Ariús - Centro de Humanidades - Universidade Federal de Campina
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Volume 17 Número 02 Julho/Dezembro, 2011 Dossiê: Plutocracia, Corrupção e as Causas da Crise. Soluções que Causam Dissoluções Leia Também: Outros Temas Volume 17, Número 02, julho/dezembro, 2011 CENTRO DE HUMANIDADES ARIÚS – Revista de Ciências Humanas e Artes Centro de Humanidades – UFCG Rua Aprígio Veloso, 882 – Bairro Universitário 58.429-900 – Campina Grande – PB. A Ariús é uma publicação semestral do Centro de Humanidades da UFCG. REITOR Thompson Fernandes Mariz Publica trabalhos inéditos nas áreas de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Artes. VICE-REITOR EDITOR José Edilson de Amorim Roberto Mendoza (UFCG). EDITOR DA VERSÃO ON-LINE Antônio Gomes da Silva (UFCG). CENTRO DE HUMANIDADES CONSELHO EDITORIAL (UFCG) André Augusto Diniz Lira • Antônio Gomes da Silva • Carmen Verônica de Almeida Ribeiro • Fabíola Cordeiro de Vasconcelos • Fernando José Torres Barbosa • Garibaldi Dantas de Oliveira • Gervácio Batista Aranha • José Benjamim Montenegro • José Irivaldo Alves Oliveira Silva • Magnólia Gibson Cabral da Silva • Mércia Rejane Rangel Batista • Paulo Matias de Figueiredo Júnior • Renato Kilpp • Roberto Mendoza • Severina Sueli da Silva Oliveira • Sinara de Oliveira Branco. Diretora Rosilene Dias Montenegro COMISSÃO CIENTÍFICA Afrânio-Raul Garcia Júnior (EHESS-CRDC) • Antonio de Pádua Carvalho Lopes (UFPI) • Antônio Paulo Rezende (UFPE) • Antônio Torres Montenegro (UFPE) • Bernardete Wrublevski Aued (UFSC) • Denise Lino de Araújo (UFCG) • Durval Muniz de Albuquerque Júnior (UFRN) • Eliane Moura da Silva (UNICAMP) • Eli-Eri Luiz de Moura (UFPB) • Gesinaldo Ataíde Cândido (UFCG) • José Roberto Pereira Novaes (UFRJ) • Lemuel Dourado Guerra (UFCG) • Lia Matos Brito de Albuquerque (UECE) • Luiz Francisco Dias (UFMG) • Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi (UFRN) • Maria de Nazareth Baudel Wanderley (UNICAMP/UFPE) • Maria Stella Martins Bresciani (UNICAMP) • Reinaldo Antonio Carcanholo (UFES) • Suerde Miranda de Oliveira Brito (UEPB). Vice-diretor Luciênio de Macêdo Teixeira Disponível em: www.ch.ufcg.edu.br/arius e-mail: [email protected] e-mail: [email protected] ARIÚS Revista de Ciências Humanas e Artes CENTRO DE HUMANIDADES – UFCG Rua Aprígio Veloso, 882 Bairro Universitário 58.429-900 – Campina Grande – PB Editoração Eletrônica Antonio Gomes da Silva Revisores Língua Portuguesa: Fabiana Ramos de Lima, Nadege da Silva Dantas • Língua Inglesa: Garibaldi Dantas de Oliveira, Sinara de Oliveira Branco • Língua Francesa: Carmen Verônica da Almeida Ribeiro. Normalização Técnica Severina Sueli da Silva Oliveira CRB-15/225. Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFCG A718 ARIÚS: revista de ciências humanas e artes. – v. 1, n. 1, (out./dez. 1979) – v. 17, n. 2 (jul./dez. 2011). – Campina Grande: EDUFCG, 2011. 170 p.: il. Anual: 1979. Suspensa: 1980-1989. Anual (com alguma irregularidade): 1990-2006. Semestral: 2007-Editor: Universidade Federal da Paraíba de 1979 a 2001; Universidade Federal de Campina Grande 2002-. ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online 1- Ciências Humanas 2- Ciências Sociais 3- Lingüística 4- Artes 5- Periódico I- Título. CDU 3(05) ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online Sumário EDITORIAL 4 AUTOR CONVIDADO Trabalho e integração européia: um balanço sobre o caso português. Hermes Augusto Costa (Universidade de Coimbra) 7 DOSSIÊ: PLUTOCRACIA, CORRUPÇÃO E AS CAUSAS DA CRISE. SOLUÇÕES QUE CAUSAM DISSOLUÇÕES Transición democrática y neoliberalismo: la crisis de la deuda externa en Argentina. Democratic transition and neoliberalism: the external debt crisis. In: Argentina. Alejandro Gabriel Manzo (UNCArgentina) 29 Elementos constitutivos e dinâmicos da corrupção: um exercício conceitual. Constituent elements and dynamics of corruption: a conceptual exercise. Clóvis Alberto Vieira de Melo (UFCG) 51 Las insuficiencias en la sabiduría convencional sobre las causas de la crisis y el error de sus soluciones. The inadequacies in the conventional wisdom on the causes of the crisis and the error of their solutions. Vicenç Navarro (Universidade Pompeu Fabra e The Johns Hopkins University) 74 A esquerda contra a dívidadura. The left against the dictatorship of debt. Francisco Louça (ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão/Portugal) 80 OUTROS TEMAS O terreiro e a cidade: ancestralidade e territorialidade nas disputas pelo espaço público. The yard and the city: ancestry and territory in dispute of public space. Ronaldo Sales Jr. (UFCG) 106 O conhecimento dos direitos para adolescentes em situação de rua. Izayana Feitosa e Cleonice Camino 124 LITERÁRIAS/POESIA Um poema por Tahrir, por Egito. A poem by Tahrir by Egypt. Nancy Messieh. 140 RESENHAS Conversaciones con Edward Said. Resenha de Mabel González Bustelo (UCM – Espanha) 142 Resucitar a Marx. Resenha de Manuel M. Navarrete (Rebelión) 147 NOTÍCIAS Defaults. Alfredo Zaiat (Economista, pagina12) 155 Quem deve a quem? A verdadeira divida externa. Guaicaipuro Cuatémoc (Cacique Indígena) 159 Um estudo com peixes aponta a que a ignorância favorece a democracia (Revista Science) 162 RESUMOS DOS TRABALHOS 166 ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online Editorial A revista aborda neste numero uma temática plenamente atual: a crise socioeconômica dos países desenvolvidos ou em outras palavras a crise de gestão do modelo econômico e a crise reiterada do próprio modelo. Apresentamos neste numero 2 do volume 17 da Revista Ariús, um Dossiê que tem como temática central: Plutocracia, corrupção e as causas da crise. Soluções que causam dissoluções. Participa como Autor convidado o Professor Doutor Hermes Augusto Costa, da Universidade de Coimbra (Portugal), docente e pesquisador na área da sociologia de trabalho. Ele discorre sobre Trabalho e integração européia: um balanço sobre o caso português. O autor analisa algumas das principais transformações que ocorreram no domínio laboral em Portugal após 25 anos de adesão de Portugal à União Européia (UE) e os problemas e as soluções que isto acarretou. O dossiê é composto por quatro trabalhos, de Argentina, Brasil, Espanha e Portugal. Gabriel Manzo, o colega da Universidade de Córdoba, apresenta as alternativas da negociação da divida externa Argentina na década dos 80, onde se pode observar como os organismos internacionais (FMI, BM, etc.) foram impondo suas condições e pontos de vistas neoliberais. A democracia e o Estado de Direito não são fenômenos abstratos, pelo contrario, são fenômenos históricos que se reproduzem a través de lutas de poder entre agentes sociais com poderes diferenciais, diz o autor. Qualquer semelhança com a atual crise dos países periféricos da EU, não é por acaso, como mostram os outros autores de este dossiê. Por outra parte, o prof. Clovis A. Viera de Melo, da Universidade de Campina Grande, num exercício conceitual, define o fenômeno da corrupção e diferenciá-lo de outros crimes que Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 5 lhes são assemelhados. Considera que a corrupção é uma relação social que congrega três elementos essenciais: corruptor, corrupto e recursos. É um fenômeno que invade tanto o espaço público, o seja a sociedade política como o espaço corporativo ou privado, ou seja, a sociedade civil. A compreensão da corrupção como uma relação entre atores sociais, é de fundamental importância para entender também a crise atual. O Prof. Vinceç Navarro, por sua vez, demonstra como o BCE, a Comissão Européia e o FMI na Euro-zona, acentua a flexibilidade do mercado de trabalho, o que significa a desregulação desses mercados, ou seja, a redução da proteção social e os recortes de gasto público. No entanto, a causa mais importante não citada desse endividamento é o descenso das utilidades dos assalariados, nos porcentagens das rendas totais de cada país. As famílias tiveram que se endividar cada vez mais, resultado da diminuição de seus ingressos. Os organismos financeiros transnacionais parecem ter uma formula de aço, que não muda a pesar do fracasso reiterado dessas políticas. Nesse contexto, a resistência da “multidão”, tende a ser mais forte e radicalizada, como nos casos dos países euro latinos. Temos que agradecer ao Professor Navarro por nos ter autorizado a publicar este trabalho na presente revista. A fonte aparece no rodapé do artigo. O último trabalho do dossiê tem uma perspectiva diferente de analise. Seu autor, o prof. Francisco Louça, é catedrático e deputado pelo boco d`Esquerda do parlamento português. Seu estudo não tem somente um objetivo teórico, senão também político - pratico segundo suas próprias palavras. Para ele a crise não é só econômica é também política. Os estados nacionais estariam cedendo sua autonomia a um governo europeu dirigido pelo capital bancário. È o Banco Central Europeu o que dita as regras do jogo político-econômicas. A eficácia política dos cidadãos do continente ainda é baixa mais, entanto dirigente político, o autor propõe um novo europeísmo de esquerda, baseado na resistência e ação propositiva de aqueles grupos e classes sociais que estão sendo omitidas nesta crise. Podemos observar que os analises efetuados pelos participantes deste dossiê mostram, desde pontos de vista diversos, o que estava camuflado para o cidadão comum até não muito tempo: nos momentos difíceis de crise sistêmica profunda, a cabeça da medusa sai à luz e mostra sua faze. O capital financeiro na sua expressão mais sofisticada assume abertamente o poder político, banqueiros ocupam o poder real e simbólico mais importante da democracia, primeiros ministros ou presidentes renunciam para que o representante da banca, ou um próprio banqueiro dirija arbitrariamente o destino de um país, continente ou do mundo. Isto é a plutocracia da plutocracia. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 6 Em Outros Temas, apresenta se, com a autoria do prof. Ronaldo Sales (UFCG), um tema caro a realidade brasileira: a disputa pelo espaço público, neste caso referido as querelas dos movimentos sociais negros. Estes incorporam nas suas demandas políticas as comunidades religiosas de matriz afro, como parte das lutas de emancipação negro africana no Brasil. De um lado, valoriza se a religião afro-brasileira como patrimônio histórico e cultural, considerada parte de uma política de reparação ou de promoção da igualdade racial; por outro lado, considera se a luta contra a intolerância religiosa, como uma modalidade da discriminação étnico-racial. Na Secção Literária, reproduzimos um poema combatente de Nancy Messieh, fotógrafa e poeta egípcia, com motivo da ocupação da praça Tahrir no Cairo. Em Resenhas, Mabel González Bustelo apresenta o livro Conversaciones com Edward Said. De autoria de Tariq Ali. Segundo Bustelo, o livro é um dialogo de excelente qualidade intelectual e um profundo clima emocional. Alianza, Madrid, 2010. Finalmente, em Notícias, publicamos um interessante informe sobre a historia dos defaults no mundo. Também publicamos um pequeno informe muito curioso sobre um estúdio experimental com peixes que aponta a que a ignorância favorece a democracia (Revista Science). Por ultimo, informamos a nossos leitores que a partir deste numero da Ariús, estamos aderido ao tipo de Licence CC Creative Commons (Atribuição não comercial – vedada a criação de obras derivadas 3.0 United Estates (CC BY – NC – ND 3.0), que é um tipo de Direitos de Autor Copy Left, típico das revistas eletrônicas acadêmicas. Por outra parte, estamos implantando a revista no Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas SEER/OJS e a partir de 2012 a Revista passará a modalidade exclusivamente eletrônica. Com algumas novidades, como contador de consultas, links e conexão as redes sociais mais importantes. Para terminar, recomendamos aos colegas que pretendam publicar na Ariús, consultar as normas de publicação, dado que tem sido ligeiramente reformuladas no sentido de motivar e sugerir, que os autores citem em seus trabalhos, também outros autores de revistas latinoamericanas, tal como aconselhado pelos expertos em edição cientifica dos países iberoamericanos. Roberto Mendoza Editor Geral ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online Autor Convidado TRABALHO E INTEGRAÇÃO EUROPEIA: Um balanço sobre o caso português LABOUR AND EUROPEAN INTEGRATION: An investigation of the portuguese case Hermes Augusto Costa1 Resumo: Este texto analisa algumas das principais transformações que ocorreram no domínio laboral em Portugal após 25 anos de adesão de Portugal à União Europeia (UE). Argumenta-se que ocorreram de facto alguns impulsos modernizadores em vários domínios do mercado de trabalho, mas a realidade dos números e das práticas mostra igualmente que Portugal se encontra próximo da “liderança” do atraso em muitos aspectos, inclusive numa Europa mais alargada como é hoje a UE composta por 27 Estados-Membros. Palavras-chave: mundo do trabalho; integração europeia; Portugal; progressos/atrasos Abstract: This paper examines some of the main changes that have occurred in labour in Portugal after 25 years of Portugal's accession to the European Union (EU). It is argued that there were some modernizing impulses in various areas of the labor market, but numbers and practice show that Portugal is close to the "leadership" of delay in several aspects, including in an enlarged Europe composed of 27 Member States. Keywords: labour world, European integration, Portugal, progress/delay 1 Doutor em Sociologia. Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais. E-mail: [email protected]. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 8 1. INTRODUÇÃO Uma das ideias que quer o senso comum, quer o discurso científico veiculam na sociedade portuguesa, passados 25 anos da integração de Portugal na União Europeia (então Comunidade Económica Europeia, CEE), é do que o país não é mais o mesmo de há um quarto de século. E não é mais o mesmo em distintas áreas consideradas importantes para o desenvolvimento do país, tais como, a saúde, a investigação e o desenvolvimento tecnológico, a economia, a educação, o direito e a legislação, o ambiente, as artes, o trabalho, a qualidade de vida e o desporto, etc. Neste texto selecciono algumas das principais mutações que ocorreram após 25 anos de adesão de Portugal à UE numa dessas áreas: o trabalho. Começo por abordar o significado da adesão à CEE para, de seguida, enunciar algumas mutações que a CEE propiciou e que tiveram reflexos no mercado laboral. Finalmente, passam-se em revista algumas das instituições, actores e indicadores do mercado de trabalho de modo a tentar perceber melhor como se colocaram (colocam) perante o “desafio europeu” 2 A ADESÃO À CEE COMO AMBIÇÃO DE RECUPERAR O(S) ATRASO(S) FACE À EUROPA A adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE) em 12 de Junho de 1985 (formalizada a 1 de Janeiro de 1986), significou um primeiro passo no sentido da (tentativa de) convergência com um projecto de economia e sociedade mais amplos e desenvolvidos e, consequentemente, criou desde princípio uma forte expectativa de integração positiva (a Europa como ilusão de melhoria do nível de vida das pessoas faria, assim, sentido). Mas se, por um lado, a adesão significava (como defendia então o primeiro ministro Mário Soares) uma oportunidade para o progresso, a modernidade e mudança, por outro lado, não deixavam de constituir factores de risco ou de incerteza (com afirmava Ramalho Eanes, presidente na época), não só porque as próprias negociações da adesão tinham sido algo longas (8 anos), o que de certo modo era sinal de morosidade (leia-se, de dificuldades), como porque em Portugal, em Junho de 1985, estava-se ainda no rescaldo da negociação do segundo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1983, que tinha trazido associado a si desemprego e inflação elevados e quebra dos salários reais e do consumo privado.2 2 As políticas fortemente restritivas do poder de compra dos trabalhadores, que viram o seu poder aquisitivo severamente diminuído de 1976 a 1979 e de 1982-84, provocaram uma contestação menos intensa do que seria de esperar. Tal facto conduziu os cientistas sociais a realçar o papel da economia subterrânea, das remessas Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 9 Seja como for, na história contemporânea de Portugal a adesão à CEE terá constituído o segundo acontecimento mais significativo na óptica dos portugueses, uma vez que o primeiro foi o 25 de Abril (e a uma distância considerável, diga-se). Na verdade, no ano de celebração dos 30 anos da (re)instauração da democracia em Portugal (em 2004), uma sondagem realizada pela Universidade Católica para o Público, RTP, RDP e para o Comissariado das Comemorações dos 30 anos do 25 de Abril, revelou que apenas 9% dos portugueses consideravam que a adesão de Portugal à CEE fora o facto mais importante da história de Portugal.3 Esta visão murcha sobre a Europa parece confirmar uma prioridade dos portugueses para os assuntos “caseiros” em detrimento dos “estrangeiros”. Estou em crer que se esta mesma sondagem fosse realizada no presente (Maio de 2011) muito dificilmente se alteraria este estado de coisas, sobretudo atendendo à crise económica (e política) em que o país se encontra mergulhado. Mas note-se que, independentemente da integração na UE, Portugal registou frequentes vezes um relativo desajuste temporal (descompasso histórico) face à Europa (ou melhor aos países europeus mais avançados depois da Segunda Guerra Mundial), nomeadamente no que concerne ao modo como os movimentos sociais associados ao trabalho (movimento sindical) e as instâncias de diálogo e negociação despontaram (ainda antes da integração europeia): a) quando, nos anos 60, esses países conheceram a mobilização sindical, Portugal conheceu a opressão do regime salazarista; b) quando esses países tiveram, na década de 70, a concertação social de nível macro, Portugal vivenciou o 25 de Abril e, consequentemente, a institucionalização do diálogo social só surgiu nos anos oitenta, c) quando em Portugal o peso da macro-concertação é ainda significativo, nos países mais desenvolvidos da Europa as relações e negociações entre capital e trabalho conhecem já desde os 80s forte incentivo ao nível micro, de empresa. A estes descompassos anteriores à adesão à CEE podem juntar-se, entre outros, “sinais de atraso” que se mantiveram mesmo após a adesão à CEE, tais como: i) a presença de uma mão-de-obra escassamente qualificada; ii) os salários mais baixos da Europa. Voltarei a falar destes dois aspectos mais adiante, em vários momentos das secções seguintes. dos emigrantes e da agricultura familiar na criação de um rendimento complementar dos salários, rendimento que permitu um consumo acrescido e a moderação dos conflitos sociais (Anica, 1997). 3 A adesão de Portugal à CEE está situada mais ou menos ao mesmo nível da restauração da independência em 1640 (com 10% de respostas), da implantação da República (com 8% de repostas), e da chegada de Vasco da Gama à Índia (com 7% de respostas). O 25 de Abril de 1974 é, de longe, o acontecimento que é considerado como o mais importante para a história de Portugal, com 52% de opiniões nesse sentido (Público, 25.04.2004). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 10 3. ASPECTOS QUE A ADESÃO À CEE TORNOU POSSÍVEL E COM REFLEXOS NO MUNDO LABORAL Um conjunto de factores/dimensões resultantes da adesão à CEE devem ser considerados como produzindo impactos (directos e indirectos) no mercado de trabalho e nos seus actores. Destaco os seguintes, sendo a ordem a sua apresentação aleatória: Um deles prende-se com a maior mobilidade além fronteiras. Portugal sempre foi um país com tradições de emigração e nos anos 60 do século XX a Europa (França, Suíça são apenas dois exemplos) foi um dos principais destinos em que os portugueses buscavam uma vida melhor, com empregos melhor remunerados ainda que nem sempre melhor qualificados. Com o reforço da mobilidade além fronteiras também se criaram, pelo condições para Portugal ser também país de imigração de mão-de-obra. Mas importa salientar, no quadro da CEE, que essa mobilidade se tornara mais reforçada ou mais evidente, muito em especial com a criação do “Espaço-Shengen”. Apesar de negociado inicialmente em 14/06/1985 por 5 Estados-membros, o “espaço-Shengen”– espaço de livre circulação de pessoas no espaço geográfico – entrou em vigor em 1995 e Portugal assinou os acordos de adesão a esse espaço em 1991. Além de historicamente ter sido portador de benefícios para a economia, uma Europa sem fronteiras era também sinónimo não só de um maior impulso à mobilidade do trabalho, como significava um reforço do produto interno bruto (PIB) da UE. Ainda que hoje esteja a ser questionado no seio da UE 4 , para as comissárias europeias da justiça e dos assuntos internos, a par da moeda única, a livre circulação entre países é o direito mais tangível de toda a história da integração europeia (Reding e Malmström, 2011). Em segundo lugar, importa considerar a entrada em Portugal de fundos estruturais destinados a criar um potencial para o desenvolvimento do país. Porém, se, por um lado, parece indesmentível que esse impulso modernizador teve lugar – sobretudo no domínio da infra-estruturas, vias de comunicação, estradas, etc. –, por outro lado, no que concerne a acções tornadas possíveis pelos fundos estruturais – nomeadamente, colocar ao dispor da força de trabalho em Portugal verbas para reforço da formação profissional – o que é facto é que as mesmas nem sempre foram ou tiverem o melhor aproveitamento. Como refere Boaventura de Sousa Santos, deixou-se que os fundos estruturais se tornassem “presa fácil 4 Em meados de 2011 o “Espaço Schengen” (composto por 25 países) parece estar a ser questionado, em resultado da(s) crise(s) humanitária(s) associadas aos milhares de imigrantes tunisinos que procuram chegar ao el dorado europeu. Na verdade, países como a Itália e a França reclamaram alterações no “Espaço Schengen”, estando pois em agenda num futuro próximo a discussão no quadro da UE em torno da possível reintrodução de controlos nas fronteiras nacionais. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 11 de corrupção impune, enterrando-os em cimento e em betão em vez de os pôr ao serviço da viragem educativa e científico-tecnológica, que permitiria a Portugal apropriar-se do projecto europeu, tornando-o verdadeiramente seu” (Santos, 2011: 53). Ou seja, a qualificação mãode-obra e do “factor trabalho” ficou relegada para segundo plano em vez de se afirmar como prioridade. Em terceiro lugar a ideia de um modelo social europeu (MSE) como fonte de atracção e referência de bem-estar. É preciso não esquecer que foi graças ao MSE que a UE se transformou numa zona de maior prosperidade económica e de justiça social ao longo da segunda metade do século XX, tendo o risco de pobreza diminuído muito com a melhoria do rendimento dos idosos, graças às prestações de reforma garantidas pelos Estados. Contudo, a evolução demográfica tem vindo a ameaçar o Estado Social, levando a UE a alertar os Estados-Membros para estes assumirem reformas que viabilizem a sustentabilidade dos sistemas públicos de pensões. Porém, é um facto que hoje (e de forma particularmente mais intensa ao longo da última década) o MSE – enquanto referencial de “elevado nível de protecção social, o reconhecimento de direitos sociais dos trabalhadores, a livre negociação colectiva como elemento regulador do trabalho e a existência de serviços públicos” (CGTP, 2004b: 79) –, encontra-se seriamente ameaçado por vários riscos: aumento do desemprego; crescimento da pobreza e das desigualdades; formas de trabalho e de emprego precárias; privatizações de empresas e de serviços públicos. E, note-se, este á um quadro geral que afecta as economias da UE, não só as mais débeis (como a portuguesa) como inclusive as mais avançadas. Se se atentar no documento Annual Growth Survey 2011 da Comissão Europeia de Janeiro de 2011, é fácil ver nele medidas indicativas de sinais de retrocesso do MSE: o aumento dos impostos indirectos; o enfraquecimento do carácter progressivo dos impostos; o incentivo ao aumento dos horários de trabalho; a elevação da idade da reforma; a pressão para a privatização dos sistemas de pensões; o enfraquecimento (flexibilidade) da legislação que protege o emprego; a redução dos apoios directos ao desemprego; a liberalização do sector público, etc. (European Comission, 2011). Em quarto lugar, em parte em resultado de um crescimento da economia portuguesa, os anos 90 foram sendo já muito marcados por maiores facilidades de acesso ao crédito, o que ditaria também o início de um processo de endividamento das famílias. Esse recurso ao crédito revelou-se fruto também de uma certa recomposição da estrutura de classes e de um reforço maior do peso das classes médias, sendo estas também hoje em dias as que mais se ressentem com os efeitos da crise económica (Estanque, 2012). Mas na verdade um conjunto de factores relacionados com o mundo laboral acabam por concorrer para o fenómeno do sobreendividamento: o desemprego de longa duração, o não acesso ao Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 12 subsídio de desemprego, o desemprego de vários membros de um mesmo agregado familiar, empregos de baixas qualificações e com baixas remunerações, etc. (Frade et al., 2008). Em quinto lugar, importa olhar para a evolução da população activa e para algumas das suas características, pois é a população com uma maior proximidade com o mercado laboral. A este propósito, é possível identificar algumas tendências ao longo dos últimos 25 anos5: (1) há mais activos 6 ; (2) dentro dos activos empregados é cada vez maior a presença de mulheres; (3) são activos cada vez mais envelhecidos; (4) estão cada vez mais ligados ao sector terciário (comércio e serviços) (1) O número de pessoas activas (empregados e desempregados) tem vindo a aumentar: em 2009 são cerca de 5,6 milhões de indivíduos enquanto em 1983 eram cerca de 4,8 milhões. A larga maioria da população empregada trabalha por conta de outrem. Esta fatia, que inclui os funcionários públicos, atingiu praticamente 3,9 milhões de pessoas, em 2009, situação que se tem vindo a reforçar com o tempo: passa de 65%, em 1974, para 76%, em 2009. Como lembram Barreto e Pontes (2007: 19), o reforço dos mecanismos de protecção social implicou um crescimento da administração pública (na década de 60 eram 160.000 funcionários públicos; em 2004 eram 800.000). Segundo a base de dados Pordata (consultada em Abril de 2011): em 1986 a administração pública (total) era responsável por 464.321; em 1988: 485.368; em 1991: 509.732; em 1996: 639.044; em 1999: 716.418; 2005: 747.880 (http://www.pordata.pt/azap_runtime/?n=4). Ainda segundo Barreto e Pontes (2007: 19), comparando Portugal com a Europa, o nº de funcionários em % da população activa não é excessivo. No entanto, a percentagem de produto que vai para as despesas com funcionários do Estado (mais de 15%) é muito superior aos europeus. O que de certo modo se traduziu num certo privilégio dos funcionários públicos relativamente aos trabalhadores do sector privado. Ora, esse suposto privilégio está hoje a ser posto em causa fortemente na sociedade portuguesa. 5 Não creio que se tratem apenas de tendências ditadas pela integração de Portugal na UE, mas foram certamente tendências que a integração europeia tornou mais evidentes. 6 A população activa inclui todas as pessoas que se encontram na situação de empregadas ou não situação de desempregadas. São consideradas empregadas todas as pessoas que desempenham qualquer função remunerada ou que apesar de terem emprego estão ausentes por motivos de doença, greve ou férias; são considerados desempregados as pessoas que não estão empregadas mas que estão activamente à procura de emprego ou à espera de regressar ao trabalho. Desta forma, apenas as crianças, os estudantes, os reformados, os domésticos, os incapacitados e todos aqueles que simplesmente não querem trabalhar, são considerados como não integrantes da população activa. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 13 (2) O reforço do número de activos fez-se acompanhar por um aumento da participação feminina. As mulheres ocupam um lugar cada vez mais importante no conjunto da população activa (em 2009, representavam praticamente metade – 47% - enquanto em 1983 representavam 42%), (3) Envelhecimento da estrutura etária. De 1983 para 2009 a idade média da população empregada aumentou de 39 anos para 42 anos. Este envelhecimento ocorreu sobretudo na base da pirâmide de idades da população activa – o grupo dos activos com menos de 25 anos passou para menos de metade: de 1,1 milhões de indivíduos, em 1983 (24% dos activos), para menos de meio milhão, em 2009 (8% dos activos). (4) Também a estrutura de actividades da população empregada conheceu grandes alterações ao longo das últimas décadas. Em 1974, a distribuição da população empregada pelos três sectores clássicos de actividade era mais ou menos equitativa, mas o efectivo mais elevado ainda se encontrava na “agricultura, produção animal, caça, silvicultura e pesca” – 34% dos portugueses estavam empregados no sector primário. Esse valor, em 2008, é de apenas 11% da população empregada. Quanto à população empregada no sector industrial só é maioritária no triénio 1978-80. A partir de 2008, pela primeira vez desde 1974, os que trabalham neste sector representam menos de 30% da população empregada. O grande crescimento sectorial do emprego em Portugal ocorreu no terciário. O sector dos serviços, que representava 33% da população empregada, em 1974, atingiu, em 2009, 61% da população empregada, a mais alta percentagem de sempre. 4. INSTITUIÇÕES, ACTORES E INDICADORES DO MERCADO DE TRABALHO Um olhar mais atento sobre as instituições/actores/indicadores do mercado de trabalho constitui igualmente um exercício útil de modo a retirar algumas ilações sobre o modo como a UE produziu mutações no mundo laboral. Destacarei seguidamente, de forma breve, os seguintes itens: i) salários; ii) regimes e tempos de trabalho: iii) a variável “género” cruzada com os salários e os tempos de trabalho; iv) A legislação de protecção ao emprego (LPE); v) o papel dos sindicatos; vi) as políticas passivas do mercado de trabalho; vii) as políticas activas do mercado de trabalho; viii) e outros indicadores (contratos a prazo, desemprego, produtividade, informalidade da economia). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 14 i) A questão dos salários ou dos cortes salariais passou a estar na ordem do dia pelo menos desde 29 de Setembro de 2010, altura em que foram anunciados publicamente, no quadro das medidas de restrição orçamental decididas pelo governo de José Sócrates os cortes salariais até 10% para os funcionários públicos a partir de 2011. Talvez isso confirme, no fundo, o argumento de que vai sendo notório um défice de justiça social na relação salarial (Reis, 2009: 11). Ora, estou em crer que em contexto de crise económica a importância do salário mínimo será ainda mais acrescida. É elementar ter em conta que o salário mínimo, além de uma importante fonte de justiça social, pode também constituir-se como apoio pecuniário indispensável à sobrevivência de muitas famílias. Para os trabalhadores, o risco de pobreza em Portugal é de 12% (sendo 2/3 do risco de pobreza total), enquanto que na Europa é de 8% (sendo aqui também metade do risco de pobreza total), o que é um indicador de que em Portugal os salários são baixos para fazer face a situações de pobreza (Dornelas et al., 2011: 18). Como salientam Rosa e Chitas (2010: 66-67), baseando-se nas estatísticas da base de dados Pordata (já acima citada), as remunerações do trabalho nunca representam menos de 49% do rendimento disponível das famílias e equivalem sempre a pelo menos 45% do PIB. É um facto que as remunerações ditadas pelo factor trabalho progrediram de forma notória desde 1960: a preços de 2000 (descontando o efeito da inflação) e por habitante, as remunerações aumentam mais de seis vezes, passando de 1.000 € anuais (em 1960) para 6.250 € anuais (em 2008). Porém, no caso do salário mínimo nacional, por exemplo, a evolução afigura-se pouco significativa, pois quando se tem por referência a evolução dos seus valores anuais a preços constantes de 2000 (descontando a inflação), verifica-se que, em 2009 (quando representava 5.100 € anuais) o montante não era muito superior ao valor de 1975 (4.723 € anuais), não obstante a comparação já poder ser mais favorável quando se tem por referência o valor mais baixo ao longo de 35 anos (entre 1974 e 2009), de 3.449 € anuais (registado em 1984)na véspera da adesão à CEE. Estes dados não sugerem, pois, que uma presença da UE tenha sido decisiva no sentido de influenciar um upgrade do salário mínimo nacional em Portugal. Não surpreende que as qualificações do trabalhador tenham repercussões do ponto de vista salarial. Quando se analisam os ganhos médios dos trabalhadores (que incluem salários, subsídios e outras prestações contratuais) entre 1985 e 2008, verifica-se que há uma relação positiva muito forte entre qualificações e salários (maiores qualificações, maiores salários). Assim, a preços constantes de 2000 (descontando a inflação), os quadros Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 15 superiores ganhavam, em 1985, cinco vezes mais do que os “aprendizes” e 3,5 vezes mais do que os “profissionais não-qualificados”; em 2008, essa relação era, respectivamente, de 4,3 e de 4,1. Olhando para os ganhos por sector de actividade, verificamos que o do “alojamento, restauração e similares” é o menos bem pago do mercado de trabalho nacional, em 2008, estando no lado oposto do espectro o subsector das “actividades financeiras e de seguros”, com ganhos médios mensais de 2.224 euros, em 2008. Ou seja, neste domínio da relação entre salários e qualificações os sinais de aproximação à UE parecem ter sido um mais evidentes do que no caso do salário mínimo nacional. ii) Quanto ao regime de trabalho e à duração média de tempo de trabalho constata-se o seguinte: a maioria da população portuguesa empregada está a laborar em regime de tempo completo (88% em 2009, tendo sido na 2ª metade dos anos 80, quando Portugal entrou para a CEE, mesmo de 94%). Contudo, em termos de duração média semanal efectiva do trabalho da população empregada, ela foi significativamente reduzida nos últimos 25 anos, procurando aproximar-se de uma tendência europeia (em especial das economias mais desenvolvidas): passou de 40 horas semanais, em 1983, para 35 horas, semanais, em 2009. Cruzando estes dados com a situação na profissão, apesar de em qualquer situação profissional o tempo médio de trabalho semanal ter diminuído, este tempo é claramente maior no caso dos trabalhadores por conta própria (TCP): em 2009, por exemplo, esse número médio de horas era de 45, face às 35 horas dos trabalhadores por conta de outrem (TCO), também conhecidos como trabalhadores dependentes. Dados da evolução da duração média do tempo de trabalho dos TCO permitem observar o seguinte: em 1985: 39,1h; em 1990: 38,5h; em 1995: 36,6h; em 2000: 36,2h; em 2005: 35,7h; em 2010: 35,5h (http://www.pordata.pt/azap_runtime/?n=4).7 iii) Se cruzarmos a variável “género” com os salários e os tempos de trabalho constatamos que o aumento da representatividade feminina no mercado de trabalho por comparação ao sexo masculino, ainda não se traduz em igualdade em termos de proveitos do trabalho.8 7 Estes dados – nomeadamente sobre a duração média do tempo de trabalho – anunciam uma tendência de sentido descendente associada ao lado formal de funcionamento da economia. No entanto, em contraciclo, também um estudo de Abril de 2011da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) mostra que, de entre 26 dos 34 países da OCDE, Portugal é o país onde mais horas se trabalham por dia, mais precisamente 8,71 horas por dia (em média 520 minutos por dia). Sendo a média de minutos trabalhados nos países da OCDE de 480 por dia (8 horas), só os mexicanos (9,9 horas/dia) e os japoneses (9 horas/dia) trabalham mais do que os portugueses. Além de evidenciar uma décalage entre o que se produz e o que se trabalha (o trabalho supera a produtividade), o que se explica pelo défice de inovação e organização do tecido empresarial português, este estudo parece, pois, também tornar “visível” o lado informal (“invisível”) do mercado laboral, tanto mais que 53% desse corresponde a actividades que não são remuneradas, com destaque para trabalhos domésticos como trabalhos de limpeza, cozinha, jardinagem e cuidados de crianças). 8 Para uma análise desta discussão em Portugal, cf. Ferreira (org,, 2010). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 16 Mantém-se, de facto, uma diferença de ganhos médios entre homens mulheres, com vantagem para o sexo masculino, embora esta esteja a diminuir ao longo dos anos. Em 1985, enquanto um homem ganhava, em média, 186 euros, a mulher ficava-se pelos 136 euros (mais 37% para eles). Actualmente, essa diferença é de 28% a menos, para elas. A diferença de ganhos médios entre homens e mulheres – vantajosa para os homens – que trabalham por conta de outrem é, assim, a regra, qualquer que seja o nível de qualificação e para praticamente todos os sectores de actividade (em 2008, as excepções são os sectores da “construção” e dos “transportes e armazenagem”, onde os ganhos médios das mulheres são superiores aos dos homens). Quanto ao número médio de horas de trabalho existem também diferenças entre homens e mulheres. A duração média de trabalho efectivo semanal é superior para os homens, superioridade essa que, apesar de tudo, se tem esbatido (uma média de 3,4 horas a mais efectivamente trabalhadas por homens, por semana, em 2009). iv) A legislação de protecção ao emprego, por seu lado, remete para o dilema flexibilidade/rigidez do mercado de trabalho. Por um lado, tem vindo a ser apontada em Portugal a existência de uma rigidez formal da legislação laboral9. Como recordam Centeno e Novo (2008a: 133), é frequente mencionar-se o elevado grau de protecção de que gozam os empregos com contrato permanente na legislação portuguesa, sendo que tal excesso de protecção tem impacto na taxa de criação de empregos, afectando as novas oportunidades de emprego. Em simultâneo, essa protecção dos contratos permanentes condiciona negativamente os investimentos em educação, não só porque os detentores desse empregos não investem em mais formação e os pretendentes a esses empregos (jovens estudantes), em face das poucas oportunidades à sua disposição, reduzem também o nível de investimento em educação. Além disso, o sistema de protecção no desemprego (que em Portugal, pelo menos até ao eclodir da crise económica havia evoluído para um caminho mais generoso e universal) poderá agravar esta situação. Ou seja, uma elevada duração de desemprego pode revelar-se perversa, segundo aqueles autores. Como dizem, “numa economia com uma taxa de desemprego de 10% e uma duração média do desemprego de 1 mês, os desempregados têm maior probabilidade de transitar para o emprego, do que numa sociedade com 5% de desemprego e 12 meses de duração média do desemprego”. No mesmo sentido, Dornelas et al. (2011: 18) constatam que é extramente reduzido o retorno 9 Para o efeito, é recorrentemente utilizado o indicador da Legislação da Protecção do Emprego (LPE), nos termos de uma avaliação proposta pela OCDE, segundo a qual, no caso português, além dos limites à contratação temporária e da dificuldade em realizar despedimentos colectivos, é sobretudo manifesta a dificuldade em despedir trabalhadores com empregos sem termo (Dornelas et al., 2006: 186). