o marco teórico construído em torno da noção de justiça
permitiu um diálogo entre as diferentes teorias da justiça (advindas da filosofia política),
aplicadas à analise do espaço urbano na Geografia. Este diálogo se superpôs à
analise empírica, isto é, aos discursos e opiniões sobre os impactos da “revolução
dos transportes”.
“A qualidade ética da ‘propriedade/eficiência’, que representa o pensamento de
justiça em termos de eficiência e de utilitarismo, foi fundamental para compreender a
lógica de uma aliança com poder de decisão e interesse nas transformações urbanas.
Com relação à rede de BRT, o argumento econômico foi fortemente utilizado em
termos de racionalidade da escolha (a relação custo/eficiência, por exemplo) dados
os limites em termos de financiamento da extensão das redes de metrô e de trem. A
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
lógica de cunho utilitarista preocupa-se com a eficiência, amplitude e imagem dos
investimentos, mais do que com a repartição dos benefícios aportados por estes”,
afirma o pesquisador.
Já a qualidade ética da “equidade” foi dividida em quatro critérios de justiça. Os
dois primeiros critérios são os de “equidade territorial” (que se traduz num princípio
E
de acessibilidade, pelo qual todos os indivíduos devem ter acesso às mesmas
amenidades urbanas, por exemplo) e de “equidade horizontal” (pelo qual uma
infraestrutura urbana é justa se não beneficia mais a uns indivíduos do que a outros).
“Estes dois critérios voltam a atenção aos fatores de localização geográfica dos
habitantes de baixa renda, de concentração e de déficit estrutural de infraestruturas
de transporte coletivo, permitindo concluir que não existe qualquer forma de
igualdade de acesso ao transporte coletivo (e privado) no Rio de Janeiro. Além
disso, a universalidade de acessibilidade é prejudicada pelos aumentos sucessivos
das passagens de transporte. A ‘revolução dos transportes’ não tem se preocupado
com a igualdade de acesso ou de uso dos diferentes meios de locomoção – o que
corresponderia à realização do critério de equidade horizontal”, analisa Legroux.
Na tese o terceiro princípio é de equidade vertical, correspondendo ao maximin
79
rawlsiano, que permitiu concluir que a “revolução dos transportes” e a cidade atrativa
em geral, não são justas se considerarmos que os indivíduos menos favorizados
deveriam ter recebido o máximo de vantagens possíveis. Segundo este critério de
equidade, as populações mais vulneráveis deveriam ter recebido mais do que as
outras, porque isto teria significado uma redução de uma diferença injusta (o fato de
pertencer a uma camada social de baixa renda, por exemplo).
“Se a compensação fosse superior à perda, poderíamos considerar que uma
expropriação não é necessariamente injusta em si. Nos terrenos urbanos estudados
no Rio de Janeiro, as remoções são injustas segundo o critério de equidade vertical,
pelas seguintes razões: 1) as populações removidas à força já estavam desfavorecidos
na estrutura socioespacial carioca; 2) as indenizações não contemplaram nem as
expetativas dos habitantes (de maneira geral, salvo exceções), nem a realidade do
preço do solo dos terrenos, tendo em vista as situações habituais de ausência de
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
indenização ou indenizações irrisórias, remoções violentas e substituição por moradia
social em regiões muito distantes à área anteriormente ocupada (às vezes, 30, 40 ou
50 quilômetros)”, defende o pesquisador.
O quarto princípio, de equidade “real”, que se preocupa com as realizações
concretas, levou a compreender, por exemplo, a prática concreta de um novo modo
E
de transporte instalado. O BRT Transoeste transporta aproximadamente 200.000
pessoas, mas em que condições? A preocupação da equidade “real” permitiu concluir
que a rede de BRT, mas também os teleféricos, não aportam mudanças positivas
significativas na qualidade da mobilidade dos usuários – isto vale também para o
sistema de trens de subúrbios.
A “revolução dos transportes”: a permanência do modelo rodoviarista de
mobilidade e dos processos de segregação socioespacial. A tese mostra ainda que
a “revolução dos transportes” é uma reviravolta, em termos de amplitude financeira
e territorial, dos investimentos e de avanços na integração tarifária - por exemplo,
no sistema de transporte coletivo da cidade do Rio de Janeiro. Ela não se inscreve,
porém, em um contexto de mudança de paradigma.
80
“Em efeito, a ‘revolução dos transportes’, por ter nascido em um contexto de
governança neoliberal do espaço urbano, reforça os processos de segregação
socioespacial. Em outras palavras, reforça a ação das políticas públicas habitacionais
e da produção privada de moradias, tendo como consequência a intensificação da
produção de áreas urbanas supervalorizadas e a localização cada vez mais distante
de zonas habitacionais de populações de baixa renda”, explica o pesquisador.
De acordo ainda com Legroux, atrás da mudança político-institucional do modelo
de transporte por ônibus, que aporta um avanço em termos de integração tarifária (que
beneficia mais as empresas de ônibus que aos usuários), a “revolução dos transportes”
continua sendo posta a serviço da exclusão socioespacial das populações de baixa
renda e das lógicas de especulação imobiliária que acompanham a instalação e
consolidação das classes médias e das classes altas nas zonas urbanas em curso
de valorização. O contexto de urgência gerido pela acolhida de megaeventos, que
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
se caracteriza por uma flexibilização dos regimes jurídicos, econômicos, financeiros
etc., constitui uma aceleração dos processos de exclusão, tendo sérios impactos no
E
desenvolvimento urbano de longo prazo.
81
08
Transição regulatória no
transporte por ônibus na
cidade do Rio de Janeiro
Resenha de Breno Procópio sobre no livro "Transição regulatória no transporte
por ônibus na cidade do Rio de Janeiro", disponível para download no
site do Observatório das Metrópoles:
<http://goo.gl/17KzaE>
N
o ano de 2010, pela primeira vez na história, a Prefeitura da
cidade do Rio de Janeiro realizou uma licitação pública para a
concessão privada de todo o sistema de transporte por ônibus.
