Ariús - Centro de Humanidades - Universidade Federal de Campina

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Ariús - Centro de Humanidades - Universidade Federal de Campina
Volume 17
Número 02
Julho/Dezembro, 2011
Dossiê:
Plutocracia, Corrupção
e as Causas da Crise.
Soluções que Causam Dissoluções
Leia Também:
Outros Temas
Volume 17, Número 02, julho/dezembro, 2011
CENTRO DE HUMANIDADES
ARIÚS – Revista de Ciências Humanas e Artes
Centro de Humanidades – UFCG
Rua Aprígio Veloso, 882 – Bairro Universitário
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A Ariús é uma publicação semestral do Centro de Humanidades da UFCG. REITOR
Thompson Fernandes Mariz
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Sociais Aplicadas e Artes.
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ARIÚS
Revista de Ciências Humanas e Artes
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFCG
A718
ARIÚS: revista de ciências humanas e artes. – v. 1, n. 1, (out./dez. 1979) – v. 17, n. 2 (jul./dez. 2011). – Campina Grande:
EDUFCG, 2011. 170 p.: il.
Anual: 1979. Suspensa: 1980-1989.
Anual (com alguma irregularidade): 1990-2006.
Semestral: 2007-Editor: Universidade Federal da Paraíba de 1979 a 2001; Universidade Federal de Campina Grande 2002-.
ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
1- Ciências Humanas 2- Ciências Sociais 3- Lingüística 4- Artes 5- Periódico I- Título.
CDU 3(05)
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Sumário
EDITORIAL
4
AUTOR CONVIDADO
Trabalho e integração européia: um balanço sobre o caso português. Hermes Augusto Costa
(Universidade de Coimbra)
7
DOSSIÊ: PLUTOCRACIA, CORRUPÇÃO E AS CAUSAS DA CRISE. SOLUÇÕES QUE CAUSAM DISSOLUÇÕES
Transición democrática y neoliberalismo: la crisis de la deuda externa en Argentina. Democratic
transition and neoliberalism: the external debt crisis. In: Argentina. Alejandro Gabriel Manzo (UNCArgentina)
29
Elementos constitutivos e dinâmicos da corrupção: um exercício conceitual. Constituent elements
and dynamics of corruption: a conceptual exercise. Clóvis Alberto Vieira de Melo (UFCG)
51
Las insuficiencias en la sabiduría convencional sobre las causas de la crisis y el error de sus
soluciones. The inadequacies in the conventional wisdom on the causes of the crisis and the error of
their solutions. Vicenç Navarro (Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University)
74
A esquerda contra a dívidadura. The left against the dictatorship of debt. Francisco Louça (ISEG –
Instituto Superior de Economia e Gestão/Portugal)
80
OUTROS TEMAS
O terreiro e a cidade: ancestralidade e territorialidade nas disputas pelo espaço público. The
yard and the city: ancestry and territory in dispute of public space. Ronaldo Sales Jr. (UFCG)
106
O conhecimento dos direitos para adolescentes em situação de rua. Izayana Feitosa e Cleonice
Camino
124
LITERÁRIAS/POESIA
Um poema por Tahrir, por Egito. A poem by Tahrir by Egypt. Nancy Messieh.
140
RESENHAS
Conversaciones con Edward Said. Resenha de Mabel González Bustelo (UCM – Espanha)
142
Resucitar a Marx. Resenha de Manuel M. Navarrete (Rebelión)
147
NOTÍCIAS
Defaults. Alfredo Zaiat (Economista, pagina12)
155
Quem deve a quem? A verdadeira divida externa. Guaicaipuro Cuatémoc (Cacique Indígena)
159
Um estudo com peixes aponta a que a ignorância favorece a democracia (Revista Science)
162
RESUMOS DOS TRABALHOS
166
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Editorial
A revista aborda neste numero uma temática plenamente atual: a crise socioeconômica dos
países desenvolvidos ou em outras palavras a crise de gestão do modelo econômico e a
crise reiterada do próprio modelo. Apresentamos neste numero 2 do volume 17 da Revista
Ariús, um Dossiê que tem como temática central: Plutocracia, corrupção e as causas da
crise. Soluções que causam dissoluções.
Participa como Autor convidado o Professor Doutor Hermes Augusto Costa, da Universidade
de Coimbra (Portugal), docente e pesquisador na área da sociologia de trabalho. Ele
discorre sobre Trabalho e integração européia: um balanço sobre o caso português. O
autor analisa algumas das principais transformações que ocorreram no domínio laboral em
Portugal após 25 anos de adesão de Portugal à União Européia (UE) e os problemas e as
soluções que isto acarretou.
O dossiê é composto por quatro trabalhos, de Argentina, Brasil, Espanha e Portugal. Gabriel
Manzo, o colega da Universidade de Córdoba, apresenta as alternativas da negociação da
divida externa Argentina na década dos 80, onde se pode observar como os organismos
internacionais (FMI, BM, etc.) foram impondo suas condições e pontos de vistas neoliberais.
A democracia e o Estado de Direito não são fenômenos abstratos, pelo contrario, são
fenômenos históricos que se reproduzem a través de lutas de poder entre agentes sociais
com poderes diferenciais, diz o autor. Qualquer semelhança com a atual crise dos países
periféricos da EU, não é por acaso, como mostram os outros autores de este dossiê.
Por outra parte, o prof. Clovis A. Viera de Melo, da Universidade de Campina Grande, num
exercício conceitual, define o fenômeno da corrupção e diferenciá-lo de outros crimes que
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5
lhes são assemelhados. Considera que a corrupção é uma relação social que congrega três
elementos essenciais: corruptor, corrupto e recursos. É um fenômeno que invade tanto o
espaço público, o seja a sociedade política como o espaço corporativo ou privado, ou seja, a
sociedade civil. A compreensão da corrupção como uma relação entre atores sociais, é de
fundamental importância para entender também a crise atual.
O Prof. Vinceç Navarro, por sua vez, demonstra como o BCE, a Comissão Européia e o FMI
na Euro-zona, acentua a flexibilidade do mercado de trabalho, o que significa a desregulação desses mercados, ou seja, a redução da proteção social e os recortes de gasto
público. No entanto, a causa mais importante não citada desse endividamento é o descenso
das utilidades dos assalariados, nos porcentagens das rendas totais de cada país. As
famílias tiveram que se endividar cada vez mais, resultado da diminuição de seus ingressos.
Os organismos financeiros transnacionais parecem ter uma formula de aço, que não muda a
pesar do fracasso reiterado dessas políticas. Nesse contexto, a resistência da “multidão”,
tende a ser mais forte e radicalizada, como nos casos dos países euro latinos. Temos que
agradecer ao Professor Navarro por nos ter autorizado a publicar este trabalho na presente
revista. A fonte aparece no rodapé do artigo.
O último trabalho do dossiê tem uma perspectiva diferente de analise. Seu autor, o prof.
Francisco Louça, é catedrático e deputado pelo boco d`Esquerda do parlamento português.
Seu estudo não tem somente um objetivo teórico, senão também político - pratico segundo
suas próprias palavras. Para ele a crise não é só econômica é também política. Os estados
nacionais estariam cedendo sua autonomia a um governo europeu dirigido pelo capital
bancário. È o Banco Central Europeu o que dita as regras do jogo político-econômicas. A
eficácia política dos cidadãos do continente ainda é baixa mais, entanto dirigente político, o
autor propõe um novo europeísmo de esquerda, baseado na resistência e ação propositiva
de aqueles grupos e classes sociais que estão sendo omitidas nesta crise.
Podemos observar que os analises efetuados pelos participantes deste dossiê mostram,
desde pontos de vista diversos, o que estava camuflado para o cidadão comum até não
muito tempo: nos momentos difíceis de crise sistêmica profunda, a cabeça da medusa sai à
luz e mostra sua faze. O capital financeiro na sua expressão mais sofisticada assume
abertamente o poder político, banqueiros ocupam o poder real e simbólico mais importante
da democracia, primeiros ministros ou presidentes renunciam para que o representante da
banca, ou um próprio banqueiro dirija arbitrariamente o destino de um país, continente ou do
mundo. Isto é a plutocracia da plutocracia.
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6
Em Outros Temas, apresenta se, com a autoria do prof. Ronaldo Sales (UFCG), um tema
caro a realidade brasileira: a disputa pelo espaço público, neste caso referido as querelas
dos movimentos sociais negros. Estes incorporam nas suas demandas políticas as
comunidades religiosas de matriz afro, como parte das lutas de emancipação negro africana
no Brasil. De um lado, valoriza se a religião afro-brasileira como patrimônio histórico e
cultural, considerada parte de uma política de reparação ou de promoção da igualdade racial;
por outro lado, considera se a luta contra a intolerância religiosa, como uma modalidade da
discriminação étnico-racial.
Na Secção Literária, reproduzimos um poema combatente de Nancy Messieh, fotógrafa e
poeta egípcia, com motivo da ocupação da praça Tahrir no Cairo.
Em Resenhas, Mabel González Bustelo apresenta o livro Conversaciones com Edward
Said. De autoria de Tariq Ali. Segundo Bustelo, o livro é um dialogo de excelente qualidade
intelectual e um profundo clima emocional. Alianza, Madrid, 2010.
Finalmente, em Notícias, publicamos um interessante informe sobre a historia dos defaults
no mundo. Também publicamos um pequeno informe muito curioso sobre um estúdio
experimental com peixes que aponta a que a ignorância favorece a democracia (Revista
Science).
Por ultimo, informamos a nossos leitores que a partir deste numero da Ariús, estamos
aderido ao tipo de Licence CC Creative Commons (Atribuição não comercial – vedada a
criação de obras derivadas 3.0 United Estates (CC BY – NC – ND 3.0), que é um tipo de
Direitos de Autor Copy Left, típico das revistas eletrônicas acadêmicas. Por outra parte,
estamos implantando a revista no Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas SEER/OJS
e a partir de 2012 a Revista passará a modalidade exclusivamente eletrônica. Com algumas
novidades, como contador de consultas, links e conexão as redes sociais mais importantes.
Para terminar, recomendamos aos colegas que pretendam publicar na Ariús, consultar as
normas de publicação, dado que tem sido ligeiramente reformuladas no sentido de motivar e
sugerir, que os autores citem em seus trabalhos, também outros autores de revistas latinoamericanas, tal como aconselhado pelos expertos em edição cientifica dos países iberoamericanos.
Roberto Mendoza
Editor Geral
ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
Autor Convidado
TRABALHO E INTEGRAÇÃO EUROPEIA:
Um balanço sobre o caso português
LABOUR AND EUROPEAN INTEGRATION:
An investigation of the portuguese case
Hermes Augusto Costa1
Resumo: Este texto analisa algumas das principais transformações que ocorreram no
domínio laboral em Portugal após 25 anos de adesão de Portugal à União Europeia (UE).
Argumenta-se que ocorreram de facto alguns impulsos modernizadores em vários domínios
do mercado de trabalho, mas a realidade dos números e das práticas mostra igualmente
que Portugal se encontra próximo da “liderança” do atraso em muitos aspectos, inclusive
numa Europa mais alargada como é hoje a UE composta por 27 Estados-Membros.
Palavras-chave: mundo do trabalho; integração europeia; Portugal; progressos/atrasos
Abstract: This paper examines some of the main changes that have occurred in labour in
Portugal after 25 years of Portugal's accession to the European Union (EU). It is argued that
there were some modernizing impulses in various areas of the labor market, but numbers
and practice show that Portugal is close to the "leadership" of delay in several aspects,
including in an enlarged Europe composed of 27 Member States.
Keywords: labour world, European integration, Portugal, progress/delay
1
Doutor em Sociologia. Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do
Centro de Estudos Sociais. E-mail: [email protected].
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
8
1. INTRODUÇÃO
Uma das ideias que quer o senso comum, quer o discurso científico veiculam na sociedade
portuguesa, passados 25 anos da integração de Portugal na União Europeia (então
Comunidade Económica Europeia, CEE), é do que o país não é mais o mesmo de há um
quarto de século. E não é mais o mesmo em distintas áreas consideradas importantes para
o desenvolvimento do país, tais como, a saúde, a investigação e o desenvolvimento
tecnológico, a economia, a educação, o direito e a legislação, o ambiente, as artes, o
trabalho, a qualidade de vida e o desporto, etc.
Neste texto selecciono algumas das principais mutações que ocorreram após 25 anos de
adesão de Portugal à UE numa dessas áreas: o trabalho. Começo por abordar o significado
da adesão à CEE para, de seguida, enunciar algumas mutações que a CEE propiciou e que
tiveram reflexos no mercado laboral. Finalmente, passam-se em revista algumas das
instituições, actores e indicadores do mercado de trabalho de modo a tentar perceber
melhor como se colocaram (colocam) perante o “desafio europeu”
2 A ADESÃO À CEE COMO AMBIÇÃO DE RECUPERAR O(S) ATRASO(S) FACE À
EUROPA
A adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE) em 12 de Junho de 1985
(formalizada a 1 de Janeiro de 1986), significou um primeiro passo no sentido da (tentativa
de) convergência com um projecto de economia e sociedade mais amplos e desenvolvidos e,
consequentemente, criou desde princípio uma forte expectativa de integração positiva (a
Europa como ilusão de melhoria do nível de vida das pessoas faria, assim, sentido). Mas se,
por um lado, a adesão significava (como defendia então o primeiro ministro Mário Soares)
uma oportunidade para o progresso, a modernidade e mudança, por outro lado, não
deixavam de constituir factores de risco ou de incerteza (com afirmava Ramalho Eanes,
presidente na época), não só porque as próprias negociações da adesão tinham sido algo
longas (8 anos), o que de certo modo era sinal de morosidade (leia-se, de dificuldades),
como porque em Portugal, em Junho de 1985, estava-se ainda no rescaldo da negociação
do segundo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1983, que tinha trazido
associado a si desemprego e inflação elevados e quebra dos salários reais e do consumo
privado.2
2
As políticas fortemente restritivas do poder de compra dos trabalhadores, que viram o seu poder aquisitivo
severamente diminuído de 1976 a 1979 e de 1982-84, provocaram uma contestação menos intensa do que seria
de esperar. Tal facto conduziu os cientistas sociais a realçar o papel da economia subterrânea, das remessas
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Seja como for, na história contemporânea de Portugal a adesão à CEE terá constituído o
segundo acontecimento mais significativo na óptica dos portugueses, uma vez que o
primeiro foi o 25 de Abril (e a uma distância considerável, diga-se). Na verdade, no ano de
celebração dos 30 anos da (re)instauração da democracia em Portugal (em 2004), uma
sondagem realizada pela Universidade Católica para o Público, RTP, RDP e para o
Comissariado das Comemorações dos 30 anos do 25 de Abril, revelou que apenas 9% dos
portugueses consideravam que a adesão de Portugal à CEE fora o facto mais importante da
história de Portugal.3 Esta visão murcha sobre a Europa parece confirmar uma prioridade
dos portugueses para os assuntos “caseiros” em detrimento dos “estrangeiros”. Estou em
crer que se esta mesma sondagem fosse realizada no presente (Maio de 2011) muito
dificilmente se alteraria este estado de coisas, sobretudo atendendo à crise económica (e
política) em que o país se encontra mergulhado.
Mas note-se que, independentemente da integração na UE, Portugal registou frequentes
vezes um relativo desajuste temporal (descompasso histórico) face à Europa (ou melhor aos
países europeus mais avançados depois da Segunda Guerra Mundial), nomeadamente no
que concerne ao modo como os movimentos sociais associados ao trabalho (movimento
sindical) e as instâncias de diálogo e negociação despontaram (ainda antes da integração
europeia): a) quando, nos anos 60, esses países conheceram a mobilização sindical,
Portugal conheceu a opressão do regime salazarista; b) quando esses países tiveram, na
década de 70, a concertação social de nível macro, Portugal vivenciou o 25 de Abril e,
consequentemente, a institucionalização do diálogo social só surgiu nos anos oitenta, c)
quando em Portugal o peso da macro-concertação é ainda significativo, nos países mais
desenvolvidos da Europa as relações e negociações entre capital e trabalho conhecem já
desde os 80s forte incentivo ao nível micro, de empresa.
A estes descompassos anteriores à adesão à CEE podem juntar-se, entre outros, “sinais de
atraso” que se mantiveram mesmo após a adesão à CEE, tais como: i) a presença de uma
mão-de-obra escassamente qualificada; ii) os salários mais baixos da Europa. Voltarei a
falar destes dois aspectos mais adiante, em vários momentos das secções seguintes.
dos emigrantes e da agricultura familiar na criação de um rendimento complementar dos salários, rendimento
que permitu um consumo acrescido e a moderação dos conflitos sociais (Anica, 1997).
3
A adesão de Portugal à CEE está situada mais ou menos ao mesmo nível da restauração da independência em
1640 (com 10% de respostas), da implantação da República (com 8% de repostas), e da chegada de Vasco da
Gama à Índia (com 7% de respostas). O 25 de Abril de 1974 é, de longe, o acontecimento que é considerado
como o mais importante para a história de Portugal, com 52% de opiniões nesse sentido (Público, 25.04.2004).
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3. ASPECTOS QUE A ADESÃO À CEE TORNOU POSSÍVEL E COM REFLEXOS NO
MUNDO LABORAL
Um conjunto de factores/dimensões resultantes da adesão à CEE devem ser considerados
como produzindo impactos (directos e indirectos) no mercado de trabalho e nos seus
actores. Destaco os seguintes, sendo a ordem a sua apresentação aleatória:
Um deles prende-se com a maior mobilidade além fronteiras. Portugal sempre foi um país
com tradições de emigração e nos anos 60 do século XX a Europa (França, Suíça são
apenas dois exemplos) foi um dos principais destinos em que os portugueses buscavam
uma vida melhor, com empregos melhor remunerados ainda que nem sempre melhor
qualificados. Com o reforço da mobilidade além fronteiras também se criaram, pelo
condições para Portugal ser também país de imigração de mão-de-obra. Mas importa
salientar, no quadro da CEE, que essa mobilidade se tornara mais reforçada ou mais
evidente, muito em especial com a criação do “Espaço-Shengen”. Apesar de negociado
inicialmente em 14/06/1985 por 5 Estados-membros, o “espaço-Shengen”– espaço de livre
circulação de pessoas no espaço geográfico – entrou em vigor em 1995 e Portugal assinou
os acordos de adesão a esse espaço em 1991. Além de historicamente ter sido portador de
benefícios para a economia, uma Europa sem fronteiras era também sinónimo não só de um
maior impulso à mobilidade do trabalho, como significava um reforço do produto interno
bruto (PIB) da UE. Ainda que hoje esteja a ser questionado no seio da UE 4 , para as
comissárias europeias da justiça e dos assuntos internos, a par da moeda única, a livre
circulação entre países é o direito mais tangível de toda a história da integração europeia
(Reding e Malmström, 2011).
Em segundo lugar, importa considerar a entrada em Portugal de fundos estruturais
destinados a criar um potencial para o desenvolvimento do país. Porém, se, por um lado,
parece indesmentível que esse impulso modernizador teve lugar – sobretudo no domínio da
infra-estruturas, vias de comunicação, estradas, etc. –, por outro lado, no que concerne a
acções tornadas possíveis pelos fundos estruturais – nomeadamente, colocar ao dispor da
força de trabalho em Portugal verbas para reforço da formação profissional – o que é facto é
que as mesmas nem sempre foram ou tiverem o melhor aproveitamento. Como refere
Boaventura de Sousa Santos, deixou-se que os fundos estruturais se tornassem “presa fácil
4
Em meados de 2011 o “Espaço Schengen” (composto por 25 países) parece estar a ser questionado, em
resultado da(s) crise(s) humanitária(s) associadas aos milhares de imigrantes tunisinos que procuram chegar ao
el dorado europeu. Na verdade, países como a Itália e a França reclamaram alterações no “Espaço Schengen”,
estando pois em agenda num futuro próximo a discussão no quadro da UE em torno da possível reintrodução de
controlos nas fronteiras nacionais.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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de corrupção impune, enterrando-os em cimento e em betão em vez de os pôr ao serviço da
viragem educativa e científico-tecnológica, que permitiria a Portugal apropriar-se do projecto
europeu, tornando-o verdadeiramente seu” (Santos, 2011: 53). Ou seja, a qualificação mãode-obra e do “factor trabalho” ficou relegada para segundo plano em vez de se afirmar como
prioridade.
Em terceiro lugar a ideia de um modelo social europeu (MSE) como fonte de atracção e
referência de bem-estar. É preciso não esquecer que foi graças ao MSE que a UE se
transformou numa zona de maior prosperidade económica e de justiça social ao longo da
segunda metade do século XX, tendo o risco de pobreza diminuído muito com a melhoria do
rendimento dos idosos, graças às prestações de reforma garantidas pelos Estados. Contudo,
a evolução demográfica tem vindo a ameaçar o Estado Social, levando a UE a alertar os
Estados-Membros para estes assumirem reformas que viabilizem a sustentabilidade dos
sistemas públicos de pensões. Porém, é um facto que hoje (e de forma particularmente mais
intensa ao longo da última década) o MSE – enquanto referencial de “elevado nível de
protecção social, o reconhecimento de direitos sociais dos trabalhadores, a livre negociação
colectiva como elemento regulador do trabalho e a existência de serviços públicos” (CGTP,
2004b: 79) –, encontra-se seriamente ameaçado por vários riscos: aumento do desemprego;
crescimento da pobreza e das desigualdades; formas de trabalho e de emprego precárias;
privatizações de empresas e de serviços públicos. E, note-se, este á um quadro geral que
afecta as economias da UE, não só as mais débeis (como a portuguesa) como inclusive as
mais avançadas. Se se atentar no documento Annual Growth Survey 2011 da Comissão
Europeia de Janeiro de 2011, é fácil ver nele medidas indicativas de sinais de retrocesso do
MSE: o aumento dos impostos indirectos; o enfraquecimento do carácter progressivo dos
impostos; o incentivo ao aumento dos horários de trabalho; a elevação da idade da reforma;
a pressão para a privatização dos sistemas de pensões; o enfraquecimento (flexibilidade) da
legislação que protege o emprego; a redução dos apoios directos ao desemprego; a
liberalização do sector público, etc. (European Comission, 2011).
Em quarto lugar, em parte em resultado de um crescimento da economia portuguesa, os
anos 90 foram sendo já muito marcados por maiores facilidades de acesso ao crédito, o que
ditaria também o início de um processo de endividamento das famílias. Esse recurso ao
crédito revelou-se fruto também de uma certa recomposição da estrutura de classes e de
um reforço maior do peso das classes médias, sendo estas também hoje em dias as que
mais se ressentem com os efeitos da crise económica (Estanque, 2012). Mas na verdade
um conjunto de factores relacionados com o mundo laboral acabam por concorrer para o
fenómeno do sobreendividamento: o desemprego de longa duração, o não acesso ao
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12
subsídio de desemprego, o desemprego de vários membros de um mesmo agregado
familiar, empregos de baixas qualificações e com baixas remunerações, etc. (Frade et al.,
2008).
Em quinto lugar, importa olhar para a evolução da população activa e para algumas das
suas características, pois é a população com uma maior proximidade com o mercado laboral.
A este propósito, é possível identificar algumas tendências ao longo dos últimos 25 anos5: (1)
há mais activos 6 ; (2) dentro dos activos empregados é cada vez maior a presença de
mulheres; (3) são activos cada vez mais envelhecidos; (4) estão cada vez mais ligados ao
sector terciário (comércio e serviços)
(1) O número de pessoas activas (empregados e desempregados) tem vindo a aumentar:
em 2009 são cerca de 5,6 milhões de indivíduos enquanto em 1983 eram cerca de 4,8
milhões. A larga maioria da população empregada trabalha por conta de outrem. Esta fatia,
que inclui os funcionários públicos, atingiu praticamente 3,9 milhões de pessoas, em 2009,
situação que se tem vindo a reforçar com o tempo: passa de 65%, em 1974, para 76%, em
2009. Como lembram Barreto e Pontes (2007: 19), o reforço dos mecanismos de protecção
social implicou um crescimento da administração pública (na década de 60 eram 160.000
funcionários públicos; em 2004 eram 800.000). Segundo a base de dados Pordata
(consultada em Abril de 2011): em 1986 a administração pública (total) era responsável por
464.321; em 1988: 485.368; em 1991: 509.732; em 1996: 639.044; em 1999: 716.418; 2005:
747.880 (http://www.pordata.pt/azap_runtime/?n=4). Ainda segundo Barreto e Pontes (2007:
19), comparando Portugal com a Europa, o nº de funcionários em % da população activa
não é excessivo. No entanto, a percentagem de produto que vai para as despesas com
funcionários do Estado (mais de 15%) é muito superior aos europeus. O que de certo modo
se traduziu num certo privilégio dos funcionários públicos relativamente aos trabalhadores
do sector privado. Ora, esse suposto privilégio está hoje a ser posto em causa fortemente na
sociedade portuguesa.
5
Não creio que se tratem apenas de tendências ditadas pela integração de Portugal na UE, mas foram
certamente tendências que a integração europeia tornou mais evidentes.
6
A população activa inclui todas as pessoas que se encontram na situação de empregadas ou não situação de
desempregadas. São consideradas empregadas todas as pessoas que desempenham qualquer função
remunerada ou que apesar de terem emprego estão ausentes por motivos de doença, greve ou férias; são
considerados desempregados as pessoas que não estão empregadas mas que estão activamente à procura de
emprego ou à espera de regressar ao trabalho. Desta forma, apenas as crianças, os estudantes, os reformados,
os domésticos, os incapacitados e todos aqueles que simplesmente não querem trabalhar, são considerados
como não integrantes da população activa.
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13
(2) O reforço do número de activos fez-se acompanhar por um aumento da participação
feminina. As mulheres ocupam um lugar cada vez mais importante no conjunto da
população activa (em 2009, representavam praticamente metade – 47% - enquanto em
1983 representavam 42%),
(3) Envelhecimento da estrutura etária. De 1983 para 2009 a idade média da população
empregada aumentou de 39 anos para 42 anos. Este envelhecimento ocorreu sobretudo na
base da pirâmide de idades da população activa – o grupo dos activos com menos de 25
anos passou para menos de metade: de 1,1 milhões de indivíduos, em 1983 (24% dos
activos), para menos de meio milhão, em 2009 (8% dos activos).
(4) Também a estrutura de actividades da população empregada conheceu grandes
alterações ao longo das últimas décadas. Em 1974, a distribuição da população empregada
pelos três sectores clássicos de actividade era mais ou menos equitativa, mas o efectivo
mais elevado ainda se encontrava na “agricultura, produção animal, caça, silvicultura e
pesca” – 34% dos portugueses estavam empregados no sector primário. Esse valor, em
2008, é de apenas 11% da população empregada.
Quanto à população empregada no sector industrial só é maioritária no triénio 1978-80. A
partir de 2008, pela primeira vez desde 1974, os que trabalham neste sector representam
menos de 30% da população empregada.
O grande crescimento sectorial do emprego em Portugal ocorreu no terciário. O sector dos
serviços, que representava 33% da população empregada, em 1974, atingiu, em 2009, 61%
da população empregada, a mais alta percentagem de sempre.
4. INSTITUIÇÕES, ACTORES E INDICADORES DO MERCADO DE TRABALHO
Um olhar mais atento sobre as instituições/actores/indicadores do mercado de trabalho
constitui igualmente um exercício útil de modo a retirar algumas ilações sobre o modo como
a UE produziu mutações no mundo laboral. Destacarei seguidamente, de forma breve, os
seguintes itens: i) salários; ii) regimes e tempos de trabalho: iii) a variável “género” cruzada
com os salários e os tempos de trabalho; iv) A legislação de protecção ao emprego (LPE); v)
o papel dos sindicatos; vi) as políticas passivas do mercado de trabalho; vii) as políticas
activas do mercado de trabalho; viii) e outros indicadores (contratos a prazo, desemprego,
produtividade, informalidade da economia).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
14
i) A questão dos salários ou dos cortes salariais passou a estar na ordem do dia pelo menos
desde 29 de Setembro de 2010, altura em que foram anunciados publicamente, no quadro
das medidas de restrição orçamental decididas pelo governo de José Sócrates os cortes
salariais até 10% para os funcionários públicos a partir de 2011. Talvez isso confirme, no
fundo, o argumento de que vai sendo notório um défice de justiça social na relação salarial
(Reis, 2009: 11).
Ora, estou em crer que em contexto de crise económica a importância do salário mínimo
será ainda mais acrescida. É elementar ter em conta que o salário mínimo, além de uma
importante fonte de justiça social, pode também constituir-se como apoio pecuniário
indispensável à sobrevivência de muitas famílias. Para os trabalhadores, o risco de pobreza
em Portugal é de 12% (sendo 2/3 do risco de pobreza total), enquanto que na Europa é de
8% (sendo aqui também metade do risco de pobreza total), o que é um indicador de que em
Portugal os salários são baixos para fazer face a situações de pobreza (Dornelas et al.,
2011: 18).
Como salientam Rosa e Chitas (2010: 66-67), baseando-se nas estatísticas da base de
dados Pordata (já acima citada), as remunerações do trabalho nunca representam menos
de 49% do rendimento disponível das famílias e equivalem sempre a pelo menos 45% do
PIB. É um facto que as remunerações ditadas pelo factor trabalho progrediram de forma
notória desde 1960: a preços de 2000 (descontando o efeito da inflação) e por habitante, as
remunerações aumentam mais de seis vezes, passando de 1.000 € anuais (em 1960) para
6.250 € anuais (em 2008). Porém, no caso do salário mínimo nacional, por exemplo, a
evolução afigura-se pouco significativa, pois quando se tem por referência a evolução dos
seus valores anuais a preços constantes de 2000 (descontando a inflação), verifica-se que,
em 2009 (quando representava 5.100 € anuais) o montante não era muito superior ao valor
de 1975 (4.723 € anuais), não obstante a comparação já poder ser mais favorável quando
se tem por referência o valor mais baixo ao longo de 35 anos (entre 1974 e 2009), de 3.449
€ anuais (registado em 1984)na véspera da adesão à CEE. Estes dados não sugerem, pois,
que uma presença da UE tenha sido decisiva no sentido de influenciar um upgrade do
salário mínimo nacional em Portugal.
Não surpreende que as qualificações do trabalhador tenham repercussões do ponto de vista
salarial. Quando se analisam os ganhos médios dos trabalhadores (que incluem salários,
subsídios e outras prestações contratuais) entre 1985 e 2008, verifica-se que há uma
relação positiva muito forte entre qualificações e salários (maiores qualificações, maiores
salários). Assim, a preços constantes de 2000 (descontando a inflação), os quadros
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
15
superiores ganhavam, em 1985, cinco vezes mais do que os “aprendizes” e 3,5 vezes mais
do que os “profissionais não-qualificados”; em 2008, essa relação era, respectivamente, de
4,3 e de 4,1. Olhando para os ganhos por sector de actividade, verificamos que o do
“alojamento, restauração e similares” é o menos bem pago do mercado de trabalho nacional,
em 2008, estando no lado oposto do espectro o subsector das “actividades financeiras e de
seguros”, com ganhos médios mensais de 2.224 euros, em 2008. Ou seja, neste domínio da
relação entre salários e qualificações os sinais de aproximação à UE parecem ter sido um
mais evidentes do que no caso do salário mínimo nacional.
ii) Quanto ao regime de trabalho e à duração média de tempo de trabalho constata-se o
seguinte: a maioria da população portuguesa empregada está a laborar em regime de tempo
completo (88% em 2009, tendo sido na 2ª metade dos anos 80, quando Portugal entrou para
a CEE, mesmo de 94%). Contudo, em termos de duração média semanal efectiva do
trabalho da população empregada, ela foi significativamente reduzida nos últimos 25 anos,
procurando aproximar-se de uma tendência europeia (em especial das economias mais
desenvolvidas): passou de 40 horas semanais, em 1983, para 35 horas, semanais, em 2009.
Cruzando estes dados com a situação na profissão, apesar de em qualquer situação
profissional o tempo médio de trabalho semanal ter diminuído, este tempo é claramente
maior no caso dos trabalhadores por conta própria (TCP): em 2009, por exemplo, esse
número médio de horas era de 45, face às 35 horas dos trabalhadores por conta de outrem
(TCO), também conhecidos como trabalhadores dependentes. Dados da evolução da
duração média do tempo de trabalho dos TCO permitem observar o seguinte: em 1985:
39,1h; em 1990: 38,5h; em 1995: 36,6h; em 2000: 36,2h; em 2005: 35,7h; em 2010: 35,5h
(http://www.pordata.pt/azap_runtime/?n=4).7
iii) Se cruzarmos a variável “género” com os salários e os tempos de trabalho constatamos
que o aumento da representatividade feminina no mercado de trabalho por comparação ao
sexo masculino, ainda não se traduz em igualdade em termos de proveitos do trabalho.8
7
Estes dados – nomeadamente sobre a duração média do tempo de trabalho – anunciam uma tendência de
sentido descendente associada ao lado formal de funcionamento da economia. No entanto, em contraciclo,
também um estudo de Abril de 2011da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE)
mostra que, de entre 26 dos 34 países da OCDE, Portugal é o país onde mais horas se trabalham por dia, mais
precisamente 8,71 horas por dia (em média 520 minutos por dia). Sendo a média de minutos trabalhados nos
países da OCDE de 480 por dia (8 horas), só os mexicanos (9,9 horas/dia) e os japoneses (9 horas/dia)
trabalham mais do que os portugueses. Além de evidenciar uma décalage entre o que se produz e o que se
trabalha (o trabalho supera a produtividade), o que se explica pelo défice de inovação e organização do tecido
empresarial português, este estudo parece, pois, também tornar “visível” o lado informal (“invisível”) do mercado
laboral, tanto mais que 53% desse corresponde a actividades que não são remuneradas, com destaque para
trabalhos domésticos como trabalhos de limpeza, cozinha, jardinagem e cuidados de crianças).
8
Para uma análise desta discussão em Portugal, cf. Ferreira (org,, 2010).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
16
Mantém-se, de facto, uma diferença de ganhos médios entre homens mulheres, com
vantagem para o sexo masculino, embora esta esteja a diminuir ao longo dos anos. Em
1985, enquanto um homem ganhava, em média, 186 euros, a mulher ficava-se pelos 136
euros (mais 37% para eles). Actualmente, essa diferença é de 28% a menos, para elas. A
diferença de ganhos médios entre homens e mulheres – vantajosa para os homens – que
trabalham por conta de outrem é, assim, a regra, qualquer que seja o nível de qualificação e
para praticamente todos os sectores de actividade (em 2008, as excepções são os sectores
da “construção” e dos “transportes e armazenagem”, onde os ganhos médios das mulheres
são superiores aos dos homens).
Quanto ao número médio de horas de trabalho existem também diferenças entre homens e
mulheres. A duração média de trabalho efectivo semanal é superior para os homens,
superioridade essa que, apesar de tudo, se tem esbatido (uma média de 3,4 horas a mais
efectivamente trabalhadas por homens, por semana, em 2009).
iv) A legislação de protecção ao emprego, por seu lado, remete para o dilema
flexibilidade/rigidez do mercado de trabalho. Por um lado, tem vindo a ser apontada em
Portugal a existência de uma rigidez formal da legislação laboral9. Como recordam Centeno
e Novo (2008a: 133), é frequente mencionar-se o elevado grau de protecção de que gozam
os empregos com contrato permanente na legislação portuguesa, sendo que tal excesso de
protecção tem impacto na taxa de criação de empregos, afectando as novas oportunidades
de emprego. Em simultâneo, essa protecção dos contratos permanentes condiciona
negativamente os investimentos em educação, não só porque os detentores desse
empregos não investem em mais formação e os pretendentes a esses empregos (jovens
estudantes), em face das poucas oportunidades à sua disposição, reduzem também o nível
de investimento em educação. Além disso, o sistema de protecção no desemprego (que em
Portugal, pelo menos até ao eclodir da crise económica havia evoluído para um caminho
mais generoso e universal) poderá agravar esta situação. Ou seja, uma elevada duração de
desemprego pode revelar-se perversa, segundo aqueles autores. Como dizem, “numa
economia com uma taxa de desemprego de 10% e uma duração média do desemprego de 1
mês, os desempregados têm maior probabilidade de transitar para o emprego, do que numa
sociedade com 5% de desemprego e 12 meses de duração média do desemprego”. No
mesmo sentido, Dornelas et al. (2011: 18) constatam que é extramente reduzido o retorno
9
Para o efeito, é recorrentemente utilizado o indicador da Legislação da Protecção do Emprego (LPE), nos
termos de uma avaliação proposta pela OCDE, segundo a qual, no caso português, além dos limites à
contratação temporária e da dificuldade em realizar despedimentos colectivos, é sobretudo manifesta a
dificuldade em despedir trabalhadores com empregos sem termo (Dornelas et al., 2006: 186).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
17
ao mercado de trabalho de beneficiários de subsídio de desemprego há mais de 9 ou 12
meses.
Por outro lado, e mesmo já tendo sido corrigida essa suposta rigidez da legislação laboral10,
foi igualmente reconhecido que o mais relevante não seria a legislação em si mesma, mas o
uso que dela é feito e as consequências da sua aplicação. Na verdade, a capacidade de
regulação da legislação é apresentada como variável: primeiro, porque a litigância varia por
país, região, sector, profissão, situação na profissão ou situação no mercado de emprego;
segundo, porque é diverso o papel atribuído à lei, às práticas de participação ou às
convenções colectivas em cada sistema de emprego; finalmente, porque as avaliações
baseadas somente na letra das normas sobre a liberdade patronal para contratar e despedir
não levam em conta o conjunto, mas tão-só as condicionantes ao poder patronal nos
momentos de início de termo da relação laboral. Assim sendo, não deixaria de ser crucial ter
igualmente em conta a atipicidade do emprego, as formas de emprego oculto e o peso
dessas formas no conjunto do emprego total (Dornelas et al., 2006: 186-187; Costa, 2009:
131). Por outro lado, a lei e a leitura que as pessoas fazem dela pode não ser consonante.
Isto é, se é certo que há lei para proteger o emprego, na prática as pessoas não parecem
acreditar muito nela. Assim, talvez com a excepção do Estado (onde, talvez se possa dizer,
cada vez em menor número também), como não há garantia do emprego em geral e como
tal “há uma sensação de que a lei protege mas as pessoas não se sentem protegidas”11.
v) O papel dos sindicatos (ou melhor, da centrais sindicais) sobre a UE tendeu sempre a ser
historicamente uma posição dual (Costa, 2006)12. Por um lado, a posição da União Geral de
Trabalhadores (UGT) – central sindical de orientação socialista/social-democrata – associou
à integração europeia, desde a primeira hora, a expectativa de um conjunto de “avanços” de
vária ordem para o país, nomeadamente quanto ao processo de desenvolvimento e
aproximação gradual às condições económicas e sociais médias da UE, resultante de um
conjunto de apoios técnicos e financeiros provenientes dos Quadros Comunitários de Apoio.
Além disso, a integração europeia enquanto processo externo criava condições para o
reforço de um processo democrático interno ainda pouco consolidado: “a adesão à União
Europeia permitiu o aprofundamento do processo democrático em Portugal e uma
participação plena na construção europeia, reforçando o bem-estar económico e social e a
projecção de Portugal no Mundo” (Proença, 2004: 2).
10
Assinale-se, por exemplo, que a revisão do código laboral em Fevereiro de 2009 de certo modo já previra a
compensação dessa suposta rigidez, nomeadamente em matérias como adaptabilidade de horários, banco de
horas, horários concentrados, ou processos de despedimento.
11
Mário Centeno, em entrevista ao Jornal Público, 7/02/2011. Cf. Igualmente Centeno e Novo (2008b: 146).
12
Para uma análise mais desenvolvida deste ponto, cf. Costa (2006).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
18
Para a UGT integração na UE e os avanços posteriores funcionaram sempre como
momentos de mobilização nacional que levaram à convergência com a média europeia e à
melhoria sustentada das condições de vida e de trabalho. A inflação em Portugal diminuiu e
aproximou-se da média comunitária. A produtividade subiu acentuadamente, tendo Portugal
os melhores resultados da UE, logo a seguir à Irlanda. Os salários e os rendimentos
cresceram. O desemprego baixou. Esta visão mais optimista da UGT seria, no entanto,
questionada ao longo da 1ª década do século XXI, sendo os nºs do desemprego (a que
voltarei mais abaixo) apenas a ponta de um iceberg de retrocesso de direitos sociais que
paira na sociedade portuguesa. Ainda assim, a nível mundial o papel da Europa é visto com
fundamental, devendo ser reforçada a intervenção da UE na defesa de uma globalização
diferente, com dimensão social e com respeito pelos direitos humanos e sociais. Perante a
crise, assiste-se agora a uma resposta a nível da UE, devendo o plano europeu para o
relançamento da economia ser estabelecido na base de uma actuação concertada dos 27
Estados Membros (UGT, 2009: 3).
Em contraponto a esta visão a priori optimista para o país proveniente dos “apelos”
europeus, posicionavam-se os desafios a posteriori menos optimistas para os sindicatos. A
este respeito, e de acordo com Alan Stoleroff (2000: 454), a integração europeia criou
condições desfavoráveis para o desenvolvimento sindical, em detrimento do que sucedeu
com o capital e com o Estado. Expondo a economia portuguesa relativamente
subdesenvolvida a novas formas de competição, a integração europeia levou os interesses
empresariais e estatais a procurarem efectuar transformações no padrão de relações
laborais existente em detrimento da estabilidade sindical. Em todo o caso, porém, nunca
foram conhecidas grandes queixas de parte da UGT quanto ao facto de estabilidade dos
sindicatos ter sido posta em causa com a integração europeia.
É neste quadro pessimista que se enquadra a posição da Confederação Geral dos
Trabalhadores Portugueses (CGTP) – central sindical de orientação comunista. Para esta
organização sindical, as dificuldades do processo de integração europeia foram notórias
sobretudo desde a entrada em vigor da 3ª fase da União Económica e Monetária (UEM), em
1999: incumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento; crescimento de uma política
monetarista; predomínio de teses neoliberais nos vários centros de decisão (CGTP, 2004a:
7). Afinal, desde o V Congresso (que coincidiu com o ano da adesão de Portugal à CEE,
1986) que a CGTP fez uma marcação cerrada ao processo de integração europeia, que
classificou como sendo composto por “elementos centrais a livre circulação de capitais e a
liberalização e desregulamentação” (CGTP, 2003a: 1; 2003b: 38). É preciso, pois, na óptica
da central, que os governos europeus se distanciem “dos modelos mais
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
19
desregulamentadores e anti-sociais de outros pólos capitalistas” para que a UE se
apresente como uma verdadeira alternativa ao neoliberalismo (Silva, 2004: 3), assim como é
preciso que as instituições europeias deixem de incorporar uma americanização das
relações de trabalho.
Nestes termos, “o processo de integração europeia, continuando a corresponder à actual
fase de desenvolvimento do sistema capitalista na Europa, incorpora crescentemente
dinâmicas neoliberais duras, canalizadas para as prioridades ao desenvolvimento do
mercado único, à livre circulação de capitais, à liberalização económica, à desregulação e
flexibilização violenta do mercado de trabalho, colocando assim em causa valores sociais e
humanos que, historicamente, fruto de dinâmicas políticas e sociais amplas internas e
externas ao espaço da UE, enformavam, de forma diferenciada, o processo e o
desenvolvimento sustentado das sociedades dos países europeus.” (CGTP, 2008)
Em resumo, enquanto que a UGT sempre se afirmou “pró-UE” e evidenciou, na linha da
Confederação Europeia de Sindicatos (CES), uma posição de contínua abertura estratégica
para com a UE, a CGTP quase sempre se colocou no campo oposto, rejeitando a “linha
federalista” da UE e assumindo a defesa da soberania nacional. Ainda hoje a CGTP não
abriu mão de um discurso de fechamento estrutural, ainda que recheado de valiosos
contributos críticos quanto às perspectivas a seguir quer pelo sindicalismo europeu, quer
pelas instituições da UE.
vi) As políticas passivas do mercado de trabalho – cujo principal instrumento é o subsídio de
desemprego – remetem-nos para um direito progressivamente generoso e universal. Porém,
segundo alguns autores (Centeno e Novo, 2008c: 154), o subsídio de desemprego, ao
garantir um rendimento em situações que as pessoas não dispõem de emprego, poder
deixar os trabalhadores mais “tranquilos” (i.e., menos receosos em vivenciar essas
situações em que não têm emprego) e criar dificuldades em encontrar um emprego com um
salário que satisfaça essas exigências. Assim, o rendimento propiciado pelo subsídio de
desemprego pode levar os desempregados a esperar pelo “melhor” emprego.13
13
Ao contrário do que se pensa, não é fácil o acesso ao subsídio de desemprego. Das 541.800 pessoas inscritas
nos centros de emprego em Portugal em Dezembro de 2010, apenas pouco mais de metade recebia subsídio de
desemprego (Expresso, 29.01.2011). Para Mário Centeno (Público, 7.02.2011), “apenas uma fracção minoritária
das pessoas que perdem emprego acede ao subsídio de desemprego” (os que não recebem não descontaram o
número de meses suficiente). Em seu entender, o subsídio de desemprego é muito longo, quase elitista e por
isso aumentar o subsídio de desemprego só prolonga ainda mais o desemprego. Esta linha de pensamento fez,
de resto, parte do memorando de entendimento assinado no início de Maio de 2011 entre o governo português e
a troika da Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI. Estima-se, aliás, que em 2012 e 2013 os cortes
na duração do subsídio de desemprego venham a afectar123.000 desempregados (Público, 15.05.2011).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
20
Talvez seja isso ajude também explicar que em 2010 o nº de desempregados que perdeu
direito ao subsídio de desemprego por recusar emprego14 duplicou. Ou seja, trata-se de uma
medida governamental (em vigor desde Julho de 2010 e incluída no pacote medidas de
austeridade com o propósito de travar a subida do desemprego de longa duração), não
parece estar a sortir o efeito pretendido, pois limita as possibilidades de os beneficiários
recusarem ofertas de trabalho uma vez que aumenta de 6 meses para 1 ano a
obrigatoriedade de as pessoas aceitarem trabalho por um salário 10% superior ao subsídio
de desemprego, sendo que do 13º mês em diante é considerado emprego conveniente o
que propuser um salário igual ao subsídio. Por outro lado, embora o subsídio de
desemprego continue a corresponder a 65% do salário bruto, foi introduzido um teto que
impede que a prestação seja superior a 75% do salário que o desempregado recebia
quando estava activo.