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 17 ao mercado de trabalho de beneficiários de subsídio de desemprego há mais de 9 ou 12 meses. Por outro lado, e mesmo já tendo sido corrigida essa suposta rigidez da legislação laboral10, foi igualmente reconhecido que o mais relevante não seria a legislação em si mesma, mas o uso que dela é feito e as consequências da sua aplicação. Na verdade, a capacidade de regulação da legislação é apresentada como variável: primeiro, porque a litigância varia por país, região, sector, profissão, situação na profissão ou situação no mercado de emprego; segundo, porque é diverso o papel atribuído à lei, às práticas de participação ou às convenções colectivas em cada sistema de emprego; finalmente, porque as avaliações baseadas somente na letra das normas sobre a liberdade patronal para contratar e despedir não levam em conta o conjunto, mas tão-só as condicionantes ao poder patronal nos momentos de início de termo da relação laboral. Assim sendo, não deixaria de ser crucial ter igualmente em conta a atipicidade do emprego, as formas de emprego oculto e o peso dessas formas no conjunto do emprego total (Dornelas et al., 2006: 186-187; Costa, 2009: 131). Por outro lado, a lei e a leitura que as pessoas fazem dela pode não ser consonante. Isto é, se é certo que há lei para proteger o emprego, na prática as pessoas não parecem acreditar muito nela. Assim, talvez com a excepção do Estado (onde, talvez se possa dizer, cada vez em menor número também), como não há garantia do emprego em geral e como tal “há uma sensação de que a lei protege mas as pessoas não se sentem protegidas”11. v) O papel dos sindicatos (ou melhor, da centrais sindicais) sobre a UE tendeu sempre a ser historicamente uma posição dual (Costa, 2006)12. Por um lado, a posição da União Geral de Trabalhadores (UGT) – central sindical de orientação socialista/social-democrata – associou à integração europeia, desde a primeira hora, a expectativa de um conjunto de “avanços” de vária ordem para o país, nomeadamente quanto ao processo de desenvolvimento e aproximação gradual às condições económicas e sociais médias da UE, resultante de um conjunto de apoios técnicos e financeiros provenientes dos Quadros Comunitários de Apoio. Além disso, a integração europeia enquanto processo externo criava condições para o reforço de um processo democrático interno ainda pouco consolidado: “a adesão à União Europeia permitiu o aprofundamento do processo democrático em Portugal e uma participação plena na construção europeia, reforçando o bem-estar económico e social e a projecção de Portugal no Mundo” (Proença, 2004: 2). 10 Assinale-se, por exemplo, que a revisão do código laboral em Fevereiro de 2009 de certo modo já previra a compensação dessa suposta rigidez, nomeadamente em matérias como adaptabilidade de horários, banco de horas, horários concentrados, ou processos de despedimento. 11 Mário Centeno, em entrevista ao Jornal Público, 7/02/2011. Cf. Igualmente Centeno e Novo (2008b: 146). 12 Para uma análise mais desenvolvida deste ponto, cf. Costa (2006). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 18 Para a UGT integração na UE e os avanços posteriores funcionaram sempre como momentos de mobilização nacional que levaram à convergência com a média europeia e à melhoria sustentada das condições de vida e de trabalho. A inflação em Portugal diminuiu e aproximou-se da média comunitária. A produtividade subiu acentuadamente, tendo Portugal os melhores resultados da UE, logo a seguir à Irlanda. Os salários e os rendimentos cresceram. O desemprego baixou. Esta visão mais optimista da UGT seria, no entanto, questionada ao longo da 1ª década do século XXI, sendo os nºs do desemprego (a que voltarei mais abaixo) apenas a ponta de um iceberg de retrocesso de direitos sociais que paira na sociedade portuguesa. Ainda assim, a nível mundial o papel da Europa é visto com fundamental, devendo ser reforçada a intervenção da UE na defesa de uma globalização diferente, com dimensão social e com respeito pelos direitos humanos e sociais. Perante a crise, assiste-se agora a uma resposta a nível da UE, devendo o plano europeu para o relançamento da economia ser estabelecido na base de uma actuação concertada dos 27 Estados Membros (UGT, 2009: 3). Em contraponto a esta visão a priori optimista para o país proveniente dos “apelos” europeus, posicionavam-se os desafios a posteriori menos optimistas para os sindicatos. A este respeito, e de acordo com Alan Stoleroff (2000: 454), a integração europeia criou condições desfavoráveis para o desenvolvimento sindical, em detrimento do que sucedeu com o capital e com o Estado. Expondo a economia portuguesa relativamente subdesenvolvida a novas formas de competição, a integração europeia levou os interesses empresariais e estatais a procurarem efectuar transformações no padrão de relações laborais existente em detrimento da estabilidade sindical. Em todo o caso, porém, nunca foram conhecidas grandes queixas de parte da UGT quanto ao facto de estabilidade dos sindicatos ter sido posta em causa com a integração europeia. É neste quadro pessimista que se enquadra a posição da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) – central sindical de orientação comunista. Para esta organização sindical, as dificuldades do processo de integração europeia foram notórias sobretudo desde a entrada em vigor da 3ª fase da União Económica e Monetária (UEM), em 1999: incumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento; crescimento de uma política monetarista; predomínio de teses neoliberais nos vários centros de decisão (CGTP, 2004a: 7). Afinal, desde o V Congresso (que coincidiu com o ano da adesão de Portugal à CEE, 1986) que a CGTP fez uma marcação cerrada ao processo de integração europeia, que classificou como sendo composto por “elementos centrais a livre circulação de capitais e a liberalização e desregulamentação” (CGTP, 2003a: 1; 2003b: 38). É preciso, pois, na óptica da central, que os governos europeus se distanciem “dos modelos mais Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 19 desregulamentadores e anti-sociais de outros pólos capitalistas” para que a UE se apresente como uma verdadeira alternativa ao neoliberalismo (Silva, 2004: 3), assim como é preciso que as instituições europeias deixem de incorporar uma americanização das relações de trabalho. Nestes termos, “o processo de integração europeia, continuando a corresponder à actual fase de desenvolvimento do sistema capitalista na Europa, incorpora crescentemente dinâmicas neoliberais duras, canalizadas para as prioridades ao desenvolvimento do mercado único, à livre circulação de capitais, à liberalização económica, à desregulação e flexibilização violenta do mercado de trabalho, colocando assim em causa valores sociais e humanos que, historicamente, fruto de dinâmicas políticas e sociais amplas internas e externas ao espaço da UE, enformavam, de forma diferenciada, o processo e o desenvolvimento sustentado das sociedades dos países europeus.” (CGTP, 2008) Em resumo, enquanto que a UGT sempre se afirmou “pró-UE” e evidenciou, na linha da Confederação Europeia de Sindicatos (CES), uma posição de contínua abertura estratégica para com a UE, a CGTP quase sempre se colocou no campo oposto, rejeitando a “linha federalista” da UE e assumindo a defesa da soberania nacional. Ainda hoje a CGTP não abriu mão de um discurso de fechamento estrutural, ainda que recheado de valiosos contributos críticos quanto às perspectivas a seguir quer pelo sindicalismo europeu, quer pelas instituições da UE. vi) As políticas passivas do mercado de trabalho – cujo principal instrumento é o subsídio de desemprego – remetem-nos para um direito progressivamente generoso e universal. Porém, segundo alguns autores (Centeno e Novo, 2008c: 154), o subsídio de desemprego, ao garantir um rendimento em situações que as pessoas não dispõem de emprego, poder deixar os trabalhadores mais “tranquilos” (i.e., menos receosos em vivenciar essas situações em que não têm emprego) e criar dificuldades em encontrar um emprego com um salário que satisfaça essas exigências. Assim, o rendimento propiciado pelo subsídio de desemprego pode levar os desempregados a esperar pelo “melhor” emprego.13 13 Ao contrário do que se pensa, não é fácil o acesso ao subsídio de desemprego. Das 541.800 pessoas inscritas nos centros de emprego em Portugal em Dezembro de 2010, apenas pouco mais de metade recebia subsídio de desemprego (Expresso, 29.01.2011). Para Mário Centeno (Público, 7.02.2011), “apenas uma fracção minoritária das pessoas que perdem emprego acede ao subsídio de desemprego” (os que não recebem não descontaram o número de meses suficiente). Em seu entender, o subsídio de desemprego é muito longo, quase elitista e por isso aumentar o subsídio de desemprego só prolonga ainda mais o desemprego. Esta linha de pensamento fez, de resto, parte do memorando de entendimento assinado no início de Maio de 2011 entre o governo português e a troika da Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI. Estima-se, aliás, que em 2012 e 2013 os cortes na duração do subsídio de desemprego venham a afectar123.000 desempregados (Público, 15.05.2011). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 20 Talvez seja isso ajude também explicar que em 2010 o nº de desempregados que perdeu direito ao subsídio de desemprego por recusar emprego14 duplicou. Ou seja, trata-se de uma medida governamental (em vigor desde Julho de 2010 e incluída no pacote medidas de austeridade com o propósito de travar a subida do desemprego de longa duração), não parece estar a sortir o efeito pretendido, pois limita as possibilidades de os beneficiários recusarem ofertas de trabalho uma vez que aumenta de 6 meses para 1 ano a obrigatoriedade de as pessoas aceitarem trabalho por um salário 10% superior ao subsídio de desemprego, sendo que do 13º mês em diante é considerado emprego conveniente o que propuser um salário igual ao subsídio. Por outro lado, embora o subsídio de desemprego continue a corresponder a 65% do salário bruto, foi introduzido um teto que impede que a prestação seja superior a 75% do salário que o desempregado recebia quando estava activo. Uma outra situação que ganha relevo no que concerne às contas da Segurança Social são as prestações com o desemprego. Em 2008, 1,1 mil milhões de euros foram gastos em subsídios de desemprego, 12 vezes mais do que em 1977. Referira-se ainda aqui o Rendimento Mínimo Garantido (RMG) e o Rendimento Social de Inserção (RSI), prestações de apoio às famílias com extremas carências pecuniárias e que constituiu uma inspiração que alguns governos portugueses foram buscar a outros Estados europeus. Desde a criação desta prestação, em 1998, o número de subsídios atribuídos passou de 340 mil para mais de meio milhão, em 2009. vii) As políticas activas do mercado de trabalho, por sua vez, visam complementar as políticas passivas do mercado de trabalho de modo a propiciarem uma mais rápida e eficiente transição do desemprego para o emprego e criar uma diversidade de oportunidades de emprego para os desempregados. Estas políticas incidem principalmente na formação, subsídios à criação de emprego e actuação dos serviços públicos de emprego no apoio à procura de emprego. Ao reportarem-se a quatro tipos principais de políticas activas do mercado de trabalho – serviços públicos de emprego, formação profissional, medidas de emprego para jovens e subsídio ao emprego –, Centeno e Novo (2008c: 155) concluíram, no entanto, pela sua baixa eficácia. Na verdade, ao avaliarem iniciativas implementadas pelos Centros de Emprego, como a medida REAGE (para desempregados 14 Esta constatação parece desmentir a expressão (recorrente na sociedade portuguesa) segundo a qual “o pior dos empregos é sempre preferível ao desemprego”, ainda que esta expressão traduza, a meu ver, uma percepção geral que as pessoas (desempregadas ou não) têm do emprego enquanto mecanismo que as ajuda a (sobre)viver. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 21 com mais de 25 anos e mais de 6 meses de desemprego) e a INSERJOVEM (para jovens com menos de 25 anos e mais de 3 meses de desemprego), concluíram que as medidas incluídas nessas iniciativas revelaram um impacto limitado na redução da duração do desemprego, que atingiu no máximo apenas meio mês. Não obstante uma tendência favorável ao reforço da intervenção das políticas activas do mercado de trabalho em Portugal, em especial no domínio da formação profissional, as medidas passivas continuam a ter um peso superior ao da média europeia (Dornelas et al , 2011: 17) e isso é mais um sinal do caminho que Portugal tem pela frente neste tipo de políticas. viii) Outros indicadores. Vários outros indicadores corroboram de certo modo os dados fornecidos a propósito do comportamento das instituições e actores do mercado de trabalho. Vejamos apenas alguns deles: contrato a prazo; desemprego; produtividade do trabalho; informalidade da economia. Por um lado, os contratos a prazo parecem colocar Portugal numa rota da flexibilização. Entre 1999 e 2007, verificou-se um aumento da probabilidade de novos contratos serem celebrados a termo e mantidos nessa situação durante mais tempo. Pela dinâmica de entrada na vida activa, este fenómeno afecta particularmente os trabalhadores jovens, mas tem-se estendido a todas as idades (Reis, 2009: 11-12). Além disso, no sector dos serviços a flexibilização tem sido bem evidenciada através do recurso aos contratos a prazo, possibilitando uma elevada rotação de emprego15. Ora, “esta excessiva rotação reduz os incentivos ao investimento em educação e formação por parte das empresas e dos trabalhadores, e acentua a polarização do mercado de trabalho, afectando negativamente a acumulação de capital humano da economia” (Reis, 2009: 12). No seu conjunto, os contratos a prazo abrangem mais de 20% dos assalariados, em especial jovens com níveis de escolarização elevados. Quanto ao desemprego, o que se constata é uma evolução com oscilações. Por um lado, assistiu, em especial na última década do século XX, a uma tendência progressiva de redução (o ano de 2000 foi aquele em que o desemprego atingiu níveis mais baixos: taxa de 3,9%). Porém, no final da 1ª década do século XXI, mais precisamente em 2009, o desemprego cifrava-se nos 9,5%, isto é, cerca de um em cada 10 activos esteve 15 Mário Centeno, em entrevista ao Jornal Público, 7/02/2011. Ver ainda Centeno e Novo (2008b: 146). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 22 desempregado. Mas os números do desemprego colocam ênfase quer na sua duração (no quadro europeu, o peso do desemprego de longa duração em Portugal faz-se particularmente sentir), quer nos escalões etários, sendo neste caso os jovens (mesmo os mais qualificados) particularmente afectados. Em termos gerais, o desemprego em Portugal passou de 524.674 (10,1%), em Dezembro de 2009, para 546.926 (11%), em Dezembro de 2010. Nesta data (Dezembro de 2010), a taxa de desemprego na zona euro era de 10% e na UE/27 era de 9,6% (Eurostat, 2011a).16. Entretanto, em Março de 2011, a percentagem de desempregados em Portugal situava-se nos 11,1%, sendo na média da zona euro de 9,9% e a da UE/27 de 9,5%. Num contexto de acentuada recessão económica em Portugal, estima-se mesmo que o desemprego possa, em 2012, atingir valores na casa dos 13%. O problema do emprego transporta, pois, consigo sinais de forte vulnerabilidade, porque ao mesmo tempo que se torna mais previsível perder o emprego, torna-se também mais difícil aceder a formas de crédito (Pedroso, 2009: 26). Ora, a tendência para o aumento do desemprego vai-se registando sobretudo ao nível do desemprego de longa duração17. Por outro lado, é demasiado elevada a percentagem de emprego atípico/precário em Portugal e tal tipo de emprego prima pela insegurança (instabilidade) e pela baixa remuneração. Além disso, no seio das empresas são evidentes baixos níveis de adaptabilidade do emprego e do tempo de trabalho, o que vem potenciar despedimentos, facilitar a contratação precária e dificultar a conciliação entre vida profissional e familiar (Dornelas, 2009: 128-129). No final de 2010 registava-se em Portugal o maior volume de desemprego jovem de sempre. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), das 609.400 pessoas desempregadas18 no 3º trimestre de 2010, 285.400 eram jovens com menos de 34 anos. E aqui (no desemprego jovem) certamente podemos incorporar o desemprego de licenciados: 16 No entanto, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), no último trimestre de 2010 a taxa de desemprego chegou aos 11,1%, elevando a população desempregada para 620.000, tendo a economia portuguesa perdido entre o 4º trimestre de 2008 e o 4º trimestre de 2010 cerca de 247.000 postos de trabalho. 17 No final de 2010, segundo o INE, do total de desempregados era já de 55,7% a percentagem daqueles que procuravam trabalho há mais de um ano. No terceiro trimestre de 2010, haviam 339.000 desempregados de longa duração em Portugal, mais 89.000 do que no mesmo trimestre do ano anterior (2009), sendo a maioria deles pessoas de baixas qualificações e, portanto, com maiores dificuldades em regressarem ao mercado de trabalho. 18 Note-se, porém, que este número não espelha provavelmente a totalidade do fenómeno em Portugal, pois se a esses 604.400 se juntarem os que pretendem trabalhar mas não procuraram emprego nas 3 semanas anteriores ao inquérito do INE, bem como os que desistiram de procurar emprego, isso significaria que o nº de desempregados chegaria aos 721.000 e a taxa de desemprego passaria dos 10,9% para os 12,7% (Público, 18/11/2010). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 23 se em 2000 o número de desempregados licenciados era de 83.000, em 2010 ele atingia os 190.000. Em terceiro lugar, a produtividade do trabalho 19 em Portugal evidencia também algum distanciamento face à UE. De entre os factores que explicam o considerável diferencial entre a produtividade média do trabalho em Portugal e o conjunto da UE a 27 destacam-se: i) a natureza do investimento em capital; ii) a estrutura produtiva portuguesa assente em segmentos com baixo nível de incorporação de conhecimentos em produtos e serviços; iv) o baixo grau de qualificação dos recursos humanos; v) a informalidade da economia (Dornelas et al., 2011: 27). Com efeito, o lado informal da economia é um lado escondido mas significativo. Estima-se que em Portugal o peso da economia informal represente cerca de ¼ do PIB português. Como assinalam Dornelas et al. (2011: 16), o peso do trabalho não declarado apresenta sobretudo motivações mais económicas do que sociais e atinge tanto mais as diferentes categorias quanto mais distantes estas se encontram do emprego típico e protegido. Além disso, integra uma parte (16%) não remunerada do trabalho realizado no sector formal da economia formal. Por outro lado, em Portugal, ao contrário do que sucede na generalidade dos países europeus, a parte remunerada do trabalho não declarado proporciona remunerações à hora mais altas do que o trabalho declarado e remunerado no sector formal da economia. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A crise política instalada em Portugal em Março de 2011, com o pedido de demissão do governo socialista (aceite pelo Presidente da República) em resultado da rejeição em bloco de todos os partidos da oposição ao chamado Plano de Estabilidade e Crescimento 4 (PEC 4) que reforçava as medidas de austeridade económica sobre a sociedade portuguesa (cortes salariais, aumentos de impostos, etc.) e a consequente marcação de eleições legislativas para 5 de Junho de 2011, Portugal viu-se forçado, no início de Abril de 2011, a accionar o pedido de ajuda externa junto do UE (Fundo de Equilíbrio e Estabilidade Financeira, FEEF) e do FMI. Consequentemente, a presença da troika internacional em 19 Formalmente, a produtividade do trabalho corresponde à quantidade de trabalho necessária para produzir uma unidade de um determinado bem. Do ponto de vista macroeconómico, mede-se a produtividade do trabalho através do produto interno bruto (PIB) de um país por pessoa activa. O crescimento da produtividade depende da qualidade do capital físico, da melhoria das competências da mão-de-obra, dos progressos tecnológicos e de novas formas de organização. O crescimento da produtividade é a principal fonte de crescimento económico. (http://europa.eu/legislation_summaries/enterprise/industry/n26027_pt.htm) Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 24 Portugal – composta pelo FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia – veio definir, em conjugação com o governo socialista demissionário e com dois partidos da oposição situados à direita (PSD e CDS), as condições (contrapartidas) do plano de ajuda financeira a Portugal no valor de 78 mil milhões de euros. Sem nunca ter sido eufórica (como referi no início), a visão que hoje se tem da UE é, pois, se não mais defensiva, talvez pelo menos mais ambígua. O facto de, em troca do apoio financeiro pedido por Portugal, o FMI estar disposto a cobrar taxas de juro pouco superiores a 3% e a UE cobrar taxas acima dos 5% é talvez um sinal dessa ambiguidade. Portugal encontra-se, pois, no meio de uma encruzilhada e o seu mercado de trabalho está ameaçado de maior flexibilidade, de um cenário de embaratecimento dos custos dos despedimentos, de despedimentos individuais mais facilitados, nomeadamente por inadaptação, de proliferação de relações de trabalho precárias, cortes nos subsídios de desemprego, etc. A UE está no meio dos portugueses, mas é uma incógnita saber se os portugueses estão (ou alguma vez estiveram) no meio dela. Por um lado, a UE parece vir até Portugal cada vez mais, ou melhor, aquilo que se faz nos espaços nacionais é cada vez condicionado pelo que acontece na Europa: por exemplo, cerca de 70% da legislação adoptada em cada Estado individualmente tem origem na legislação comunitária (Chagas, 2011). Além disso, em especial a partir de 1999 (com a entrada na fase de transição par o euro), o afã do cumprimento de critérios de convergência, de redução (não conseguida) do défice foi também um sinal de como a Europa se impôs a Portugal20 e a outros Estados-Membros mais periféricos. Mas, por outro lado, Portugal não parece ter descolado da cauda da Europa no que concerne à valorização e qualificação da sua força de trabalho. A importância da aposta na educação/qualificação das pessoas e do factor trabalho parece ser, assim, um desafio futuro de grande amplitude, desde logo também para contribuir para inverter a tendência (mais geral) de desigualdade na sociedade portuguesa: na UE/27 apenas a Letónia e a Lituânia apresentam padrões de desigualdade mais acentuada do que Portugal (Rodrigues, Figueiras e Junqueira, 2011). 20 Portugal é obrigado a adoptar certas regras impostas pelo Tratado de Maastricht: inflação indexada à dos países aderentes com menores taxas; défice orçamental abaixo dos 3% do PIB; dívida pública próxima dos 60%; e taxa de câmbio estável. Neste período, o PIB cresce a uma taxa anual de 1,2%, enquanto a inflação se cifra numa média de 2,5%. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 25 Não obstante os progressos registados em Portugal no sector da educação nas últimas décadas reflectirem uma aproximação a padrões europeus 21 , o Relatório Estado da Educação 2010, produzido pelo Conselho Nacional da Educação, registou, entre outros dados, o seguinte: que as qualificações dos portugueses ainda se encontram muito abaixo da média europeia; que 7 em cada 10 trabalhadores apresentam baixos níveis de qualificações; que 17% da população activa possui qualificações médias e 13,2% qualificações elevadas, mas 1/3 ainda deixa o ensino secundário por concluir; que 24% das pessoas empregadas não concluíram o ensino básico; que 21% dos alunos portugueses reprovam ou abandonam o sistema de ensino e só 58% concluem o 12º ano em tempo normal sem terem reprovado nenhuma vez (Campos et al., 2010). Além destes baixos níveis de qualificação do emprego face à média da UE e do abandono escolar precoce, a aprendizagem ao longo da vida é ainda cerca de metade da EU/27 (Dornelas, 2009: 129). Ora, ser mais escolarizado e qualificado é uma forma de aumentar colectivamente a produtividade de uma sociedade, mas ao mesmo tempo uma forma de alargar as opções de trabalho ao dispor de um trabalhador/cidadão (Centeno e Novo, 2008a: 132).22 Para Boaventura de Sousa Santos, após um momento europeu de aceitação (1974-2011), Portugal entra agora num momento de rejeição disfarçada da aceitação, um momento em que “se desfazem as ilusões da promoção fácil por via da integração na UE” (Santos, 2011: 54). Na verdade, prossegue o autor, “os termos da integração foram-nos sendo progressivamente desfavoráveis, o projecto europeu foi-se desviando das vontades originais e os mercados financeiros aproveitaram-se das brechas criadas na defesa da zona euro para se lançarem na pilhagem em que são peritos”. Consequentemente, “vivemos um tempo de explosão da precariedade, obscena concentração de riqueza, empobrecimento das maiorias e incontrolável perda do valor da força de trabalho” (Santos, 2011: 152). Parece, assim, mais evidente que as promessas de modernização ficaram curtas e que, pelo menos do ponto de vista do mercado laboral (que foi o que aqui centrou a minha atenção) os progressos alcançados não apagaram sinais de atraso face à média da UE. 21 Por exemplo, o número de diplomados no ensino superior quadruplicou em menos de duas décadas (19 mil diplomados em 1991 e 84 mil em 2008), e mesmo a obtenção de níveis de formação mais elevados (como o doutoramento) conheceu melhorias muito significativas: em 1970 apenas 61 pessoas tinham obtido o grau de doutoramento em universidades portuguesas ou estrangeiras, ao passo que no presente o número anual de doutoramentos é superior a 1.000 (Rosa e Chitas, 2010: 39). 22 Nesta mesma linha se pode enquadrar a medida 11 do Manifesto dos Economistas aterrorizados, redigido por membros da membros da Academia Francesa de Economia Política, e segundo a qual é importante aumentar o esforço orçamental em matéria de educação como forma de permitir uma forte descida do desemprego (Askenazy et al., 2010: 8). Cf. também a edição em Português deste manifesto, publicada em 2011 pela editora Actual. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 26 REFERÊNCIAS Anica, Aurízia (1997), “Transformações na sociedade portuguesa e integração na CEE” [disponível em http://www.eduvinet.de/eduvinet/port002.htm], acedido em 15.04.2011. Askenazy et al. (2010), Manifeste des économistes atterrés. Crise et dette en Europe: 10 fausses evidences, 22 mesures en debat pour sortir de l’impasse [disponível em http://economistes-atterres.blogspot.com/2010/09/manifeste-des-economistes-atterres.html], acedido em 15 de Janeiro de 2011. Barreto, António; Pontes, Joana (2007), Portugal, um retrato social. 01: Gente Diferente. Quem somos, quantos somos e como vivemos. Público/RTP. Campos, Bártolo Paiva et al. (2010), Estado da Educação 2010. Percursos Escolares. Lisboa: Conselho Nacional de Educação. 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Soluções que causam dissoluções TRANSICIÓN DEMOCRÁTICA Y NEOLIBERALISMO: la crisis de la deuda externa en Argentina DEMOCRATIC TRANSITION AND NEOLIBERALISM: the external debt crisis in Argentina TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E NEOLIBERALISMO: a crise da dívida externa em Argentina Alejandro Gabriel Manzo23 Resumo: Com o objetivo de entender como o neoliberalismo penetrou em Latino América durante a década dos 80, este artigo analisa o processo de negociação da dívida externa entre as autoridades argentinas e as do FMI no tempo imediatamente posterior ao restabelecimento do regime democrático em 1983, e os conflitos políticos conseqüentes. Palavras-chaves: Neoliberalismo -Transição Democrática - Dívida Externa Abstract: This article analyzes the process of negotiation between the Argentinean authorities and those of the “International Monetary Fund” (IMF) in the period 1983-1985 with the purpose of observing in a historical particular process the activation of the “case by case strategy” designed by IMF to struggle against the “external debt crisis” that affected Latin America during the eighties. In particular, this article tries to show that some of the main 23 Universidad Nacional de Córdoba (UNC). Centro de Estudios Avanzados (CEA), Argentina. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 30 principles of democratic regimes have been damaged in the neoliberal globalization era because the indebted governments of peripheral and semiperipheral countries, such as the case of Argentina, must negotiate the orientation of its internal policies with transnational agents; agents who have not been chosen democratically. Key words: Neoliberalism – Democratic Transition- External Debt. Resumen: el Dr. Alfonsin asumió el gobierno en 1983 con el objetivo principal de asegurar la vigencia de la democracia luego de 50 años de continuos golpes de Estado en Argentina. Si bien el grueso de sus esfuerzos se dirigieron a desmantelar la estructura represiva heredada de la última dictadura militar (1976-1983), en especial a juzgar los crímenes de lesa humanidad cometidos, también buscaron recomponer la delicada situación económica imperante. El principal problema a enfrentar en este sentido giraba en torno a la deuda externa; deuda cuyo monto se había multiplicado por cuatro en un período de seis años y cuyo peso en el “Producto Bruto Interno” (PBI) era tal que desestabilizaba por si misma al resto de las variables económicas. Este artículo analiza el proceso de negociación entre las autoridades argentinas y las del Fondo Monetario Internacional (FMI) en el período inmediatamente posterior al restablecimiento de la democracia (1983-1985), y con la finalidad de observar, en una dinámica histórica concreta, la puesta en práctica de la “estrategia caso por caso” diseñada por esa organización para lidiar con la “crisis de la deuda externa” que afectó a Latinoamérica durante la década de los 80. Esta estrategia convirtió a la deuda externa en un “mecanismo de disciplinamiento” en la medida en que a través de la misma los países centrales podían participar en el diseño de la política interna de los países endeudados y controlar palmo a palmo su implementación. Este análisis, de carácter socio-histórico, se efectúa tomando como marco de referencia empírico fuentes de datos secundarias, en especial bibliografía específica sobre la materia. La hipótesis orientativa que guía este trabajo es que el proceso de transición democrático argentino se vio afectado por la puesta en práctica de un programa económico neoliberal. Subyace en esta hipótesis la idea base del paradigma crítico de que la democracia y el Estado de Derecho no son fenómenos abstractos sino, por el contrario, fenómenos históricos que se reproducen a través de luchas de poder entre agentes con poderes diferenciales. Palabras Claves: Neoliberalismo-Transición Democrática-Deuda Externa Argentina. 1. INTRODUCCIÓN El 10 de diciembre de 1983 finalizaba el período más oscuro de la historia Argentina. El legado de la dictadura militar de 1976 incluía miles de desaparecidos, torturados y exiliados, pero también una situación económica calificada por RAPAPORT (2010:339) como “poco Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 31 menos que catastrófica”. Correspondía al presidente electo Raúl Alfonsín encarar en este contexto el proceso de transición democrática. Su objetivo inmediato, y centro de todo su programa político, giraba en torno a los siguientes interrogantes: ¿Qué hacer con los delitos de lesa humanidad cometidos durante el régimen militar? ¿Cómo garantizar que éstos no se repitiesen en el futuro? Y más importante aún ¿Cómo asegurar un espacio de gobernabilidad democrática, estable y perdurable, luego de más de 50 años de continuos golpes de Estado? A fin de responderlos, el oficialismo tomó durante los primeros días de su mandato una serie de medidas particularmente trascendentes. Se excluyeron de los beneficios de la “obediencia debida” a todos los que habían cometido hechos atroces o aberrantes (Nº 23.049) y se decidió juzgar por igual a guerrilleros y militares (decretos 157/83 y 158/83). Se creó, por decreto 187/83, la “Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas” (CONADEP) que tendría a su cargo el recabar informes y testimonios sobre lo sucedido. Finalmente, se sancionaron un sinnúmero de normas dirigidas a desbaratar la estructura represiva del antiguo régimen y a ampliar la protección en materia de derechos humanos. La política económica, observa NOVARO (2006:166), debía estar en consonancia con este proceso y promover simultáneamente el crecimiento, el desarrollo y la equidad. En cumplimiento de su promesa electoral, Alfonsin abrió una serie de comisiones destinadas a juzgar la legitimidad de la “fraudulenta”24 deuda externa contraída durante el período 19761983 en tanto que su ministro de economía, Grinspun, puso en práctica un programa estatalmente expansivo que tenía como objetivo inmediato el de saldar la “deuda social” heredada de la dictadura y reactivar el modelo sustitutivo de importaciones. Se trataba, explica RAPAPORT (2010:341), de un programa particularmente opuesto a los presupuestos propios de las nuevas teorías neoliberales. Parte del rechazo del gobierno, dicen ESCUDÉ Y CISNEROS (2000) 25 , a las “recomendaciones de política de corte neoliberal tenía que ver con la elaboración conceptual de la experiencia pasada. Los políticos identificaban como parte del mismo paquete al régimen militar autoritario de los 70 y a la política económica monetarista y pro-mercado que dicho gobierno había implementado (…) En consecuencia, criticaban esta afinidad ideológica y culpaban a ambos, militares y tecnócratas ortodoxos, por el legado que habían dejado a la renaciente democracia...”. 24 25 Ver el resumen de OLMOS (2006) del denominado “juicio de la deuda externa” -Causa judicial N° 14.467. ESCUDE-CISNEROS (2000: capítulo 55: “la estrategia del gobierno radical al inicio del mandato”: 3. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 32 Menos de un año y medio después el oficialismo estableció un viraje de 180 grados en relación a su orientación económica originaria. El “plan Austral” de junio de 1985 giró en torno a un profundo ajuste estructural del gasto público y anunció la puesta en práctica de una serie de reformas de fondo destinadas a desmantelar la estructura del Estado de sustitución de importaciones. Poco después, por intermedio de las resoluciones N° 1.543 y N° 408/161, se cerraron las investigaciones abiertas en torno a los delitos económicos cometidos en la última dictadura militar (con lo cual el Estado asumió el pago tanto de la deuda considerada “legítima” como de aquella otra entendida como “ilegítima”) y se activó un nuevo proceso de estatización de la deuda del sector privado (vgr. comunicaciones del BCRA A-695, A-696 y A-697 del 1º de julio de 1985). ¿Cómo y por qué se produjo este viraje? A fin de dar respuesta a este interrogante, este artículo reconstruye las relaciones entre las autoridades nacionales y las del FMI en el tiempo inmediatamente posterior al retorno de la democracia y tomando como base de referencia empírica el trabajo de BOUGHTON (2001)26. Previo a ello, y tal como lo vemos a continuación, presenta una serie de categorías analíticas necesarias para comprender el papel de esta institución en un escenario global signado por la “crisis de la deuda externa”. 2. LA CRISIS DE LA DEUDA EXTERNA Y LA ESTRATEGIA CASO POR CASO Durante los años 70, y en razón del excedente de divisas existentes en el mercado financiero internacional tras la crisis del petróleo de 1973, el flujo de capitales proveniente de los países centrales a los periféricos del sistema mundial fue inmenso. Los miles de millones de dólares que por entonces recibieron los gobiernos latinoamericanos pueden dimensionarse en toda su extensión si se observa que entre 1973 y 1982 la deuda externa de México creció en un 855,4%, la de Argentina en un 792,3%, la de Brasil en un 606,4% y la de Chile en un 445,5%27. Cabe advertir que, con la excepción de México, el resto de los Estados aludidos se encontraban durante esos años bajo control militar. No obstante ello, a finales de la década el panorama internacional dio un abrupto vuelco. El 8 de septiembre de 1978 se produjo el “viernes negro” en Teherán, capital iraní, que desembocó en la caída del Sha el 16 de enero del año siguiente. Los acontecimientos desencadenaron un sismo en el escenario político de Medio Oriente que devino, a su vez, 26 Esto es así, en tanto este trabajo fue realizado por encargo del FMI y con el objetivo de reconstruir su propia historia. Constituye, de este modo, una fuente de información particularmente confiable y autorizada según los propios parámetros de la institución; “una suerte de historia oficial o autorizada del FMI”. 27 Anexo estadístico de la cátedra de historia económica de la Universidad Nacional de Entre Ríos (UNER), http://www.fceco.uner.edu.ar/cpn/catedras/histssxx/indiceimages.htm, consultada el 12-12-09. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 33 en una escalada abrupta del precio del petróleo. Tras el comienzo, en 1980, de la guerra entre Irán e Irak éste se disparó a niveles desconocidos en más de un siglo. La “segunda crisis del petróleo” tuvo efectos particularmente intensos en la economía global. EEUU ingresó en una profunda recesión. En parte como reacción, en parte como motivo de dicha situación, implementó una política de ajuste estructural conocida como “shock Volkcer”28. Este aumentó de un momento a otro las tasas de interés vigentes en el sistema financiero norteamericano y con ello, las de los créditos externos de los países emergentes contraídos en dólares. Estas tasas pasaron de ser negativas a principios de los años 70 a ser aproximadamente 16% positivas a finales de los mismos BOUGHTON (2001:319). Rápidamente, los gobiernos endeudados se encontraron en series dificultades económicas. Los primeros síntomas de la “crisis de la deuda externa” se percibieron en Europa del Este, luego en América Latina y desde allí se propagaron por el resto de los países emergentes del mundo capitalista. HARVEY, (2007:106) exhibe en su libro un mapa que posibilita advertir que, con distinto grado de intensidad, ésta afectó a 17 Estados de Latinoamérica, 19 de África, 3 de Europa y 1 de Oceanía poniendo en serio riesgo la viabilidad del mercado financiero internacional y de sus principales instituciones. En este contexto, y a fin de lidiar con la situación, el FMI diseñó una estrategia, denominada “caso por caso”, que se aplicó en 25 oportunidades durante los años 1982 y 1985. Haciendo un proceso de abstracción de estos casos, BOUGHTON (2001:404 y ss) presenta los siguientes elementos claves para comprenderla. 1- En todos las oportunidades en que la estrategia operó el “desbalance (en el país deudor) era lo suficientemente relevante como para generar una crisis…”. En efecto, los procesos de negociación se llevaron a cabo en momentos en los que los Estados endeudados se encontraban atravesando un período de extrema debilidad económica. El Fondo partía de considerar que el default era el peor de los escenarios posibles para ambas partes en juego (vgr. deudores y acreedores). De allí que el grueso de sus esfuerzos se dirigiesen a evitarlo. La estrategia se construía de principio a fin en torno a esta finalidad inmediata. Exigía por un lado, a los gobiernos deudores sacrificios destinados a generar un ahorro lo suficientemente cuantioso como para afrontar el pago de sus pasivos externos y, por otro, a los acreedores que reprogramasen el vencimiento de sus créditos y participasen en los paquetes financieros necesarios para rescatar la economía en crisis. 28 El nombre proviene de Paul Volcker director de la Reserva Federal de los EEUU de 1979 a 1987. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 34 2- “La aprobación del Acuerdo era una precondición para acceder al financiamiento de bancos comerciales y oficiales…”. El FMI se convirtió a principios de los 80 en la llave de entrada al mercado financiero internacional. Todo país que pretendiese negociar su deuda y acceder al crédito externo debía necesariamente firmar un Acuerdo previo con esta institución. El paquete de divisas que éste suponía se sujetaba al cumplimiento por parte del prestatario de un “set de políticas” apropiadas para estabilizar su economía (vgr. “financiamiento por condicionalidades”). Estas políticas, históricamente pro-mercado, se sustentaban en los 80 en los presupuestos propios de las teorías neoliberales. Bajo esta dinámica, conformada a través de un proceso de prueba y error que tuvo como emblema el “caso México” (1° país en estar al borde del default en agosto de 1982), se encontraban alineados los “Bancos Multilaterales de Desarrollo” (BMD, vgr. BM, BIS y BID), los “centrales” y “oficiales” de las potencias occidentales y, finalmente, los “comerciales” que habían sido los abanderados del reciclaje de petrodólares durante los años 70 hacia los mercados emergentes y que, en el caso mencionado, alcanzaron el número de 500 con participación activa. Éstos, que a principios de la crisis suponían una masa dispersa y fragmentada, se organizaron a instancias del FMI a través de un “Comité asesor” integrado por los representantes de los 14 bancos privados más importantes de occidente con asiento matricial en Norteamérica, Europa y Asia. Otra innovación propia de este período fue la aparición de la figura de los “créditos concertados”. En los 70, las entidades que prestaban divisas a los gobiernos en vías de desarrollo lo hacían de manera autónoma y voluntaria. A partir de 1982 esto se alteró. Durante el proceso de negociación de la deuda, el staff del FMI determinaba la cuantía del paquete financiero a otorgar al país deudor y el porcentaje que cada uno de los “tipos” de acreedores involucrados debía aportar (vgr. bancos oficiales, BMD y privados). El Acuerdo se aprobaba sólo si cada uno de esos tipos efectivamente alcanzaba dicho porcentaje y se comprometía por escrito a prestar el dinero en la fecha convenida (vgr. “créditos concertados”). En la práctica, esta modalidad activaba un apresurado proceso de captación de recursos en los territorios de los Estados centrales; proceso que permitía tener enganchados en el juego a cientos de entidades privadas de pequeño o mediano tamaño. Por el lado de los deudores, sucedió exactamente lo contrario. Tras el estallido de la crisis, los diferentes países afectados acercaron posiciones con el objetivo de máxima de conformar un pool de deudores que les permitiese ampliar su poder de negociación y exigir Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 35 condiciones ventajosas para sus propios intereses. La estrategia del Fondo minó en buena medida estos lazos de solidaridad. De allí su nombre: “caso por caso”. Bajo la justificación de que cada caso era particular y que, por lo tanto, requería soluciones particulares se impuso como requisito sine qua nom de la nueva dinámica del mercado financiero internacional la firma de un Acuerdo entre “un” país deudor y el FMI. No había lugar para soluciones conjuntas a una problemática común. La estrategia contribuía así a construir un nuevo equilibrio de poder en el escenario global; equilibrio sin el cual no puede comprenderse cómo el neoliberalismo penetró en los países periféricos del sistema mundial durante la década de los 80. 3- Durante el período 1982-1985 los Acuerdos “estaban confinados fundamentalmente al ajuste monetario, fiscal y de la política salarial (…) Otras reformas más estructurales -como la liberalización de los precios, la privatización de las empresas públicas, la simplificación de las regulaciones, etc- van a ser consideradas posteriormente como una parte crucial para el restablecimiento del crecimiento…” Este párrafo muestra la evolución del contenido del neoliberalismo, como política oficial, durante los años 80. Lo que se conocería como el “Consenso de Washington” de 1989 no surgió de la noche a la mañana. Se trató, por el contrario, de un largo proceso de prueba y error que comenzó en los años 70 con un núcleo básico que se fue ampliando a lo largo de la década subsiguiente. Este núcleo aparece representado en el párrafo transcripto por “los ajustes estructurales”. Éstos, básicamente, suponen un recorte del gasto del Estado (en distintos niveles: monetario, fiscal y salarial) y tienen como objetivo inmediato el de controlar la inflación, estabilizar el mercado local y, desde allí, fomentar el crecimiento económico vía inversiones privadas, directas o indirectas, internas o externas. Se legitiman de una manera muy sencilla. Éstos, de conformidad a la óptica de sus promotores, buscan lograr una administración pública racional, ordenada y eficiente, evitar despilfarros a partir de políticas “populistas” y reducir o eliminar el déficit fiscal. No obstante ello, vistos en profundidad, estos ajustes estructurales cumplen una serie de funciones mucho más complejas y centrales para la reproducción de los modelos neoliberales aplicados en nuestra región. Estas son, al menos, las siguientes: a) Minimizan el Estado: en el máximo grado de abstracción estos ajustes suponen un cambio fundamental en cuanto al papel del Estado en la sociedad. Durante la vigencia del “modelo de sustitución de importaciones” (vgr. años 30 a 70) era precisamente el Estado el encargado de ordenar las relaciones entre capital y trabajo. En el neoliberalismo esta Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 36 función recae sobre el mercado. Se entiende que éste, es el mecanismo más eficiente para redistribuir los recursos sociales y fomentar el crecimiento económico. Desde su lógica, la intervención estatal lejos de ser la solución a las crisis económicas es su causa principal. Los ajustes estructurales reducen el gasto del Estado y con ello, su capacidad para comprar bienes y servicios, subsidiar la producción, establecer aumentos de salarios que fomenten el consumo interno, ampliar su planta de personal para luchar contra el desempleo, construir obras públicas que movilicen determinados sectores de la industria, etc. Estas políticas estatalmente expansivas, desde la lógica del FMI, lejos de tener el efecto deseado aumentan el déficit fiscal, promueven la inflación, distorsionan las señales del mercado y son, consecuentemente, a largo plazo profundamente contraproducentes. b) Aseguran el pago de la deuda externa: el ahorro fiscal producido por los ajustes estructurales no se destina de manera directa a fomentar la producción o el trabajo sino a garantizar la normal integración del Estado al mercado financiero internacional. Esta integración se asegura básicamente cancelando en tiempo y forma los vencimientos de sus pasivos externos y acumulando reservas que den solvencia y liquidez a su sistema financiero. Los créditos otorgados por los BMD ayudan a un Estado en crisis a cumplir con estas finalidades hasta tanto se detenga la fuga de capitales, se retome la senda del crecimiento y el flujo de divisas se reoriente hacia el interior de las fronteras nacionales. La firma de un Acuerdo entre el gobierno del país deudor y el FMI constituye un aspecto central en lo que a la “confiabilidad” y “credibilidad” del mercado local a nivel internacional se refiere. c) Redistribuyen de manera inmediata los recursos sociales en detrimento de los trabajadores y a favor de los grandes capitales: los ajustes implican recortes de sueldos, de la planta de personal, de la jornada laboral y de las prestaciones sociales. El sistema financiero, por el contrario, busca ser recapitalizado, se paga a los acreedores externos y se diseñan distintos estímulos para atraer a los grandes inversores. De allí que, suela decirse que, bajo estos presupuestos, el grueso de los costos sociales que se desprenden de las crisis económicas recaen sobre los sectores medios y bajos de la sociedad. Es fundamental subrayar que esta redistribución no se asienta en un imperativo “moral” del modelo neoliberal sino “funcional” a su propia lógica de reproducción. La eventual quiebra del sistema financiero local y la desvinculación del Estado del mercado de capitales internacionales, se cree, deriva en el colapso de la economía considerada como un todo. Los costos sociales que de este colapso se desprenden, dicen los promotores del modelo, superan los inmediatos del ajuste estructural. Sin éstos, asimismo, el Estado carece de los recursos necesarios para asegurar la solvencia del sistema, la confiabilidad del mercado y, consecuentemente, de la capacidad para atraer las inversiones necesarias para reactivar la Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 37 economía. Una vez que ésta se recupera, los beneficios no se circunscriben a unos pocos sino que se derraman sobre todas las clases sociales (“teoría del derrame”). Hacia mediados de los 80 la estrategia caso por caso había alcanzado un nivel crítico. Los bancos se rehusaban a participar en los paquetes de créditos concertados y la población de los países endeudados mostraba una creciente fatiga en relación a los programas de ajustes29. En este contexto, el nuevo secretario del tesoro de EEUU (vgr. James Baker III) ideó una nueva propuesta para lidiar con la crisis que no suponía un abandono de la estrategia imperante sino su modificación. Esta propuesta, presentada en 1985, fue conocida como “Plan Baker”. Básicamente, éste institucionalizaba una serie de roles para los distintos agentes involucrados y tasaba la cantidad de financiamiento que se requeriría para afrontar la situación durante los próximos tres años 30 . Más importante aún, éste suponía un cambio fundamental en el contenido del recetario neoliberal con destino a los países periféricos del sistema mundial. Los Acuerdos ahora combinaban los “ajustes estructurales” con “reformas de fondo” destinadas, básicamente, a desmantelar los Estados vigentes. Estas reformas se organizaban mayormente en torno a la flexibilización y desregulación del trabajo y de la seguridad social, la privatización de las empresas públicas, la descentralización estatal, la apertura del mercado local al internacional, la liberalización financiera y la reforma de los sistemas tributarios. 4- “Cuando los problemas iniciales eran severos (…) los programas del Fondo usualmente fallaban. De los 25 acuerdos aprobados con distintos países entre 1982 y 1985, sólo 11 fueron totalmente completados, y la mayoría de ellos requirieron modificaciones sustanciales antes de ser concluidos…” Esto muestra las dificultades que encontró la estrategia para operar en la práctica. Éstas provenían al menos de dos direcciones interrelacionadas: los costos sociales que los ajustes significaban (vgr. “fatiga de ajuste”) y la imposibilidad de la estrategia para reactivar la economía de los países en los cuales ésta se activó. Hacia 1985, es decir 3 años después del inicio de la crisis, el crecimiento seguía siendo, según palabras del propio Boughton, la “Meta Elusiva”31. Se trata de un resultado que no es casual a la luz de los propios presupuestos de los que la estrategia originalmente partía. No existía ningún plan para reactivar las economías de los países afectados, más allá de lo que podía derivarse de la estabilización del mercado vía control de la inflación. Hasta mediados de los 80 el diagnóstico del Fondo era que éstos 29 Boughton (2001:417-418). Escude-Cisneros (2000: “capítulo 55”, “el rol del FMI y el BM”: “el Plan Baker”:1). 31 Título con el que el que Boughton titula el capítulo 5 de su trabajo (Growth, the elusive goal: 1985-1987). 30 Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 38 atravesaban una crisis “coyuntural” y no “estructural”. Visto así, una vez que los factores endógenos y exógenos que la habían desencadenado variasen, los Estados podían recuperar la senda del crecimiento y pagar-contraer su deuda de manera voluntaria. Una vez que el diagnóstico cambió se transformó también la estrategia (vgr. Plan Brady 1985). De acuerdo a la nueva lógica los países no crecían, no por el peso de sus deudas ni por el estrangulamiento que los propios ajustes efectuaban sobre sus economías, sino por defectos estructurales del propio Estado de sustitución de importaciones. 5- “Sin importar los obstáculos, casi todos estos Acuerdos fueron rápidamente repagados en tiempo y totalmente (…) Abandonar al Fondo significaba renunciar al acceso a los mercados financieros internacionales. La estrategia de la deuda tal vez no haya sido completamente exitosa, pero sólo unos pocos países endeudados estuvieron en condiciones de darle la espalda…” Varios puntos a considerar: en primer lugar, este párrafo permite advertir que, pese a los enormes riesgos que supone prestar dinero a un gobierno que se encuentra en una situación de crisis tal que no puede afrontar los pagos de su deuda, “casi todos estos Acuerdos fueron rápidamente repagados en tiempo y totalmente”. Se trata de un resultado imposible de lograr en condiciones de libre mercado. Cualquier otra consideración un poco más profunda, como que estos pagos se efectuaban cuando el grueso de la población pasaba grandes necesidades, es por supuesto obviada en esta clase de razonamiento. En segundo lugar, este párrafo introduce el elemento “coercitivo” de la estrategia. La capacidad del FMI para “imponer” condiciones en la orientación de la política interna del Estado deudor surge de los puntos delineados anteriormente. En efecto, dice el autor citado, “abandonar al Fondo significaba renunciar al acceso de los mercados financieros internacionales” y “sólo unos pocos países endeudados estuvieron en condiciones de darle la espalda” aún cuando “la estrategia no haya sido completamente exitosa”; exitosa, vale la pena aclararlo, para los deudores. Para mediados de la década de los 80, los bancos acreedores ya se encontraban fuera de peligro y con sus cuentas saneadas. El aludido Plan Baker surge en buena medida de la necesidad de mantener en el juego a las entidades privadas que, en su nueva condición, no concebían una intervención centralizadacoordinada como requisito sine que nom para operar en el mercado internacional de capitales. Sólo cuando éstas estuvieron suficientemente fortalecidas a finales de los 80 es que se consideró la posibilidad de condonar parte de la deuda de los países en vías de desarrollo (vgr. Plan Brady), algo que los gobiernos de la región venían solicitando desde principio de la crisis. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 39 3. Las relaciones entre las autoridades argentinas y las del FMI entre 1983 y 1985 En Argentina los síntomas de la crisis empezaron a manifestarse aún antes que en el resto de los países de la región. Durante el régimen militar la deuda externa había aumentado desde los 9 a los 45 mil millones de dólares (MARONGIU, 2007:13). En este contexto el shock Volcker tuvo un efecto particularmente intenso. Frente a la desconfianza, los capitales especuladores iniciaron un éxodo masivo y el 28 de marzo de 1980 el principal banco privado radicado en el país cerró sus puertas (Banco de Intercambio Regional). El proceso se diseminó a ritmo vertiginoso y más de 70 instituciones bancarias, lo que equivalía a cerca del 20% del total de los depósitos en el sistema, cayeron en quiebra dejando al “desnudo multimillonarios autopréstamos”32. El ministro Alemann inició, a principio de 1982, el proceso de negociación de la deuda logrando alcanzar compromisos con los acreedores externos para la reprogramación de los vencimientos inmediatos. No obstante ello, la guerra de Malvinas echó por tierra el avance logrado. Frente al bloqueo de las exportaciones argentinas, el sector duro de la Junta Militar pidió la confiscación de los bienes británicos. “Alemann no aceptó, pero sin dudarlo suspendió el pago de los vencimientos de capital de la deuda externa para preservar el nivel de reservas del Banco Central, generando una reacción de histeria entre los banqueros de todo el mundo...” (KANENGUISER, 2003:165). La crisis de la deuda externa estallaba en Argentina 4 meses antes de que lo hiciera en México. La derrota en Malvinas simbolizó el principio del fin de la dictadura. A diferencia del resto de los países de la región, insertos también en hondos procesos recesivos, el gobierno militar debió abandonar el poder intempestivamente. Cuando la paz fue reestablecida, en junio de 1982, la Argentina ya había acumulado más de 2 mil millones de dólares de deuda impaga. Advertido de la metamorfosis que estaba sufriendo el mercado financiero internacional, el nuevo ministro de economía -Wehbe- decidió conectarse con el FMI. El 24 de enero de 1983 el Comité Ejecutivo de esta institución aprobaba un Acuerdo stand-by por un paquete financiero de 3.270 millones de dólares33. Sin embargo, en octubre de ese año y ante la inminencia de las elecciones, los desembolsos acordados se interrumpieron. Al momento de la asunción de Alfonsín, el panorama económico era crítico. La inflación se había incrementado entre 1982 y 1983 de una tasa del 209,7% a una del 433,6% anual, el déficit fiscal representaba este último año el 32 33 Diario La Nación del 30-11-2003. Escude-Cisneros (2000: “capítulo 55”, “antecedentes inmediatos”: 2). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 40 16% del PBI en tanto que la deuda lo hacía en un 67% (Novaro, 2006:168). Peor aún, los capitales especulativos seguían su éxodo masivo. El nuevo presidente del BCRA, García Vásquez, le indicó en este sentido al director gerente del FMI, Larosiére, que esta fuga había sido tan intensa en los últimos meses que “había convertido a la Argentina en un país sin moneda…” (BOUGHTON, 2001:388). Se hacía imperioso para el gobierno detener y revertir esta tendencia. A estos efectos el 21 de diciembre, es decir a sólo 11 días de asumido el poder, García Vásquez viajó para reunirse con Larosiére. El director gerente entendió que la mejor manera de abordar la problemática argentina era a través de un “programa de largo-término” y acordó el envío de una misión a Bs As para el mes de febrero34. La situación financiera era tan angustiante que el ministro Grinspun decidió dejar de lado el plazo acordado y viajar a principios de enero a Nueva York para reunirse con el Comité Asesor de los bancos comerciales. Él les comentó que estaba buscando un nuevo Acuerdo con el Fondo y les solicitó que reflotaran el paquete financiero convenido durante la dictadura. Se juntó, asimismo, con Larosiére para manifestar su fuerte intención de llegar a un Acuerdo lo antes posible. “Sin embargo, sin ningún esfuerzo concreto que demostrase su compromiso con políticas fuertes, este esfuerzo inicial de persuasión fue largamente en vano. El 23 de enero, el arreglo stand-by existente fue formalmente cancelado…” (BOUGHTON, 2001:388). Se observa así, desde el principio, una clara incompatibilidad entre las partes en tratativas que, no se limitaba a una mera oposición de intereses sino también a una contradicción de los presupuestos de los que cada una de ellas partía. Esta incompatibilidad, lejos de decrecer, se incrementaría con el paso del tiempo. A su vuelta, Grinspun decidió buscar apoyo en los países de la región y la reunión de Quito constituía una excelente oportunidad en ese sentido. El 13 de enero se reunieron en Ecuador 28 presidentes latinoamericanos y del Caribe. A comienzos de 1984 el escenario para esta iniciativa era particularmente propicio porque, como bien explica VAUDAGNA (2005:1), habían aumentado “las discrepancias en las relaciones entre el FMI y algunas economías latinoamericanas…” En la histórica declaración de Quito “los presidentes y cancilleres que asisten expresan que el problema de la deuda es una cuestión política y reclaman: períodos de repago de más largo plazo, el no incremento del costo de la deuda como resultado de la refinanciación y el establecimiento de un nexo entre el servicio de la deuda y los ingresos por exportación…” 34 Ver Boughton (2001:388). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 41 La misión del Fondo, liderada por Joaquín Ferrán y luego por Wiesner, efectivamente arribó a Bs As el 6 de febrero. Los resultados fueron poco alentadores. Comenta BOUGHTON (2001:389) “luego de un mes desperdiciado, Wiesner regresó a las oficinas centrales (…) En síntesis, era un clásico caso de exceso monetario y fiscal de un gobierno que aparece tratando de consolidar su poder político antes de recuperar el control de la economía…” Una clásica definición, también, de la nueva ortodoxia del FMI y un anuncio expreso de su intención de imponer un ajuste estructural sobre el gasto del Estado. El panorama se complicaría aún más durante los días subsiguientes frente al anuncio de Grinspun de suspender el pago de los servicios de la deuda de los bancos comerciales por un plazo de 6 meses, plazo que se iba a utilizar para revisar la legitimidad del monto adeudado. El autor aludido relata, a renglón seguido, lo sucedido de la siguiente manera: “el día después del retorno de la misión a Washington, Rhodes (vicepresidente del Citibank y líder del Comité Asesor) llamó a Dale (funcionario del FMI) a la medianoche y le preguntó si podía viajar a Nueva York a la mañana siguiente para reunirse con él y con algunos colegas del Comité. Cuando llegó a Nueva York, le dijeron a Dale que los banqueros no estaban siendo informados por las autoridades argentinas y que estaban consecuentemente cada vez más frustrados y enojados. Ahora estaba claro que ningún progreso se podía realizar en relación al financiamiento hasta que un fuerte programa de ajuste fuese acordado con el Fondo e implementado…” Varios puntos a comentar. En primer lugar, este párrafo permite advertir la conexión existente entre los miembros del Comité Asesor y los del FMI en una dinámica concreta. Esta última institución, operaba en la práctica como una suerte de representante de los intereses de los banqueros. En segundo lugar, el párrafo transcripto refleja la relevancia del caso argentino desde la óptica de las entidades financieras y su creciente “frustración y enojo” frente a la posición adoptada por el gobierno nacional. En tercer lugar, muestra ese momento histórico en el cual las negociaciones habían llegado a un grado de confrontación tal, en el cual las posibilidades de “cooperación” cedían lugar a la “coerción” (“ahora estaba claro que ningún progreso se podía realizar” hasta que las autoridades no acordasen con el FMI “un fuerte programa de ajuste” y lo implementasen). El gobierno argentino siguió buscando apoyo en el exterior en tanto sabía que bajo las condiciones imperantes le sería difícil mantener el rumbo económico establecido durante mucho tiempo. Retrospectivamente el ministro Grinspun expresó cuáles fueron sus principales propuestas durante las reuniones realizadas en el Consejo de las Américas Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 42 (Nueva York), en la Asamblea Anual del BID (Punta del Este) y en el Comité Interino del FMI (Washington) entre los meses de febrero y abril de 1984: “a) Se planteaba que el problema de la deuda no era financiero sino que tenía su origen, y por lo tanto sus soluciones, en cuestiones políticas; b) los servicios de la deuda debían estar vinculados a los ingresos por exportaciones y, además, que esos servicios se podrían atender si se establecía una corriente financiera inversa que garantizara el crecimiento económico de los países deudores; c) también se reclamaba el establecimiento del principio de corresponsabilidad entre deudores y acreedores en torno a la generación y evolución de la deuda, asumiéndose las consecuencias de dicha determinación, por lo que se solicitaba quitas en el stock de deuda y rebajas en las tasas de interés para equipararlas en términos reales a las anteriores a la crisis del petróleo; d) se postulaba la necesidad de que desde las economías desarrolladas se impulsasen las corrientes de capital hacia las economías en desarrollo para acelerar su crecimiento económico…” -Vaudagna (2005:2)- (el resaltado es nuestro). Durante la Asamblea Anual del BID, Argentina recibió el apoyo de los Estados de la región. En un gesto de extrema buena voluntad, considerando la situación que estaban atravesando, los gobiernos de México, Venezuela, Brasil y Colombia prestaron al país 300 millones de dólares. EEUU aportó 100 millones más, pero advirtiendo de la necesidad de que se alcanzase un pronto Acuerdo con el FMI. Los 500 millones necesarios para escapar del default, se completaron con 100 millones de las reservas del BCRA35. El 31 de marzo la nación pagaba a sus acreedores externos flexibilizando así su posición originaria. Dicha flexibilización debe leerse dentro de un marco más general. Alfonsín, con una postura más conciliatoria que la de Grinspun, había decidido bajar el voltaje de las negociaciones enviando al FMI al prestigioso y octogenario economista Raúl Presbisch. El “acuerdo Presbich-Larosiére”, alcanzado ese mismo 31 de marzo, importaba un enorme ajuste estructural (el déficit fiscal debía ser reducido desde el 18% al 6% del PBI para principios de 1985) y una política salarial consistente con el pago de la deuda externa36. Este acuerdo no llegó a materializarse. Las negociaciones entre las autoridades nacionales y las del FMI continuaron durante abril sin ningún progreso relevante. Mientras tanto la fuga de capitales no se detenía sino que, por el contrario, se aceleraba. Las relaciones se tensaron aún más durante el mes de mayo. El mayor punto de controversia giraba en torno 35 36 Escude-Cisneros (2000: capítulo 69: las relaciones con Estados Unidos”: 2). Ver Boughton (2001:390). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 43 a los aumentos salariales concedidos por el gobierno de Alfonsin. Esta firme decisión del presidente, y dejando de lado posturas ideológicas más abstractas, tenía por objeto contener las presiones de los sindicatos mayormente manejados por el partido peronista. El 19 de ese mes Argentina, Brasil, México y Colombia, con el advenimiento posterior de Ecuador, Perú y Venezuela, elevaron un documento semejante al de Quito al “Grupo de los Siete” (G7) reunido en Londres y se comprometieron a tomar medidas concretas en relación a la cuestión de la deuda. La declaración no encontró respuesta inmediata. No obstante ello, días después, el sub-secretario del director del tesoro norteamericano, Robert McNamara, volvía a arremeter contra la posición Argentina y fijó plazo para su reversión. Sostuvo que “no habría nuevos créditos hasta que las autoridades argentinas no llegaran a un Acuerdo con el FMI antes del 31 de ese mismo mes…” -ESCUDÉ-CISNEROS (2000)-37. El Acuerdo no se consiguió. Peor aún, las relaciones con el FMI tocaron fondo el 11 de junio cuando Grinspun difundió un “borrador de Carta de Intención” que no había sido previamente convenido con las autoridades de la institución. En éste señaló que38: “a) La situación económica sufrida por el país desde mediados de la década de 1970, se manifiesta en un grave deterioro económico. 1) El gobierno de facto llegado al poder trató de imponer una reforma estructural, orientándola hacia la apertura del mercado interno y a la oferta de capitales y bienes internacionales para resolver el problema inflacionario, fracasó en ambos intentos, con consecuencias dañosas de orden económico-social. 2) El gobierno constitucional, se encontró frente a una situación de gravedad inédita, que puede resumirse, entre otros aspectos: una deuda externa de alrededor de cinco veces el valor anual de las exportaciones, una tasa de inflación de alrededor del 15 al 20% mensual, un déficit del sector público superior al 16% del PBI y una reducción de los stocks de bienes de capital, infraestructura, equipos industriales y existencias comerciales en magnitudes significativas.b) La negociación con el FMI: 1) El pago de la deuda externa argentina compromete algo menos de la mitad del ahorro nacional, fue contraída a través de la aplicación de una política económica arbitraria y autoritaria, en la cual los acreedores tuvieron activa participación, sin beneficio alguno para el pueblo argentino, el gran ausente en todo este proceso. 2) La República Argentina honrará su tradición de cumplir con todos sus compromisos, 37 Escude-Cisneros (2000: capítulo 69: las relaciones con Estados Unidos”: 2). Ver copia de la “carta de intención de fecha 9-6-1984” en http://www.laeditorialvirtual.com.ar/Pages/Ballesteros_JuicioSobreDeudaExterna/Ballesteros_001.htm, consultada el 01-09-10. 38 Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 44 respetando uno de los legados más preciados de su historia; no se trata de no pagar, sino de hacerlo en las condiciones más adecuadas para el cumplimiento de los objetivos, en un marco de ordenamiento de la economía, crecimiento y paz social. La República Argentina presenta este documento donde detalla distintos elementos de su política monetaria y fiscal, pero que se debe entender que ello no significa adoptar compromisos que condicionen su soberanía en el manejo de sus problemas internos…” (el resaltado es nuestro) Los párrafos citados condensan, de manera particularmente clara, los elementos claves de la posición del gobierno en la cuestión de la deuda. En un principio el ministro describe la situación heredada del gobierno de facto advirtiendo que las reformas neoliberales por éste implementadas no sólo no cumplieron con su objetivo primario (contener la inflación) sino que provocaron “un grave deterioro económico”. Específicamente, en lo que al endeudamiento se refiere, advierte que la deuda fue contraída a través de una “política económica arbitraria y autoritaria” y “sin beneficio alguno para el pueblo argentino, el gran ausente en todo este proceso”. Ausente tanto por la ilegalidad originaria del gobierno de facto como porque las divisas que ingresaron al país no se tradujeron en ganancias, más que para unos pocos. Corresponsabiliza, asimismo, a los agentes externos al señalar que los “acreedores tuvieron activa participación” en este proceso; el FMI queda incluído dentro de este colectivo en cuanto, como se sabe, era acreedor de nuestro país. La Argentina, expresa, tiene la voluntad de honrar los compromisos adquiridos siempre y cuando dicha actitud sea compatible con los objetivos de “crecimiento y paz social”. Sobre este punto vuelve una y otra vez durante la Carta solicitando “el establecimiento de períodos de carencia, de gracia y de amortización compatibles con la necesidades de crecimiento de la economía y las posibilidades de real cumplimiento de los cronogramas de pagos. Se proponen luego los ajustes y reordenamiento en el sector público y en lo relacionado con la seguridad social…”39 En esta última cita se produce una inversión de los presupuestos de la estrategia caso por caso. Desde esta lógica primero va el crecimiento y luego los ajustes al sector público. El camino contrario se entiende imposible desde el momento en que se considera que los “ajustes” previenen “el crecimiento”. Finalmente, Grinspun termina manifestando su intención de resguardar la soberanía del Estado en el “manejo de sus problemas internos” y su voluntad de oponerse a los “compromisos que la condicionen”. Algo lógico si se tiene en cuenta que se enfrentaba a una situación totalmente novedosa. 39 Ver copia de la “carta de intención de fecha 9-6-1984” en http://www.laeditorialvirtual.com.ar/Pages/Ballesteros_JuicioSobreDeudaExterna/Ballesteros_001.htm, consultada el 01-09-10. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 45 Nunca antes un banco había interferido en las política interna de los Estados como ahora lo estaba haciendo el FMI. La actitud del ministro exasperó a los miembros de esta institución (BOUGHTON, 2001:391), relata el acontecimiento señalando que las autoridades argentinas habían incurrido en una “inusual artimaña al hacerla pública (se refiere a la Carta) y someterla a consideración de todo el gabinete, antes de haberla siquiera sometido a consideración del staff del Fondo…” Al día siguiente, comenta el autor, el embajador argentino en los EEUU, Lucio García del Solar, llamó al director gerente para explicarle que esta actitud obedecía a las presiones que el gobierno estaba recibiendo en el ámbito interno. La ex presidenta “Isabelita” había regresado del exilio y el peronismo había movilizado dos millones de trabajadores en una huelga general presionando al presidente para endurecer su posición en relación al Fondo. El 15 de junio, EEUU retiraba el ofrecimiento de un nuevo préstamo de 300 millones de dólares y 3 días después el Comité Asesor, en representación de 320 acreedores bancarios, decidía postergar toda decisión sobre futuros créditos a la Argentina40. El ministro viajó una vez más a Washington con la esperanza de que el borrador fuese aprobado aunque, como era de esperarse, “Larosiére y Rodhes no encontraron suficiente compromiso en las proposiciones de Grinspun… (BOUGHTON, 2001:392). Por entonces, Latinoamérica se jugaba su carta de resistencia más importante. Los días 21 y 22 de junio de 1984 los representantes de 11 países de la región se reunieron en la ciudad colombiana de Cartagena. Al momento de abordar el avión, Grinspun le dijo a la prensa que en el encuentro se intentaría “modificar el marco financiero internacional”. La prensa internacional, por su parte, sostenía que la actitud de los gobiernos latinoamericanos provocaría el “quiebre del sistema financiero internacional”41. Dos imágenes contrapuestas de un mismo acontecimiento social que reflejan las discrepancias de las partes en conflicto. El encuentro en Cartagena, explica VAUDAGNA (2005:3), se realizó “en un contexto en el que la mayoría de los países latinoamericanos, con excepción de Argentina y Bolivia, juzgaban su propio caso como especial, por lo que cada país pensaba recibir condiciones preferenciales (…) Además, desde los acreedores y el tesoro de los EEUU, se intentaba generar divergencias entre las posiciones existentes”. Es así, continúa a renglón seguido el autor citado, que fracasó la propuesta de Bolivia de crear una comisión negociadora de la deuda y la de Argentina de refundir la deuda a través 40 41 Escude-Cisneros (2000: capítulo 69: las relaciones con Estados Unidos”: 3). Ver Vaudagna (2005:3). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 46 de un bono. Al contrario, para no alimentar sospechas, “el comunicado final del Consenso de Cartagena subrayó la voluntad de los signatarios de honrar sus deudas y continuar con los esfuerzos de ajuste, así como también de mantener el marco del caso por caso…” En esta resolución, sin dudas, influyó la posición de México que había sido tentado por el Fondo con un acuerdo “plurianual” que suponía un financiamiento asegurado hasta 1990 y la de Brasil, que por entonces se debatía en la posibilidad de cerrar su propio compromiso. Desde ahí en adelante prosiguieron las negaciones entre las autoridades nacionales y los representantes del FMI, aunque uno a uno los distintos esfuerzos por llegar a un Acuerdo fallaron. Mientras tanto los acreedores externos se negaron a reprogramar los vencimientos de sus acreencias. El quiebre se produjo en el marco de la segunda reunión del grupo Cartagena realizada en la ciudad de Mar del Plata en el mes de septiembre. El gobierno argentino, como anfitrión, dice VAUDAGNA (2005:3) intentó “nuevamente aunar esfuerzos para una estrategia de confrontación. Sin embargo, el resto de los países deudores estaban atentos a las condiciones financieras de sus propias negociaciones, ya que se había observado un fuerte deterioro de las mismas. En el comunicado final de la segunda reunión no se expresan nuevas iniciativas, sino que se afirman las anteriores, sobre todo en el llamado al diálogo político de los gobiernos de los países acreedores…” Grinspun decidió viajar por enésima vez a Washington. “Esta vez los esfuerzos fueron exitosos: el Fondo aceptó que se continuase con la indexación salarial, en compensación por un ajuste adicional en el presupuesto y en la política monetaria destinada a reducir el déficit fiscal desde el 11½% al 5½% en 1985 y un compromiso por ajustar la tasa de cambio para lograr una sustancial depreciación de los términos reales para final de año…” (BOUGHTON, 2001:393)-. La Carta de Intención fue firmada el 25 de septiembre. El financiamiento del programa fue calculado por los miembros del staff del Fondo en aproximadamente 8 mil millones de dólares para 1985: 3,1 mil millones se necesitarían para financiar el déficit de la balanza de pagos, otros 3,2 mil millones para limpiar las moratorias con los bancos comerciales y oficiales, 1 mil millones para repagar las operaciones Swann y los créditos puente y, finalmente, 0,5 mil millones para reconstituir las reservas internacionales del BCRA 42 . Es decir, de los casi 8 mil millones acordados, aproximadamente 7,5 mil millones irían a parar a los acreedores externos y 0,5 mil millones a las reservas internacionales; ninguno a la producción ni al trabajo. Se observa así un flujo circular de capitales que va desde los principales centros financieros del mundo desarrollado 42 Boughton (2001:394). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 47 hacia los Estados deudores y, desde allí, de nuevo a esos mismos centros financieros. Entremedio, la deuda externa aumenta considerablemente. De postre, el Estado deudor es obligado a abrir su economía a los capitales foráneos que, bajo las nuevas condiciones establecidas por los programas, serán los encargados de producir el crecimiento económico. Para fines de diciembre ya se había reunido el 91% del “paquete financiero 1984-1985” y el día 28 el Acuerdo fue aprobado por el Consejo Ejecutivo del FMI. No obstante ello, un nuevo aumento de la tasa de inflación quebró el equilibrio alcanzado. Los conflictos gremiales se intensificaron, y empresarios y acreedores hicieron saber de su indisposición de otorgar créditos o realizar nuevas inversiones en la Argentina43. Cuando la misión del FMI liderada por Ferrán arribó a Bs As a principios de 1985 comenzaron a producirse una serie de tensiones con las autoridades económicas nacionales. El día 18 de febrero, Ferrán informó que no podía anticipar que el FMI fuese a seguir apoyando el programa. Grinspun se presentó frente Alfonsín y le reportó lo sucedido. El primer mandatario decidió tomar cartas en el asunto y reemplazarlo por el secretario de planeamiento de la nación, Vital Sourrouille. Era la primera vez en la historia argentina que un ministro de economía abandonaba su cargo frente a la presión de una institución financiera internacional. Las relaciones con el FMI no se recompusieron de inmediato. Ni bien asumió, Sourrouille solicitó que el staff de la institución regresara a Bs As. Para el 8 de marzo, Ferrán se encontraba de nuevo en la Argentina. Sin embargo las diferencias continuaron y las negociaciones fueron automáticamente suspendidas. Alfonsin resolvió intervenir personalmente. El día 20 de ese mismo mes, se reunió con Larosiére en Washington. “Alfonsín necesitaba desesperadamente el soporte del Fondo para sus políticas; sin éste, él había aprendido, ni el gobierno de los Estados Unidos ni los bancos comerciales le iban a proveer financiamiento…” BOUGHTON, 2001:398)- (el resaltado es nuestro) El último dejo de resistencia del gobierno nacional había sido quebrado. Esta reunión simboliza el momento histórico preciso en el cual el oficialismo reemplazó su estrategia confrontacionista por una de carácter cooperativo: “Alfonsín necesitaba desesperadamente el soporte del Fondo” para realizar su programa político; sin éste, “él había aprendido”, le sería imposible acceder al mercado financiero internacional, negociar la deuda externa, detener la fuga de capitales y, consecuentemente, reactivar la economía del país. El 12 de 43 Ver Novaro (2006:170). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 48 abril Alfonsín declaró el inicio de una etapa de “economía de guerra” -sin guerrapreanunciando el ajuste estructural que se vendría. 