Tal medida foi justificada porque no Rio de Janeiro, o modelo
vigente há décadas, de permissões para as empresas
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
operarem linhas de ônibus, tem prejudicado a organização e a racionalização do
sistema e estimulado a concorrência predatória entre os diversos modos de transporte
que operam na cidade, em detrimento da integração”.
Para isso, a cidade foi dividida em cinco
regiões, chamadas de Redes de Transportes
E
Regionais (RTRs).Cada uma delas foi concedida
a um consórcio diferente. Ao garantir uma área
delimitada – e exclusiva – para a atuação de cada
consórcio vencedor da licitação, pretendiase acabar com a competição territorial entre
as empresas de ônibus. A racionalização das
linhas (entendida como adequação entre a
demanda de passageiros e a oferta de ônibus)
contribuiria para diminuir o custo das empresas
e, consequentemente, o valor da tarifa.
Os consórcios vencedores da licitação também viriam a operar os futuros
corredores expressos de ônibus (Bus Rapid Transit - BRT) entre Barra da Tijuca e o
83
Aeroporto Internacional do Galeão (TransCarioca); entre Barra da Tijuca e Santa Cruz
(TransOeste); entre Recreio dos Bandeirantes e Deodoro (TransOlímpica) e entre
Deodoro e o Aeroporto Santos Dumont (TransBrasil).
A concessão abrangente do sistema de transporte por ônibus, com a relação
entre a Prefeitura e as empresas de ônibus regidas por um contrato público e com
prazo determinado sinalizaria uma importante mudança na política de transportes do
Rio de Janeiro. Importância diretamente relacionada à predominância deste modal no
contexto geral do transporte coletivo na metrópole fluminense.
Neste trabalho, buscamos analisar em que medida o processo de reorganização
do transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro se vincula com as transformações
mais gerais da ordem urbana em curso na cidade e como a redefinição de uma coalizão
de interesses em torno da acumulação urbana implica em mudanças/continuidades
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
da política municipal de transportes.
Ao analisar a trajetória histórica dos transportes urbanos do Rio de Janeiro ao longo
do século XX, identificamos ciclos de desenvolvimento no setor que repetem padrões,
incorporando algumas mudanças em função das novas condições institucionais,
políticas etc. As mudanças atuais seriam parte integrante de um processo composto
E
por ciclos de crises, reestruturações e reorganizações sobre novas bases e novas
condições.
Resumidamente, o período do Estado Novo (1930-1945) foi marcado por um
controle mais centralizado sobre os transportes públicos. Caracterizou-se pelo
predomínio do transporte ferroviário organizado diretamente pelo Estado, no caso dos
trens, e pela Light, empresa de capital internacional que monopolizou a operação dos
bondes, via concessão. Os ônibus tinham uma função complementar e a regulação
estatal restringia a proliferação de empresas.
A crise do setor ao longo da Segunda Guerra Mundial em função do aumento
do custo dos combustíveis e da dificuldade de importação de peças e materiais de
transporte ajudou a criar condições para uma reestruturação a partir de 1945. O fim
da guerra marca uma mudança política com viés liberalizante para o setor. O novo
84
governo estimula a expansão da oferta de transportes e o serviço cresce de forma
exponencial e pulverizada, principalmente pelo avanço das lotações, caracterizando
um período de forte concorrência direta entre os modais (bondes, Trens, ônibus,
lotações). As lotações acabam por se sobressair e desestruturam o modelo anterior de
controle centralizado. Além disso, impulsionam a transição para o modelo rodoviário
no transporte coletivo.
Este modelo de competição aberta volta a ser reestruturado pelo Estado no
período 1958-1967 por meio de medidas que forçaram a concentração do capital,
promoveram o surgimento de novas empresas de ônibus e criaram as bases para uma
nova organização do setor, entre o final dos anos 1960 até a concessão de 2010. Esta
nova organização que se consolida no período está baseada no padrão rodoviário, no
estatuto jurídico das permissões e em empresas de ônibus maiores, organizadas num
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
sindicato patronal (Fetranspor) crescentemente mais forte politicamente.
A regulação do setor se fundamenta através da concessão de privilégios, numa
relação patrimonialista com o Estado: a garantia de rentabilidade, via mecanismos
de acumulação por espoliação, e a reserva de espaços de acumulação, através do
bloqueio à entrada de novos operadores.
E
Na segunda metade dos anos 1990, este modelo de organização do setor
começa a apresentar sinais de esgotamento. O avanço do transporte informal e o
grande aumento do transporte individual levam a quedas constantes na demanda de
passageiros para as empresas de ônibus.
A perspectiva que prevalece, de corte liberal, diagnostica este momento de crise
como resultado da falta de eficiência e competitividade que caracterizariam o setor. O
protecionismo estatal impedira o desenvolvimento de um ambiente competitivo entre
as empresas de transporte, prejudicando sua modernização. Portanto, uma nova
organização deveria ser buscada.
As soluções deveriam vir da introdução de elementos de competitividade no setor,
passando necessariamente por uma nova relação e redefinição das competências
entre o poder público e as empresas para que estas pudessem organizar suas
85
operações de acordo com as circunstâncias dinâmicas do mercado (ou seja, maior
capacidade de planejamento e de organização privadas do transporte). Aqui se
inserem as mudanças regulatórias do início do século XXI, que têm seu marco na
concessão abrangente do sistema de transporte por ônibus implementada em 2010.
A partir desta perspectiva, este trabalho destaca as mudanças e continuidades
na emergência de um novo ciclo de desenvolvimento do setor.
Dentre as continuidades, destacam-se: a) espaços de acumulação reservados
– as mesmas empresas que já atuavam no transporte por ônibus na cidade saíram
como vencedoras da licitação, que definiu um longo prazo de concessão (20 anos
prorrogáveis por mais 20); b) acumulação por espoliação – as formas de espoliação
são readaptadas, mas continuam baseadas na garantia estatal, via mecanismos
“pervertidos”, de uma rentabilidade superior a que o setor poderia auferir
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
exclusivamente da atividade econômica; c) controle das informações – as empresas
de ônibus reforçam o controle sobre as informações do sistema de transporte,
restringindo o acesso e a fiscalização da sociedade civil e do poder público em suas
diferentes esferas; d) estrutura empresarial – a concentração do capital em poucos
grupos empresariais dominantes é outro aspecto que permanece no novo modelo de
E
operação por consórcios.