Uma outra situação que ganha relevo no que concerne às contas da Segurança Social são
as prestações com o desemprego. Em 2008, 1,1 mil milhões de euros foram gastos em
subsídios de desemprego, 12 vezes mais do que em 1977.
Referira-se ainda aqui o Rendimento Mínimo Garantido (RMG) e o Rendimento Social de
Inserção (RSI), prestações de apoio às famílias com extremas carências pecuniárias e que
constituiu uma inspiração que alguns governos portugueses foram buscar a outros Estados
europeus. Desde a criação desta prestação, em 1998, o número de subsídios atribuídos
passou de 340 mil para mais de meio milhão, em 2009.
vii) As políticas activas do mercado de trabalho, por sua vez, visam complementar as
políticas passivas do mercado de trabalho de modo a propiciarem uma mais rápida e
eficiente transição do desemprego para o emprego e criar uma diversidade de
oportunidades de emprego para os desempregados. Estas políticas incidem principalmente
na formação, subsídios à criação de emprego e actuação dos serviços públicos de emprego
no apoio à procura de emprego. Ao reportarem-se a quatro tipos principais de políticas
activas do mercado de trabalho – serviços públicos de emprego, formação profissional,
medidas de emprego para jovens e subsídio ao emprego –, Centeno e Novo (2008c: 155)
concluíram, no entanto, pela sua baixa eficácia. Na verdade, ao avaliarem iniciativas
implementadas pelos Centros de Emprego, como a medida REAGE (para desempregados
14
Esta constatação parece desmentir a expressão (recorrente na sociedade portuguesa) segundo a qual “o pior
dos empregos é sempre preferível ao desemprego”, ainda que esta expressão traduza, a meu ver, uma
percepção geral que as pessoas (desempregadas ou não) têm do emprego enquanto mecanismo que as ajuda a
(sobre)viver.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
21
com mais de 25 anos e mais de 6 meses de desemprego) e a INSERJOVEM (para jovens
com menos de 25 anos e mais de 3 meses de desemprego), concluíram que as medidas
incluídas nessas iniciativas revelaram um impacto limitado na redução da duração do
desemprego, que atingiu no máximo apenas meio mês.
Não obstante uma tendência favorável ao reforço da intervenção das políticas activas do
mercado de trabalho em Portugal, em especial no domínio da formação profissional, as
medidas passivas continuam a ter um peso superior ao da média europeia (Dornelas et al ,
2011: 17) e isso é mais um sinal do caminho que Portugal tem pela frente neste tipo de
políticas.
viii) Outros indicadores. Vários outros indicadores corroboram de certo modo os dados
fornecidos a propósito do comportamento das instituições e actores do mercado de trabalho.
Vejamos apenas alguns deles: contrato a prazo; desemprego; produtividade do trabalho;
informalidade da economia.
Por um lado, os contratos a prazo parecem colocar Portugal numa rota da flexibilização.
Entre 1999 e 2007, verificou-se um aumento da probabilidade de novos contratos serem
celebrados a termo e mantidos nessa situação durante mais tempo. Pela dinâmica de
entrada na vida activa, este fenómeno afecta particularmente os trabalhadores jovens, mas
tem-se estendido a todas as idades (Reis, 2009: 11-12).
Além disso, no sector dos serviços a flexibilização tem sido bem evidenciada através do
recurso aos contratos a prazo, possibilitando uma elevada rotação de emprego15. Ora, “esta
excessiva rotação reduz os incentivos ao investimento em educação e formação por parte
das empresas e dos trabalhadores, e acentua a polarização do mercado de trabalho,
afectando negativamente a acumulação de capital humano da economia” (Reis, 2009: 12).
No seu conjunto, os contratos a prazo abrangem mais de 20% dos assalariados, em
especial jovens com níveis de escolarização elevados.
Quanto ao desemprego, o que se constata é uma evolução com oscilações. Por um lado,
assistiu, em especial na última década do século XX, a uma tendência progressiva de
redução (o ano de 2000 foi aquele em que o desemprego atingiu níveis mais baixos: taxa de
3,9%). Porém, no final da 1ª década do século XXI, mais precisamente em 2009, o
desemprego cifrava-se nos 9,5%, isto é, cerca de um em cada 10 activos esteve
15
Mário Centeno, em entrevista ao Jornal Público, 7/02/2011. Ver ainda Centeno e Novo (2008b: 146).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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desempregado. Mas os números do desemprego colocam ênfase quer na sua duração (no
quadro europeu, o peso do desemprego de longa duração em Portugal faz-se
particularmente sentir), quer nos escalões etários, sendo neste caso os jovens (mesmo os
mais qualificados) particularmente afectados.
Em termos gerais, o desemprego em Portugal passou de 524.674 (10,1%), em Dezembro
de 2009, para 546.926 (11%), em Dezembro de 2010. Nesta data (Dezembro de 2010), a
taxa de desemprego na zona euro era de 10% e na UE/27 era de 9,6% (Eurostat, 2011a).16.
Entretanto, em Março de 2011, a percentagem de desempregados em Portugal situava-se
nos 11,1%, sendo na média da zona euro de 9,9% e a da UE/27 de 9,5%. Num contexto de
acentuada recessão económica em Portugal, estima-se mesmo que o desemprego possa,
em 2012, atingir valores na casa dos 13%.
O problema do emprego transporta, pois, consigo sinais de forte vulnerabilidade, porque ao
mesmo tempo que se torna mais previsível perder o emprego, torna-se também mais difícil
aceder a formas de crédito (Pedroso, 2009: 26). Ora, a tendência para o aumento do
desemprego vai-se registando sobretudo ao nível do desemprego de longa duração17. Por
outro lado, é demasiado elevada a percentagem de emprego atípico/precário em Portugal e
tal tipo de emprego prima pela insegurança (instabilidade) e pela baixa remuneração. Além
disso, no seio das empresas são evidentes baixos níveis de adaptabilidade do emprego e do
tempo de trabalho, o que vem potenciar despedimentos, facilitar a contratação precária e
dificultar a conciliação entre vida profissional e familiar (Dornelas, 2009: 128-129).
No final de 2010 registava-se em Portugal o maior volume de desemprego jovem de sempre.
De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), das 609.400 pessoas
desempregadas18 no 3º trimestre de 2010, 285.400 eram jovens com menos de 34 anos. E
aqui (no desemprego jovem) certamente podemos incorporar o desemprego de licenciados:
16
No entanto, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), no último trimestre de 2010 a taxa de
desemprego chegou aos 11,1%, elevando a população desempregada para 620.000, tendo a economia
portuguesa perdido entre o 4º trimestre de 2008 e o 4º trimestre de 2010 cerca de 247.000 postos de trabalho.
17
No final de 2010, segundo o INE, do total de desempregados era já de 55,7% a percentagem daqueles que
procuravam trabalho há mais de um ano. No terceiro trimestre de 2010, haviam 339.000 desempregados de
longa duração em Portugal, mais 89.000 do que no mesmo trimestre do ano anterior (2009), sendo a maioria
deles pessoas de baixas qualificações e, portanto, com maiores dificuldades em regressarem ao mercado de
trabalho.
18
Note-se, porém, que este número não espelha provavelmente a totalidade do fenómeno em Portugal, pois se a
esses 604.400 se juntarem os que pretendem trabalhar mas não procuraram emprego nas 3 semanas anteriores
ao inquérito do INE, bem como os que desistiram de procurar emprego, isso significaria que o nº de
desempregados chegaria aos 721.000 e a taxa de desemprego passaria dos 10,9% para os 12,7% (Público,
18/11/2010).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
23
se em 2000 o número de desempregados licenciados era de 83.000, em 2010 ele atingia os
190.000.
Em terceiro lugar, a produtividade do trabalho 19 em Portugal evidencia também algum
distanciamento face à UE. De entre os factores que explicam o considerável diferencial
entre a produtividade média do trabalho em Portugal e o conjunto da UE a 27 destacam-se: i)
a natureza do investimento em capital; ii) a estrutura produtiva portuguesa assente em
segmentos com baixo nível de incorporação de conhecimentos em produtos e serviços; iv) o
baixo grau de qualificação dos recursos humanos; v) a informalidade da economia (Dornelas
et al., 2011: 27).
Com efeito, o lado informal da economia é um lado escondido mas significativo. Estima-se
que em Portugal o peso da economia informal represente cerca de ¼ do PIB português.
Como assinalam Dornelas et al. (2011: 16), o peso do trabalho não declarado apresenta
sobretudo motivações mais económicas do que sociais e atinge tanto mais as diferentes
categorias quanto mais distantes estas se encontram do emprego típico e protegido. Além
disso, integra uma parte (16%) não remunerada do trabalho realizado no sector formal da
economia formal. Por outro lado, em Portugal, ao contrário do que sucede na generalidade
dos países europeus, a parte remunerada do trabalho não declarado proporciona
remunerações à hora mais altas do que o trabalho declarado e remunerado no sector formal
da economia.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crise política instalada em Portugal em Março de 2011, com o pedido de demissão do
governo socialista (aceite pelo Presidente da República) em resultado da rejeição em bloco
de todos os partidos da oposição ao chamado Plano de Estabilidade e Crescimento 4 (PEC
4) que reforçava as medidas de austeridade económica sobre a sociedade portuguesa
(cortes salariais, aumentos de impostos, etc.) e a consequente marcação de eleições
legislativas para 5 de Junho de 2011, Portugal viu-se forçado, no início de Abril de 2011, a
accionar o pedido de ajuda externa junto do UE (Fundo de Equilíbrio e Estabilidade
Financeira, FEEF) e do FMI. Consequentemente, a presença da troika internacional em
19
Formalmente, a produtividade do trabalho corresponde à quantidade de trabalho necessária para produzir uma
unidade de um determinado bem. Do ponto de vista macroeconómico, mede-se a produtividade do trabalho
através do produto interno bruto (PIB) de um país por pessoa activa. O crescimento da produtividade depende da
qualidade do capital físico, da melhoria das competências da mão-de-obra, dos progressos tecnológicos e de
novas formas de organização. O crescimento da produtividade é a principal fonte de crescimento económico.
(http://europa.eu/legislation_summaries/enterprise/industry/n26027_pt.htm)
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
24
Portugal – composta pelo FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia – veio definir,
em conjugação com o governo socialista demissionário e com dois partidos da oposição
situados à direita (PSD e CDS), as condições (contrapartidas) do plano de ajuda financeira a
Portugal no valor de 78 mil milhões de euros.
Sem nunca ter sido eufórica (como referi no início), a visão que hoje se tem da UE é, pois,
se não mais defensiva, talvez pelo menos mais ambígua. O facto de, em troca do apoio
financeiro pedido por Portugal, o FMI estar disposto a cobrar taxas de juro pouco superiores
a 3% e a UE cobrar taxas acima dos 5% é talvez um sinal dessa ambiguidade. Portugal
encontra-se, pois, no meio de uma encruzilhada e o seu mercado de trabalho está
ameaçado de maior flexibilidade, de um cenário de embaratecimento dos custos dos
despedimentos, de despedimentos individuais mais facilitados, nomeadamente por
inadaptação, de proliferação de relações de trabalho precárias, cortes nos subsídios de
desemprego, etc.
A UE está no meio dos portugueses, mas é uma incógnita saber se os portugueses estão
(ou alguma vez estiveram) no meio dela. Por um lado, a UE parece vir até Portugal cada vez
mais, ou melhor, aquilo que se faz nos espaços nacionais é cada vez condicionado pelo que
acontece na Europa: por exemplo, cerca de 70% da legislação adoptada em cada Estado
individualmente tem origem na legislação comunitária (Chagas, 2011). Além disso, em
especial a partir de 1999 (com a entrada na fase de transição par o euro), o afã do
cumprimento de critérios de convergência, de redução (não conseguida) do défice foi
também um sinal de como a Europa se impôs a Portugal20 e a outros Estados-Membros
mais periféricos. Mas, por outro lado, Portugal não parece ter descolado da cauda da
Europa no que concerne à valorização e qualificação da sua força de trabalho. A
importância da aposta na educação/qualificação das pessoas e do factor trabalho parece ser,
assim, um desafio futuro de grande amplitude, desde logo também para contribuir para
inverter a tendência (mais geral) de desigualdade na sociedade portuguesa: na UE/27
apenas a Letónia e a Lituânia apresentam padrões de desigualdade mais acentuada do que
Portugal (Rodrigues, Figueiras e Junqueira, 2011).
20
Portugal é obrigado a adoptar certas regras impostas pelo Tratado de Maastricht: inflação indexada à dos
países aderentes com menores taxas; défice orçamental abaixo dos 3% do PIB; dívida pública próxima dos 60%;
e taxa de câmbio estável. Neste período, o PIB cresce a uma taxa anual de 1,2%, enquanto a inflação se cifra
numa média de 2,5%.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
25
Não obstante os progressos registados em Portugal no sector da educação nas últimas
décadas reflectirem uma aproximação a padrões europeus 21 , o Relatório Estado da
Educação 2010, produzido pelo Conselho Nacional da Educação, registou, entre outros
dados, o seguinte: que as qualificações dos portugueses ainda se encontram muito abaixo
da média europeia; que 7 em cada 10 trabalhadores apresentam baixos níveis de
qualificações; que 17% da população activa possui qualificações médias e 13,2%
qualificações elevadas, mas 1/3 ainda deixa o ensino secundário por concluir; que 24% das
pessoas empregadas não concluíram o ensino básico; que 21% dos alunos portugueses
reprovam ou abandonam o sistema de ensino e só 58% concluem o 12º ano em tempo
normal sem terem reprovado nenhuma vez (Campos et al., 2010). Além destes baixos níveis
de qualificação do emprego face à média da UE e do abandono escolar precoce, a
aprendizagem ao longo da vida é ainda cerca de metade da EU/27 (Dornelas, 2009: 129).
Ora, ser mais escolarizado e qualificado é uma forma de aumentar colectivamente a
produtividade de uma sociedade, mas ao mesmo tempo uma forma de alargar as opções de
trabalho ao dispor de um trabalhador/cidadão (Centeno e Novo, 2008a: 132).22
Para Boaventura de Sousa Santos, após um momento europeu de aceitação (1974-2011),
Portugal entra agora num momento de rejeição disfarçada da aceitação, um momento em
que “se desfazem as ilusões da promoção fácil por via da integração na UE” (Santos, 2011:
54). Na verdade, prossegue o autor, “os termos da integração foram-nos sendo
progressivamente desfavoráveis, o projecto europeu foi-se desviando das vontades originais
e os mercados financeiros aproveitaram-se das brechas criadas na defesa da zona euro
para se lançarem na pilhagem em que são peritos”. Consequentemente, “vivemos um tempo
de explosão da precariedade, obscena concentração de riqueza, empobrecimento das
maiorias e incontrolável perda do valor da força de trabalho” (Santos, 2011: 152). Parece,
assim, mais evidente que as promessas de modernização ficaram curtas e que, pelo menos
do ponto de vista do mercado laboral (que foi o que aqui centrou a minha atenção) os
progressos alcançados não apagaram sinais de atraso face à média da UE.
21
Por exemplo, o número de diplomados no ensino superior quadruplicou em menos de duas décadas (19 mil
diplomados em 1991 e 84 mil em 2008), e mesmo a obtenção de níveis de formação mais elevados (como o
doutoramento) conheceu melhorias muito significativas: em 1970 apenas 61 pessoas tinham obtido o grau de
doutoramento em universidades portuguesas ou estrangeiras, ao passo que no presente o número anual de
doutoramentos é superior a 1.000 (Rosa e Chitas, 2010: 39).
22
Nesta mesma linha se pode enquadrar a medida 11 do Manifesto dos Economistas aterrorizados, redigido por
membros da membros da Academia Francesa de Economia Política, e segundo a qual é importante aumentar o
esforço orçamental em matéria de educação como forma de permitir uma forte descida do desemprego
(Askenazy et al., 2010: 8). Cf. também a edição em Português deste manifesto, publicada em 2011 pela editora
Actual.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
26
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Dossiê
Plutocracia, corrupção e as causas da crise. Soluções que causam dissoluções
TRANSICIÓN DEMOCRÁTICA Y NEOLIBERALISMO:
la crisis de la deuda externa en Argentina
DEMOCRATIC TRANSITION AND NEOLIBERALISM:
the external debt crisis in Argentina
TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E NEOLIBERALISMO:
a crise da dívida externa em Argentina
Alejandro Gabriel Manzo23
Resumo: Com o objetivo de entender como o neoliberalismo penetrou em Latino América
durante a década dos 80, este artigo analisa o processo de negociação da dívida externa
entre as autoridades argentinas e as do FMI no tempo imediatamente posterior ao
restabelecimento do regime democrático em 1983, e os conflitos políticos conseqüentes.
Palavras-chaves: Neoliberalismo -Transição Democrática - Dívida Externa
Abstract: This article analyzes the process of negotiation between the Argentinean
authorities and those of the “International Monetary Fund” (IMF) in the period 1983-1985 with
the purpose of observing in a historical particular process the activation of the “case by case
strategy” designed by IMF to struggle against the “external debt crisis” that affected Latin
America during the eighties. In particular, this article tries to show that some of the main
23
Universidad Nacional de Córdoba (UNC). Centro de Estudios Avanzados (CEA), Argentina.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
30
principles of democratic regimes have been damaged in the neoliberal globalization era
because the indebted governments of peripheral and semiperipheral countries, such as the
case of Argentina, must negotiate the orientation of its internal policies with transnational
agents; agents who have not been chosen democratically.
Key words: Neoliberalism – Democratic Transition- External Debt.
Resumen: el Dr. Alfonsin asumió el gobierno en 1983 con el objetivo principal de asegurar
la vigencia de la democracia luego de 50 años de continuos golpes de Estado en Argentina.
Si bien el grueso de sus esfuerzos se dirigieron a desmantelar la estructura represiva
heredada de la última dictadura militar (1976-1983), en especial a juzgar los crímenes de
lesa humanidad cometidos, también buscaron recomponer la delicada situación económica
imperante. El principal problema a enfrentar en este sentido giraba en torno a la deuda
externa; deuda cuyo monto se había multiplicado por cuatro en un período de seis años y
cuyo peso en el “Producto Bruto Interno” (PBI) era tal que desestabilizaba por si misma al
resto de las variables económicas. Este artículo analiza el proceso de negociación entre las
autoridades argentinas y las del Fondo Monetario Internacional (FMI) en el período
inmediatamente posterior al restablecimiento de la democracia (1983-1985), y con la
finalidad de observar, en una dinámica histórica concreta, la puesta en práctica de la
“estrategia caso por caso” diseñada por esa organización para lidiar con la “crisis de la
deuda externa” que afectó a Latinoamérica durante la década de los 80. Esta estrategia
convirtió a la deuda externa en un “mecanismo de disciplinamiento” en la medida en que a
través de la misma los países centrales podían participar en el diseño de la política interna
de los países endeudados y controlar palmo a palmo su implementación. Este análisis, de
carácter socio-histórico, se efectúa tomando como marco de referencia empírico fuentes de
datos secundarias, en especial bibliografía específica sobre la materia. La hipótesis
orientativa que guía este trabajo es que el proceso de transición democrático argentino se
vio afectado por la puesta en práctica de un programa económico neoliberal. Subyace en
esta hipótesis la idea base del paradigma crítico de que la democracia y el Estado de
Derecho no son fenómenos abstractos sino, por el contrario, fenómenos históricos que se
reproducen a través de luchas de poder entre agentes con poderes diferenciales.
Palabras Claves: Neoliberalismo-Transición Democrática-Deuda Externa Argentina.
1. INTRODUCCIÓN
El 10 de diciembre de 1983 finalizaba el período más oscuro de la historia Argentina. El
legado de la dictadura militar de 1976 incluía miles de desaparecidos, torturados y exiliados,
pero también una situación económica calificada por RAPAPORT (2010:339) como “poco
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
31
menos que catastrófica”. Correspondía al presidente electo Raúl Alfonsín encarar en este
contexto el proceso de transición democrática. Su objetivo inmediato, y centro de todo su
programa político, giraba en torno a los siguientes interrogantes: ¿Qué hacer con los delitos
de lesa humanidad cometidos durante el régimen militar? ¿Cómo garantizar que éstos no se
repitiesen en el futuro? Y más importante aún ¿Cómo asegurar un espacio de
gobernabilidad democrática, estable y perdurable, luego de más de 50 años de continuos
golpes de Estado?
A fin de responderlos, el oficialismo tomó durante los primeros días de su mandato una serie
de medidas particularmente trascendentes. Se excluyeron de los beneficios de la
“obediencia debida” a todos los que habían cometido hechos atroces o aberrantes (Nº
23.049) y se decidió juzgar por igual a guerrilleros y militares (decretos 157/83 y 158/83). Se
creó, por decreto 187/83, la “Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas”
(CONADEP) que tendría a su cargo el recabar informes y testimonios sobre lo sucedido.
Finalmente, se sancionaron un sinnúmero de normas dirigidas a desbaratar la estructura
represiva del antiguo régimen y a ampliar la protección en materia de derechos humanos.
La política económica, observa NOVARO (2006:166), debía estar en consonancia con este
proceso y promover simultáneamente el crecimiento, el desarrollo y la equidad. En
cumplimiento de su promesa electoral, Alfonsin abrió una serie de comisiones destinadas a
juzgar la legitimidad de la “fraudulenta”24 deuda externa contraída durante el período 19761983 en tanto que su ministro de economía, Grinspun, puso en práctica un programa
estatalmente expansivo que tenía como objetivo inmediato el de saldar la “deuda social”
heredada de la dictadura y reactivar el modelo sustitutivo de importaciones.
Se trataba, explica RAPAPORT (2010:341), de un programa particularmente opuesto a los
presupuestos propios de las nuevas teorías neoliberales. Parte del rechazo del gobierno,
dicen ESCUDÉ Y CISNEROS (2000) 25 , a las “recomendaciones de política de corte
neoliberal tenía que ver con la elaboración conceptual de la experiencia pasada. Los
políticos identificaban como parte del mismo paquete al régimen militar autoritario de los 70
y a la política económica monetarista y pro-mercado que dicho gobierno había
implementado (…) En consecuencia, criticaban esta afinidad ideológica y culpaban a ambos,
militares y tecnócratas ortodoxos, por el legado que habían dejado a la renaciente
democracia...”.
24
25
Ver el resumen de OLMOS (2006) del denominado “juicio de la deuda externa” -Causa judicial N° 14.467.
ESCUDE-CISNEROS (2000: capítulo 55: “la estrategia del gobierno radical al inicio del mandato”: 3.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
32
Menos de un año y medio después el oficialismo estableció un viraje de 180 grados en
relación a su orientación económica originaria. El “plan Austral” de junio de 1985 giró en
torno a un profundo ajuste estructural del gasto público y anunció la puesta en práctica de
una serie de reformas de fondo destinadas a desmantelar la estructura del Estado de
sustitución de importaciones. Poco después, por intermedio de las resoluciones N° 1.543 y
N° 408/161, se cerraron las investigaciones abiertas en torno a los delitos económicos
cometidos en la última dictadura militar (con lo cual el Estado asumió el pago tanto de la
deuda considerada “legítima” como de aquella otra entendida como “ilegítima”) y se activó
un nuevo proceso de estatización de la deuda del sector privado (vgr. comunicaciones del
BCRA A-695, A-696 y A-697 del 1º de julio de 1985).
¿Cómo y por qué se produjo este viraje? A fin de dar respuesta a este interrogante, este
artículo reconstruye las relaciones entre las autoridades nacionales y las del FMI en el
tiempo inmediatamente posterior al retorno de la democracia y tomando como base de
referencia empírica el trabajo de BOUGHTON (2001)26. Previo a ello, y tal como lo vemos a
continuación, presenta una serie de categorías analíticas necesarias para comprender el
papel de esta institución en un escenario global signado por la “crisis de la deuda externa”.
2. LA CRISIS DE LA DEUDA EXTERNA Y LA ESTRATEGIA CASO POR CASO
Durante los años 70, y en razón del excedente de divisas existentes en el mercado
financiero internacional tras la crisis del petróleo de 1973, el flujo de capitales proveniente de
los países centrales a los periféricos del sistema mundial fue inmenso. Los miles de millones
de dólares que por entonces recibieron los gobiernos latinoamericanos pueden
dimensionarse en toda su extensión si se observa que entre 1973 y 1982 la deuda externa
de México creció en un 855,4%, la de Argentina en un 792,3%, la de Brasil en un 606,4% y
la de Chile en un 445,5%27. Cabe advertir que, con la excepción de México, el resto de los
Estados aludidos se encontraban durante esos años bajo control militar. No obstante ello, a
finales de la década el panorama internacional dio un abrupto vuelco.
El 8 de septiembre de 1978 se produjo el “viernes negro” en Teherán, capital iraní, que
desembocó en la caída del Sha el 16 de enero del año siguiente. Los acontecimientos
desencadenaron un sismo en el escenario político de Medio Oriente que devino, a su vez,
26
Esto es así, en tanto este trabajo fue realizado por encargo del FMI y con el objetivo de reconstruir su propia
historia. Constituye, de este modo, una fuente de información particularmente confiable y autorizada según los
propios parámetros de la institución; “una suerte de historia oficial o autorizada del FMI”.
27
Anexo estadístico de la cátedra de historia económica de la Universidad Nacional de Entre Ríos (UNER),
http://www.fceco.uner.edu.ar/cpn/catedras/histssxx/indiceimages.htm, consultada el 12-12-09.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
33
en una escalada abrupta del precio del petróleo. Tras el comienzo, en 1980, de la guerra
entre Irán e Irak éste se disparó a niveles desconocidos en más de un siglo. La “segunda
crisis del petróleo” tuvo efectos particularmente intensos en la economía global.
EEUU ingresó en una profunda recesión. En parte como reacción, en parte como motivo de
dicha situación, implementó una política de ajuste estructural conocida como “shock
Volkcer”28. Este aumentó de un momento a otro las tasas de interés vigentes en el sistema
financiero norteamericano y con ello, las de los créditos externos de los países emergentes
contraídos en dólares. Estas tasas pasaron de ser negativas a principios de los años 70 a
ser aproximadamente 16% positivas a finales de los mismos BOUGHTON (2001:319).
Rápidamente, los gobiernos endeudados se encontraron en series dificultades económicas.
Los primeros síntomas de la “crisis de la deuda externa” se percibieron en Europa del Este,
luego en América Latina y desde allí se propagaron por el resto de los países emergentes
del mundo capitalista. HARVEY, (2007:106) exhibe en su libro un mapa que posibilita
advertir que, con distinto grado de intensidad, ésta afectó a 17 Estados de Latinoamérica, 19
de África, 3 de Europa y 1 de Oceanía poniendo en serio riesgo la viabilidad del mercado
financiero internacional y de sus principales instituciones. En este contexto, y a fin de lidiar
con la situación, el FMI diseñó una estrategia, denominada “caso por caso”, que se aplicó en
25 oportunidades durante los años 1982 y 1985. Haciendo un proceso de abstracción de
estos casos, BOUGHTON (2001:404 y ss) presenta los siguientes elementos claves para
comprenderla.
1- En todos las oportunidades en que la estrategia operó el “desbalance (en el país deudor)
era lo suficientemente relevante como para generar una crisis…”. En efecto, los procesos de
negociación se llevaron a cabo en momentos en los que los Estados endeudados se
encontraban atravesando un período de extrema debilidad económica. El Fondo partía de
considerar que el default era el peor de los escenarios posibles para ambas partes en juego
(vgr. deudores y acreedores). De allí que el grueso de sus esfuerzos se dirigiesen a evitarlo.
La estrategia se construía de principio a fin en torno a esta finalidad inmediata. Exigía por un
lado, a los gobiernos deudores sacrificios destinados a generar un ahorro lo suficientemente
cuantioso como para afrontar el pago de sus pasivos externos y, por otro, a los acreedores
que reprogramasen el vencimiento de sus créditos y participasen en los paquetes
financieros necesarios para rescatar la economía en crisis.
28
El nombre proviene de Paul Volcker director de la Reserva Federal de los EEUU de 1979 a 1987.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
34
2- “La aprobación del Acuerdo era una precondición para acceder al financiamiento de
bancos comerciales y oficiales…”. El FMI se convirtió a principios de los 80 en la llave de
entrada al mercado financiero internacional. Todo país que pretendiese negociar su deuda y
acceder al crédito externo debía necesariamente firmar un Acuerdo previo con esta
institución. El paquete de divisas que éste suponía se sujetaba al cumplimiento por parte del
prestatario de un “set de políticas” apropiadas para estabilizar su economía (vgr.
“financiamiento por condicionalidades”). Estas políticas, históricamente pro-mercado, se
sustentaban en los 80 en los presupuestos propios de las teorías neoliberales.
Bajo esta dinámica, conformada a través de un proceso de prueba y error que tuvo como
emblema el “caso México” (1° país en estar al borde del default en agosto de 1982), se
encontraban alineados los “Bancos Multilaterales de Desarrollo” (BMD, vgr. BM, BIS y BID),
los “centrales” y “oficiales” de las potencias occidentales y, finalmente, los “comerciales” que
habían sido los abanderados del reciclaje de petrodólares durante los años 70 hacia los
mercados emergentes y que, en el caso mencionado, alcanzaron el número de 500 con
participación activa.
Éstos, que a principios de la crisis suponían una masa dispersa y fragmentada, se
organizaron a instancias del FMI a través de un “Comité asesor” integrado por los
representantes de los 14 bancos privados más importantes de occidente con asiento
matricial en Norteamérica, Europa y Asia. Otra innovación propia de este período fue la
aparición de la figura de los “créditos concertados”. En los 70, las entidades que prestaban
divisas a los gobiernos en vías de desarrollo lo hacían de manera autónoma y voluntaria. A
partir de 1982 esto se alteró. Durante el proceso de negociación de la deuda, el staff del FMI
determinaba la cuantía del paquete financiero a otorgar al país deudor y el porcentaje que
cada uno de los “tipos” de acreedores involucrados debía aportar (vgr. bancos oficiales,
BMD y privados).
El Acuerdo se aprobaba sólo si cada uno de esos tipos efectivamente alcanzaba dicho
porcentaje y se comprometía por escrito a prestar el dinero en la fecha convenida (vgr.
“créditos concertados”). En la práctica, esta modalidad activaba un apresurado proceso de
captación de recursos en los territorios de los Estados centrales; proceso que permitía tener
enganchados en el juego a cientos de entidades privadas de pequeño o mediano tamaño.
Por el lado de los deudores, sucedió exactamente lo contrario. Tras el estallido de la crisis,
los diferentes países afectados acercaron posiciones con el objetivo de máxima de
conformar un pool de deudores que les permitiese ampliar su poder de negociación y exigir
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
35
condiciones ventajosas para sus propios intereses. La estrategia del Fondo minó en buena
medida estos lazos de solidaridad. De allí su nombre: “caso por caso”. Bajo la justificación
de que cada caso era particular y que, por lo tanto, requería soluciones particulares se
impuso como requisito sine qua nom de la nueva dinámica del mercado financiero
internacional la firma de un Acuerdo entre “un” país deudor y el FMI. No había lugar para
soluciones conjuntas a una problemática común. La estrategia contribuía así a construir un
nuevo equilibrio de poder en el escenario global; equilibrio sin el cual no puede
comprenderse cómo el neoliberalismo penetró en los países periféricos del sistema mundial
durante la década de los 80.
3- Durante el período 1982-1985 los Acuerdos “estaban confinados fundamentalmente al
ajuste monetario, fiscal y de la política salarial (…) Otras reformas más estructurales -como
la liberalización de los precios, la privatización de las empresas públicas, la simplificación de
las regulaciones, etc- van a ser consideradas posteriormente como una parte crucial para el
restablecimiento del crecimiento…”
Este párrafo muestra la evolución del contenido del neoliberalismo, como política oficial,
durante los años 80. Lo que se conocería como el “Consenso de Washington” de 1989 no
surgió de la noche a la mañana. Se trató, por el contrario, de un largo proceso de prueba y
error que comenzó en los años 70 con un núcleo básico que se fue ampliando a lo largo de
la década subsiguiente. Este núcleo aparece representado en el párrafo transcripto por “los
ajustes estructurales”. Éstos, básicamente, suponen un recorte del gasto del Estado (en
distintos niveles: monetario, fiscal y salarial) y tienen como objetivo inmediato el de controlar
la inflación, estabilizar el mercado local y, desde allí, fomentar el crecimiento económico vía
inversiones privadas, directas o indirectas, internas o externas. Se legitiman de una manera
muy sencilla. Éstos, de conformidad a la óptica de sus promotores, buscan lograr una
administración pública racional, ordenada y eficiente, evitar despilfarros a partir de políticas
“populistas” y reducir o eliminar el déficit fiscal.
No obstante ello, vistos en profundidad, estos ajustes estructurales cumplen una serie de
funciones mucho más complejas y centrales para la reproducción de los modelos
neoliberales aplicados en nuestra región. Estas son, al menos, las siguientes:
a) Minimizan el Estado: en el máximo grado de abstracción estos ajustes suponen un
cambio fundamental en cuanto al papel del Estado en la sociedad. Durante la vigencia del
“modelo de sustitución de importaciones” (vgr. años 30 a 70) era precisamente el Estado el
encargado de ordenar las relaciones entre capital y trabajo. En el neoliberalismo esta
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
36
función recae sobre el mercado. Se entiende que éste, es el mecanismo más eficiente para
redistribuir los recursos sociales y fomentar el crecimiento económico. Desde su lógica, la
intervención estatal lejos de ser la solución a las crisis económicas es su causa principal.
Los ajustes estructurales reducen el gasto del Estado y con ello, su capacidad para comprar
bienes y servicios, subsidiar la producción, establecer aumentos de salarios que fomenten el
consumo interno, ampliar su planta de personal para luchar contra el desempleo, construir
obras públicas que movilicen determinados sectores de la industria, etc. Estas políticas
estatalmente expansivas, desde la lógica del FMI, lejos de tener el efecto deseado
aumentan el déficit fiscal, promueven la inflación, distorsionan las señales del mercado y son,
consecuentemente, a largo plazo profundamente contraproducentes.
b) Aseguran el pago de la deuda externa: el ahorro fiscal producido por los ajustes
estructurales no se destina de manera directa a fomentar la producción o el trabajo sino a
garantizar la normal integración del Estado al mercado financiero internacional. Esta
integración se asegura básicamente cancelando en tiempo y forma los vencimientos de sus
pasivos externos y acumulando reservas que den solvencia y liquidez a su sistema
financiero. Los créditos otorgados por los BMD ayudan a un Estado en crisis a cumplir con
estas finalidades hasta tanto se detenga la fuga de capitales, se retome la senda del
crecimiento y el flujo de divisas se reoriente hacia el interior de las fronteras nacionales. La
firma de un Acuerdo entre el gobierno del país deudor y el FMI constituye un aspecto central
en lo que a la “confiabilidad” y “credibilidad” del mercado local a nivel internacional se refiere.
c) Redistribuyen de manera inmediata los recursos sociales en detrimento de los
trabajadores y a favor de los grandes capitales: los ajustes implican recortes de sueldos, de
la planta de personal, de la jornada laboral y de las prestaciones sociales. El sistema
financiero, por el contrario, busca ser recapitalizado, se paga a los acreedores externos y se
diseñan distintos estímulos para atraer a los grandes inversores. De allí que, suela decirse
que, bajo estos presupuestos, el grueso de los costos sociales que se desprenden de las
crisis económicas recaen sobre los sectores medios y bajos de la sociedad. Es fundamental
subrayar que esta redistribución no se asienta en un imperativo “moral” del modelo
neoliberal sino “funcional” a su propia lógica de reproducción. La eventual quiebra del
sistema financiero local y la desvinculación del Estado del mercado de capitales
internacionales, se cree, deriva en el colapso de la economía considerada como un todo.
Los costos sociales que de este colapso se desprenden, dicen los promotores del modelo,
superan los inmediatos del ajuste estructural. Sin éstos, asimismo, el Estado carece de los
recursos necesarios para asegurar la solvencia del sistema, la confiabilidad del mercado y,
consecuentemente, de la capacidad para atraer las inversiones necesarias para reactivar la
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
37
economía. Una vez que ésta se recupera, los beneficios no se circunscriben a unos pocos
sino que se derraman sobre todas las clases sociales (“teoría del derrame”).
Hacia mediados de los 80 la estrategia caso por caso había alcanzado un nivel crítico. Los
bancos se rehusaban a participar en los paquetes de créditos concertados y la población de
los países endeudados mostraba una creciente fatiga en relación a los programas de
ajustes29. En este contexto, el nuevo secretario del tesoro de EEUU (vgr. James Baker III)
ideó una nueva propuesta para lidiar con la crisis que no suponía un abandono de la
estrategia imperante sino su modificación. Esta propuesta, presentada en 1985, fue
conocida como “Plan Baker”. Básicamente, éste institucionalizaba una serie de roles para
los distintos agentes involucrados y tasaba la cantidad de financiamiento que se requeriría
para afrontar la situación durante los próximos tres años 30 . Más importante aún, éste
suponía un cambio fundamental en el contenido del recetario neoliberal con destino a los
países periféricos del sistema mundial. Los Acuerdos ahora combinaban los “ajustes
estructurales” con “reformas de fondo” destinadas, básicamente, a desmantelar los Estados
vigentes. Estas reformas se organizaban mayormente en torno a la flexibilización y
desregulación del trabajo y de la seguridad social, la privatización de las empresas públicas,
la descentralización estatal, la apertura del mercado local al internacional, la liberalización
financiera y la reforma de los sistemas tributarios.
4- “Cuando los problemas iniciales eran severos (…) los programas del Fondo usualmente
fallaban. De los 25 acuerdos aprobados con distintos países entre 1982 y 1985, sólo 11
fueron totalmente completados, y la mayoría de ellos requirieron modificaciones sustanciales
antes de ser concluidos…” Esto muestra las dificultades que encontró la estrategia para
operar en la práctica. Éstas provenían al menos de dos direcciones interrelacionadas: los
costos sociales que los ajustes significaban (vgr. “fatiga de ajuste”) y la imposibilidad de la
estrategia para reactivar la economía de los países en los cuales ésta se activó. Hacia 1985,
es decir 3 años después del inicio de la crisis, el crecimiento seguía siendo, según palabras
del propio Boughton, la “Meta Elusiva”31.
Se trata de un resultado que no es casual a la luz de los propios presupuestos de los que la
estrategia originalmente partía. No existía ningún plan para reactivar las economías de los
países afectados, más allá de lo que podía derivarse de la estabilización del mercado vía
control de la inflación. Hasta mediados de los 80 el diagnóstico del Fondo era que éstos
29
Boughton (2001:417-418).
Escude-Cisneros (2000: “capítulo 55”, “el rol del FMI y el BM”: “el Plan Baker”:1).
31
Título con el que el que Boughton titula el capítulo 5 de su trabajo (Growth, the elusive goal: 1985-1987).
30
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
38
atravesaban una crisis “coyuntural” y no “estructural”. Visto así, una vez que los factores
endógenos y exógenos que la habían desencadenado variasen, los Estados podían
recuperar la senda del crecimiento y pagar-contraer su deuda de manera voluntaria. Una
vez que el diagnóstico cambió se transformó también la estrategia (vgr. Plan Brady 1985).
De acuerdo a la nueva lógica los países no crecían, no por el peso de sus deudas ni por el
estrangulamiento que los propios ajustes efectuaban sobre sus economías, sino por
defectos estructurales del propio Estado de sustitución de importaciones.
5- “Sin importar los obstáculos, casi todos estos Acuerdos fueron rápidamente repagados en
tiempo y totalmente (…) Abandonar al Fondo significaba renunciar al acceso a los mercados
financieros internacionales. La estrategia de la deuda tal vez no haya sido completamente
exitosa, pero sólo unos pocos países endeudados estuvieron en condiciones de darle la
espalda…”
Varios puntos a considerar: en primer lugar, este párrafo permite advertir que, pese a los
enormes riesgos que supone prestar dinero a un gobierno que se encuentra en una
situación de crisis tal que no puede afrontar los pagos de su deuda, “casi todos estos
Acuerdos fueron rápidamente repagados en tiempo y totalmente”. Se trata de un resultado
imposible de lograr en condiciones de libre mercado. Cualquier otra consideración un poco
más profunda, como que estos pagos se efectuaban cuando el grueso de la población
pasaba grandes necesidades, es por supuesto obviada en esta clase de razonamiento.
En segundo lugar, este párrafo introduce el elemento “coercitivo” de la estrategia. La
capacidad del FMI para “imponer” condiciones en la orientación de la política interna del
Estado deudor surge de los puntos delineados anteriormente. En efecto, dice el autor citado,
“abandonar al Fondo significaba renunciar al acceso de los mercados financieros
internacionales” y “sólo unos pocos países endeudados estuvieron en condiciones de darle
la espalda” aún cuando “la estrategia no haya sido completamente exitosa”; exitosa, vale la
pena aclararlo, para los deudores. Para mediados de la década de los 80, los bancos
acreedores ya se encontraban fuera de peligro y con sus cuentas saneadas. El aludido Plan
Baker surge en buena medida de la necesidad de mantener en el juego a las entidades
privadas que, en su nueva condición, no concebían una intervención centralizadacoordinada como requisito sine que nom para operar en el mercado internacional de
capitales. Sólo cuando éstas estuvieron suficientemente fortalecidas a finales de los 80 es
que se consideró la posibilidad de condonar parte de la deuda de los países en vías de
desarrollo (vgr. Plan Brady), algo que los gobiernos de la región venían solicitando desde
principio de la crisis.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
39
3. Las relaciones entre las autoridades argentinas y las del FMI entre 1983 y 1985
En Argentina los síntomas de la crisis empezaron a manifestarse aún antes que en el resto
de los países de la región. Durante el régimen militar la deuda externa había aumentado
desde los 9 a los 45 mil millones de dólares (MARONGIU, 2007:13). En este contexto el
shock Volcker tuvo un efecto particularmente intenso. Frente a la desconfianza, los capitales
especuladores iniciaron un éxodo masivo y el 28 de marzo de 1980 el principal banco
privado radicado en el país cerró sus puertas (Banco de Intercambio Regional). El proceso
se diseminó a ritmo vertiginoso y más de 70 instituciones bancarias, lo que equivalía a cerca
del 20% del total de los depósitos en el sistema, cayeron en quiebra dejando al “desnudo
multimillonarios autopréstamos”32.
El ministro Alemann inició, a principio de 1982, el proceso de negociación de la deuda
logrando alcanzar compromisos con los acreedores externos para la reprogramación de los
vencimientos inmediatos. No obstante ello, la guerra de Malvinas echó por tierra el avance
logrado. Frente al bloqueo de las exportaciones argentinas, el sector duro de la Junta Militar
pidió la confiscación de los bienes británicos. “Alemann no aceptó, pero sin dudarlo
suspendió el pago de los vencimientos de capital de la deuda externa para preservar el nivel
de reservas del Banco Central, generando una reacción de histeria entre los banqueros de
todo el mundo...” (KANENGUISER, 2003:165). La crisis de la deuda externa estallaba en
Argentina 4 meses antes de que lo hiciera en México.
La derrota en Malvinas simbolizó el principio del fin de la dictadura. A diferencia del resto de
los países de la región, insertos también en hondos procesos recesivos, el gobierno militar
debió abandonar el poder intempestivamente. Cuando la paz fue reestablecida, en junio de
1982, la Argentina ya había acumulado más de 2 mil millones de dólares de deuda impaga.
Advertido de la metamorfosis que estaba sufriendo el mercado financiero internacional, el
nuevo ministro de economía -Wehbe- decidió conectarse con el FMI. El 24 de enero de 1983
el Comité Ejecutivo de esta institución aprobaba un Acuerdo stand-by por un paquete
financiero de 3.270 millones de dólares33.
Sin embargo, en octubre de ese año y ante la inminencia de las elecciones, los
desembolsos acordados se interrumpieron. Al momento de la asunción de Alfonsín, el
panorama económico era crítico. La inflación se había incrementado entre 1982 y 1983 de
una tasa del 209,7% a una del 433,6% anual, el déficit fiscal representaba este último año el
32
33
Diario La Nación del 30-11-2003.
Escude-Cisneros (2000: “capítulo 55”, “antecedentes inmediatos”: 2).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
40
16% del PBI en tanto que la deuda lo hacía en un 67% (Novaro, 2006:168). Peor aún, los
capitales especulativos seguían su éxodo masivo. El nuevo presidente del BCRA, García
Vásquez, le indicó en este sentido al director gerente del FMI, Larosiére, que esta fuga
había sido tan intensa en los últimos meses que “había convertido a la Argentina en un país
sin moneda…” (BOUGHTON, 2001:388).
Se hacía imperioso para el gobierno detener y revertir esta tendencia. A estos efectos el 21
de diciembre, es decir a sólo 11 días de asumido el poder, García Vásquez viajó para
reunirse con Larosiére. El director gerente entendió que la mejor manera de abordar la
problemática argentina era a través de un “programa de largo-término” y acordó el envío de
una misión a Bs As para el mes de febrero34. La situación financiera era tan angustiante que
el ministro Grinspun decidió dejar de lado el plazo acordado y viajar a principios de enero a
Nueva York para reunirse con el Comité Asesor de los bancos comerciales. Él les comentó
que estaba buscando un nuevo Acuerdo con el Fondo y les solicitó que reflotaran el paquete
financiero convenido durante la dictadura. Se juntó, asimismo, con Larosiére para manifestar
su fuerte intención de llegar a un Acuerdo lo antes posible. “Sin embargo, sin ningún
esfuerzo concreto que demostrase su compromiso con políticas fuertes, este esfuerzo inicial
de persuasión fue largamente en vano. El 23 de enero, el arreglo stand-by existente fue
formalmente cancelado…” (BOUGHTON, 2001:388).
Se observa así, desde el principio, una clara incompatibilidad entre las partes en tratativas
que, no se limitaba a una mera oposición de intereses sino también a una contradicción de
los presupuestos de los que cada una de ellas partía. Esta incompatibilidad, lejos de
decrecer, se incrementaría con el paso del tiempo. A su vuelta, Grinspun decidió buscar
apoyo en los países de la región y la reunión de Quito constituía una excelente oportunidad
en ese sentido.