4. REFLEXIONES FINALES Esta breve reconstrucción permite observar, en una dinámica histórica concreta, las relaciones entre un gobierno deudor y el FMI al producirse la crisis de la deuda externa. A diferencia de lo acaecido en otros procesos de negociación, en el caso argentino, éstas adquirieron un carácter eminentemente confrontativo. Procesos semejantes, y sin perjuicio de sus respectivas particularidades, se vivieron en la mayoría de los Estados de la región. La estrategia caso por caso se convertía, así, en un mecanismo de disciplinamiento de los gobiernos latinoamericanos y en la principal puerta de entrada del neoliberalismo a nuestros territorios. El Plan Austral de 1985 fue el primer programa económico de un régimen democrático diseñado de manera conjunta entre representantes económicos argentinos y extranjeros; el primer programa planeado de manera alternada entre Bs. As. y Washington. Explica, (NOVARO, 2006:173) que una vez hecho público, buena parte de la prensa lo repudió e incitó al gobierno a retornar a la senda del crecimiento. El grueso de los representantes de la oposición, en particular aquellos ligados al partido peronista, se opusieron a la iniciativa. Los sindicatos leyeron estas medidas en términos de una rendición del gobierno frente a los intereses de los bancos acreedores y el FMI, e iniciaron un plan de lucha que culminó con miles de huelgas sectoriales y 13 paros generales. El frágil equilibrio político alcanzado a principios de la década se quebró y en el marco de una nueva serie de levantamientos armados, el gobierno decidió poner “punto final” a los juicios a los represores (vgr. norma Nº 23.492) y sancionar la ley Nº 23.251 de “obediencia debida”. Frente a la pérdida en 1987 de casi todas las gobernaciones, del ministerio del trabajo y de la mayoría legislativa a manos del peronismo, Alfonsín quedó profundamente debilitado. Su objetivo último fue el de culminar su mandato. No lo consiguió. En efecto, él abandonó su cargo de manera anticipada en junio de 1989 y como consecuencia de una crisis hiperinflacionaria. Los efectos de la “década perdida latinoamericana” en Argentina fueron desgarradores. Entre 1980 y 1989 la deuda externa creció desde los 36.138 a 63.300 millones de dólares y el producto bruto industrial cayó en un 20%. En 1989 el PBI era un 5,3% inferior al de 1980 y los salarios reales industriales un 13,8% menores; el desempleo y el subempleo, por el Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 49 contrario, un 5,4% y un 4,8% superiores. En 1989 en el Gran Bs As el 47,3% de la población estaba por debajo de línea de la pobreza y el 16,5% por debajo de la indigencia (en 1980 estas cifras eran del 8,1% y del 2%)44. En contraposición, y de acuerdo a (BASUALDO, 2000:22), el Estado pagó entre 1981 y 1989 aproximadamente 30 mil millones de dólares en concepto de intereses de la deuda externa y transfirió a la burguesía asentada en el territorio nacional “una masa de recursos que equivalía prácticamente al PBI generado por la economía en todo un año…” De conformidad al FMI el problema de la Argentina no se encontraba en el peso de su deuda ni en los ajustes estructurales que estrangulaban el modelo sustitutivo de importaciones sino en la existencia de un Estado excesivamente amplio y costoso, y de una cultura populista muy arraigada en los gobernantes que les impedía cumplir a rajatabla con los Acuerdos suscriptos. No existía, en efecto, un exceso de neoliberalismo sino, por el contrario, una carencia de éste. Se trata de un razonamiento que se reproduciría una y otra vez durante las décadas subsiguientes y que fue adoptado por el grueso de las elites dirigentes latinoamericanas a principios de los 90. 5. REFERENCIAS BASUALDO, E. M., Acerca de la Naturaleza de la Deuda Externa, www.flacso.org.ar/investigacion_ayp_contenido.php?ID, consultada el 01-09-10. 2000. BOUGHTON, J. M., (2001), Silent Revolution: The International Monetary Fund 1979-1989, International Monetary Fund, http://www.imf.org/external/pubs/ft/history/2001/index.htm, consultada el 01-09-10. ESCUDE, C. y CISNEROS A. directores. Historia General de las Relaciones Exteriores de la República Argentina, “Relaciones Económicas Externas de la Argentina, 1943-1989”, Bs As, http://www.argentina-rree.com/historia_indice00.htm, consultada el 12-12-09. 2000. HARVEY, D. Breve Historia del Neoliberalismo, Ed. Akal, Madrid. 2007 KANENGUISER, M. La Maldita Herencia, Ed. Sudamericana, Bs. As. 2003. MARONGIU, F. “La Reforma del Sistema Financiero Argentino de 1977 como Factor Fundamental para la Instauración del Modelo Económico Neoliberal en la Argentina”, Primer Congreso Latinoamericano de Historia Económica, Simposio Nº 3, 3 al 7 de diciembre, Montevideo. 2007. NOVARO, M. Historia de la Argentina Contemporánea: de Perón a Kirchner, ed. Edhasa, Bs. As. 2006. 44 Anexo estadístico de la cátedra de historia económica de la Universidad Nacional de Entre Ríos (UNER), http://www.fceco.uner.edu.ar/cpn/catedras/histssxx/indiceimages.htm, consultada el 12-12-09. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 50 OLMOS, A. Todo lo que usted Quiso Saber sobre la Deuda Externa y Siempre se lo Ocultaron, ¿Quiénes y Cómo la Contrajeron?, Peña Lillo-Ediciones Continente, Sexta edición, Buenos Aires. 2006 RAPOPORT, M. Las políticas económicas de la Argentina. Una Breve Historia, ed. Booket, Bs As. 2010. VAUDAGNA, Luciano, “El consenso de Cartagena”, http://www.reflexionespys.org.ar/index.php?option=com_content&view=article&id=79:elconsenso-de-cartagena&catid=24:septiembre-2005&Itemid=51, consultada el 10-11-10. 2005. ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online ELEMENTOS CONSTITUTIVOS E DINÂMICOS DA CORRUPÇÃO: Um exercício conceitual Clóvis Alberto Vieira de Melo45 RESUMO Conceituar corrupção constitui um dos maiores desafios para aqueles que têm esse tema como objeto de pesquisa. Sugere-se uma miríade de conceitos, que em grande parte, são marcadamente imprecisos, tanto no que se refere a apontar os elementos e a dinâmica em torno do fenômeno, como também seu espaço de manifestação. Esse quadro impõe assim uma importante barreira para investigações empíricas sobre o tema, o que dificulta fortemente sua mensuração, bem como estratégias para explicar seus condicionantes e suas consequências. Aliado a dificuldade conceitual, os estudos sobre corrupção tem seu nível de dificuldade incrementado por se configurar um crime que, via de regra, é considerado inobservável. Diferentemente de outros crimes onde há sempre alguém disposto a denunciar corruptos e corruptores se empenham em apagar vestígios de suas práticas. A despeito dos limites, fazem-se necessários reflexões teóricas e avanços metodológicos que busquem superar as barreiras que envolvem o estudo sobre o tema. Este trabalho tem como objetivo contribuir com o primeiro aspecto, em que se apresenta um conceito de corrupção que pretende ser operacional empiricamente. Expõe-se um conceito que se distingue crimes assemelhados e que comumente são utilizados como sinônimos de corrupção. Com isto pretende-se, portanto, diminuir os problemas referentes à imprecisão conceitual. Palavras-chave: Corrupção. Tríade da Corrupção. Interação Voluntária. 45 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Universidade Federal de Campina Grande. Email: [email protected]. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 52 CONSTITUENT ELEMENTS AND DYNAMICS OF CORRUPTION: A conceptual exercise ABSTRACT Conceptualizing corruption is one of the main challenges for those who do research on this theme. A myriad of concepts is suggested, but in great part such concepts are markedly inaccurate, in both pointing out the elements and the dynamics surrounding the phenomenon as well as its space of manifestation. This framework imposes an important barrier to empirical investigations on the theme, complicating its measurement and strategies to explain their conditions and consequences. Together with conceptual difficulties, studies about corruption have their level of difficulty intensified, becoming a crime which, as a rule, is considered unobservable. Differently from other crimes where there’s always someone willing to denounce, corrupts and corruptors strive to erase traces of their practices. Despite limitations, it is necessary to theoretically reflect on and methodological advances that seek to overcome barriers that involve the study over the theme. This paper aims to contribute to the first aspect, in which a concept of corruption that intends to be empirically operational is presented. A concept which differs similar crimes and that commonly is used as synonyms of corruption are exposed. It is intended, therefore, to reduce problems related to conceptual imprecision. Keywords: Corruption. Triad of Corruption. Voluntary Interaction. 1. INTRODUÇÃO A possibilidade de degeneração das instituições públicas provocada pela manifestação da corrupção e suas consequências negativas colocam o enfrentamento deste crime no centro das preocupações de sociedades e governos. No caso brasileiro, a ocorrência de casos de corrupção e sua divulgação pelos meios de comunicação têm sido bastante intensas, gerando, cada vez mais, debates, questionamentos e desconfiança sobre os agentes públicos. São políticos, policiais, fiscais, juízes, funcionários dos mais baixos até os mais altos escalões da administração pública, dentre outros, envolvidos em casos ilícitos, para os quais sua posição na administração pública fora fundamental. Denúncias de compra de votos de parlamentares, suborno de funcionários e superfaturamento em licitações públicas são alguns exemplos de corrupção, que têm contribuído para o aumento do descrédito do Estado perante a opinião pública, com possibilidade de gerar ilegitimidade. Nas últimas décadas, houve, no Brasil, escândalos e denúncias de irregularidades graves em praticamente todas as esferas e instâncias do Estado. Em diversos setores do Executivo 53 Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 Federal, do Congresso Nacional e do Judiciário, foram constatadas irregularidades. Em alguns governos estaduais e municipais, bem como em Assembléias Legislativas e Câmaras, casos de corrupção foram encontrados e tornados públicos. A partir de pesquisa empírica, numa amostra de 556 municípios distribuídos por todos os estados da federação que utilizavam verbas do governo federal, Melo (2010) constatou que em 64% ocorreram casos de corrupção. Analisando os dados do TCU de 1998 a 2011, verifica-se que irregularidades graves, em sua maioria corrupção, são demasiadamente incidentes e reincidentes46 (Tabela 1). Tabela 1 – Número de Obras do Governo Federal Fiscalizadas, com Indícios de Irregularidades e com Indicativo de Paralisação ANO Nº DE OBRAS FISCALIZADAS Número de Irregularidades graves 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 TOTAIS 110 135 197 304 435 381 414 415 259 231 153 219 231 230 3714 35 44 66 121 166 169 136 168 190 178 60 149 216 190 1888 % Irregularidades graves com indicativo de Paralisação % 31,8 32,6 33,5 39,8 38,2 44,4 32,9 40,5 73,4 77,1 39,2 68,0 93,5 82,6 50,8 35 44 66 121 166 88 83 81 91 77 48 63 40 26 1029 31,8 32,6 33,5 39,8 38,2 23,1 20,0 19,5 35,1 33,3 31,4 28,8 17,3 11,3 27,7 Fonte: Brasil, 2011. As constatações de corrupção acerca do Brasil, não são apenas advindas de sistemas de controles que tem a função de fiscalizar e detectar tal fenômeno, a exemplos das contes de 46 Obras com irregularidades graves são aquelas em que se encontraram atos indicativos de prejuízos ao erário público, recomendando-se, por isso mesmo, a paralisação física, financeira e orçamentária do seu contrato, convênio ou instrumento congênere (BRASIL, 2008). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 54 contas ou controladorias, mas é possível acompanhar o quadro de corrupção no país a partir de avaliações de instituições externas, a exemplo da Transparência Internacional, a qual anualmente divulga surveys com a percepção da corrupção que executivos de multinacionais possuem acercadas dos países em que trabalham (BERLIM, 2011). O Índice de Percepção da Corrupção (IPC) varia de 0 a 10, zero sendo o pior dos casos e com nota dez estariam os países que livres de corrupção. No Gráfico 1 é possível acompanhar particularmente a evolução do Brasil ao longo dos últimos dezesseis anos. Constata-se que o país possui notas muito baixas. Apenas uma única vez ultrapassou a barreira dos quatro pontos, mas mesmo assim situando-se bastante distante da nota máxima. Gráfico 1 - Índice de Percepção da Corrupção – Evolução do Brasil entre 1995 e 2010 Fonte: Berlim, 2011. É urgente, portanto, compreender este fenômeno, sobretudo, para se buscar mecanismos de combate. Em geral, os estudos sobre corrupção pautam-se em três aspectos básicos. O primeiro diz respeito à lógica endógena do fenômeno, procurando identificar sua dinâmica e seus mecanismos, detectando, assim, os elementos que o compõem e o espaço de sua manifestação. O segundo grupo de estudos depara-se com as causas da corrupção, buscando capturar variáveis que contribuam para a ocorrência do fenômeno. No terceiro grupo de estudos, o objeto de análise desloca-se para os efeitos gerados pela corrupção, identificando, em áreas distintas, danos ou benefícios, que essa prática possa produzir. Este artículo busca contribuir com uma reflexão teórica no primeiro grupo de estudos, que apesar Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 55 de ter sido o mais explorado pela literatura, ainda possui lacunas importantes que merecem ser trabalhadas. Quando se deseja enfrentar um fenômeno que gera danos a sociedade, como é o caso da corrupção, é necessário conhecê-lo em detalhe, para assim elaborar estratégias de combate. É fato, que conceituação da corrupção ainda é muito confusa por parte da literatura, como veremos adiante. Ademais há uma tendência forte em associar qualquer crime que gera dano ao erário público à corrupção, desconsiderando que a corrupção possui modus operandis próprio, e se o desejo é combatê-la, faz necessário conhecê-la. Para tanto neste trabalho busca-se precisar um conceito minimamente que seja operacional, sobretudo diferenciando de crimes assemelhados. 2. ALGUMAS FRAGILIDADES TEÓRICAS DO CONCEITO DE CORRUPÇÃO RECORRENTES NA LITERATURA Muitas são as ações assemelhadas à corrupção. Essa característica faz da sua conceituação uma tarefa por demais complexa. Diversos crimes, no espaço público, têm por objetivo capturar recursos do erário. Eles se podem diferenciar quanto ao modus operandi, mas se assemelham quanto aos efeitos, pois inviabilizam a ação estatal, minando seus instrumentos de ação, enquanto desvio quer de recursos financeiros, quer de recursos materiais. Um administrador público, que comete o crime de peculato, apoderando-se de um equipamento público para uso próprio ou para transformá-lo em recurso, produz o mesmo efeito daquele que, em parceria com um agente externo, e a partir do recebimento de suborno, o favorece numa licitação pública ou o livra do pagamento de tributos. Ambas as ações diminuem a possibilidade de o Estado atender às demandas que lhe são dirigidas. Sob esse aspecto, pode-se dizer que, no limite, o que interessa é o resultado da ação e não sua forma. No entanto, parâmetros mínimos para compreensão do fenômeno da corrupção são de suma importância. É comum o uso do termo corrupção para designar toda e qualquer ação de um agente público, que captura recursos. Não se distingue crimes de concussão, peculato, tráfico de influência e improbidade administrativa, dentre outros. Sendo assim bastaria apenas que o crime fosse cometido por um funcionário público que se teria então manifestado o crime de corrupção. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 56 Camerer (2001) sugere que, até mesmo entre especialistas no tema corrupção, há uma grande variedade de definições do termo. Em survey aplicado na África do Sul, numa amostra de 198 pesquisados, figuraram respostas que relacionavam corrupção a diversos tipos de comportamento ou situação, organizados em categorias, como abuso de autoridade (31,3%), enriquecimento ilícito (11,6%), problemas éticos (11,6%), pagamento de suborno (10,6%), crimes (9,1%) − tais como o do colarinho branco ou extorsão −, má administração (5,1%) e tráfico de influência (8,6%). Houveram respostas completamente desvinculadas do objetivo do survey, em que se apontava a corrupção apenas como algo prejudicial à sociedade (2,5%), sem se deter em definir adequadamente o conceito. Na categoria “outros” (9,6%), por exemplo, a pesquisa agrupou as respostas que não se enquadravam em nenhuma das categorias anteriores e, por vezes, eram completamente disparatadas, tais como: corrupção é um sistema econômico que exclui pobres. Respostas como esta não acrescentam nada à compreensão do termo. Isso mostra quão desafiador é definir corrupção. A Agency for International Development (USAID) descreve diferentes formas de corrupção, traçando uma vinculação com peculato, nepotismo, suborno, extorsão, tráfico de influência e fraude (UNITED STATES, 2005). Mais uma vez a imprecisão conceitual se manifesta, mesmo numa agência pública que combate tal prática. A diversidade de significado, no senso comum ou mesmo entre especialistas e órgãos governamentais, mostra assim a dificuldade de conceituar-se minimamente a corrupção. Por si só, tal situação já justifica uma pesquisa sobre o tema. Conhecer quais as estratégias e as dinâmicas de agentes que desviam recursos públicos torna-se condição sine qua non para mensurar-se tal prática, verificar seus impactos ou mesmo coibi-la (KLITGAARD, 1994, p. 11). Outra cautela que deve ser tomada, ao conceituar-se corrupção, sobretudo em estudos de política comparada, diz respeito ao fato de tratar-se de um fenômeno intertemporal e interespacial, assumindo diferentes significados, ao longo do tempo, bem como distintas facetas em lugares diferentes. A despeito da dificuldade conceitual, para Elliott (2002, p. 258), a corrupção é um fenômeno que a maioria das pessoas consegue identificar, ao vê-la. A imagem mais comum, que vem à mente, quando se pensa em corrupção, é a reunião de duas ou mais pessoas negociando algum tipo de recurso público ou privado em troca de propina. Um exemplo comum desse tipo de ação, presenciado por muitos, em diferentes lugares, envolve a fiscalização do Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 57 trânsito, nas cidades ou rodovias. Corriqueiramente, motoristas cometem infrações passíveis de punição e, no entanto, livram-se dela por subornar, com propinas, guardas de trânsito. A negociação entre o agente público e o privado interrompe o percurso institucional de um sistema de incentivos e restrições, que regula a convivência no trânsito, no qual o motorista que comete o ilícito deve arcar com os custos de sua ação, pagando multas, que seriam transformadas em recursos públicos, além de, dependendo do tipo de infração, responder penalmente. Ao delinear os micros fundamentos da corrupção, em geral, a literatura refere-se a três elementos principais: agente público; desvio de normas e ganhos pessoais. Leff (2002, p. 307) argumenta que: “corruption is an extra-legal institution used by individuals or groups to gain influence over the actions of the bureaucracy”. Para Nye (1967, p. 419), “corruption is behavior which deviates from the normal duties of a public role because of private-regarding (family, close private clique) pecuniary or status gains; or violates rules against the exercise of certain types of private- regarding influence”. Friedrich (2002) relaciona corrupção a um tipo de comportamento desviante das normas. O Banco Mundial conceitua corrupção como sendo o abuso do poder público para benefícios privados (TANZI, 1998, p. 08). Van Claveren (2002, p. 104) sugere que a corrupção se manifesta, quando há abuso de autoridade do servidor público para obtenção de renda extra. Jonhston (2002), no mesmo sentido, diz que corrupção é “o abuso de funções ou de recursos públicos, ou como o uso de meios ilegítimos de influência por membros das esferas públicas e privadas”. Johnston (2002) busca suporte em Scott (1969), que entende a corrupção como um processo de influência política, distorcendo os processos de tomada de decisões, alterando custos e benefícios do sistema. Além desses autores, há outros, na mesma linha, a exemplo de Silva (2001, p. 23), O´Donnell (1998, p. 46), Huntington (2002, p. 253), Blackurn, Bose e Haque (2005), Rose-Ackerman (1999, p. 09) e Myint (2000). Para Jain (2001, p. 03), é consenso que a corrupção é um tipo de abuso do poder público para ganhos pessoais, no qual as regras do jogo são violadas. A corrupção seria, portanto, toda e qualquer ação em que o agente público quebra regras em busca de beneficio privado. De antemão, esse conceito descarta a possibilidade de o fenômeno ocorrer em ambiente eminentemente privado. Klitgaard (1994. p. 11) deixa aberto esse espaço de ocorrência do fenômeno, ressaltando que a corrupção ocorre quando alguém, ilicitamente, se beneficia, deixando em segundo plano os ideais a que deveria servir. Infere-se, portanto, que, para esse autor, o fenômeno pode ocorrer em ambos os espaços. Elliott (2002), mais contundente, afirma que corrupção é um fenômeno que pode ocorrer Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 58 tanto num espaço, como no outro, o que é partilhado por Rose-Ackerman (2002, p. 60) e O’Higgins (2006). Tanzi (1998) faz a mesma observação, em relação ao conceito do Banco Mundial. Sob esse aspecto, até este ponto, poder-se-ia sintetizar o conceito de corrupção como a ação ilícita de agentes públicos ou privados, operando em seus respectivos espaços ou contiguamente, na busca de benefícios pessoais. Tal síntese, porém, guarda em si um complicador, pois todos os crimes envolvendo agentes públicos e privados em busca de autobeneficiamento seria corrupção. Assim, alguém que se apodera individualmente de um equipamento de sua repartição, a merendeira de uma escola pública, que, ao final do dia de trabalho, leva alguns produtos para casa e o guarda de trânsito, que achaca um motorista, estaria cometendo o crime de corrupção. Sem dúvida, nos exemplos acima os microelementos da corrupção apontados pela literatura estariam presentes. Contudo, esses elementos não são suficientes para a captura, com maior precisão, do fenômeno. Deve-se inserir nessa conceituação o elemento acordo voluntário. Acordo pressupõe a existência de mais de um agente da ação, o que não seria o caso do funcionário público nem da merendeira citados acima. No caso do achaque do guarda, o cidadão achacado poderia estar sendo induzido à ação de maneira involuntária, ou seja, não estariam havendo interesse livre de ambas as partes, dado que só uma estaria forçando a participação da outra 47 . No imaginário, o que lembra, mais classicamente, a corrupção é o conchavo e não a obrigatoriedade imposta por um dos lados. Quando ocorre um vício em uma licitação pública, por exemplo, o que está por trás é um acordo voluntário, iniciado por qualquer um dos lados, de modo que um dos agentes, visando beneficiar-se, favorece uma compra superfaturada, desconsiderando os interesses de sua instituição e beneficiando um comparsa externo. 3. DELINEANDO O CONCEITO DE CORRUPÇÃO E SEUS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS Corrupção neste trabalho é entendida coma a ação de um agente, público ou privado, que, em parceria com outros, violam normas e captura recursos para si ou para seu grupo ou instituição de que pelo menos um faz parte48. Coexistem nesse conceito três elementos 47 O código penal brasileiro no Art. 316 tipifica tal ação como crime de concussão (BRASIL, 1940). Tanzi (1998) alerta que os ganhos obtidos na ação corrupta nem sempre são exclusivos do agente diretamente envolvido, podendo haver o beneficiamento do grupo de que ele faz parte, como partido político ou família. Podem-se acrescentar ainda grupos de partidos políticos que formam coalizões, corporações privadas, cartéis, dentre outros. 48 Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 59 diferentes: a) agentes; interação voluntária e recursos. Discutir minuciosamente estes elementos objetiva aclarar o conceito proposto. O propósito é escapar do risco de confundilo com fenômenos semelhantes e evitar possíveis erros analíticos. 3.1. Agentes Com o termo agente pretendem-se designar indivíduos, atores, personagens ou grupos, que agem num certo espaço e com determinados fins. Ele reúne, portanto, diversos outros termos, visando à uniformização metodológica, de modo a evitar-se o uso disperso de palavras semelhantes. A figura do agente compreende dois grupos: o do agente público e o do agente privado (ambos podendo ser indivíduo e ou coletivo), diferenciando-se apenas pela esfera em que estejam inseridos. O agente público é a pessoa legalmente investida de cargo público, quer seja ela nomeada, eleita ou designada. O agente privado atua individualmente ou em grupo. Qualquer sujeito desvinculado da administração pública pode ser considerado agente privado, quer seja pessoa física ou jurídica, com fins lucrativos ou não. Comumente os agentes privados relacionam-se com a esfera pública, apenas através das instituições. O fiscal público, que visita um estabelecimento privado, ou um guarda de trânsito, que aborda um motorista, está agindo para atingir os objetivos das instituições que representam. Se agirem de outra maneira, estarão quebrando a lógica institucional. Quando a relação se altera, fazendo com que o papel das instituições públicas seja usurpado pelos agentes públicos individual, ocorre um rompimento do desenho institucional, abrindo espaço para ações corruptas. Um agente público passa a relacionar-se diretamente com o agente privado, com base em interesses próprios e não mais coletivos. A mudança dessa relação é crucial para o tipo de fenômeno ora analisado e remete a algumas questões: por que agentes públicos deixam de agir em nome de suas instituições e agem em benefício próprio?49. Para Giannetti (1993, p. 129), “agir ou deixar de agir são eventos que de alguma 49 A partir deste ponto, utilizar-se-á o termo agente público para designar o agente público individual, visto que, em casos de corrupção, não é recorrente a atuação de instituições públicas agindo com esse objetivo, apesar de, ao senso comum, ser corriqueiro ouvir-se que “a Polícia é corrupta”, “a SUDAM é corrupta’, embora, como se viu, se trate de uma característica da natureza de alguns dos seus agentes individuais e não da instituição de que façam parte. É possível, no entanto, imaginar que uma empresa pública, em vias de fechar um contrato com uma empresa privada, procure o gerente da referida empresa e, em nome da instituição, lhe ofereça suborno por alguma vantagem no contrato em negociação. Nesse caso, o gerente, pela posição que ocupa e usando algum subterfúgio, interferiria de forma a baixar o preço do projeto/contrato, beneficiando assim a empresa pública. Esta situação, em tese, é possível, mas, provavelmente, muito difícil de ocorrer. Daí porque não se trabalhará com essa possibilidade. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 60 forma parte do indivíduo e que estão, portanto, abertos a interferências de seus estados mentais – suas crenças, preferências e opiniões”. Sendo assim, cabe aos sistemas de controle transformar a ação corrupta numa opção desvantajosa para o agente, induzindo-o à ação coletiva. Essa explanação teve por objetivo isolar o personagem fundamental para o entendimento dos processos de corrupção pública: o agente público. Este recebe especial atenção, pelo fato de, sem dúvida nenhuma, ser o principal responsável pelos casos de corrupção pública, quer dizer: sem ele, é impossível ocorrer o fenômeno. Desse modo, qualquer ação que vise diminuir os índices de corrupção passa, necessariamente, pela alteração do conjunto de incentivos que motivam esse agente. Almond e Powell Júnior (1972, p. 99) argumentam que esses agentes são deveras importantes, dado que tendem a controlar os outputs, pela influência que possuem em decisões que envolvem o Estado. 3.2. Espaço de Interação A corrupção não ocorre no vácuo, mas, sim, em espaços bastante definidos: o público, o privado, ou o público-privado 50 . A corrupção, no espaço público, dá-se quando agentes públicos, em parceria com outros agentes públicos, buscam, quebrando a lógica institucional a que pertencem capturar recursos do erário, não sofrendo, para isso, interferências externas. Da mesma forma, a corrupção, no espaço privado dá-se quando seus agentes se unem com o objetivo de desviar recursos não-públicos, nesse caso, mas de empresas e/ou entidades privadas. O terceiro espaço funciona como intersecção dos dois outros, na medida em que a ação ilícita ocorre entre agentes dos dois espaços, com o objetivo de privatizar recursos eminentemente públicos. 3.3. Tríade da Corrupção e Interação Voluntária entre Agentes Para a manifestação da corrupção, independentemente do espaço em que se dê, é necessária a presença de três elementos básicos: um agente corrupto, um corruptor e recursos. Na ausência de um desses elementos, mesmo numa ação criminosa, descaracteriza-se o ato de corrupção. Ocorre, nesse caso, outro tipo de crime, que pode ser 50 O código penal não contempla casos de corrupção exclusivamente no espaço privado. Além da corrupção existente no espaço público ou no público-privado, o Código versa sobre corrupção, com uma conotação diferente, em questões ligadas a corrupção de menores ou falsificações de produtos de consumo (BRASIL, 1940). Sabe-se, no entanto, que esse fenômeno ocorre, com grande semelhança, no setor privado (SOUZA, 1998, p. 1-4). Por outro lado, encontram-se na literatura, a exemplo de Rose-Ackerman (2002, p. 59), afirmações categóricas de que a corrupção se circunscreve apenas na interface do espaço público e privado. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 61 encontrado na legislação vigente. A interação voluntária desses agentes, corrupto e corruptor, buscando beneficiar-se de recursos não seus, mas sim de organizações públicas ou privadas, configura a corrupção. A essa interação chamar-se-á aqui “tríade da corrupção”, valendo acentuar que a iniciativa para a ação corrupta pode partir de qualquer um dos agentes envolvidos, como bem acentuou Klitgaard (1994, p. 11). 3.4. Corrupto O primeiro elemento é o corrupto: agente público ou privado que, ocupando um espaço em uma dada organização, pública ou não, age em parceria com outro agente, visando gerar benefícios mútuos, em detrimento dos recursos de sua organização. A característica principal desse elemento é sua posição na organização em que pretende agir ilicitamente. Com efeito, é essa posição que o privilegia na empreitada, quer esteja ele em organizações públicas, quer em entidades privadas. A indisposição desse elemento para a consecução do delito inviabiliza o ato de corrupção, nos termos aqui empregados. Já a legislação prevê o ato de corrupção apenas como a tentativa de ação de um dos agentes. 3.5. Corruptor O segundo elemento necessário para a ocorrência do ato de corrupção é o corruptor. Em geral são agentes privados, mas não necessariamente é sempre assim. O corruptor é um agente público ou privado, que, em parceria com outro, integrante de uma organização, pública ou não, busca capturar recursos dela. Note-se que a parceria do corrupto pode se dar na esfera pública, com o agente público, ou na esfera privada, com o agente privado. Um agente público pode comportar-se também como corruptor, quando exerce influência sobre outros agentes públicos, fazendo com que atuem como corruptos. Em resumo, as figuras do corrupto e do corruptor estão presentes, na realidade, tanto na esfera pública, quanto na esfera privada (BERLIN, 2009). 3.6. Recursos O último elemento, talvez, a razão de tudo, é o recurso, que pode gerar benefícios para os dois outros elementos. O recurso constitui um incentivo a ações de agentes corruptos e corruptores pelos benefícios que lhes possa trazer. Na esfera privada, os recursos são semelhantes aos da esfera pública, razão por que, daqui por diante, este trabalho analisará apenas as ações corruptas que envolvam recursos públicos. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 62 A corrupção pública visa, ao fim, capturar recursos, ou seja, retirar das mãos do Estado recursos eminentemente públicos e que já façam parte do patrimônio dele. Bem como os incorporados por meio do sistema de receita, através de arrecadação fiscal, contribuições sociais, proventos obtidos junto a empresas e/ou entidades, que lhe sejam incorporadas, e operações financeiras, dentre outros. Na prática, a corrupção faz retornar à sociedade, de forma desigual, e por vias ilegais, recursos que eram originalmente privados e se tornaram públicos. Objetivavam produzir bens coletivos, mas sofreram um processo de desvirtuamento, rompendo-se a lógica institucional, pela qual o Estado administra os recursos públicos. Recursos são todos os meios fisicamente manipuláveis: quantias, valores, produtos, bens móveis ou imóveis e serviços 51 . Também devem ser considerados recursos os valores previstos na receita, mas não arrecadados, devido à ação antecipada dos agentes corruptos. A idéia principal da tríade da corrupção é que são indispensáveis os três elementos discutidos – corrupto, corruptor (numa interação voluntária) e recursos - para ocorrerem, efetivamente, atos de corrupção. Situações com a ausência de um dos três elementos devem ser vistas como fenômenos de outra natureza. Fenômenos sociais, às vezes, são parecidos, mas não iguais. A tríade congrega, pois, os três elementos essenciais para o conceito de corrupção adotado neste trabalho. O fenômeno se manifesta a partir da interação destes elementos. Interação esta, que necessariamente deve ser de forma voluntária. De fato, há situações em que a tríade está presente, mas não se configura uma ação corrupta, pelo fato de não existir a interação voluntária dos seus agentes (corrupto e corruptor), conforme se verá adiante. 4. Corrupção e crimes assemelhados Já se discutiu que a ação corrupta é praticada por agentes buscando capturar recursos para si. No entanto, atuando com esse propósito, muitos estão praticando crimes distintos do de corrupção, o que contribui para gerar conturbações conceituais em torno do tema. Não raro vêem-se pessoas chamando este ou aquele político de corrupto, sem que ele tenha praticando tal crime, conquanto haja cometido outro, como o de apropriação indébita ou 51 Lembrando que serviço público pode ter duas conotações: a primeira, no tocante à implementação de obras (rodovias, escolas, hospitais e viadutos, dentre outras) e a segunda, no que se refere à prestação de serviço (polícia, saúde, educação, segurança e outros). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 63 peculato, por exemplo. Basta o crime ocorrer na esfera pública, que se tende a correlacionálo à corrupção52. E por que isso ocorre? Eis a questão central deste tópico. A diferença, em relação a crimes “assemelhados”, é, muitas vezes, bastante sutil. Além do mais, em alguns casos, há elementos de um crime presentes em outro. Acresce que, com frequência, a corrupção é obscurecida pelo crime a que ela deu suporte. O que se deve ter em mente, para evitar possíveis equívocos, é a tríade da corrupção (que contém em si a interação voluntária dos agentes envolvidos e os recursos). Identificados com clareza esses elementos, deter-se-á mais precisamente a corrupção, diferenciando-a de outros tipos de crime. O aperfeiçoamento conceitual da corrupção vai além da mera tipificação criminal ou do diletantismo jurídico, pois se conhecendo os elementos envolvidos, poder-se-á entender a lógica do seu processo e, consequentemente, conceber estratégias que visem impedir a interação ilegal desses elementos. Buscando minimizar os referidos problemas, de forma a separar os diversos crimes contra o patrimônio público e privado, e para um melhor detalhamento, este trabalho classifica os ilícitos em dois grupos: crimes independentes e interdependentes. Além de permitir que se verifiquem quais ações podem ser praticada unilateralmente pelos indivíduos, a divisão proposta intenta isolar outro elemento fundamental para o conceito de corrupção: a ação voluntária, a qual já ressaltada anteriormente. Para existir corrupção, nos termos empregados aqui, os indivíduos envolvidos devem estar agindo por livre e espontânea vontade, desprendidos de qualquer tipo de pressão ou coerção. 4.1. Crimes Independentes Trata-se de crimes praticados unilateralmente por qualquer indivíduo que busque se apropriar de recursos alheios, bem como influenciar processos com o intuito de conseguir benefícios indevidos. Com efeito, o indivíduo independe do auxílio de outro para cometer os 52 Gardiner (2002, p. 29) alerta para a necessidade dessa diferenciação e diz que: “[…] fraud and organized crime are clearly different from corruption, since they are not themselves the acts of public officials[…]”. Este trabalho concorda com a idéia do autor, quanto à sua cobrança de diferenciação entre corrupção e outros crimes. Devem-se, também, evitar associações diretas entre funcionário público criminoso e corrupção. O primeiro pode existir sem o segundo. Quando um prefeito desvia produtos da merenda escolar de um município, para consumo próprio, os quais deveriam ser distribuídos entre as escolas da localidade, não está ele envolvido numa ação corrupta, mas sim num ato criminoso de apropriação indébita. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 64 crimes de: apropriação indébita, furto, peculato, fraude, prevaricação e condescendência criminosa. 4.2. Apropriação Indébita, Furto e Peculato O crime de apropriação indébita configura-se quando um indivíduo “apropriar-se de coisa alheia móvel, de quem tem a posse ou detenção” (BRASIL, 1940). Assemelha-se a ele o crime de peculato, com o diferencial da presença de um elemento da administração pública, como se vê no Art. 312 “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem posse em razão de cargo, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio” (BRASIL, 1940). Observe-se que existem dois pontos em comum entres esses dois ilícitos: a posse ou detenção dos recursos de terceiro e a sua posterior apropriação. O primeiro crime manifesta-se tanto na esfera pública, quanto na esfera privada, pois qualquer pessoa, nessa situação, pode apropriar-se da coisa alheia. Quando o indivíduo A se apossa de algo que o indivíduo B lhe tenha confiado, ele está cometendo o crime de apropriação indébita. Se, por acaso, inexistir o compromisso de posse, ocorre um furto comum, que, segundo o código penal é o ato de “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (BRASIL, 1940). Esse crime pode ocorrer, inclusive, com bens públicos e, mesmo assim, continua sendo furto, desde que não exista a responsabilidade de posse. Já no crime de peculato, além de existir a posse e a apropriação, os bens estão a cargo de um agente público, que pode vir a desviar do erário recursos sob sua responsabilidade, em benefício próprio. Note-se que está incompleta, nesses crimes, a tríade da corrupção. Há apenas um agente privado ou público, buscando capturar recursos alheios. No caso de um agente público utilizar seu cargo, para cometer o crime de peculato, inexiste o elemento corruptor, pois a ação se deu isoladamente. 4.3. Fraude No crime de fraude, existirá corrupção se o fraudador não tiver condições, isoladamente, de cometer tal crime e, para executá-lo, firmar acordo com outro, em troca de benefícios. Exemplo: um indivíduo almeja colocar à venda uma propriedade de 1.000 hectares; no entanto, deseja aumentar, nominalmente, sua área para 1.200 hectares, a fim de conseguir ampliar o valor da venda; para isso, propõe a um funcionário do cartório, onde esteja a escritura original, que ele a adultere e acrescente mais 200 hectares, em troca de uma propina. Caso essa transação se consuma, haverá todos os elementos constitutivos da corrupção, funcionando para cometer uma fraude, que é o “ato doloso, e de má fé, que cause prejuízo a terceiro” (MALTA, 1988, p. 441). Caso o funcionário do cartório não aceite Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 65 a proposta e, mesmo assim, o proprietário, por um documento falso ou outro meio qualquer, conseguir pessoalmente ou com ajuda de outros, que não seja o responsável pelo documento no cartório, terá sido cometido apenas o crime de fraude. Outro exemplo de fraude, e que está distante do crime de corrupção, é quando alguém, por habilidades técnicas em tecnologias da informação, consegue identificar números e senhas de cartões de crédito de terceiros e efetua compras não autorizadas. 