Já entre as principais tendências de mudança estão: a) o fortalecimento dos
grupos dominantes – no sentido de uma maior centralização do poder de decisões
e de controle da política e do sistema de transportes municipal, especificamente por
meio da Fetranspor; b) a modernização do negócio – o BRT aparece como um novo
modo de transporte, mais racionalizado, que permite uma modernização operacional
e organizacional para o negócio do transporte por ônibus; c) a expansão para outros
meios de transporte – a criação de holdings direcionadas aos negócios relacionados
ao transporte (administração de terminais, publicidade, bilhetagem eletrônica) e
participações acionárias em outras concessões (Barcas, VLT), indicam uma estratégia
de expansão do capital destes grupos, que passam a atuar em uma série de negócios
vinculados ao transporte coletivo de passageiros.
86
Assim, procuramos pensar as mudanças do modelo historicamente privado
de ônibus no contexto da neoliberalização. Várias formas de capital coexistem no
mesmo espaço e se apóiam mutuamente. O velho capital mercantil das empresas
de ônibus se articula com as novas formas de acumulação urbana dos capitais
nacionais e transnacionais. O que se presencia é uma reconfiguração e modernização
conservadora do modelo. A concessão não é a transição em si, mas parte importante
deste processo. Por meio da concessão, o Estado cria as bases institucionais e
organizacionais a partir das quais as empresas poderão imprimir seu ritmo e dinâmica
de modernização e transição. O controle do processo está nas mãos da iniciativa
privada e de sua lógica, condicionado pelos imperativos organizacionais e estratégias
empresariais. Esta reestruturação estaria ajustando o setor e criando uma nova
E
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
organização para as condições de um novo ciclo de acumulação/desenvolvimento.
87
ENTREVISTA
09
Olimpíada Rio 2016:
para o benefício de quem?
Entrevista com Christopher Gaffney
Entrevista concedida a Breno Procópio, assessor de imprensa do INCT
Observatório das Metrópoles. Publicada originalmente no Boletim Semanal
Observatório das Metrópoles n. 444, 14 jul. 2016.
O
s megaeventos esportivos mundiais, como a Copa do Mundo
FIFA e os Jogos Olímpicos, transformaram-se em um modelo
de negócio na era globalizada responsável pela atração de
fluxos financeiros, reestruturação de circuitos de circulação
e acumulação local. Em entrevista para o INCT Observatório
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
das Metrópoles, o pesquisador estadunidense Christopher Gaffney mostrou como
os Jogos Olímpicos Rio 2016 representam mais uma etapa desse modelo formado
pela coalizão de interesses entre a classe política, a elite econômica local e os fluxos
de capital internacional. Em síntese, um processo com poucos ganhadores e muitos
perdedores.
E
“O legado que o ‘Rio Olímpico’ deixará para a sua população é de endividamento
do Estado e da Cidade; falência do sistema de educação e saúde; uma polícia mais
militarizada e menos treinada; e muitos casos de violações dos direitos humanos,com
mais de 77 mil pessoas removidas de suas casas”, aponta o pesquisador.
Christopher Gaffney possui mestrado em geografia na University of Massachusetts
at Amherst e doutorado em geografia na University of Texas at Austin. Atualmente
leciona na Universidade de Zurich, na Suíça. Ele tem realizado pesquisas no Brasil
nos últimos 12 anos, monitorando e avaliando os impactos sociais e urbanos dos
megaeventos esportivos no Brasil e no Rio de Janeiro, tratando de questões como
segurança pública, transporte, habitação e gentrificação, economia, culturas
esportivas e infraestruturas desportivas.
90
Entre 2009-2014, Gaffney manteve o blog Hunting White Elephants, que narrou
as provações e agruras de uma cidade contorcendo-se às exigências do espetáculo.
Ele também colaborou com a Rede INCT Observatório das Metrópoles, participando
do projeto “Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo 2014 e
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
das Olimpíadas 2016”.
E
Figura 6. Christopher Gaffney (Divulgação).
OBSERVATÓRIO. Você tem apontado que os megaeventos esportivos
transformaram-se em um novo modelo de negócio na era global. Como ocorre esse
processo?
CRISTOPHER GAFFNEY. Pensando os megaeventos esportivos como negócio
faz toda uma diferença em termos de análise. Normalmente, pensamos os Jogos
Olímpicos, por exemplo, como recordes, esporte de autorrendimento, dopings e outras
questões; ou seja, um esporte despolitizado. Mas, e quando pensamos o megaevento
no seu viés político e nos perguntamos por que é importante para um país ou uma
91
cidade atrair esse tipo de evento? Ou quais coalizões de políticos e capitais locais
se arregimentam para atrair o megaevento esportivo? Vemos que há muitos outros
interesses por trás. Vemos que há o interesse pelo poder — de capital político para
exercer influência local; mas, também há um processo de acumulação econômica de
recursos local e globalmente, o que é fundamental para a manutenção de eventos
como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Para acumular é necessário ter um
mecanismo de acumulação; um padrão de acumulação que deve estar atrelado ao
padrão de política econômica global. Então, temos visto o mesmo tipo de resultado em
todas as cidades que receberam megaeventos esportivos, como Londres, Vancouver,
Seul, Atena, Atlanta; e isso desde a década de 1980. Ou seja, podemos dizer que
os Jogos Olímpicos em particular — e também a Copa do Mundo de outra forma —
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
representam um modelo de business globalizado.
OBSERVATÓRIO. Você fala que esse modelo de negócio global ocorre a partir
de mecanismos como fluxo, circulação e acumulação. Como isso se dá?
C.G. Para estimular a acumulação de poder e de dinheiro, é necessário estimular
a geração de novos fluxos para uma cidade ou local. Quer dizer, colocar uma cidade
E
no mapa global é fazer com que os fluxos internacionais financeiros conheçam
aquela cidade, entendam seu funcionamento e saibam que terão portas abertas para
negócios. Esse processo atrai investimentos e mais fluxo de dinheiro para determinado
local – turismo, eventos, negócios e empresas, e por aí vai. Logo, quando uma cidade
se candidata para receber os Jogos Olímpicos, isso funciona com um sinal de aviso
internacional: “estamos aqui abertos para negócios”, ou seja, a cidade está à venda,
seu solo, seus espaços estão à venda ou podem ser alugados. Nesse sentido, os
cidadãos também estão à venda, porque também participam desse processo.