El 13 de enero se reunieron en Ecuador 28 presidentes latinoamericanos y del Caribe. A
comienzos de 1984 el escenario para esta iniciativa era particularmente propicio porque,
como bien explica VAUDAGNA (2005:1), habían aumentado “las discrepancias en las
relaciones entre el FMI y algunas economías latinoamericanas…” En la histórica declaración
de Quito “los presidentes y cancilleres que asisten expresan que el problema de la deuda es
una cuestión política y reclaman: períodos de repago de más largo plazo, el no incremento
del costo de la deuda como resultado de la refinanciación y el establecimiento de un nexo
entre el servicio de la deuda y los ingresos por exportación…”
34
Ver Boughton (2001:388).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
41
La misión del Fondo, liderada por Joaquín Ferrán y luego por Wiesner, efectivamente arribó
a Bs As el 6 de febrero. Los resultados fueron poco alentadores. Comenta BOUGHTON
(2001:389) “luego de un mes desperdiciado, Wiesner regresó a las oficinas centrales (…) En
síntesis, era un clásico caso de exceso monetario y fiscal de un gobierno que aparece
tratando de consolidar su poder político antes de recuperar el control de la economía…” Una
clásica definición, también, de la nueva ortodoxia del FMI y un anuncio expreso de su
intención de imponer un ajuste estructural sobre el gasto del Estado.
El panorama se complicaría aún más durante los días subsiguientes frente al anuncio de
Grinspun de suspender el pago de los servicios de la deuda de los bancos comerciales por
un plazo de 6 meses, plazo que se iba a utilizar para revisar la legitimidad del monto
adeudado. El autor aludido relata, a renglón seguido, lo sucedido de la siguiente manera:
“el día después del retorno de la misión a Washington, Rhodes (vicepresidente del Citibank
y líder del Comité Asesor) llamó a Dale (funcionario del FMI) a la medianoche y le preguntó
si podía viajar a Nueva York a la mañana siguiente para reunirse con él y con algunos
colegas del Comité. Cuando llegó a Nueva York, le dijeron a Dale que los banqueros no
estaban siendo informados por las autoridades argentinas y que estaban consecuentemente
cada vez más frustrados y enojados. Ahora estaba claro que ningún progreso se podía
realizar en relación al financiamiento hasta que un fuerte programa de ajuste fuese acordado
con el Fondo e implementado…”
Varios puntos a comentar. En primer lugar, este párrafo permite advertir la conexión
existente entre los miembros del Comité Asesor y los del FMI en una dinámica concreta.
Esta última institución, operaba en la práctica como una suerte de representante de los
intereses de los banqueros. En segundo lugar, el párrafo transcripto refleja la relevancia del
caso argentino desde la óptica de las entidades financieras y su creciente “frustración y
enojo” frente a la posición adoptada por el gobierno nacional. En tercer lugar, muestra ese
momento histórico en el cual las negociaciones habían llegado a un grado de confrontación
tal, en el cual las posibilidades de “cooperación” cedían lugar a la “coerción” (“ahora estaba
claro que ningún progreso se podía realizar” hasta que las autoridades no acordasen con el
FMI “un fuerte programa de ajuste” y lo implementasen).
El gobierno argentino siguió buscando apoyo en el exterior en tanto sabía que bajo las
condiciones imperantes le sería difícil mantener el rumbo económico establecido durante
mucho tiempo. Retrospectivamente el ministro Grinspun expresó cuáles fueron sus
principales propuestas durante las reuniones realizadas en el Consejo de las Américas
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
42
(Nueva York), en la Asamblea Anual del BID (Punta del Este) y en el Comité Interino del FMI
(Washington) entre los meses de febrero y abril de 1984:
“a) Se planteaba que el problema de la deuda no era financiero sino que tenía su origen, y
por lo tanto sus soluciones, en cuestiones políticas; b) los servicios de la deuda debían estar
vinculados a los ingresos por exportaciones y, además, que esos servicios se podrían
atender si se establecía una corriente financiera inversa que garantizara el crecimiento
económico de los países deudores; c) también se reclamaba el establecimiento del principio
de corresponsabilidad entre deudores y acreedores en torno a la generación y evolución de
la deuda, asumiéndose las consecuencias de dicha determinación, por lo que se solicitaba
quitas en el stock de deuda y rebajas en las tasas de interés para equipararlas en términos
reales a las anteriores a la crisis del petróleo; d) se postulaba la necesidad de que desde las
economías desarrolladas se impulsasen las corrientes de capital hacia las economías en
desarrollo para acelerar su crecimiento económico…” -Vaudagna (2005:2)- (el resaltado es
nuestro).
Durante la Asamblea Anual del BID, Argentina recibió el apoyo de los Estados de la región.
En un gesto de extrema buena voluntad, considerando la situación que estaban atravesando,
los gobiernos de México, Venezuela, Brasil y Colombia prestaron al país 300 millones de
dólares. EEUU aportó 100 millones más, pero advirtiendo de la necesidad de que se
alcanzase un pronto Acuerdo con el FMI. Los 500 millones necesarios para escapar del
default, se completaron con 100 millones de las reservas del BCRA35. El 31 de marzo la
nación pagaba a sus acreedores externos flexibilizando así su posición originaria.
Dicha flexibilización debe leerse dentro de un marco más general. Alfonsín, con una postura
más conciliatoria que la de Grinspun, había decidido bajar el voltaje de las negociaciones
enviando al FMI al prestigioso y octogenario economista Raúl Presbisch. El “acuerdo
Presbich-Larosiére”, alcanzado ese mismo 31 de marzo, importaba un enorme ajuste
estructural (el déficit fiscal debía ser reducido desde el 18% al 6% del PBI para principios de
1985) y una política salarial consistente con el pago de la deuda externa36.
Este acuerdo no llegó a materializarse. Las negociaciones entre las autoridades nacionales
y las del FMI continuaron durante abril sin ningún progreso relevante. Mientras tanto la fuga
de capitales no se detenía sino que, por el contrario, se aceleraba. Las relaciones se
tensaron aún más durante el mes de mayo. El mayor punto de controversia giraba en torno
35
36
Escude-Cisneros (2000: capítulo 69: las relaciones con Estados Unidos”: 2).
Ver Boughton (2001:390).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
43
a los aumentos salariales concedidos por el gobierno de Alfonsin. Esta firme decisión del
presidente, y dejando de lado posturas ideológicas más abstractas, tenía por objeto
contener las presiones de los sindicatos mayormente manejados por el partido peronista.
El 19 de ese mes Argentina, Brasil, México y Colombia, con el advenimiento posterior de
Ecuador, Perú y Venezuela, elevaron un documento semejante al de Quito al “Grupo de los
Siete” (G7) reunido en Londres y se comprometieron a tomar medidas concretas en relación
a la cuestión de la deuda. La declaración no encontró respuesta inmediata. No obstante ello,
días después, el sub-secretario del director del tesoro norteamericano, Robert McNamara,
volvía a arremeter contra la posición Argentina y fijó plazo para su reversión. Sostuvo que
“no habría nuevos créditos hasta que las autoridades argentinas no llegaran a un Acuerdo
con el FMI antes del 31 de ese mismo mes…” -ESCUDÉ-CISNEROS (2000)-37.
El Acuerdo no se consiguió. Peor aún, las relaciones con el FMI tocaron fondo el 11 de junio
cuando Grinspun difundió un “borrador de Carta de Intención” que no había sido
previamente convenido con las autoridades de la institución. En éste señaló que38:
“a) La situación económica sufrida por el país desde mediados de la década de 1970, se
manifiesta en un grave deterioro económico. 1) El gobierno de facto llegado al poder trató de
imponer una reforma estructural, orientándola hacia la apertura del mercado interno y a la
oferta de capitales y bienes internacionales para resolver el problema inflacionario, fracasó
en ambos intentos, con consecuencias dañosas de orden económico-social. 2) El gobierno
constitucional, se encontró frente a una situación de gravedad inédita, que puede resumirse,
entre otros aspectos: una deuda externa de alrededor de cinco veces el valor anual de las
exportaciones, una tasa de inflación de alrededor del 15 al 20% mensual, un déficit del
sector público superior al 16% del PBI y una reducción de los stocks de bienes de capital,
infraestructura, equipos industriales y existencias comerciales en magnitudes significativas.b) La negociación con el FMI: 1) El pago de la deuda externa argentina compromete algo
menos de la mitad del ahorro nacional, fue contraída a través de la aplicación de una política
económica arbitraria y autoritaria, en la cual los acreedores tuvieron activa participación, sin
beneficio alguno para el pueblo argentino, el gran ausente en todo este proceso. 2) La
República Argentina honrará su tradición de cumplir con todos sus compromisos,
37
Escude-Cisneros (2000: capítulo 69: las relaciones con Estados Unidos”: 2).
Ver copia de la “carta de intención de fecha 9-6-1984” en
http://www.laeditorialvirtual.com.ar/Pages/Ballesteros_JuicioSobreDeudaExterna/Ballesteros_001.htm,
consultada el 01-09-10.
38
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
44
respetando uno de los legados más preciados de su historia; no se trata de no pagar, sino
de hacerlo en las condiciones más adecuadas para el cumplimiento de los objetivos, en un
marco de ordenamiento de la economía, crecimiento y paz social. La República Argentina
presenta este documento donde detalla distintos elementos de su política monetaria y fiscal,
pero que se debe entender que ello no significa adoptar compromisos que condicionen su
soberanía en el manejo de sus problemas internos…” (el resaltado es nuestro)
Los párrafos citados condensan, de manera particularmente clara, los elementos claves de
la posición del gobierno en la cuestión de la deuda. En un principio el ministro describe la
situación heredada del gobierno de facto advirtiendo que las reformas neoliberales por éste
implementadas no sólo no cumplieron con su objetivo primario (contener la inflación) sino
que provocaron “un grave deterioro económico”. Específicamente, en lo que al
endeudamiento se refiere, advierte que la deuda fue contraída a través de una “política
económica arbitraria y autoritaria” y “sin beneficio alguno para el pueblo argentino, el gran
ausente en todo este proceso”. Ausente tanto por la ilegalidad originaria del gobierno de
facto como porque las divisas que ingresaron al país no se tradujeron en ganancias, más
que para unos pocos. Corresponsabiliza, asimismo, a los agentes externos al señalar que
los “acreedores tuvieron activa participación” en este proceso; el FMI queda incluído dentro
de este colectivo en cuanto, como se sabe, era acreedor de nuestro país.
La Argentina, expresa, tiene la voluntad de honrar los compromisos adquiridos siempre y
cuando dicha actitud sea compatible con los objetivos de “crecimiento y paz social”. Sobre
este punto vuelve una y otra vez durante la Carta solicitando “el establecimiento de períodos
de carencia, de gracia y de amortización compatibles con la necesidades de crecimiento de
la economía y las posibilidades de real cumplimiento de los cronogramas de pagos. Se
proponen luego los ajustes y reordenamiento en el sector público y en lo relacionado con la
seguridad social…”39 En esta última cita se produce una inversión de los presupuestos de la
estrategia caso por caso. Desde esta lógica primero va el crecimiento y luego los ajustes al
sector público. El camino contrario se entiende imposible desde el momento en que se
considera que los “ajustes” previenen “el crecimiento”. Finalmente, Grinspun termina
manifestando su intención de resguardar la soberanía del Estado en el “manejo de sus
problemas internos” y su voluntad de oponerse a los “compromisos que la condicionen”.
Algo lógico si se tiene en cuenta que se enfrentaba a una situación totalmente novedosa.
39
Ver copia de la “carta de intención de fecha 9-6-1984” en
http://www.laeditorialvirtual.com.ar/Pages/Ballesteros_JuicioSobreDeudaExterna/Ballesteros_001.htm,
consultada el 01-09-10.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
45
Nunca antes un banco había interferido en las política interna de los Estados como ahora lo
estaba haciendo el FMI.
La actitud del ministro exasperó a los miembros de esta institución (BOUGHTON, 2001:391),
relata el acontecimiento señalando que las autoridades argentinas habían incurrido en una
“inusual artimaña al hacerla pública (se refiere a la Carta) y someterla a consideración de
todo el gabinete, antes de haberla siquiera sometido a consideración del staff del Fondo…”
Al día siguiente, comenta el autor, el embajador argentino en los EEUU, Lucio García del
Solar, llamó al director gerente para explicarle que esta actitud obedecía a las presiones que
el gobierno estaba recibiendo en el ámbito interno. La ex presidenta “Isabelita” había
regresado del exilio y el peronismo había movilizado dos millones de trabajadores en una
huelga general presionando al presidente para endurecer su posición en relación al Fondo.
El 15 de junio, EEUU retiraba el ofrecimiento de un nuevo préstamo de 300 millones de
dólares y 3 días después el Comité Asesor, en representación de 320 acreedores bancarios,
decidía postergar toda decisión sobre futuros créditos a la Argentina40. El ministro viajó una
vez más a Washington con la esperanza de que el borrador fuese aprobado aunque, como
era de esperarse, “Larosiére y Rodhes no encontraron suficiente compromiso en las
proposiciones de Grinspun… (BOUGHTON, 2001:392).
Por entonces, Latinoamérica se jugaba su carta de resistencia más importante. Los días 21
y 22 de junio de 1984 los representantes de 11 países de la región se reunieron en la ciudad
colombiana de Cartagena. Al momento de abordar el avión, Grinspun le dijo a la prensa que
en el encuentro se intentaría “modificar el marco financiero internacional”. La prensa
internacional, por su parte, sostenía que la actitud de los gobiernos latinoamericanos
provocaría el “quiebre del sistema financiero internacional”41. Dos imágenes contrapuestas
de un mismo acontecimiento social que reflejan las discrepancias de las partes en conflicto.
El encuentro en Cartagena, explica VAUDAGNA (2005:3), se realizó “en un contexto en el
que la mayoría de los países latinoamericanos, con excepción de Argentina y Bolivia,
juzgaban su propio caso como especial, por lo que cada país pensaba recibir condiciones
preferenciales (…) Además, desde los acreedores y el tesoro de los EEUU, se intentaba
generar divergencias entre las posiciones existentes”.
Es así, continúa a renglón seguido el autor citado, que fracasó la propuesta de Bolivia de
crear una comisión negociadora de la deuda y la de Argentina de refundir la deuda a través
40
41
Escude-Cisneros (2000: capítulo 69: las relaciones con Estados Unidos”: 3).
Ver Vaudagna (2005:3).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
46
de un bono. Al contrario, para no alimentar sospechas, “el comunicado final del Consenso
de Cartagena subrayó la voluntad de los signatarios de honrar sus deudas y continuar con
los esfuerzos de ajuste, así como también de mantener el marco del caso por caso…” En
esta resolución, sin dudas, influyó la posición de México que había sido tentado por el Fondo
con un acuerdo “plurianual” que suponía un financiamiento asegurado hasta 1990 y la de
Brasil, que por entonces se debatía en la posibilidad de cerrar su propio compromiso.
Desde ahí en adelante prosiguieron las negaciones entre las autoridades nacionales y los
representantes del FMI, aunque uno a uno los distintos esfuerzos por llegar a un Acuerdo
fallaron. Mientras tanto los acreedores externos se negaron a reprogramar los vencimientos
de sus acreencias. El quiebre se produjo en el marco de la segunda reunión del grupo
Cartagena realizada en la ciudad de Mar del Plata en el mes de septiembre. El gobierno
argentino, como anfitrión, dice VAUDAGNA (2005:3) intentó “nuevamente aunar esfuerzos
para una estrategia de confrontación. Sin embargo, el resto de los países deudores estaban
atentos a las condiciones financieras de sus propias negociaciones, ya que se había
observado un fuerte deterioro de las mismas. En el comunicado final de la segunda reunión
no se expresan nuevas iniciativas, sino que se afirman las anteriores, sobre todo en el
llamado al diálogo político de los gobiernos de los países acreedores…”
Grinspun decidió viajar por enésima vez a Washington. “Esta vez los esfuerzos fueron
exitosos: el Fondo aceptó que se continuase con la indexación salarial, en compensación
por un ajuste adicional en el presupuesto y en la política monetaria destinada a reducir el
déficit fiscal desde el 11½% al 5½% en 1985 y un compromiso por ajustar la tasa de cambio
para lograr una sustancial depreciación de los términos reales para final de año…”
(BOUGHTON, 2001:393)-. La Carta de Intención fue firmada el 25 de septiembre.
El financiamiento del programa fue calculado por los miembros del staff del Fondo en
aproximadamente 8 mil millones de dólares para 1985: 3,1 mil millones se necesitarían para
financiar el déficit de la balanza de pagos, otros 3,2 mil millones para limpiar las moratorias
con los bancos comerciales y oficiales, 1 mil millones para repagar las operaciones Swann y
los créditos puente y, finalmente, 0,5 mil millones para reconstituir las reservas
internacionales del BCRA 42 . Es decir, de los casi 8 mil millones acordados,
aproximadamente 7,5 mil millones irían a parar a los acreedores externos y 0,5 mil millones
a las reservas internacionales; ninguno a la producción ni al trabajo. Se observa así un flujo
circular de capitales que va desde los principales centros financieros del mundo desarrollado
42
Boughton (2001:394).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
47
hacia los Estados deudores y, desde allí, de nuevo a esos mismos centros financieros.
Entremedio, la deuda externa aumenta considerablemente. De postre, el Estado deudor es
obligado a abrir su economía a los capitales foráneos que, bajo las nuevas condiciones
establecidas por los programas, serán los encargados de producir el crecimiento económico.
Para fines de diciembre ya se había reunido el 91% del “paquete financiero 1984-1985” y el
día 28 el Acuerdo fue aprobado por el Consejo Ejecutivo del FMI. No obstante ello, un nuevo
aumento de la tasa de inflación quebró el equilibrio alcanzado. Los conflictos gremiales se
intensificaron, y empresarios y acreedores hicieron saber de su indisposición de otorgar
créditos o realizar nuevas inversiones en la Argentina43. Cuando la misión del FMI liderada
por Ferrán arribó a Bs As a principios de 1985 comenzaron a producirse una serie de
tensiones con las autoridades económicas nacionales. El día 18 de febrero, Ferrán informó
que no podía anticipar que el FMI fuese a seguir apoyando el programa. Grinspun se
presentó frente Alfonsín y le reportó lo sucedido. El primer mandatario decidió tomar cartas
en el asunto y reemplazarlo por el secretario de planeamiento de la nación, Vital Sourrouille.
Era la primera vez en la historia argentina que un ministro de economía abandonaba su
cargo frente a la presión de una institución financiera internacional.
Las relaciones con el FMI no se recompusieron de inmediato. Ni bien asumió, Sourrouille
solicitó que el staff de la institución regresara a Bs As. Para el 8 de marzo, Ferrán se
encontraba de nuevo en la Argentina. Sin embargo las diferencias continuaron y las
negociaciones fueron automáticamente suspendidas. Alfonsin resolvió intervenir
personalmente. El día 20 de ese mismo mes, se reunió con Larosiére en Washington.
“Alfonsín necesitaba desesperadamente el soporte del Fondo para sus políticas; sin éste, él
había aprendido, ni el gobierno de los Estados Unidos ni los bancos comerciales le iban a
proveer financiamiento…” BOUGHTON, 2001:398)- (el resaltado es nuestro)
El último dejo de resistencia del gobierno nacional había sido quebrado. Esta reunión
simboliza el momento histórico preciso en el cual el oficialismo reemplazó su estrategia
confrontacionista por una de carácter cooperativo: “Alfonsín necesitaba desesperadamente
el soporte del Fondo” para realizar su programa político; sin éste, “él había aprendido”, le
sería imposible acceder al mercado financiero internacional, negociar la deuda externa,
detener la fuga de capitales y, consecuentemente, reactivar la economía del país. El 12 de
43
Ver Novaro (2006:170).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
48
abril Alfonsín declaró el inicio de una etapa de “economía de guerra” -sin guerrapreanunciando el ajuste estructural que se vendría.
4. REFLEXIONES FINALES
Esta breve reconstrucción permite observar, en una dinámica histórica concreta, las
relaciones entre un gobierno deudor y el FMI al producirse la crisis de la deuda externa. A
diferencia de lo acaecido en otros procesos de negociación, en el caso argentino, éstas
adquirieron un carácter eminentemente confrontativo. Procesos semejantes, y sin perjuicio
de sus respectivas particularidades, se vivieron en la mayoría de los Estados de la región.
La estrategia caso por caso se convertía, así, en un mecanismo de disciplinamiento de los
gobiernos latinoamericanos y en la principal puerta de entrada del neoliberalismo a nuestros
territorios.
El Plan Austral de 1985 fue el primer programa económico de un régimen democrático
diseñado de manera conjunta entre representantes económicos argentinos y extranjeros; el
primer programa planeado de manera alternada entre Bs. As. y Washington. Explica,
(NOVARO, 2006:173) que una vez hecho público, buena parte de la prensa lo repudió e
incitó al gobierno a retornar a la senda del crecimiento. El grueso de los representantes de la
oposición, en particular aquellos ligados al partido peronista, se opusieron a la iniciativa. Los
sindicatos leyeron estas medidas en términos de una rendición del gobierno frente a los
intereses de los bancos acreedores y el FMI, e iniciaron un plan de lucha que culminó con
miles de huelgas sectoriales y 13 paros generales.
El frágil equilibrio político alcanzado a principios de la década se quebró y en el marco de
una nueva serie de levantamientos armados, el gobierno decidió poner “punto final” a los
juicios a los represores (vgr. norma Nº 23.492) y sancionar la ley Nº 23.251 de “obediencia
debida”. Frente a la pérdida en 1987 de casi todas las gobernaciones, del ministerio del
trabajo y de la mayoría legislativa a manos del peronismo, Alfonsín quedó profundamente
debilitado. Su objetivo último fue el de culminar su mandato. No lo consiguió. En efecto, él
abandonó su cargo de manera anticipada en junio de 1989 y como consecuencia de una
crisis hiperinflacionaria.
Los efectos de la “década perdida latinoamericana” en Argentina fueron desgarradores.
Entre 1980 y 1989 la deuda externa creció desde los 36.138 a 63.300 millones de dólares y
el producto bruto industrial cayó en un 20%. En 1989 el PBI era un 5,3% inferior al de 1980 y
los salarios reales industriales un 13,8% menores; el desempleo y el subempleo, por el
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
49
contrario, un 5,4% y un 4,8% superiores. En 1989 en el Gran Bs As el 47,3% de la población
estaba por debajo de línea de la pobreza y el 16,5% por debajo de la indigencia (en 1980
estas cifras eran del 8,1% y del 2%)44. En contraposición, y de acuerdo a (BASUALDO,
2000:22), el Estado pagó entre 1981 y 1989 aproximadamente 30 mil millones de dólares en
concepto de intereses de la deuda externa y transfirió a la burguesía asentada en el territorio
nacional “una masa de recursos que equivalía prácticamente al PBI generado por la
economía en todo un año…”
De conformidad al FMI el problema de la Argentina no se encontraba en el peso de su
deuda ni en los ajustes estructurales que estrangulaban el modelo sustitutivo de
importaciones sino en la existencia de un Estado excesivamente amplio y costoso, y de una
cultura populista muy arraigada en los gobernantes que les impedía cumplir a rajatabla con
los Acuerdos suscriptos. No existía, en efecto, un exceso de neoliberalismo sino, por el
contrario, una carencia de éste. Se trata de un razonamiento que se reproduciría una y otra
vez durante las décadas subsiguientes y que fue adoptado por el grueso de las elites
dirigentes latinoamericanas a principios de los 90.
5. REFERENCIAS
BASUALDO, E. M., Acerca de la Naturaleza de la Deuda Externa,
www.flacso.org.ar/investigacion_ayp_contenido.php?ID, consultada el 01-09-10. 2000.
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International Monetary Fund, http://www.imf.org/external/pubs/ft/history/2001/index.htm,
consultada el 01-09-10.
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República Argentina, “Relaciones Económicas Externas de la Argentina, 1943-1989”, Bs As,
http://www.argentina-rree.com/historia_indice00.htm, consultada el 12-12-09. 2000.
HARVEY, D. Breve Historia del Neoliberalismo, Ed. Akal, Madrid. 2007
KANENGUISER, M. La Maldita Herencia, Ed. Sudamericana, Bs. As. 2003.
MARONGIU, F. “La Reforma del Sistema Financiero Argentino de 1977 como Factor
Fundamental para la Instauración del Modelo Económico Neoliberal en la Argentina”, Primer
Congreso Latinoamericano de Historia Económica, Simposio Nº 3, 3 al 7 de diciembre,
Montevideo. 2007.
NOVARO, M. Historia de la Argentina Contemporánea: de Perón a Kirchner, ed. Edhasa, Bs.
As. 2006.
44
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http://www.fceco.uner.edu.ar/cpn/catedras/histssxx/indiceimages.htm, consultada el 12-12-09.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
50
OLMOS, A. Todo lo que usted Quiso Saber sobre la Deuda Externa y Siempre se lo
Ocultaron, ¿Quiénes y Cómo la Contrajeron?, Peña Lillo-Ediciones Continente, Sexta
edición, Buenos Aires. 2006
RAPOPORT, M. Las políticas económicas de la Argentina. Una Breve Historia, ed. Booket,
Bs As. 2010.
VAUDAGNA, Luciano, “El consenso de Cartagena”,
http://www.reflexionespys.org.ar/index.php?option=com_content&view=article&id=79:elconsenso-de-cartagena&catid=24:septiembre-2005&Itemid=51, consultada el 10-11-10.
2005.
ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS E DINÂMICOS DA CORRUPÇÃO:
Um exercício conceitual
Clóvis Alberto Vieira de Melo45
RESUMO
Conceituar corrupção constitui um dos maiores desafios para aqueles que têm esse tema
como objeto de pesquisa. Sugere-se uma miríade de conceitos, que em grande parte, são
marcadamente imprecisos, tanto no que se refere a apontar os elementos e a dinâmica em
torno do fenômeno, como também seu espaço de manifestação. Esse quadro impõe assim
uma importante barreira para investigações empíricas sobre o tema, o que dificulta
fortemente sua mensuração, bem como estratégias para explicar seus condicionantes e
suas consequências. Aliado a dificuldade conceitual, os estudos sobre corrupção tem seu
nível de dificuldade incrementado por se configurar um crime que, via de regra, é
considerado inobservável. Diferentemente de outros crimes onde há sempre alguém
disposto a denunciar corruptos e corruptores se empenham em apagar vestígios de suas
práticas. A despeito dos limites, fazem-se necessários reflexões teóricas e avanços
metodológicos que busquem superar as barreiras que envolvem o estudo sobre o tema.
Este trabalho tem como objetivo contribuir com o primeiro aspecto, em que se apresenta um
conceito de corrupção que pretende ser operacional empiricamente. Expõe-se um conceito
que se distingue crimes assemelhados e que comumente são utilizados como sinônimos de
corrupção. Com isto pretende-se, portanto, diminuir os problemas referentes à imprecisão
conceitual.
Palavras-chave: Corrupção. Tríade da Corrupção. Interação Voluntária.
45
Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Universidade Federal de
Campina Grande. Email: [email protected].
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
52
CONSTITUENT ELEMENTS AND DYNAMICS OF CORRUPTION:
A conceptual exercise
ABSTRACT
Conceptualizing corruption is one of the main challenges for those who do research on this
theme. A myriad of concepts is suggested, but in great part such concepts are markedly
inaccurate, in both pointing out the elements and the dynamics surrounding the phenomenon
as well as its space of manifestation. This framework imposes an important barrier to
empirical investigations on the theme, complicating its measurement and strategies to
explain their conditions and consequences. Together with conceptual difficulties, studies
about corruption have their level of difficulty intensified, becoming a crime which, as a rule, is
considered unobservable. Differently from other crimes where there’s always someone
willing to denounce, corrupts and corruptors strive to erase traces of their practices. Despite
limitations, it is necessary to theoretically reflect on and methodological advances that seek
to overcome barriers that involve the study over the theme. This paper aims to contribute to
the first aspect, in which a concept of corruption that intends to be empirically operational is
presented. A concept which differs similar crimes and that commonly is used as synonyms of
corruption are exposed. It is intended, therefore, to reduce problems related to conceptual
imprecision.
Keywords: Corruption. Triad of Corruption. Voluntary Interaction.
1. INTRODUÇÃO
A possibilidade de degeneração das instituições públicas provocada pela manifestação da
corrupção e suas consequências negativas colocam o enfrentamento deste crime no centro
das preocupações de sociedades e governos. No caso brasileiro, a ocorrência de casos de
corrupção e sua divulgação pelos meios de comunicação têm sido bastante intensas,
gerando, cada vez mais, debates, questionamentos e desconfiança sobre os agentes
públicos. São políticos, policiais, fiscais, juízes, funcionários dos mais baixos até os mais
altos escalões da administração pública, dentre outros, envolvidos em casos ilícitos, para os
quais sua posição na administração pública fora fundamental. Denúncias de compra de
votos de parlamentares, suborno de funcionários e superfaturamento em licitações públicas
são alguns exemplos de corrupção, que têm contribuído para o aumento do descrédito do
Estado perante a opinião pública, com possibilidade de gerar ilegitimidade.
Nas últimas décadas, houve, no Brasil, escândalos e denúncias de irregularidades graves
em praticamente todas as esferas e instâncias do Estado. Em diversos setores do Executivo
53
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
Federal, do Congresso Nacional e do Judiciário, foram constatadas irregularidades. Em
alguns governos estaduais e municipais, bem como em Assembléias Legislativas e
Câmaras, casos de corrupção foram encontrados e tornados públicos. A partir de pesquisa
empírica, numa amostra de 556 municípios distribuídos por todos os estados da federação
que utilizavam verbas do governo federal, Melo (2010) constatou que em 64% ocorreram
casos de corrupção. Analisando os dados do TCU de 1998 a 2011, verifica-se que
irregularidades graves, em sua maioria corrupção, são demasiadamente incidentes e
reincidentes46 (Tabela 1).
Tabela 1 – Número de Obras do Governo Federal Fiscalizadas, com Indícios de
Irregularidades e com Indicativo de Paralisação
ANO
Nº DE OBRAS
FISCALIZADAS
Número de
Irregularidades
graves
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
TOTAIS
110
135
197
304
435
381
414
415
259
231
153
219
231
230
3714
35
44
66
121
166
169
136
168
190
178
60
149
216
190
1888
%
Irregularidades
graves com
indicativo de
Paralisação
%
31,8
32,6
33,5
39,8
38,2
44,4
32,9
40,5
73,4
77,1
39,2
68,0
93,5
82,6
50,8
35
44
66
121
166
88
83
81
91
77
48
63
40
26
1029
31,8
32,6
33,5
39,8
38,2
23,1
20,0
19,5
35,1
33,3
31,4
28,8
17,3
11,3
27,7
Fonte: Brasil, 2011.
As constatações de corrupção acerca do Brasil, não são apenas advindas de sistemas de
controles que tem a função de fiscalizar e detectar tal fenômeno, a exemplos das contes de
46
Obras com irregularidades graves são aquelas em que se encontraram atos indicativos de prejuízos ao erário
público, recomendando-se, por isso mesmo, a paralisação física, financeira e orçamentária do seu contrato,
convênio ou instrumento congênere (BRASIL, 2008).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
54
contas ou controladorias, mas é possível acompanhar o quadro de corrupção no país a
partir de avaliações de instituições externas, a exemplo da Transparência Internacional, a
qual anualmente divulga surveys com a percepção da corrupção que executivos de
multinacionais possuem acercadas dos países em que trabalham (BERLIM, 2011). O Índice
de Percepção da Corrupção (IPC) varia de 0 a 10, zero sendo o pior dos casos e com nota
dez estariam os países que livres de corrupção. No Gráfico 1 é possível acompanhar
particularmente a evolução do Brasil ao longo dos últimos dezesseis anos. Constata-se que
o país possui notas muito baixas. Apenas uma única vez ultrapassou a barreira dos quatro
pontos, mas mesmo assim situando-se bastante distante da nota máxima.
Gráfico 1 - Índice de Percepção da Corrupção – Evolução do Brasil entre 1995 e 2010
Fonte: Berlim, 2011.
É urgente, portanto, compreender este fenômeno, sobretudo, para se buscar mecanismos
de combate. Em geral, os estudos sobre corrupção pautam-se em três aspectos básicos. O
primeiro diz respeito à lógica endógena do fenômeno, procurando identificar sua dinâmica e
seus mecanismos, detectando, assim, os elementos que o compõem e o espaço de sua
manifestação. O segundo grupo de estudos depara-se com as causas da corrupção,
buscando capturar variáveis que contribuam para a ocorrência do fenômeno. No terceiro
grupo de estudos, o objeto de análise desloca-se para os efeitos gerados pela corrupção,
identificando, em áreas distintas, danos ou benefícios, que essa prática possa produzir. Este
artículo busca contribuir com uma reflexão teórica no primeiro grupo de estudos, que apesar
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
55
de ter sido o mais explorado pela literatura, ainda possui lacunas importantes que merecem
ser trabalhadas.
Quando se deseja enfrentar um fenômeno que gera danos a sociedade, como é o caso da
corrupção, é necessário conhecê-lo em detalhe, para assim elaborar estratégias de combate.
É fato, que conceituação da corrupção ainda é muito confusa por parte da literatura, como
veremos adiante. Ademais há uma tendência forte em associar qualquer crime que gera
dano ao erário público à corrupção, desconsiderando que a corrupção possui modus
operandis próprio, e se o desejo é combatê-la, faz necessário conhecê-la. Para tanto neste
trabalho busca-se precisar um conceito minimamente que seja operacional, sobretudo
diferenciando de crimes assemelhados.
2. ALGUMAS FRAGILIDADES TEÓRICAS DO CONCEITO DE CORRUPÇÃO
RECORRENTES NA LITERATURA
Muitas são as ações assemelhadas à corrupção. Essa característica faz da sua
conceituação uma tarefa por demais complexa. Diversos crimes, no espaço público, têm por
objetivo capturar recursos do erário. Eles se podem diferenciar quanto ao modus operandi,
mas se assemelham quanto aos efeitos, pois inviabilizam a ação estatal, minando seus
instrumentos de ação, enquanto desvio quer de recursos financeiros, quer de recursos
materiais.
Um administrador público, que comete o crime de peculato, apoderando-se de um
equipamento público para uso próprio ou para transformá-lo em recurso, produz o mesmo
efeito daquele que, em parceria com um agente externo, e a partir do recebimento de
suborno, o favorece numa licitação pública ou o livra do pagamento de tributos. Ambas as
ações diminuem a possibilidade de o Estado atender às demandas que lhe são dirigidas.
Sob esse aspecto, pode-se dizer que, no limite, o que interessa é o resultado da ação e não
sua forma. No entanto, parâmetros mínimos para compreensão do fenômeno da corrupção
são de suma importância.
É comum o uso do termo corrupção para designar toda e qualquer ação de um agente
público, que captura recursos. Não se distingue crimes de concussão, peculato, tráfico de
influência e improbidade administrativa, dentre outros. Sendo assim bastaria apenas que o
crime fosse cometido por um funcionário público que se teria então manifestado o crime de
corrupção.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
56
Camerer (2001) sugere que, até mesmo entre especialistas no tema corrupção, há uma
grande variedade de definições do termo. Em survey aplicado na África do Sul, numa
amostra de 198 pesquisados, figuraram respostas que relacionavam corrupção a diversos
tipos de comportamento ou situação, organizados em categorias, como abuso de autoridade
(31,3%), enriquecimento ilícito (11,6%), problemas éticos (11,6%), pagamento de suborno
(10,6%), crimes (9,1%) − tais como o do colarinho branco ou extorsão −, má administração
(5,1%) e tráfico de influência (8,6%). Houveram respostas completamente desvinculadas do
objetivo do survey, em que se apontava a corrupção apenas como algo prejudicial à
sociedade (2,5%), sem se deter em definir adequadamente o conceito. Na categoria “outros”
(9,6%), por exemplo, a pesquisa agrupou as respostas que não se enquadravam em
nenhuma das categorias anteriores e, por vezes, eram completamente disparatadas, tais
como: corrupção é um sistema econômico que exclui pobres. Respostas como esta não
acrescentam nada à compreensão do termo. Isso mostra quão desafiador é definir
corrupção.
A Agency for International Development (USAID) descreve diferentes formas de corrupção,
traçando uma vinculação com peculato, nepotismo, suborno, extorsão, tráfico de influência e
fraude (UNITED STATES, 2005). Mais uma vez a imprecisão conceitual se manifesta,
mesmo numa agência pública que combate tal prática.
A diversidade de significado, no senso comum ou mesmo entre especialistas e órgãos
governamentais, mostra assim a dificuldade de conceituar-se minimamente a corrupção. Por
si só, tal situação já justifica uma pesquisa sobre o tema. Conhecer quais as estratégias e as
dinâmicas de agentes que desviam recursos públicos torna-se condição sine qua non para
mensurar-se tal prática, verificar seus impactos ou mesmo coibi-la (KLITGAARD, 1994, p.
11).
Outra cautela que deve ser tomada, ao conceituar-se corrupção, sobretudo em estudos de
política comparada, diz respeito ao fato de tratar-se de um fenômeno intertemporal e
interespacial, assumindo diferentes significados, ao longo do tempo, bem como distintas
facetas em lugares diferentes.
A despeito da dificuldade conceitual, para Elliott (2002, p. 258), a corrupção é um fenômeno
que a maioria das pessoas consegue identificar, ao vê-la. A imagem mais comum, que vem
à mente, quando se pensa em corrupção, é a reunião de duas ou mais pessoas negociando
algum tipo de recurso público ou privado em troca de propina. Um exemplo comum desse
tipo de ação, presenciado por muitos, em diferentes lugares, envolve a fiscalização do
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
57
trânsito, nas cidades ou rodovias. Corriqueiramente, motoristas cometem infrações
passíveis de punição e, no entanto, livram-se dela por subornar, com propinas, guardas de
trânsito. A negociação entre o agente público e o privado interrompe o percurso institucional
de um sistema de incentivos e restrições, que regula a convivência no trânsito, no qual o
motorista que comete o ilícito deve arcar com os custos de sua ação, pagando multas, que
seriam transformadas em recursos públicos, além de, dependendo do tipo de infração,
responder penalmente.
Ao delinear os micros fundamentos da corrupção, em geral, a literatura refere-se a três
elementos principais: agente público; desvio de normas e ganhos pessoais. Leff (2002, p.
307) argumenta que: “corruption is an extra-legal institution used by individuals or groups to
gain influence over the actions of the bureaucracy”. Para Nye (1967, p. 419), “corruption is
behavior which deviates from the normal duties of a public role because of private-regarding
(family, close private clique) pecuniary or status gains; or violates rules against the exercise
of certain types of private- regarding influence”. Friedrich (2002) relaciona corrupção a um
tipo de comportamento desviante das normas. O Banco Mundial conceitua corrupção como
sendo o abuso do poder público para benefícios privados (TANZI, 1998, p. 08).
Van Claveren (2002, p. 104) sugere que a corrupção se manifesta, quando há abuso de
autoridade do servidor público para obtenção de renda extra. Jonhston (2002), no mesmo
sentido, diz que corrupção é “o abuso de funções ou de recursos públicos, ou como o uso
de meios ilegítimos de influência por membros das esferas públicas e privadas”. Johnston
(2002) busca suporte em Scott (1969), que entende a corrupção como um processo de
influência política, distorcendo os processos de tomada de decisões, alterando custos e
benefícios do sistema. Além desses autores, há outros, na mesma linha, a exemplo de Silva
(2001, p. 23), O´Donnell (1998, p. 46), Huntington (2002, p. 253), Blackurn, Bose e Haque
(2005), Rose-Ackerman (1999, p. 09) e Myint (2000). Para Jain (2001, p. 03), é consenso
que a corrupção é um tipo de abuso do poder público para ganhos pessoais, no qual as
regras do jogo são violadas.
A corrupção seria, portanto, toda e qualquer ação em que o agente público quebra regras
em busca de beneficio privado. De antemão, esse conceito descarta a possibilidade de o
fenômeno ocorrer em ambiente eminentemente privado. Klitgaard (1994. p. 11) deixa aberto
esse espaço de ocorrência do fenômeno, ressaltando que a corrupção ocorre quando
alguém, ilicitamente, se beneficia, deixando em segundo plano os ideais a que deveria servir.
Infere-se, portanto, que, para esse autor, o fenômeno pode ocorrer em ambos os espaços.
Elliott (2002), mais contundente, afirma que corrupção é um fenômeno que pode ocorrer
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
58
tanto num espaço, como no outro, o que é partilhado por Rose-Ackerman (2002, p. 60) e
O’Higgins (2006). Tanzi (1998) faz a mesma observação, em relação ao conceito do Banco
Mundial.
Sob esse aspecto, até este ponto, poder-se-ia sintetizar o conceito de corrupção como a
ação ilícita de agentes públicos ou privados, operando em seus respectivos espaços ou
contiguamente, na busca de benefícios pessoais. Tal síntese, porém, guarda em si um
complicador, pois todos os crimes envolvendo agentes públicos e privados em busca de
autobeneficiamento seria corrupção. Assim, alguém que se apodera individualmente de um
equipamento de sua repartição, a merendeira de uma escola pública, que, ao final do dia de
trabalho, leva alguns produtos para casa e o guarda de trânsito, que achaca um motorista,
estaria cometendo o crime de corrupção.
Sem dúvida, nos exemplos acima os microelementos da corrupção apontados pela literatura
estariam presentes. Contudo, esses elementos não são suficientes para a captura, com
maior precisão, do fenômeno. Deve-se inserir nessa conceituação o elemento acordo
voluntário. Acordo pressupõe a existência de mais de um agente da ação, o que não seria o
caso do funcionário público nem da merendeira citados acima. No caso do achaque do
guarda, o cidadão achacado poderia estar sendo induzido à ação de maneira involuntária,
ou seja, não estariam havendo interesse livre de ambas as partes, dado que só uma estaria
forçando a participação da outra 47 . No imaginário, o que lembra, mais classicamente, a
corrupção é o conchavo e não a obrigatoriedade imposta por um dos lados. Quando ocorre
um vício em uma licitação pública, por exemplo, o que está por trás é um acordo voluntário,
iniciado por qualquer um dos lados, de modo que um dos agentes, visando beneficiar-se,
favorece uma compra superfaturada, desconsiderando os interesses de sua instituição e
beneficiando um comparsa externo.
3. DELINEANDO O CONCEITO DE CORRUPÇÃO E SEUS ELEMENTOS
CONSTITUTIVOS
Corrupção neste trabalho é entendida coma a ação de um agente, público ou privado, que,
em parceria com outros, violam normas e captura recursos para si ou para seu grupo ou
instituição de que pelo menos um faz parte48. Coexistem nesse conceito três elementos
47
O código penal brasileiro no Art. 316 tipifica tal ação como crime de concussão (BRASIL, 1940).
Tanzi (1998) alerta que os ganhos obtidos na ação corrupta nem sempre são exclusivos do agente diretamente
envolvido, podendo haver o beneficiamento do grupo de que ele faz parte, como partido político ou família.
Podem-se acrescentar ainda grupos de partidos políticos que formam coalizões, corporações privadas, cartéis,
dentre outros.
48
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
59
diferentes: a) agentes; interação voluntária e recursos. Discutir minuciosamente estes
elementos objetiva aclarar o conceito proposto. O propósito é escapar do risco de confundilo com fenômenos semelhantes e evitar possíveis erros analíticos.
3.1. Agentes
Com o termo agente pretendem-se designar indivíduos, atores, personagens ou grupos,
que agem num certo espaço e com determinados fins. Ele reúne, portanto, diversos outros
termos, visando à uniformização metodológica, de modo a evitar-se o uso disperso de
palavras semelhantes. A figura do agente compreende dois grupos: o do agente público e
o do agente privado (ambos podendo ser indivíduo e ou coletivo), diferenciando-se apenas
pela esfera em que estejam inseridos. O agente público é a pessoa legalmente investida de
cargo público, quer seja ela nomeada, eleita ou designada. O agente privado atua
individualmente ou em grupo. Qualquer sujeito desvinculado da administração pública pode
ser considerado agente privado, quer seja pessoa física ou jurídica, com fins lucrativos ou
não.
Comumente os agentes privados relacionam-se com a esfera pública, apenas através das
instituições. O fiscal público, que visita um estabelecimento privado, ou um guarda de
trânsito, que aborda um motorista, está agindo para atingir os objetivos das instituições que
representam. Se agirem de outra maneira, estarão quebrando a lógica institucional.
Quando a relação se altera, fazendo com que o papel das instituições públicas seja
usurpado pelos agentes públicos individual, ocorre um rompimento do desenho institucional,
abrindo espaço para ações corruptas. Um agente público passa a relacionar-se diretamente
com o agente privado, com base em interesses próprios e não mais coletivos. A mudança
dessa relação é crucial para o tipo de fenômeno ora analisado e remete a algumas questões:
por que agentes públicos deixam de agir em nome de suas instituições e agem em benefício
próprio?49. Para Giannetti (1993, p. 129), “agir ou deixar de agir são eventos que de alguma
49
A partir deste ponto, utilizar-se-á o termo agente público para designar o agente público individual, visto que,
em casos de corrupção, não é recorrente a atuação de instituições públicas agindo com esse objetivo, apesar de,
ao senso comum, ser corriqueiro ouvir-se que “a Polícia é corrupta”, “a SUDAM é corrupta’, embora, como se viu,
se trate de uma característica da natureza de alguns dos seus agentes individuais e não da instituição de que
façam parte. É possível, no entanto, imaginar que uma empresa pública, em vias de fechar um contrato com uma
empresa privada, procure o gerente da referida empresa e, em nome da instituição, lhe ofereça suborno por
alguma vantagem no contrato em negociação. Nesse caso, o gerente, pela posição que ocupa e usando algum
subterfúgio, interferiria de forma a baixar o preço do projeto/contrato, beneficiando assim a empresa pública. Esta
situação, em tese, é possível, mas, provavelmente, muito difícil de ocorrer. Daí porque não se trabalhará com
essa possibilidade.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
60
forma parte do indivíduo e que estão, portanto, abertos a interferências de seus estados
mentais – suas crenças, preferências e opiniões”. Sendo assim, cabe aos sistemas de
controle transformar a ação corrupta numa opção desvantajosa para o agente, induzindo-o à
ação coletiva.