4.4. Prevaricação A prevaricação é um crime que também pode ser cometido de forma independente. Ele se configura, sobretudo, pela não-ação do agente envolvido, ou seja, quando, para atender interesses pessoais, ele deixa de desempenhar a tarefa, que lhe é confiada (BRASIL, 1940). Diferenciar esse crime do de corrupção é tarefa difícil, dada a similaridade de ambos. Tomese o seguinte caso: em 1990, foram descobertos, por uma auditoria do Banco Central (BC), desvios de verbas no Banco do Estado do Pará (BANPARÁ), os quais teriam sido cometidos pelo então Governador Jader Barbalho. Em 1992, o relatório sobre tais investigações foi protocolado pelo BC no Ministério Público do Pará e o Promotor Ribamar Coimbra assumiu o caso. No ano seguinte, Jader Barbalho nomeou Coimbra Procurador-Geral de Justiça e, posteriormente, o relatório foi engavetado (KRIEGER; NOGUEIRA, 2001), deixando-se de dar continuidade às investigações que, mais tarde, levariam à renúncia do Senador Jader Barbalho. Nesse caso, o que ocorreu? Prevaricação ou corrupção. Note-se que, aparentemente, todos os elementos da tríade estiveram presentes: interação voluntária de dois agentes públicos, buscando gerar benefícios mútuos, em detrimento do Estado. Se, realmente, o Procurador arquivou o processo, por causa da nomeação, ele agiu como corrupto e, obviamente, Barbalho agiu como corruptor, e os recursos envolvidos eram os valores desviados do BANPARÁ, que, sem as investigações, continuariam nas mãos de Jader Barbalho. No entanto, o Procurador, por possuir a prerrogativa discricionária de arquivar qualquer processo, quando entender conveniente, dificilmente será considerado corrupto, muito menos como prevaricador. Além do mais, o conceito de interesse pessoal, citado no crime de prevaricação, é bastante amplo e subjetivo. Se o promotor concordou com o arquivamento do processo em troca de sua nomeação, não estaria ele agindo com base nos seus interesses pessoais? E os indivíduos envolvidos em relações corruptas não agem também com base nos seus interesses pessoais? Então como diferenciar interesses pessoais envolvidos em crime de prevaricação dos envolvidos em crime de corrupção? A resposta a essa questão ainda está distante e a cargo de um debate jurídico doutrinário, que tenha como pano de fundo, a Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 66 reforma do Judiciário brasileiro. O que cabe aqui acentuar é como um modelo institucional pode gerar dubiedade, a ponto de comprometer o entendimento acerca de alguns tipos de relação entre indivíduos. 4.4. Condescendência Criminosa Outro crime assemelhado ao de prevaricação é o de condescendência criminosa, que consiste em “deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente” (BRASIL, 1940). Um dirigente de uma instituição pública pode deixar de denunciar e punir um funcionário fraudador por este ser seu parente ou amigo próximo. Caso receba benefício, para deixar de punir outro funcionário, que tenha praticado crime igual, o dirigente estará inserido numa relação corrupta, ou seja: ele é o corrupto, o funcionário fraudador é o corruptor e o recurso em jogo seria o obtido com a ação fraudulenta. Em alguns dos crimes referidos, ocorre um fenômeno importante. A fraude, por exemplo, é um crime comum e pode ser cometida sem que relações de corrupção estejam envolvidas. No entanto, em alguns casos, essas ralações dão suporte ao próprio crime de fraude. Se, no exemplo fictício apresentado acima, o funcionário do cartório resolvesse cooperar com o proprietário do terreno, ter-se-ia o crime de corrupção e, posteriormente, o crime de fraude, já que necessariamente a ação de adulteração da escritura teria que ser efetivada. 4.5. Crimes Interdependentes A dependência de um agente em relação a outro, para a efetivação de um crime, é o que diferencia este grupo do anterior. Se antes era possível agir isoladamente, agora não mais, dado que as ações criminosas, neste grupo de crime, possuem o pré-requisito da interdependência. Os crimes interdependentes ocorrem pela coação (como nos casos de concussão, extorsão, excesso de exação e tráfico de influência) e pela livre negociação (entre os quais o de corrupção, que o código penal distingue entre passiva e ativa). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 67 4.6. Concussão e Excesso de Exação Na administração pública, a concussão é essencialmente um crime praticado por um agente público, visando conseguir vantagens perante terceiros, em detrimento de seu cargo, com o uso da coação. A pessoa, a quem o agente público aborda, não age, neste crime, como comparsa, mas sim como vítima, pois é ameaçada, caso não concorde com a proposta do agente que a abordou. Um exemplo prático de concussão é quando um policial detecta ou provoca uma irregularidade num veículo para, com isso, exigir vantagem junto ao proprietário, sob pena de multá-lo ou utilizar qualquer outra punição. Casos dessa natureza são constantemente noticiados pela mídia. Aqui, está presente apenas um dos elementos que compõem um ato de corrupção. Com efeito, há o agente público, mas falta o agente secundário ativo, além do recurso público. Outro crime coercitivo é o de excesso de exação, uma qualificação do crime de concussão, caracterizado quando um agente público passa a “exigir tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido” (BRASIL, 1940), utilizando meios ilegais para impor essa exigência. 4.7. Extorsão O crime de extorsão, também assemelhado ao de concussão, ocorre quando se constrange alguém, mediante grave ameaça, com o intuito de obter vantagens econômicas (BRASIL, 1940). A diferença deste para o crime de concussão é que não se faz necessária a presença de um agente público: a extorsão ocorre numa esfera eminentemente privada, em que um agente privado venha a extorquir outro, ou mesmo um agente público. Conforme já se discutiu, quando o agente público extorquir o agente privado ou outro agente público, estará praticando concussão. 4.8. Tráfico de Influência Nos anos 1990 houve no Brasil uma série de privatizações, visando, entre outras coisas, minimizar a intervenção do Estado na economia, na qual deveria passar a influir por meio de “agências reguladoras”, pressuposto imprescindível para combater-se a corrupção, segundo estudos feitos pelo Banco Mundial (SIMONETTI; RAMIRO, 2001). Em março de 2001 e maio de 2002, vieram à tona denúncias de cobrança de propinas, após as privatizações bilionárias da Companhia Vale do Rio Doce e do sistema Telebrás, ocorridas em 1997 e 1998 respectivamente. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 68 As denúncias envolviam, dentre outros, o senhor Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor do Banco do Brasil, que teria cobrado R$ 15 milhões ao consórcio, que adquiriu a Companhia Vale do Rio Doce (OINEGUE, 2001) e uma comissão de 3,47% do montante utilizado para privatizar o sistema Telebrás (CASADO, 2001). Os valores cobrados seriam o pagamento do então diretor do Banco do Brasil, pelo trabalho de organização dos consórcios, que compraram as referidas estatais. Segundo as denúncias, Ricardo Sérgio teria utilizado, para montar os consórcios vencedores: 1º) o cargo que exercia; 2º) recursos públicos a que tinha acesso; e 3º) sua influência no Governo e nos fundos de pensão estatais. Pois é a utilização desses artifícios que caracteriza o crime de tráfico de influência: “solicitar, exigir, cobrar obter para si ou para outrem, vantagens ou promessa de vantagens, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício de sua função” (BRASIL, 1940). Além de ser funcionário público, o diretor do Banco do Brasil influenciou junto a outros para a liberação de verbas com vistas à formação dos consórcios. Pelo menos três grandes fundos de pensão estatais foram utilizados: a Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (PREVI), a Fundação dos Economiários Federais (FUNCEF), da Caixa Econômica Federal e a Fundação Petrobras de Seguridade Social (PETROS). Ao lado de outros fundos menores, eles entraram com 39% do capital para privatizar a Vale do Rio Doce (OINEGUE, 2001) e com 55,2%, na privatização do sistema Telecomunicações Brasileiras (TELEBRÁS), presentes nos Estados das regiões Norte, Nordeste e Sudeste. E foi esse capital que definiu o poder de compra dos consórcios vencedores. Ou seja: por influência junto a funcionários públicos, grupos privados obtiveram vantagem. E a exigência de fatias dessas vantagens, por parte do agente que influiu, configura o crime de tráfico de influência. Um ponto importante a ser observado, nesse caso, é que a organização dos referidos consórcios foi solicitada pelo Governo, que visava gerar concorrência e, com isso, aumentar o ágio nas vendas, dado que, no caso da Vale do Rio Doce, existia apenas um consórcio interessado, liderado pelo grupo Votorantin. Essa “fabricação de concorrência” ficou a cargo de Ricardo Sérgio de Oliveira 53. A Empresa Vale foi vendida com um ágio de 20% e o sistema TELEBRÁS, com 1%. Nesse último caso, o Governo interveio e suspendeu o financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) ao grupo vencedor, obrigando-o a fazer investimento. Sem o financiamento, o consórcio vencedor se submeteu à mudança das regras, que davam ao BNDES poder de veto sobre qualquer decisão, que achasse inconveniente, tomada pelo comando do grupo. 53 Então funcionário do Banco do Brasil. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 69 Ressalte-se que Ricardo Sérgio tinha uma procuração do Governo, para organizar o grupo, o que lhe rendeu prestígio junto aos investidores, os quais, mais tarde, segundo as denúncias, seriam alvo de solicitação de propinas. Nesse ponto, se poderiam levantar algumas questões: teria Ricardo Sérgio de Oliveira solicitado à comissão, quando entendeu que sua participação fora fundamental e, portanto, logo deveria ser remunerada? Os valores já estariam acertados entre os grupos e o funcionário público Ricardo Sérgio para a obtenção da vantagem na compra das estatais? Caso esta última suposição se confirme, teria havido a manifestação de uma ação corrupta, além, é claro, do crime de tráfico de influência. 4.9. Corrupção Ativa e Passiva O Código Penal Brasileiro considera crime de corrupção ativa o ato de um agente privado que oferece ou promete vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício. Quando um agente público solicita ou recebe, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes, de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceita promessa de tal vantagem, o crime é de corrupção passiva (BRASIL, 1940). O crime de corrupção é, portanto, interdependente e de livre negociação, dado não existir a presença da coerção. Aqui, os agentes atuam por livre iniciativa e vontade. Não são obrigados ou constrangidos a participar de tal ilícito. Assim, os elementos de livre negociação e interdependência são fundamentais para a construção do conceito de corrupção, proposto neste trabalho. Atente-se para o fato de, nos Art. 317 e 333, persistir a idéia de vantagem indevida, o que constitui o divisor de águas do que é lícito e do que é ilícito, implicando este último que a vantagem deve acarretar danos para alguém ou para o serviço público (BRASIL, 1940). Logo, se um agente público receber algum tipo de vantagem, sem que tenha atuado para prejudicar o erário, não terá cometido crime e, se assim for, o fato de oferecer também não é (GOMES NETO, 1988, p. 123). O regime dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais determina que o funcionário não possa receber qualquer vantagem, em virtude de suas atribuições (BRASIL, 1990). Ou seja: qualquer vantagem, que possa influenciar seu ato em detrimento daquele que lhe deu, é considerada indevida e, portanto, ilícita. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 70 É interessante notar, no código penal, a inexistência de referência a corrupção, na esfera privada. Apenas ações que visem prejudicar o erário público são tidas como corrupção. Caso a ação corrupta se dê numa esfera completamente deslocada da pública, não será enquadrada como crime de corrupção, mas em crimes contra o patrimônio. Pode-se concluir que, nesse ponto, como em outros, o código penal está carecendo de atualização (BRASIL, 1940). 4.10. Uma Observação sobre a Lei de Improbidade Administrativa Além dos crimes já referidos, existe o de “improbidade administrativa”, que se circunscreve na esfera pública. “Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas” (BRASIL, 1992). É interessante notar que essa lei estabelece como crimes, ações ilícitas já previstas no código penal, com outra roupagem. A leitura dos seus artigos permite perceber-se exacerbada semelhança com os crimes analisados aqui. Quando, por exemplo, define que é improbidade administrativa auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida, em razão do exercício de cargo, não estaria à lei repetindo o que o código penal dispõe em relação ao peculato? Note-se que, até aqui, se discutiram crimes e suas respectivas leis. A legislação, porém, mais do que contemplar preocupações com a punição, trata da regulação. A punição já é uma resposta à desobediência do que está regulado. Leis, como a de licitação, ou códigos de conduta, portanto, buscam erigir padrões regulares de ação entre os indivíduos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS As dificuldades para se conceituar corrupção, portanto, como visto anteriormente não são triviais, por outro lado não são intransponíveis. Foi possível sim traçar um conceito minimamente operacional, que permita o desenvolvimento de investigações empíricas com vistas a sua mensuração, possibilitando descobrir onde ocorre, qual sua intensidade, que áreas são mais propensas, mas, sobretudo, tornando possível identificar precisamente causas e consequências de sua manifestação. Para tanto, neste trabalho, buscou-se destacar quais são os principais elementos constitutivos da corrupção, caracterizados por aquilo que foi denominado de tríade da Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 71 corrupção, a qual congrega três elementos essenciais: corruptor, corrupto e recursos. A interação dessas peças necessariamente deve ocorrer voluntariamente, livre de qualquer tipo de pressão ou coerção. Argumentou-se que a corrupção é um fenômeno que não é exclusivo do espaço público, podendo o mesmo ocorrer na iniciativa privada, causando danos relevantes ao setor produtivo. E por último, buscou-se contribuir com o debate teórico em torno do conceito de corrupção no intuito de diferenciá-lo de outros crimes que lhes são assemelhados. Esta diferenciação se torna sine qua non para municiar mecanismos de controles institucionais que possam coibir tal prática. REFERÊNCIAS ALMOND, G. A.; POWELL JÚNIOR, G. B. Uma teoria de política comparada. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. BERLIN. Transparency International the Global Coalition Against Corruption. Corruption perceptions index 2011. [S.l.: s. n.], 2011. Disponível em: <http://www.transparency.org/>. 2011. Acesso em: 15 out. 2011. _____. Global corruption report 2009: corruption and the private sector. New York: Cambridge University Press, 2009. Disponível em: <http://www.transparency.org/content/download/46186/739797>. Acesso em: 15 abr. 2010. BLACKBURN, K.; BOSE, N.; HAQUE, M. E. The incidence and persistence of corruption in economic development. 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THE INADEQUACIES IN THE CONVENTIONAL WISDOM ON THE CAUSES OF THE CRISIS AND THE ERROR OF THEIR SOLUTIONS ABSTRACT This article analyzes the suppositions that sustain the neoliberal theories on the causes of the recent financial and economic crisis. The article also criticizes the solutions that are imposing and that they are based on such suppositions. La versión más generalizada de lo que causó la crisis financiera y económica actual asume que fue la facilidad con que la población pudo acceder al crédito, lo que determinó un empache crediticio (que se le llama burbuja), que alcanzó niveles de crédito tales, que el pago de la deuda creada por tanto crédito era insostenible. El problema radica – según tal teoría – en que los bancos ofrecían demasiado crédito, a unas condiciones excesivamente favorables, y la gente se emborrachó de tanto crédito, endeudándose hasta la médula, hasta 54 Catedrático de Ciências Políticas e Sociais. Professor da Universidade Pompeu Fabra (Barcelona) e de Políticas Públicas em The Johns Hopkins University (Baltimore, EEUU). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 75 llegar un momento que la burbuja explotó. La solución pues es que la gente (y el Estado que también se emborrachó de crédito) ahorre para poder pagar lo que debe (de ahí la frase de “ajustarse el cinturón”) y que los bancos eliminen sus productos tóxicos (las hipotecas basuras o las hipotecas impagables), y recuperen el máximo de dinero que prestaron, siendo a la vez, más prudentes en su comportamiento futuro, intentando a la vez capitalizarse (que quiere decir conseguir la mayor cantidad de dinero posible, a base de producir y vender bonos y otros instrumentos) y también pidiendo y consiguiendo ayuda pública, de la cual ha recibido abundantemente, no sólo de los gobiernos, sino también del Banco Central Europeo, en el caso de la Eurozona y/o del Federal Reserve Board en EEUU (este último, por cierto, ha ayudado también a la banca europea extensamente). Consecuencia de esta situación, es que – según tal teoría – las familias están endeudadas hasta la coronilla y los bancos son muy poco afines a abrir la fuente del crédito. Se concluye así que hay un grave problema de falta de demanda doméstica que tiene que sustituirse – de nuevo, según tal teoría – por una demanda externa, es decir, por un incremento de las exportaciones del país. Y de ahí la enorme importancia de que se invierta en mejorar la competitividad, con el objeto de incrementar la demanda externa que estimule la economía. El incremento de la competitividad es así lo que nos sacará de la crisis. Esta explicación ha adquirido categoría de dogma en los círculos donde se genera y reproduce la sabiduría convencional. El Fondo Monetario Internacional (FMI), el Banco Central Europeo (BCE), y la Comisión Europea y muchas estrellas mediáticas del mundo económico, incluyendo el académico, coinciden en el mismo análisis y en las mismas soluciones. Ni que decir tiene que existen variaciones en cuanto a cómo conseguir, por ejemplo, el aumento de competitividad. Así el BCE, la Comisión Europea y el FMI en la Eurozona, y el Banco de España, la banca y la gran patronal en España, acentúan la flexibilidad del mercado de trabajo (que quiere decir la desregulación de tales mercados, la reducción de la protección social, y los recortes de gasto público). Otros, acentúan otras medidas como la desregulación de los mercados comerciales y/o el cambio del valor de las monedas (en la que, por regla general, la moneda china siempre sale mal parada, acusándola de estar artificialmente subvalorada, lo que le da una ventaja comparativa en esta competitividad internacional. También existen diferencias de opinión en cuanto a la velocidad e intensidad en que deben aplicarse las medidas de austeridad, acentuándose últimamente que un exceso de austeridad es contraproducente. Tal es la postura del profesor Antón Costas, en un artículo ampliamente reproducido en Nou Cicle, diario digital de la sensibilidad catalanista del PSC, Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 76 entre otros medios. Creo haber resumido bien esta explicación generalizada de la crisis y sus variantes. El problema que tiene tal explicación es que es insuficiente en su entendimiento de la causa de la crisis y es erróneo en sus propuestas para resolverla. ¿POR QUÉ ESTA TEORÍA ES INSUFICIENTE Y SUS SOLUCIONES SON ERRÓNEAS? Los sostenedores de tal teoría deberían preguntarse en primer lugar ¿por qué la ciudadanía está tan endeudada? No es suficiente indicar que las facilidades crediticias fueran muy elevadas. Es cierto que en los países de la periferia de la Eurozona, los intereses bancarios asociados con el establecimiento del euro facilitaron en gran manera el acceso al crédito. Pero otros países como EEUU y la Gran Bretaña no se encontraban en esta situación y en cambio las clases populares se endeudaron también hasta la médula. La causa no citada de este endeudamiento –y que es la más importante- es el descenso de las rentas del trabajo como porcentaje de las rentas totales de cada país. Las familias tuvieron que endeudarse más y más, resultado de la disminución de sus ingresos. El endeudamiento de las familias precedió al establecimiento del euro. La misma insuficiencia explicativa aparece en atribuir la explosión de la burbuja financiera, a un exceso de crédito. La explosión se debió a una enorme especulación, resultado de que la rentabilidad de la economía productiva era muy baja (consecuencia de la escasa demanda) y en cambio, la rentabilidad de la inversión financiera especulativa era muy alta. El maridaje banca, sector inmobiliario, industria de la construcción creó un bloque enormemente especulativo que dobló artificialmente el precio de la vivienda entre 1998 y 2007. El enorme crecimiento de las rentas derivadas del capital no se invirtió en actividades productivas sino especulativas y todo ello bajo la supervisión de las autoridades reguladoras financieras y con la complicidad de las autoridades públicas. De ahí que, a no ser que la enorme polarización de las rentas que ha ido ocurriendo como resultado de la aplicación de las políticas neoliberales se revierta, la crisis no sólo no se resolverá, sino que empeorará. El caso de Grecia es un ejemplo claro de ello. Lo cual me lleva al último punto. El de las soluciones. Es un error profundo creerse que la solución de la crisis en países como España pasa por un aumento de las exportaciones. Para que alguien exporte, alguien tiene que importar. Y puesto que el 75% del comercio de España es con la UE, si todos exportan, ¿quién va a importar si todos están en recesión? El mejor ejemplo del error de esta estrategia para salir de la crisis es Alemania, referida frecuentemente como “la China de Europa”. La tasa de crecimiento alemán (cuyo modelo Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 77 económico se basa en las exportaciones), es hoy muy baja. Superior a la española, eso sí, pero esto no es decir mucho, pues el crecimiento español es muy bajo. ¿QUÉ DEBERÍA HACERSE? Lo que se requiere es precisamente opuesto a lo que se está haciendo. Se requiere un programa de estímulo a nivel nacional e internacional, semejante al New Deal en EEUU, con un enorme aumento de gasto público para estimular la economía, que llene en España el enorme vacío (casi 10% del PIB) creado por el estallido de la burbuja inmobiliaria. Se necesita también un aumento de los salarios que estimulen el aumento de la competitividad puesto que una de las causas de la baja productividad es la amplia disponibilidad de trabajadores dispuestos a cobrar bajos salarios. Si no los hubiera, los empresarios se verían forzados a invertir y mejorar la productividad de sus empleados. El aumento de los salarios es esencial para que aumente la demanda. Es también importante que la banca ofrezca crédito, como condición de su existencia, nacionalizando bancos en algunos casos y/o transformándolos en entes públicos (public utilities) en otros, convirtiendo además el Banco Central Europeo (BCE) en un banco central que, como hacen otros bancos centrales, imprima dinero, ayude a sus Estados y compre su deuda pública, creándose además a nivel europeo una agencia del tesoro que establezca eurobonos comprados por el BCE y por otras instituciones En caso de que no se vaya en esta dirección, la crisis se acentuará, convirtiéndose la Gran Recesión en la Gran Depresión. En realidad, parte de la población europea está ya en Gran Depresión. Las políticas de austeridad impuestas por la troika (la Comisión Europea, el BCE y el FMI) a Grecia han sometido a aquel país a una situación de enorme retroceso económico y social, condenando a un país a estar en Depresión por veinte años. ¿QUÉ ESTÁ PASANDO EN GRECIA? El caso griego muestra claramente el error de querer salir de la crisis a base de una devaluación doméstica orientada a disminuir los salarios a fin de aumentar la competitividad y aumentar las exportaciones. La economía griega está cayendo en picado. Según el Ministro de Economía de Grecia, la economía decaerá un 4% del PIB (este año decayó un 1%) Y todas las “ayudas” a Grecia no han mejorado la situación. Antes al contrario, la han empeorado. Su deuda pública era 120% del PIB al iniciarse la crisis; ahora representa un 160%. Y sorprendentemente, la última reunión de los gobiernos de la Eurozona, liderados Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 78 por el dúo Merkel-Sarkozy, insistieron en todavía más austeridad, bendecida y apoyada por el Banco Central Europeo y el FMI. Es imposible que Grecia se recupere en estas condiciones. Medidas como el establecimiento de un fondo especial de ayuda (que pueda alcanzar un billón de euros) no tocan la raíz del problema. En realidad, las mal llamadas ayudas de la troika a Grecia han sido ayudas a la banca alemana y francesa, que compró deuda pública griega. De ahí que la salida de Grecia del euro significaría un enorme coste a tal banca, pues la deuda pública, en caso de que Grecia saliera del Euro, se reduciría por unos porcentajes reales mayores que el 32% que la reducción pactada por Merkel-Sarkozy con la banca privada (el 50% que aparecen en los medios incluye la deuda poseída por los Estados, incluyendo las instituciones públicas del Estado griego. Para la banca privada será mucho menor). De ahí que la salida de Grecia del euro representaría un perjuicio considerable al sistema financiero europeo centrado en la banca alemana y francesa. La fallida demanda de un referéndum para aceptar o rechazar las últimas condiciones draconianas impuestas a Grecia hubieran sido no sólo una demanda democrática, sino también una medida inteligente de presión del gobierno socialista griego hacia el establishment financiero y político europeo, indicando que las políticas de austeridad, de continuar aplicándose a Grecia, significarían un coste elevado a aquellos intereses financieros responsables, en gran parte, de la situación intolerable que vive Grecia. Bajo estas condiciones, la única salida que parecería tener Grecia, es la salida de este país del euro. Tal salida será resistida por los mayores centros financieros y por la dirección del establishment europeo cuyas políticas han sido causa del enorme deterioro del bienestar de la población griega. Tal salida afectaría sus intereses de una manera muy directa. Ahora bien, Grecia no puede tolerar esta situación por tantos años. De ahí que su única salida puede ser el abandono del euro. Ello le permitiría redefinir el valor de la deuda (un porcentaje mucho mayor que el pactado por Merkel-Sarkozy en la banca privada), y recuperar su plena soberanía sobre el valor de su moneda, estableciendo su propio banco, con la potestad de imprimir dinero y comprar su propia deuda, potestades que hoy no tiene. Argentina siguió un camino parecido cuando se encontró en una situación semejante. Intentó primero, durante el periodo 1998-2001, seguir las recetas del FMI, que eran casi idénticas a las recetas de la troika a Grecia. Al ver que la situación deterioraba, el gobierno argentino cambió y declaró su deuda impagable, devaluándola considerablemente. Recuperó el valor de la moneda, y tras un declive del PIB por un trimestre, se recuperó rápidamente, creciendo un 63% durante los siguientes seis años, y ello a pesar de todas las Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 79 advertencias del FMI de que tal decisión sería un desastre. No lo fue, evitando la continuación del desastre que Argentina estaba padeciendo. El caso Argentina y el caso Grecia muestran que las políticas propuestas por la troika (Comisión Europea, BCE y FMI) para salir de la crisis, a base de aumentar las exportaciones, es profundamente errónea. Lo que debiera hacerse es estimular la demanda doméstica. El hecho de que no se haga es consecuencia de las relaciones de poder tanto dentro de Grecia como en la Eurozona, donde el dominio de las elites financieras y grandes grupos empresariales es casi absoluto. Ahí está el problema. Fonte: http://www.vnavarro.org/?p=6490 ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online A ESQUERDA CONTRA A DÍVIDADURA Francisco Louça55 RESUMO O debate nas esquerdas acerca da resposta à crise da dívida é fundamental para definir a política socialista. É disso que trata este texto. Na primeira parte, discuto a crise do euro. Pretendo argumentar, como muitos outros, que ela é estrutural e permanente, ao contrário do que afirma o consenso entre a social-democracia e a direita. Na segunda parte, discuto as duas alternativas novas que têm sido propostas contra a estratégia do europeísmo de esquerda: a saída nacionalista e o salto para o Estado Europeu. Pretendo provar que estas alternativas têm três problemas: são violentamente contraditórias, apoiam-se na ocultação dos seus efeitos econômicos e sociais reais e ignoram a relação de forças em que se fazem escolhas. Na terceira parte, discuto de novo o europeísmo de esquerda e pretendo provar que uma alternativa econômica exige uma estratégia de luta de classes. Para isso, voltemos ao essencial. 1. A CRISE DO EURO É ESTRUTURAL E VAI-SE AGRAVAR As definições fundadoras da União Europeia e, em particular, da criação da moeda única, têm o cunho do consenso histórico entre a social-democracia e a direita. De facto, nas escolhas fundamentais para esta estrutura institucional, não existiu até hoje qualquer diferença essencial entre estes parceiros. Foi uma amplíssima maioria de governos socialdemocratas que definiu as regras de Maastricht, que são o pilar fundador do euro – 55 Catedrático, Prof. de economia no ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão de Portugal). Deputado, líder do Bloco d'Esquerda. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 81 máximos permitidos de 3% de défice e de 60% de dívida e, ainda mais importante, a obrigação de uma contenção permanente da inflação a níveis insignificantes. Esses dogmas são hoje os instrumentos da direita que governa a União Europeia e a origem dos problemas actuais. Não são precisos outros para a máquina de destruição das regras sociais do Estado-providência. O problema é que o euro que resulta desse consenso é uma construção insustentável. É incoerente, vulnerável, desigualitária, prejudicial à maioria dos Estados e, fundamentalmente, esvazia a democracia. É preciso por isso analisar em detalhe porque está a fracassar o euro. 1.1. O euro é a crise A política das lideranças da União Europeia está bloqueada num consenso inicialmente muito forte: a criação de um regime de financeirização dominante por via do euro, impondo a cada Estado o condicionamento da sua economia e a minimização dos gastos sociais. Este consenso tem sido abalado por brechas no que diz respeito à gestão das respostas à crise, porque o euro é a crise: alguns governos aceitam hoje os eurobonds que recusaram sempre, uns querem reduzir as dívidas com uma pequena desvalorização do capital, outros sustentam o modelo de espoliação da Grécia e das outras economias periféricas. As linhas que se seguem discutem estes dois pontos: a razão da crise do euro e as tentativas de solução dentro do euro. Para esse efeito, vou resumir-vos a análise de Paul de Grauwe, um economista belga que é um dos mais reconhecidos críticos do modelo do euro e que tenta remediá-lo com várias propostas (“The Governance of a Fragile Eurozone”, working paper da Universidade de Lovaina). De Grauwe escreve que, quando existe uma zona de moeda comum como o euro, todas as economias passam a emitir dívida soberana em euros mas, porque não têm controlo nacional sobre a moeda, tornam-se vulneráveis a ataques especulativos que podem forçar a sua falência – o default, ou a cessação de pagamentos. Ou seja, o euro aumenta o risco da falência. O exemplo que apresenta é o da comparação entre a Espanha e o Reino Unido, sabendo-se que o rácio dívida/PIB inglês é maior (em 2011 a diferença entre um e outro é de 17%). Mas o Reino Unido, quando emite dívida soberana, paga taxas de juro menores, apesar de estar muito mais endividado. Há evidentemente uma primeira razão para esta diferença, que De Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 82 Grauwe, aliás, ignora: os mercados financeiros impõem taxas de juro considerando as suas expectativas mas também o seu poder perante cada economia, e o poder do Reino Unido é muito superior ao da Espanha, porque é um dos maiores centros financeiros e uma grande economia mundial. Mas a segunda razão, que é analisada em detalhe por De Grauwe, é muito importante para perceber o falhanço do euro: é que, se houver um forte ataque especulativo, o Reino Unido tem uma capacidade de resposta que a Espanha – ou Portugal – não tem. Imagine-se que os especuladores temem o incumprimento britânico e que, por isso, vendem os títulos desta dívida pública. Assim, o valor do seu juro sobe. Mas, nesse caso, os vendedores dos títulos normalmente irão trocar por outra moeda as libras que receberam, o que provoca dois efeitos: a libra é automaticamente desvalorizada (desvalorizou 25% desde o início da crise), o que facilita as exportações britânicas, e o Banco de Inglaterra comprará os títulos. A massa monetária não é assim reduzida (até pode aumentar) e não chega a haver um problema de liquidez. A economia corrige o problema se o Banco de Inglaterra agir sem hesitações. Em contrapartida, se acontecer o mesmo em Espanha – ou noutro país nas mesmas circunstâncias –, os fundos financeiros venderão os títulos da dívida espanhola mas poderão investir nalguma outra economia os euros que receberem. Cria-se assim um problema de liquidez porque o Banco de Espanha, que é agora uma sucursal do Banco Central Europeu, não quer nem está autorizado a comprar os títulos. A oferta monetária reduz-se em Espanha e os preços relativos não são corrigidos, passando a haver uma restrição que agrava a austeridade. O efeito seguinte é sobre as contas dos bancos nacionais, que têm em carteira uma parte importante da dívida pública: se os títulos valem menos, os seus balanços ficam desvalorizados, têm mais dificuldade para obterem financiamento, e o crédito é restrito. Sim, existe também um problema de dívida privada que, em Portugal como noutros países, é maior do que a dívida pública. E esse problema agrava os custos dos empréstimos que os bancos nacionais obtêm junto da banca internacional. Indirectamente, os trabalhadores estão a pagar esse custo, com o agravamento dos juros quando pedem novos créditos e com o aumento dos impostos para financiarem as rendas que o Estado paga à banca. Mas não haja ilusões: mesmo que esse problema não existisse, a pressão sobre a dívida soberana poderia ainda ter um efeito desastroso, como está a acontecer. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 83 O efeito dominó é por isso muito forte: a especulação financeira consegue ameaçar uma economia vulnerável, e o Estado pode ficar insolvente simplesmente se os mercados financeiros temerem que fique insolvente. Para responder a esta dificuldade, a ortodoxia europeia só concebe a solução da austeridade, que é a da recessão. Só que esse efeito de ameaça às economias do euro não é a única ameaça na Europa. O Reino Unido, o exemplo de De Grauwe, está agora a aplicar a mais selvagem lei da austeridade, multiplicando as propinas universitárias, cortando na saúde, atacando os pobres, reduzindo o investimento e criando desemprego – apesar de ter todos os instrumentos monetários para relançar a economia contra a especulação. Ou seja, o problema europeu não é só o euro. É mesmo a luta de classes. 1.2. A solução européia tem sido o aumento da exploração pela via da austeridade A resposta europeia a estas crises nacionais, acentuadas pela vulnerabilidade do euro, é bem conhecida: planos de austeridade para recuperar a competitividade a partir da desvalorização dos salários directos (retirar o subsídio de Natal e de férias, cortar nos salários, aumentar o horário de trabalho) e indirectos (aumento dos custos da saúde e educação, redução das pensões). A austeridade provoca recessão, que agrava o défice orçamental, que exige novos aumentos de impostos, que agrava a recessão. A recessão transforma-se, como pode acontecer em Portugal, em depressão prolongada. Isto é uma boa notícia para a finança e para a burguesia, porque altera profundamente as relações de força entre as classes, abrindo as portas a um novo regime social – despedimentos fáceis, fim dos contratos colectivos, redução do poder sindical, serviços públicos mínimos com a mercantilização de serviços essenciais para a vida das pessoas. A finança do século XXI quer viver tanto dos mercados bolsistas como da gestão dos hospitais e dos fundos da segurança social. Mas, entretanto, a depressão desvaloriza uma parte do capital produtivo, e isso é a má notícia para os capitalistas que forem à falência. Assim, temos dois pólos de tensão na classe dominante: entre a finança e os bancos, por um lado, e entre estes dois sectores e partes do capital produtivo, por outro lado. E é sobretudo uma má notícia para a maioria da população, porque significa um recuo geracional do salário, ou seja, um aumento da exploração. Assim, a estrutura do euro acentua a pior das políticas, a da desvalorização do salário. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 84 Vou depois voltar esta conclusão, porque ela é a chave de todo o debate político: com o euro, a desvalorização do salário é o alfa e o ómega da política económica dominante. 1.3. Algumas novas e velhas soluções imediatistas Recapitulemos De Grauwe, porque ele exprime com clareza a dificuldade de busca de alternativas no quadro económico actual, mas propõe três alternativas principais à gestão actual do BCE e do directório da União. Vejamos quais são e qual a sua viabilidade. A primeira proposta é que o Banco Central Europeu compre títulos da dívida soberana e os aceite como garantia de empréstimos aos bancos privados. Isso já está a ser feito em alguma escala, apesar de ser contra tudo o que o BCE sempre afirmou. Mas esta medida não basta: para que a sua actuação tivesse impacto, o BCE devia ser um factor decisivo no mercado da dívida, o que significaria comprar toda a dívida disponível – como propôs recentemente Cavaco Silva. Devia comprar directamente aos Estados e não somente no mercado secundário, nos momentos de aflição. E isso não vai acontecer na dimensão necessária. A segunda alternativa apresentada por De Grauwe é a redução do juro imposto nos empréstimos aos países em dificuldades. A razão é evidente: o juro alto aumenta as dificuldades e assinala que a própria União tem expectativas de que pode haver um incumprimento da dívida por parte desses Estados, o que facilita os ataques especulativos contra eles. Como sabemos, houve uma pequena redução (de 1%), mas o juro é ainda mais de 2% acima do seu custo de financiamento. A terceira proposta de De Grauwe é um mecanismo de emissão de eurobonds, que asseguraria o equivalente a 60% da dívida soberana de cada país, devendo o Estado suportar os títulos restantes. Assim, cada país teria dois tipos de títulos soberanos: os europeus, de juro mais baixo (mas com custos diferenciados de acesso segundo o risco de cada economia) e os nacionais, que poderiam ter juro mais elevado. É uma proposta antiga de Jacques Delors e já tem cerca de 20 anos. Nunca foi concretizada e é difícil que o seja, porque tem o veto da Alemanha. Para as três propostas, De Grauwe sugere uma contrapartida: uma autoridade fiscal comum e portanto para uma União política. Porque não é preciso que a senhora Merkel lidere um governo europeu unificado para que seja viável a emissão de títulos europeus ou juros razoáveis nos empréstimos às economias atingidas – basta haver regras aceites que Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 85 determinem estas acções. Por isso, De Grauwe contenta-se com pequenos passos. Mais ainda: quanto maior a crise, maior a insistência em soluções imediatas. Como vamos ver adiante, a recusa anterior pela governação europeia da lógica destas medidas não implica que não ceda e não as aplique em alguma medida, combinadas com um cocktail de outras iniciativas, para não deixar cair o euro. A redução dos juros da dívida negociada com a troika continuará, e haverá uma forte mesmo a reestruturação da dívida da Grécia, com perdas para o capital financeiro (e o BCE a compensar parcialmente a banca). O euro não pode cair, se a Alemanha defende os seus interesses. Haverá por isso medidas activas para reorganizar o sistema de crédito e as relações institucionais, com o BCE a fazer sistematicamente o que por doutrina e mesmo por Estatutos tinha sempre recusado. 