Esse sinal tem várias direções; é um marco para os fluxos financeiros
internacionais, como também para os capitais regionais e locais interessados em
participar do negócio. Em seguida, quando a cidade é escolhida para sediar os jogos
— como aconteceu com o Rio de Janeiro em 2009 — ocorre um aumento do fluxo
92
financeiro que vem de todas as direções interessados em realizar mais negócios.
Porém, para que esses fluxos se tornem em acumulação e, em decorrência, poder,
é necessário colocá-los em um circuito de circulação, seja através de informação em
redes de fibra óptica, seja em centros de mídia internacional e/ou em grandes estádios
capazes de receber os turistas endinheirados do mundo. Outro exemplo de circuitos
de circulação são novos sistemas de transporte que reafirmam ou apontam novas
centralidades econômicas e políticas no território. Então, esse processo de remanejar
o sistema de circulação de uma cidade gera implicações na sua economia política e
na forma de acumulação da sua população.
Essa é uma questão central no Rio de Janeiro, já que todo o transporte público é
privatizado — está nas mãos de empresas privadas. E é notório os casos de corrupção
e máfia das empresas de ônibus, como os processos licitatórios não transparentes
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
como o caso da Linha Quatro do metrô.
Esse triângulo — que em certo sentido é lefebvriano e dialético — mostra que no
centro está o poder. O passo seguinte é estimular os fluxos e, em seguida, direcionar os
circuitos de circulação para locais já dimensionados com o arranjo da economia local
já preexistente. Ou seja, a coalizão é feita para que os meus ganhadores continuem
ganhando. Nesse sentido, os atores locais podem acumular mais ao exercerem poder
E
no território para gerarem mais fluxos, circulação e acumulação.
OBSERVATÓRIO. Podemos dizer que conceitos como global city e cidades
criativas, usados pelo Rio de Janeiro para se vender para o mundo ao longo dos
últimos anos, fazem parte dessa estratégia de atração de fluxos para a geração de
negócios globais?
C.G. O Governo do Rio de Janeiro falava que a cidade era a capital de
investimentos no Brasil, ou seja, queria dizer que o Rio era o estado mais inserido nos
fluxos globais de capital. Nesse sentido, cidade global significa que é a cidade mais
conectada com esses fluxos, mais aberta para circulação e acumulação de capital
tanto para o investidor estrangeiro como para o local.
93
No contexto local, por exemplo, o objetivo é ampliar novas formas de acumulação
de capital pelo estímulo de circulação de fluxos. Nesse caso podemos pensar as
Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) como a entrada do Estado na favela e
a possibilidade também do capital nacional entrar nesses territórios, e, é claro, a
possibilidade dos turistas de acessá-las. As UPPs derrubaram as barreiras físicas
dessas favelas onde o Estado não entrava, e onde o capital também não. Quem
dominava os fluxos e a circulação nas favelas era o traficante ou, nos últimos tempos,
as milícias. A UPP representou também essa abertura. É claro que na proposta inicial
o Estado iria oferecer serviços sociais, mas isso parece que não aconteceu de fato.
OBSERVATÓRIO. Os megaeventos esportivos nem sempre representaram um
modelo de negócio global, não é? Como foi a transição para essa modelo? Barcelona
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
1992 é um marco neste novo processo global de fluxos de acumulação?
C.G. Acho que esse processo acontece um pouco antes. Em 1976 em Montreal,
por exemplo, ocorreu o endividamento total da cidade, com dívida a ser paga nos
próximos 30 anos. Daí ninguém no Canadá quis saber mais daquele modelo de
evento esportivo. Nos jogos de 1984 só tinha uma candidata que era Los Angeles;
E
mas é claro que a cidade norte-americana podia dizer ao COI o modo como ia
realizar o megaevento. Daí, os jogos de Los Angeles foram os mais comercializados/
mercantilizados na história dos jogos. Já em 1988 nos jogos de Seul, foram removidas
cerca de 200 mil pessoas de suas casas, e as manifestações de estudantes pelos
seus direitos foram reprimidas duramente. Aquele período marca a saída da Coreia do
Sul da ditadura, então os jogos olímpicos de 1988 foram utilizados como propaganda
das empresas coreanas para o resto do mundo — Hyundai, entre outras marcas —,
sendo também o nascimento do tigre asiático nessa época.
Em 1992 já temos o fim da Guerra Fria. É uma nova época com a experimentação
de novos modelos, e a intensificação do processo de globalização, ou seja, não havia
mais a luta do capitalismo contra o comunismo. Então, vemos a Espanha e Barcelona
se inserindo em uma nova rota do turismo internacional, com a explosão dos novos
94
meios de comunicação. Podemos dizer que Barcelona se tornou o novo modelo de
negócio nesse momento da globalização internacional.
E o Rio de Janeiro já está interessado nesse modelo desde a década de 1990.
Após os Jogos Olímpicos de Barcelona, o prefeito da época, César Maia, contratou
os catalães para a construção de um novo plano estratégico para a cidade. Quer dizer,
o Rio está buscando este modelo de circuito financeiro e turístico global há mais de
25 anos. Quando os políticos cariocas dizem que é o Rio é a capital do investimento,
significa que a cidade está aberta aos fluxos financeiros internacionais. É um modelo
de coalizão local para a geração de fluxo e acumulação. A questão é que são poucos
os ganhadores.
OBSERVATÓRIO. Quando o Rio de Janeiro foi escolhido em 2009 para ser sede
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
dos Jogos Olímpicos de 2016, os atores políticos e a grande imprensa comemoraram
a escolha como a possibilidade de retomada da cidade; e, sobretudo, de construção
de um legado olímpico para a sua população. Nas vésperas de começar os jogos, o
carioca pode comemorar esse legado?