Essa explanação teve por objetivo isolar o personagem fundamental para o entendimento
dos processos de corrupção pública: o agente público. Este recebe especial atenção, pelo
fato de, sem dúvida nenhuma, ser o principal responsável pelos casos de corrupção pública,
quer dizer: sem ele, é impossível ocorrer o fenômeno. Desse modo, qualquer ação que vise
diminuir os índices de corrupção passa, necessariamente, pela alteração do conjunto de
incentivos que motivam esse agente. Almond e Powell Júnior (1972, p. 99) argumentam que
esses agentes são deveras importantes, dado que tendem a controlar os outputs, pela
influência que possuem em decisões que envolvem o Estado.
3.2. Espaço de Interação
A corrupção não ocorre no vácuo, mas, sim, em espaços bastante definidos: o público, o
privado, ou o público-privado 50 . A corrupção, no espaço público, dá-se quando agentes
públicos, em parceria com outros agentes públicos, buscam, quebrando a lógica institucional
a que pertencem capturar recursos do erário, não sofrendo, para isso, interferências
externas. Da mesma forma, a corrupção, no espaço privado dá-se quando seus agentes se
unem com o objetivo de desviar recursos não-públicos, nesse caso, mas de empresas e/ou
entidades privadas. O terceiro espaço funciona como intersecção dos dois outros, na
medida em que a ação ilícita ocorre entre agentes dos dois espaços, com o objetivo de
privatizar recursos eminentemente públicos.
3.3. Tríade da Corrupção e Interação Voluntária entre Agentes
Para a manifestação da corrupção, independentemente do espaço em que se dê, é
necessária a presença de três elementos básicos: um agente corrupto, um corruptor e
recursos. Na ausência de um desses elementos, mesmo numa ação criminosa,
descaracteriza-se o ato de corrupção. Ocorre, nesse caso, outro tipo de crime, que pode ser
50
O código penal não contempla casos de corrupção exclusivamente no espaço privado. Além da corrupção
existente no espaço público ou no público-privado, o Código versa sobre corrupção, com uma conotação
diferente, em questões ligadas a corrupção de menores ou falsificações de produtos de consumo (BRASIL,
1940). Sabe-se, no entanto, que esse fenômeno ocorre, com grande semelhança, no setor privado (SOUZA,
1998, p. 1-4). Por outro lado, encontram-se na literatura, a exemplo de Rose-Ackerman (2002, p. 59), afirmações
categóricas de que a corrupção se circunscreve apenas na interface do espaço público e privado.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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encontrado na legislação vigente. A interação voluntária desses agentes, corrupto e
corruptor, buscando beneficiar-se de recursos não seus, mas sim de organizações públicas
ou privadas, configura a corrupção. A essa interação chamar-se-á aqui “tríade da
corrupção”, valendo acentuar que a iniciativa para a ação corrupta pode partir de qualquer
um dos agentes envolvidos, como bem acentuou Klitgaard (1994, p. 11).
3.4. Corrupto
O primeiro elemento é o corrupto: agente público ou privado que, ocupando um espaço em
uma dada organização, pública ou não, age em parceria com outro agente, visando gerar
benefícios mútuos, em detrimento dos recursos de sua organização. A característica
principal desse elemento é sua posição na organização em que pretende agir ilicitamente.
Com efeito, é essa posição que o privilegia na empreitada, quer esteja ele em organizações
públicas, quer em entidades privadas. A indisposição desse elemento para a consecução do
delito inviabiliza o ato de corrupção, nos termos aqui empregados. Já a legislação prevê o
ato de corrupção apenas como a tentativa de ação de um dos agentes.
3.5. Corruptor
O segundo elemento necessário para a ocorrência do ato de corrupção é o corruptor. Em
geral são agentes privados, mas não necessariamente é sempre assim. O corruptor é um
agente público ou privado, que, em parceria com outro, integrante de uma organização,
pública ou não, busca capturar recursos dela. Note-se que a parceria do corrupto pode se
dar na esfera pública, com o agente público, ou na esfera privada, com o agente privado.
Um agente público pode comportar-se também como corruptor, quando exerce influência
sobre outros agentes públicos, fazendo com que atuem como corruptos. Em resumo, as
figuras do corrupto e do corruptor estão presentes, na realidade, tanto na esfera pública,
quanto na esfera privada (BERLIN, 2009).
3.6. Recursos
O último elemento, talvez, a razão de tudo, é o recurso, que pode gerar benefícios para os
dois outros elementos. O recurso constitui um incentivo a ações de agentes corruptos e
corruptores pelos benefícios que lhes possa trazer. Na esfera privada, os recursos são
semelhantes aos da esfera pública, razão por que, daqui por diante, este trabalho analisará
apenas as ações corruptas que envolvam recursos públicos.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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A corrupção pública visa, ao fim, capturar recursos, ou seja, retirar das mãos do Estado
recursos eminentemente públicos e que já façam parte do patrimônio dele. Bem como os
incorporados por meio do sistema de receita, através de arrecadação fiscal, contribuições
sociais, proventos obtidos junto a empresas e/ou entidades, que lhe sejam incorporadas, e
operações financeiras, dentre outros. Na prática, a corrupção faz retornar à sociedade, de
forma desigual, e por vias ilegais, recursos que eram originalmente privados e se tornaram
públicos. Objetivavam produzir bens coletivos, mas sofreram um processo de
desvirtuamento, rompendo-se a lógica institucional, pela qual o Estado administra os
recursos públicos.
Recursos são todos os meios fisicamente manipuláveis: quantias, valores, produtos, bens
móveis ou imóveis e serviços 51 . Também devem ser considerados recursos os valores
previstos na receita, mas não arrecadados, devido à ação antecipada dos agentes corruptos.
A idéia principal da tríade da corrupção é que são indispensáveis os três elementos
discutidos – corrupto, corruptor (numa interação voluntária) e recursos - para ocorrerem,
efetivamente, atos de corrupção. Situações com a ausência de um dos três elementos
devem ser vistas como fenômenos de outra natureza. Fenômenos sociais, às vezes, são
parecidos, mas não iguais.
A tríade congrega, pois, os três elementos essenciais para o conceito de corrupção adotado
neste trabalho. O fenômeno se manifesta a partir da interação destes elementos. Interação
esta, que necessariamente deve ser de forma voluntária. De fato, há situações em que a
tríade está presente, mas não se configura uma ação corrupta, pelo fato de não existir a
interação voluntária dos seus agentes (corrupto e corruptor), conforme se verá adiante.
4. Corrupção e crimes assemelhados
Já se discutiu que a ação corrupta é praticada por agentes buscando capturar recursos para
si. No entanto, atuando com esse propósito, muitos estão praticando crimes distintos do de
corrupção, o que contribui para gerar conturbações conceituais em torno do tema. Não raro
vêem-se pessoas chamando este ou aquele político de corrupto, sem que ele tenha
praticando tal crime, conquanto haja cometido outro, como o de apropriação indébita ou
51
Lembrando que serviço público pode ter duas conotações: a primeira, no tocante à implementação de obras
(rodovias, escolas, hospitais e viadutos, dentre outras) e a segunda, no que se refere à prestação de serviço
(polícia, saúde, educação, segurança e outros).
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peculato, por exemplo. Basta o crime ocorrer na esfera pública, que se tende a correlacionálo à corrupção52. E por que isso ocorre? Eis a questão central deste tópico.
A diferença, em relação a crimes “assemelhados”, é, muitas vezes, bastante sutil. Além do
mais, em alguns casos, há elementos de um crime presentes em outro. Acresce que, com
frequência, a corrupção é obscurecida pelo crime a que ela deu suporte. O que se deve ter
em mente, para evitar possíveis equívocos, é a tríade da corrupção (que contém em si a
interação voluntária dos agentes envolvidos e os recursos). Identificados com clareza esses
elementos, deter-se-á mais precisamente a corrupção, diferenciando-a de outros tipos de
crime.
O aperfeiçoamento conceitual da corrupção vai além da mera tipificação criminal ou do
diletantismo jurídico, pois se conhecendo os elementos envolvidos, poder-se-á entender a
lógica do seu processo e, consequentemente, conceber estratégias que visem impedir a
interação ilegal desses elementos.
Buscando minimizar os referidos problemas, de forma a separar os diversos crimes contra o
patrimônio público e privado, e para um melhor detalhamento, este trabalho classifica os
ilícitos em dois grupos: crimes independentes e interdependentes. Além de permitir que
se verifiquem quais ações podem ser praticada unilateralmente pelos indivíduos, a divisão
proposta intenta isolar outro elemento fundamental para o conceito de corrupção: a ação
voluntária, a qual já ressaltada anteriormente. Para existir corrupção, nos termos
empregados aqui, os indivíduos envolvidos devem estar agindo por livre e espontânea
vontade, desprendidos de qualquer tipo de pressão ou coerção.
4.1. Crimes Independentes
Trata-se de crimes praticados unilateralmente por qualquer indivíduo que busque se
apropriar de recursos alheios, bem como influenciar processos com o intuito de conseguir
benefícios indevidos. Com efeito, o indivíduo independe do auxílio de outro para cometer os
52
Gardiner (2002, p. 29) alerta para a necessidade dessa diferenciação e diz que: “[…] fraud and organized
crime are clearly different from corruption, since they are not themselves the acts of public officials[…]”. Este
trabalho concorda com a idéia do autor, quanto à sua cobrança de diferenciação entre corrupção e outros crimes.
Devem-se, também, evitar associações diretas entre funcionário público criminoso e corrupção. O primeiro pode
existir sem o segundo. Quando um prefeito desvia produtos da merenda escolar de um município, para consumo
próprio, os quais deveriam ser distribuídos entre as escolas da localidade, não está ele envolvido numa ação
corrupta, mas sim num ato criminoso de apropriação indébita.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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crimes de: apropriação indébita, furto, peculato, fraude, prevaricação e condescendência
criminosa.
4.2. Apropriação Indébita, Furto e Peculato
O crime de apropriação indébita configura-se quando um indivíduo “apropriar-se de coisa
alheia móvel, de quem tem a posse ou detenção” (BRASIL, 1940). Assemelha-se a ele o
crime de peculato, com o diferencial da presença de um elemento da administração pública,
como se vê no Art. 312 “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer
outro bem móvel, público ou particular, de que tem posse em razão de cargo, ou desviá-lo
em proveito próprio ou alheio” (BRASIL, 1940). Observe-se que existem dois pontos em
comum entres esses dois ilícitos: a posse ou detenção dos recursos de terceiro e a sua
posterior apropriação. O primeiro crime manifesta-se tanto na esfera pública, quanto na
esfera privada, pois qualquer pessoa, nessa situação, pode apropriar-se da coisa alheia.
Quando o indivíduo A se apossa de algo que o indivíduo B lhe tenha confiado, ele está
cometendo o crime de apropriação indébita. Se, por acaso, inexistir o compromisso de
posse, ocorre um furto comum, que, segundo o código penal é o ato de “subtrair, para si ou
para outrem, coisa alheia móvel” (BRASIL, 1940). Esse crime pode ocorrer, inclusive, com
bens públicos e, mesmo assim, continua sendo furto, desde que não exista a
responsabilidade de posse. Já no crime de peculato, além de existir a posse e a apropriação,
os bens estão a cargo de um agente público, que pode vir a desviar do erário recursos sob
sua responsabilidade, em benefício próprio. Note-se que está incompleta, nesses crimes, a
tríade da corrupção. Há apenas um agente privado ou público, buscando capturar recursos
alheios. No caso de um agente público utilizar seu cargo, para cometer o crime de peculato,
inexiste o elemento corruptor, pois a ação se deu isoladamente.
4.3. Fraude
No crime de fraude, existirá corrupção se o fraudador não tiver condições, isoladamente, de
cometer tal crime e, para executá-lo, firmar acordo com outro, em troca de benefícios.
Exemplo: um indivíduo almeja colocar à venda uma propriedade de 1.000 hectares; no
entanto, deseja aumentar, nominalmente, sua área para 1.200 hectares, a fim de conseguir
ampliar o valor da venda; para isso, propõe a um funcionário do cartório, onde esteja a
escritura original, que ele a adultere e acrescente mais 200 hectares, em troca de uma
propina. Caso essa transação se consuma, haverá todos os elementos constitutivos da
corrupção, funcionando para cometer uma fraude, que é o “ato doloso, e de má fé, que
cause prejuízo a terceiro” (MALTA, 1988, p. 441). Caso o funcionário do cartório não aceite
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
65
a proposta e, mesmo assim, o proprietário, por um documento falso ou outro meio qualquer,
conseguir pessoalmente ou com ajuda de outros, que não seja o responsável pelo
documento no cartório, terá sido cometido apenas o crime de fraude. Outro exemplo de
fraude, e que está distante do crime de corrupção, é quando alguém, por habilidades
técnicas em tecnologias da informação, consegue identificar números e senhas de cartões
de crédito de terceiros e efetua compras não autorizadas.
4.4. Prevaricação
A prevaricação é um crime que também pode ser cometido de forma independente. Ele se
configura, sobretudo, pela não-ação do agente envolvido, ou seja, quando, para atender
interesses pessoais, ele deixa de desempenhar a tarefa, que lhe é confiada (BRASIL, 1940).
Diferenciar esse crime do de corrupção é tarefa difícil, dada a similaridade de ambos. Tomese o seguinte caso: em 1990, foram descobertos, por uma auditoria do Banco Central (BC),
desvios de verbas no Banco do Estado do Pará (BANPARÁ), os quais teriam sido cometidos
pelo então Governador Jader Barbalho. Em 1992, o relatório sobre tais investigações foi
protocolado pelo BC no Ministério Público do Pará e o Promotor Ribamar Coimbra assumiu
o caso. No ano seguinte, Jader Barbalho nomeou Coimbra Procurador-Geral de Justiça e,
posteriormente, o relatório foi engavetado (KRIEGER; NOGUEIRA, 2001), deixando-se de
dar continuidade às investigações que, mais tarde, levariam à renúncia do Senador Jader
Barbalho. Nesse caso, o que ocorreu? Prevaricação ou corrupção. Note-se que,
aparentemente, todos os elementos da tríade estiveram presentes: interação voluntária de
dois agentes públicos, buscando gerar benefícios mútuos, em detrimento do Estado. Se,
realmente, o Procurador arquivou o processo, por causa da nomeação, ele agiu como
corrupto e, obviamente, Barbalho agiu como corruptor, e os recursos envolvidos eram os
valores desviados do BANPARÁ, que, sem as investigações, continuariam nas mãos de
Jader Barbalho. No entanto, o Procurador, por possuir a prerrogativa discricionária de
arquivar qualquer processo, quando entender conveniente, dificilmente será considerado
corrupto, muito menos como prevaricador.
Além do mais, o conceito de interesse pessoal, citado no crime de prevaricação, é bastante
amplo e subjetivo. Se o promotor concordou com o arquivamento do processo em troca de
sua nomeação, não estaria ele agindo com base nos seus interesses pessoais? E os
indivíduos envolvidos em relações corruptas não agem também com base nos seus
interesses pessoais? Então como diferenciar interesses pessoais envolvidos em crime de
prevaricação dos envolvidos em crime de corrupção? A resposta a essa questão ainda está
distante e a cargo de um debate jurídico doutrinário, que tenha como pano de fundo, a
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66
reforma do Judiciário brasileiro. O que cabe aqui acentuar é como um modelo institucional
pode gerar dubiedade, a ponto de comprometer o entendimento acerca de alguns tipos de
relação entre indivíduos.
4.4. Condescendência Criminosa
Outro crime assemelhado ao de prevaricação é o de condescendência criminosa, que
consiste em “deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que
cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato
ao conhecimento da autoridade competente” (BRASIL, 1940). Um dirigente de uma
instituição pública pode deixar de denunciar e punir um funcionário fraudador por este ser
seu parente ou amigo próximo. Caso receba benefício, para deixar de punir outro
funcionário, que tenha praticado crime igual, o dirigente estará inserido numa relação
corrupta, ou seja: ele é o corrupto, o funcionário fraudador é o corruptor e o recurso em jogo
seria o obtido com a ação fraudulenta.
Em alguns dos crimes referidos, ocorre um fenômeno importante. A fraude, por exemplo, é
um crime comum e pode ser cometida sem que relações de corrupção estejam envolvidas.
No entanto, em alguns casos, essas ralações dão suporte ao próprio crime de fraude. Se, no
exemplo fictício apresentado acima, o funcionário do cartório resolvesse cooperar com o
proprietário do terreno, ter-se-ia o crime de corrupção e, posteriormente, o crime de fraude,
já que necessariamente a ação de adulteração da escritura teria que ser efetivada.
4.5. Crimes Interdependentes
A dependência de um agente em relação a outro, para a efetivação de um crime, é o que
diferencia este grupo do anterior. Se antes era possível agir isoladamente, agora não mais,
dado que as ações criminosas, neste grupo de crime, possuem o pré-requisito da
interdependência.
Os crimes interdependentes ocorrem pela coação (como nos casos de concussão, extorsão,
excesso de exação e tráfico de influência) e pela livre negociação (entre os quais o de
corrupção, que o código penal distingue entre passiva e ativa).
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4.6. Concussão e Excesso de Exação
Na administração pública, a concussão é essencialmente um crime praticado por um agente
público, visando conseguir vantagens perante terceiros, em detrimento de seu cargo, com o
uso da coação. A pessoa, a quem o agente público aborda, não age, neste crime, como
comparsa, mas sim como vítima, pois é ameaçada, caso não concorde com a proposta do
agente que a abordou. Um exemplo prático de concussão é quando um policial detecta ou
provoca uma irregularidade num veículo para, com isso, exigir vantagem junto ao
proprietário, sob pena de multá-lo ou utilizar qualquer outra punição. Casos dessa natureza
são constantemente noticiados pela mídia. Aqui, está presente apenas um dos elementos
que compõem um ato de corrupção. Com efeito, há o agente público, mas falta o agente
secundário ativo, além do recurso público.
Outro crime coercitivo é o de excesso de exação, uma qualificação do crime de concussão,
caracterizado quando um agente público passa a “exigir tributo ou contribuição social que
sabe ou deveria saber indevido” (BRASIL, 1940), utilizando meios ilegais para impor essa
exigência.
4.7. Extorsão
O crime de extorsão, também assemelhado ao de concussão, ocorre quando se constrange
alguém, mediante grave ameaça, com o intuito de obter vantagens econômicas (BRASIL,
1940). A diferença deste para o crime de concussão é que não se faz necessária a presença
de um agente público: a extorsão ocorre numa esfera eminentemente privada, em que um
agente privado venha a extorquir outro, ou mesmo um agente público. Conforme já se
discutiu, quando o agente público extorquir o agente privado ou outro agente público, estará
praticando concussão.
4.8. Tráfico de Influência
Nos anos 1990 houve no Brasil uma série de privatizações, visando, entre outras coisas,
minimizar a intervenção do Estado na economia, na qual deveria passar a influir por meio de
“agências reguladoras”, pressuposto imprescindível para combater-se a corrupção, segundo
estudos feitos pelo Banco Mundial (SIMONETTI; RAMIRO, 2001). Em março de 2001 e
maio de 2002, vieram à tona denúncias de cobrança de propinas, após as privatizações
bilionárias da Companhia Vale do Rio Doce e do sistema Telebrás, ocorridas em 1997 e
1998 respectivamente.
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As denúncias envolviam, dentre outros, o senhor Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor do
Banco do Brasil, que teria cobrado R$ 15 milhões ao consórcio, que adquiriu a Companhia
Vale do Rio Doce (OINEGUE, 2001) e uma comissão de 3,47% do montante utilizado para
privatizar o sistema Telebrás (CASADO, 2001). Os valores cobrados seriam o pagamento
do então diretor do Banco do Brasil, pelo trabalho de organização dos consórcios, que
compraram as referidas estatais. Segundo as denúncias, Ricardo Sérgio teria utilizado, para
montar os consórcios vencedores: 1º) o cargo que exercia; 2º) recursos públicos a que tinha
acesso; e 3º) sua influência no Governo e nos fundos de pensão estatais. Pois é a utilização
desses artifícios que caracteriza o crime de tráfico de influência: “solicitar, exigir, cobrar
obter para si ou para outrem, vantagens ou promessa de vantagens, a pretexto de influir em
ato praticado por funcionário público no exercício de sua função” (BRASIL, 1940). Além de
ser funcionário público, o diretor do Banco do Brasil influenciou junto a outros para a
liberação de verbas com vistas à formação dos consórcios.
Pelo menos três grandes fundos de pensão estatais foram utilizados: a Caixa de Previdência
dos Funcionários do Banco do Brasil (PREVI), a Fundação dos Economiários Federais
(FUNCEF), da Caixa Econômica Federal e a Fundação Petrobras de Seguridade Social
(PETROS). Ao lado de outros fundos menores, eles entraram com 39% do capital para
privatizar a Vale do Rio Doce (OINEGUE, 2001) e com 55,2%, na privatização do sistema
Telecomunicações Brasileiras (TELEBRÁS), presentes nos Estados das regiões Norte,
Nordeste e Sudeste. E foi esse capital que definiu o poder de compra dos consórcios
vencedores. Ou seja: por influência junto a funcionários públicos, grupos privados obtiveram
vantagem. E a exigência de fatias dessas vantagens, por parte do agente que influiu,
configura o crime de tráfico de influência.
Um ponto importante a ser observado, nesse caso, é que a organização dos referidos
consórcios foi solicitada pelo Governo, que visava gerar concorrência e, com isso, aumentar
o ágio nas vendas, dado que, no caso da Vale do Rio Doce, existia apenas um consórcio
interessado, liderado pelo grupo Votorantin. Essa “fabricação de concorrência” ficou a cargo
de Ricardo Sérgio de Oliveira 53. A Empresa Vale foi vendida com um ágio de 20% e o
sistema TELEBRÁS, com 1%. Nesse último caso, o Governo interveio e suspendeu o
financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) ao grupo vencedor,
obrigando-o a fazer investimento. Sem o financiamento, o consórcio vencedor se submeteu
à mudança das regras, que davam ao BNDES poder de veto sobre qualquer decisão, que
achasse inconveniente, tomada pelo comando do grupo.
53
Então funcionário do Banco do Brasil.
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Ressalte-se que Ricardo Sérgio tinha uma procuração do Governo, para organizar o grupo,
o que lhe rendeu prestígio junto aos investidores, os quais, mais tarde, segundo as
denúncias, seriam alvo de solicitação de propinas. Nesse ponto, se poderiam levantar
algumas questões: teria Ricardo Sérgio de Oliveira solicitado à comissão, quando entendeu
que sua participação fora fundamental e, portanto, logo deveria ser remunerada? Os valores
já estariam acertados entre os grupos e o funcionário público Ricardo Sérgio para a
obtenção da vantagem na compra das estatais? Caso esta última suposição se confirme,
teria havido a manifestação de uma ação corrupta, além, é claro, do crime de tráfico de
influência.
4.9. Corrupção Ativa e Passiva
O Código Penal Brasileiro considera crime de corrupção ativa o ato de um agente privado
que oferece ou promete vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a
praticar, omitir ou retardar ato de ofício. Quando um agente público solicita ou recebe, para
si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes, de assumi-la,
mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceita promessa de tal vantagem, o crime é de
corrupção passiva (BRASIL, 1940).
O crime de corrupção é, portanto, interdependente e de livre negociação, dado não existir a
presença da coerção. Aqui, os agentes atuam por livre iniciativa e vontade. Não são
obrigados ou constrangidos a participar de tal ilícito. Assim, os elementos de livre
negociação e interdependência são fundamentais para a construção do conceito de
corrupção, proposto neste trabalho.
Atente-se para o fato de, nos Art. 317 e 333, persistir a idéia de vantagem indevida, o que
constitui o divisor de águas do que é lícito e do que é ilícito, implicando este último que a
vantagem deve acarretar danos para alguém ou para o serviço público (BRASIL, 1940).
Logo, se um agente público receber algum tipo de vantagem, sem que tenha atuado para
prejudicar o erário, não terá cometido crime e, se assim for, o fato de oferecer também não é
(GOMES NETO, 1988, p. 123). O regime dos servidores públicos civis da União, das
autarquias e das fundações públicas federais determina que o funcionário não possa
receber qualquer vantagem, em virtude de suas atribuições (BRASIL, 1990). Ou seja:
qualquer vantagem, que possa influenciar seu ato em detrimento daquele que lhe deu, é
considerada indevida e, portanto, ilícita.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
70
É interessante notar, no código penal, a inexistência de referência a corrupção, na esfera
privada. Apenas ações que visem prejudicar o erário público são tidas como corrupção.
Caso a ação corrupta se dê numa esfera completamente deslocada da pública, não será
enquadrada como crime de corrupção, mas em crimes contra o patrimônio. Pode-se concluir
que, nesse ponto, como em outros, o código penal está carecendo de atualização (BRASIL,
1940).
4.10. Uma Observação sobre a Lei de Improbidade Administrativa
Além dos crimes já referidos, existe o de “improbidade administrativa”, que se circunscreve
na esfera pública. “Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento
ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo,
mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas” (BRASIL, 1992).
É interessante notar que essa lei estabelece como crimes, ações ilícitas já previstas no
código penal, com outra roupagem. A leitura dos seus artigos permite perceber-se
exacerbada semelhança com os crimes analisados aqui. Quando, por exemplo, define que é
improbidade administrativa auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida, em razão
do exercício de cargo, não estaria à lei repetindo o que o código penal dispõe em relação ao
peculato?
Note-se que, até aqui, se discutiram crimes e suas respectivas leis. A legislação, porém,
mais do que contemplar preocupações com a punição, trata da regulação. A punição já é
uma resposta à desobediência do que está regulado. Leis, como a de licitação, ou códigos
de conduta, portanto, buscam erigir padrões regulares de ação entre os indivíduos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As dificuldades para se conceituar corrupção, portanto, como visto anteriormente não são
triviais, por outro lado não são intransponíveis. Foi possível sim traçar um conceito
minimamente operacional, que permita o desenvolvimento de investigações empíricas com
vistas a sua mensuração, possibilitando descobrir onde ocorre, qual sua intensidade, que
áreas são mais propensas, mas, sobretudo, tornando possível identificar precisamente
causas e consequências de sua manifestação.
Para tanto, neste trabalho, buscou-se destacar quais são os principais elementos
constitutivos da corrupção, caracterizados por aquilo que foi denominado de tríade da
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
71
corrupção, a qual congrega três elementos essenciais: corruptor, corrupto e recursos. A
interação dessas peças necessariamente deve ocorrer voluntariamente, livre de qualquer
tipo de pressão ou coerção. Argumentou-se que a corrupção é um fenômeno que não é
exclusivo do espaço público, podendo o mesmo ocorrer na iniciativa privada, causando
danos relevantes ao setor produtivo. E por último, buscou-se contribuir com o debate teórico
em torno do conceito de corrupção no intuito de diferenciá-lo de outros crimes que lhes são
assemelhados. Esta diferenciação se torna sine qua non para municiar mecanismos de
controles institucionais que possam coibir tal prática.
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LAS INSUFICIENCIAS EN LA SABIDURÍA CONVENCIONAL
SOBRE LAS CAUSAS DE LA CRISIS Y EL ERROR DE SUS SOLUCIONES
Vicenç Navarro54
RESUMEN
Este artículo analiza los supuestos que sostienen las teorías neoliberales sobre las causas
de la crisis financiera y económica actual. El artículo también critica las soluciones que se
están imponiendo, que se basan en tales supuestos.
THE INADEQUACIES IN THE CONVENTIONAL
WISDOM ON THE CAUSES OF THE CRISIS AND THE ERROR OF THEIR SOLUTIONS
ABSTRACT
This article analyzes the suppositions that sustain the neoliberal theories on the causes of
the recent financial and economic crisis. The article also criticizes the solutions that are
imposing and that they are based on such suppositions.
La versión más generalizada de lo que causó la crisis financiera y económica actual
asume que fue la facilidad con que la población pudo acceder al crédito, lo que determinó un
empache crediticio (que se le llama burbuja), que alcanzó niveles de crédito tales, que el
pago de la deuda creada por tanto crédito era insostenible. El problema radica – según tal
teoría – en que los bancos ofrecían demasiado crédito, a unas condiciones excesivamente
favorables, y la gente se emborrachó de tanto crédito, endeudándose hasta la médula, hasta
54
Catedrático de Ciências Políticas e Sociais. Professor da Universidade Pompeu Fabra (Barcelona) e de
Políticas Públicas em The Johns Hopkins University (Baltimore, EEUU).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
75
llegar un momento que la burbuja explotó. La solución pues es que la gente (y el Estado que
también se emborrachó de crédito) ahorre para poder pagar lo que debe (de ahí la frase de
“ajustarse el cinturón”) y que los bancos eliminen sus productos tóxicos (las hipotecas
basuras o las hipotecas impagables), y recuperen el máximo de dinero que prestaron,
siendo a la vez, más prudentes en su comportamiento futuro, intentando a la vez
capitalizarse (que quiere decir conseguir la mayor cantidad de dinero posible, a base de
producir y vender bonos y otros instrumentos) y también pidiendo y consiguiendo ayuda
pública, de la cual ha recibido abundantemente, no sólo de los gobiernos, sino también del
Banco Central Europeo, en el caso de la Eurozona y/o del Federal Reserve Board en EEUU
(este último, por cierto, ha ayudado también a la banca europea extensamente).
Consecuencia de esta situación, es que – según tal teoría – las familias están endeudadas
hasta la coronilla y los bancos son muy poco afines a abrir la fuente del crédito. Se concluye
así que hay un grave problema de falta de demanda doméstica que tiene que sustituirse –
de nuevo, según tal teoría – por una demanda externa, es decir, por un incremento de las
exportaciones del país. Y de ahí la enorme importancia de que se invierta en mejorar la
competitividad, con el objeto de incrementar la demanda externa que estimule la economía.
El incremento de la competitividad es así lo que nos sacará de la crisis.
Esta explicación ha adquirido categoría de dogma en los círculos donde se genera y
reproduce la sabiduría convencional. El Fondo Monetario Internacional (FMI), el Banco
Central Europeo (BCE), y la Comisión Europea y muchas estrellas mediáticas del mundo
económico, incluyendo el académico, coinciden en el mismo análisis y en las mismas
soluciones. Ni que decir tiene que existen variaciones en cuanto a cómo conseguir, por
ejemplo, el aumento de competitividad. Así el BCE, la Comisión Europea y el FMI en la
Eurozona, y el Banco de España, la banca y la gran patronal en España, acentúan la
flexibilidad del mercado de trabajo (que quiere decir la desregulación de tales mercados, la
reducción de la protección social, y los recortes de gasto público). Otros, acentúan otras
medidas como la desregulación de los mercados comerciales y/o el cambio del valor de las
monedas (en la que, por regla general, la moneda china siempre sale mal parada,
acusándola de estar artificialmente subvalorada, lo que le da una ventaja comparativa en
esta competitividad internacional.
También existen diferencias de opinión en cuanto a la velocidad e intensidad en que deben
aplicarse las medidas de austeridad, acentuándose últimamente que un exceso de
austeridad es contraproducente. Tal es la postura del profesor Antón Costas, en un artículo
ampliamente reproducido en Nou Cicle, diario digital de la sensibilidad catalanista del PSC,
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
76
entre otros medios. Creo haber resumido bien esta explicación generalizada de la crisis y
sus variantes. El problema que tiene tal explicación es que es insuficiente en su
entendimiento de la causa de la crisis y es erróneo en sus propuestas para resolverla.
¿POR QUÉ ESTA TEORÍA ES INSUFICIENTE Y SUS SOLUCIONES SON ERRÓNEAS?
Los sostenedores de tal teoría deberían preguntarse en primer lugar ¿por qué la ciudadanía
está tan endeudada? No es suficiente indicar que las facilidades crediticias fueran muy
elevadas. Es cierto que en los países de la periferia de la Eurozona, los intereses bancarios
asociados con el establecimiento del euro facilitaron en gran manera el acceso al crédito.
Pero otros países como EEUU y la Gran Bretaña no se encontraban en esta situación y en
cambio las clases populares se endeudaron también hasta la médula. La causa no citada de
este endeudamiento –y que es la más importante- es el descenso de las rentas del trabajo
como porcentaje de las rentas totales de cada país. Las familias tuvieron que endeudarse
más y más, resultado de la disminución de sus ingresos. El endeudamiento de las familias
precedió al establecimiento del euro.
La misma insuficiencia explicativa aparece en atribuir la explosión de la burbuja financiera, a
un exceso de crédito. La explosión se debió a una enorme especulación, resultado de que la
rentabilidad de la economía productiva era muy baja (consecuencia de la escasa demanda)
y en cambio, la rentabilidad de la inversión financiera especulativa era muy alta. El maridaje
banca, sector inmobiliario, industria de la construcción creó un bloque enormemente
especulativo que dobló artificialmente el precio de la vivienda entre 1998 y 2007. El enorme
crecimiento de las rentas derivadas del capital no se invirtió en actividades productivas sino
especulativas y todo ello bajo la supervisión de las autoridades reguladoras financieras y
con la complicidad de las autoridades públicas. De ahí que, a no ser que la enorme
polarización de las rentas que ha ido ocurriendo como resultado de la aplicación de las
políticas neoliberales se revierta, la crisis no sólo no se resolverá, sino que empeorará. El
caso de Grecia es un ejemplo claro de ello.
Lo cual me lleva al último punto. El de las soluciones. Es un error profundo creerse que la
solución de la crisis en países como España pasa por un aumento de las exportaciones.
Para que alguien exporte, alguien tiene que importar. Y puesto que el 75% del comercio de
España es con la UE, si todos exportan, ¿quién va a importar si todos están en recesión? El
mejor ejemplo del error de esta estrategia para salir de la crisis es Alemania, referida
frecuentemente como “la China de Europa”. La tasa de crecimiento alemán (cuyo modelo
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
77
económico se basa en las exportaciones), es hoy muy baja. Superior a la española, eso sí,
pero esto no es decir mucho, pues el crecimiento español es muy bajo.
¿QUÉ DEBERÍA HACERSE?
Lo que se requiere es precisamente opuesto a lo que se está haciendo. Se requiere un
programa de estímulo a nivel nacional e internacional, semejante al New Deal en EEUU, con
un enorme aumento de gasto público para estimular la economía, que llene en España el
enorme vacío (casi 10% del PIB) creado por el estallido de la burbuja inmobiliaria. Se
necesita también un aumento de los salarios que estimulen el aumento de la competitividad
puesto que una de las causas de la baja productividad es la amplia disponibilidad de
trabajadores dispuestos a cobrar bajos salarios. Si no los hubiera, los empresarios se verían
forzados a invertir y mejorar la productividad de sus empleados.
El aumento de los salarios es esencial para que aumente la demanda. Es también
importante que la banca ofrezca crédito, como condición de su existencia, nacionalizando
bancos en algunos casos y/o transformándolos en entes públicos (public utilities) en otros,
convirtiendo además el Banco Central Europeo (BCE) en un banco central que, como hacen
otros bancos centrales, imprima dinero, ayude a sus Estados y compre su deuda pública,
creándose además a nivel europeo una agencia del tesoro que establezca eurobonos
comprados por el BCE y por otras instituciones
En caso de que no se vaya en esta dirección, la crisis se acentuará, convirtiéndose la Gran
Recesión en la Gran Depresión. En realidad, parte de la población europea está ya en Gran
Depresión. Las políticas de austeridad impuestas por la troika (la Comisión Europea, el BCE
y el FMI) a Grecia han sometido a aquel país a una situación de enorme retroceso
económico y social, condenando a un país a estar en Depresión por veinte años.
¿QUÉ ESTÁ PASANDO EN GRECIA?
El caso griego muestra claramente el error de querer salir de la crisis a base de una
devaluación doméstica orientada a disminuir los salarios a fin de aumentar la competitividad
y aumentar las exportaciones. La economía griega está cayendo en picado. Según el
Ministro de Economía de Grecia, la economía decaerá un 4% del PIB (este año decayó un
1%) Y todas las “ayudas” a Grecia no han mejorado la situación. Antes al contrario, la han
empeorado. Su deuda pública era 120% del PIB al iniciarse la crisis; ahora representa un
160%. Y sorprendentemente, la última reunión de los gobiernos de la Eurozona, liderados
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
78
por el dúo Merkel-Sarkozy, insistieron en todavía más austeridad, bendecida y apoyada por
el Banco Central Europeo y el FMI. Es imposible que Grecia se recupere en estas
condiciones.
Medidas como el establecimiento de un fondo especial de ayuda (que pueda alcanzar un
billón de euros) no tocan la raíz del problema. En realidad, las mal llamadas ayudas de la
troika a Grecia han sido ayudas a la banca alemana y francesa, que compró deuda pública
griega. De ahí que la salida de Grecia del euro significaría un enorme coste a tal banca,
pues la deuda pública, en caso de que Grecia saliera del Euro, se reduciría por unos
porcentajes reales mayores que el 32% que la reducción pactada por Merkel-Sarkozy con la
banca privada (el 50% que aparecen en los medios incluye la deuda poseída por los
Estados, incluyendo las instituciones públicas del Estado griego. Para la banca privada será
mucho menor). De ahí que la salida de Grecia del euro representaría un perjuicio
considerable al sistema financiero europeo centrado en la banca alemana y francesa. La
fallida demanda de un referéndum para aceptar o rechazar las últimas condiciones
draconianas impuestas a Grecia hubieran sido no sólo una demanda democrática, sino
también una medida inteligente de presión del gobierno socialista griego hacia el
establishment financiero y político europeo, indicando que las políticas de austeridad, de
continuar aplicándose a Grecia, significarían un coste elevado a aquellos intereses
financieros responsables, en gran parte, de la situación intolerable que vive Grecia.
Bajo estas condiciones, la única salida que parecería tener Grecia, es la salida de este país
del euro. Tal salida será resistida por los mayores centros financieros y por la dirección del
establishment europeo cuyas políticas han sido causa del enorme deterioro del bienestar de
la población griega. Tal salida afectaría sus intereses de una manera muy directa. Ahora
bien, Grecia no puede tolerar esta situación por tantos años. De ahí que su única salida
puede ser el abandono del euro. Ello le permitiría redefinir el valor de la deuda (un
porcentaje mucho mayor que el pactado por Merkel-Sarkozy en la banca privada), y
recuperar su plena soberanía sobre el valor de su moneda, estableciendo su propio banco,
con la potestad de imprimir dinero y comprar su propia deuda, potestades que hoy no tiene.
Argentina siguió un camino parecido cuando se encontró en una situación semejante.
Intentó primero, durante el periodo 1998-2001, seguir las recetas del FMI, que eran casi
idénticas a las recetas de la troika a Grecia. Al ver que la situación deterioraba, el gobierno
argentino cambió y declaró su deuda impagable, devaluándola considerablemente.
Recuperó el valor de la moneda, y tras un declive del PIB por un trimestre, se recuperó
rápidamente, creciendo un 63% durante los siguientes seis años, y ello a pesar de todas las
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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advertencias del FMI de que tal decisión sería un desastre. No lo fue, evitando la
continuación del desastre que Argentina estaba padeciendo.
El caso Argentina y el caso Grecia muestran que las políticas propuestas por la troika
(Comisión Europea, BCE y FMI) para salir de la crisis, a base de aumentar las exportaciones,
es profundamente errónea. Lo que debiera hacerse es estimular la demanda doméstica. El
hecho de que no se haga es consecuencia de las relaciones de poder tanto dentro de
Grecia como en la Eurozona, donde el dominio de las elites financieras y grandes grupos
empresariales es casi absoluto. Ahí está el problema.
Fonte: http://www.vnavarro.org/?p=6490
ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
A ESQUERDA CONTRA A DÍVIDADURA
Francisco Louça55
RESUMO
O debate nas esquerdas acerca da resposta à crise da dívida é fundamental para definir a
política socialista. É disso que trata este texto. Na primeira parte, discuto a crise do euro.
Pretendo argumentar, como muitos outros, que ela é estrutural e permanente, ao contrário
do que afirma o consenso entre a social-democracia e a direita. Na segunda parte, discuto
as duas alternativas novas que têm sido propostas contra a estratégia do europeísmo de
esquerda: a saída nacionalista e o salto para o Estado Europeu. Pretendo provar que estas
alternativas têm três problemas: são violentamente contraditórias, apoiam-se na ocultação
dos seus efeitos econômicos e sociais reais e ignoram a relação de forças em que se fazem
escolhas. Na terceira parte, discuto de novo o europeísmo de esquerda e pretendo provar
que uma alternativa econômica exige uma estratégia de luta de classes. Para isso, voltemos
ao essencial.
1. A CRISE DO EURO É ESTRUTURAL E VAI-SE AGRAVAR
As definições fundadoras da União Europeia e, em particular, da criação da moeda única,
têm o cunho do consenso histórico entre a social-democracia e a direita. De facto, nas
escolhas fundamentais para esta estrutura institucional, não existiu até hoje qualquer
diferença essencial entre estes parceiros. Foi uma amplíssima maioria de governos socialdemocratas que definiu as regras de Maastricht, que são o pilar fundador do euro –
55
Catedrático, Prof. de economia no ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão de Portugal). Deputado, líder
do Bloco d'Esquerda.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
81
máximos permitidos de 3% de défice e de 60% de dívida e, ainda mais importante, a
obrigação de uma contenção permanente da inflação a níveis insignificantes. Esses dogmas
são hoje os instrumentos da direita que governa a União Europeia e a origem dos problemas
actuais. Não são precisos outros para a máquina de destruição das regras sociais do
Estado-providência.
O problema é que o euro que resulta desse consenso é uma construção insustentável. É
incoerente, vulnerável, desigualitária, prejudicial à maioria dos Estados e, fundamentalmente,
esvazia a democracia. É preciso por isso analisar em detalhe porque está a fracassar o euro.
1.1. O euro é a crise
A política das lideranças da União Europeia está bloqueada num consenso inicialmente
muito forte: a criação de um regime de financeirização dominante por via do euro, impondo a
cada Estado o condicionamento da sua economia e a minimização dos gastos sociais. Este
consenso tem sido abalado por brechas no que diz respeito à gestão das respostas à crise,
porque o euro é a crise: alguns governos aceitam hoje os eurobonds que recusaram sempre,
uns querem reduzir as dívidas com uma pequena desvalorização do capital, outros
sustentam o modelo de espoliação da Grécia e das outras economias periféricas. As linhas
que se seguem discutem estes dois pontos: a razão da crise do euro e as tentativas de
solução dentro do euro.
Para esse efeito, vou resumir-vos a análise de Paul de Grauwe, um economista belga que é
um dos mais reconhecidos críticos do modelo do euro e que tenta remediá-lo com várias
propostas (“The Governance of a Fragile Eurozone”, working paper da Universidade de
Lovaina).
De Grauwe escreve que, quando existe uma zona de moeda comum como o euro, todas as
economias passam a emitir dívida soberana em euros mas, porque não têm controlo
nacional sobre a moeda, tornam-se vulneráveis a ataques especulativos que podem forçar a
sua falência – o default, ou a cessação de pagamentos. Ou seja, o euro aumenta o risco da
falência.
O exemplo que apresenta é o da comparação entre a Espanha e o Reino Unido, sabendo-se
que o rácio dívida/PIB inglês é maior (em 2011 a diferença entre um e outro é de 17%). Mas
o Reino Unido, quando emite dívida soberana, paga taxas de juro menores, apesar de estar
muito mais endividado. Há evidentemente uma primeira razão para esta diferença, que De
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Grauwe, aliás, ignora: os mercados financeiros impõem taxas de juro considerando as suas
expectativas mas também o seu poder perante cada economia, e o poder do Reino Unido é
muito superior ao da Espanha, porque é um dos maiores centros financeiros e uma grande
economia mundial.
Mas a segunda razão, que é analisada em detalhe por De Grauwe, é muito importante para
perceber o falhanço do euro: é que, se houver um forte ataque especulativo, o Reino Unido
tem uma capacidade de resposta que a Espanha – ou Portugal – não tem. Imagine-se que
os especuladores temem o incumprimento britânico e que, por isso, vendem os títulos desta
dívida pública. Assim, o valor do seu juro sobe. Mas, nesse caso, os vendedores dos títulos
normalmente irão trocar por outra moeda as libras que receberam, o que provoca dois
efeitos: a libra é automaticamente desvalorizada (desvalorizou 25% desde o início da crise),
o que facilita as exportações britânicas, e o Banco de Inglaterra comprará os títulos. A
massa monetária não é assim reduzida (até pode aumentar) e não chega a haver um
problema de liquidez. A economia corrige o problema se o Banco de Inglaterra agir sem
hesitações.
Em contrapartida, se acontecer o mesmo em Espanha – ou noutro país nas mesmas
circunstâncias –, os fundos financeiros venderão os títulos da dívida espanhola mas
poderão investir nalguma outra economia os euros que receberem. Cria-se assim um
problema de liquidez porque o Banco de Espanha, que é agora uma sucursal do Banco
Central Europeu, não quer nem está autorizado a comprar os títulos. A oferta monetária
reduz-se em Espanha e os preços relativos não são corrigidos, passando a haver uma
restrição que agrava a austeridade.
O efeito seguinte é sobre as contas dos bancos nacionais, que têm em carteira uma parte
importante da dívida pública: se os títulos valem menos, os seus balanços ficam
desvalorizados, têm mais dificuldade para obterem financiamento, e o crédito é restrito.
Sim, existe também um problema de dívida privada que, em Portugal como noutros países,
é maior do que a dívida pública. E esse problema agrava os custos dos empréstimos que os
bancos nacionais obtêm junto da banca internacional. Indirectamente, os trabalhadores
estão a pagar esse custo, com o agravamento dos juros quando pedem novos créditos e
com o aumento dos impostos para financiarem as rendas que o Estado paga à banca. Mas
não haja ilusões: mesmo que esse problema não existisse, a pressão sobre a dívida
soberana poderia ainda ter um efeito desastroso, como está a acontecer.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
83
O efeito dominó é por isso muito forte: a especulação financeira consegue ameaçar uma
economia vulnerável, e o Estado pode ficar insolvente simplesmente se os mercados
financeiros temerem que fique insolvente. Para responder a esta dificuldade, a ortodoxia
europeia só concebe a solução da austeridade, que é a da recessão.