1.4. A política que dirige a Europa é autoritária, mas consensual entre a direita e a social-democracia Considerando estes argumentos, o impasse actual pode ser assim resumido: o euro tem organizado o capitalismo europeu durante os anos de crescimento, mas fraqueja quando há uma crise financeira, porque os mercados especulativos atacam com sucesso as economias mais frágeis e criam um perigoso efeito dominó. A resposta da austeridade é simplesmente austeritária, a austeridade autoritária. Só que o efeito de contágio é muito intenso, dado que mais de metade da dívida soberana dos vários países está detida por entidades financeiras de outros países. E a recessão alastra, agravando a instabilidade financeira. O euro torna-se por isso um factor determinante da crise. Esta estrutura do poder financeiro e da decisão européia é suportado por um consenso entre a direita e a social-democracia, que tem resistido sempre com vantagem da direita. Ele tem um fundamento: Kohl, Schroeder ou Merkel, na Alemanha, representam exactamente as mesmas políticas européias, como Prodi e Berlusconi em Itália, ou Aznar e Zapatero em Espanha, ou Durão Barroso e Sócrates em Portugal. Para que a política não seja meramente uma imaginação alegre, convido os economistas que têm desenvolvido a crítica ao euro a lembrarem-se da configuração política que definiu estas regras, que as impôs e que as mantém, para que possamos procurar alternativas viáveis que não ignorem os adversários e que, em contrapartida, procurem aliados que não sejam figuras de retórica. Se me permitem, recomendo-lhes por isso que não contem com a social-democracia européia: ela não vai erguer uma alternativa européia, porque defende para a Europa o Tratado de Lisboa com o seu Directório e o euro tal como ele existe. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 86 2. DUAS SOLUÇÕES AUTORITÁRIAS DE AUSTERIDADE CONTRA A AUSTERIDADE Esta crise é estimulada pelo euro, que cria um efeito de contágio da crise. Mas ela não é criada pelo euro. Para a compreendermos no seu quadro geral, devemos ir mais fundo e fazer o que a maior parte dos economistas recusa: pensar a economia a partir das classes sociais. É isso que faço de seguida, considerando as duas alternativas que têm sido recentemente propostas por alguns sectores de esquerda (e de direita), que são a opção nacionalista da saída do euro e a contra-opção federalista da criação de um Estado europeu unificado. 2.1. Avante para a esquerda, ou então, se não puder ser, para a direita Grande parte das esquerdas críticas partilha este diagnóstico sobre a crise do euro (e também, como vimos, alguns dos mais tradicionais economistas). Ele não é novo. Está presente desde a formação do euro, e foi por isso que recusamos a seu tempo a sua estrutura, como rejeitamos a artificial valorização do escudo no momento da integração – valor que tem vindo a destruir a economia portuguesa – bem como a excessiva valorização posterior do euro. Sim, isso já se sabia. Neste quadro, o BCE só podia ser o que veio a ser: uma agência para a liberalização dos mercados financeiros e a protecção da banca, impedindo as escolhas necessárias para responder a cada recessão. E, neste quadro, também a Comissão Européia só podia ser o que veio a ser: uma agência dos principais governos, com o poder legislativo que o Parlamento Europeu não tem e que os parlamentos nacionais estão a perder. Foi, portanto com pleno conhecimento destas realidades que as esquerdas elaboraram as suas respostas. Ninguém pode agora argumentar que não sabia ou que não percebeu. Ou que, com estes tratados, a União podia ser o que não foi. Ou que as instituições se regenerariam e salvariam as economias da recessão. Não vale. Não vale inventar agora que a União do directório era outra coisa, que podia ter sido social ou até que podia ter sido economicamente competente. Foi por isso que o Bloco de Esquerda se definiu desde a sua fundação como “europeísta de esquerda”, e levou a sério essa definição. Ela implica o combate contra as instituições e as políticas da governação européia, porque são factores da crise e recusam a democracia. Implica a recusa do Tratado de Lisboa, porque encerra a Europa no Directório, e das regras do BCE, porque agravam cada recessão. Implica a exigência da saída da NATO e a recusa de um militarismo europeu, porque é parte de uma política imperial. Implica a exigência clara Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 87 da refundação da União e isso tem uma consequência, que é o combate sem concessões contra a sua estrutura e política actual. Esse combate, portanto, não é novo. Nem é novidade que ele nos diferencie de uma esquerda nacionalista que tem tido receio de anunciar a sua posição pela saída do euro e da União Européia, em nome de uma alternativa soberanista bastante mal explicada e de viabilidade ruinosa. O que há de novo, no entanto, é que alguns sectores de esquerda, tradicionalmente europeístas e por vezes até pouco críticos da governação européia, procuram agora outras soluções. Essa deslocação é em sim mesmo um bom sinal, porque prova que, perante o impasse actual, há quem procure novas alternativas. Mas essas alternativas têm de ser mais fortes e mais consistentes do que as políticas que querem substituir. Duas dessas propostas são particularmente importantes e, portanto, devem ser discutidas com toda a atenção. São a que defende que Portugal se empenhe na criação de um Estado Europeu unificado e a que defende que Portugal deve abandonar o euro. O que um dos seus defensores chama, elegantemente, sair da crise por “cima” ou por “baixo”. O que pode surpreender quem achar que já viu tudo é que haja quem defenda simultaneamente as duas propostas. De facto, a sobreposição destas duas propostas radicalmente antagónicas é uma bela prova de que a imaginação humana não tem limites. Quem quer a solução extrema de um Estado Europeu que dirija as economias nacionais não pode querer também a solução nacionalista extrema da separação do euro (e da aplicação de políticas que significam a saída da União Européia) – ou pelo menos não se espera que defenda as tuas ideias simultaneamente. De facto, as duas soluções dirigem-se a objectivos contraditórios, servem sectores sociais e mobilizam forças diferentes, concitam sistemas de alianças distintos. A primeira requer o privilégio dos sectores financeiros mais integrados a nível europeu, a segunda espera a liderança dos sectores exportadores da burguesia nacional. A primeira solicita a anuência do governo alemão e dirige-se à convergência com o sector federalista do PS (António José Seguro), a segunda restringe-se à aliança com o sector mais conservador do PCP e nem sequer inclui o movimento sindical. Assim, o exercício de debater com a ideia de “um partido-duas políticas” é dos mais bizarros a que se pode aspirar. Qualquer das alternativas, por si própria, é consistente e tem argumentos sólidos. Qualquer delas sustenta uma mudança de orientação para as esquerdas. Mas o que não consigo compreender é como se pode defender ambas ao mesmo tempo, com o estranho argumento de que, se uma não resultar, queremos a outra. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 88 Se, para nos indicarem o caminho, nos disserem “se não for para a esquerda, vá para a direita”, ficaremos provavelmente sem orientação. Lamento, mas é o caso: duas propostas contraditórias é o mesmo que nenhuma proposta. Pois é, a política não é um menu para contentar toda a gente. A política é uma escolha. E deve ser levada a sério. Deve ser clara. Deve mobilizar argumentos e convicções. Deve promover acções. Deve ser forte. É como tudo na vida, ou se vai para um lado, ou se vai para outro. Como todos sabemos, não convém nada guiar para a esquerda a olhar para a direita. E é por isso que não se pode nunca defender algo e o seu contrário. Ou imagine-se o que seria, na campanha eleitoral recente, o destino de um partido que defendesse simultaneamente a saída do euro e o Estado Europeu unificado. No debate com Sócrates e Passos Coelho defenderia a saída do euro e no debate com Jerónimo de Sousa defenderia o Estado Europeu? Ou seria o contrário? Ou defenderia ambas as alternativas com qualquer deles? E pediria o voto aos eleitores para quê, se não é indiscrição? Se me permitem, essa é a velha, experimentada e celebrada estratégia do Estebes, tudo ao molho e fé em deus. É a política sem política. Porque a diferença entre um analista sério e um político sério é que o primeiro joga com vários cenários enquanto o segundo escolhe uma estratégia e compromete-se com ela. Não preciso de argumentar que o Bloco de Esquerda assume a responsabilidade da política. 2.2. A primeira solução autoritária contra o austeritarismo: o federalismo Prefiro então discutir cada uma das propostas em separado, pelos seus méritos e não pela sua estranha amálgama. A pergunta que se tem de colocar por isso é esta: a nova proposta ajuda a responder à recessão e à austeridade, constitui uma alavanca de mobilização e de alternativa? Se sim, deveríamos adoptá-la sem hesitação. Veja-se então a primeira proposta, o federalismo. Segundo esta proposta, se há uma crise da dívida, a solução estaria na transformação da União Europeia num Estado unificado, com uma autoridade fiscal única, um governo único e um orçamento único. A saída “por cima”. Há uma dívida, mas o Estado Europeu que se encarregue dela e que dirija o nosso orçamento a partir de agora. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 89 O federalismo é um conceito manhoso mas que, em si mesmo, diz tudo: o federalismo é uma forma de organização de um Estado, com regiões ou províncias (nos Estados Unidos ou no Brasil chamam-se estados) com alguma margem de autonomia, mas submetidos a um poder político centralizado, que decide o orçamento e a política económica e social, que tem leis uniformes, um exército e uma representação externa. Ou seja, a federação é um Estado unificado. É fácil de entender porque é que esta proposta se disfarça com o argumento suave de que só propõe pequenos passos, com factos consumados, num caminho que não anuncia o seu destino. O motivo é evidente: não existe qualquer possibilidade de acordo europeu para um Estado europeu nos tempos de hoje. E não existe por duas razões. A primeira é que os pequenos passos criam tensão máxima, como é o caso da actuação do directório, agora um eixo franco-alemão que gravita em torno de Merkel. Foi com esses pequenos passos que chegamos aqui, e não é bonito de se ver. A segunda é que nenhuma das burguesias – nem as opiniões públicas – de qualquer dos grandes países aceitaria a incógnita de um governo europeu. Falta-lhe para isso o consentimento social e a hegemonia ideológica. Um governo europeu significaria que a Inglaterra e a França poderiam ser governadas de Berlim. Impossível. Ou que a Alemanha poderia ter de aceitar um governo liderado por um primeiro-ministro polaco eleito por uma coligação com os populistas italianos. Inaceitável. Ou que Portugal, a única nação ibérica que ao longo dos séculos se libertou do reino de Castela, perderia agora a velha aposta histórica da independência. Difícil, não é? Evidentemente, a impossibilidade actual de criação deste Estado Europeu poderia não ser razão para o rejeitar no futuro ou até para não o desejar no presente. A esquerda poderia defendê-lo como um modelo, como uma estratégia ou, como hoje se diz, como um desígnio. Mas, pela minha parte, só vejo motivos para rejeitar categoricamente a ameaça de um Estado Europeu. Começo pela razão mais circunstancial. Imaginemos que não havia nenhuma resistência, que o consenso era forte, que o federalismo tinha vencido e que o Estado Europeu era criado, e que o seu governo era eleito, tudo hipóteses bastante extravagantes. Só que, como se verificou nas eleições para o parlamento europeu, essa eleição significaria uma estrondosa vitória da direita européia, incluindo os sectores mais populistas e agressivos. Em consequência, a capacidade de disputa dos movimentos de trabalhadores reduzir-se-ia, Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 90 muito em particular nos países onde criaram uma relação de forças que lhes tem permitido combater por alternativas. Para a esquerda, este cenário seria suicidário. Mas ignoremos esta objecção. Afinal, se a proposta fosse absolutamente essencial, o Estado Europeu seria uma conquista da democracia e todos viveríamos melhor com isso, a longo prazo. Mas é essencial? A Europa beneficiaria desse Estado? A minha resposta é convictamente que não: um Estado Europeu democrático nunca será democrático. Essa é a objecção mais importante, porque tem que ver com a natureza da esquerda e com o nosso compromisso de representação e luta pela emancipação dos explorados. A União pode ter procedimentos democráticos ou autoritários, e isso faz uma diferença danada. Nós temos proposto sempre os procedimentos democráticos, e recusado os autoritários: o sistema actual do directório já é uma das piores características do federalismo. Ora, o Bloco defendeu sempre referendos sobre cada Tratado (e, já agora, comprometemonos com o “não” ao Tratado de Maastricht, depois ao de Nice, depois ao de Lisboa, e por fortes razões). Denunciamos os poderes europeus e os governos que conspiraram para maquilhar um Tratado Constitucional como um Tratado comum, e para o impor sem os referendos que tinham prometido solenemente. Apresentamos uma moção de censura contra Sócrates por causa disso, já agora, que fique para registro. Levamos muito a sério a luta pelos procedimentos democráticos. Sabemos que faz toda a diferença ter os governos a legislar a partir do Conselho Europeu e da sua Comissão ou ter controlo parlamentar escrutinável. Faz muita diferença ter a possibilidade de os europeus decidirem ou manter um poder enclausurado nos governantes do directório. Mas paremos agora um momento para pensar o que tem sido a nossa luta pelos procedimentos democráticos. Quanto propomos um referendo em Portugal e queremos que nesse referendo ganhe o “não” contra o Tratado do directório, estamos certamente a defender uma solução para a Europa. Somos nisso completamente europeus. Mas fazemolo onde podemos, como podemos e como queremos que a democracia decida a questão – onde a reconhecemos, em Portugal. Não propusemos um referendo simultâneo em toda a Europa que decidisse sobre o Tratado, em que o voto do alemão e do polaco valesse como o da portuguesa, pois não? Não. O povo que reconhecemos para decidir sobre a aceitação de um tratado por Portugal é o eleitorado português. É com ele que falamos. E é a sua decisão que aceitamos como legítima, mesmo que a achemos errada e que combatamos as suas consequências. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 91 A razão para essa definição de legitimidade eleitoral é de importância transcendente para a esquerda. E é simples. É que a democracia parlamentar foi criada historicamente no EstadoNação, baseada na aceitação social de uma representação legitimada: cada um tem o direito de voto, há pluralismo, e aceitamos que o partido mais votado representa o Estado e governa. Este regime é frágil, é manipulável, tem um enorme peso da ideologia dominante e das fábricas do consenso, não é uma democracia de participação e de acção para o povo, mas é a parte da democracia que resulta das lutas sociais pelo sufrágio universal e contra a ditadura, e dela não abdicamos. Ela é um ponto de partida para as lutas, porque é verificável e disputável pela força que a luta popular criar. É por isso que a democracia representativa no país é um espaço de confrontação para todos, mas em contrapartida a democracia européia não existe – existem procedimentos democráticos ou autoritários na Europa, mas não existe democracia européia como espaço comum de reconhecimento e de legitimidade unificada. O federalismo democrático não é por isso democrático, porque exclui os Estados Nação, que é onde existe a democracia representativa realmente existente. Ainda não há nem houve qualquer forma de democracia internacional, que tenha como base de sustentação a legitimação perante um povo global. Faz falta, mas não existe. Tem escrito Rui Tavares que, se a Merkel governa, devíamos ao menos poder votar nas eleições que a escolhem. E assim ao nível europeu: se mandam em nós, queremos votar sim ou sopas. Mas o problema é que esse voto não tem sentido. Não comunicamos com um alemão, dono de uma cervejaria em Munique, como com uma desempregada em Figueiró dos Vinhos. Não falamos da mesma história, da mesma cultura, não partilhamos disputas e diferenças: não podemos decidir em conjunto um governo que nos obrigue a todos, porque, como dizia Linecker, nesse jogo há duas equipas e no fim ganha sempre a Alemanha. E o pior é que, quando elegermos o governo do Estado Europeu, sobrar-nos-á um feitor da província instalado no palácio de S. Bento, a quem poderemos entregar petições. Mas com ele não discutiremos a lei, os orçamentos, os impostos, a defesa, a política externa, os serviços públicos. Essa democracia não seria democracia. Dir-me-ão que, no fim das contas, a Merkel e o Passos Coelho pensam e propõem o mesmo para a sociedade. Sim, mas a diferença entre ter um governo alemão para a União e ter um governo português dentro da União, mesmo subordinado e sorumbático, é que podemos disputar com o segundo e influenciar a política que o determina. Nessa disputa, estamos nós, o povo. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 92 Mais fundamentalmente, não existe um povo europeu único que se reconheça, existem povos europeus. Ser português e ser europeu são duas identidades e não uma. E é porque é ainda nos quadros nacionais que se forma o essencial dos processos de acumulação e sobretudo a determinação das condições salariais ou seja, a repartição do rendimento, a exploração e a luta contra ela, que não abdicamos de lutar onde temos poder. E foi isso mesmo que nós sempre soubemos a respeito da Europa. Que devia ser um lugar de políticas comuns, incluindo com partilha negociada de soberanias, mas devendo ser sempre uma convergência de Estados Nação. Toda a política europeísta de esquerda se baseia nessa convicção forte. A Europa tem de ser a combinação de políticas europeias e de margens de acção dos Estados nacionais. Queremos reforçar umas e outras, delimitando o que a União deve fazer: melhor orçamento comum para medidas para pleno emprego, e também mais capacidade de escolha de cada país na sua gestão financeira, fiscal, orçamental e social. Tudo bons motivos para recusar o Estado Europeu. Finalmente, há mais duas razões para rejeitarmos o truque federalista. A primeira é que qualquer deriva para o Estado Europeu, que será sempre autoritária, multiplica os nacionalismos – e dispensamos esse pesadelo, porque sabemos como começa, mas não sabemos onde acaba. Já muitos países da Europa têm direitas nacionalistas radicais a 20%. O federalismo é o seu alimento. Rejeitar o nacionalismo e cortar-lhe espaço de desenvolvimento implica, como sempre, que a esquerda quer disputar a hegemonia da nação, quer construir uma maioria para dirigir a nação. Essa luta pela hegemonia é a razão de ser da esquerda, e desgraçada da esquerda que dela abdica ou que, pelo contrário, se torna ela própria nacionalista – acabará, como o PC Grego, a votar sistematicamente com Le Pen no parlamento europeu. Pode ter votos, como o PC Grego tem, mas o nacionalismo nunca será a esquerda para a luta necessária. A utopia reaccionária do Estado Europeu cria os seus anti-corpos e destrói a esquerda em cada país. A última razão é a coerência conosco mesmos. Deixei essa razão para o fim, porque é unicamente a nossa própria cultura que está em causa. Mas é um valor importante. Foi deliberadamente que escrevemos, no “Contrato pela Europa”, que é um dos três textos fundadores do Bloco de Esquerda, no que defendemos “uma nova perspectiva da esquerda para a Europa, contra o federalismo” e que o “principal adversário da nossa alternativa de projecto é o federalismo” que “transforma a Europa numa feira de capitais”. Nesse momento, chamávamos também a atenção para o significado imperialista da idéia do Estado Europeu: com ele chegam um exército e um aparelho repressivo unificado. Convenhamos que sem Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 93 esse exército e sem esse aparelho repressivo não há Estado. Boas razões para defendermos a democracia contra o Estado Europeu. Admito que haja quem tenha aprovado esta posição durante dez anos e que agora esteja arrependido. Ou que pense, estou certo que de forma pensada, que a crise de Portugal é tão grave que mais vale esta solução do que continuar tudo como está. E não pode continuar como está. Mas, pergunto: se é o imediatismo do desespero que move a abdicação da nossa posição de sempre, se é a emergência do desespero que leva à aceitação do risco de uma Europa como sempre a recusamos, para quê então defender uma alternativa que não tem qualquer viabilidade? 2.3. A segunda solução autoritária contra o austeritarismo: sair do euro e da União Européia Dito tudo isto, a minha conclusão é esta: a idéia federal do Estado Europeu unificado não vai ter qualquer papel na política portuguesa ou na política européia nos anos que vivemos. Haverá medidas de reforço do Conselho, da Comissão, do BCE, criar-se-ão fundos comuns e regras rígidas, vigiar-se-ão orçamentos e políticas, nada que não conheçamos com a tutela dos credores hoje em dia. Haverá medidas federalistas, os tais pequenos passos com avanços e recuos, mas não haverá o salto imenso para um Estado Europeu. Nem as partes da social-democracia que a defendem – e que são alguns partidos quando estão na oposição, nem todos e nem sempre – terão um protagonismo suficiente para colocarem na agenda essa solução. Nem ela ganhará credibilidade noutros sectores de esquerda. Pura e simplesmente, ela não existe no campo das decisões. A segunda solução, em contrapartida, terá um peso crescente no debate político. A proposta da saída do euro será persistente, é com ela que nos vamos defrontar. Ela será defendida por dois tipos de correntes: os economistas que recusam o espartilho do euro e não encontram outra solução, e as esquerdas que preferem o nacionalismo ao arrastamento da crise européia. São dois sectores diferentes, com idéias diferentes e propostas diferentes, e só por diletantismo é que os segundos se refugiam nos argumentos dos primeiros. Entre os economistas que defendem a saída do euro estão alguns dos seus críticos de sempre, como João Ferreira do Amaral, em Portugal, ou, mais prudentemente, Paul Krugman e Nouriel Roubini, nos Estados Unidos. Para estes economistas, já não é uma questão de escolha, é ou começa a ser uma inevitabilidade. Segundo eles, a espiral Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 94 recessiva das medidas de ajustamento orçamental tornará a governação impossível, com aumentos de impostos que já não criam mais receitas, com a paralisia da economia e com a exaustão das políticas. Por isso, argumentam que só resta a saída do euro como forma de desvalorizar uma nova moeda e esperar que a economia se reequilibre por via do aumento das exportações e da diminuição dos salários. Assinale-se que nenhum deles defende a rejeição da dívida, antes esperam ganhar algum tempo para pagar a dívida de outra forma, com os saldos comerciais. E todos aceitam que os trabalhadores devam pagar o ajustamento com a redução dos salários. Há nisto bons e maus argumentos, como escrevi atrás a respeito do euro como factor da crise, mas também soluções irrealistas e que não se preocupam com a política que as aplique. Sobretudo, é uma resposta indiferente à economia que afecta as pessoas e que propõe uma austeridade salarial permanente. Além disso, esperar que a União financie a saída do euro ou que os mercados financeiros mantenham uma atitude de neutralidade perante a nova moeda é comoventemente ingênuo. Tudo vai da aposta: um governo de direita que fizesse esta operação com o intuito de provocar uma redução acentuada e permanente dos rendimentos dos trabalhadores poderia obter algum apoio da finança internacional, mas é duvidoso que este se mantivesse perante as medidas drásticas que, neste contexto, se tornam necessárias. Vamos então ver como se aplicaria a saída do euro, e convocar agora os sectores de esquerda que, ao contrário dos economistas anteriormente citados, são forçados a defender a sua proposta a partir de um ponto de vista que considere a vida dos trabalhadores. Comecemos pelo princípio, pela decisão de criar uma nova moeda, vamos chamar-lhe o escudo. O governo, perante as dificuldades económicas, decide sair do euro e passar a usar o escudo como moeda nacional (ou, o que é o mesmo para os efeitos económicos e sociais, é expulso do euro). Manda então imprimir em segredo as notas e prepara-se para anunciar a grande novidade, numa 6ªf à noite, à hora do telejornal, quando os bancos já estão fechados. Nesse fim-de-semana, todos os bancos fazem horas extraordinárias para distribuir as notas por todos os multibancos, para que a nova moeda possa estar em circulação na 2ªf. O problema é que esta operação envolve milhares de pessoas, que transportam e distribuem as notas, e eles vão contar às suas famílias. E, de qualquer modo, toda a gente assistiu nas semanas anteriores a declarações dos ministros a explicar que isto vai muito mal e precisamos de decisões muito corajosas para salvar a Pátria em perigo. Em resumo, toda a gente percebeu o que vai acontecer. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 95 O que farão então as pessoas? Não é preciso adivinhar: vão a correr aos bancos levantar todas as suas contas e guardar as notas de euros. Se não o fizerem, todas as suas contas e poupanças vão ser transformadas em escudos, a um valor nominal que cairá com a forte desvalorização que, afinal, é o objectivo desta operação. Ou seja, as poupanças vão ser tão desvalorizadas como a moeda em que passam a estar registradas. Ora, os bancos não querem pagar aos clientes todos os seus saldos e poupanças, porque esta corrida irá arruiná-los. Não querem nem podem, pois simplesmente não têm o dinheiro para isso – nem há notas suficientes para cobrir toda a massa monetária líquida que existe em Portugal e os bancos aplicam os depósitos e não guardam esse dinheiro. Os bancos vão por isso fechar as portas quando se generalizar o alarme, e o governo vai chamar o exército para guardar os edifícios. Foi assim na Argentina, foi assim em todos os casos em que se anunciaram desvalorizações brutais (e nem se tratava de sair de uma moeda e criar outra, o que nunca aconteceu na história da União Européia), e não pode deixar de ser assim. A esquerda que defendeu a saída do euro começa então a ter a primeira dificuldade. É que vai defender o exército e os bancos contra a população. E vai ter de fazer a sua primeira vítima, os depositantes nos bancos. Contas certas: se a desvalorização for de 50% (Ferreira do Amaral calcula em 40%, outros em bastante mais), então as poupanças e depósitos dos trabalhadores vão perder metade do seu valor. Passou assim o primeiro choque. Mas vem aí mais, e pior. O escudo desvalorizou-se então 50% em relação ao euro. O governo e a esquerda nacionalista esperam que o efeito benéfico seja o seguinte: as exportações tornam-se mais baratas (porque os salários e os inputs produtivos ficam mais baratos) e aumentam, enquanto as importações tornam-se mais caras e são portanto reduzidas. Assim, haverá uma deslocação de capital para as indústrias e serviços exportadores, e uma redução do consumo e das importações, tudo melhorando substancialmente a balança de pagamentos. A regra é esta: se a vida melhorar para o Amorim, o dono da maior multinacional industrial portuguesa, também melhorará para toda a economia. Parece conveniente, mas é um problema. É que, com a desvalorização, o preço dos produtos importados aumenta no mesmo dia. O combustível passou a custar uma vez e meia o seu preço anterior (e todo o sistema de transportes também), e o mesmo aconteceu com os alimentos importados. Como dois terços do rendimento dos portugueses é para o consumo, imagina-se o efeito imediato destes dois aumentos de preços. Já por este efeito, o salário passou a valer muito menos. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 96 Quanto às exportações, sim, vão aumentar, desde que os compradores no estrangeiro queiram comprar mais em função da redução do preço (e desde que não haja recessão no estrangeiro, e que os produtos portugueses correspondam a mercados com procura crescente, e que as suas características acompanhem as exigências dos consumidores estrangeiros, etc.). Aumentam, mas devagar: as receitas das vendas só entram quando se fizerem as vendas, e é preciso esperar o tempo da produção e até do aumento da capacidade produtiva. Depois, uma parte do que exportamos, mais de metade, é importada e esses produtos ficaram mais caros. Por isso, as receitas das exportações aumentam pouco, devagar e mais tarde. Chega depois o segundo choque. Metade das famílias portuguesas tem uma longa dívida ao banco, que lhe emprestou dinheiro para comprar a casa. Emprestou em euros. E das duas, uma: ou, no dia da saída do euro, o governo aceita o que os bancos querem, que é que esta dívida seja considerada ao seu valor real, que é o do escudo desvalorizado, ou decreta, para proteger os devedores, que a dívida é transformada em escudos ao valor anterior à desvalorização. A diferença é decisiva tanto para os devedores como para o banco. No primeiro caso, os devedores multiplicam a sua dívida. Imaginemos quem tinha 50 mil euros de dívida, convertidos, ao escudo desvalorizado, numa dívida de 15 mil contos. Se o seu salário era de 1000 euros (que passa a ser de 200 contos… que valem só 500 euros) e se usava metade para pagar ao banco, precisava antes de 100 meses inteiros, com a corda ao pescoço, para pagar a dívida. Agora, precisará de 150 meses com as mesmas dificuldades, dando metade do seu salário ao banco. Perdeu cinco anos de vida. No segundo caso, em que o governo defende os devedores, quem tinha uma dívida de 50 mil euros passa a ter uma dívida de 10 mil contos… que valem 25 mil euros. O banco perdeu metade. O problema é que o banco vai à falência, porque criou um buraco gigantesco no seu balanço. É por isso que os defensores da saída do euro explicam, honestamente, que será necessário nacionalizar então todos os bancos, não tanto para socializar o capital financeiro, mas antes para o salvar. E salvar um banco custa muito, como já sabemos pelo caso BPN. Porque, quando se nacionaliza um banco, fica-se com as suas dívidas, que são dívidas a quem nele depositou e dívidas a quem lhe emprestou dinheiro, normalmente a banca estrangeira. Ora, essa dívida está em euros, mas o banco, falido e nacionalizado, vai receber as suas receitas e depósitos em escudos desvalorizados, para continuar a fazer pagamentos em euros. A sua dívida ao exterior subiu 50% do dia para a noite. Salvar os bancos tem um custo, e não é pequeno: é preciso pagar. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 97 Aqui temos a esquerda nacionalista a defender a banca e a pedir aumento de impostos para financiar a banca internacional. O trabalhador, cuja dívida foi protegida, tem de pagar por outra via, que são os novos impostos. Claro, os porta-vozes desta esquerda nacionalista podem dizer-me o governo deve simplesmente declarar que não paga as dívidas internacionais dos bancos que nacionalizou – mas, desculpem, de que governo concreto é que estamos a falar? Não era de Portugal, 2011? Estão à espera de pedir a nacionalização, se a desvalorização provocou o colapso dos bancos, e depois de apresentar como solução o corte com os credores externos, e esperar ao mesmo tempo ter um mercado aberto para as exportações que vão salvar a economia? Em resumo, a socialização do capital e ao mesmo tempo a aliança com os projectos exportadores de Amorim que sejam bem acolhidos em todo o mundo? Faço aqui um parêntesis para tornar clara a minha opinião numa questão ideológica: sim, estou certo de que a nacionalização do sistema financeiro é uma necessidade estratégica para a política socialista, porque o sistema de crédito deve ser um bem público. E estou também certo de que um governo de esquerda terá de enfrentar a resistência do capital financeiro, que é o seu principal adversário, e pode por isso ser forçado a um imperativo realista mesmo que inconveniente de nacionalização em más condições. Mas não deixo de pensar que deve fazer tudo o possível para ter as melhores condições, nomeadamente a nível internacional. O não isolamento internacional é uma questão de vida ou de morte para um governo socialista. Em todo o caso, para vencer é preciso ter a força necessária e, para que seja possível ter um sistema de crédito público que funcione, é preciso um tempo certo para uma política vencedora contra os especuladores. Ora, entendamo-nos bem, nenhuma das actuais discussões sobre a saída do euro é acerca de um hipotético governo de esquerda e desse tipo de situação. Por isso mesmo, o que importa agora são as relações de forças concretas, as que existem agora e as que podemos criar no contexto de uma resposta social muito mais forte contra a ditadura da dívida. É o que podemos fazer e o que vamos fazer, não um romance de ficção política. Fim de parêntesis. Voltemos agora aos problemas que a nossa esquerda nacionalista está a viver no apoio ao governo que decidiu a saída do euro. Já tem contra si quem vai pagar mais impostos ou viu multiplicar as suas dívidas, e paga mais pelos alimentos e pelos transportes, ou perdeu parte das suas poupanças. Com tudo isto, os trabalhadores depressa perceberão que perderam parte do seu salário (ou da sua pensão), e que o esforço orçamental não diminuiu (pelo contrário, agravou-se, pois a dívida vai ser paga em euros, mas os impostos são Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 98 recebidos pelo Estado em escudos), e a saúde e a educação têm novos cortes. Por tudo isso, o trabalhador vai lutar por recuperar o seu salário. Ora, isso pode deitar tudo a perder, dirá o governo. As exportações são mais baratas porque o escudo vale menos, o produto ficou mais barato, e porque as empresas pagam os salários em escudos. Se os salários subirem, a competitividade é de novo prejudicada. Que vai fazer a nossa esquerda nacionalista perante o protesto justo dos trabalhadores? A resposta é simples: não há problema, argumenta um dos arautos da esquerda nacionalista, basta um milagre, reúne-se a concertação social e convencemos os patrões a aumentarem os salários, compensando assim os trabalhadores pelo que perderam com a desvalorização. Imagine-se essa reunião da concertação: o país em alvoroço, motins à porta dos bancos, impostos e preços a subir, inflação de novo, salários a descer, e os patrões oferecem-se para sacrificar os seus lucros em favor do trabalho. A hipótese é tão interessante que dispensa argumentação. Por outras palavras, a esquerda nacionalista que defende a saída do euro meteu-se numa alhada monumental. Queria impedir a continuação da austeridade e nisso tinha toda a razão, mas propõe um sistema de mais austeridade, toda orientada para o benefício de um sector social, a burguesia exportadora, e aceitando a queda dos salários com a desvalorização do escudo. Não resolveu nenhum problema e só criou novas dificuldades. E perdeu a capacidade de uma orientação socialista, porque não pode ser levada a sério pelos trabalhadores que está a prejudicar. A política socialista tem um critério que é o da defesa da classe trabalhadora. Essa política é a que defende o salário e se bate por ele, e não a que sacrifica o salário e favorece a exploração. A solução autoritária de saída do euro é a proposta de mais austeridade. 3. O EUROPEÍSMO DE ESQUERDA É A REFERÊNCIA DA POLÍTICA SOCIALISTA Rejeito por isso estas duas propostas, o federalismo do Estado Europeu e o nacionalismo da saída do euro. Ambas procuram responder ao agravamento vertiginoso da crise mas conduzem a políticas autoritárias e austeritárias, que agravam a crise. Ora, porque a crise se precipita mesmo, isso não dispensa a análise e a correcção da nossa política. Sugiro que a nossa reflexão sobre a resposta necessária comece pelo princípio, pela natureza da crise que enfrentamos. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 99 3.1. Depois de trinta anos de crescimento medíocre A Segunda Guerra Mundial foi um momento culminante do século XX. Gerou massacres horrendos, de Auschwitz a Hiroxima. Mas, do ponto de vista da economia, foi também um processo de destruição radical de forças produtivas, trabalhadores e capital. E foi essa destruição que abriu as portas à reconfiguração do capitalismo moderno, a uma nova organização das potências, à estruturação de uma nova ordem monetária assente no dólar e, nos países mais desenvolvidos, à promoção do consumo de massas assente na generalização da produção em série. Foi somente com essa destruição gigantesca e com a reorganização que se lhe seguiu que se encerrou a grande crise de 1929. Vale a pena, então, registar um dado sobre esta crise: a recuperação da economia já então dominante, a dos Estados Unidos, demorou 25 anos – só em 1954 é que as Bolsas voltaram aos seus níveis anteriores ao crash. E foi precisa uma guerra e a definição de um novo mundo para que tal recuperação fosse possível. A chave da recuperação foi precisamente essa destruição massiva de forças produtivas e a configuração de um novo mundo para a acumulação de capital. Foi assim possível criar novos sectores industriais de crescimento rápido, novos mercados financeiros, novas multinacionais. Já assim acontecera no passado: o capitalismo industrial moderno tem-se desenvolvido por ondas longas, umas de crescimento e outras de crise, que duram décadas, e que definem a pulsação do processo de acumulação. Nos períodos longos de crescimento (como 1945-1974), as crises são raras, breves e superficiais, enquanto nos períodos longos de crise são frequente, duradouras e intensas (1974 até hoje). Em cada uma destas épocas do capitalismo a sua estrutura adapta-se. O impulso que a electrificação tinha dado à indústria e o papel motor da siderurgia, desde o final do século XIX, deu lugar ao novo impulso da motorização, dos derivados de petróleo e da química fina no período posterior à 2ª Guerra Mundial. Esse novo modelo produtivo constitui-se no quadro de novas relações sociais, de um novo contrato entre o trabalho e o capital, com regras que faziam do salário dos trabalhadores uma parte importante do consumo dirigido às empresas. Às constelações de novas tecnologias de produção em massa correspondia um arranjo institucional com o contrato de trabalho e um salário indirecto importante, através do acesso à segurança social e à saúde. Foi pelo crescimento da procura que se criaram os mercados de massas em que cresceu a economia capitalista durante os Trinta Anos Gloriosos do pós-guerra. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 100 Este sistema funcionou sem dificuldades de maior durante essas três décadas. Depois, esgotou-se, sendo o seu fim marcado pela segunda recessão generalizada do século, a de 1973-4. A partir daí, perdeu-se esta conjugação fácil entre o modo de funcionamento da produção e as suas instituições sociais, o impulso tecnológico esgotou-se, a margem de lucro fora reduzida sistematicamente e a acumulação e o investimento foram por isso postos em causa. Seguiram-se algumas décadas de crescimento medíocre, com recessões intensas e frequentes (1973-4, 1981, 1993, 2003, 2008-9). A rentabilidade do capital recuperou muito lentamente, mas a acumulação manteve-se a níveis excepcionalmente baixos. Essa é a situação actual. A criação de enormes mercados financeiros é a característica desta nova época do capitalismo – a que se tem chamado de “capitalismo tardio” – e em que os capitais disponíveis são colocados na especulação e não no investimento, gerando um sempre crescente “capital fictício”, como lhe chamava Marx, e que procura rentabilidades garantidas. É isso que explica tudo o que temos conhecido, desde a tentativa de privatizar a segurança social até às parcerias público-privado. Para relançar o crescimento, a burguesia procura criar uma nova economia com um novo regime social: a precarização da relação do trabalho, ou seja, o fim do contrato, para se adequar ao uso pleno dos novos sistemas de tecnologias de produção sofisticada com trabalho barato, o aumento da mais-valia absoluta (mais tempo de trabalho e menos salário) e a diminuição do salário indirecto (custo dos serviços públicos essenciais). Mas esse novo regime requer uma derrota fundamental do movimento popular que, apesar de muito desgastado por um prolongadíssimo desemprego estrutural, ainda tem capacidade de combate. É nele que nos apoiamos, ele é a nossa política realista. Está tudo em jogo. Bem sei que, como dizia Warren Buffet, o segundo homem mais rico do planeta, “há uma luta de classes, e é a nossa classe que está a ganhar”. Mas a nova sociedade ainda está a ser definida, e verdadeiramente o que mais surpreende, do ponto de vista histórico, não é tanto o seu avanço mas sim a extraordinária dificuldade que tem tido em se impor. Os 1% não conseguiram esmagar os 99% porque estes, quando a convocam, têm a força da democracia. Como os 1% têm mais poder, é contra eles que se deve dirigir o combate: a política da direita e da burguesia é desvalorizar o salário, a dos trabalhadores é desvalorizar o capital e defender o salário. O nosso confronto é com a finança, que é a dona da dívidadura. É Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 101 verdade, é um combate de época. E é por isso que não precisamos de ideias que dividem a frente da luta popular e criem confusão. Precisamos de clareza e mobilização. Precisamos agora, e não amanhã, de aliança grande para a luta pelo salário – a esquerda grande. 3.2. Europeísmo de esquerda e a luta contra a dívidadura Neste quadro, o que é que podemos fazer? Não podemos, ou não devemos, na minha opinião, alimentar o sonho reaccionário de um Estado Europeu – antes devemos combatê-lo – e não podemos nem devemos favorecer as ilusões nacionalistas de um rearranjo imaginário de alianças com o capital nacional para conduzir o país a uma solução autárcica, que devemos recusar. Pelo contrário, devemos propor soluções européias, que não desistam do que é essencial: uma aliança européia de esquerdas políticas e sociais para a luta contra a austeridade. Começo por isso pelo mais difícil, que é a Europa. Bem sei que, desde o definhamento dos Fóruns Sociais Europeus, não se tem conseguido refazer um dispositivo mínimo de resposta. O Partido da Esquerda Européia é muitíssimo limitado, como outras redes em que participamos; nunca conseguimos concretizar a nossa proposta de um grande congresso dos movimentos sociais e políticos europeus; e os partidos de esquerda do Norte da Europa receiam os efeitos eleitorais de defenderem o povo grego contra o estrangulamento da dívida e nem querem ouvir falar de uma greve européia. Devemos por isso explorar, com os nossos aliados, a ideia de recuperar o Fórum Social – ou de abrir as portas a uma nova forma de rede global –, talvez de o reunir em Espanha, com os movimentos dos Indignados, para lançar uma agenda europeia para a luta contra a austeridade. E, com eles, manter os objectivos essenciais que definem o europeísmo de esquerda que temos vindo a defender: A obrigação do BCE comprar dívida soberana de cada Estado, O lançamento de obrigações europeias mutualizando parte da dívida, A desvalorização do euro para aliviar as economias, A tributação do capital e o fim dos offshores, O reforço do orçamento europeu para um plano de criação de emprego, A reestruturação imediata da dívida da Grécia, em prejuízo dos bancos credores. Não será fácil criar movimento com estes objectivos políticos. Mas, hoje, as possibilidades são maiores do que há um mês atrás. São essas possibilidades que nos interessam e acho Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 102 que devemos levar muito a sério, dedicando esforços sérios para que esta orientação se concretize. Não tenho dúvidas de que podemos e temos de fazer mais neste sentido. Mas o que dizemos sobre a Europa, para ser realista e como sugeri atrás, é proposta, é convite e aproximação a outras esquerdas, mas não é certamente onde temos a maior capacidade de confronto político. Onde temos mais força é no que depende de nós. Se for possível ter um fórum europeu de algum tipo, que junte movimentos e que crie agenda política, então avançaremos para um patamar novo, como queremos. Em todo o caso, essa perspectiva não interfere com a nossa disputa taco-a-taco com o governo e o plano da troika, a dívidadura. E é nela que temos de acertar posições. Em primeiro lugar, rejeitamos a idéia de que não existem alternativas ao plano da troika. E devemos tomar a contra-ofensiva nesse campo. Já é possível fazê-lo porque a vertigem da mudança da percepção popular é estimulada por esta violência orçamental do corte dos subsídios de férias e de Natal. Depois do 15 de Outubro e da convocação da greve geral CGTP-UGT, a situação começa a mudar. Exige-se por isso mais ofensiva, sacudir a letargia social, ganhar iniciativa. Assim, o nosso argumento deve ser: Portugal precisa de recusar o plano da troika, porque ele significa empobrecimento e desemprego para no fim ter mais dívida. O fim da tutela da troika é a condição para a democracia poder decidir. Toda a política depende de aceitar ou recusar a troika. É ela que define todo o nosso quadro de diálogos, convites e alianças. A alternativa imediata é recuperar a capacidade de criação de moeda, e o Estado pode fazê-lo através do banco público, da capitalização da CGD e do efeito multiplicador que pode ter uma injecção de liquidez em investimento para o emprego, criação de novas indústrias, exportações e sobretudo substituição de importações. Essa liquidez não deve ser usada em crédito ao consumo ou à habitação, porque assim se criaria mais dívida, e devia ser gerida por um banco da CGD para o fomento industrial. Esse é o estrangulamento imediato da economia portuguesa e é assim que se pode vencer a crise, com a criação de emprego. Uma palavra mais sobre a criação de moeda. Esta é uma alternativa concreta à saída do euro e à desvalorização do escudo, e tem a enorme vantagem de não atingir os salários e rendimentos do trabalho, permitindo pelo contrário o aumento da actividade económica com Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 103 custos de crédito mais baratos, orientados para a produção e portanto com mais possibilidade de equilibrar a balança externa. Devemos apresentar um plano para o emprego, indicando os sectores em que é possível desenvolver a economia: criar emprego em novos sectores estratégicos, investimento público, reduzir em meia-hora o horário de trabalho, proibir as demissões em empresas com resultados, etc. Defendemos, como sempre, uma revolução fiscal que se baseie na tributação do capital e do dos valores elevados de patrimônio. Mas podemos e devemos levá-la mais longe. Em segundo lugar, e porque a apresentação de alternativas deve conduzir ao confronto social, é na luta contra a dívida que nos devemos concentrar. Assim, sugiro a seguinte orientação: A idéia da renegociação da dívida deve assumir uma forma mais concreta: reestruturação. Ou seja, anulação de uma parte da dívida. A proposta, que tinha razão e ganhou força, é até cada vez mais apoiada por economistas diferentes, e mesmo por políticos de outras opiniões. Mas já está em segundo plano, porque respeita mais ao argumento do que ao movimento. No movimento social e na disputa directa, o centro deve ser a auditoria à dívida. E toda a clareza: a auditoria faz-se para recusar toda a dívida abusiva. Isso mesmo, serve para recusar pagar a dívida abusiva. Esse é o “não pagamos” que tem coerência. Atacar os credores onde eles são mais fracos, porque culpados. Exemplos: • Nas últimas emissões de dívida, foram cobrados juros acima dos custos reais, em função de taxas punitivas e especulativas. Recusamos essa dívida, que serão alguns milhares de milhões de euros, e não pagamos. • As contrapartidas de material militar foram anuladas pelo credor, que era o Estado português. São quase 3 mil milhões de euros que foram perdidos sem caso judicial. • A dívida dos 78 mil milhões paga 30 mil milhões de juros. Quase 20 mil milhões são juros abusivos. Etc. Um novo parêntesis aqui: a proposta de “suspensão” do pagamento da dívida é uma solução envergonhada, que devemos recusar. Aliás, é um disfarce de uma proposta que não tem a coragem de se enunciar: como explicou a FER recentemente em reunião interna do Bloco, é uma forma pusilânime de dizer “saída do euro”, mas sem o dizer. A “suspensão” Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 104 é, por outro lado, uma imitação mal pensada das alternativas latino-americanas: a Argentina suspendeu o pagamento da dívida e fez muito bem, porque pagava uma dívida excessiva a credores que já não lhe emprestavam há mais de um ano. Mas esse não é o caso português. Na realidade, o Estado português não está agora a pagar dívida – é o plano da troika que paga a dívida toda, e só dentro de uns anos Portugal começa a pagar essa dívida reciclada. Por isso, a “suspensão” não suspende nada e tem medo de dizer o que é preciso, que há uma dívida que não deve ser paga. A “suspensão” uma resposta direitista que devemos recusar. Fim de parêntesis. Temos de virar o debate sobre a dívida. E falar também da outra dívida. É o mais difícil, mas é o mais importante, porque aponta o alvo que importa, o capital financeiro. Falamos por isso da dívida que importa: o que eles nos devem, o que o capital deve aos contribuintes, aos trabalhadores, ao povo: • O que levaram nas privatizações abusivas dos monopólios naturais e bens públicos, • O que transferiram para offshores sem pagar imposto (6,6 milhões por dia este ano), • Os dividendos e lucros que se fizeram pagar quando eram financiados pelo Estado, • Os impostos por pagar, particularmente da banca, • O que gastaram nos submarinos e outras despesas injustificadas, • O que querem receber das parcerias público-privado, a grande fatia da dívida escondida do Estado. Essa dívida não pode sair do nosso discurso, ela é o centro da luta contra a dívidadura. Esta orientação tem uma idéia nuclear: sim, chama-se resistência. Mas, se a única alternativa à resistência que quer criar movimento social é procurar uma fantasia – o nacionalismo, o capital exportador, ou o federalismo de António José Seguro – então é preferível mesmo fazer resistência. Como sempre, empenhamo-nos na resistência com uma perspectiva européia e procuramos pontes para que ela seja luta européia. E, no plano nacional, não aceitamos o acantonamento de resistência de trincheira, porque queremos que seja alternativa de governo, proposta de liderança para o país, luta global, acção imediata, presença de rua. E, se é política a sério, discutamos que interessa na política: as alianças. O federalismo serviria para nos juntarmos ao PS. Mas, com franqueza, que diferença haveria então entre Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 105 essa esquerda e as imposições autoritárias da Merkel com o “semestre europeu”? Como poderíamos recusar a submissão dos orçamentos nacionais à inspecção e decisão de Berlim, que afinal é o modelo desejado do Estado federal? Quanto ao nacionalismo, juntarnos-ia com o PCP, que por agora ainda mal balbucia a idéia da saída do euro, com pés de lã, porque sabe o temor que isso provoca entre os trabalhadores, escaldados de desvalorizações e inflações. E juntaria ainda alguns economistas respeitáveis. Os principais beneficiários dessa estratégia, o capital exportador, fogem certamente da idéia como o diabo da cruz. Isto é, não serve para nada senão para dar voz ao desespero. Em contrapartida, uma plataforma de luta contra as medidas de austeridade permite falar com a maioria destes sectores, junta todos, de franjas do PS ao PCP, ao movimento sindical, aos indignados da rua. É nessa luta, e só nela, que se pode erguer o nosso objectivo estratégico: punir o capital, defender o salário. A greve geral que foi hoje convocada é uma boa prova provada desta política. Ela não tem como objectivo qualquer sonho do Estado Europeu, nem muito menos a exigência da saída do euro. Nem podia, pois não? Tem a plataforma sensata que junta mais gente, a da rejeição dos cortes dos subsídios ou dos aumentos dos impostos, a defesa do salário e de uma política de emprego. Chama-se resistência e responde pelo país – é a luta pela hegemonia e cria acção social. É nessa acção que se aprende e que se erguem alternativas. Como dizia alguém, é sempre da prática que vêm as idéias justas. Vamos à luta. Fonte: www.sin permiso.info 17/10/2011 ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online Outros Temas O TERREIRO E A CIDADE: Ancestralidade e territorialidade nas disputas pelo espaço público56 THE YARD AND THE CITY: Ancestry and territory in dispute of public space Ronaldo Sales Jr. Universidade Federal de Campina Grande Resumo Os movimentos sociais negros incorporam em suas narrativas políticas as comunidades religiosas de matriz africana como parte das lutas de emancipação negro-africana no Brasil. A identidade “negro-africana” articula as diversas identidades sociais, políticas ou religiosas do campo afro-brasileiro. A ancestralidade, como relação entre “negritude/africanidade”, converte-se em lugar de uma tensão inerradicável, conformando as demandas das comunidades religiosas afro-brasileiras como religiões “territoriais” em sua luta pelo uso do espaço urbano. O “retorno à África” é um modo de territorialização diaspórica do espaço urbano, influenciando a organização política dos grupos religiosos, a formulação de suas demandas sociais e a implantação das políticas públicas. Contudo, a construção dessas demandas e das políticas se dá fortemente influenciada pelos discursos políticos dos movimentos sociais negros e do Estado. A demanda política das religiões não é a mera 56 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor Adjunto I da Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: [email protected]. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 107 expressão política de sua "natureza territorial", muito menos, a formulação e a implantação das políticas são a mera transferência dessa demanda para o campo do Estado. Há transformações significativas que ocorrem nos percursos de constituição da representação política de uma identidade religiosa, transformações que têm um efeito de feedback sobre essa última. Palavras-chave: relações étnico-raciais, ancestralidade, movimentos sociais negros, espaço urbano, políticas públicas. Abstract Black social movements involve religious communities of African origin in their political narratives as part of the Black-African emancipation fight in Brazil. Black-African identity engages several social, political and religious identities, from the Afro-Brazilian field. Ancestry considered as a relationship between being black and having African origin becomes an ineradicable tension, making the demands from afro-Brazilian religious communities “territorial” religions in their fight for urban space. The “return to Africa” is a form of diasporic territorialisation of the urban space, influencing the political organization of religious groups, the formulation of their social demands and the implantation of public politics. However, the formation of such demands and of politics is strongly influenced by political speeches of the black social movements as well as by the State. The political demand of religions is not a mere political expression of its “territorial nature”, nor is their formulation and implantation a mere transfer of such demand to the field of the State. There are relevant transformations that occur during the constitution of political representation of a religious identity, transformations that have a feedback effect over the transformation. Keywords: Race and ethnic relations, Ancestry, Black social movements, Urban space, Public politics. 1. INTRODUÇÃO Na primeira metade do século XX, no Brasil, durante o período de crise da recém-formada República brasileira, consolidou-se, através do “mito das três raças” e do “mito da democracia racial”. Um projeto hegemônico que alcançou a capacidade prática e imaginária de transcender o horizonte de uma determinada classe ou grupo social, interpelando, assim, uma vontade coletiva nacional-popular, como protagonista de um efetivo drama histórico: o povo brasileiro, fruto da miscigenação, do sincretismo, da mistura cultural. O movimento modernista e, em especial, o regionalista propunham uma reforma cultural como expressão do nacional-popular, da cultura popular. Nestes autores ou artistas Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 108 (Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Câmara Cascudo...), o projeto nacional passava por uma recomposição popular. Foi neste contexto que a cultura afro-matricial foi transformada em cultura popular ou folclore, e, só então, em cultura brasileira. Foram sublinhadas as redes de intercâmbio, empréstimos, condicionantes recíprocos, redefinidas fronteiras e identidades. O popular era definido por uma série de características internas e por um conjunto de conteúdos tradicionais, anteriores à industrialização e à massificação da cultura. Na folclorização, ocorre a redução 1) da diversidade das culturas populares (afro-matriciais, indígenas, nordestinas...) à unidade da “arte”, da “música” e da “culinária” nacionais; 2) dos processos sociais (p. ex. relações raciais) aos objetos ou aos produtos que adquiriram em épocas passadas. Portanto, a cultura afro-matricial, como cultura popular, é associada ao não-moderno e “museificada”, congelada no tempo, ou atualizada, “modernizada” como cultura brasileira. Separa-se, assim, numa oposição político-cultural, o popular, “tradicional”, fixo, ultrapassado, particular, pura memória ou sobrevivência, do erudito, “moderno”, dinâmico, ultrapassagem, universal, puro progresso ou vivência. No campo político, o populismo converge com esta tendência acadêmica ou intelectual. A concepção “estatista” do populismo varguista buscou fazer com que as classes ou grupos acreditassem que o Estado condensa os valores populares ou nacionais, conciliando os interesses de todos e arbitrando seus conflitos. A cultura brasileira se tornou o grande espaço de integração subordinada do “negro”. Primeiramente, não foi toda e qualquer expressão cultural, mas, sobretudo, a cultura popular ou não-erudita, em especial, as formas que utilizam expressão não-verbal, como as artes plásticas, a dança e a música que foram “incorporadas” ao patrimônio cultural brasileiro. Essa forma de integração foi reforçada pela participação do “negro” em esportes importantes para a cultura e identidade nacionais como o futebol. Estes processos permitiram valorizar a contribuição do “componente” negro para a cultura nacional, mas fechando o acesso a formas de discurso verbal (e escrito) próprias aos espaços públicos de deliberação e intervenção políticas. A integração subordinada das pessoas negras se deu pela “espetacularização do corpo negro” nos espaços públicos politicamente “neutros”, pelo menos nos moldes da política estatal moderna. A população negra tinha acesso ao palco, mas não ao palanque. Todavia, as forças de emancipação negra buscaram fazer da cultura o espaço da resistência e da luta contra-hegemônica (inclusive, questionando as formas modernas de Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 109 fazer política, centradas no lingüístico57), numa verdadeira guerra de posição, na religião (sincretismo católico e afro-brasileiro), na música (reggae, hip-hop, maracatu, MPB...), na capoeira... 58 As expressões da cultura popular negra não são, necessariamente e intrinsecamente, formas de resistência contra o poder, ou manifestações contrahegemônicas, mas podem ser simples recursos populares para resolver seus problemas ou organizar suas formas de vida à margem ou nos interstícios do sistema hegemônico, sem colocá-lo em questão, ou, enfim, podem representar, sobretudo, a ambigüidade, o caráter não resolvido das contradições e antagonismos das classes ou grupos subalternizados, modalidades de auto-afirmação conservadora (populismo, interesses corporativistas, fundamentalistas ou tradicionalistas). Os movimentos de afirmação da cultura negra, ao afirmarem o que há de negro na cultura, misturam o autônomo com a reprodução da ordem imposta, não podendo ser situados no quadro de uma polarização extrema usada apenas para apontar confrontações, antagonismos. É esta “passagem para o político” ou “decisão ética” que rearticula os elementos demarcando novas fronteiras sobre a superfície dos corpos. A resistência é, pois, árduo processo de reelaboração do próprio e do alheio, de seleção e combinação, para se proteger e se desenvolver em condições que os grupos subalternizados não controlam. Tal processo exige, freqüentemente, transações entre o hegemônico e o subalternizado. 59 No plano ideológico, a transação aparece como a tendência a incorporar e valorizar positivamente elementos produzidos “fora” do grupo (critérios de prestígio, hierarquias, desenhos e funções dos objetos), sem questionar o sistema de dominação. Por vezes, a transação é uma forma de obter certa reciprocidade dentro da subordinação, sendo tão assimétrica que supõe não apenas o não questionamento, mas, sobretudo, a aceitação da problemática e sua “solução” nos termos estabelecidos pelo discurso hegemônico. As próprias identidades, sendo relacionais, acabam por depender do processo de transação. Por outro lado, este processo pode se dar uma afirmação essencialista dos elementos “internos” ao grupo (ancestral, tradicional, próprio, “africano”, “negro”), excluindo tudo que há de “estranho”. É neste duplo registro, ou como o chama Gilroy (2001), nesta dupla consciência, que se efetiva uma política de 57 “A música, o dom relutante que supostamente compensava os escravos, não só por seu exílio dos legados ambíguos da razão prática, mas também por sua total exclusão da sociedade política moderna, tem sido refinada e desenvolvida de sorte que ela propicia um modo melhorado de comunicação para além do insignificante poder das palavras – faladas ou escritas” (GILROY, 2001: 164). 58 “Não é nada novo declarar que para nós a música, o gesto e dança são formas de comunicação, com a mesma importância que o dom do discurso. Foi assim que inicialmente conseguimos emergir da plantation (...)” (Eduardo Glissant apud GILROY, 2001: 162). 59 O hegemônico e o subalternizado não são propriedades intrínsecas das práticas, mas modalidades, ambíguas e transitórias, dos conflitos em se articulam, pólos de uma relação variável. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 110 autenticidade numa relação tensa com uma política de reconhecimento (cf. HONNETH, 2003). As religiões afro-matriciais tiveram e têm um papel peculiar neste processo. De um lado sempre se apresentaram, em um contexto de forte hegemonia da religião católica, como práticas reprováveis e criminalizáveis, presente nos preconceitos populares e nos sucessivos Códigos Criminais nacionais como “macumba”, “curandeirismo”, “feitiçaria”, “espiritismo”. O que, porém, não impediu que vários de seus elementos se misturassem, ou “sincretizassem” com práticas, valores e crenças, religiosas ou seculares, regional ou nacionalmente valorizadas. Isto certamente se deu através de uma ação de deslocamento e ressignificação daqueles elementos, principalmente, em sua “contribuição cultural”: a religião “negra” como matriz cultural e histórica, objeto de estudo antropológico e histórico. Por outro lado, mantiveram uma relação igualmente polêmica e conflituosa na constituição dos discursos dos movimentos sociais negros. Em alguns de seus setores, por exemplo, as religiões de matriz africana apresentam-se como um histórico espaço de resistência política e cultural, porém não o único ou o mais importante. Tais setores, ademais, lutam pela valorização desta história e pelo pleno cumprimento do direito de liberdade de confissão religiosa como parte de um projeto de consolidação de um Estado verdadeiramente republicano e laico. Outros setores, porém, vêem nas religiões de matriz africana, um componente indispensável ou de grande importância para a identidade negra, reivindicando políticas públicas de proteção e promoção das religiões “negras”. Tentam desvencilhar-se de uma abordagem culturalista ou folclorizadora de tais confissões religiosas, porém, defendendo-as como religiões oficiais do “povo negro”. Qualquer outra confissão assumida por uma pessoa negra é tida como efeito de um processo de branqueamento. Em especial, apesar de majoritariamente formadas por pessoas negras, no caso das confissões pentecostais, católicas ou evangélicas, que adotam uma postura ofensiva contra as religiões de matriz africana. Tais antagonismos (“internos” ou “externos”) são importantes para entendermos os processos de articulação dos discursos políticos dos movimentos sociais negros, na delimitação de suas fronteiras e na constituição de sua identidade. Os movimentos sociais negros incorporam em suas narrativas políticas as comunidades religiosas de matriz africana como parte relevante das lutas históricas de emancipação negro-africana no Brasil, um mito de origem que define uma ancestralidade difusa. A identidade “negro-africana” implica a equivalência entre as diversas identidades sociais, políticas ou religiosas do campo afro-brasileiro. A ancestralidade, como relação entre “negritude/africanidade”, se converte em lugar de uma tensão inerradicável. A agenda “negra” constitui-se, então, da conjunção de duas estratégias política: a) a valorização da Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 111 religião afro-matricial como patrimônio histórico e cultural regional, nacional e internacional (diaspórico), considerada parte de uma política de reparação ou de promoção da igualdade racial; b) a luta contra a intolerância religiosa, tida como uma modalidade da discriminação étnico-racial. Tais processos se dão constituindo um “mito ético-político” que estabelece uma articulação contingente, instável e tensa, por um lado entre “negritude” e “africanidade” e, por outro, entre “raça” e “cultura”, cuja ambigüidade revelaria a abertura de sentido do discurso político dos movimentos sociais negros e sua tentativa de controlar o deslizamento de sentido. Ou seja, a instabilidade semântica de seu próprio discurso e de seus adversários políticos. Aquela instabilidade torna ambígua e problemática as próprias identidades e divisões entre esses atores sociais. Trabalhamos com a hipótese da relação significativa entre as demandas das comunidades religiosas afrobrasileiras como religiões “territoriais” e a luta pelo uso e ocupação do espaço urbano e pelo direito à cidade. A constituição desses sujeitos políticos, mediante suas demandas sociais, está relacionada à dinâmica populacional, ao desenvolvimento urbano e à segregação espacial de cidades como Recife, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. O “retorno à África” é um modo de territorialização diaspórica do espaço urbano, físico e simbólico, num contexto de segregação espacial e antagonismo social. Essa dinâmica influenciará a organização política dos segmentos religiosos dos movimentos sociais negros, a formulação de suas demandas políticas. A "territorialidade" dessas religiões, por exemplo, influencia o perfil das demandas sociais e das políticas públicas implantadas. Contudo, a construção daquelas demandas e das políticas se dá fortemente influenciada pelo discurso político dos movimentos sociais negros e do Estado. Ou seja, a demanda política das religiões não é a mera expressão política de sua "natureza territorial", muito menos, a formulação e a implantação das políticas são a mera transferência da demanda para o campo do estado. Há transformações significativas que ocorrem nesse percurso de representação política de uma identidade religiosa, transformações que têm um efeito de "feedback" sobre essa última. Por conseguinte, é preciso evidenciar o papel que as religiões afro-matriciais, em especial, o candomblé, tiveram e têm neste processo, indagando, assim, sobre os vínculos estabelecidos ou contestados entre a experiência identitária dos movimentos religiosos afrobrasileiros e os valores e práticas republicanos e democráticos como o pluralismo e a tolerância. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 112 O conteúdo das demandas sociais, assim constituídas, implica não apenas a elaboração de uma carência ou desejo, mas, também, a designação de um agente social, a delimitação de um espaço de referência, um território diaspórico (geopolítico: terreiro, África, cidade etc.), e um repertório de ações consideradas legítimas e vistas como adequadas à natureza das demandas e dos agentes (cf. BURITY, 1997:12). Constitui-se, assim, uma “agência” que será considerada como fator ativo e importante dos processos de “modernização” e “democratização” da república brasileira e de desenvolvimento urbano das metrópoles brasileiras. Os atores religiosos afro-brasileiros, neste contexto, devem ser abordados em, pelo menos, três aspectos: (a) como elemento do discurso identitário dos movimentos sociais negros na formação da agenda pública brasileira; (b) como sujeitos políticos autônomos envolvidos (stake holders) na formação da agenda pública; (c) como conteúdo ou objeto das políticas públicas. No presente artigo, pretendemos dar conta inicialmente apenas do primeiro aspecto, introduzindo algumas pistas sobre o segundo. Em outro lugar buscaremos desenvolver melhor tais aspectos e sua relação com o terceiro aspecto (cf. SALES JR, 2009 e 2011). 2. A PARTICIPAÇÃO NEGRA NA FORMAÇÃO URBANA Parte da história da escravidão atlântica foi vivenciada em paisagens urbanas ou semiurbanas: Buenos Aires, Caracas, Charleston, Nova Orleans, Nova York, Cidade do México, Guayaquil, Havana, Lima, Montevidéu, Port-au-Prince, San Juan, Santo Domingo, Porto Alegre, Porto Belo, Vera Cruz, Olinda, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís, entre tantas outras, que se constituíram em sociedades escravistas urbanas, entre os séculos XVI e XIX (ARAÚJO et al., 2006, p. 9-14). Africanos/as e seus/suas descendentes foram importantes personagens dos mundos do trabalho e da cultura urbana do século XIX. Inventaram territórios urbanos e diásporas, redefinindo identidades. Em várias sociedades escravistas e mesmo naquelas onde havia africanos escravizados, surgiram espaços sociais com considerável concentração de população afro-descendente, entre livres, libertos e escravizados. Mesmo quando não havia ainda Argentina, Colômbia, Uruguai ou Brasil como Estados nacionais soberanos, destacavam-se, tais territórios negros, em várias sociedades em formação. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 113 No século XIX, Brasil e Cuba eram sociedades escravistas com altos índices de população negra (as pessoas chamadas pretas e pardas) livre, e destacam-se os cenários urbanos em que viviam. Mas números, censos e estimativas ainda são incompletos. No Brasil, em 1798, pessoas pardas e pretas livres somavam 406 mil, enquanto pessoas pardas escravizadas 221 mil e pretas escravizadas 1.361 mil. Em várias regiões, principalmente nas cidades, com base no censo de 1872, destaca-se a força demográfica (absoluta e relativa) da população negra, juntando africanas/os, crioulas/os, pardas/os e pretas/os, livres e escravizadas/os. Entre os principais “cidades negras” aparecem nessa ordem: Salvador, Recife, São Luís e Porto Alegre. Em 1872, na freguesia urbana da Sé, Salvador, pardos/as e pretos/as constituíam 68% da população, enquanto os/as escravizados/as somavam 20%. Em Pernambuco, em 1827, os/as escravizados/as eram cerca de 30%. Já em 1855, esse percentual caiu pela metade. Para o município de Recife, em 1872, com onze freguesias, as/os escravizadas/os representavam apenas 13%, porém somadas/os aos pardos e pretos livres atingiam 56,4% de toda a população. Na cidade de São Luís, no Maranhão, com cinco freguesias, as/os escravizadas/os eram 22,2%. No geral, pardos/as e pretos/as constituíam 51,5% de toda a população livre do município de São Luís. Na província do Ceará, a principal freguesia urbana de Fortaleza tinha 35% de escravizados/as. 3. TERRITÓRIO AFRO-DIASPÓRICO: O CONTEXTO URBANO E AS DESIGUALDADES ÉTNICO-RACIAIS CONTEMPORÂNEAS Segundo Ricardo Henriques (2001), ao longo da década de 1990 houve, para o todo do país, uma melhoria dos indicadores habitacionais. A proporção de domicílios que não possuem acesso à energia elétrica, coleta do lixo, abastecimento de água e escoamento sanitário sofreu, em relação aos níveis do ano de 1992, uma queda de, respectivamente, 53%, 39%, 35% e 18%. A proporção de domicílios construídos com material não durável diminuiu em aproximadamente 31%, enquanto a proporção de domicílios localizados em terreno não próprio se reduz também em 30%. Finalmente, a proporção de domicílios com alta densidade habitacional diminuiu em cerca de 27%. A melhoria dos indicadores habitacionais em termos percentuais, no entanto, não pode ocultar o fato de que o nível absoluto de alguns desses indicadores permanece extremamente elevado em 1999. A análise desagregada em termos raciais confirma a tendência nacional, posto que as condições de vida expressas por intermédio dos indicadores habitacionais melhoram tanto para a população branca como para a população Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 114 negra. No entanto, considerando a intensidade da evolução relativa dos indicadores habitacionais ao longo do período analisado, vemos que a velocidade de melhoria é maior — e por vezes significativamente maior — para os/as brancos/as, em todos os indicadores. Ou seja, apesar da melhora nos indicadores habitacionais da população negra, a desigualdade racial entre negros/as e brancos/as vem aumentando. A única exceção referese ao indicador do material utilizado na construção do domicílio, em que o nível absoluto de precariedade é particularmente baixo. Portanto, não se pode compreender a formação econômica, política ou cultural das principais cidades brasileiras sem entender sua composição e as suas relações étnicoraciais. A história dessas cidades e seu desenvolvimento urbano têm nas relações étnicoraciais, em especial, entre as pessoas brancas e negras, decorrente de uma formação histórica (pós)colonial, um dimensão característica. Mas, também, a história das relações étnico-raciais das cidades brasileiras apresenta-se como importante para compreender a formação do modelo racial brasileiro. Os processos de urbanização, no entanto, não se conciliam com a organização dos “espaços negros”, que estrutura tanto pela forma como pela condição subalterna que a população negra foi e é submetida ao longo de séculos. Ademais, as teorias urbanísticas e as metodologias de estudo sobre o espaço urbano não levam em conta as características étnico-raciais das/os afrodescendentes e as especificidades geradas pelo seu histórico e pela sua cultura, criadores de seu espaço urbano, desconsiderando a questão da integração dos espaços negros nas cidades. As pessoas negras sofrem um conjunto de desvantagens socioeconômicas cumulativas que se consubstanciam em condições de habitabilidade em média inferior àquela das pessoas brancas. A questão étnico-racial, pois, constitui uma variável fundamental para a compreensão e enfrentamento da lógica de produção e reprodução da pobreza e da exclusão social, em geral, e das desigualdades urbanas, em particular. Nesse contexto, o terreiro, como moradia auto-construída das camadas populares, é, de certo modo, o abrigo contra as tempestades do sistema econômico; é o espaço onde se arquiteta a chamada estratégia de sobrevivência; e o lugar de assentamento do sagrado, de depósito de axé. Como solução habitacional que abriga o sagrado e o profano, o templo e a casa, os orixás e as pessoas, o terreiro, após determinado momento, pode representar um dispêndio monetário extremamente baixo por parte da família proprietária, restrito aos gastos de manutenção da moradia e do axé. Ademais, o candomblé é o que podemos Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 115 denominar de “religião territorial”, ou seja, os espaços sagrados ou rituais se estendem para além do espaço do terreiro ou ilê ocupando o território circunvizinho: linha cruzada, encruzilhada fechada, cruzamento de praia, terreiro, assentamento, ir ao chão, isolar, cruzar, abrir os caminhos são parte de noções espaciais, por meio da qual se constrói toda uma cartografia. A territorialização não se define como um mero decalque da territorialidade animal, mas como força de apropriação exclusiva do espaço (resultado de um ordenamento simbólico) capaz de engendrar regimes de relacionamentos, relações de proximidade e distância. (...) O território aparece assim como um dado necessário à formulação de identidade grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros (SODRÉ, 1988: 13-14). Segundo Wilson Roberto de Mattos (apud PARÉS, 2006:138), a concepção de territorialidade/territorialização não está restrita à análise da ocupação de determinados espaços físicos, mas “refere-se sobretudo à ocupação de espaços sociais de alcance mais amplo singularizando-os através de injunções simbólico-culturais”. A territorialização, no candomblé, é parte do complexo ritual “sacrifício-oferenda”, diferenciando-o de outras religiosidades afro-matriciais e cristãs. O objetivo dos rituais do candomblé, dentre outras coisas, é territorializar o axé, nos assentamentos, nos ebós etc. Territorializar não é meramente ocupar um espaço físico, mas assentar axé, conectando espaço e tempo (ancestral), físico e simbólico. Pertencemos a um território, não o possuímos, guardamo-lo, habitamo-lo, impregnamo-nos dele. Além disso, os viventes não são os únicos a ocupar o território, a presença dos mortos marca-o mais do que nunca com o signo do sagrado. Enfim, o território não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas ao ser. Esquecer esse princípio espiritual e não material é se sujeitar a não compreender a violência trágica de muitas lutas e conflitos que afetam o mundo de hoje: perder seu território é desaparecer (BONNEMAISON e CAMBRÈZY apud HAESBAERT, 2007, p.51). Segundo Segato (2007), o ritual afro-americano diaspórico tem o poder de transmutar seu cenário em território africano, de transportar de volta à África, pelo assentamento do axé ou substância mágica de seus ancestrais. A comunidade completa dos vivos, dos ausentes e dos ancestrais mortos converge e se reencontra ali, invocada pelo repertório de canções Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 116 rituais que os interpela um a um. Assim, a cidade é atravessada por linhas, superfícies e espaços sagrados que demarcam os fluxos de axé. Em conseqüência, o candomblé é altamente sensível a processos de urbanização intensa, de deslocamento forçado ou que impliquem em alto impacto ambiental. Processos estes que exigem amplas readaptações simbólicas das casas de axé ou podem levar à sua extinção. Historicamente, o acesso dos novos cultos que originariam o candomblé ao território e sua ancestralidade foi limitado pelas relações de produção e apropriação do espaço social, físico e simbólico. O acesso ao ambiente natural não se daria mais em território próprio de uma comunidade política ancestral, mas em território ocupado e colonizado, mediante uma estrutura agrária e urbana onde se realizaria um controle estrito do acesso à terra como forma de dominação social. O culto dos orixás passou de ideologia hegemônica de reinos ou impérios soberanos à seita minoritária praticada por segmentos de classes populares. No encontro e confronto com a cultura ibérica e o catolicismo hegemônico, o candomblé constituiu-se como uma instituição religiosa “periférica” e socialmente marginal, como discurso cultural paralelo e por vezes contra-hegemônico (PARÉS, 2006:127). Restavam as áreas de risco, os alagados, os terrenos insalubres, pouco férteis, sem qualquer interesse econômico ou político, áreas arrendadas ou alugadas, em especial, em terras com alta densidade demográfica, de acelerada e desorganizada urbanização nas cidades litorâneas. Em razão desse racismo ambiental 60 , a posição destas pessoas no espaço determinava, por exemplo, quantitativa e qualitativamente, suas capacidades de produzir e consumir, ou seja, de reproduzir seus modos de vida. Aquelas forças sócioambientais eram extremamente seletivas tanto quanto à forma quanto aos efeitos, não se difundindo homogeneamente através do espaço operacional do território brasileiro. Esta mudança ou variação de forças produziu instabilidade na organização espacial, com freqüentes desequilíbrios e reajustamentos. 