C.G. Primeiro temos que recuperar o significado de legado, que pode ser tanto
E
positivo quanto negativo. É óbvio que os legados para a cidade do Rio de Janeiro são
negativos ao extremo: endividamento do Estado e da Cidade; falência do sistema de
educação e saúde; trânsito pior do que nunca etc. E são vários os culpados nesse
processo. Embora possamos notar no caso dos megaeventos esportivos o chamado
“vácuo de responsabilidade”, ou seja, o COI pode dizer que a cidade é responsável
pela infraestrutura; e a cidade dizer que o COI demanda certa coisas. Na Copa do
Mundo de 2014 foi a mesma coisa — governo federal, governo estadual, cidade-sede
ou FIFA, ninguém era responsável por nada, ninguém queria assumir a culpa. É o
famoso jogo de empurra. E o resultado são vários “elefantes brancos” andando pelo
país todo.
Sobre a questão do legado, vemos que para o carioca o que fica é negativo. O
cidadão tem menos opção de transporte; ou tem opções afuniladas para determinados
95
locais — como a Barra da Tijuca; e/ou superlotados — temos várias reportagens
mostrando a superlotação das linhas de BRTs e os problemas frequentes. A cidade
tem agora também uma polícia mais militarizada e equipada, e menos treinada.
Podemos ter o contexto no qual um novo policial vende seu armamento no mercado
negro — e ganha muito mais do que o seu salário. Isso pode ocorrer. Isso ocorre no
Rio.
Ou seja, todo o contexto de discurso positivo de legado para a cidade e sua
população foi agora perdido. Não pode ser provado e tampouco experimentado. Não é
a cidade do dia a dia. E podemos ver o poder público dizer que, por exemplo, o Parque
Madureira é um legado, já que não teria sido feito sem o contexto dos megaeventos.
Mas por que não? Quer dizer, cada coisa que a Prefeitura do Rio fez nos últimos 8
anos vai dizer que foi por causa dos Jogos Olímpicos, que é resultado dos jogos. Mas
isso é uma maquiagem discursiva. Ainda mais se notarmos que tudo que dá errado
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
na cidade o prefeito Eduardo Paes diz que é culpa do Estado do Rio ou do Governo
Federal, sempre jogando a culpa para longe dele.
Enfim, é um discurso que devia ter sido desconstruído na época da candidatura
e/ou indicação do Rio para ser sede dos jogos. Por isso, acho que o debate deve ser
politizado ou polemizado, já que os Jogos Olímpicos 2016 devem ser vistos, sim, não
E
como uma oportunidade de retomada da cidade ou de construção de legado, mas
(numa análise mais realista) como um modelo de negócio local e global, uma grande
oportunidade, sim, de consolidar o poder da elite carioca pelos próximos 50 anos.
Muito dinheiro foi roubado, desviado ou mal aplicado nesse processo. E, ainda
assim, a elite econômica carioca conseguiu remanejar e deslocar os circuitos de
circulação, impedindo que as pessoas possam circular facilmente pela cidade para
perseguir as suas possibilidades de acumulação. E os meios de circulação na cidade,
de dinheiro, informação e mobilidade, estão nas mãos privadas de sempre. Então a
consolidação desse poder da elite local sobre os circuitos de circulação vai refletir nos
processos de acumulação da cidade pelos próximos 50 anos.
96
OBSERVATÓRIO. É por isso que podemos perguntar: Jogos Olímpicos 2016 —
para o benefício de quem?
C.G. Acho importante perguntar para quem, onde, como e por quanto tempo.
É lógico que podemos apontar questões graves como a as remoções de milhares
de pessoas; a revitalização da região portuária, que vai beneficiar a especulação
imobiliária e os grandes negócios, enquanto promove um processo de gentrificação
e expulsão da população local; a construção da Linha Quatro do metrô, que está
custando bilhões de reais e foi criticada por muitos engenheiros e especialistas na
área; a falta de transparência nos contratos públicos para as obras estruturais — o
que faz reafirmar a suspeita de casos de influência e corrupção. A Operação Lava
Jato, por exemplo, já está mostrando que as grandes empreiteiras envolvidas com as
obras do projeto Porto Maravilha estão imersas em casos de corrupção com a elite
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
política do Estado do Rio de Janeiro.
O processo todo mostra, acima de tudo, que quem se beneficiou com os Jogos
Olímpicos no Rio é quem já estava na posição de se beneficiar antes. A coalizão
nacional formada para a realização dos jogos teve como objetivo, desde o início,
captar os recursos públicos para acumulação privada. Enfim, é um jogo de cartas
E
marcadas — e a população está excluída dele.
E, infelizmente, podemos dizer que o Rio de Janeiro vai demorar a ter um contexto
econômico tão favorável como foi na última década para receber tantos investimentos
— decorrentes de fatores como petróleo, fluxos financeiros etc. Nesse sentido, o que
foi feito em termos estruturais nos preparativos para os megaeventos esportivos é algo
que seria aportado ao longo de 50 anos, ou seja, esses investimentos deveriam dar
condições para a cidade pelas próximas décadas. E a questão estrutural é aquela que
dá condições à população da cidade de buscar acumular de maneira mais igualitária.
E isso não aconteceu no Rio.
OBSERVATÓRIO. A Prefeitura do Rio de Janeiro sempre faz propaganda da
“revolução dos transportes” na cidade por conta dos investimentos dos megaeventos
97
esportivos. Como você avalia essa questão?
C.G. É uma revolução entre aspas. Pode-se dizer que seja uma revolução
revoltante. Só isso. O BRT, por exemplo, não é uma nova tecnologia – é algo já usado
há tempos por outras cidades. Além disso, esse tipo de modal abre espaço para o
carro, incentiva continuamente o uso do transporte individual, já que uma linha é
exclusiva para o ônibus, logo ele se deslocará mais rápido enquanto sobram duas ou
três faixas para os carros. Quem está sendo estimulado nesse cálculo?