Só que esse efeito de ameaça às economias do euro não é a única ameaça na Europa. O
Reino Unido, o exemplo de De Grauwe, está agora a aplicar a mais selvagem lei da
austeridade, multiplicando as propinas universitárias, cortando na saúde, atacando os
pobres, reduzindo o investimento e criando desemprego – apesar de ter todos os
instrumentos monetários para relançar a economia contra a especulação. Ou seja, o
problema europeu não é só o euro. É mesmo a luta de classes.
1.2. A solução européia tem sido o aumento da exploração pela via da austeridade
A resposta europeia a estas crises nacionais, acentuadas pela vulnerabilidade do euro, é
bem conhecida: planos de austeridade para recuperar a competitividade a partir da
desvalorização dos salários directos (retirar o subsídio de Natal e de férias, cortar nos
salários, aumentar o horário de trabalho) e indirectos (aumento dos custos da saúde e
educação, redução das pensões). A austeridade provoca recessão, que agrava o défice
orçamental, que exige novos aumentos de impostos, que agrava a recessão. A recessão
transforma-se, como pode acontecer em Portugal, em depressão prolongada.
Isto é uma boa notícia para a finança e para a burguesia, porque altera profundamente as
relações de força entre as classes, abrindo as portas a um novo regime social –
despedimentos fáceis, fim dos contratos colectivos, redução do poder sindical, serviços
públicos mínimos com a mercantilização de serviços essenciais para a vida das pessoas. A
finança do século XXI quer viver tanto dos mercados bolsistas como da gestão dos hospitais
e dos fundos da segurança social. Mas, entretanto, a depressão desvaloriza uma parte do
capital produtivo, e isso é a má notícia para os capitalistas que forem à falência. Assim,
temos dois pólos de tensão na classe dominante: entre a finança e os bancos, por um lado,
e entre estes dois sectores e partes do capital produtivo, por outro lado.
E é sobretudo uma má notícia para a maioria da população, porque significa um recuo
geracional do salário, ou seja, um aumento da exploração. Assim, a estrutura do euro
acentua a pior das políticas, a da desvalorização do salário.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
84
Vou depois voltar esta conclusão, porque ela é a chave de todo o debate político: com o
euro, a desvalorização do salário é o alfa e o ómega da política económica dominante.
1.3. Algumas novas e velhas soluções imediatistas
Recapitulemos De Grauwe, porque ele exprime com clareza a dificuldade de busca de
alternativas no quadro económico actual, mas propõe três alternativas principais à gestão
actual do BCE e do directório da União. Vejamos quais são e qual a sua viabilidade.
A primeira proposta é que o Banco Central Europeu compre títulos da dívida soberana e os
aceite como garantia de empréstimos aos bancos privados. Isso já está a ser feito em
alguma escala, apesar de ser contra tudo o que o BCE sempre afirmou. Mas esta medida
não basta: para que a sua actuação tivesse impacto, o BCE devia ser um factor decisivo no
mercado da dívida, o que significaria comprar toda a dívida disponível – como propôs
recentemente Cavaco Silva. Devia comprar directamente aos Estados e não somente no
mercado secundário, nos momentos de aflição. E isso não vai acontecer na dimensão
necessária.
A segunda alternativa apresentada por De Grauwe é a redução do juro imposto nos
empréstimos aos países em dificuldades. A razão é evidente: o juro alto aumenta as
dificuldades e assinala que a própria União tem expectativas de que pode haver um
incumprimento da dívida por parte desses Estados, o que facilita os ataques especulativos
contra eles. Como sabemos, houve uma pequena redução (de 1%), mas o juro é ainda mais
de 2% acima do seu custo de financiamento.
A terceira proposta de De Grauwe é um mecanismo de emissão de eurobonds, que
asseguraria o equivalente a 60% da dívida soberana de cada país, devendo o Estado
suportar os títulos restantes. Assim, cada país teria dois tipos de títulos soberanos: os
europeus, de juro mais baixo (mas com custos diferenciados de acesso segundo o risco de
cada economia) e os nacionais, que poderiam ter juro mais elevado. É uma proposta antiga
de Jacques Delors e já tem cerca de 20 anos. Nunca foi concretizada e é difícil que o seja,
porque tem o veto da Alemanha.
Para as três propostas, De Grauwe sugere uma contrapartida: uma autoridade fiscal comum
e portanto para uma União política. Porque não é preciso que a senhora Merkel lidere um
governo europeu unificado para que seja viável a emissão de títulos europeus ou juros
razoáveis nos empréstimos às economias atingidas – basta haver regras aceites que
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
85
determinem estas acções. Por isso, De Grauwe contenta-se com pequenos passos. Mais
ainda: quanto maior a crise, maior a insistência em soluções imediatas.
Como vamos ver adiante, a recusa anterior pela governação europeia da lógica destas
medidas não implica que não ceda e não as aplique em alguma medida, combinadas com
um cocktail de outras iniciativas, para não deixar cair o euro. A redução dos juros da dívida
negociada com a troika continuará, e haverá uma forte mesmo a reestruturação da dívida da
Grécia, com perdas para o capital financeiro (e o BCE a compensar parcialmente a banca).
O euro não pode cair, se a Alemanha defende os seus interesses. Haverá por isso medidas
activas para reorganizar o sistema de crédito e as relações institucionais, com o BCE a fazer
sistematicamente o que por doutrina e mesmo por Estatutos tinha sempre recusado.
1.4. A política que dirige a Europa é autoritária, mas consensual entre a direita e a
social-democracia
Considerando estes argumentos, o impasse actual pode ser assim resumido: o euro tem
organizado o capitalismo europeu durante os anos de crescimento, mas fraqueja quando há
uma crise financeira, porque os mercados especulativos atacam com sucesso as economias
mais frágeis e criam um perigoso efeito dominó. A resposta da austeridade é simplesmente
austeritária, a austeridade autoritária. Só que o efeito de contágio é muito intenso, dado que
mais de metade da dívida soberana dos vários países está detida por entidades financeiras
de outros países. E a recessão alastra, agravando a instabilidade financeira. O euro torna-se
por isso um factor determinante da crise.
Esta estrutura do poder financeiro e da decisão européia é suportado por um consenso
entre a direita e a social-democracia, que tem resistido sempre com vantagem da direita. Ele
tem um fundamento: Kohl, Schroeder ou Merkel, na Alemanha, representam exactamente
as mesmas políticas européias, como Prodi e Berlusconi em Itália, ou Aznar e Zapatero em
Espanha, ou Durão Barroso e Sócrates em Portugal. Para que a política não seja
meramente uma imaginação alegre, convido os economistas que têm desenvolvido a crítica
ao euro a lembrarem-se da configuração política que definiu estas regras, que as impôs e
que as mantém, para que possamos procurar alternativas viáveis que não ignorem os
adversários e que, em contrapartida, procurem aliados que não sejam figuras de retórica. Se
me permitem, recomendo-lhes por isso que não contem com a social-democracia européia:
ela não vai erguer uma alternativa européia, porque defende para a Europa o Tratado de
Lisboa com o seu Directório e o euro tal como ele existe.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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2. DUAS SOLUÇÕES AUTORITÁRIAS DE AUSTERIDADE CONTRA A AUSTERIDADE
Esta crise é estimulada pelo euro, que cria um efeito de contágio da crise. Mas ela não é
criada pelo euro. Para a compreendermos no seu quadro geral, devemos ir mais fundo e
fazer o que a maior parte dos economistas recusa: pensar a economia a partir das classes
sociais. É isso que faço de seguida, considerando as duas alternativas que têm sido
recentemente propostas por alguns sectores de esquerda (e de direita), que são a opção
nacionalista da saída do euro e a contra-opção federalista da criação de um Estado europeu
unificado.
2.1. Avante para a esquerda, ou então, se não puder ser, para a direita
Grande parte das esquerdas críticas partilha este diagnóstico sobre a crise do euro (e
também, como vimos, alguns dos mais tradicionais economistas). Ele não é novo. Está
presente desde a formação do euro, e foi por isso que recusamos a seu tempo a sua
estrutura, como rejeitamos a artificial valorização do escudo no momento da integração –
valor que tem vindo a destruir a economia portuguesa – bem como a excessiva valorização
posterior do euro. Sim, isso já se sabia. Neste quadro, o BCE só podia ser o que veio a ser:
uma agência para a liberalização dos mercados financeiros e a protecção da banca,
impedindo as escolhas necessárias para responder a cada recessão. E, neste quadro,
também a Comissão Européia só podia ser o que veio a ser: uma agência dos principais
governos, com o poder legislativo que o Parlamento Europeu não tem e que os parlamentos
nacionais estão a perder.
Foi, portanto com pleno conhecimento destas realidades que as esquerdas elaboraram as
suas respostas. Ninguém pode agora argumentar que não sabia ou que não percebeu. Ou
que, com estes tratados, a União podia ser o que não foi. Ou que as instituições se
regenerariam e salvariam as economias da recessão. Não vale. Não vale inventar agora que
a União do directório era outra coisa, que podia ter sido social ou até que podia ter sido
economicamente competente.
Foi por isso que o Bloco de Esquerda se definiu desde a sua fundação como “europeísta de
esquerda”, e levou a sério essa definição. Ela implica o combate contra as instituições e as
políticas da governação européia, porque são factores da crise e recusam a democracia.
Implica a recusa do Tratado de Lisboa, porque encerra a Europa no Directório, e das regras
do BCE, porque agravam cada recessão. Implica a exigência da saída da NATO e a recusa
de um militarismo europeu, porque é parte de uma política imperial. Implica a exigência clara
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
87
da refundação da União e isso tem uma consequência, que é o combate sem concessões
contra a sua estrutura e política actual.
Esse combate, portanto, não é novo. Nem é novidade que ele nos diferencie de uma
esquerda nacionalista que tem tido receio de anunciar a sua posição pela saída do euro e
da União Européia, em nome de uma alternativa soberanista bastante mal explicada e de
viabilidade ruinosa. O que há de novo, no entanto, é que alguns sectores de esquerda,
tradicionalmente europeístas e por vezes até pouco críticos da governação européia,
procuram agora outras soluções. Essa deslocação é em sim mesmo um bom sinal, porque
prova que, perante o impasse actual, há quem procure novas alternativas. Mas essas
alternativas têm de ser mais fortes e mais consistentes do que as políticas que querem
substituir.
Duas dessas propostas são particularmente importantes e, portanto, devem ser discutidas
com toda a atenção. São a que defende que Portugal se empenhe na criação de um Estado
Europeu unificado e a que defende que Portugal deve abandonar o euro. O que um dos
seus defensores chama, elegantemente, sair da crise por “cima” ou por “baixo”.
O que pode surpreender quem achar que já viu tudo é que haja quem defenda
simultaneamente as duas propostas. De facto, a sobreposição destas duas propostas
radicalmente antagónicas é uma bela prova de que a imaginação humana não tem limites.
Quem quer a solução extrema de um Estado Europeu que dirija as economias nacionais não
pode querer também a solução nacionalista extrema da separação do euro (e da aplicação
de políticas que significam a saída da União Européia) – ou pelo menos não se espera que
defenda as tuas ideias simultaneamente. De facto, as duas soluções dirigem-se a objectivos
contraditórios, servem sectores sociais e mobilizam forças diferentes, concitam sistemas de
alianças distintos. A primeira requer o privilégio dos sectores financeiros mais integrados a
nível europeu, a segunda espera a liderança dos sectores exportadores da burguesia
nacional. A primeira solicita a anuência do governo alemão e dirige-se à convergência com o
sector federalista do PS (António José Seguro), a segunda restringe-se à aliança com o
sector mais conservador do PCP e nem sequer inclui o movimento sindical.
Assim, o exercício de debater com a ideia de “um partido-duas políticas” é dos mais bizarros
a que se pode aspirar. Qualquer das alternativas, por si própria, é consistente e tem
argumentos sólidos. Qualquer delas sustenta uma mudança de orientação para as
esquerdas. Mas o que não consigo compreender é como se pode defender ambas ao
mesmo tempo, com o estranho argumento de que, se uma não resultar, queremos a outra.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Se, para nos indicarem o caminho, nos disserem “se não for para a esquerda, vá para a
direita”, ficaremos provavelmente sem orientação. Lamento, mas é o caso: duas propostas
contraditórias é o mesmo que nenhuma proposta.
Pois é, a política não é um menu para contentar toda a gente. A política é uma escolha. E
deve ser levada a sério. Deve ser clara. Deve mobilizar argumentos e convicções. Deve
promover acções. Deve ser forte. É como tudo na vida, ou se vai para um lado, ou se vai
para outro. Como todos sabemos, não convém nada guiar para a esquerda a olhar para a
direita.
E é por isso que não se pode nunca defender algo e o seu contrário. Ou imagine-se o que
seria, na campanha eleitoral recente, o destino de um partido que defendesse
simultaneamente a saída do euro e o Estado Europeu unificado. No debate com Sócrates e
Passos Coelho defenderia a saída do euro e no debate com Jerónimo de Sousa defenderia
o Estado Europeu? Ou seria o contrário? Ou defenderia ambas as alternativas com qualquer
deles? E pediria o voto aos eleitores para quê, se não é indiscrição?
Se me permitem, essa é a velha, experimentada e celebrada estratégia do Estebes, tudo ao
molho e fé em deus. É a política sem política. Porque a diferença entre um analista sério e
um político sério é que o primeiro joga com vários cenários enquanto o segundo escolhe
uma estratégia e compromete-se com ela. Não preciso de argumentar que o Bloco de
Esquerda assume a responsabilidade da política.
2.2. A primeira solução autoritária contra o austeritarismo: o federalismo
Prefiro então discutir cada uma das propostas em separado, pelos seus méritos e não pela
sua estranha amálgama. A pergunta que se tem de colocar por isso é esta: a nova proposta
ajuda a responder à recessão e à austeridade, constitui uma alavanca de mobilização e de
alternativa? Se sim, deveríamos adoptá-la sem hesitação.
Veja-se então a primeira proposta, o federalismo. Segundo esta proposta, se há uma crise
da dívida, a solução estaria na transformação da União Europeia num Estado unificado, com
uma autoridade fiscal única, um governo único e um orçamento único. A saída “por cima”.
Há uma dívida, mas o Estado Europeu que se encarregue dela e que dirija o nosso
orçamento a partir de agora.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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O federalismo é um conceito manhoso mas que, em si mesmo, diz tudo: o federalismo é
uma forma de organização de um Estado, com regiões ou províncias (nos Estados Unidos
ou no Brasil chamam-se estados) com alguma margem de autonomia, mas submetidos a
um poder político centralizado, que decide o orçamento e a política económica e social, que
tem leis uniformes, um exército e uma representação externa. Ou seja, a federação é um
Estado unificado.
É fácil de entender porque é que esta proposta se disfarça com o argumento suave de que
só propõe pequenos passos, com factos consumados, num caminho que não anuncia o seu
destino. O motivo é evidente: não existe qualquer possibilidade de acordo europeu para um
Estado europeu nos tempos de hoje.
E não existe por duas razões. A primeira é que os pequenos passos criam tensão máxima,
como é o caso da actuação do directório, agora um eixo franco-alemão que gravita em torno
de Merkel. Foi com esses pequenos passos que chegamos aqui, e não é bonito de se ver. A
segunda é que nenhuma das burguesias – nem as opiniões públicas – de qualquer dos
grandes países aceitaria a incógnita de um governo europeu. Falta-lhe para isso o
consentimento social e a hegemonia ideológica.
Um governo europeu significaria que a Inglaterra e a França poderiam ser governadas de
Berlim. Impossível. Ou que a Alemanha poderia ter de aceitar um governo liderado por um
primeiro-ministro polaco eleito por uma coligação com os populistas italianos. Inaceitável.
Ou que Portugal, a única nação ibérica que ao longo dos séculos se libertou do reino de
Castela, perderia agora a velha aposta histórica da independência. Difícil, não é?
Evidentemente, a impossibilidade actual de criação deste Estado Europeu poderia não ser
razão para o rejeitar no futuro ou até para não o desejar no presente. A esquerda poderia
defendê-lo como um modelo, como uma estratégia ou, como hoje se diz, como um desígnio.
Mas, pela minha parte, só vejo motivos para rejeitar categoricamente a ameaça de um
Estado Europeu.
Começo pela razão mais circunstancial. Imaginemos que não havia nenhuma resistência,
que o consenso era forte, que o federalismo tinha vencido e que o Estado Europeu era
criado, e que o seu governo era eleito, tudo hipóteses bastante extravagantes. Só que,
como se verificou nas eleições para o parlamento europeu, essa eleição significaria uma
estrondosa vitória da direita européia, incluindo os sectores mais populistas e agressivos.
Em consequência, a capacidade de disputa dos movimentos de trabalhadores reduzir-se-ia,
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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muito em particular nos países onde criaram uma relação de forças que lhes tem permitido
combater por alternativas. Para a esquerda, este cenário seria suicidário.
Mas ignoremos esta objecção. Afinal, se a proposta fosse absolutamente essencial, o
Estado Europeu seria uma conquista da democracia e todos viveríamos melhor com isso, a
longo prazo. Mas é essencial? A Europa beneficiaria desse Estado? A minha resposta é
convictamente que não: um Estado Europeu democrático nunca será democrático. Essa é a
objecção mais importante, porque tem que ver com a natureza da esquerda e com o nosso
compromisso de representação e luta pela emancipação dos explorados.
A União pode ter procedimentos democráticos ou autoritários, e isso faz uma diferença
danada. Nós temos proposto sempre os procedimentos democráticos, e recusado os
autoritários: o sistema actual do directório já é uma das piores características do federalismo.
Ora, o Bloco defendeu sempre referendos sobre cada Tratado (e, já agora, comprometemonos com o “não” ao Tratado de Maastricht, depois ao de Nice, depois ao de Lisboa, e por
fortes razões). Denunciamos os poderes europeus e os governos que conspiraram para
maquilhar um Tratado Constitucional como um Tratado comum, e para o impor sem os
referendos que tinham prometido solenemente. Apresentamos uma moção de censura
contra Sócrates por causa disso, já agora, que fique para registro.
Levamos muito a sério a luta pelos procedimentos democráticos. Sabemos que faz toda a
diferença ter os governos a legislar a partir do Conselho Europeu e da sua Comissão ou ter
controlo parlamentar escrutinável. Faz muita diferença ter a possibilidade de os europeus
decidirem ou manter um poder enclausurado nos governantes do directório.
Mas paremos agora um momento para pensar o que tem sido a nossa luta pelos
procedimentos democráticos. Quanto propomos um referendo em Portugal e queremos que
nesse referendo ganhe o “não” contra o Tratado do directório, estamos certamente a
defender uma solução para a Europa. Somos nisso completamente europeus. Mas fazemolo onde podemos, como podemos e como queremos que a democracia decida a questão –
onde a reconhecemos, em Portugal. Não propusemos um referendo simultâneo em toda a
Europa que decidisse sobre o Tratado, em que o voto do alemão e do polaco valesse como
o da portuguesa, pois não? Não. O povo que reconhecemos para decidir sobre a aceitação
de um tratado por Portugal é o eleitorado português. É com ele que falamos. E é a sua
decisão que aceitamos como legítima, mesmo que a achemos errada e que combatamos as
suas consequências.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
91
A razão para essa definição de legitimidade eleitoral é de importância transcendente para a
esquerda. E é simples. É que a democracia parlamentar foi criada historicamente no EstadoNação, baseada na aceitação social de uma representação legitimada: cada um tem o
direito de voto, há pluralismo, e aceitamos que o partido mais votado representa o Estado e
governa. Este regime é frágil, é manipulável, tem um enorme peso da ideologia dominante e
das fábricas do consenso, não é uma democracia de participação e de acção para o povo,
mas é a parte da democracia que resulta das lutas sociais pelo sufrágio universal e contra a
ditadura, e dela não abdicamos. Ela é um ponto de partida para as lutas, porque é verificável
e disputável pela força que a luta popular criar. É por isso que a democracia representativa
no país é um espaço de confrontação para todos, mas em contrapartida a democracia
européia não existe – existem procedimentos democráticos ou autoritários na Europa, mas
não existe democracia européia como espaço comum de reconhecimento e de legitimidade
unificada.
O federalismo democrático não é por isso democrático, porque exclui os Estados Nação,
que é onde existe a democracia representativa realmente existente. Ainda não há nem
houve qualquer forma de democracia internacional, que tenha como base de sustentação a
legitimação perante um povo global. Faz falta, mas não existe.
Tem escrito Rui Tavares que, se a Merkel governa, devíamos ao menos poder votar nas
eleições que a escolhem. E assim ao nível europeu: se mandam em nós, queremos votar
sim ou sopas. Mas o problema é que esse voto não tem sentido. Não comunicamos com um
alemão, dono de uma cervejaria em Munique, como com uma desempregada em Figueiró
dos Vinhos. Não falamos da mesma história, da mesma cultura, não partilhamos disputas e
diferenças: não podemos decidir em conjunto um governo que nos obrigue a todos, porque,
como dizia Linecker, nesse jogo há duas equipas e no fim ganha sempre a Alemanha. E o
pior é que, quando elegermos o governo do Estado Europeu, sobrar-nos-á um feitor da
província instalado no palácio de S. Bento, a quem poderemos entregar petições. Mas com
ele não discutiremos a lei, os orçamentos, os impostos, a defesa, a política externa, os
serviços públicos. Essa democracia não seria democracia.
Dir-me-ão que, no fim das contas, a Merkel e o Passos Coelho pensam e propõem o mesmo
para a sociedade. Sim, mas a diferença entre ter um governo alemão para a União e ter um
governo português dentro da União, mesmo subordinado e sorumbático, é que podemos
disputar com o segundo e influenciar a política que o determina. Nessa disputa, estamos
nós, o povo.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Mais fundamentalmente, não existe um povo europeu único que se reconheça, existem
povos europeus. Ser português e ser europeu são duas identidades e não uma. E é porque
é ainda nos quadros nacionais que se forma o essencial dos processos de acumulação e
sobretudo a determinação das condições salariais ou seja, a repartição do rendimento, a
exploração e a luta contra ela, que não abdicamos de lutar onde temos poder.
E foi isso mesmo que nós sempre soubemos a respeito da Europa. Que devia ser um lugar
de políticas comuns, incluindo com partilha negociada de soberanias, mas devendo ser
sempre uma convergência de Estados Nação. Toda a política europeísta de esquerda se
baseia nessa convicção forte. A Europa tem de ser a combinação de políticas europeias e
de margens de acção dos Estados nacionais. Queremos reforçar umas e outras, delimitando
o que a União deve fazer: melhor orçamento comum para medidas para pleno emprego, e
também mais capacidade de escolha de cada país na sua gestão financeira, fiscal,
orçamental e social. Tudo bons motivos para recusar o Estado Europeu.
Finalmente, há mais duas razões para rejeitarmos o truque federalista. A primeira é que
qualquer deriva para o Estado Europeu, que será sempre autoritária, multiplica os
nacionalismos – e dispensamos esse pesadelo, porque sabemos como começa, mas não
sabemos onde acaba. Já muitos países da Europa têm direitas nacionalistas radicais a 20%.
O federalismo é o seu alimento. Rejeitar o nacionalismo e cortar-lhe espaço de
desenvolvimento implica, como sempre, que a esquerda quer disputar a hegemonia da
nação, quer construir uma maioria para dirigir a nação. Essa luta pela hegemonia é a razão
de ser da esquerda, e desgraçada da esquerda que dela abdica ou que, pelo contrário, se
torna ela própria nacionalista – acabará, como o PC Grego, a votar sistematicamente com
Le Pen no parlamento europeu. Pode ter votos, como o PC Grego tem, mas o nacionalismo
nunca será a esquerda para a luta necessária. A utopia reaccionária do Estado Europeu cria
os seus anti-corpos e destrói a esquerda em cada país.
A última razão é a coerência conosco mesmos. Deixei essa razão para o fim, porque é
unicamente a nossa própria cultura que está em causa. Mas é um valor importante. Foi
deliberadamente que escrevemos, no “Contrato pela Europa”, que é um dos três textos
fundadores do Bloco de Esquerda, no que defendemos “uma nova perspectiva da esquerda
para a Europa, contra o federalismo” e que o “principal adversário da nossa alternativa de
projecto é o federalismo” que “transforma a Europa numa feira de capitais”. Nesse momento,
chamávamos também a atenção para o significado imperialista da idéia do Estado Europeu:
com ele chegam um exército e um aparelho repressivo unificado. Convenhamos que sem
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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esse exército e sem esse aparelho repressivo não há Estado. Boas razões para
defendermos a democracia contra o Estado Europeu.
Admito que haja quem tenha aprovado esta posição durante dez anos e que agora esteja
arrependido. Ou que pense, estou certo que de forma pensada, que a crise de Portugal é
tão grave que mais vale esta solução do que continuar tudo como está. E não pode
continuar como está. Mas, pergunto: se é o imediatismo do desespero que move a
abdicação da nossa posição de sempre, se é a emergência do desespero que leva à
aceitação do risco de uma Europa como sempre a recusamos, para quê então defender
uma alternativa que não tem qualquer viabilidade?
2.3. A segunda solução autoritária contra o austeritarismo: sair do euro e da União
Européia
Dito tudo isto, a minha conclusão é esta: a idéia federal do Estado Europeu unificado não vai
ter qualquer papel na política portuguesa ou na política européia nos anos que vivemos.
Haverá medidas de reforço do Conselho, da Comissão, do BCE, criar-se-ão fundos comuns
e regras rígidas, vigiar-se-ão orçamentos e políticas, nada que não conheçamos com a
tutela dos credores hoje em dia. Haverá medidas federalistas, os tais pequenos passos com
avanços e recuos, mas não haverá o salto imenso para um Estado Europeu.
Nem as partes da social-democracia que a defendem – e que são alguns partidos quando
estão na oposição, nem todos e nem sempre – terão um protagonismo suficiente para
colocarem na agenda essa solução. Nem ela ganhará credibilidade noutros sectores de
esquerda. Pura e simplesmente, ela não existe no campo das decisões.
A segunda solução, em contrapartida, terá um peso crescente no debate político. A proposta
da saída do euro será persistente, é com ela que nos vamos defrontar. Ela será defendida
por dois tipos de correntes: os economistas que recusam o espartilho do euro e não
encontram outra solução, e as esquerdas que preferem o nacionalismo ao arrastamento da
crise européia. São dois sectores diferentes, com idéias diferentes e propostas diferentes, e
só por diletantismo é que os segundos se refugiam nos argumentos dos primeiros.
Entre os economistas que defendem a saída do euro estão alguns dos seus críticos de
sempre, como João Ferreira do Amaral, em Portugal, ou, mais prudentemente, Paul
Krugman e Nouriel Roubini, nos Estados Unidos. Para estes economistas, já não é uma
questão de escolha, é ou começa a ser uma inevitabilidade. Segundo eles, a espiral
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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recessiva das medidas de ajustamento orçamental tornará a governação impossível, com
aumentos de impostos que já não criam mais receitas, com a paralisia da economia e com a
exaustão das políticas. Por isso, argumentam que só resta a saída do euro como forma de
desvalorizar uma nova moeda e esperar que a economia se reequilibre por via do aumento
das exportações e da diminuição dos salários. Assinale-se que nenhum deles defende a
rejeição da dívida, antes esperam ganhar algum tempo para pagar a dívida de outra forma,
com os saldos comerciais. E todos aceitam que os trabalhadores devam pagar o
ajustamento com a redução dos salários. Há nisto bons e maus argumentos, como escrevi
atrás a respeito do euro como factor da crise, mas também soluções irrealistas e que não se
preocupam com a política que as aplique. Sobretudo, é uma resposta indiferente à
economia que afecta as pessoas e que propõe uma austeridade salarial permanente.
Além disso, esperar que a União financie a saída do euro ou que os mercados financeiros
mantenham uma atitude de neutralidade perante a nova moeda é comoventemente ingênuo.
Tudo vai da aposta: um governo de direita que fizesse esta operação com o intuito de
provocar uma redução acentuada e permanente dos rendimentos dos trabalhadores poderia
obter algum apoio da finança internacional, mas é duvidoso que este se mantivesse perante
as medidas drásticas que, neste contexto, se tornam necessárias.
Vamos então ver como se aplicaria a saída do euro, e convocar agora os sectores de
esquerda que, ao contrário dos economistas anteriormente citados, são forçados a defender
a sua proposta a partir de um ponto de vista que considere a vida dos trabalhadores.
Comecemos pelo princípio, pela decisão de criar uma nova moeda, vamos chamar-lhe o
escudo. O governo, perante as dificuldades económicas, decide sair do euro e passar a usar
o escudo como moeda nacional (ou, o que é o mesmo para os efeitos económicos e sociais,
é expulso do euro). Manda então imprimir em segredo as notas e prepara-se para anunciar
a grande novidade, numa 6ªf à noite, à hora do telejornal, quando os bancos já estão
fechados. Nesse fim-de-semana, todos os bancos fazem horas extraordinárias para
distribuir as notas por todos os multibancos, para que a nova moeda possa estar em
circulação na 2ªf.
O problema é que esta operação envolve milhares de pessoas, que transportam e
distribuem as notas, e eles vão contar às suas famílias. E, de qualquer modo, toda a gente
assistiu nas semanas anteriores a declarações dos ministros a explicar que isto vai muito
mal e precisamos de decisões muito corajosas para salvar a Pátria em perigo. Em resumo,
toda a gente percebeu o que vai acontecer.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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O que farão então as pessoas? Não é preciso adivinhar: vão a correr aos bancos levantar
todas as suas contas e guardar as notas de euros. Se não o fizerem, todas as suas contas e
poupanças vão ser transformadas em escudos, a um valor nominal que cairá com a forte
desvalorização que, afinal, é o objectivo desta operação. Ou seja, as poupanças vão ser tão
desvalorizadas como a moeda em que passam a estar registradas.
Ora, os bancos não querem pagar aos clientes todos os seus saldos e poupanças, porque
esta corrida irá arruiná-los. Não querem nem podem, pois simplesmente não têm o dinheiro
para isso – nem há notas suficientes para cobrir toda a massa monetária líquida que existe
em Portugal e os bancos aplicam os depósitos e não guardam esse dinheiro. Os bancos vão
por isso fechar as portas quando se generalizar o alarme, e o governo vai chamar o exército
para guardar os edifícios. Foi assim na Argentina, foi assim em todos os casos em que se
anunciaram desvalorizações brutais (e nem se tratava de sair de uma moeda e criar outra, o
que nunca aconteceu na história da União Européia), e não pode deixar de ser assim.
A esquerda que defendeu a saída do euro começa então a ter a primeira dificuldade. É que
vai defender o exército e os bancos contra a população. E vai ter de fazer a sua primeira
vítima, os depositantes nos bancos. Contas certas: se a desvalorização for de 50% (Ferreira
do Amaral calcula em 40%, outros em bastante mais), então as poupanças e depósitos dos
trabalhadores vão perder metade do seu valor.
Passou assim o primeiro choque. Mas vem aí mais, e pior. O escudo desvalorizou-se então
50% em relação ao euro. O governo e a esquerda nacionalista esperam que o efeito
benéfico seja o seguinte: as exportações tornam-se mais baratas (porque os salários e os
inputs produtivos ficam mais baratos) e aumentam, enquanto as importações tornam-se
mais caras e são portanto reduzidas. Assim, haverá uma deslocação de capital para as
indústrias e serviços exportadores, e uma redução do consumo e das importações, tudo
melhorando substancialmente a balança de pagamentos. A regra é esta: se a vida melhorar
para o Amorim, o dono da maior multinacional industrial portuguesa, também melhorará
para toda a economia.
Parece conveniente, mas é um problema. É que, com a desvalorização, o preço dos
produtos importados aumenta no mesmo dia. O combustível passou a custar uma vez e
meia o seu preço anterior (e todo o sistema de transportes também), e o mesmo aconteceu
com os alimentos importados. Como dois terços do rendimento dos portugueses é para o
consumo, imagina-se o efeito imediato destes dois aumentos de preços. Já por este efeito, o
salário passou a valer muito menos.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Quanto às exportações, sim, vão aumentar, desde que os compradores no estrangeiro
queiram comprar mais em função da redução do preço (e desde que não haja recessão no
estrangeiro, e que os produtos portugueses correspondam a mercados com procura
crescente, e que as suas características acompanhem as exigências dos consumidores
estrangeiros, etc.). Aumentam, mas devagar: as receitas das vendas só entram quando se
fizerem as vendas, e é preciso esperar o tempo da produção e até do aumento da
capacidade produtiva. Depois, uma parte do que exportamos, mais de metade, é importada
e esses produtos ficaram mais caros. Por isso, as receitas das exportações aumentam
pouco, devagar e mais tarde.
Chega depois o segundo choque. Metade das famílias portuguesas tem uma longa dívida ao
banco, que lhe emprestou dinheiro para comprar a casa. Emprestou em euros. E das duas,
uma: ou, no dia da saída do euro, o governo aceita o que os bancos querem, que é que esta
dívida seja considerada ao seu valor real, que é o do escudo desvalorizado, ou decreta,
para proteger os devedores, que a dívida é transformada em escudos ao valor anterior à
desvalorização. A diferença é decisiva tanto para os devedores como para o banco.
No primeiro caso, os devedores multiplicam a sua dívida. Imaginemos quem tinha 50 mil
euros de dívida, convertidos, ao escudo desvalorizado, numa dívida de 15 mil contos. Se o
seu salário era de 1000 euros (que passa a ser de 200 contos… que valem só 500 euros) e
se usava metade para pagar ao banco, precisava antes de 100 meses inteiros, com a corda
ao pescoço, para pagar a dívida. Agora, precisará de 150 meses com as mesmas
dificuldades, dando metade do seu salário ao banco. Perdeu cinco anos de vida.
No segundo caso, em que o governo defende os devedores, quem tinha uma dívida de 50
mil euros passa a ter uma dívida de 10 mil contos… que valem 25 mil euros. O banco
perdeu metade. O problema é que o banco vai à falência, porque criou um buraco
gigantesco no seu balanço. É por isso que os defensores da saída do euro explicam,
honestamente, que será necessário nacionalizar então todos os bancos, não tanto para
socializar o capital financeiro, mas antes para o salvar. E salvar um banco custa muito,
como já sabemos pelo caso BPN. Porque, quando se nacionaliza um banco, fica-se com as
suas dívidas, que são dívidas a quem nele depositou e dívidas a quem lhe emprestou
dinheiro, normalmente a banca estrangeira. Ora, essa dívida está em euros, mas o banco,
falido e nacionalizado, vai receber as suas receitas e depósitos em escudos desvalorizados,
para continuar a fazer pagamentos em euros. A sua dívida ao exterior subiu 50% do dia
para a noite. Salvar os bancos tem um custo, e não é pequeno: é preciso pagar.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Aqui temos a esquerda nacionalista a defender a banca e a pedir aumento de impostos para
financiar a banca internacional. O trabalhador, cuja dívida foi protegida, tem de pagar por
outra via, que são os novos impostos. Claro, os porta-vozes desta esquerda nacionalista
podem dizer-me o governo deve simplesmente declarar que não paga as dívidas
internacionais dos bancos que nacionalizou – mas, desculpem, de que governo concreto é
que estamos a falar? Não era de Portugal, 2011? Estão à espera de pedir a nacionalização,
se a desvalorização provocou o colapso dos bancos, e depois de apresentar como solução
o corte com os credores externos, e esperar ao mesmo tempo ter um mercado aberto para
as exportações que vão salvar a economia? Em resumo, a socialização do capital e ao
mesmo tempo a aliança com os projectos exportadores de Amorim que sejam bem
acolhidos em todo o mundo?
Faço aqui um parêntesis para tornar clara a minha opinião numa questão ideológica: sim,
estou certo de que a nacionalização do sistema financeiro é uma necessidade estratégica
para a política socialista, porque o sistema de crédito deve ser um bem público. E estou
também certo de que um governo de esquerda terá de enfrentar a resistência do capital
financeiro, que é o seu principal adversário, e pode por isso ser forçado a um imperativo
realista mesmo que inconveniente de nacionalização em más condições. Mas não deixo de
pensar que deve fazer tudo o possível para ter as melhores condições, nomeadamente a
nível internacional. O não isolamento internacional é uma questão de vida ou de morte para
um governo socialista.
Em todo o caso, para vencer é preciso ter a força necessária e, para que seja possível ter
um sistema de crédito público que funcione, é preciso um tempo certo para uma política
vencedora contra os especuladores. Ora, entendamo-nos bem, nenhuma das actuais
discussões sobre a saída do euro é acerca de um hipotético governo de esquerda e desse
tipo de situação. Por isso mesmo, o que importa agora são as relações de forças concretas,
as que existem agora e as que podemos criar no contexto de uma resposta social muito
mais forte contra a ditadura da dívida. É o que podemos fazer e o que vamos fazer, não um
romance de ficção política. Fim de parêntesis.
Voltemos agora aos problemas que a nossa esquerda nacionalista está a viver no apoio ao
governo que decidiu a saída do euro. Já tem contra si quem vai pagar mais impostos ou viu
multiplicar as suas dívidas, e paga mais pelos alimentos e pelos transportes, ou perdeu
parte das suas poupanças. Com tudo isto, os trabalhadores depressa perceberão que
perderam parte do seu salário (ou da sua pensão), e que o esforço orçamental não diminuiu
(pelo contrário, agravou-se, pois a dívida vai ser paga em euros, mas os impostos são
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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recebidos pelo Estado em escudos), e a saúde e a educação têm novos cortes. Por tudo
isso, o trabalhador vai lutar por recuperar o seu salário.
Ora, isso pode deitar tudo a perder, dirá o governo. As exportações são mais baratas porque
o escudo vale menos, o produto ficou mais barato, e porque as empresas pagam os salários
em escudos. Se os salários subirem, a competitividade é de novo prejudicada. Que vai fazer
a nossa esquerda nacionalista perante o protesto justo dos trabalhadores?
A resposta é simples: não há problema, argumenta um dos arautos da esquerda
nacionalista, basta um milagre, reúne-se a concertação social e convencemos os patrões a
aumentarem os salários, compensando assim os trabalhadores pelo que perderam com a
desvalorização. Imagine-se essa reunião da concertação: o país em alvoroço, motins à porta
dos bancos, impostos e preços a subir, inflação de novo, salários a descer, e os patrões
oferecem-se para sacrificar os seus lucros em favor do trabalho. A hipótese é tão
interessante que dispensa argumentação.
Por outras palavras, a esquerda nacionalista que defende a saída do euro meteu-se numa
alhada monumental. Queria impedir a continuação da austeridade e nisso tinha toda a razão,
mas propõe um sistema de mais austeridade, toda orientada para o benefício de um sector
social, a burguesia exportadora, e aceitando a queda dos salários com a desvalorização do
escudo. Não resolveu nenhum problema e só criou novas dificuldades. E perdeu a
capacidade de uma orientação socialista, porque não pode ser levada a sério pelos
trabalhadores que está a prejudicar.
A política socialista tem um critério que é o da defesa da classe trabalhadora. Essa política é
a que defende o salário e se bate por ele, e não a que sacrifica o salário e favorece a
exploração. A solução autoritária de saída do euro é a proposta de mais austeridade.
3. O EUROPEÍSMO DE ESQUERDA É A REFERÊNCIA DA POLÍTICA SOCIALISTA
Rejeito por isso estas duas propostas, o federalismo do Estado Europeu e o nacionalismo
da saída do euro. Ambas procuram responder ao agravamento vertiginoso da crise mas
conduzem a políticas autoritárias e austeritárias, que agravam a crise. Ora, porque a crise
se precipita mesmo, isso não dispensa a análise e a correcção da nossa política.
Sugiro que a nossa reflexão sobre a resposta necessária comece pelo princípio, pela
natureza da crise que enfrentamos.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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3.1. Depois de trinta anos de crescimento medíocre
A Segunda Guerra Mundial foi um momento culminante do século XX. Gerou massacres
horrendos, de Auschwitz a Hiroxima. Mas, do ponto de vista da economia, foi também um
processo de destruição radical de forças produtivas, trabalhadores e capital. E foi essa
destruição que abriu as portas à reconfiguração do capitalismo moderno, a uma nova
organização das potências, à estruturação de uma nova ordem monetária assente no dólar
e, nos países mais desenvolvidos, à promoção do consumo de massas assente na
generalização da produção em série. Foi somente com essa destruição gigantesca e com a
reorganização que se lhe seguiu que se encerrou a grande crise de 1929.
Vale a pena, então, registar um dado sobre esta crise: a recuperação da economia já então
dominante, a dos Estados Unidos, demorou 25 anos – só em 1954 é que as Bolsas voltaram
aos seus níveis anteriores ao crash. E foi precisa uma guerra e a definição de um novo
mundo para que tal recuperação fosse possível. A chave da recuperação foi precisamente
essa destruição massiva de forças produtivas e a configuração de um novo mundo para a
acumulação de capital.
Foi assim possível criar novos sectores industriais de crescimento rápido, novos mercados
financeiros, novas multinacionais. Já assim acontecera no passado: o capitalismo industrial
moderno tem-se desenvolvido por ondas longas, umas de crescimento e outras de crise,
que duram décadas, e que definem a pulsação do processo de acumulação. Nos períodos
longos de crescimento (como 1945-1974), as crises são raras, breves e superficiais,
enquanto nos períodos longos de crise são frequente, duradouras e intensas (1974 até hoje).
Em cada uma destas épocas do capitalismo a sua estrutura adapta-se. O impulso que a
electrificação tinha dado à indústria e o papel motor da siderurgia, desde o final do século
XIX, deu lugar ao novo impulso da motorização, dos derivados de petróleo e da química fina
no período posterior à 2ª Guerra Mundial. Esse novo modelo produtivo constitui-se no
quadro de novas relações sociais, de um novo contrato entre o trabalho e o capital, com
regras que faziam do salário dos trabalhadores uma parte importante do consumo dirigido
às empresas. Às constelações de novas tecnologias de produção em massa correspondia
um arranjo institucional com o contrato de trabalho e um salário indirecto importante, através
do acesso à segurança social e à saúde. Foi pelo crescimento da procura que se criaram os
mercados de massas em que cresceu a economia capitalista durante os Trinta Anos
Gloriosos do pós-guerra.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Este sistema funcionou sem dificuldades de maior durante essas três décadas. Depois,
esgotou-se, sendo o seu fim marcado pela segunda recessão generalizada do século, a de
1973-4. A partir daí, perdeu-se esta conjugação fácil entre o modo de funcionamento da
produção e as suas instituições sociais, o impulso tecnológico esgotou-se, a margem de
lucro fora reduzida sistematicamente e a acumulação e o investimento foram por isso postos
em causa. Seguiram-se algumas décadas de crescimento medíocre, com recessões
intensas e frequentes (1973-4, 1981, 1993, 2003, 2008-9). A rentabilidade do capital
recuperou muito lentamente, mas a acumulação manteve-se a níveis excepcionalmente
baixos.
Essa é a situação actual. A criação de enormes mercados financeiros é a característica
desta nova época do capitalismo – a que se tem chamado de “capitalismo tardio” – e em
que os capitais disponíveis são colocados na especulação e não no investimento, gerando
um sempre crescente “capital fictício”, como lhe chamava Marx, e que procura
rentabilidades garantidas. É isso que explica tudo o que temos conhecido, desde a tentativa
de privatizar a segurança social até às parcerias público-privado.
Para relançar o crescimento, a burguesia procura criar uma nova economia com um novo
regime social: a precarização da relação do trabalho, ou seja, o fim do contrato, para se
adequar ao uso pleno dos novos sistemas de tecnologias de produção sofisticada com
trabalho barato, o aumento da mais-valia absoluta (mais tempo de trabalho e menos salário)
e a diminuição do salário indirecto (custo dos serviços públicos essenciais). Mas esse novo
regime requer uma derrota fundamental do movimento popular que, apesar de muito
desgastado por um prolongadíssimo desemprego estrutural, ainda tem capacidade de
combate.
É nele que nos apoiamos, ele é a nossa política realista. Está tudo em jogo. Bem sei que,
como dizia Warren Buffet, o segundo homem mais rico do planeta, “há uma luta de classes,
e é a nossa classe que está a ganhar”. Mas a nova sociedade ainda está a ser definida, e
verdadeiramente o que mais surpreende, do ponto de vista histórico, não é tanto o seu
avanço mas sim a extraordinária dificuldade que tem tido em se impor. Os 1% não
conseguiram esmagar os 99% porque estes, quando a convocam, têm a força da
democracia.
Como os 1% têm mais poder, é contra eles que se deve dirigir o combate: a política da
direita e da burguesia é desvalorizar o salário, a dos trabalhadores é desvalorizar o capital e
defender o salário. O nosso confronto é com a finança, que é a dona da dívidadura. É
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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verdade, é um combate de época. E é por isso que não precisamos de ideias que dividem a
frente da luta popular e criem confusão. Precisamos de clareza e mobilização. Precisamos
agora, e não amanhã, de aliança grande para a luta pelo salário – a esquerda grande.
3.2. Europeísmo de esquerda e a luta contra a dívidadura
Neste quadro, o que é que podemos fazer? Não podemos, ou não devemos, na minha
opinião, alimentar o sonho reaccionário de um Estado Europeu – antes devemos combatê-lo
– e não podemos nem devemos favorecer as ilusões nacionalistas de um rearranjo
imaginário de alianças com o capital nacional para conduzir o país a uma solução autárcica,
que devemos recusar. Pelo contrário, devemos propor soluções européias, que não
desistam do que é essencial: uma aliança européia de esquerdas políticas e sociais para a
luta contra a austeridade.
Começo por isso pelo mais difícil, que é a Europa. Bem sei que, desde o definhamento dos
Fóruns Sociais Europeus, não se tem conseguido refazer um dispositivo mínimo de resposta.
O Partido da Esquerda Européia é muitíssimo limitado, como outras redes em que
participamos; nunca conseguimos concretizar a nossa proposta de um grande congresso
dos movimentos sociais e políticos europeus; e os partidos de esquerda do Norte da Europa
receiam os efeitos eleitorais de defenderem o povo grego contra o estrangulamento da
dívida e nem querem ouvir falar de uma greve européia.