Além disso, o BRT está sendo feito pelas mesmas empresas que já dominam
o transporte de ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Ou seja, é manutenção de um
mesmo sistema, com os mesmos donos e as mesmas regras. Além do mais, as linhas
de BRTs vão todas em direção à Barra da Tijuca, isto é, vê-se a construção de uma
nova “centralidade” ou de um polo econômico definido a partir de cima. As linhas
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
de BRTs levam a população pobre para trabalhar na Barra da Tijuca – é isso que as
linhas estão estimulando: de Santa Cruz para a Barra, da Zona Norte para a Barra. A
população se desloca em ônibus superlotados para fazer trabalhos de mão de obra e/
ou trabalhos precarizados na Barra da Tijuca, como jardineiros, cozinheiros, garçons,
serventes, faxineiras etc.
E
Portanto, quando eu falo sobre a limitação das possibilidades de acumulação da
população, ela é bem representada por essa “revolução de transportes”. Áreas com
trabalhos formais — como o Centro e a Zona Sul, e o interior da Zona Norte – estão
sendo menos estimulados pelos novos modais. O poder público define a área que a
população deve chegar para trabalhar.
Além do mais, o sistema de transporte do Rio é muito falho. Os pontos de ônibus,
por exemplo, não têm itinerário e mapas. Uma pessoa que não conhece a cidade, não
consegue pegar um ônibus com facilidade. E houve ainda um remanejamento das
linhas de ônibus. Com qual interesse? Racionalização das linhas de ônibus é uma
maneira autoritária de remanejar as circulações na cidade. É uma forma de limitar as
possibilidades de acumulação (busca por trabalho) e também de lazer. A população
da Zona Norte, por exemplo, está mais limitada para ir à praia na Zona Sul. E agora
98
escutei que o Estado do Rio quer fazer cortes do Bilhete Único. Essa é a revolução
que temos.
OBSERVATÓRIO. Você monitorou durante os preparativos para a Copa do
Mundo 2014 as obras e os incentivos ao esporte nas cidades-sedes brasileiras. O que
você diz sobre o Rio Olímpico em tempos de estímulo ao esporte? O que a cidade do
Rio fez em termos de investimento ao esporte? E o que a cidade deixará como legado
esportivo para a sua população?
C.G. Tem vários tipos de cidadãos no Rio de Janeiro. As pessoas que moram na
Zona Norte não praticam esporte, porque não tem espaços para a prática — praças,
quadras públicas etc. O cidadão que habita as áreas periféricas gasta ainda em média
duas a três horas no ônibus para voltar para casa; quando chega, já está esgotado e
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
sem energia para o lazer e a prática esportiva.
O chamado “Rio esportivo e do lazer” se concentra no Centro e na orla da Zona
Sul, indo até a Barra da Tijuca. Nessas regiões, as pessoas praticam esporte ao ar
livre, fazem uso das quadras do Aterro do Flamengo e têm acesso a modalidades
esportivas diversas. Nesse sentido, o acesso à prática do esporte no Rio de Janeiro é
E
algo completamente desigual e segregado.
E podemos dizer que nos últimos anos até piorou, já que os remanejamentos das
linhas de ônibus e a piora do trânsito dificultou a chegada das pessoas à orla da Zona
Sul e às praias. Ademais, vemos que há uma carência de equipamentos esportivos
descentralizados — nos bairros da Zona Norte e Oeste, nas escolas etc.
Existe, ainda, a oferta desigual. No Rio existem quatro quadras públicas para a
prática do tênis para 6 milhões de pessoas. E para os Jogos Olímpicos, a Prefeitura
construiu um Centro Internacional de Tênis, no valor de 200 milhões de reais, na
Barra da Tijuca — local repleto de condomínios fechados que possuem suas quadras
privativas de tênis. Então, é um modelo de oferta e acesso que se espalha no Rio de
Janeiro e também no Brasil. Uma oferta para a prática do esporte que atende a quem
99
já tem condições de acesso.
É claro que, no contexto dos jogos, o Rio investiu no esporte de autorrendimento
— que é um negócio internacional. Se o Brasil vai ganhar ou não ganhar medalhas,
isso não importa, já que o país não tem tradição nessas competições — e não tem
tradição porque não tem investimento.
Outro debate importante é o que liga o esporte à saúde, porque a cada 1 real
investido em esporte, o poder público economiza 3 reais em saúde. É a oferta de lazer
que gera saúde. E isso tem a ver com planejamento urbano e política pública. Acho
que o Rio de Janeiro segue na contramão dessa noção, com uma política do espaço
urbano extremamente mercantilizadora e de exploração do valor de uso.
Além disso, vejo uma certa perversidade em investimentos de bilhões e bilhões
de reais em equipamentos esportivos de autorrendimento, enquanto o estádio do
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
Maracanã, por exemplo, símbolo da cultura carioca, perdeu suas características,
tendo sido transformado para atender um conceito internacional de cidade global
para o consumo.
E
OBSERVATÓRIO. Você tem pesquisado e refletido sobre esse processo de
gentrificação do esporte.
C.G. Acho que o estádio de futebol, numa cultura como a brasileira, é um reflexo
da cidade e de seu povo, socialmente e culturalmente. O Maracanã, antes da chegada
do circuito de investimentos dos megaeventos esportivos, refletia muito bem a cidade
do Rio de Janeiro e seu povo: era aberto, decadente, caindo aos pedaços, mas era
vivo, diverso. Havia violência, mas também tinha uma cultura bastante particular, e
era um lugar que dava o tom do funcionamento da cultura carioca. O Maracanã está
localizado perto do centro, recebia pessoas de todas as áreas da cidade.
Porém, nos últimos 15 anos, a população foi expulsa de lá. O lugar foi transformado
e gentrificado para ser o símbolo de um novo Brasil que queria se expor ao mundo,
apto a receber negócios e a ser global. O Maracanã foi privatizado uma vez; e agora
100
deve ser privatizado de novo. Houve uma bagunça institucional envolvendo Estado e
Prefeitura do Rio. O estádio foi usado com moeda política também. Enfim, o Maracanã
foi útil para os políticos e fantástico para a elite carioca, que tem condições de pagar
100 reais para assistir a um jogo de futebol com 8 mil espectadores. Essa elite acha
interessante essas condições, porque tem mais conforto e, portanto, mais adequado
aos padrões de comodidade de suas famílias. As classes alta e média cariocas
gostam dessa ideia. Mas elas não são a maioria da população.
OBSERVATÓRIO. Para finalizar a conversa, gostaria que você comentasse
o papel de resistência dos movimentos populares no contexto dos megaeventos
esportivos no Rio de Janeiro. Qual a relevância dessas ações?
C.G. Se houve algo realmente positivo nesses últimos 10 anos no Brasil e no Rio
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
de Janeiro que marcam os preparativos para os megaeventos esportivos, acho que
foram os movimentos de resistência. Especialmente os Comitês Populares e o Comitê
Popular Rio Copa e Olimpíadas, e mais os outros movimentos, que resistiram e lutaram
em defesa dos direitos humanos, do esporte mais democrático, da transparência do
uso do dinheiro público. E esses movimentos lutaram contra forças enormes, como os
E
governos, as grandes empresas e as corporações.
Creio que um dos resultados desses movimentos de resistência foi o de mudar a
opinião internacional sobre os megaeventos esportivos no Brasil. Vemos agora várias
cidades ao redor do mundo e suas populações compreendendo o processo que se dá
aqui; isto é, estrangeiros que estão acompanhando desde 2013 as lutas dos comitês
populares e entendendo as graves violações de direitos que ocorreram aqui — como
as remoções de milhares de pessoas de suas casas.
Parte da comunidade internacional está entendendo que a realização dos
megaeventos esportivos se dá sempre à custa (e nas costas) das populações locais.
A mensagem que a resistência brasileira passou foi essa. E vejo que a realização
dos Jogos Olímpicos 2016 representou um momento central para a história dos
movimentos de resistência brasileiro, movimentos da sociedade civil engajados no
101
debate sobre o desenvolvimento social e pela democracia brasileira. A resistência
aqui será levada como modelo para outros grupos nos próximos jogos.
OBSERVATÓRIO. O que o Rio vai deixar de olímpico para a sua população?
C.G. Olimpíadas sempre têm vencedores e perdedores. Nos jogos sempre são
três vencedores em cada modalidade. No Rio de Janeiro, sabemos exatamente quem
são: os grandes empreiteiros de construção civil — parte deles envolvida com a
Operação Lava Jato; a especulação imobiliária — que ganhou muito nos últimos anos;
e a classe política e elite local — que conseguiu construir uma rede de poder que vai
durar pelos próximos 50 anos. Nos jogos, quem fica em quarto ou em quinto lugar
não é lembrado. Não importa. O espírito olímpico é isso: vencedores e perdedores. E
E
JOGOS OLÍMPICOS 2016
A MERCANTILIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO
a população carioca faz parte dos que estão sendo esquecidos.
102
RESISTÊNCIA
POPULAR
10
Dossiê Megaeventos e
Violações dos Direitos
Humanos no Rio de Janeiro
O Dossiê Megaeventos e Direitos Humanos no Rio de
Janeiro está disponível para download em:
Versão português:
<https://issuu.com/mantelli/docs/dossiecomiterio2015_issuu_01>
Versão inglês:
<https://issuu.com/mantelli/docs/dossiecomiterio2015_eng_issuu>
A coalização de forças políticas somada aos interesses de grandes empreiteiras
acelerou a “limpeza social” de áreas valorizadas da cidade, e de áreas periféricas,
convertidas em novas frentes lucrativas para empreendimentos de classe média
e alta renda. A atualização dos dados reforça o que já vinha se demonstrando nos
Dossiês anteriores. Trata-se de uma política de relocalização dos pobres na
cidade a serviço de interesses imobiliários e oportunidades de negócios,
acompanhado de ações violentas e ilegais. | Moradia, p.19.
O
Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro
lançou a quarta versão do Dossiê Megaeventos e Direitos
Humanos no Rio de Janeiro. O dossiê é o documento
mais completo da luta dos movimentos sociais, organizações
populares, organizações não governamentais e sociedade
civil contra as violações de direitos humanos e os impactos das obras de preparação
da capital fluminense para a realização dos megaeventos esportivos.
Esta versão do Dossiê traz novas e atualizadas informações, abrangendo as
seguintes temáticas: moradia, mobilidade, trabalho, esportes, meio ambiente,
segurança pública, gênero, criança e adolescente, e informações e orçamento. Além
disto, são registradas as ações de resistência do Comitê Popular e as propostas
alternativas para um projeto de cidade includente, com democracia e justiça social, e
JOGOS OLÍMPICOS
acontecimentos na cidade do Rio de Janeiro.
De forma especial, merecem ser destacadas quatro questões trazidas por este
Dossiê, que se contrapõem ao discurso oficial do Comitê Olímpico Internacional, dos
Governos federal e estadual e, principalmente, da Prefeitura do Rio de Janeiro e
105
E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
boxes contendo diversos casos de violações que ilustram a gravidade dos
revelam o sentido das transformações em curso na cidade. Em primeiro lugar,
diferentemente do discurso da Prefeitura, que tenta negar e mascarar as causas das
remoções que estão sendo promovidas, este relatório demonstra que as remoções
vinculadas à Olimpíada prosseguem atingindo ou ameaçando milhares de famílias,
por meio da coação e da violência institucional, violando gravemente os direitos
humanos, em especial o direito à moradia.
Em segundo lugar, destaca-se o capítulo de esportes, construído com base em
visitas às instalações esportivas e conversas com atletas, usuários e ativistas. Nesta
seção, fica evidenciada a ausência de um legado esportivo que beneficie o conjunto
da cidade do Rio de Janeiro, democratizando o acesso da população aos equipamentos
esportivos. Pelo contrário, legitimado pelo discurso da Olimpíada, o que se verifica é
um conjunto de violações associadas à privatização do espaço público, ao desrespeito
à legislação ambiental, e ao fechamento de equipamentos esportivos utilizados por
atletas e pela população.
Em terceiro lugar, observa-se a crescente militarização da cidade, no âmbito de
uma política de segurança belicista e racista, que atinge especialmente os jovens
negros moradores de favelas e periferias, que são diariamente assassinados pela
polícia. Mas todos e todas são atingidos por esta política que é baseada no medo, por
meio da criação de muros visíveis e invisíveis que promovem a segregação
socioespacial da cidade, e pela crescente criminalização dos movimentos sociais.