Devemos por isso explorar, com os nossos aliados, a ideia de recuperar o Fórum Social –
ou de abrir as portas a uma nova forma de rede global –, talvez de o reunir em Espanha,
com os movimentos dos Indignados, para lançar uma agenda europeia para a luta contra a
austeridade. E, com eles, manter os objectivos essenciais que definem o europeísmo de
esquerda que temos vindo a defender:
A obrigação do BCE comprar dívida soberana de cada Estado,
O lançamento de obrigações europeias mutualizando parte da dívida,
A desvalorização do euro para aliviar as economias,
A tributação do capital e o fim dos offshores,
O reforço do orçamento europeu para um plano de criação de emprego,
A reestruturação imediata da dívida da Grécia, em prejuízo dos bancos credores.
Não será fácil criar movimento com estes objectivos políticos. Mas, hoje, as possibilidades
são maiores do que há um mês atrás. São essas possibilidades que nos interessam e acho
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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que devemos levar muito a sério, dedicando esforços sérios para que esta orientação se
concretize. Não tenho dúvidas de que podemos e temos de fazer mais neste sentido.
Mas o que dizemos sobre a Europa, para ser realista e como sugeri atrás, é proposta, é
convite e aproximação a outras esquerdas, mas não é certamente onde temos a maior
capacidade de confronto político. Onde temos mais força é no que depende de nós. Se for
possível ter um fórum europeu de algum tipo, que junte movimentos e que crie agenda
política, então avançaremos para um patamar novo, como queremos. Em todo o caso, essa
perspectiva não interfere com a nossa disputa taco-a-taco com o governo e o plano da troika,
a dívidadura.
E é nela que temos de acertar posições.
Em primeiro lugar, rejeitamos a idéia de que não existem alternativas ao plano da troika. E
devemos tomar a contra-ofensiva nesse campo. Já é possível fazê-lo porque a vertigem da
mudança da percepção popular é estimulada por esta violência orçamental do corte dos
subsídios de férias e de Natal. Depois do 15 de Outubro e da convocação da greve geral
CGTP-UGT, a situação começa a mudar. Exige-se por isso mais ofensiva, sacudir a letargia
social, ganhar iniciativa. Assim, o nosso argumento deve ser:
Portugal precisa de recusar o plano da troika, porque ele significa empobrecimento e
desemprego para no fim ter mais dívida. O fim da tutela da troika é a condição para a
democracia poder decidir. Toda a política depende de aceitar ou recusar a troika. É
ela que define todo o nosso quadro de diálogos, convites e alianças.
A alternativa imediata é recuperar a capacidade de criação de moeda, e o Estado
pode fazê-lo através do banco público, da capitalização da CGD e do efeito
multiplicador que pode ter uma injecção de liquidez em investimento para o emprego,
criação de novas indústrias, exportações e sobretudo substituição de importações.
Essa liquidez não deve ser usada em crédito ao consumo ou à habitação, porque assim se
criaria mais dívida, e devia ser gerida por um banco da CGD para o fomento industrial. Esse
é o estrangulamento imediato da economia portuguesa e é assim que se pode vencer a
crise, com a criação de emprego.
Uma palavra mais sobre a criação de moeda. Esta é uma alternativa concreta à saída do
euro e à desvalorização do escudo, e tem a enorme vantagem de não atingir os salários e
rendimentos do trabalho, permitindo pelo contrário o aumento da actividade económica com
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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custos de crédito mais baratos, orientados para a produção e portanto com mais
possibilidade de equilibrar a balança externa.
Devemos apresentar um plano para o emprego, indicando os sectores em que é
possível desenvolver a economia: criar emprego em novos sectores estratégicos,
investimento público, reduzir em meia-hora o horário de trabalho, proibir as
demissões em empresas com resultados, etc.
Defendemos, como sempre, uma revolução fiscal que se baseie na tributação do
capital e do dos valores elevados de patrimônio. Mas podemos e devemos levá-la
mais longe.
Em segundo lugar, e porque a apresentação de alternativas deve conduzir ao confronto
social, é na luta contra a dívida que nos devemos concentrar. Assim, sugiro a seguinte
orientação:
A idéia da renegociação da dívida deve assumir uma forma mais concreta:
reestruturação. Ou seja, anulação de uma parte da dívida. A proposta, que tinha
razão e ganhou força, é até cada vez mais apoiada por economistas diferentes, e
mesmo por políticos de outras opiniões. Mas já está em segundo plano, porque
respeita mais ao argumento do que ao movimento.
No movimento social e na disputa directa, o centro deve ser a auditoria à dívida. E
toda a clareza: a auditoria faz-se para recusar toda a dívida abusiva. Isso mesmo,
serve para recusar pagar a dívida abusiva. Esse é o “não pagamos” que tem
coerência. Atacar os credores onde eles são mais fracos, porque culpados. Exemplos:
•
Nas últimas emissões de dívida, foram cobrados juros acima dos custos reais,
em função de taxas punitivas e especulativas. Recusamos essa dívida, que
serão alguns milhares de milhões de euros, e não pagamos.
•
As contrapartidas de material militar foram anuladas pelo credor, que era o
Estado português. São quase 3 mil milhões de euros que foram perdidos sem
caso judicial.
•
A dívida dos 78 mil milhões paga 30 mil milhões de juros. Quase 20 mil
milhões são juros abusivos. Etc.
Um novo parêntesis aqui: a proposta de “suspensão” do pagamento da dívida é uma
solução envergonhada, que devemos recusar. Aliás, é um disfarce de uma proposta que
não tem a coragem de se enunciar: como explicou a FER recentemente em reunião interna
do Bloco, é uma forma pusilânime de dizer “saída do euro”, mas sem o dizer. A “suspensão”
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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é, por outro lado, uma imitação mal pensada das alternativas latino-americanas: a Argentina
suspendeu o pagamento da dívida e fez muito bem, porque pagava uma dívida excessiva a
credores que já não lhe emprestavam há mais de um ano. Mas esse não é o caso português.
Na realidade, o Estado português não está agora a pagar dívida – é o plano da troika que
paga a dívida toda, e só dentro de uns anos Portugal começa a pagar essa dívida reciclada.
Por isso, a “suspensão” não suspende nada e tem medo de dizer o que é preciso, que há
uma dívida que não deve ser paga. A “suspensão” uma resposta direitista que devemos
recusar. Fim de parêntesis.
Temos de virar o debate sobre a dívida. E falar também da outra dívida. É o mais
difícil, mas é o mais importante, porque aponta o alvo que importa, o capital
financeiro. Falamos por isso da dívida que importa: o que eles nos devem, o que o
capital deve aos contribuintes, aos trabalhadores, ao povo:
•
O que levaram nas privatizações abusivas dos monopólios naturais e bens
públicos,
•
O que transferiram para offshores sem pagar imposto (6,6 milhões por dia
este ano),
•
Os dividendos e lucros que se fizeram pagar quando eram financiados pelo
Estado,
•
Os impostos por pagar, particularmente da banca,
•
O que gastaram nos submarinos e outras despesas injustificadas,
•
O que querem receber das parcerias público-privado, a grande fatia da dívida
escondida do Estado.
Essa dívida não pode sair do nosso discurso, ela é o centro da luta contra a dívidadura.
Esta orientação tem uma idéia nuclear: sim, chama-se resistência. Mas, se a única
alternativa à resistência que quer criar movimento social é procurar uma fantasia – o
nacionalismo, o capital exportador, ou o federalismo de António José Seguro – então é
preferível mesmo fazer resistência. Como sempre, empenhamo-nos na resistência com uma
perspectiva européia e procuramos pontes para que ela seja luta européia. E, no plano
nacional, não aceitamos o acantonamento de resistência de trincheira, porque queremos
que seja alternativa de governo, proposta de liderança para o país, luta global, acção
imediata, presença de rua.
E, se é política a sério, discutamos que interessa na política: as alianças. O federalismo
serviria para nos juntarmos ao PS. Mas, com franqueza, que diferença haveria então entre
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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essa esquerda e as imposições autoritárias da Merkel com o “semestre europeu”? Como
poderíamos recusar a submissão dos orçamentos nacionais à inspecção e decisão de
Berlim, que afinal é o modelo desejado do Estado federal? Quanto ao nacionalismo, juntarnos-ia com o PCP, que por agora ainda mal balbucia a idéia da saída do euro, com pés de
lã, porque sabe o temor que isso provoca entre os trabalhadores, escaldados de
desvalorizações e inflações. E juntaria ainda alguns economistas respeitáveis. Os principais
beneficiários dessa estratégia, o capital exportador, fogem certamente da idéia como o
diabo da cruz. Isto é, não serve para nada senão para dar voz ao desespero.
Em contrapartida, uma plataforma de luta contra as medidas de austeridade permite falar
com a maioria destes sectores, junta todos, de franjas do PS ao PCP, ao movimento sindical,
aos indignados da rua. É nessa luta, e só nela, que se pode erguer o nosso objectivo
estratégico: punir o capital, defender o salário.
A greve geral que foi hoje convocada é uma boa prova provada desta política. Ela não tem
como objectivo qualquer sonho do Estado Europeu, nem muito menos a exigência da saída
do euro. Nem podia, pois não? Tem a plataforma sensata que junta mais gente, a da
rejeição dos cortes dos subsídios ou dos aumentos dos impostos, a defesa do salário e de
uma política de emprego. Chama-se resistência e responde pelo país – é a luta pela
hegemonia e cria acção social.
É nessa acção que se aprende e que se erguem alternativas. Como dizia alguém, é sempre
da prática que vêm as idéias justas. Vamos à luta.
Fonte: www.sin permiso.info
17/10/2011
ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
Outros Temas
O TERREIRO E A CIDADE:
Ancestralidade e territorialidade nas disputas pelo espaço público56
THE YARD AND THE CITY:
Ancestry and territory in dispute of public space
Ronaldo Sales Jr.
Universidade Federal de Campina Grande
Resumo
Os movimentos sociais negros incorporam em suas narrativas políticas as comunidades
religiosas de matriz africana como parte das lutas de emancipação negro-africana no Brasil.
A identidade “negro-africana” articula as diversas identidades sociais, políticas ou religiosas
do campo afro-brasileiro. A ancestralidade, como relação entre “negritude/africanidade”,
converte-se em lugar de uma tensão inerradicável, conformando as demandas das
comunidades religiosas afro-brasileiras como religiões “territoriais” em sua luta pelo uso do
espaço urbano. O “retorno à África” é um modo de territorialização diaspórica do espaço
urbano, influenciando a organização política dos grupos religiosos, a formulação de suas
demandas sociais e a implantação das políticas públicas. Contudo, a construção dessas
demandas e das políticas se dá fortemente influenciada pelos discursos políticos dos
movimentos sociais negros e do Estado. A demanda política das religiões não é a mera
56
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor Adjunto I da Universidade Federal
de Campina Grande. E-mail: [email protected].
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expressão política de sua "natureza territorial", muito menos, a formulação e a implantação
das políticas são a mera transferência dessa demanda para o campo do Estado. Há
transformações significativas que ocorrem nos percursos de constituição da representação
política de uma identidade religiosa, transformações que têm um efeito de feedback sobre
essa última.
Palavras-chave: relações étnico-raciais, ancestralidade, movimentos sociais negros,
espaço urbano, políticas públicas.
Abstract
Black social movements involve religious communities of African origin in their political
narratives as part of the Black-African emancipation fight in Brazil. Black-African identity
engages several social, political and religious identities, from the Afro-Brazilian field.
Ancestry considered as a relationship between being black and having African origin
becomes an ineradicable tension, making the demands from afro-Brazilian religious
communities “territorial” religions in their fight for urban space. The “return to Africa” is a form
of diasporic territorialisation of the urban space, influencing the political organization of
religious groups, the formulation of their social demands and the implantation of public
politics. However, the formation of such demands and of politics is strongly influenced by
political speeches of the black social movements as well as by the State. The political
demand of religions is not a mere political expression of its “territorial nature”, nor is their
formulation and implantation a mere transfer of such demand to the field of the State. There
are relevant transformations that occur during the constitution of political representation of a
religious identity, transformations that have a feedback effect over the transformation.
Keywords: Race and ethnic relations, Ancestry, Black social movements, Urban space,
Public politics.
1. INTRODUÇÃO
Na primeira metade do século XX, no Brasil, durante o período de crise da recém-formada
República brasileira, consolidou-se, através do “mito das três raças” e do “mito da
democracia racial”. Um projeto hegemônico que alcançou a capacidade prática e imaginária
de transcender o horizonte de uma determinada classe ou grupo social, interpelando, assim,
uma vontade coletiva nacional-popular, como protagonista de um efetivo drama histórico: o
povo brasileiro, fruto da miscigenação, do sincretismo, da mistura cultural.
O movimento modernista e, em especial, o regionalista propunham uma reforma cultural
como expressão do nacional-popular, da cultura popular. Nestes autores ou artistas
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
108
(Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado,
Câmara Cascudo...), o projeto nacional passava por uma recomposição popular. Foi neste
contexto que a cultura afro-matricial foi transformada em cultura popular ou folclore, e, só
então, em cultura brasileira. Foram sublinhadas as redes de intercâmbio, empréstimos,
condicionantes recíprocos, redefinidas fronteiras e identidades. O popular era definido por
uma série de características internas e por um conjunto de conteúdos tradicionais,
anteriores à industrialização e à massificação da cultura.
Na folclorização, ocorre a redução 1) da diversidade das culturas populares (afro-matriciais,
indígenas, nordestinas...) à unidade da “arte”, da “música” e da “culinária” nacionais; 2) dos
processos sociais (p. ex. relações raciais) aos objetos ou aos produtos que adquiriram em
épocas passadas. Portanto, a cultura afro-matricial, como cultura popular, é associada ao
não-moderno e “museificada”, congelada no tempo, ou atualizada, “modernizada” como
cultura brasileira. Separa-se, assim, numa oposição político-cultural, o popular, “tradicional”,
fixo, ultrapassado, particular, pura memória ou sobrevivência, do erudito, “moderno”,
dinâmico, ultrapassagem, universal, puro progresso ou vivência.
No campo político, o populismo converge com esta tendência acadêmica ou intelectual. A
concepção “estatista” do populismo varguista buscou fazer com que as classes ou grupos
acreditassem que o Estado condensa os valores populares ou nacionais, conciliando os
interesses de todos e arbitrando seus conflitos.
A cultura brasileira se tornou o grande espaço de integração subordinada do “negro”.
Primeiramente, não foi toda e qualquer expressão cultural, mas, sobretudo, a cultura popular
ou não-erudita, em especial, as formas que utilizam expressão não-verbal, como as artes
plásticas, a dança e a música que foram “incorporadas” ao patrimônio cultural brasileiro.
Essa forma de integração foi reforçada pela participação do “negro” em esportes
importantes para a cultura e identidade nacionais como o futebol. Estes processos
permitiram valorizar a contribuição do “componente” negro para a cultura nacional, mas
fechando o acesso a formas de discurso verbal (e escrito) próprias aos espaços públicos de
deliberação e intervenção políticas. A integração subordinada das pessoas negras se deu
pela “espetacularização do corpo negro” nos espaços públicos politicamente “neutros”, pelo
menos nos moldes da política estatal moderna. A população negra tinha acesso ao palco,
mas não ao palanque.
Todavia, as forças de emancipação negra buscaram fazer da cultura o espaço da
resistência e da luta contra-hegemônica (inclusive, questionando as formas modernas de
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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fazer política, centradas no lingüístico57), numa verdadeira guerra de posição, na religião
(sincretismo católico e afro-brasileiro), na música (reggae, hip-hop, maracatu, MPB...), na
capoeira... 58 As expressões da cultura popular negra não são, necessariamente e
intrinsecamente, formas de resistência contra o poder, ou manifestações contrahegemônicas, mas podem ser simples recursos populares para resolver seus problemas ou
organizar suas formas de vida à margem ou nos interstícios do sistema hegemônico, sem
colocá-lo em questão, ou, enfim, podem representar, sobretudo, a ambigüidade, o caráter
não resolvido das contradições e antagonismos das classes ou grupos subalternizados,
modalidades de auto-afirmação conservadora (populismo, interesses corporativistas,
fundamentalistas ou tradicionalistas). Os movimentos de afirmação da cultura negra, ao
afirmarem o que há de negro na cultura, misturam o autônomo com a reprodução da ordem
imposta, não podendo ser situados no quadro de uma polarização extrema usada apenas
para apontar confrontações, antagonismos. É esta “passagem para o político” ou “decisão
ética” que rearticula os elementos demarcando novas fronteiras sobre a superfície dos
corpos.
A resistência é, pois, árduo processo de reelaboração do próprio e do alheio, de seleção e
combinação, para se proteger e se desenvolver em condições que os grupos
subalternizados não controlam. Tal processo exige, freqüentemente, transações entre o
hegemônico e o subalternizado. 59 No plano ideológico, a transação aparece como a
tendência a incorporar e valorizar positivamente elementos produzidos “fora” do grupo
(critérios de prestígio, hierarquias, desenhos e funções dos objetos), sem questionar o
sistema de dominação. Por vezes, a transação é uma forma de obter certa reciprocidade
dentro da subordinação, sendo tão assimétrica que supõe não apenas o não
questionamento, mas, sobretudo, a aceitação da problemática e sua “solução” nos termos
estabelecidos pelo discurso hegemônico. As próprias identidades, sendo relacionais,
acabam por depender do processo de transação. Por outro lado, este processo pode se dar
uma afirmação essencialista dos elementos “internos” ao grupo (ancestral, tradicional,
próprio, “africano”, “negro”), excluindo tudo que há de “estranho”. É neste duplo registro, ou
como o chama Gilroy (2001), nesta dupla consciência, que se efetiva uma política de
57
“A música, o dom relutante que supostamente compensava os escravos, não só por seu exílio dos legados
ambíguos da razão prática, mas também por sua total exclusão da sociedade política moderna, tem sido refinada
e desenvolvida de sorte que ela propicia um modo melhorado de comunicação para além do insignificante poder
das palavras – faladas ou escritas” (GILROY, 2001: 164).
58
“Não é nada novo declarar que para nós a música, o gesto e dança são formas de comunicação, com a
mesma importância que o dom do discurso. Foi assim que inicialmente conseguimos emergir da plantation (...)”
(Eduardo Glissant apud GILROY, 2001: 162).
59
O hegemônico e o subalternizado não são propriedades intrínsecas das práticas, mas modalidades, ambíguas
e transitórias, dos conflitos em se articulam, pólos de uma relação variável.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
110
autenticidade numa relação tensa com uma política de reconhecimento (cf. HONNETH,
2003).
As religiões afro-matriciais tiveram e têm um papel peculiar neste processo. De um lado
sempre se apresentaram, em um contexto de forte hegemonia da religião católica, como
práticas reprováveis e criminalizáveis, presente nos preconceitos populares e nos
sucessivos Códigos Criminais nacionais como “macumba”, “curandeirismo”, “feitiçaria”,
“espiritismo”. O que, porém, não impediu que vários de seus elementos se misturassem, ou
“sincretizassem” com práticas, valores e crenças, religiosas ou seculares, regional ou
nacionalmente valorizadas. Isto certamente se deu através de uma ação de deslocamento e
ressignificação daqueles elementos, principalmente, em sua “contribuição cultural”: a religião
“negra” como matriz cultural e histórica, objeto de estudo antropológico e histórico. Por outro
lado, mantiveram uma relação igualmente polêmica e conflituosa na constituição dos
discursos dos movimentos sociais negros. Em alguns de seus setores, por exemplo, as
religiões de matriz africana apresentam-se como um histórico espaço de resistência política
e cultural, porém não o único ou o mais importante. Tais setores, ademais, lutam pela
valorização desta história e pelo pleno cumprimento do direito de liberdade de confissão
religiosa como parte de um projeto de consolidação de um Estado verdadeiramente
republicano e laico. Outros setores, porém, vêem nas religiões de matriz africana, um
componente indispensável ou de grande importância para a identidade negra, reivindicando
políticas públicas de proteção e promoção das religiões “negras”. Tentam desvencilhar-se
de uma abordagem culturalista ou folclorizadora de tais confissões religiosas, porém,
defendendo-as como religiões oficiais do “povo negro”. Qualquer outra confissão assumida
por uma pessoa negra é tida como efeito de um processo de branqueamento. Em especial,
apesar de majoritariamente formadas por pessoas negras, no caso das confissões
pentecostais, católicas ou evangélicas, que adotam uma postura ofensiva contra as religiões
de matriz africana. Tais antagonismos (“internos” ou “externos”) são importantes para
entendermos os processos de articulação dos discursos políticos dos movimentos sociais
negros, na delimitação de suas fronteiras e na constituição de sua identidade.
Os movimentos sociais negros incorporam em suas narrativas políticas as comunidades
religiosas de matriz africana como parte relevante das lutas históricas de emancipação
negro-africana no Brasil, um mito de origem que define uma ancestralidade difusa. A
identidade “negro-africana” implica a equivalência entre as diversas identidades sociais,
políticas ou religiosas do campo afro-brasileiro. A ancestralidade, como relação entre
“negritude/africanidade”, se converte em lugar de uma tensão inerradicável. A agenda
“negra” constitui-se, então, da conjunção de duas estratégias política: a) a valorização da
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111
religião afro-matricial como patrimônio histórico e cultural regional, nacional e internacional
(diaspórico), considerada parte de uma política de reparação ou de promoção da igualdade
racial; b) a luta contra a intolerância religiosa, tida como uma modalidade da discriminação
étnico-racial.
Tais processos se dão constituindo um “mito ético-político” que estabelece uma articulação
contingente, instável e tensa, por um lado entre “negritude” e “africanidade” e, por outro,
entre “raça” e “cultura”, cuja ambigüidade revelaria a abertura de sentido do discurso político
dos movimentos sociais negros e sua tentativa de controlar o deslizamento de sentido. Ou
seja, a instabilidade semântica de seu próprio discurso e de seus adversários políticos.
Aquela instabilidade torna ambígua e problemática as próprias identidades e divisões entre
esses atores sociais.
Trabalhamos com a hipótese da relação significativa entre as demandas das comunidades
religiosas afrobrasileiras como religiões “territoriais” e a luta pelo uso e ocupação do espaço
urbano e pelo direito à cidade. A constituição desses sujeitos políticos, mediante suas
demandas sociais, está relacionada à dinâmica populacional, ao desenvolvimento urbano e
à segregação espacial de cidades como Recife, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. O
“retorno à África” é um modo de territorialização diaspórica do espaço urbano, físico e
simbólico, num contexto de segregação espacial e antagonismo social. Essa dinâmica
influenciará a organização política dos segmentos religiosos dos movimentos sociais negros,
a formulação de suas demandas políticas.
A "territorialidade" dessas religiões, por exemplo, influencia o perfil das demandas sociais e
das políticas públicas implantadas. Contudo, a construção daquelas demandas e das
políticas se dá fortemente influenciada pelo discurso político dos movimentos sociais negros
e do Estado. Ou seja, a demanda política das religiões não é a mera expressão política de
sua "natureza territorial", muito menos, a formulação e a implantação das políticas são a
mera transferência da demanda para o campo do estado. Há transformações significativas
que ocorrem nesse percurso de representação política de uma identidade religiosa,
transformações que têm um efeito de "feedback" sobre essa última.
Por conseguinte, é preciso evidenciar o papel que as religiões afro-matriciais, em especial, o
candomblé, tiveram e têm neste processo, indagando, assim, sobre os vínculos
estabelecidos ou contestados entre a experiência identitária dos movimentos religiosos afrobrasileiros e os valores e práticas republicanos e democráticos como o pluralismo e a
tolerância.
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112
O conteúdo das demandas sociais, assim constituídas, implica não apenas a elaboração de
uma carência ou desejo, mas, também, a designação de um agente social, a delimitação de
um espaço de referência, um território diaspórico (geopolítico: terreiro, África, cidade etc.), e
um repertório de ações consideradas legítimas e vistas como adequadas à natureza das
demandas e dos agentes (cf. BURITY, 1997:12). Constitui-se, assim, uma “agência” que
será considerada como fator ativo e importante dos processos de “modernização” e
“democratização” da república brasileira e de desenvolvimento urbano das metrópoles
brasileiras.
Os atores religiosos afro-brasileiros, neste contexto, devem ser abordados em, pelo menos,
três aspectos:
(a) como elemento do discurso identitário dos movimentos sociais negros na formação
da agenda pública brasileira;
(b) como sujeitos políticos autônomos envolvidos (stake holders) na formação da agenda
pública;
(c) como conteúdo ou objeto das políticas públicas.
No presente artigo, pretendemos dar conta inicialmente apenas do primeiro aspecto,
introduzindo algumas pistas sobre o segundo. Em outro lugar buscaremos desenvolver
melhor tais aspectos e sua relação com o terceiro aspecto (cf. SALES JR, 2009 e 2011).
2. A PARTICIPAÇÃO NEGRA NA FORMAÇÃO URBANA
Parte da história da escravidão atlântica foi vivenciada em paisagens urbanas ou semiurbanas: Buenos Aires, Caracas, Charleston, Nova Orleans, Nova York, Cidade do México,
Guayaquil, Havana, Lima, Montevidéu, Port-au-Prince, San Juan, Santo Domingo, Porto
Alegre, Porto Belo, Vera Cruz, Olinda, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, entre
tantas outras, que se constituíram em sociedades escravistas urbanas, entre os séculos XVI
e XIX (ARAÚJO et al., 2006, p. 9-14).
Africanos/as e seus/suas descendentes foram importantes personagens dos mundos do
trabalho e da cultura urbana do século XIX. Inventaram territórios urbanos e diásporas,
redefinindo identidades. Em várias sociedades escravistas e mesmo naquelas onde havia
africanos escravizados, surgiram espaços sociais com considerável concentração de
população afro-descendente, entre livres, libertos e escravizados. Mesmo quando não havia
ainda Argentina, Colômbia, Uruguai ou Brasil como Estados nacionais soberanos,
destacavam-se, tais territórios negros, em várias sociedades em formação.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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No século XIX, Brasil e Cuba eram sociedades escravistas com altos índices de população
negra (as pessoas chamadas pretas e pardas) livre, e destacam-se os cenários urbanos em
que viviam. Mas números, censos e estimativas ainda são incompletos. No Brasil, em 1798,
pessoas pardas e pretas livres somavam 406 mil, enquanto pessoas pardas escravizadas
221 mil e pretas escravizadas 1.361 mil.
Em várias regiões, principalmente nas cidades, com base no censo de 1872, destaca-se a
força demográfica (absoluta e relativa) da população negra, juntando africanas/os,
crioulas/os, pardas/os e pretas/os, livres e escravizadas/os. Entre os principais “cidades
negras” aparecem nessa ordem: Salvador, Recife, São Luís e Porto Alegre. Em 1872, na
freguesia urbana da Sé, Salvador, pardos/as e pretos/as constituíam 68% da população,
enquanto os/as escravizados/as somavam 20%. Em Pernambuco, em 1827, os/as
escravizados/as eram cerca de 30%. Já em 1855, esse percentual caiu pela metade. Para o
município de Recife, em 1872, com onze freguesias, as/os escravizadas/os representavam
apenas 13%, porém somadas/os aos pardos e pretos livres atingiam 56,4% de toda a
população. Na cidade de São Luís, no Maranhão, com cinco freguesias, as/os
escravizadas/os eram 22,2%. No geral, pardos/as e pretos/as constituíam 51,5% de toda a
população livre do município de São Luís. Na província do Ceará, a principal freguesia
urbana de Fortaleza tinha 35% de escravizados/as.
3. TERRITÓRIO AFRO-DIASPÓRICO: O CONTEXTO URBANO E AS DESIGUALDADES
ÉTNICO-RACIAIS CONTEMPORÂNEAS
Segundo Ricardo Henriques (2001), ao longo da década de 1990 houve, para o todo do país,
uma melhoria dos indicadores habitacionais. A proporção de domicílios que não possuem
acesso à energia elétrica, coleta do lixo, abastecimento de água e escoamento sanitário
sofreu, em relação aos níveis do ano de 1992, uma queda de, respectivamente, 53%, 39%,
35% e 18%. A proporção de domicílios construídos com material não durável diminuiu em
aproximadamente 31%, enquanto a proporção de domicílios localizados em terreno não
próprio se reduz também em 30%. Finalmente, a proporção de domicílios com alta
densidade habitacional diminuiu em cerca de 27%.
A melhoria dos indicadores habitacionais em termos percentuais, no entanto, não pode
ocultar o fato de que o nível absoluto de alguns desses indicadores permanece
extremamente elevado em 1999. A análise desagregada em termos raciais confirma a
tendência nacional, posto que as condições de vida expressas por intermédio dos
indicadores habitacionais melhoram tanto para a população branca como para a população
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114
negra. No entanto, considerando a intensidade da evolução relativa dos indicadores
habitacionais ao longo do período analisado, vemos que a velocidade de melhoria é maior
— e por vezes significativamente maior — para os/as brancos/as, em todos os indicadores.
Ou seja, apesar da melhora nos indicadores habitacionais da população negra, a
desigualdade racial entre negros/as e brancos/as vem aumentando. A única exceção referese ao indicador do material utilizado na construção do domicílio, em que o nível absoluto de
precariedade é particularmente baixo.
Portanto, não se pode compreender a formação econômica, política ou cultural das
principais cidades brasileiras sem entender sua composição e as suas relações étnicoraciais. A história dessas cidades e seu desenvolvimento urbano têm nas relações étnicoraciais, em especial, entre as pessoas brancas e negras, decorrente de uma formação
histórica (pós)colonial, um dimensão característica. Mas, também, a história das relações
étnico-raciais das cidades brasileiras apresenta-se como importante para compreender a
formação do modelo racial brasileiro.
Os processos de urbanização, no entanto, não se conciliam com a organização dos
“espaços negros”, que estrutura tanto pela forma como pela condição subalterna que a
população negra foi e é submetida ao longo de séculos. Ademais, as teorias urbanísticas e
as metodologias de estudo sobre o espaço urbano não levam em conta as características
étnico-raciais das/os afrodescendentes e as especificidades geradas pelo seu histórico e
pela sua cultura, criadores de seu espaço urbano, desconsiderando a questão da integração
dos espaços negros nas cidades.
As pessoas negras sofrem um conjunto de desvantagens socioeconômicas cumulativas que
se consubstanciam em condições de habitabilidade em média inferior àquela das pessoas
brancas. A questão étnico-racial, pois, constitui uma variável fundamental para a
compreensão e enfrentamento da lógica de produção e reprodução da pobreza e da
exclusão social, em geral, e das desigualdades urbanas, em particular.
Nesse contexto, o terreiro, como moradia auto-construída das camadas populares, é, de
certo modo, o abrigo contra as tempestades do sistema econômico; é o espaço onde se
arquiteta a chamada estratégia de sobrevivência; e o lugar de assentamento do sagrado, de
depósito de axé. Como solução habitacional que abriga o sagrado e o profano, o templo e a
casa, os orixás e as pessoas, o terreiro, após determinado momento, pode representar um
dispêndio monetário extremamente baixo por parte da família proprietária, restrito aos
gastos de manutenção da moradia e do axé. Ademais, o candomblé é o que podemos
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115
denominar de “religião territorial”, ou seja, os espaços sagrados ou rituais se estendem para
além do espaço do terreiro ou ilê ocupando o território circunvizinho: linha cruzada,
encruzilhada fechada, cruzamento de praia, terreiro, assentamento, ir ao chão, isolar, cruzar,
abrir os caminhos são parte de noções espaciais, por meio da qual se constrói toda uma
cartografia.
A territorialização não se define como um mero decalque da territorialidade
animal, mas como força de apropriação exclusiva do espaço (resultado de um
ordenamento simbólico) capaz de engendrar regimes de relacionamentos,
relações de proximidade e distância. (...) O território aparece assim como um
dado necessário à formulação de identidade grupal/individual, ao
reconhecimento de si por outros (SODRÉ, 1988: 13-14).
Segundo Wilson Roberto de Mattos (apud PARÉS, 2006:138), a concepção de
territorialidade/territorialização não está restrita à análise da ocupação de determinados
espaços físicos, mas “refere-se sobretudo à ocupação de espaços sociais de alcance mais
amplo singularizando-os através de injunções simbólico-culturais”.
A territorialização, no candomblé, é parte do complexo ritual “sacrifício-oferenda”,
diferenciando-o de outras religiosidades afro-matriciais e cristãs. O objetivo dos rituais do
candomblé, dentre outras coisas, é territorializar o axé, nos assentamentos, nos ebós etc.
Territorializar não é meramente ocupar um espaço físico, mas assentar axé, conectando
espaço e tempo (ancestral), físico e simbólico.
Pertencemos a um território, não o possuímos, guardamo-lo, habitamo-lo,
impregnamo-nos dele. Além disso, os viventes não são os únicos a ocupar o
território, a presença dos mortos marca-o mais do que nunca com o signo do
sagrado. Enfim, o território não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas ao
ser. Esquecer esse princípio espiritual e não material é se sujeitar a não
compreender a violência trágica de muitas lutas e conflitos que afetam o mundo
de hoje: perder seu território é desaparecer (BONNEMAISON e CAMBRÈZY
apud HAESBAERT, 2007, p.51).
Segundo Segato (2007), o ritual afro-americano diaspórico tem o poder de transmutar seu
cenário em território africano, de transportar de volta à África, pelo assentamento do axé ou
substância mágica de seus ancestrais. A comunidade completa dos vivos, dos ausentes e
dos ancestrais mortos converge e se reencontra ali, invocada pelo repertório de canções
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rituais que os interpela um a um. Assim, a cidade é atravessada por linhas, superfícies e
espaços sagrados que demarcam os fluxos de axé.
Em conseqüência, o candomblé é altamente sensível a processos de urbanização intensa,
de deslocamento forçado ou que impliquem em alto impacto ambiental. Processos estes que
exigem amplas readaptações simbólicas das casas de axé ou podem levar à sua extinção.
Historicamente, o acesso dos novos cultos que originariam o candomblé ao território e sua
ancestralidade foi limitado pelas relações de produção e apropriação do espaço social, físico
e simbólico.
O acesso ao ambiente natural não se daria mais em território próprio de uma comunidade
política ancestral, mas em território ocupado e colonizado, mediante uma estrutura agrária e
urbana onde se realizaria um controle estrito do acesso à terra como forma de dominação
social. O culto dos orixás passou de ideologia hegemônica de reinos ou impérios soberanos
à seita minoritária praticada por segmentos de classes populares. No encontro e confronto
com a cultura ibérica e o catolicismo hegemônico, o candomblé constituiu-se como uma
instituição religiosa “periférica” e socialmente marginal, como discurso cultural paralelo e por
vezes contra-hegemônico (PARÉS, 2006:127).
Restavam as áreas de risco, os alagados, os terrenos insalubres, pouco férteis, sem
qualquer interesse econômico ou político, áreas arrendadas ou alugadas, em especial, em
terras com alta densidade demográfica, de acelerada e desorganizada urbanização nas
cidades litorâneas. Em razão desse racismo ambiental 60 , a posição destas pessoas no
espaço determinava, por exemplo, quantitativa e qualitativamente, suas capacidades de
produzir e consumir, ou seja, de reproduzir seus modos de vida. Aquelas forças sócioambientais eram extremamente seletivas tanto quanto à forma quanto aos efeitos, não se
difundindo homogeneamente através do espaço operacional do território brasileiro. Esta
mudança ou variação de forças produziu instabilidade na organização espacial, com
freqüentes desequilíbrios e reajustamentos.
60 O racismo ambiental ocorre quando determinados setores da população assumem uma carga
desproporcional dos efeitos da degradação ambiental. O racismo ambiental refere-se a qualquer medida pública
ou privada que tenha efeitos no meio ambiente que desfavoreçam desproporcionalmente, de forma deliberada ou
não, a determinados indivíduos, grupos ou comunidades, com base em sua identidade étnico-racial. Os setores
vulneráveis da população, em razão de discriminação étnico-racial, são freqüentemente os mais afetados pela
contaminação ambiental já que são os que têm menos oportunidade de mobilizar-se contra estes abusos. Em
geral, os grupos vulneráveis habitam próximos das áreas contaminadas ou em zonas onde se conduzem
importantes projetos públicos que levam a graves danos ambientais; vendo-se obrigados a viver em condições
ambientalmente perigosas, forçadas a mudar-se ou sofrer o impacto da degradação ambiental.
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4. NOVA REPÚBLICA E NOVAS AGENDAS
Nas três últimas décadas, após o período de abertura política e democratização do Estado,
têm sido significativas as conquistas dos movimentos sociais negros, no Brasil, na busca por
reverter, para melhor, a situação da população negra brasileira. Essas conquistas
convergiram para as propostas e ações no plano das políticas públicas afirmativas que têm
se tornado importante elemento de visibilização e enfrentamento do racismo.
As Ações Afirmativas exigem a redefinição de nossos ideais, valores e instituições, enfim, de
nossa cultura política. São a continuação da luta dos movimentos sociais pela conquista de
espaços nas esferas sociais, políticas e jurídicas da sociedade brasileira nos processos de
modernização e democratização do Estado e da própria sociedade. Noções como direito,
igualdade, democracia, cidadania, liberdade, consagradas pelo projeto filosófico da
modernidade, não são negadas, mas ressignificadas em um pensamento político que visa
ampliar e radicalizar aquele projeto de modernidade, contra universalismos excludentes,
mas, também, contra particularismos fundamentalistas, contra racionalismos totalitários ou
irracionalismos relativistas. Porém, não sem riscos de incorrer em projetos e práticas
fundamentalistas e fascistas, ainda que na forma de lutas emancipatórias. Os movimentos
sociais negros cumprem um papel de grande importância neste processo:
(...) cada vez mais se evidencia que o tema das relações raciais ocupa um papel
central nas celeumas de nosso regime democrático e da qualidade de nosso
tecido social. Assim, simplesmente não há como superar as injustiças sociais e a
exclusão em nosso país sem que o negro, e o seu movimento organizado, seja o
ponto de partida e o ponto de chegada das análises e das políticas (PAIXÃO,
2003: 134).
Este processo vem se dando, não, simplesmente, pela negação do ou combate ao racismo,
mas pela afirmação e comemoração daquilo mesmo que é negado ou depreciado pelo
racismo.
Portanto, as políticas públicas de ação afirmativa devem se analisadas como parte de um
amplo conjunto de ações ou iniciativas que compõem o que chamaremos de políticas de
identidade negra, ou seja, iniciativas individuais ou coletivas que tenham como objetivo geral
ou específico o combate ao racismo e à desigualdade racial e/ou expressem valores de
matriz africana, implicando na construção/consolidação de uma identidade negra. A
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
118
constituição dessa identidade implica no deslocamento dos estereótipos raciais acerca das
pessoas negras61, ou seja, a transvaloração das identidades raciais.
Todavia, não se deve confundir ou reduzir o conjunto destas políticas ao “Movimento Negro”.
A conexão entre estas políticas na constituição dos movimentos sociais negros se dá
através de esforços constantes de estabelecer entre elas conexões variáveis e
historicamente contingentes. Estas conexões contingentes chamamos, conforme proposto
por Laclau62, articulação. Então, por exemplo, a articulação entre o Movimento Negro e a
religiosidade afro-matricial é uma relação contingente e, em muitos casos, problemática e
contraditória: não existe nenhuma relação necessária entre a identidade negra e a
religiosidade de origem africana; é mais um projeto do que um fato dado, como em toda
relação entre “negritude” e “africanidade” (ancestralidade), por exemplo, na definição da
cultura negra. Esta e outras articulações operam num campo cruzado por projetos
articulatórios antagonistas que Laclau denomina práticas articulatórias, no qual se dá a
articulação/desarticulação de políticas de identidade, conforme a constituição dos diversos
espaços políticos. Assim, o conjunto das políticas de identidade constitui um campo de
articulações possíveis, um campo de hegemonia.
Nesse campo se incluem desde políticas governamentais, até iniciativas e empreendimentos
privados com fins lucrativos, passando pelas ações de entidades de Movimento Negro, não
sendo realizadas necessariamente por grupos de maioria negra.
Por outro lado, tais políticas não se reduzem ao combate à discriminação e à desigualdade
racial, definição puramente negativa e reativa. Mas realizam um amplo e complexo conjunto
de iniciativas:
1. Afro-solo ou eutidade: pessoas físicas que estabelecem individualmente iniciativas
que têm como objetivo geral ou específico o combate ao racismo e à desigualdade
racial e/ou expressam valores de matriz africana (estudantes, músicos, artistas,
quituteiras, etc.);
61
A negritude não deve ser algo garantido, uma natureza fixa, mas um processo de desenvolvimento no qual os
indivíduos desempenham um papel, podem assumir alguma responsabilidade e para o qual se pode construir
uma relação. A construção de uma identidade negra é um processo de autotransformação, não devendo ser
representada como um fato não negociável, ocultando a capacidade de responder a uma situação, de agir sob
uma conjuntura. “O que é ser negro” não é uma questão suscetível a respostas generalizadas. Toda identidade
social é uma experiência gestáltica e não uma definição, não sendo, em si, algo fixo. A construção de identidade
se constitui num processo continuo de identificação, que pressupõe um compromisso ético, um “responsabilizarse por” (cf. LACLAU, 1993 e 1997; RICOUER, 1991; BURITY, 1997 e 2002).
62
LACLAU, 1986.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
119
2. Grupos, Núcleos ou Centros Universitários: NEAB, Afroasiático etc.;
3. Balés ou Grupos de dança afro-brasileira: capoeira, afoxé, maracatu...;
4. Grupos musicais: afoxés, maracatus, escolas de samba, banda de samba-reggae,
grupos de hip-hop, pagodes, movimento mangue, coco...;
5. Grupos de pesquisa, documentação e/ou estudos de cultura afro-brasileira;
6. Imprensa negra;
7. Grupos de religiosidade afro-brasileira: candomblé, umbanda, etc.;
8. Grupos de teatro, cinema, vídeo, literatura e artes plásticas;
9. Grupos, núcleos ou outras denominações de sindicatos e/ou partidos e/ou
outras instituições públicas ou privadas que trabalham questões raciais:
INSPIR (Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial), GTI (Grupo de
Trabalho para a Valorização da População Negra), etc.;
10. Grupos que trabalham a questão da estética negra: moda, cosméticos, etc.;
11. Culinária Afro;
12. Comunidades remanescentes de quilombos;
13. Entidades de Movimento Negro.
Este complexo de ações não deve ser apenas definido de forma puramente negativa:
“combate ao racismo e à discriminação racial” – pois quaisquer outras formas de atuação
cultural, social e política podem ser instrumentalizadas pelo combate ao racismo por meio
de inserções e maneiras diversas: passam a serem meios de combate ao racismo.
Nesta conjuntura, as ações afirmativas podem ser entendidas como parte de um processo
de constituição da identidade de um sujeito político ou de direito, sujeito coletivo e histórico,
articulado conforme os diferentes discursos de reparação, compensatórios, de
reconhecimento de direitos, dentre outros: povo negro, raça negra, diáspora negra, cultura
negra, religião negra, pessoa negra... Envolvendo processos de subjetivação, de
negociação intersubjetiva de identidades, de interpelação 63 , de conversão, de
reconhecimento intersubjetivo64, de confissão; enfim, de constituição política de identidades,
dentre as quais, da identidade negra.
Apesar de uma situação social variável, mas comum, de exclusão socioeconômica vivida
pelos extratos populares, os antagonismos sociais manifestam-se de maneira diversa e,
sobretudo, as experiências de luta têm trajetórias extremamente díspares, apontando para
63
64
cf. ALTHUSSER, 1977.
cf. HONNETH, 2003.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
120
impasses e saídas para as quais as condições estruturais objetivas constituem, na melhor
das hipóteses, apenas um grande pano de fundo (KOWARICK, 2000).
No interior e para além das condições estruturais socioeconômicas, operam produções
simbólicas realizadas por atores que confeccionam discursos sobre uma situação concreta a
partir da qual estruturam as orientações de suas ações coletivas.
É preciso que se faça uma análise por dentro dos movimentos sociais, para que se entenda
seus fluxos e refluxos, seus percursos cheios de desvios, caracterizados pela constante
recomposição de divisões e alianças que cabe reconstituir no caminhar da luta. Torna-se,
pois, necessário estudar tais processos no âmbito da apresentação das demandas, da
formulação e implementação das políticas de ações afirmativas voltadas para o combate às
desigualdades e discriminações étnico-raciais vivenciadas pelas pessoas negras e para
valorização de seu modo de vida.
Como afirmamos mais acima, nossa hipótese é da existência e reprodução de uma relação
significativa entre as demandas das comunidades religiosas afrobrasileiras como religiões
“territoriais” e a luta pelo uso e ocupação do espaço urbano e pelo direito à cidade.
(...) o que reinvidica uma sociedade ao se apropriar de um território é o acesso, o
controle e o uso, tanto das realidades visíveis quanto dos poderes invisíveis que
as compõem, e que parecem partilhar o domínio das condições de reprodução
da vida dos homens, tanto a deles própria quanto a dos recursos dos recursos
dos quais eles dependem (GODELIER apud HAESBAERT, 2007, p.49).
Os movimentos sociais negros incorporam, então, em suas narrativas políticas as
comunidades religiosas afro-matriciais como parte relevante das lutas históricas de
emancipação negro-africana no Brasil. A identidade “afro-popular” ou “negro-africana”
implica a equivalência entre as diversas identidades sociais, políticas ou religiosas, do
campo afro-matricial, e nesse caso o inimigo global a ser enfrentado passa a ser muito
menos evidente. Por seu turno, os militantes religiosos afro-matriciais passam a transitar nos
espaços (sociais e políticos) abertos pelos movimentos sociais negros, utilizando os
recursos organizacionais e o poder de mobilização, construídos historicamente, e acionando
os dispositivos legais e políticos de combate à discriminação étnico-racial contra as práticas
de intolerância religiosa e segregação urbana.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
121
Assim, a "territorialidade" das religiões influencia o perfil das demandas sociais e das
políticas públicas implantadas. Contudo, a construção daquelas demandas e das políticas se
dá fortemente influenciada pelo discurso político dos movimentos sociais negros e do
Estado. Ou seja, a demanda política das religiões não é a mera expressão política de sua
"natureza territorial", muito menos, a formulação e a implantação das políticas são a mera
transferência da demanda para o campo do Estado. Há transformações significativas que
ocorrem nesse percurso de representação política de uma identidade religiosa,
transformações que têm um efeito de "feedback" sobre essa última. Essa dinâmica
influencia a organização política dos segmentos religiosos dos movimentos sociais negros, a
formulação de suas demandas sociais e a implantação das políticas públicas.