Por fim, vale destacar a violação ao direito à informação e à transparência da
gestão pública. Omitindo informações, a Prefeitura difunde a ideia de que os gastos
públicos são inferiores aos gastos privados na preparação da Olimpíada 2016. Este
relatório desmascara a falácia desta informação, e demonstra que os custos da
contrapartida pública bem superior aos gastos privados. Mais do que isso, por meio
E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
JOGOS OLÍMPICOS
Olimpíada, além de serem superiores aos divulgados oficialmente, têm uma
das parcerias púbico-privadas e da concentração de contratos com algumas grandes
empreiteiras, pode-se dizer que a Olimpíada expressa a transferência de recursos
públicos para o setor privado, subordinando o interesse público à lógica do mercado.
106
Infelizmente, no entanto, os impactos não se resumem a estes destaques, mas
envolvem o conjunto de temas deste Dossiê, envolvendo um projeto de mobilidade
subordinado aos interesses imobiliários, à repressão ao trabalho de camelôs e
prostitutas, e à violação dos direitos de crianças e adolescentes.
Desde o momento em que foi anunciada a escolha do Rio de Janeiro como sede
das Olimpíadas de 2016, a grande imprensa, políticos e diversos analistas têm
ressaltado as oportunidades provenientes da ampliação dos investimentos na cidade,
destacando as possibilidades de enfrentamento dos grandes problemas, como o da
mobilidade urbana e o da recuperação de espaços degradados para a habitação,
comércio e turismo, como no caso da região portuária. Entretanto, a população da
cidade já se deu conta de que o projeto Rio Cidade Olímpica, que agrega as obras
para a Copa 2014, para os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, e grandes
projetos como o Porto Maravilha, não trará os benefícios prometidos.
As remoções são a ponta de um projeto de transformação profunda na dinâmica
urbana do Rio de Janeiro, envolvendo, de um lado, novos processos de elitização e
mercantilização da cidade, e de outro, novos padrões de relação entre o Estado e os
agentes econômicos e sociais, marcados pela negação das esferas públicas
democráticas de tomada de decisões e por intervenções autoritárias, na perspectiva
daquilo que tem sido chamado de cidade de exceção.
As violações dos direitos, em especial dos mais pobres, não começou com os
megaeventos esportivos, mas como demostrado, se agravou. As intervenções na
cidade por meio de grandes projetos urbanos foram acelereradas com as leis de
exceção e com o direcionamento de volumosos recursos públicos, aumentando a
escala e alcance desse modelo.
JOGOS OLÍMPICOS
possível afirmar, com decepção, que a Olimpíada Rio 2016 são os jogos da exclusão!
O Dossiê é também um convite aos movimentos populares, sindicatos,
organizações da sociedade civil, defensores dos direitos humanos, cidadãos e
cidadãs comprometidos com a justiça social e ambiental a se somarem ao Comitê
107
E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
Desta forma, ao olhar o processo de preparação da cidade para a Olimpíada é
Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro na luta por um outro projeto de
cidade. Um projeto resultante do debate público e democrático, com a garantia de
permanência de todas as comunidades e bairros populares situados nas áreas de
intervenção em curso. Um projeto que respeite o direito ao trabalho, de modo que os
trabalhadores não sejam punidos por comercializarem no espaço público. Um projeto
em que o meio ambiente seja efetivamente preservado. E, principalmente, que a
cidadania esteja acima dos interesses de grandes grupos econômicos.
Sobre o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro
O Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro é uma articulação
que reúne organizações populares, sindicais, organizações não governamentais,
pesquisadores, estudantes, atingidos pelas intervenções da Copa e das Olimpíadas e
pessoas diversas comprometidas com a luta pela justiça social e pelo direito à cidade.
A missão do Comitê é mobilizar uma ampla rede de organizações sociais, movimentos
populares, sindicatos, órgãos de defesa de direitos e controle do orçamento público,
universidade, com protagonismo das comunidades direta e indiretamente afetadas,
para monitorar as intervenções públicas e privadas relacionadas aos megaeventos
esportivos no Rio de Janeiro. O Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de
Janeiro atua desde 2010, promovendo reuniões e debates públicos, produzindo
documentos e dossiês de denúncias sobre as violações de direitos humanos,
organizando atos públicos e disseminando informações, tendo como perspectiva a
construção de uma visão crítica sobre os megaeventos esportivos.
Rio 2016 e o Mapa da Exclusão
O Comitê Popular produziu também o “Mapa da Exclusão — Rio 2016” com o
verdadeiro legado das Olimpíadas no Rio de Janeiro, reunindo informações sobre
repletas de irregularidades. O mapa aponta, por exemplo, todos os locais onde
E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
JOGOS OLÍMPICOS
as comunidades removidas, as favelas ocupadas, os crimes ambientais e as obras
ocorreram remoções na cidade desde 2009 — ano em que o Rio foi escolhido como
cidade-sede dos jogos —, resultando em um processo de retirada de aproximadamente
77 mil pessoas de suas casas.
108
Figura 7. Mapa da Exclusão. Disponível em: <https://goo.gl/YXMxJh>.
O “mapa da exclusão” mostra também o impacto ambiental dos jogos,
denunciando que nenhuma meta de despoluição foi cumprida; aponta o processo
de privatização dos equipamentos esportivos; a falta de transparência das grandes
obras de intervenções urbanas, como o Porto Maravilha, no qual as empresas do
consórcio estão envolvidas em denúncias na operação Lava Jato; e mais as violações
ao trabalho, com a perseguição aos trabalhadores tradicionais de rua — os camelôs
— e a morte de 11 pessoas durante as obras dos Jogos desde 2013.
O objetivo do “Mapa da Exclusão — Rio 2016” é deixar claro o alto custo desse
megaevento esportivo para a cidade, não apenas financeiro, mas principalmente
social. O legado que ficará para a população carioca é de uma cidade segregada e
JOGOS OLÍMPICOS
109
E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
militarizada, marcada por uma série de violações de direitos humanos.
www.observatoriodasmetropoles.net