5. CONSIDERAÇOES FINAIS
Desta forma, a agenda “negra” constitui-se da conjunção de duas estratégias políticas
distintas: de um lado, a valorização da religião afro-brasileira como patrimônio histórico e
cultural regional, nacional e, mesmo, internacional, diaspórica, considerada parte de uma
política de reparação ou de promoção da igualdade racial; por outro lado, a luta contra a
intolerância religiosa, considerada como uma modalidade da discriminação étnico-racial.
A primeira estratégia parece conduzir à consolidação de uma rede anti-racista transnacional,
pan-africana. A referência à África permitirá articular as agendas nos diferentes contextos
global, nacional e local. Por exemplo, na adesão da delegação negra brasileira à demanda
africana pela reparação, ao mesmo tempo em que se afirma como patrimônio próprio da
história e cultura brasileira (esta articulação de um duplo pertencimento é expressa no hífen
da cultura “afro-brasileira”). Esta estratégia apresenta uma versão secularizada e pública da
reverência à ancestralidade dos e nos cultos religiosos de matriz africana. A própria
utilização recorrente do termo “matriz africana” nos discursos oficiais ou não oficiais, escritos
ou orais, públicos ou privados marca a referência (e a reverência) à “origem”, à “memória”, à
“ancestralidade” como valor importante na constituição das identidades sociais, na
formulação das demandas políticas e na legitimação da agenda pública resultante destes
processos.
A segunda estratégia apresenta os ataques contra as “religiões de matriz africana”
equivalentes ao racismo anti-negro. Com tais estratégias, os atores religiosos afrobrasileiros passam a transitar nos espaços (sociais e políticos) abertos pelos movimentos
sociais negros, utilizando os recursos organizacionais e o poder de mobilização construídos
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
122
historicamente, e acionando, contra as práticas de intolerância religiosa, os dispositivos
legais e políticos de combate à discriminação étnico-racial (SALES JR., 2009b: 130-131).
As formas de vida afro-diaspóricas articularão, assim, discursos de autenticidade e de
reconhecimento, reforçando, contudo, a abordagem culturalista e particularista de
tratamento das relações étnico-raciais pelo Estado brasileiro. A população negra, reduzida a
“comunidades tradicionais” (quilombos ou terreiros), é tratada pelas “políticas de promoção
da igualdade racial” como componente qualitativamente exótico e quantitativamente
minoritário da população brasileira.
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O CONHECIMENTO DOS DIREITOS PARA ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA
Izayana Feitosa65
Cleonice Camino66
RESUMO
O presente estudo teve como objetivo geral conhecer as concepções de direitos de
adolescentes que passam o dia nas ruas. Administrou-se um questionário a 50 adolescentes
em situação de rua das cidades de Cajazeiras e João Pessoa, no Estado da Paraíba. Os
participantes responderam a questões sobre os direitos humanos e sobre aspectos
relevantes do seu perfil sócio-demográfico. De um modo geral, os resultados denotaram que
os participantes das duas cidades tinham um conhecimento limitado sobre as noções de
direito e apresentavam características sócio-demográficas muito semelhantes das demais
crianças e adolescentes brasileiras em condição de rua.
Palavras-chave: Adolescentes em Situação de Rua. Direitos Humanos. Adolescentes.
THE KNOWLEDGE OF THE RIGHTS FOR HOMELESS TEENAGERS
ABSTRACT
The objective of the present study is to know homeless teenagers’ conceptions of rights. A
questionnaire was applied to 50 homeless teenagers in Cajazeiras and João Pessoa, cities
in the State of Paraíba. The participants have responded to questions about children’s and
65
Doutoranda em Psicologia Social pela UFPB, Professora da UFCG. Pesquisa financiada pelo CNPq. E-mail
[email protected].
66
Doutora em Psicologia pela Universitè Catholique de Louvain. Professora da UFPB.
Outros autores deste trabalho também foram: Miriane Santos Doutoranda em Psicologia Social pela UFPB; Lilian
Galvão Doutora em Psicologia Social pela UFPB, Professora da UFCG; Márcia Ávila Paz Doutora em Psicologia
Social pela UFPB; e Pablo Vicente Queiroz Doutorando em Psicologia Social pela UFPB.
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125
teenagers’ rights and also about relevant aspects of social-demographic profile. In general,
results have shown that the participants’ knowledge from the two cities was limited
concerning the notions of right and social-demographic aspects, presenting very similar
characteristics to other Brazilian homeless teenagers.
Key words: Homeless Teenagers. Human Rights. Teenagers.
1. INTRODUÇÃO
A presença de crianças e adolescentes nas ruas brasileiras sempre chamou a atenção da
sociedade de um modo geral. Nas últimas décadas, a temática dos meninos que passam os
dias nas ruas tem sido estudada com grande interesse pelas ciências humanas,
notadamente pela Psicologia (MACIEL; BRITO; CAMINO, 1998; ALBERTO, 2002; ALVES et
al., 2002; HUTZ; KOLLER, 1997; NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002a; NEIVA-SILVA; KOLLER,
2002b). A rua é considerada um ambiente de risco potencial para o desenvolvimento dessa
população, sobretudo pela maior vulnerabilidade às agressões físicas, sexuais e
psicológicas, bem como pela condição de abandono e ausência de cuidados. O interesse no
estudo dessa população aumentou, sobretudo, a partir de 1980, quando se vivenciava no
país um clima de democracia e se reclamava em nome dos direitos dos menos favorecidos
(ASSOCIAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DA REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE PORTO
ALEGRE, 2004). Entretanto, o projeto que se propunha a investigar as condições de vida
dessas crianças e adolescentes esbarrou numa série de dificuldades em caracterizar esta
população (SÃO PAULO, 2007).
Alguns autores (ALVES et al., 2002; NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002a; PALUDO; KOLLER,
2005) sugerem cinco indicadores a serem observados nessa caracterização: 1) vínculo
familiar; 2) atividade exercida; 3) aparência; 4) local em que se encontram e; 5) ausência de
um adulto cuidador, isto é, aquele que supervisiona a criança na rua em suas atividades.
Quanto ao vínculo familiar, a maioria dessas crianças e adolescentes possui algum tipo de
ligação com parentes ou com pessoas a quem consideram responsáveis por eles, contudo,
esse vínculo diminui à medida que a idade avança.
Estudos e levantamentos realizados junto a essa população (SÃO PAULO, 2007; NEIVASILVA; KOLLER, 2002a; NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002b) tem revelado que, quanto ao
segundo indicador (atividade exercida), tanto crianças quanto adolescentes realizam algum
tipo de atividade, podendo ser lícitas e ilícitas. A respeito do terceiro indicador – a aparência
–, o que os caracteriza é o uso de vestimentas maiores que as habituais para seus
tamanhos, sujeira ocasionada pela própria presença na rua e pela falta de asseio, marcas
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
126
de violência no corpo, cabelos desgrenhados, dentre outros. Em relação ao quarto – local
onde a criança se encontra –, a rua deve ser compreendida como o contexto onde são
estabelecidas as principais relações de socialização da criança e do adolescente, e não
somente como um espaço físico concreto. Por fim, no que se refere ao último indicador –
ausência de um adulto por perto –, não existe um consenso entre os autores: enquanto
Alves (1998) considera a ausência de um responsável como um indicador que essa criança
ou adolescente, de fato, se encontra em situação de rua. Rosemberg (1996) afirma que não
necessariamente a presença de um adulto descaracterize a criança ou o adolescente em
situação de vulnerabilidade social, já que, muitas vezes, é o proprio adulto o explorador da
sexualidade ou do trabalho dos mesmos.
Ao se fazer uma análise geral do contexto das crianças e adolescentes em situação de rua,
não resta dúvida, por exemplo, que a falta de alimentação adequada, a evasão escolar, a
exposição à exploração sexual, de gênero, etc., bem como o contato facilitado com as
drogas, configura-se como uma violação aos Direitos da Criança e do Adolescente (DCA).
Neste sentido, também vão totalmente de encontro às várias leis de proteção aos seres
humanos em geral, como a Declaração Universal dos Direitos humanos.
É diante dessa realidade que neste estudo busca-se investigar até que ponto os Direitos da
Criança e do Adolescente (DCA) são conhecidos por adolescentes em situação de rua, bem
como apresentar aspectos referentes ao seu cotidiano. Julgou-se que os adolescentes
poderiam estar, mais do que as crianças, em situação de trabalho, o que facilitaria a
construção de respostas sobre o tema.
Na Psicologia, pesquisas têm sido realizadas com o objetivo de investigar as concepções
acerca dos direitos humanos. No âmbito internacional destacam-se as pesquisas
desenvolvidas por Doise et al. (1998), esses autores investigaram as representações sobre
os direitos humanos de indivíduos provenientes de diferentes grupos sociais, nacionalidades,
faixas etárias e profissões, a fim de conhecerem quais os princípios organizativos de tais
das representações (DOISE; HERRERA, 1994).
No Brasil, estudos vêm sendo realizados também com o objetivo de conhecer as
concepções de diferentes grupos sociais acerca dos seus direitos humanos (CAMINO, 2004;
NASCIMENTO, 2003, PANDOLFI, 1999). Algumas dessas pesquisas vêm sendo
desenvolvidas pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Desenvolvimento Sócio Moral
(NPDSM). Como exemplo, Camino et al. (2006), pesquisaram sobre a noção que crianças e
adolescentes tinha sobre os direitos, na cidade de João Pessoa. Participaram deste estudo
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
127
60 adolescentes, que passavam os dias nas ruas (Grupo I), 52 crianças e adolescentes que
viviam em um abrigo (Grupo II) e 60 adolescentes em conflito com a lei (Grupo III). Dentre
outros objetivos, este estudo propunha-se a verificar se os participantes sabiam o que é ter
um direito, quais os diretos conhecidos e a fonte deste conhecimento. Quanto ao
conhecimento dos direitos, a maioria dos participantes do Grupo I disse não saber o que é
ter um direito; o oposto foi observado nos Grupos II e III, embora os participantes desses
dois grupos demonstrassem não saber definir o termo direito. Dentre os que alegaram saber,
nos três Grupos o direito citado com maior freqüência foi Educação (GI=32,00%;
GII=26,19%; GIII=29,57%). Em relação à fonte do conhecimento, 26,99% dos participantes
do Grupo I citaram os Professores e a Escola como fonte deste conhecimento, o que
também foi observado entre os do Grupo II (34,48%); já para os participantes do Grupo III, a
própria Instituição Ressocializadora foi indicada como a principal fonte deste conhecimento
(20,97%).
Em um artigo publicado por Fernandes e Camino (2006) intitulado “Adolescentes, TV e
Direitos humanos”, foram apresentados resultados provenientes de dois estudos: o primeiro
foi realizado com 212 estudantes do Ensino Médio e o segundo com 211 estudantes do
Ensino Médio, da cidade de João Pessoa. Dentre os resultados apresentados por
Fernandes e Camino (2006), chama a atenção aqueles que se referem à educação em
Direitos humanos. A televisão foi considerada como a principal fonte de informação sobre os
Direitos Humanos (DH) pelos estudantes do Ensino Médio (53,50%), seguida pela família
(19,00%) e pela escola (15,00%). Os dados também mostraram que para 60% dos
estudantes que afirmaram já ter conversado com alguém sobre os DH, a família e a escola
foram apontadas como “os principais espaços promotores de debates sobre o assunto”. A
grande maioria dos participantes (90,70%) disse já ter conversado com alguém sobre os DH,
no entanto, quando foram solicitados a definir o que eram os DH, somente 16,65 % o
fizeram de forma adequada; mais de 50,00% apresentaram respostas pouco elaboradas;
25,40% não responderam e 7,30% dos participantes tentaram definir ou conceituar os DH a
partir de exemplos de direitos por eles conhecidos. Na interpretação dos resultados,
Fernandes e Camino (2006, p. 76) comentaram que a TV por si só não conseguia “viabilizar
informações contextualizadas e aprofundadas capazes de oferecer as condições
necessárias para a produção de conhecimento sobre Direitos humanos”. As autoras
destacaram também que “a escola ainda é (ou deveria ser) o local privilegiado para a
construção e sistematização do conhecimento” (FERNANDES; CAMINO, 2006, p. 76).
A respeito desses estudos, Galvão, Costa e Camino (2005) comentam que existe um
conhecimento dos direitos compartilhado por crianças, adolescentes e adultos, pertencentes
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128
ou não a grupos de excluídos socialmente, que diz respeito, sobretudo, aos direitos já
normatizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
As investigações sobre os Direitos humanos que têm sido realizadas no Núcleo de Pesquisa
em Desenvolvimento Sócio Moral (NPDSM) apontam para a necessidade de aprofundar o
conhecimento acerca do conhecimento sobre os direitos humanos. Neste sentido, o
presente estudo traz como objetivo principal conhecer as concepções que os adolescentes,
que passam os dias nas ruas, têm sobre os Direitos da Criança e do Adolescente.
Especificamente pretende-se, a partir deste objetivo:
Verificar quais direitos são conhecidos pelos adolescentes que passam os dias nas
ruas e as fontes de conhecimento desses direitos.
Conhecer as características sócio-demográficas dos adolescentes que passam os
dias nas ruas das cidades de João Pessoa e Cajazeiras;
Analisar as concepções sobre os DCAs de adolescentes, procedentes de duas
cidades distintas.
2. MÉTODO
2.1. Participantes
Foram entrevistados 50 adolescentes do sexo masculino que passam os dias nas ruas de
duas cidades do Estado da Paraíba, sendo 30 na cidade de João Pessoa, com idades de 14
a 18 anos, e 20 participantes com idades de 12 a18 anos, da cidade de Cajazeiras. Julgouse importante saber se o conhecimento desses adolescentes acerca dos direitos se
diferenciava em função dos contextos sociais das cidades em que eles viviam: João Pessoa,
cidade litorânea, é a capital do estado da Paraíba; Cajazeiras é uma cidade do Sertão
paraibano, situada a 400k km da capital.
2.2. Questionário
Foi utilizado um questionário que continha duas partes. Na primeira parte, foram
apresentadas questões sobre os direitos humanos: O que é ter um direito? Quais os direitos
que você conhece? Quem lhe falou sobre os direitos? Quem deve cuidar para que os
direitos sejam respeitados e garantidos? Na segunda parte havia questões sobre os dados
biodemográficos e acerca do cotidiano dos participantes: Qual sua idade? Em que série
você estuda? Com quem você mora? Qual é a pessoa mais responsável por você? Você já
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
129
teve alguma experiência de trabalho? Qual? O que você faz durante o dia? Alguém já
ofereceu algum tipo de drogas para você experimentar?
2.3. Procedimento
Os questionários foram administrados individualmente, em forma de entrevista gravada,
enquanto os adolescentes estavam nas ruas onde foram encontrados. Os critérios para ser
um participante da pesquisa foram: estar na rua, não estar acompanhado de um adulto
cuidador, usar vestimentas velhas e sujas, estar exercendo alguma atividade de trabalho
e/ou perambulando. Com relação ao vínculo familiar, este só foi verificado no decorrer da
entrevista.
Uma vez identificados os adolescentes que atendiam os critérios pré-estabelecidos, os
pesquisadores explicaram-lhes os objetivos da pesquisa e perguntaram-lhes se eles tinham
disponibilidade e interesse em participar do estudo.
As entrevistas foram transcritas e as respostas foram categorizadas segundo a Análise de
Conteúdo Semântico, proposta por Bardin (1977). As categorias resultantes desta análise
foram criadas por dois pares de juízes que trabalharam isoladamente e após a classificação
das respostas, discutiram em grupo a fim de verificar quais as categorias que obtiveram, no
mínimo, 75,00% de consenso. Após a categorização, fez-se uma análise das freqüências e
percentuais das respostas a fim de realizar um levantamento das informações quantitativas.
3. RESULTADOS
A partir da análise das questões referentes aos direitos humanos observou-se, em relação à
questão o que é ter um direito a formação de quatro categorias denominadas de: Exemplos,
quando as respostas dos participantes apresentavam exemplos de direitos; Não Pertinentes,
quando as respostas eram em branco ou cujo sentido não condizia com os critérios
utilizados para elaboração das categorias; Posse, quando a noção de direito foi associada à
propriedade de algum bem e; Fazer o certo, quando os participantes afirmaram que ter um
direito é fazer tudo o que é correto.
Observou-se que, em ambas as cidades, a maior freqüência de respostas foi atribuída à
categoria Não Pertinente (Cajazeiras = 55,55%; João Pessoa = 56,25%), seguida da
categoria Exemplos (Cajazeiras = 40%; João Pessoa = 21,88%). A respeito da categoria
Posse, observou-se que ela apresentou uma maior freqüência de respostas entre os
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
130
participantes de João Pessoa (18,75%) quando comparados aos de Cajazeiras (5,00%).
Quanto à categoria Fazer o certo, esta emergiu apenas a partir das respostas dos
participantes de João Pessoa (3,13%).
Com relação ao conhecimento dos direitos, todos os participantes de Cajazeiras afirmaram
já ter ouvido falar sobre os direitos. Quanto aos participantes da cidade de João Pessoa,
73,33% disseram ter ouvido falar dos direitos e 26,67% afirmaram não ter conhecimento
sobre os direitos.
Foi solicitado, na segunda questão, que aos participantes citassem os direitos que eles
conheciam. Conforme a Tabela 1, na cidade de João Pessoa, os direitos mais citados foram:
Estudo (30,00%), Não Pertinentes – respostas em branco, que fugiram ao que foi
questionado, ou aquelas em que os participantes disseram não saber ou não lembrar sobre
o que foi perguntado - (30,00%) e Alimentação (15%); em Cajazeiras, os direitos mais
citados foram: Estudo (37,14%), Lazer (28,57%) e Deveres (14,28%). Nesta última categoria,
foram agrupadas as respostas nas quais os participantes citaram exemplos de bom
comportamento/ deveres como sendo direitos (Exemplos: respeitar os mais velhos, não
roubar, obedecer aos pais).
Tabela 1- Freqüências e percentuais de respostas à questão
“Quais direitos você conhece?” (N=50)
CZ.
J.P.
DIREITOS
TOTAL
F
%
F
%
Estudo
13
37,14
11
30,00
24
Lazer
10
28,57
1
2,50
11
Deveres
5
14,28
1
2,50
6
Não Pertinentes
1
2,86
12
30,00
13
Alimentação
2
5,71
6
15,00
8
Direitos Específicos
2
5,71
1
2,50
3
Saúde
1
2,86
3
7,50
4
Outros
1
2,86
5
12,50
5
TOTAL
35 100,00
40
100,00
75
Fonte: Dados da Pesquisa, 2011.
131
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
Quando questionados sobre quem havia lhes falado sobre os direitos, os participantes
apontaram as fontes indicadas na Tabela 2. Conforme observado, para os adolescentes das
duas cidades, a Família (Cajazeiras =55%; João Pessoa =46,67%) e a Escola (Cajazeiras
=15%; João Pessoa =13,33%) foram apontadas como as principais fontes de informação
sobre os direitos.
Tabela 2- Freqüências e percentuais de respostas à questão
“Quem lhe falou sobre os direitos?” (N=50)
CZ
JP
FONTE
TOTAL
F
%
F
%
Família
Escola
11
3
55,00
15,00
14
4
46,67
13,33
25
7
Nunca ouviu
Desconhecidos
Ninguém (sozinho)
Amigos
Outras instituições
TOTAL
2
2
2
20
10,00
10,00
10,00
100,00
3
3
2
3
1
30
10,00
10,00
6,67
10,00
3,33
100,00
3
5
4
5
1
50
Fonte: Dados da Pesquisa, 2011.
Também foi perguntado a quem os participantes atribuíam a responsabilidade pela garantia
dos direitos, e logo em seguida foi questionado se alguém era mais responsável por esta
garantia. No próprio questionário foram apresentadas as opções: Governo, Pais e Escola.
Observou-se que nas duas cidades (Cajazeiras = 45,00% e João Pessoa = 43,33%) os Pais
foram apontados como os responsáveis pela garantia dos direitos da criança e do
adolescente obtendo 50,00% das respostas nas duas cidades; seguidos pelo Governo (em
Cajazeiras 30,00% e 33,33% em João Pessoa). Assim, das opções apresentadas aos
participantes, os Pais foram considerados os mais responsáveis pelo cuidado para que os
direitos da criança e do adolescente fossem assegurados, obtendo 50,00% das respostas
nas duas cidades.
Sobre as respostas às questões do segundo bloco, referente ao cotidiano dos participantes
observou-se que: em ambas as cidades, a Mãe foi apontada como a principal responsável
pelos cuidados com os adolescentes (Cajazeiras = 55,00% e João Pessoa = 53,33%).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
132
As atividades cotidianas desenvolvidas mais citadas pelos participantes da cidade de João
Pessoa foram: Trabalhar (43,33%), Ficar em Casa (21,67%) e Estudar (20,00%). Na cidade
de Cajazeiras, as atividades cotidianas mais citadas pelos adolescentes foram; Estudar
(35,42%), Brincar/ Perambular (25,00%) e realizar atividades em Outra Instituição – PETI (16,67%). Destaca-se aqui o fato de, em João Pessoa, alguns participantes (3,33%) terem
verbalizado que em sua rotina estava incluído o ato de se drogar. Quando se referiu no
questionário de forma mais específica em relação ao consumo e à freqüência deste
consumo, verificou-se que em Cajazeiras 70,00% dos participantes afirmou que ninguém
nunca lhes ofereceu drogas, em João Pessoa esse percentual foi de 53,33%. Em seguida,
quando se questionou se já haviam experimentado algum tipo de droga 10,00% dos
adolescentes de Cajazeiras e 40,00% dos de João Pessoa declararam já terem usado. As
atividades cotidianas desenvolvidas pelos adolescentes podem ser visualizadas na Tabela 3.
Tabela 3- Freqüências e percentuais das atividades cotidianas
desenvolvidas por meninos em condição de rua (N= 50)
Cajazeiras João Pessoa
TOTAL
Atividades
F
%
F
%
Estudar
17
35,42 12 20,00
29
Brincar/Perambular
12
25,00
4
6,67
16
Instituições (PETI)
8
16,67
1
1,67
3
Casa
6
12,50 13 21,67
19
Trabalhar
3
6,25
26 43,33
29
Esmolar
2
4,17
2
3,33
4
Drogar-se
2
3,33
9
TOTAL
48 100,00 60 100,00
108
Fonte: Dados da Pesquisa, 2011.
Quando indagados a respeito das atividades de trabalho remunerado exercidas diariamente
(Ver Tabela 4), observou-se que, na cidade de Cajazeiras, as mais desenvolvidas foram:
Outras – atividades domésticas, serviços de limpeza, catador, guardar/lavar carros,
engraxate e britador - (43,75%), Servente de Pedreiro (25,00%) e Atividades Agropecuárias
(18,75%). Na cidade de João Pessoa, destacaram-se as atividades de: Vendedor (42,42%),
Outros (30,30%) e Engraxate (12,12%).
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
133
Tabela 4-Freqüências e percentuais das atividades profissionais desenvolvidas
por meninos em condição de rua (N= 50)
Cajazeiras
João Pessoa
TOTAL
Atividades
F
%
F
%
Outros
7
43,75
10
30,30
17
Vendedor
1
6,25
14
42,42
15
Engraxate
1
6,25
4
12,12
5
Servente
4
25,00
1
3,03
5
Atividades Agropecuárias
3
18,75
1
3,03
4
Chapeado
3
9,09
3
TOTAL
16
100,00
33
100,00
41
Fonte: Dados da Pesquisa, 2011.
4. DISCUSSÃO
Os resultados acerca do conhecimento dos direitos de adolescentes em situação de rua
demonstram que o empenho de entidades nacionais e internacionais em propagar os
direitos humanos tem se mostrado, de certa forma, eficaz nesse tipo de população: 100,00%
dos participantes da cidade de Cajazeiras e 73,33% dos de João Pessoa afirmaram já ter
ouvido falar sobre os direitos; e, além disso, nota-se, na questão referente ao conhecimento
acerca dos direitos humanos, que a maioria dos direitos citados pelos participantes está
relacionada a direitos já estabelecidos na Declaração Universal Dos Direitos Humanos
(DUDH), o que, por sua vez, apóia outros estudos (CAMINO, 2004; DOISE et al., 1998;
DOISE; HERRERA, 1994; GALVÃO, COSTA; CAMINO, 2005; NASCIMENTO, 2003;
PANDOLFI, 1999).
Por outro lado, não se pode negar que apesar de os adolescentes em situação de rua
conseguirem citar alguns dos direitos elencados na DUDH, o conhecimento dos direitos
parece ainda não ser compartilhado por todos, no sentido de que, na cidade de João
Pessoa, houve uma freqüência significativa de respostas na categoria Não Pertinentes
(30,00%), o que também foi verificado no estudo de Camino et al. (2006).
Ademais, no presente estudo também se constatou uma confusão, por parte dos
adolescentes, sobretudo os da cidade de Cajazeiras, entre seus direitos e seus deveres
(exemplos: respeitar os mais velhos, não roubar, obedecer). Essa confusão parece, por um
lado, apontar para um conhecimento superficial ou total desconhecimento dos direitos por
parte desses adolescentes, e, por outro, parece estar relacionado à cultura interiorana que
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
134
valoriza os deveres. Esta última interpretação é apoiada pelo estudo de Galvão, Costa e
Camino (2005) que verificaram uma confusão entre deveres e direitos em uma amostra de
adolescentes que cumpriam medida sócio-educativa em uma instituição do interior da
Paraíba.
No que se refere aos direitos citados pelos participantes, constatou-se que o direito ao
estudo foi o mais citado pelos entrevistados das duas cidades (João Pessoa = 30,00% e
Cajazeiras = 37,14%). Isto denota uma semelhança com o estudo de Maciel, Brito, e
Camino (1997) realizado em Campina Grande-PB, no qual os autores constataram uma
grande valorização da escolaridade como uma forma de sair da condição de rua. Entretanto,
é provável também que isso se deva à idéia amplamente divulgada de que crianças e
adolescentes devem estar na escola, e não em alguma função remunerada.
Sobre a definição do que é ter um direito, em ambas as cidades, houve predominância de
respostas categorizadas como Não Pertinentes (Cajazeiras 55,00% e João Pessoa = 60,00).
Este resultado é semelhante ao encontrado por Camino et al. (2006), que, ao comparar três
grupos de adolescentes (grupo dia nas ruas, grupo cumprindo medidas sócio-educativas em
instituição de ressocialização, e estudantes de escola pública e privada), constataram que o
grupo de adolescentes em situação de rua foi o que mais teve dificuldade em dizer o que é
ter um direito, seguido do grupo de adolescentes em conflito com a lei.
Na avaliação dos autores, que nos compartilhamos, tem faltado a esses adolescentes
vivenciar situações nas quais seus direitos e os direitos do outro sejam respeitados, algo
que poderiam lhes capacitar a expressar a dar mais exemplos do que é ter um direito. Neste
sentido, não se pode esquecer que esses adolescentes nunca gozaram de seus direitos de
cidadania.
Quando se comparou o nível de elaboração dos dois grupos de participantes em relação à
questão “você sabe o que é ter um direito?”, se constatou uma diferença significativa entre
os adolescentes em situação de rua da capital da Paraíba (João Pessoa) e os adolescentes
do interior (Cajazeiras): este pareceu ter mais dificuldade em elaborar uma definição de
direito do que o grupo da capital, o que também foi constatado na pesquisa realizada por
Galvão, Costa e Camino (2005). Estes verificaram um menor nível de elaboração por parte
de adolescentes do interior em conflito com a lei, quando comparados aos da capital.
Diante do conhecimento restrito acerca dos seus direitos apresentado pelos adolescentes
em situação de rua, resta indagar: quem tem sido a fonte do conhecimento dos direitos? Os
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
135
participantes das duas cidades citaram, sobretudo, a Família (João Pessoa=46,67% e
Cajazeiras=55,00%), o que também vem sendo encontrado em outros estudos (CAMINO et
al., 2006). Quando indagados sobre a quem atribuem a responsabilidade pela garantia dos
seus direitos, os participantes, de ambas as cidades, colocam em terceiro plano a Escola
(Cajazeiras = 15,00% e João Pessoa = 3,33%). Neste caso, são os Pais (Cajazeiras =
45,00% e João Pessoa = 43,33%) e o Governo (Cajazeiras = 30,00% e João Pessoa =
33,33%) que são percebidos como os mais responsáveis pela garantia dos direitos. No que
tange as respostas referentes aos cuidados no cotidiano que devem ser dispensados aos
participantes, notou-se que a mãe, em ambas as cidades, foi apontada como a principal
responsável. Esse resultado é compatível com os divulgados pelo último senso (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000). Estes dados apontam para o fato
de que a família do tipo nuclear (pais e filhos) diminuiu de 58,4% para 55% e aumentou o
número de mulheres sem marido (viúvas, mães solteiras, divorciadas) de 15,1% para 17,1%,
que assumem o papel de principais responsáveis pelos filhos e pela casa. Esse resultado
também conduz a suposição de que os adolescentes entrevistados ainda possuem algum
tipo de ligação com parentes ou com pessoas a quem consideram responsáveis por eles.
Quanto às atividades cotidianas realizadas pelos adolescentes, destacaram-se as lícitas.
Nesse caso, chama a atenção o fato de que a atividade de Trabalhar foi a mais citada pelos
participantes da cidade de João Pessoa (43,33%), seguida pela categoria Ficar em Casa
(21,67%) enquanto as atividades de Estudar (35,42%) e Brincar/Perambular (25,00%) foram
as mais citadas pelos adolescentes da cidade de Cajazeiras. Isto qualifica os participantes
da cidade de João Pessoa como meninos que quando estão nas ruas estão, sobretudo,
trabalhando informalmente e os de Cajazeiras estão, sobretudo, perambulando.
Também chama a atenção o fato que apenas cerca de 28,00%, em média, dos participantes
de ambas as cidades disseram que a atividade de Estudar faz parte do seu cotidiano, o que
leva a seguinte indagação: há 70% desses meninos fora da escola? É de se supor que sim,
pois os dados revelam que a maioria dos adolescentes, ao menos na cidade de João
Pessoa, diz trabalhar em alguma atividade remunerada. Esses resultados corroboram
aqueles encontrados por Maciel, Brito e Camino (1998). Julga-se que a inserção desses
adolescentes no mercado de trabalho esteja relacionada com a necessidade de
complementação da renda familiar, tendo-se em vista que esses adolescentes provem de
famílias monoparentais, nas quais a responsabilidade pelo sustento da família recai,
principalmente, sobre a figura materna.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
136
Merece aqui destaque o fato de que o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil)
só é enfatizado como fazendo parte da realidade de alguns adolescentes da cidade de
Cajazeiras, o que leva a pensar que o Programa criado está muito distante do idealizado.
Vale ressaltar, ainda, que as Atividades Domésticas também foram destacadas pelos
meninos de ambas as amostras como uma atividade cotidiana, o que só confirma a idéia
defendida por Santana et al. (2003) que os meninos em situação de rua não vivem em um
total abandono e têm um certo vínculo familiar.
Destaca-se, ainda, em relação às atividades exercidas pelos meninos em situação de rua, o
fato de, em João Pessoa, alguns participantes (3,33%) terem verbalizado que em sua rotina
diária estava incluído o ato de se drogar. Contudo, essa atividade parece estar bem mais
presente na rotina dos meninos em situação de rua do que eles disseram: assim 5,00% dos
meninos de Cajazeiras e 40,00% dos meninos de João Pessoa declararam ter usado drogas.
Obviamente supõe-se que, por fazerem referências a atividades ilícitas, essas porcentagens
na realidade poderiam ser bem maiores.
No referido especificamente às atividades remuneradas desenvolvidas pelos participantes,
verifica-se que em Cajazeiras, apesar dos meninos afirmarem que o trabalho é uma
atividade secundária no seu cotidiano, eles ainda listaram uma série de atividades
profissionais que já foram desenvolvidas num dado momento de suas vidas. Atividades
ilícitas, como roubo, furto e venda de drogas, não foi mencionado pelos adolescentes, o que
era esperado, apesar de dados revelarem que um número significativo de meninos em
situação de rua se envolve com este tipo de atividade. Parece ser muito mais lucrativa
financeiramente que as lícitas, para complementar o seu sustendo e/ou para financiar o vício
daqueles que são dependentes de drogas (SIQUEIRA, 1997).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As crianças e adolescentes que passam os dias nas ruas que participaram deste estudo
demonstraram ter conhecimento sobre os direitos, no entanto, trata-se de um conhecimento
restrito e pouco elaborado. Julga-se que isto seja decorrente do fato desses participantes
não terem as garantias postuladas no Estatuto da Criança e do Adolescente no seu artigo
30: os seus direitos fundamentais são constantemente violados e eles próprios precisam
lutar diariamente pela sua manutenção e sobrevivência, ou seja, eles não vivenciaram de
forma efetiva os seus direitos de cidadania; as precárias condições de vida e a situação de
miséria social a que são submetidos são a expressão máxima dessa violação.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
137
Acredita-se que é incumbência dos Poderes Executivo e Legislativo implementar as políticas
sociais através de projetos e ações direcionados às necessidades da criança e do
adolescente visando a divulgação (conhecimento) e a efetiva proteção dos direitos. Contudo,
considera-se também de suma importância que os diversos segmentos sociais, tais como
família, escola, instituições governamentais e sociedade, articulem-se no que diz respeito à
formação de jovens autônomos, solidários e participativos, isto é, conscientes da sua
cidadania e da sua dignidade.
Por fim, dada a riqueza social do tema, os resultados dessa pesquisa não se esgotam nesse
estudo. Outrossim, apontam novas possibilidades de análises a serem consideradas em
estudos futuros: uma análise quantitativa que considere amostras mais amplas, vialilizando
a realização de testes estatísticos inferenciais e/ou análises textuais, e, uma outra análise
de cunho qualitativo que explore, de forma mais minunciosa, o contexto social.
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ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
Literárias/Poesia
UN POEMA POR TAHRIR, POR EGIPTO
Nancy Messieh
Esa plaza pública
con nombre de destino e historia
como sabiendo lo que iba a venir
firmes nos quedamos
diciendo, no nos moverán
pintamos poemas en el duro asfalto
reblandecido, empapado de la sangre nuestra
y el mundo miraba.
El mundo miraba mientras nos llamaban
traidores
y en las pantallas de los televisores
de los hogares, cerradas las puertas no fuera
a entrar a la verdad,
los hombres escupían a las cámaras desprecio
y las mujeres chillaban por teléfono
ojos y corazones llenos de rabia
incapaces de entender
que Tahrir era suya, para ellos,
mientras los ojos del gobierno mostraban sólo lo que querían
que viéramos
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
141
el sol poniente sobre el Nilo
y todo lo que hacía falta era girar lo mínimo la cabeza a la izquierda
por el rabillo del ojo un vistazo
mostrando la neblina del sol del Cairo entre los gases lacrimógenos,
los hombres a la carga por las calles con sus cuerpos solo
topando con los camiones de policía que los atropellaban.
Los diarios hablaban de disturbios por todo el Mediterráneo pretendiendo que ese día que
había comenzado en El Cairo
era igual a otro cualquiera.
Pero algo había empezado.
Hombres y mujeres estremecían la tierra
con sus voces.
De norte a sur
caían cuerpos al suelo, dejaban de latir los corazones
pero en Tahrir por ellos mantuvimos alta la cabeza saliendo de los muros por los que, toda
nuestra vida,
caminamos pegados, ocultos en la sombra
de la conformidad y el miedo
abrimos al asesinato nuestros pechos,
abrimos a las piedras nuestros rostros, a las balas nuestros ojos,
nuestras mentes a los molotov que a la cabeza nos lanzaban
y dijimos
no tenemos miedo.
porque el miedo a vivir con la cara enterrada
en el suelo de una tierra que no puede ya sentír
era nada, nada comparado con el miedo a morir
sin haber dicho ni una vez
soy libre!.
Nancy Messieh, fotógrafa e poeta egípcia, autora do livro de poemas em inglês
Photographs Never Taken.
ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
Resenhas
CONVERSACIONES CON EDWARD SAID
Mabel González Bustelo67
Autor: Tariq Ali
Alianza, Madrid, 2010- 132 paginas.
Un duelo de gigantes. Así podría definirse el contenido de este libro, donde dos amigos que
figuran entre los más relevantes intelectuales del siglo XX y de este en el que vivimos; dos
voces transgresoras y disidentes, conversan sobre historia, política, música, literatura y, en
definitiva, sobre la vida. Edward Said, el más grande cronista del pueblo palestino, evoca en
estos diálogos su vida, su implicación en la causa Palestina, pero también su pasión por la
literatura y la música, o su convicción de que se ha erigido un muro artificial entre la cultura y
la política que es necesario derribar. Cuando esta conversación tuvo lugar, hacía tres años
que a Said se le había diagnosticado leucemia, una enfermedad contra la que luchó durante
más de diez años hasta su fallecimiento en el año 2003.
Los diálogos reproducidos en este libro fueron filmados en 1994, en el apartamento de
Edward Said en Riverside Drive (Nueva York).
Las sesiones se editaron para convertirse en el documental Una conversación con Edgard
Said, producido por Bandung Films para el canal británico Channel 4. Años más tarde,
67
Prof. Facultad de Periodismo da UCM. Jornalista e analista de política internacional.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
143
alguien pidió a Tariq Ali que localizase el material sin editar, para poder disfrutar de la
riqueza de los diálogos íntegros. Esta es la trascripción de aquellas conversaciones,
prácticamente literal, con poca edición para que la conversación y su ritmo fluyan de forma
natural. El resultado es un libro fascinante a dos voces lleno de sentimientos y
complicidades.
No podía ser de otra forma. Por un lado, Tariq Ali, escritor y cineasta anglo-paquistaní,
intelectual comprometido, autor de ensayos políticos e históricos, obras de teatro, novelas y
guiones cinematográficos, miembro del consejo editorial de Verso y New Left Review. Por
otro, y como protagonista del diálogo, Edward Said, uno de los intelectuales palestinos más
importantes del siglo XX, profesor de Columbia, autor de obras de referencia como
Orientalismo, Cultura e imperialismo, o La cuestión de
Palestina, y miembro del Consejo Nacional Palestino hasta 1991. Ambos, nacidos en
culturas de Oriente pero afincados en Occidente; ambos con un firme compromiso político,
simpatizantes de la izquierda, y feroces defensores del derecho y el deber del intelectual de
ser crítico frente a cualquier ortodoxia.
En el inicio del volumen Said desgrana la historia de su vida, íntimamente entrelazada y a la
vez lejana de la de Oriente Medio. Nacido en Jerusalén en el seno de una familia cristiana
árabe adinerada, todos se ven obligados a trasladarse a Egipto en 1948. Su infancia
transcurrió bajo la doble disciplina estricta de su padre y de los colegios británicos donde
estudiaba.
Llegada la adolescencia fue enviado a EE UU, a un colegio de Nueva Inglaterra que califica
de puritano e hipócrita. La ruptura y el desarraigo afloraron en una situación totalmente
nueva y desconcertante. Pese a los costes internos, su adaptación fue exitosa y del
internado pasó a licenciarse en Princeton y doctorarse en Harvard, para terminar como
profesor de Literatura Comparada en Columbia.
Su vida plácida como profesor en Columbia se rompió con la guerra de 1967 y la humillante
derrota de las tropas árabes frente a Israel. Esto cambió su vida. “En ese momento estaba
en Nueva York y me dejó totalmente devastado. El mundo, como yo lo entendía y conocía,
había acabado por completo en ese momento. Y fue poco después cuando comencé, por
primera vez –ya llevaba viviendo en Estados Unidos quince o dieciséis años- a establecer
contacto con otros árabes”.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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A partir de entonces Said se implicó a fondo con el movimiento de resistencia. Se convirtió
en el intelectual palestino de referencia en Occidente, una voz lúcida, siempre crítica,
inagotable.
Entre muchas otras cosas, ayudó a escribir el histórico discurso que pronunció Yaser Arafat
ante la ONU en 1984. Aquel en el que afirmó que cualquiera que lucha por una causa justa y
por la libertad y liberación de su tierra frente a invasores, colonos y colonialistas, no puede
ser llamado terrorista. El propio Said había de ser calificado de terrorista en los años
siguientes.
Aunque defendió la causa palestina de forma incansable hasta su muerte, no sucedió lo
mismo con su liderazgo, al que criticó de forma ácida y feroz especialmente a partir de los
acuerdos de Oslo. Esto le brindó nuevos enemigos, aunque paradójicamente no aquellos
que siempre le habían llamado terrorista y ahora tenían a Isaac Rabin por un traidor, sino la
gente de la que había sido más cercano. “La comunidad liberal, la que sentía ligeramente lo
que estaba pasando, la que estaba ligeramente horrorizada con la ocupación, ahora estos
son los que están tremendamente decepcionados conmigo y dicen que soy un enemigo de
la paz, que en realidad soy un fundamentalista islámico, que me opongo desde el
extremismo, que lo rechazo todo”.
En realidad, Said creía que la cúpula palestina había perdido la visión política y estratégica
al aceptar, a cambio de casi nada, un acuerdo tremendamente desventajoso que nunca
permitiría emerger una Palestina libre e independiente.
Un liderazgo, dice, que negociaba en nombre de un pueblo y un territorio que, tras tantos
años de exilio, apenas conocían. Al aceptar un acuerdo que dejaba todas las cuestiones
importantes (la ocupación, los asentamientos, los refugiados y el estatus de Jerusalén)
abiertas, y por tanto en manos de la potencia más fuerte, Israel, pensó que habían aceptado
la muerte de facto de Palestina.
A pesar de esta ruptura, nunca dejó de defender los derechos palestinos. Y pese a ella,
tampoco oculta su fascinación por la personalidad de Arafat. “Me impresionaron su
inteligencia, su rapidez, su memoria, su fantástico atractivo (…). Podía interactuar, mantener
siete conversaciones a la vez, hacer veinte cosas distintas
–hablar, comer, contestar al teléfono, escribir, ver la televisión, todo al mismo tiempo (…). A
diferencia de la mayoría de los líderes árabes, él era accesible”. Aunque su relación fue
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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compleja, y Arafat siempre vio y clasificó a Said como un estadounidense, y a pesar de las
críticas que luego vendrían, esa fascinación parece haber sobrevivido al paso del tiempo.
Arafat, asegura, era diferente a los líderes árabes en una cuestión fundamental: siempre
escuchaba, y además parecía entender.
Said y Ali abordan también el impacto y la polémica que siguieron a la publicación de
Orientalismo, el primer gran ensayo de Said sobre el eurocentrismo cultural. Un producto,
como él mismo dice, de su renacida conciencia árabe, y de su convencimiento de que no
hay distancia ni separación entre la literatura y la política.
“Comencé a leer, metódicamente, lo que se había escrito acerca de Oriente
Próximo. Aquello no se correspondía con mi experiencia. A principios de la
década de los setenta comencé a darme cuenta de que las distorsiones y las
falsificaciones eran sistemáticas, parte de un sistema de pensamiento más
amplio y endémico en toda la empresa occidental de las relaciones con el mundo
árabe”.
Said analizó algunas obras clave del canon estético occidental desde un punto de vista
político. En sus propias palabras, trataba de socavar los presupuestos más fundamentales
de Occidente con respecto al Oriente árabe, el “discurso” sobre Oriente, construido en
Francia y el Reino Unido en los dos siglos posteriores a la invasión napoleónica de Egipto, y
que se convirtió en instrumento de la dominación cultural y política occidental. Said se centró
en de-construir sus bases: la distorsión, la exotización, la vulgarización, en realidad
suposiciones imperialistas presentadas como una verdad universal en beneficio del
predominio occidental. El libro tuvo resonancia mundial y amplio respaldo académico.
Con los años se ha convertido en un clásico, aunque también le procuró a Said críticas
feroces.
Tanto en la literatura como en la política Said mantuvo una postura ética que le convirtió en
eterno portador de la etiqueta de incómodo y le granjeó respeto y reconocimiento, pero
también abundantes y diversos enemigos.
Cosmopolita y desarraigado, era un ciudadano de todas partes y de ninguna, algo en lo que
quizá coincide con Tariq Ali. Nueva York era, como confiesa en este libro, el lugar ideal para
él. El lugar donde cualquiera puede ser anónimo porque nadie se puede sentir como en
casa. “Nueva York es una especie de ciudad de exilio. Sin raíces”.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Fiel a su identidad y aunque envuelto en una lucha atroz contra la enfermedad, nunca
renunció a su derecho a la divergencia. “Siempre hay una oportunidad, sin importar que uno
se sienta contra la pared sin ninguna alternativa excepto someterse; siempre hay una
oportunidad de hacer otra cosa. Siempre hay una oportunidad para formular una alternativa,
y no sólo quedarse callado o capitular. Creo que para mí es el precepto social más
importante, y en cierto sentido rige el modo en el que yo entiendo la política”.
Said y Ali abordan otras cuestiones como el colapso de la izquierda árabe y el ascenso del
fundamentalismo religioso, o la falta de credibilidad de muchos regímenes árabes
contemporáneos.
Pero este libro también ilumina otras facetas de Said menos conocidas pero igualmente
fascinantes, como su profundo conocimiento y devoción por la música (de Chopin a Glenn
Gould, de Messiaen a Boulez, a los que analiza como músico experto y como crítico musical)
y la literatura (Conrad, Camus, Kipling...). Guiado por la mano lúcida y cómplice de Tariq Ali,
este volumen de conversaciones nos adentra en los pensamientos de dos de los
intelectuales más relevantes de nuestros días. Un auténtico lujo, en poco más de cien
páginas.
Fonte: Revistas Papeles-de-relaciones-ecosociales-y-cambio-global. Nº110.
ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
RESUCITAR A MARX
Reseña de la última obra de Carlos Fernández Liria y Luis Alegre Zahonero
Manuel M. Navarrete
Rebelión
“En la ciencia no hay calzadas reales y sólo llegarán a sus cimas
luminosas quienes no escatimen esfuerzos para escalar sus senderos
escarpados” (Karl Marx, prólogo a la edición francesa de El Capital,
1872).
I
Este artículo pretende ser una reseña de El orden de El Capital, el último libro de los
profesores Carlos Fernández Liria y Luis Alegre Zahonero, que acaba de ser publicado por
la editorial Akal, con prólogo de Santiago Alba Rico. Pretende, asimismo, ofrecer una
somera exposición de ciertas claves de El Capital, acercando la obra magna de Marx a
algunos de nuestros lectores que, a priori, podrían considerarla una lectura cuanto menos
áspera. Trataremos de convencerlos de que, muy al contrario, afrontar El Capital les
resultará siempre fascinante.
En esta nueva colaboración, los autores del polémico contramanual de Educación para la
ciudadanía (y de una visión ilustrada de la Revolución Bolivariana publicada por Hiru:
Comprender Venezuela, pensar la democracia) exponen tesis que, sin duda, van a dar
mucho que hablar. Sin embargo, se piense lo que se piense de dichas tesis, nadie podrá
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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discutir que esta nueva obra constituye un novedoso instrumento desde el que acercarse a
El Capital y arrojar luz sobre sus implicaciones.
Fernández Liria suele comentar que, hace una década, justo cuando se disponía a publicar
un libro sobre El Capital, Luis Alegre (por aquel entonces, alumno suyo) descubrió un
pequeño hilo suelto en la argumentación y, tirando de él, toda la obra se deshizo. El
problema surgió a partir del desconcertante hecho de que Marx, después de haber expuesto
en el libro I de El Capital que toda mercancía tiene un valor de uso y un valor (de cambio),
nos informa, en el libro III, de que las mercancías... no se venden a su valor (tal como éste
concepto había sido definido en el libro I), sino a su “precio de producción”. ¿Qué sentido
tiene entonces la ley del valor? ¿De qué fenómeno puede dar cuenta? ¿Qué realidad
invisible puede sacar a la luz? ¿Para qué, en suma, la pone en juego Karl Marx?
II
Para empezar, hay que tener en cuenta el dispositivo conceptual que Marx desarrolla en la
Sección 1ª del libro I de El Capital. El pensador alemán (un “Galileo de la historia”, en
palabras de Liria y Zahonero), en su pretensión de hacer ciencia (y no mero empirismo),
genera unas condiciones artificiales de laboratorio que le permiten aislar determinados
fenómenos. De este modo, nos sitúa ante un mercado simple de libres productores
independientes que intercambian sus mercancías (es decir, productos fabricados para ser
vendidos, y no para consumirlos). En dicho mercado, se intercambiarían equivalentes, ya
que cada productor buscaría su propio interés y esto generaría un equilibrio espontáneo.
Pero ¿qué cualidades comunes podemos encontrar entre dos mercancías completamente
diferentes, que posibilite que dichas mercancías sean intercambiadas? Únicamente dos:
saciar necesidades humanas (valor de uso) y ser productos del trabajo (mediremos ese
trabajo en horas de trabajo: valor de cambio... o valor). Sólo más tarde surgirá,
necesariamente, una mercancía que será adoptada como equivalente general (el dinero) y
con respecto a la cual se originará un fetichismo, que, erróneamente, hará percibir en ella (y
no en el trabajo) la verdadera fuente del valor.
Al final de la Sección 2ª, sin embargo, Marx nos despierta de la ilusión, invitándonos a
abandonar la ruidosa esfera de la circulación para seguirle hasta la zona de “No admittance
except on business” . Nos recuerda, en este punto, que el mundo real no está constituido
por productores independientes que intercambian mercancías equivalentes, sino
estratificado en dos clases fundamentales, una de las cuales compra la fuerza de trabajo y
otra de las cuales la vende. En este caso, las mercancías que se intercambian son salario
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
149
por un lado y fuerza de trabajo por el otro. Resumiendo mucho, por razones de espacio,
diremos que la fuerza de trabajo, al trabajar, genera una cantidad de valor superior a la que
el salario podrá adquirir más tarde en el mercado. A ese “más-valor” Marx lo denomina,
sencillamente, plus-valor. A la clase de hombres que compra fuerza de trabajo, clase
capitalista. Al dinero que estos hombres vuelcan en la circulación con el objetivo de generar
plusvalor, sencillamente capital. De este capital, una parte será constante (el empleado en
materias primas e instrumentos de trabajo, como hoces y martillos) y otra variable (el
empleado en contratar a la fuerza de trabajo, cuyo trabajo es el que hace variar la suma
inicial de dinero, obteniendo más dinero que, más tarde, volverá a reinvertirse, dando lugar a
una reproducción ampliada).
Pero ¿cómo se llega a esta situación, que ahora nos parece tan natural, pero que no deja de
ser absurda, en la que unas personas son compradoras ricas y otras vendedoras pobres de
fuerza de trabajo? ¿Cómo se desemboca en un mundo en el que unos hombres “eligen”
trabajar gratis para otros durante varias horas al día (las horas en las que producen el
plusvalor) y en el que el intercambio (fuerza de trabajo vs salario) no se da entre valores
equivalentes (mundo en el que no rige, por tanto, el principio republicano de igualdad ) ?
III
En respuesta a estos interrogantes, en los dos últimos capítulos del libro I, Marx introduce
algo que, a primera vista, podría parecer una enmienda a sí mismo, pero que cobra sentido
dentro de su orden de exposición lógico-categorial: la “acumulación originaria” de capital,
que, en toda Europa, tras finalizar la Edad Media, supuso un prolongado y violento proceso
histórico de expulsión masiva de la población campesina de sus tierras. También nos habla
de la historia de Mr. Peel, empresario de la época que llevó un ejército de trabajadores a
Australia, junto con todos los materiales necesario para construir una fábrica, pero que se
encontró con que sus trabajadores lo abandonaban para establecerse como campesinos en
la tierra virgen de Oceanía (en la cual, por aquel entonces, aún no se había producido una
“acumulación originaria”).
¿Qué significa esto? Que una persona sólo vende su fuerza de trabajo cuando ha sido
privada de cualquier otro sustento vital (como la tierra). Para Liria y Zahonero, éste es un
hecho fundamental, porque de él se deduce que, a pesar de la ficción con la que la sociedad
moderna se representa a sí misma, nuestro mundo no está constituido a partir del principio
de la propiedad individual (requisito kantiano de la independencia civil, es decir, del principio
ilustrado por antonomasia, junto a la libertad y la igualdad), sino, precisamente, a partir de
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
150
su aniquilamiento y sustitución por la gran propiedad capitalista (que supone, en palabras de
Marx, la expropiación del 90% restante de la sociedad).
Sin embargo, en el libro III, nos encontramos con una nueva vuelta de tuerca: el plusvalor se
convierte en ganancia y el valor en precio de producción. ¿Qué significa esto? En el libro I,
que narraba cómo funcionaría la circulación mercantil si existiera, digamos, una sola
empresa, sólo el capital variable hacía variar (y, obviamente, crecer) el valor inicial
desembolsado por el capitalista, mientras que el constante (maquinaria y materia prima), al
hacer uso de él, iba transmitiéndose al valor de la mercancía progresivamente. Ahora, sin
embargo, en mitad de la concurrencia capitalista, nos encontramos con que se produce una
nivelación de las tasas de ganancia y las empresas no obtienen beneficios en función del
dinero invertido en capital variable, sino una cantidad proporcional al capital total invertido.
¿Por qué? Porque, en una situación de competencia, los precios que establece una
empresa están determinados por la tasa de ganancia media de su rama, y no por la tasa de
plusvalor creada en el interior de dicha empresa en particular. De este modo, si puede
vender un poco más caro (aprovechando, por ejemplo, una productividad superior a la
media), en su ánimo de lucro, lo hará. El juego de la oferta y la demanda, además, tiene
también su influencia sobre el precio final de mercado.
Pero, entonces, ¿qué sentido tiene para Marx la ley del valor? ¿Por qué Marx, al inicio de El
Capital, nos remite a un mercado generalizado de equivalentes, si éste nunca ha existido
históricamente? ¿Por qué al final del libro I introduce lo que, sólo en apariencia, sería una
auto-enmienda? ¿Y por qué en el libro III, miles de páginas más tarde, nos aclara finalmente
la cuestión de los precios? ¿Qué sentido tiene, en suma, el desconcertante orden de los
capítulos y libros de El Capital?
IV
Según la teoría de Liria y Zahonero, la ley del valor no consigue determinar los precios,
porque tampoco lo intenta. Para Marx, la cuestión de cómo los capitalistas se reparten el
plusvalor entre ellos es algo secundario (que se afronta, como hemos visto, en el libro III) .
Lo primordial es investigar cómo es posible que en la sociedad moderna aparezcan dos
clases fundamentales de seres humanos: los compradores ricos y los vendedores pobres de
fuerza de trabajo. Para fundamentar el concepto de explotación, era estrictamente necesario
construir previamente el concepto de plusvalor (y los conceptos de trabajo necesario y
plustrabajo , dando cuenta de cuántas horas diarias trabaja el obrero para sí mismo y
cuántas lo hace gratuitamente para engordar la fortuna del capitalista) y, obviamente, este
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
151
concepto de plusvalor no podía construirse sin la teoría del valor. También es significativo
que Marx abandone, desde el principio, la denominación “valor de cambio”, para hablar de
algo diferente: el “valor”.
Pero no fueron pocos, nos dicen Liria y Zahonero, los marxistas que vinieron a embrollar
aún más la situación, recurriendo al as en la manga de la aufhebung hegeliana, capaz de
dar cuenta de una identidad entre contrarios (en este caso, entre los libros I y III de El
Capital ). Al igual que Althusser (pero a diferencia de Lukács o, por citar un autor actual,
Kohan), Liria y Zahonero consideran que Marx, tras su ruptura epistemológica, conserva la
dialéctica como un mero recurso expositivo, pero no como dispositivo teórico fundamental ni
como método de comprensión de la realidad. Para nuestros autores, el precio no es la
verdadera expresión del valor, sino que estos dos términos remiten a dos consistencias
estructurales diferentes, con implicaciones diferentes también. Porque la primera de ellas, la
consistencia-valor, al estar determinada sólo por el capital variable, remite a las mercancías
como productos del trabajo humano, no considerando todavía dicho trabajo como la
consecuencia de una inversión de tipo capitalista. En cambio, desde la categoría “precio de
producción” (es decir, desde los ojos del capitalista, desde la circulación del dinero como
capital y no como simple dinero), las diferencias entre funcionar y trabajar (capitales
constante y variable), o incluso entre invertir y trabajar (compra y venta de fuerza de trabajo),
se diluyen, al no tener consecuencias económicas directas para su bolsillo. Sin embargo,
para el científico social, dichas diferencias sí conllevan cruciales implicaciones
metodológicas, porque someten al sistema a dos interrogantes distintos.
Así pues, la construcción, al inicio del libro I, de lo que anteriormente denominamos
“condiciones artificiales de laboratorio” nos permite aislar un fenómeno (el de la explotación
de una clase por otra), mientras que, en contraste, el libro III constituye ya una constatación
empírica y descriptiva del funcionamiento real de la sociedad capitalista. Y el orden de los
libros de El Capital no implica, como asumió una parte de la tradición marxista, que baste
tirar del hilo de la “libertad-para-hacer-lo-que-quiera-con-lo-que-es-mío” (es decir, de la
lógica del libro I) para obtener, sin más, el mercado generalizado capitalista (o sea, la lógica
del libro III), sino que, por el contrario, para llegar a esta última situación fue necesario,
como ya hemos visto, introducir un mecanismo completamente ajeno y diametralmente
opuesto a esa o cualquier otra libertad: el terror y la sangre de la acumulación originaria.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
152
V
Los economistas burgueses, por su parte, acusaron naturalmente a Marx de incoherencia,
ya que no comprendieron (o no les interesó comprender) el papel de la teoría del valor en la
Sección 1ª de El Capital. Además, en su grotesco afán por justificar la estructura del poder
capitalista, estos economistas trataron de asimilar nuestra realidad a un mercado justo e
igualitario, en tanto que todos, compradores y vendedores de fuerza de trabajo, aparecen
como propietarios de algo, que intercambian libremente. Sin embargo, la Ilustración
(empezando por Kant) jamás habría aceptado la ficción jurídica que supone llamar
propietario al que no posee nada exterior a sí mismo, salvo su propio pellejo, porque,
obviamente, tal noción carecería de sentido jurídico, ya que, en ese caso, nadie podría no
ser propietario. El pensamiento ilustrado tampoco habría aceptado jamás que se pudiera
considerar ciudadano a alguien desprovisto de independencia civil; es decir, a alguien que,
al no poseer nada, depende de otros para obtener su sustento.
Ahora bien, efectivamente, una vez puesta en juego la “acumulación originaria”, una vez
despojada la población de sus medios de subsistencia, los obreros aparecerán en el
mercado y venderán su fuerza de trabajo libremente (aunque, en cambio, no tendrán libertad
para cambiar de “sector” y pasar a ser compradores, en lugar de vendedores, de fuerza de
trabajo...), especialmente porque la única alternativa a ejercer esa peculiar libertad (la
libertad, recordemos, para vender fuerza de trabajo) será, en realidad, la muerte de hambre.
Por otro lado, una vez activado este mecanismo, una auténtica liberación se hace imposible,
porque, en la esfera económica, todo incremento de la libertad individual conllevará,
automáticamente, un incremento de la dominación y un deterioro de las condiciones de vida.
¿Por qué? Porque, por ejemplo, si la negociación de los contratos de trabajo es libremente
individual, en lugar de imperativamente colectiva, dada la existencia de una masa
permanente de parados (que Marx llama “ejército industrial de reserva”), siempre habrá
alguien dispuesto a vender su mano de obra por un salario más bajo del que perciban los
que ya estén trabajando. Así, de no existir la negociación colectiva y sindical, los salarios
descenderían hasta el límite mínimo de la subsistencia, generándose, como demostró Karl
Polanyi, unas condiciones sencillamente incompatibles con el ejercicio de cualquier libertad
o derecho.
Así pues, ni igualdad, ni independencia civil, ni libertad. El capitalismo no fue (como trata de
aparentar) el legítimo sucesor de la Ilustración, sino que, en un auténtico coup d'état, la
traicionó y falsificó descaradamente. Tal es la tesis fundamental de este sugerente libro
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
153
(tesis en la que aquí, por razones de espacio, no profundizaremos más, pero para cuya
comprensión recomendamos la lectura directa de la obra de Liria y Zahonero).
VI
¿Qué alternativas nos deja esta situación? La socialdemocracia, nos dicen nuestros autores,
ha tratado de reformar el capitalismo o de hacerlo “más humano”, sin comprender que el
Estado de bienestar fue una excepción histórica, lograda hace más de medio siglo por un
sindicalismo radicalizado y ante la presión política de la Unión Soviética (que tenía una
“quinta columna” en todos los países del mundo), es decir, en una correlación de fuerzas
que no volverá a darse en mucho tiempo, si es que se vuelve a dar. Para colmo, la
socialdemocracia no tuvo en cuenta que el nivel de vida del Primer Mundo es un privilegio
imposible de generalizar a todo el planeta, dato que ha sido demostrado matemáticamente
por el Global Footprint Network (California). Obvió, asimismo, que, bajo el capitalismo, el
Estado de bienestar sólo es posible sobre la base de lo que Emmanuel Arrighi denominó
“intercambio desigual”. Dado que los capitales no chocan contra fronteras institucionales,
pero las personas sí, la clase obrera no podrá trasladarse a las empresas del mundo que
ofrezcan mejores salarios, sino que, con suerte, podrá elegir entre las que existan en un
determinado país. Por tanto, aunque las tasas de ganancia tenderán, como siempre, a
nivelarse a escala global (nivelación de la que, como vimos, dependen los precios), las tasas
de explotación, en cambio, serán diferentes en cada marco de relaciones laborales, en
función de los éxitos y derrotadas en las luchas políticas, sindicales y de clases. En
consecuencia, un salario primermundista dará acceso a bienes en los que habrá cristalizada
una cantidad de horas de trabajo tercermundista muy superior a la que el trabajador
primermundista ha necesitado efectuar para cobrar su salario, produciéndose, de facto, un
fenómeno de explotación global del norte al sur (lo que, obviamente, no anula la
contradicción entre clases también existente en el norte).
Descartados el capitalismo (que motiva esta auténtica barbarie) y la socialdemocracia
(ineficaz para contener al capitalismo), como conclusión, Liria y Zahonero aclaran cuál es la
alternativa que proponen: el comunismo, la cooperativización o incluso estatalización de los
medios de producción. Sin embargo, aclaran también que, como proyecto político, no están
dispuestos a defender cualquier versión posible del comunismo (como tampoco lo estuvo
Marx), sino sólo una versión que respete los principios de la Ilustración (que el capitalismo,
como hemos visto, proclama pero a la vez anula): la igualdad, la independencia civil y la
libertad, como exigencias irrenunciables de la razón. Además, matizan que, en una sociedad
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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socialista, podrían encomendarse determinadas funciones, como la asignación de recursos
escasos, a un mercado controlado.
VII
Ésta es, pues, la resurrección de Marx que los autores de El orden de El Capital proponen.
Una resurrección que, por supuesto, tendrá sus seguidores y sus detractores. Pero a la que
todos, incluso sus detractores, tendrán que reconocer el mérito de ir más allá de la merarepetición-inútil de las ideas de nuestro gigante del pensamiento y, en definitiva, de proponer
algo mejor: una reapropiación crítica de su genial método de análisis de la sociedad
capitalista. Un método que, a día de hoy, sigue demostrando extraordinaria fertilidad.
Esperamos, para terminar, que no sea preciso insistir en la importancia (tan subestimada
por la estrechez de miras del espontaneísmo) del análisis teórico para un correcto diseño de
la táctica política. Por eso, como dirían los autores de esta magnífica obra, hay que leer, o
seguir leyendo, El Capital.
Fonte: rebelión.org
ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online
Notícias
DEFAULTS
Alfredo Zaiat68
En una muestra de 66 países de los cinco continentes, que representan el 90 por ciento del
PBI mundial, se relevó que en el período 1800-1945 se registraron 127 episodios de default,
con una duración promedio de 6 años. En los años que van de 1946 a 2006, la interrupción
en el pago de deudas se repitió 169 veces, de lapso medio de 3 años. Ese inventario
también abarcó de 1300 a 1799, cuando países europeos considerados hoy muy ricos
(Alemania, Francia) contabilizaron varios acontecimientos de cesación de pago, al igual que
Austria, España y Portugal. Estados Unidos no declaró formalmente un default pero alteró
en dos oportunidades la paridad del dólar con el oro (1933 y 1971), lo que implicó pagar su
deuda con una moneda depreciada, que en los hechos significó una quita de capital a los
acreedores. Este recorrido histórico forma parte de una investigación apabullante de cifras e
indicadores de los economistas Kenneth Rogoff (ex economista jefe del FMI) y Carmen
Reinhart (ex vicepresidente del banco de inversión Bear Stearns) en “Ocho siglos de crisis
financieras. Historia mundial de los defaults”. Es un libro oportuno en momentos donde el
temor al default de deuda de economías europeas provoca fuertes oscilaciones en las
cotizaciones de activos financieros y puede sumergir a las potencias en una nueva recesión.
La perspectiva histórica ofrece un análisis más sereno en un escenario de incertidumbre y
desmorona afirmaciones ligeras vinculadas con lo que representa un default, en particular
con la cercana experiencia argentina.
68
Economista, comentarista de economia do jornal Pagina 12.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Rogoff advierte que “los inversores, como los funcionarios y líderes políticos, generalmente
ignoran las muchísimas experiencias históricas de crisis financieras. Y los pocos que tienen
una mínima noción de lo sucedido en otras épocas muy a menudo dicen: ‘esta vez es
diferente...’”. Junto a Reinhart han registrado los defaults de deudas externas de 66 países:
13 africanos, 18 latinoamericanos, 12 asiáticos, 19 europeos, además de Norteamérica y
Oceanía. En una de sus conclusiones afirman que “los defaults en serie siguen siendo la
norma” a lo largo de la historia, destacando que entre 2003 y 2007 no hubo esos episodios
pero que no es motivo para alegrarse porque fue “un típico respiro, una típica tregua, luego
de una larga crisis”, y que desde entonces se ha iniciado una nueva ola.
En esa investigación se observa como factor distintivo que los defaults recorren toda la
historia del capitalismo. Ocurrieron en diferentes etapas, desde la formación de los Estados
nacionales, el mercantilismo, el capitalismo moderno hasta la globalización financiera. Una
de las características que destacan es que “el fenómeno de los defaults más bien pareciera
un rito de pasaje universal para casi todos los países mientras transitan el camino desde la
condición de emergente a la de Estados desarrollados”. Ponen como ejemplo a Francia, que
defaulteó los pagos de su deuda externa 8 veces entre 1558 y 1788, mientras que España lo
hizo 6 veces entre 1557 y 1647. En esa época los defaults eran tan usuales que los reyes
franceses ejecutaban a sus acreedores (bloodletting) como estrategia para “reestructurar
deudas”. El ministro de Finanzas francés Abbe Terray entre 1768-1774 reivindicó que los
gobiernos deberían defaultear una vez cada cien años, a fin restaurar el equilibrio. Con esos
antecedentes, afirman que “no sería justo calificar a ninguno de los mercados emergentes
de hoy con el título de defaulteador serial”.
Desde 1800 los datos son más completos, lo que les permitió agrupar los episodios de
cesación de pago en cinco ciclos:
- El primero es durante las Guerras Napoleónicas, período que fue muy importante puesto
que solo en el peor momento de la crisis de la deuda de 1980 se aproxima a los niveles de
defaults de comienzos de 1800.
- El segundo va de 1820 hasta finales de 1840, cuando cerca de la mitad de todos los
países del mundo estaban en default, incluyendo a todos los de América latina.
- El tercer capítulo arrancó a principios de la década de 1870 y duró aproximadamente dos
décadas.
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157
- El cuarto comenzó con la Gran Depresión de los años ’30 del siglo pasado y se extendió
hasta principios de la década del ’50. En estos años que siguieron a la Segunda Guerra
Mundial se produjo el pico más grande en la historia moderna, cuando los países que no
pagaban o estaban reestructurando sus deudas representaron el 40 por ciento del Producto
mundial. Esto se explica por la guerra pero también por el arrastre de la crisis económica
del ’30.
- La etapa más reciente fue entre los años ’80 y ’90 en los países en desarrollo, con el caso
argentino como el más notable.
Si bien es el incumplimiento de deuda más reciente y estruendoso por su magnitud, en el
estudio de Rogoff y Reinhart se revela que Argentina no se encuentra al tope de los países
defaulteadores de la región. Desde su independencia al 2006, Argentina defaulteó 7 veces;
Brasil lo hizo en 9 oportunidades; México en 8; y Venezuela en 10. También se precisa que
Ecuador, México, Perú, Venezuela y Nicaragua estuvieron en cesación de pagos o
reestructurando deudas más del 40 por ciento de los años transcurridos desde que lograron
la independencia. Argentina, 32 por ciento. En Europa, España defaulteó el record de 13
veces; Alemania y Francia lo hicieron 8 veces cada uno. Grecia, 5 desde 1829, pero más del
50 por ciento de los años estuvo en default o reestructurando.
Pocos países no han defaulteado formalmente: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá,
Nueva Zelanda, Australia, Bélgica, Suecia, Noruega, Dinamarca, Finlandia, Corea del Sur,
Singapur. De todas formas, algunos de ellos defaultearon de hecho, como Estados Unidos.
Lo hizo cuando rebajó el contenido de oro de la moneda en 1933 o cuando suspendió la
convertibilidad en el siglo XIX durante la Guerra Civil y luego otra vez más y definitiva en
agosto de 1971.
Una de las enseñanzas más contundentes que Rogoff y Reinhart extraen de su monumental
investigación es “la impresionante correlación entre la libre movilidad del capital y la
ocurrencia de crisis bancarias”. “Los defaults son altamente sensibles a los vaivenes de los
flujos de capitales”, indican, lo que revaloriza una estrategia de desendeudamiento y
marginación del mercado financiero internacional, conducta que transita a contramano de la
evolución histórica de los países en un contexto de abundancia de capitales que induce a un
sobreendeudamiento. Este proceso desembocó en crisis por algún shock externo (suba de
la tasa de interés, baja de las materias primas o crisis de deuda en las potencias) y pone en
evidencia la vulnerabilidad de esas economías.
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En esta instancia resulta un valioso complemento el análisis del economista de formación
marxista Rolando Astarita, que explica en su blog que “los defaults han permitido restablecer
el curso de la acumulación a lo largo de prácticamente toda la historia del capitalismo”.
Agrega que ésta “está marcada por períodos de intensa acumulación, que llevan a la
sobreexpansión, empujada por el crecimiento del crédito y el aumento de los flujos de
capitales”. Las crisis bancarias se deben a que las fases alcistas son seguidas por crisis de
sobreproducción, con violentas caídas de los precios y los valores. “La acumulación de
deudas por parte de los gobiernos, y su posterior liquidación violenta, no es ajena a esta
dinámica”, apunta, puesto que “los defaults de las deudas externas de los gobiernos forman
parte de las desvalorizaciones de capitales, que acompañan toda crisis”. El repudio de las
deudas o su pago con moneda depreciada son las vías por medio de las cuales se realizan
esas desvalorizaciones. Por esto también, en determinado punto, se acuerda que la única
salida para restablecer la acumulación del capital pasa por el default y la reestructuración de
las deudas. Sucedió en Argentina en 2001 y es lo que se vislumbra hoy para Grecia.
Como dicen Rogoff y Reinhart en el último párrafo de la investigación, pensar que Grecia u
otro país europeo “nunca más defaultearán porque ‘esta vez es diferente’ debido a que ‘esta
vez está de por medio la Unión Europea’ podría revelarse en cualquier momento, no
necesariamente en el largo plazo, como una inferencia poco feliz. Como tantas otras de la
historia financiera mundial”.
Fonte: Pagina12: 08.10.2011
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QUEN DEVE A QUEN? A VERDADEIRA DIVIDA EXTERNA
A propósito da crise atual da União Européia e a polemica sobre si Brasil e outros países
latino-americanos devem o não colaborar com o FMI para ajudar a Europa, apresentamos
uma dissertação do Cacique Guaicaipuro Cuatémoc perante a reunião de Chefes de Estado
da UE, proferido no aniversario dos 500 anos do descobrimento de América.
Com linguagem simples, que era transmitido em tradução simultânea a mais de uma
centena de Chefes de Estado da Comunidade Européia, o líder indígena, Guaicaipuro
Cuatémoc conseguiu inquietar a sua audiência quando discorreu:
"Aquí pues yo, Guaicaipuro Cuatémoc he venido a encontrar a los que celebran
el encuentro. Aquí pues yo, descendiente de los que poblaron la América hace
cuarenta mil años, he venido a encontrar a los que la encontraron hace sólo
quinientos años. Aquí pues, nos encontramos todos. Sabemos lo que somos, y
es bastante. Nunca tendremos otra cosa.”
El hermano aduanero europeo me pide papel escrito con visa para poder descubrir a los que
me descubrieron. El hermano usurero europeo me pide pago de una deuda contraída por
Judas, a quien nunca autoricé a venderme. El hermano leguleyo europeo me explica que
toda deuda se paga con intereses, aunque sea vendiendo seres humanos y países enteros
sin pedirles consentimiento. Yo los voy descubriendo.
También yo puedo reclamar pagos y también puedo reclamar intereses. Consta en el
Archivo de Indias, papel sobre papel, recibo sobre recibo y firma sobre firma, que
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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solamente entre el año 1.503 y 1660 llegaron a San Lucas de Barrameda 185 mil kilos
de oro y 16 millones de kilos de plata provenientes de América.
¿Saqueo? ¡No lo creyera yo! Porque sería pensar que los hermanos cristianos faltaron a su
Séptimo Mandamiento. ¿Expoliación? ¡Guárdeme Tanatzin de figurarme que los europeos,
como Caín, matan y niegan la sangre de su hermano!
¿Genocidio? Eso sería dar crédito a los calumniadores, como Bartolomé de las Casas, que
califican al encuentro como de destrucción de las Indias, o a ultrosos como Arturo Uslar
Pietri, que afirma que el arranque del capitalismo y la actual civilización europea se deben a
la inundación de metales preciosos!. ¡No! Esos 185 mil kilos de oro y 16 millones de
kilos de plata deben ser considerados como el primero de muchos otros préstamos
amigables de América, destinados al desarrollo de Europa.
Lo contrario sería presumir la existencia de crímenes de guerra, lo que daría derecho no
sólo a exigir devolución inmediata, sino la indemnización por daños y perjuicios. Yo,
Guaicaipuro Cuatémoc, prefiero pensar en la menos ofensiva de estas hipótesis. Tan
fabulosa exportación de capitales no fueron más que el inicio de un plan "Marshalltezuma",
para garantizar la reconstrucción de la bárbara Europa, arruinada por sus deplorables
guerras contra los cultos musulmanes, creadores del álgebra, la poligamia, el baño cotidiano
y otros logros superiores de la civilización.
Por eso, al celebrar el Quinto Centenario del Empréstito, podremos preguntarnos: ¿han
hecho los hermanos europeos un uso racional, responsable o por lo menos productivo de
los fondos tan generosamente adelantados por el Fondo Indoamericano Internacional?
Deploramos decir que no. En lo estratégico, lo dilapidaron en las batallas de Lepanto, en
armadas invencibles, en terceros reichs y otras formas de exterminio mutuo, sin otro destino
que terminar ocupados por las tropas gringas de la OTAN, como en Panamá, pero sin canal.
En lo financiero, han sido incapaces, después de una moratoria de 500 años, tanto de
cancelar el capital y sus intereses, cuanto de independizarse de las rentas líquidas, las
materias primas y la energía barata que les exporta y provee todo el Tercer Mundo.
Este deplorable cuadro corrobora la afirmación de Milton Friedman según la cual una
economía subsidiada jamás puede funcionar y nos obliga a reclamarles, para su propio bien,
el pago del capital y los intereses que, tan generosamente hemos demorado todos estos
siglos en cobrar. Al decir esto, aclaramos que no nos rebajaremos a cobrarles a nuestros
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hermanos europeos la viles y sanguinarias tasas del 20 y hasta el 30% de interés, que los
hermanos europeos les cobran a los pueblos del Tercer Mundo.
Nos limitaremos a exigir la devolución de los metales preciosos adelantados, más el módico
interés fijo del 10 por ciento, acumulado sólo durante los últimos 300 años, con 200 años de
gracia. Sobre esta base, y aplicando la fórmula europea del interés compuesto, informamos
a los “descubridores” que nos deben, como primer pago de su deuda, una masa de 185
mil kilos de oro y 16 millones de plata, ambas cifras elevadas a la potencia de 300. Es
decir, un número para cuya expresión total, serían necesarias más de 300 cifras, y que
supera ampliamente el peso total del planeta tierra.
Muy pesadas son esas moles de oro y plata. ¿Cuánto pesarían, calculadas en sangre?
Aducir que Europa, en medio milenio, no ha podido generar riquezas suficientes para
cancelar ese módico interés, sería tanto como admitir su absoluto fracaso financiero y/o la
demencial irracionalidad de los supuestos del capitalismo.
Tales cuestiones metafísicas, desde luego, no nos inquietan a los indoamericanos. Pero sí
exigimos la firma de una Carta de Intención que discipline a los pueblos deudores del Viejo
Continente; y que los obligue a cumplir su compromiso mediante una pronta privatización o
reconversión de Europa, que les permita entregárnosla entera, como primer pago de la
deuda histórica...."
… Dicen los pesimistas del Viejo Mundo que su civilización está en una bancarrota que les
impide cumplir con sus compromisos financieros o morales. En tal caso, nos contentaríamos
con que nos pagaran entregándonos la bala con que mataron al poeta.
Pero no podrán; porque esa bala es el corazón de Europa.
Quando o Cacique Guaicaipuro Cuatémoc deu sua conferencia perante a reunião de Chefes
de Estado da Comunidade Européia, no sabia que estava expondo una tese de Direito
Internacional para determinar a verdadeira divida externa, agora só resta que algum governo
latino-americano tenha o valor suficiente para fazer o reclamo perante os Tribunais
Internacionais.
Fonte: www.elhistoriador.com.ar
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UN ESTUDIO CON PECES APUNTA A QUE LA IGNORANCIA
FAVORECE LA DEMOCRACIA
Si un cierto número de individuos no tiene preferencia por un bando u otro, finalmente
se acaba uniendo al grupo más numeroso y el control de la decisión regresa a la
mayoría
Washington. (EFE).- Un estudio realizado con un banco de peces demuestra que cuando
un grupo quiere tomar una decisión, los más ignorantes pueden contrarrestar la posición de
un grupo minoritario que quiere imponer su opinión, sumándose a la mayoría. El estudio
titulado Los individuos sin formación promueven el consenso en grupos animales, saldrá
publicado el viernes en el número del 16 de diciembre de la revista Science.
El profesor Ian Couzin, del departamento de Ecología y Biología Evolutiva de la Universidad
estadounidense de Princeton se plantea si la ignorancia puede favorecer la democracia. El
equipo parte de la premisa de que cuando un grupo debe tomar una decisión por consenso,
los miembros más testarudos pueden intimidar en los procesos decisivos para imponer su
posición, aunque estén en minoría.
No obstante, el estudio, realizado con bancos de peces, demuestra que contar con
miembros no formados en el grupo puede ayudar a contrarrestar ese efecto. "Este resultado
es inesperado, porque cuando un grupo incluye individuos sin fuertes preferencias parecería
que son más vulnerables a la influencia de una minoría extremista", indica la investigación.
Los investigadores primero desarrollaron un modelo experimental basado en la
congregación animal y otro en dinámicas de grupo en el que, ante dos objetos posibles a los
que dirigirse, una pequeña minoría podría dictar las decisiones del grupo.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Sin embargo, si un cierto número de individuos no tiene preferencia por un blanco u otro,
finalmente acaban uniendo al grupo más numeroso y el control de la decisión regresa a la
mayoría. Los autores probaron estas predicciones en bancos de peces de la especie
Notemigonus crysoleucas conocidos como carpitas doradas o sardinilla de quilla. Entrenaron
a los peces para moverse hacia un plato azul o amarillo y observaron el comportamiento de
los peces instruidos cuando fueron mezclados con otros que no habían recibido ningún tipo
de entrenamiento.
Los resultados experimentales confirmaron que los individuos no formados pueden
promover un resultado democrático al hacer valer la representación igualitaria de
preferencias en un grupo. "El trabajo de Couzin es un aporte importante en el estudio del
comportamiento y la toma de decisiones de grupos grandes", dijo a Efe, Carl Begstro, de la
Univesidad de Washington en Seattle, que publica un comentario sobre el artículo en
Science. Sin embargo, aclara que "hay que ser muy cautelosos, y no saltar de un estudio
como éste a extrapolaciones sobre la forma en que los humanos toman las decisiones".
"Nuestro modelo se refiere, exclusivamente, a una minoría empecinada que no cambia su
opinión", explicó. A diferencia de lo que sucede en el mundo real, "no es una minoría que
haga esfuerzo alguno por persuadir a otros en el grupo mayor, sino que mantiene
inflexiblemente sus posiciones. Esto no es lo que ocurre normalmente cuando hablamos de
sistemas de votación o como funciona la democracia entre los humanos. Ésa no fue la
intención".
Fonte: http://www.lavanguardia.com/vida/20111216/54241164970/estudio-ignoranciafavorece-democracia.html
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Resumos dos Trabalhos
O TERREIRO E A CIDADE:
Ancestralidade e territorialidade nas disputas pelo espaço público
THE YARD AND THE CITY:
Ancestry and territory in dispute of public space
Resumo
Os movimentos sociais negros incorporam em suas narrativas políticas as comunidades
religiosas de matriz africana como parte das lutas de emancipação negro-africana no Brasil.
A identidade “negro-africana” articula as diversas identidades sociais, políticas ou religiosas
do campo afro-brasileiro. A ancestralidade, como relação entre “negritude/africanidade”,
converte-se em lugar de uma tensão inerradicável, conformando as demandas das
comunidades religiosas afro-brasileiras como religiões “territoriais” em sua luta pelo uso do
espaço urbano. O “retorno à África” é um modo de territorialização diaspórica do espaço
urbano, influenciando a organização política dos grupos religiosos, a formulação de suas
demandas sociais e a implantação das políticas públicas. Contudo, a construção dessas
demandas e das políticas se dá fortemente influenciada pelos discursos políticos dos
movimentos sociais negros e do Estado. A demanda política das religiões não é a mera
expressão política de sua "natureza territorial", muito menos, a formulação e a implantação
das políticas são a mera transferência dessa demanda para o campo do Estado. Há
transformações significativas que ocorrem nos percursos de constituição da representação
política de uma identidade religiosa, transformações que têm um efeito de feedback sobre
essa última.
Palavras-chave: relações étnico-raciais, ancestralidade, movimentos sociais negros,
espaço urbano, políticas públicas.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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Abstract
Black social movements involve religious communities of African origin in their political
narratives as part of the Black-African emancipation fight in Brazil. Black-African identity
engages several social, political and religious identities, from the Afro-Brazilian field.
Ancestry considered as a relationship between being black and having African origin
becomes an ineradicable tension, making the demands from afro-Brazilian religious
communities “territorial” religions in their fight for urban space. The “return to Africa” is a form
of diasporic territorialisation of the urban space, influencing the political organization of
religious groups, the formulation of their social demands and the implantation of public
politics. However, the formation of such demands and of politics is strongly influenced by
political speeches of the black social movements as well as by the State. The political
demand of religions is not a mere political expression of its “territorial nature”, nor is their
formulation and implantation a mere transfer of such demand to the field of the State. There
are relevant transformations that occur during the constitution of political representation of a
religious identity, transformations that have a feedback effect over the transformation.
Keywords: race and ethnic relations, ancestry, black social movements, urban space, public
politics.
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS E DINÂMICOS DA CORRUPÇÃO:
Um exercício conceitual
CONSTITUENT ELEMENTS AND DYNAMICS OF CORRUPTION:
A conceptual exercise
Resumo
Conceituar corrupção constitui um dos maiores desafios para aqueles que têm esse tema
como objeto de pesquisa. Sugere-se uma miríade de conceitos, que em grande parte, são
marcadamente imprecisos, tanto no que se refere a apontar os elementos e a dinâmica em
torno do fenômeno, como também seu espaço de manifestação. Esse quadro impõe assim
uma importante barreira para investigações empíricas sobre o tema, o que dificulta
fortemente sua mensuração, bem como estratégias para explicar seus condicionantes e
suas consequências. Aliado a dificuldade conceitual, os estudos sobre corrupção tem seu
nível de dificuldade incrementado por se configurar um crime que, via de regra, é
considerado inobservável. Diferentemente de outros crimes onde há sempre alguém
disposto a denunciar, corruptos e corruptores se empenham em apagar vestígios de suas
práticas. A despeito dos limites, fazem-se necessários reflexões teóricas e avanços
metodológicos que busquem superar as barreiras que envolvem o estudo sobre o tema.
Este trabalho tem como objetivo contribuir com o primeiro aspecto, em que se apresenta um
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
166
conceito de corrupção que pretende ser operacional empiricamente. Expõe-se um conceito
que se distingue crimes assemelhados e que comumente são utilizados como sinônimos de
corrupção. Com isto pretende-se, portanto, diminuir os problemas referentes à imprecisão
conceitual.
Palavras-chave: Corrupção, tríade da corrupção, interação voluntária.
Abstract
Conceptualizing corruption is one of the main challenges for those who do research on this
theme. A myriad of concepts is suggested, but in great part such concepts are markedly
inaccurate, in both pointing out the elements and the dynamics surrounding the phenomenon
as well as its space of manifestation. This framework imposes an important barrier to
empirical investigations on the theme, complicating its measurement and strategies to
explain their conditions and consequences. Together with conceptual difficulties, studies
about corruption have their level of difficulty intensified, becoming a crime which, as a rule, is
considered unobservable. Differently from other crimes where there’s always someone
willing to denounce, corrupts and corruptors strive to erase traces of their practices. Despite
limitations, it is necessary to theoretically reflect on and methodological advances that seek
to overcome barriers that involve the study over the theme. This paper aims to contribute to
the first aspect, in which a concept of corruption that intends to be empirically operational is
presented. A concept which differs similar crimes and that commonly is used as synonyms of
corruption are exposed. It is intended, therefore, to reduce problems related to conceptual
imprecision.
Keywords: Corruption, triad of corruption, voluntary interaction.
Hermes Augusto Costa
Doutor em Sociologia. Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Investigador do Centro de Estudos Sociais. E-mail: [email protected]
TRABALHO E INTEGRAÇÃO EUROPEIA:
Um balanço sobre o caso português
LABOUR AND EUROPEAN INTEGRATION:
An investigation of the Portuguese case
Resumo
Este texto analisa algumas das principais transformações que ocorreram no domínio laboral
em Portugal após 25 anos de adesão de Portugal à União Européia (UE). Argumenta-se que
ocorreram de facto alguns impulsos modernizadores em vários domínios do mercado de
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
167
trabalho, mas a realidade dos números e das práticas mostra igualmente que Portugal se
encontra próximo da “liderança” do atraso em muitos aspectos. Inclusive numa Europa mais
alargada como é hoje a UE composta por 27 Estados-Membros.
Palavras-chave: mundo do trabalho; integração européia; Portugal; progressos/atrasos
Abstract: This paper examines some of the main changes that have occurred in labour in
Portugal after 25 years of Portugal's accession to the European Union (EU). It is argued that
there were some modernizing impulses in various areas of the labor market, but numbers
and practice show that Portugal is close to the "leadership" of delay in several aspects,
including in an enlarged Europe composed of 27 Member States.
Keywords: labour world, European integration, Portugal, progress/delay
O CONHECIMENTO DOS DIREITOS PARA ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA1
THE KNOWLEDGE OF THE RIGHTS FOR HOMELESS TEENAGERS
Resumo
O presente estudo teve como objetivo geral conhecer as concepções de direitos de
adolescentes que passam o dia nas ruas. Administrou-se um questionário a 50 adolescentes
em situação de rua das cidades de Cajazeiras e João Pessoa, no Estado da Paraíba. Os
participantes responderam a questões sobre os direitos humanos e sobre aspectos
relevantes do seu perfil sócio-demográfico. De um modo geral, os resultados denotaram que
os participantes das duas cidades tinham um conhecimento limitado sobre as noções de
direito e apresentavam características sócio-demográficas muito semelhantes das demais
crianças e adolescentes brasileiras em condição de rua.
Palavras-chave: adolescentes em situação de rua; direitos humanos; adolescentes
Abstract
The objective of the present study is to know homeless teenagers’ conceptions of rights. A
questionnaire was applied to 50 homeless teenagers in Cajazeiras and João Pessoa, cities
in the State of Paraíba. The participants have responded to questions about children’s and
teenagers’ rights and also about relevant aspects of social-demographic profile. In general,
results have shown that the participants’ knowledge from the two cities was limited
concerning the notions of right and social-demographic aspects, presenting very similar
characteristics to other Brazilian homeless teenagers.
Keywords: homeless teenagers; human rights; teenagers.
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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TRANSICIÓN DEMOCRÁTICA Y NEOLIBERALISMO:
La crisis de la deuda externa en Argentina
DEMOCRATIC TRANSITION AND NEOLIBERALISM:
The external debt crisis in Argentina
TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E NEOLIBERALISMO:
A crise da dívida externa em Argentina
Resumo
Com o objetivo de entender como o neoliberalismo penetrou em Latino América durante a
década dos 80, este artigo analisa o processo de negociação da dívida externa entre as
autoridades argentinas e as do FMI no tempo imediatamente posterior ao restabelecimento
do regime democrático em 1983, e os conflitos políticos conseqüentes.
Palavras-chaves: Neoliberalismo. Transição Democrática. Dívida Externa.
Abstract
This article analyzes the process of negotiation between the Argentinean authorities and
those of the “International Monetary Fund” (IMF) in the period 1983-1985 with the purpose of
observing in a historical particular process the activation of the “case by case strategy”
designed by IMF to struggle against the “external debt crisis” that affected Latin America
during the eighties. In particular, this article tries to show that some of the main principles of
democratic regimes have been damaged in the neoliberal globalization era because the
indebted governments of peripheral and semiperipheral countries, such as the case of
Argentina, must negotiate the orientation of its internal policies with transnational agents;
agents who have not been chosen democratically.
Keywords: Neoliberalism. Democratic Transition. External Debt.
Resumen
El Dr. Alfonsin asumió el gobierno en 1983 con el objetivo principal de asegurar la vigencia
de la democracia luego de 50 años de continuos golpes de Estado en Argentina. Si bien el
grueso de sus esfuerzos se dirigieron a desmantelar la estructura represiva heredada de la
última dictadura militar (1976-1983), en especial a juzgar los crímenes de lesa humanidad
cometidos, también buscaron recomponer la delicada situación económica imperante. El
principal problema a enfrentar en este sentido giraba en torno a la deuda externa; deuda
cuyo monto se había multiplicado por cuatro en un período de seis años y cuyo peso en el
“Producto Bruto Interno” (PBI) era tal que desestabilizaba por si misma al resto de las
variables económicas. Este artículo analiza el proceso de negociación entre las autoridades
argentinas y las del Fondo Monetario Internacional (FMI) en el período inmediatamente
Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011
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posterior al restablecimiento de la democracia (1983-1985), y con la finalidad de observar,
en una dinámica histórica concreta, la puesta en práctica de la “estrategia caso por caso”
diseñada por esa organización para lidiar con la “crisis de la deuda externa” que afectó a
Latinoamérica durante la década de los 80. Esta estrategia convirtió a la deuda externa en
un “mecanismo de disciplinamiento” en la medida en que a través de la misma los países
centrales podían participar en el diseño de la política interna de los países endeudados y
controlar palmo a palmo su implementación. Este análisis, de carácter socio-histórico, se
efectúa tomando como marco de referencia empírico fuentes de datos secundarias, en
especial bibliografía específica sobre la materia. La hipótesis orientativa que guía este
trabajo es que el proceso de transición democrático argentino se vio afectado por la puesta
en práctica de un programa económico neoliberal. Subyace en esta hipótesis la idea base
del paradigma crítico de que la democracia y el Estado de Derecho no son fenómenos
abstractos sino, por el contrario, fenómenos históricos que se reproducen a través de luchas
de poder entre agentes con poderes diferenciales.
Palabras Claves: Neoliberalismo. Transición Democrática. Deuda Externa Argentina.
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