60 O racismo ambiental ocorre quando determinados setores da população assumem uma carga desproporcional dos efeitos da degradação ambiental. O racismo ambiental refere-se a qualquer medida pública ou privada que tenha efeitos no meio ambiente que desfavoreçam desproporcionalmente, de forma deliberada ou não, a determinados indivíduos, grupos ou comunidades, com base em sua identidade étnico-racial. Os setores vulneráveis da população, em razão de discriminação étnico-racial, são freqüentemente os mais afetados pela contaminação ambiental já que são os que têm menos oportunidade de mobilizar-se contra estes abusos. Em geral, os grupos vulneráveis habitam próximos das áreas contaminadas ou em zonas onde se conduzem importantes projetos públicos que levam a graves danos ambientais; vendo-se obrigados a viver em condições ambientalmente perigosas, forçadas a mudar-se ou sofrer o impacto da degradação ambiental. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 117 4. NOVA REPÚBLICA E NOVAS AGENDAS Nas três últimas décadas, após o período de abertura política e democratização do Estado, têm sido significativas as conquistas dos movimentos sociais negros, no Brasil, na busca por reverter, para melhor, a situação da população negra brasileira. Essas conquistas convergiram para as propostas e ações no plano das políticas públicas afirmativas que têm se tornado importante elemento de visibilização e enfrentamento do racismo. As Ações Afirmativas exigem a redefinição de nossos ideais, valores e instituições, enfim, de nossa cultura política. São a continuação da luta dos movimentos sociais pela conquista de espaços nas esferas sociais, políticas e jurídicas da sociedade brasileira nos processos de modernização e democratização do Estado e da própria sociedade. Noções como direito, igualdade, democracia, cidadania, liberdade, consagradas pelo projeto filosófico da modernidade, não são negadas, mas ressignificadas em um pensamento político que visa ampliar e radicalizar aquele projeto de modernidade, contra universalismos excludentes, mas, também, contra particularismos fundamentalistas, contra racionalismos totalitários ou irracionalismos relativistas. Porém, não sem riscos de incorrer em projetos e práticas fundamentalistas e fascistas, ainda que na forma de lutas emancipatórias. Os movimentos sociais negros cumprem um papel de grande importância neste processo: (...) cada vez mais se evidencia que o tema das relações raciais ocupa um papel central nas celeumas de nosso regime democrático e da qualidade de nosso tecido social. Assim, simplesmente não há como superar as injustiças sociais e a exclusão em nosso país sem que o negro, e o seu movimento organizado, seja o ponto de partida e o ponto de chegada das análises e das políticas (PAIXÃO, 2003: 134). Este processo vem se dando, não, simplesmente, pela negação do ou combate ao racismo, mas pela afirmação e comemoração daquilo mesmo que é negado ou depreciado pelo racismo. Portanto, as políticas públicas de ação afirmativa devem se analisadas como parte de um amplo conjunto de ações ou iniciativas que compõem o que chamaremos de políticas de identidade negra, ou seja, iniciativas individuais ou coletivas que tenham como objetivo geral ou específico o combate ao racismo e à desigualdade racial e/ou expressem valores de matriz africana, implicando na construção/consolidação de uma identidade negra. A Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 118 constituição dessa identidade implica no deslocamento dos estereótipos raciais acerca das pessoas negras61, ou seja, a transvaloração das identidades raciais. Todavia, não se deve confundir ou reduzir o conjunto destas políticas ao “Movimento Negro”. A conexão entre estas políticas na constituição dos movimentos sociais negros se dá através de esforços constantes de estabelecer entre elas conexões variáveis e historicamente contingentes. Estas conexões contingentes chamamos, conforme proposto por Laclau62, articulação. Então, por exemplo, a articulação entre o Movimento Negro e a religiosidade afro-matricial é uma relação contingente e, em muitos casos, problemática e contraditória: não existe nenhuma relação necessária entre a identidade negra e a religiosidade de origem africana; é mais um projeto do que um fato dado, como em toda relação entre “negritude” e “africanidade” (ancestralidade), por exemplo, na definição da cultura negra. Esta e outras articulações operam num campo cruzado por projetos articulatórios antagonistas que Laclau denomina práticas articulatórias, no qual se dá a articulação/desarticulação de políticas de identidade, conforme a constituição dos diversos espaços políticos. Assim, o conjunto das políticas de identidade constitui um campo de articulações possíveis, um campo de hegemonia. Nesse campo se incluem desde políticas governamentais, até iniciativas e empreendimentos privados com fins lucrativos, passando pelas ações de entidades de Movimento Negro, não sendo realizadas necessariamente por grupos de maioria negra. Por outro lado, tais políticas não se reduzem ao combate à discriminação e à desigualdade racial, definição puramente negativa e reativa. Mas realizam um amplo e complexo conjunto de iniciativas: 1. Afro-solo ou eutidade: pessoas físicas que estabelecem individualmente iniciativas que têm como objetivo geral ou específico o combate ao racismo e à desigualdade racial e/ou expressam valores de matriz africana (estudantes, músicos, artistas, quituteiras, etc.); 61 A negritude não deve ser algo garantido, uma natureza fixa, mas um processo de desenvolvimento no qual os indivíduos desempenham um papel, podem assumir alguma responsabilidade e para o qual se pode construir uma relação. A construção de uma identidade negra é um processo de autotransformação, não devendo ser representada como um fato não negociável, ocultando a capacidade de responder a uma situação, de agir sob uma conjuntura. “O que é ser negro” não é uma questão suscetível a respostas generalizadas. Toda identidade social é uma experiência gestáltica e não uma definição, não sendo, em si, algo fixo. A construção de identidade se constitui num processo continuo de identificação, que pressupõe um compromisso ético, um “responsabilizarse por” (cf. LACLAU, 1993 e 1997; RICOUER, 1991; BURITY, 1997 e 2002). 62 LACLAU, 1986. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 119 2. Grupos, Núcleos ou Centros Universitários: NEAB, Afroasiático etc.; 3. Balés ou Grupos de dança afro-brasileira: capoeira, afoxé, maracatu...; 4. Grupos musicais: afoxés, maracatus, escolas de samba, banda de samba-reggae, grupos de hip-hop, pagodes, movimento mangue, coco...; 5. Grupos de pesquisa, documentação e/ou estudos de cultura afro-brasileira; 6. Imprensa negra; 7. Grupos de religiosidade afro-brasileira: candomblé, umbanda, etc.; 8. Grupos de teatro, cinema, vídeo, literatura e artes plásticas; 9. Grupos, núcleos ou outras denominações de sindicatos e/ou partidos e/ou outras instituições públicas ou privadas que trabalham questões raciais: INSPIR (Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial), GTI (Grupo de Trabalho para a Valorização da População Negra), etc.; 10. Grupos que trabalham a questão da estética negra: moda, cosméticos, etc.; 11. Culinária Afro; 12. Comunidades remanescentes de quilombos; 13. Entidades de Movimento Negro. Este complexo de ações não deve ser apenas definido de forma puramente negativa: “combate ao racismo e à discriminação racial” – pois quaisquer outras formas de atuação cultural, social e política podem ser instrumentalizadas pelo combate ao racismo por meio de inserções e maneiras diversas: passam a serem meios de combate ao racismo. Nesta conjuntura, as ações afirmativas podem ser entendidas como parte de um processo de constituição da identidade de um sujeito político ou de direito, sujeito coletivo e histórico, articulado conforme os diferentes discursos de reparação, compensatórios, de reconhecimento de direitos, dentre outros: povo negro, raça negra, diáspora negra, cultura negra, religião negra, pessoa negra... Envolvendo processos de subjetivação, de negociação intersubjetiva de identidades, de interpelação 63 , de conversão, de reconhecimento intersubjetivo64, de confissão; enfim, de constituição política de identidades, dentre as quais, da identidade negra. Apesar de uma situação social variável, mas comum, de exclusão socioeconômica vivida pelos extratos populares, os antagonismos sociais manifestam-se de maneira diversa e, sobretudo, as experiências de luta têm trajetórias extremamente díspares, apontando para 63 64 cf. ALTHUSSER, 1977. cf. HONNETH, 2003. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 120 impasses e saídas para as quais as condições estruturais objetivas constituem, na melhor das hipóteses, apenas um grande pano de fundo (KOWARICK, 2000). No interior e para além das condições estruturais socioeconômicas, operam produções simbólicas realizadas por atores que confeccionam discursos sobre uma situação concreta a partir da qual estruturam as orientações de suas ações coletivas. É preciso que se faça uma análise por dentro dos movimentos sociais, para que se entenda seus fluxos e refluxos, seus percursos cheios de desvios, caracterizados pela constante recomposição de divisões e alianças que cabe reconstituir no caminhar da luta. Torna-se, pois, necessário estudar tais processos no âmbito da apresentação das demandas, da formulação e implementação das políticas de ações afirmativas voltadas para o combate às desigualdades e discriminações étnico-raciais vivenciadas pelas pessoas negras e para valorização de seu modo de vida. Como afirmamos mais acima, nossa hipótese é da existência e reprodução de uma relação significativa entre as demandas das comunidades religiosas afrobrasileiras como religiões “territoriais” e a luta pelo uso e ocupação do espaço urbano e pelo direito à cidade. (...) o que reinvidica uma sociedade ao se apropriar de um território é o acesso, o controle e o uso, tanto das realidades visíveis quanto dos poderes invisíveis que as compõem, e que parecem partilhar o domínio das condições de reprodução da vida dos homens, tanto a deles própria quanto a dos recursos dos recursos dos quais eles dependem (GODELIER apud HAESBAERT, 2007, p.49). Os movimentos sociais negros incorporam, então, em suas narrativas políticas as comunidades religiosas afro-matriciais como parte relevante das lutas históricas de emancipação negro-africana no Brasil. A identidade “afro-popular” ou “negro-africana” implica a equivalência entre as diversas identidades sociais, políticas ou religiosas, do campo afro-matricial, e nesse caso o inimigo global a ser enfrentado passa a ser muito menos evidente. Por seu turno, os militantes religiosos afro-matriciais passam a transitar nos espaços (sociais e políticos) abertos pelos movimentos sociais negros, utilizando os recursos organizacionais e o poder de mobilização, construídos historicamente, e acionando os dispositivos legais e políticos de combate à discriminação étnico-racial contra as práticas de intolerância religiosa e segregação urbana. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 121 Assim, a "territorialidade" das religiões influencia o perfil das demandas sociais e das políticas públicas implantadas. Contudo, a construção daquelas demandas e das políticas se dá fortemente influenciada pelo discurso político dos movimentos sociais negros e do Estado. Ou seja, a demanda política das religiões não é a mera expressão política de sua "natureza territorial", muito menos, a formulação e a implantação das políticas são a mera transferência da demanda para o campo do Estado. Há transformações significativas que ocorrem nesse percurso de representação política de uma identidade religiosa, transformações que têm um efeito de "feedback" sobre essa última. Essa dinâmica influencia a organização política dos segmentos religiosos dos movimentos sociais negros, a formulação de suas demandas sociais e a implantação das políticas públicas. 5. CONSIDERAÇOES FINAIS Desta forma, a agenda “negra” constitui-se da conjunção de duas estratégias políticas distintas: de um lado, a valorização da religião afro-brasileira como patrimônio histórico e cultural regional, nacional e, mesmo, internacional, diaspórica, considerada parte de uma política de reparação ou de promoção da igualdade racial; por outro lado, a luta contra a intolerância religiosa, considerada como uma modalidade da discriminação étnico-racial. A primeira estratégia parece conduzir à consolidação de uma rede anti-racista transnacional, pan-africana. A referência à África permitirá articular as agendas nos diferentes contextos global, nacional e local. Por exemplo, na adesão da delegação negra brasileira à demanda africana pela reparação, ao mesmo tempo em que se afirma como patrimônio próprio da história e cultura brasileira (esta articulação de um duplo pertencimento é expressa no hífen da cultura “afro-brasileira”). Esta estratégia apresenta uma versão secularizada e pública da reverência à ancestralidade dos e nos cultos religiosos de matriz africana. A própria utilização recorrente do termo “matriz africana” nos discursos oficiais ou não oficiais, escritos ou orais, públicos ou privados marca a referência (e a reverência) à “origem”, à “memória”, à “ancestralidade” como valor importante na constituição das identidades sociais, na formulação das demandas políticas e na legitimação da agenda pública resultante destes processos. A segunda estratégia apresenta os ataques contra as “religiões de matriz africana” equivalentes ao racismo anti-negro. Com tais estratégias, os atores religiosos afrobrasileiros passam a transitar nos espaços (sociais e políticos) abertos pelos movimentos sociais negros, utilizando os recursos organizacionais e o poder de mobilização construídos Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 122 historicamente, e acionando, contra as práticas de intolerância religiosa, os dispositivos legais e políticos de combate à discriminação étnico-racial (SALES JR., 2009b: 130-131). As formas de vida afro-diaspóricas articularão, assim, discursos de autenticidade e de reconhecimento, reforçando, contudo, a abordagem culturalista e particularista de tratamento das relações étnico-raciais pelo Estado brasileiro. A população negra, reduzida a “comunidades tradicionais” (quilombos ou terreiros), é tratada pelas “políticas de promoção da igualdade racial” como componente qualitativamente exótico e quantitativamente minoritário da população brasileira. REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. In: ALTHUSSER, Louis. Posições. Lisboa: Horizonte, 1977. ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira et al. Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006. BURITY, Joanildo. Desconstrução, Hegemonia e Democracia: o Pós-Marxismo de Ernesto Laclau. In: OLIVEIRA, Marcos Aurélio Guedes (Org.). Politica e contemporaneidade no Brasil. Recife, Bagaço, 1997. ______. Psicanálise, Identificação e a Formação de Atores Coletivos: Relatório de pesquisa. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, 1997b. (mimeo) ______. Cultura e identidade: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: DP&A. 2002. Gilroy, Paul. 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Os participantes responderam a questões sobre os direitos humanos e sobre aspectos relevantes do seu perfil sócio-demográfico. De um modo geral, os resultados denotaram que os participantes das duas cidades tinham um conhecimento limitado sobre as noções de direito e apresentavam características sócio-demográficas muito semelhantes das demais crianças e adolescentes brasileiras em condição de rua. Palavras-chave: Adolescentes em Situação de Rua. Direitos Humanos. Adolescentes. THE KNOWLEDGE OF THE RIGHTS FOR HOMELESS TEENAGERS ABSTRACT The objective of the present study is to know homeless teenagers’ conceptions of rights. A questionnaire was applied to 50 homeless teenagers in Cajazeiras and João Pessoa, cities in the State of Paraíba. The participants have responded to questions about children’s and 65 Doutoranda em Psicologia Social pela UFPB, Professora da UFCG. Pesquisa financiada pelo CNPq. E-mail [email protected]. 66 Doutora em Psicologia pela Universitè Catholique de Louvain. Professora da UFPB. Outros autores deste trabalho também foram: Miriane Santos Doutoranda em Psicologia Social pela UFPB; Lilian Galvão Doutora em Psicologia Social pela UFPB, Professora da UFCG; Márcia Ávila Paz Doutora em Psicologia Social pela UFPB; e Pablo Vicente Queiroz Doutorando em Psicologia Social pela UFPB. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 125 teenagers’ rights and also about relevant aspects of social-demographic profile. In general, results have shown that the participants’ knowledge from the two cities was limited concerning the notions of right and social-demographic aspects, presenting very similar characteristics to other Brazilian homeless teenagers. Key words: Homeless Teenagers. Human Rights. Teenagers. 1. INTRODUÇÃO A presença de crianças e adolescentes nas ruas brasileiras sempre chamou a atenção da sociedade de um modo geral. Nas últimas décadas, a temática dos meninos que passam os dias nas ruas tem sido estudada com grande interesse pelas ciências humanas, notadamente pela Psicologia (MACIEL; BRITO; CAMINO, 1998; ALBERTO, 2002; ALVES et al., 2002; HUTZ; KOLLER, 1997; NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002a; NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002b). A rua é considerada um ambiente de risco potencial para o desenvolvimento dessa população, sobretudo pela maior vulnerabilidade às agressões físicas, sexuais e psicológicas, bem como pela condição de abandono e ausência de cuidados. O interesse no estudo dessa população aumentou, sobretudo, a partir de 1980, quando se vivenciava no país um clima de democracia e se reclamava em nome dos direitos dos menos favorecidos (ASSOCIAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DA REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE PORTO ALEGRE, 2004). Entretanto, o projeto que se propunha a investigar as condições de vida dessas crianças e adolescentes esbarrou numa série de dificuldades em caracterizar esta população (SÃO PAULO, 2007). Alguns autores (ALVES et al., 2002; NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002a; PALUDO; KOLLER, 2005) sugerem cinco indicadores a serem observados nessa caracterização: 1) vínculo familiar; 2) atividade exercida; 3) aparência; 4) local em que se encontram e; 5) ausência de um adulto cuidador, isto é, aquele que supervisiona a criança na rua em suas atividades. Quanto ao vínculo familiar, a maioria dessas crianças e adolescentes possui algum tipo de ligação com parentes ou com pessoas a quem consideram responsáveis por eles, contudo, esse vínculo diminui à medida que a idade avança. Estudos e levantamentos realizados junto a essa população (SÃO PAULO, 2007; NEIVASILVA; KOLLER, 2002a; NEIVA-SILVA; KOLLER, 2002b) tem revelado que, quanto ao segundo indicador (atividade exercida), tanto crianças quanto adolescentes realizam algum tipo de atividade, podendo ser lícitas e ilícitas. A respeito do terceiro indicador – a aparência –, o que os caracteriza é o uso de vestimentas maiores que as habituais para seus tamanhos, sujeira ocasionada pela própria presença na rua e pela falta de asseio, marcas Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 126 de violência no corpo, cabelos desgrenhados, dentre outros. Em relação ao quarto – local onde a criança se encontra –, a rua deve ser compreendida como o contexto onde são estabelecidas as principais relações de socialização da criança e do adolescente, e não somente como um espaço físico concreto. Por fim, no que se refere ao último indicador – ausência de um adulto por perto –, não existe um consenso entre os autores: enquanto Alves (1998) considera a ausência de um responsável como um indicador que essa criança ou adolescente, de fato, se encontra em situação de rua. Rosemberg (1996) afirma que não necessariamente a presença de um adulto descaracterize a criança ou o adolescente em situação de vulnerabilidade social, já que, muitas vezes, é o proprio adulto o explorador da sexualidade ou do trabalho dos mesmos. Ao se fazer uma análise geral do contexto das crianças e adolescentes em situação de rua, não resta dúvida, por exemplo, que a falta de alimentação adequada, a evasão escolar, a exposição à exploração sexual, de gênero, etc., bem como o contato facilitado com as drogas, configura-se como uma violação aos Direitos da Criança e do Adolescente (DCA). Neste sentido, também vão totalmente de encontro às várias leis de proteção aos seres humanos em geral, como a Declaração Universal dos Direitos humanos. É diante dessa realidade que neste estudo busca-se investigar até que ponto os Direitos da Criança e do Adolescente (DCA) são conhecidos por adolescentes em situação de rua, bem como apresentar aspectos referentes ao seu cotidiano. Julgou-se que os adolescentes poderiam estar, mais do que as crianças, em situação de trabalho, o que facilitaria a construção de respostas sobre o tema. Na Psicologia, pesquisas têm sido realizadas com o objetivo de investigar as concepções acerca dos direitos humanos. No âmbito internacional destacam-se as pesquisas desenvolvidas por Doise et al. (1998), esses autores investigaram as representações sobre os direitos humanos de indivíduos provenientes de diferentes grupos sociais, nacionalidades, faixas etárias e profissões, a fim de conhecerem quais os princípios organizativos de tais das representações (DOISE; HERRERA, 1994). No Brasil, estudos vêm sendo realizados também com o objetivo de conhecer as concepções de diferentes grupos sociais acerca dos seus direitos humanos (CAMINO, 2004; NASCIMENTO, 2003, PANDOLFI, 1999). Algumas dessas pesquisas vêm sendo desenvolvidas pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Desenvolvimento Sócio Moral (NPDSM). Como exemplo, Camino et al. (2006), pesquisaram sobre a noção que crianças e adolescentes tinha sobre os direitos, na cidade de João Pessoa. Participaram deste estudo Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 127 60 adolescentes, que passavam os dias nas ruas (Grupo I), 52 crianças e adolescentes que viviam em um abrigo (Grupo II) e 60 adolescentes em conflito com a lei (Grupo III). Dentre outros objetivos, este estudo propunha-se a verificar se os participantes sabiam o que é ter um direito, quais os diretos conhecidos e a fonte deste conhecimento. Quanto ao conhecimento dos direitos, a maioria dos participantes do Grupo I disse não saber o que é ter um direito; o oposto foi observado nos Grupos II e III, embora os participantes desses dois grupos demonstrassem não saber definir o termo direito. Dentre os que alegaram saber, nos três Grupos o direito citado com maior freqüência foi Educação (GI=32,00%; GII=26,19%; GIII=29,57%). Em relação à fonte do conhecimento, 26,99% dos participantes do Grupo I citaram os Professores e a Escola como fonte deste conhecimento, o que também foi observado entre os do Grupo II (34,48%); já para os participantes do Grupo III, a própria Instituição Ressocializadora foi indicada como a principal fonte deste conhecimento (20,97%). Em um artigo publicado por Fernandes e Camino (2006) intitulado “Adolescentes, TV e Direitos humanos”, foram apresentados resultados provenientes de dois estudos: o primeiro foi realizado com 212 estudantes do Ensino Médio e o segundo com 211 estudantes do Ensino Médio, da cidade de João Pessoa. Dentre os resultados apresentados por Fernandes e Camino (2006), chama a atenção aqueles que se referem à educação em Direitos humanos. A televisão foi considerada como a principal fonte de informação sobre os Direitos Humanos (DH) pelos estudantes do Ensino Médio (53,50%), seguida pela família (19,00%) e pela escola (15,00%). Os dados também mostraram que para 60% dos estudantes que afirmaram já ter conversado com alguém sobre os DH, a família e a escola foram apontadas como “os principais espaços promotores de debates sobre o assunto”. A grande maioria dos participantes (90,70%) disse já ter conversado com alguém sobre os DH, no entanto, quando foram solicitados a definir o que eram os DH, somente 16,65 % o fizeram de forma adequada; mais de 50,00% apresentaram respostas pouco elaboradas; 25,40% não responderam e 7,30% dos participantes tentaram definir ou conceituar os DH a partir de exemplos de direitos por eles conhecidos. Na interpretação dos resultados, Fernandes e Camino (2006, p. 76) comentaram que a TV por si só não conseguia “viabilizar informações contextualizadas e aprofundadas capazes de oferecer as condições necessárias para a produção de conhecimento sobre Direitos humanos”. As autoras destacaram também que “a escola ainda é (ou deveria ser) o local privilegiado para a construção e sistematização do conhecimento” (FERNANDES; CAMINO, 2006, p. 76). A respeito desses estudos, Galvão, Costa e Camino (2005) comentam que existe um conhecimento dos direitos compartilhado por crianças, adolescentes e adultos, pertencentes Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 128 ou não a grupos de excluídos socialmente, que diz respeito, sobretudo, aos direitos já normatizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. As investigações sobre os Direitos humanos que têm sido realizadas no Núcleo de Pesquisa em Desenvolvimento Sócio Moral (NPDSM) apontam para a necessidade de aprofundar o conhecimento acerca do conhecimento sobre os direitos humanos. Neste sentido, o presente estudo traz como objetivo principal conhecer as concepções que os adolescentes, que passam os dias nas ruas, têm sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Especificamente pretende-se, a partir deste objetivo: Verificar quais direitos são conhecidos pelos adolescentes que passam os dias nas ruas e as fontes de conhecimento desses direitos. Conhecer as características sócio-demográficas dos adolescentes que passam os dias nas ruas das cidades de João Pessoa e Cajazeiras; Analisar as concepções sobre os DCAs de adolescentes, procedentes de duas cidades distintas. 2. MÉTODO 2.1. Participantes Foram entrevistados 50 adolescentes do sexo masculino que passam os dias nas ruas de duas cidades do Estado da Paraíba, sendo 30 na cidade de João Pessoa, com idades de 14 a 18 anos, e 20 participantes com idades de 12 a18 anos, da cidade de Cajazeiras. Julgouse importante saber se o conhecimento desses adolescentes acerca dos direitos se diferenciava em função dos contextos sociais das cidades em que eles viviam: João Pessoa, cidade litorânea, é a capital do estado da Paraíba; Cajazeiras é uma cidade do Sertão paraibano, situada a 400k km da capital. 2.2. Questionário Foi utilizado um questionário que continha duas partes. Na primeira parte, foram apresentadas questões sobre os direitos humanos: O que é ter um direito? Quais os direitos que você conhece? Quem lhe falou sobre os direitos? Quem deve cuidar para que os direitos sejam respeitados e garantidos? Na segunda parte havia questões sobre os dados biodemográficos e acerca do cotidiano dos participantes: Qual sua idade? Em que série você estuda? Com quem você mora? Qual é a pessoa mais responsável por você? Você já Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 129 teve alguma experiência de trabalho? Qual? O que você faz durante o dia? Alguém já ofereceu algum tipo de drogas para você experimentar? 2.3. Procedimento Os questionários foram administrados individualmente, em forma de entrevista gravada, enquanto os adolescentes estavam nas ruas onde foram encontrados. Os critérios para ser um participante da pesquisa foram: estar na rua, não estar acompanhado de um adulto cuidador, usar vestimentas velhas e sujas, estar exercendo alguma atividade de trabalho e/ou perambulando. Com relação ao vínculo familiar, este só foi verificado no decorrer da entrevista. Uma vez identificados os adolescentes que atendiam os critérios pré-estabelecidos, os pesquisadores explicaram-lhes os objetivos da pesquisa e perguntaram-lhes se eles tinham disponibilidade e interesse em participar do estudo. As entrevistas foram transcritas e as respostas foram categorizadas segundo a Análise de Conteúdo Semântico, proposta por Bardin (1977). As categorias resultantes desta análise foram criadas por dois pares de juízes que trabalharam isoladamente e após a classificação das respostas, discutiram em grupo a fim de verificar quais as categorias que obtiveram, no mínimo, 75,00% de consenso. Após a categorização, fez-se uma análise das freqüências e percentuais das respostas a fim de realizar um levantamento das informações quantitativas. 3. RESULTADOS A partir da análise das questões referentes aos direitos humanos observou-se, em relação à questão o que é ter um direito a formação de quatro categorias denominadas de: Exemplos, quando as respostas dos participantes apresentavam exemplos de direitos; Não Pertinentes, quando as respostas eram em branco ou cujo sentido não condizia com os critérios utilizados para elaboração das categorias; Posse, quando a noção de direito foi associada à propriedade de algum bem e; Fazer o certo, quando os participantes afirmaram que ter um direito é fazer tudo o que é correto. Observou-se que, em ambas as cidades, a maior freqüência de respostas foi atribuída à categoria Não Pertinente (Cajazeiras = 55,55%; João Pessoa = 56,25%), seguida da categoria Exemplos (Cajazeiras = 40%; João Pessoa = 21,88%). A respeito da categoria Posse, observou-se que ela apresentou uma maior freqüência de respostas entre os Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 130 participantes de João Pessoa (18,75%) quando comparados aos de Cajazeiras (5,00%). Quanto à categoria Fazer o certo, esta emergiu apenas a partir das respostas dos participantes de João Pessoa (3,13%). Com relação ao conhecimento dos direitos, todos os participantes de Cajazeiras afirmaram já ter ouvido falar sobre os direitos. Quanto aos participantes da cidade de João Pessoa, 73,33% disseram ter ouvido falar dos direitos e 26,67% afirmaram não ter conhecimento sobre os direitos. Foi solicitado, na segunda questão, que aos participantes citassem os direitos que eles conheciam. Conforme a Tabela 1, na cidade de João Pessoa, os direitos mais citados foram: Estudo (30,00%), Não Pertinentes – respostas em branco, que fugiram ao que foi questionado, ou aquelas em que os participantes disseram não saber ou não lembrar sobre o que foi perguntado - (30,00%) e Alimentação (15%); em Cajazeiras, os direitos mais citados foram: Estudo (37,14%), Lazer (28,57%) e Deveres (14,28%). Nesta última categoria, foram agrupadas as respostas nas quais os participantes citaram exemplos de bom comportamento/ deveres como sendo direitos (Exemplos: respeitar os mais velhos, não roubar, obedecer aos pais). Tabela 1- Freqüências e percentuais de respostas à questão “Quais direitos você conhece?” (N=50) CZ. J.P. DIREITOS TOTAL F % F % Estudo 13 37,14 11 30,00 24 Lazer 10 28,57 1 2,50 11 Deveres 5 14,28 1 2,50 6 Não Pertinentes 1 2,86 12 30,00 13 Alimentação 2 5,71 6 15,00 8 Direitos Específicos 2 5,71 1 2,50 3 Saúde 1 2,86 3 7,50 4 Outros 1 2,86 5 12,50 5 TOTAL 35 100,00 40 100,00 75 Fonte: Dados da Pesquisa, 2011. 131 Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 Quando questionados sobre quem havia lhes falado sobre os direitos, os participantes apontaram as fontes indicadas na Tabela 2. Conforme observado, para os adolescentes das duas cidades, a Família (Cajazeiras =55%; João Pessoa =46,67%) e a Escola (Cajazeiras =15%; João Pessoa =13,33%) foram apontadas como as principais fontes de informação sobre os direitos. Tabela 2- Freqüências e percentuais de respostas à questão “Quem lhe falou sobre os direitos?” (N=50) CZ JP FONTE TOTAL F % F % Família Escola 11 3 55,00 15,00 14 4 46,67 13,33 25 7 Nunca ouviu Desconhecidos Ninguém (sozinho) Amigos Outras instituições TOTAL 2 2 2 20 10,00 10,00 10,00 100,00 3 3 2 3 1 30 10,00 10,00 6,67 10,00 3,33 100,00 3 5 4 5 1 50 Fonte: Dados da Pesquisa, 2011. Também foi perguntado a quem os participantes atribuíam a responsabilidade pela garantia dos direitos, e logo em seguida foi questionado se alguém era mais responsável por esta garantia. No próprio questionário foram apresentadas as opções: Governo, Pais e Escola. Observou-se que nas duas cidades (Cajazeiras = 45,00% e João Pessoa = 43,33%) os Pais foram apontados como os responsáveis pela garantia dos direitos da criança e do adolescente obtendo 50,00% das respostas nas duas cidades; seguidos pelo Governo (em Cajazeiras 30,00% e 33,33% em João Pessoa). Assim, das opções apresentadas aos participantes, os Pais foram considerados os mais responsáveis pelo cuidado para que os direitos da criança e do adolescente fossem assegurados, obtendo 50,00% das respostas nas duas cidades. Sobre as respostas às questões do segundo bloco, referente ao cotidiano dos participantes observou-se que: em ambas as cidades, a Mãe foi apontada como a principal responsável pelos cuidados com os adolescentes (Cajazeiras = 55,00% e João Pessoa = 53,33%). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 132 As atividades cotidianas desenvolvidas mais citadas pelos participantes da cidade de João Pessoa foram: Trabalhar (43,33%), Ficar em Casa (21,67%) e Estudar (20,00%). Na cidade de Cajazeiras, as atividades cotidianas mais citadas pelos adolescentes foram; Estudar (35,42%), Brincar/ Perambular (25,00%) e realizar atividades em Outra Instituição – PETI (16,67%). Destaca-se aqui o fato de, em João Pessoa, alguns participantes (3,33%) terem verbalizado que em sua rotina estava incluído o ato de se drogar. Quando se referiu no questionário de forma mais específica em relação ao consumo e à freqüência deste consumo, verificou-se que em Cajazeiras 70,00% dos participantes afirmou que ninguém nunca lhes ofereceu drogas, em João Pessoa esse percentual foi de 53,33%. Em seguida, quando se questionou se já haviam experimentado algum tipo de droga 10,00% dos adolescentes de Cajazeiras e 40,00% dos de João Pessoa declararam já terem usado. As atividades cotidianas desenvolvidas pelos adolescentes podem ser visualizadas na Tabela 3. Tabela 3- Freqüências e percentuais das atividades cotidianas desenvolvidas por meninos em condição de rua (N= 50) Cajazeiras João Pessoa TOTAL Atividades F % F % Estudar 17 35,42 12 20,00 29 Brincar/Perambular 12 25,00 4 6,67 16 Instituições (PETI) 8 16,67 1 1,67 3 Casa 6 12,50 13 21,67 19 Trabalhar 3 6,25 26 43,33 29 Esmolar 2 4,17 2 3,33 4 Drogar-se 2 3,33 9 TOTAL 48 100,00 60 100,00 108 Fonte: Dados da Pesquisa, 2011. Quando indagados a respeito das atividades de trabalho remunerado exercidas diariamente (Ver Tabela 4), observou-se que, na cidade de Cajazeiras, as mais desenvolvidas foram: Outras – atividades domésticas, serviços de limpeza, catador, guardar/lavar carros, engraxate e britador - (43,75%), Servente de Pedreiro (25,00%) e Atividades Agropecuárias (18,75%). Na cidade de João Pessoa, destacaram-se as atividades de: Vendedor (42,42%), Outros (30,30%) e Engraxate (12,12%). Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 133 Tabela 4-Freqüências e percentuais das atividades profissionais desenvolvidas por meninos em condição de rua (N= 50) Cajazeiras João Pessoa TOTAL Atividades F % F % Outros 7 43,75 10 30,30 17 Vendedor 1 6,25 14 42,42 15 Engraxate 1 6,25 4 12,12 5 Servente 4 25,00 1 3,03 5 Atividades Agropecuárias 3 18,75 1 3,03 4 Chapeado 3 9,09 3 TOTAL 16 100,00 33 100,00 41 Fonte: Dados da Pesquisa, 2011. 4. DISCUSSÃO Os resultados acerca do conhecimento dos direitos de adolescentes em situação de rua demonstram que o empenho de entidades nacionais e internacionais em propagar os direitos humanos tem se mostrado, de certa forma, eficaz nesse tipo de população: 100,00% dos participantes da cidade de Cajazeiras e 73,33% dos de João Pessoa afirmaram já ter ouvido falar sobre os direitos; e, além disso, nota-se, na questão referente ao conhecimento acerca dos direitos humanos, que a maioria dos direitos citados pelos participantes está relacionada a direitos já estabelecidos na Declaração Universal Dos Direitos Humanos (DUDH), o que, por sua vez, apóia outros estudos (CAMINO, 2004; DOISE et al., 1998; DOISE; HERRERA, 1994; GALVÃO, COSTA; CAMINO, 2005; NASCIMENTO, 2003; PANDOLFI, 1999). Por outro lado, não se pode negar que apesar de os adolescentes em situação de rua conseguirem citar alguns dos direitos elencados na DUDH, o conhecimento dos direitos parece ainda não ser compartilhado por todos, no sentido de que, na cidade de João Pessoa, houve uma freqüência significativa de respostas na categoria Não Pertinentes (30,00%), o que também foi verificado no estudo de Camino et al. (2006). Ademais, no presente estudo também se constatou uma confusão, por parte dos adolescentes, sobretudo os da cidade de Cajazeiras, entre seus direitos e seus deveres (exemplos: respeitar os mais velhos, não roubar, obedecer). Essa confusão parece, por um lado, apontar para um conhecimento superficial ou total desconhecimento dos direitos por parte desses adolescentes, e, por outro, parece estar relacionado à cultura interiorana que Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 134 valoriza os deveres. Esta última interpretação é apoiada pelo estudo de Galvão, Costa e Camino (2005) que verificaram uma confusão entre deveres e direitos em uma amostra de adolescentes que cumpriam medida sócio-educativa em uma instituição do interior da Paraíba. No que se refere aos direitos citados pelos participantes, constatou-se que o direito ao estudo foi o mais citado pelos entrevistados das duas cidades (João Pessoa = 30,00% e Cajazeiras = 37,14%). Isto denota uma semelhança com o estudo de Maciel, Brito, e Camino (1997) realizado em Campina Grande-PB, no qual os autores constataram uma grande valorização da escolaridade como uma forma de sair da condição de rua. Entretanto, é provável também que isso se deva à idéia amplamente divulgada de que crianças e adolescentes devem estar na escola, e não em alguma função remunerada. Sobre a definição do que é ter um direito, em ambas as cidades, houve predominância de respostas categorizadas como Não Pertinentes (Cajazeiras 55,00% e João Pessoa = 60,00). Este resultado é semelhante ao encontrado por Camino et al. (2006), que, ao comparar três grupos de adolescentes (grupo dia nas ruas, grupo cumprindo medidas sócio-educativas em instituição de ressocialização, e estudantes de escola pública e privada), constataram que o grupo de adolescentes em situação de rua foi o que mais teve dificuldade em dizer o que é ter um direito, seguido do grupo de adolescentes em conflito com a lei. Na avaliação dos autores, que nos compartilhamos, tem faltado a esses adolescentes vivenciar situações nas quais seus direitos e os direitos do outro sejam respeitados, algo que poderiam lhes capacitar a expressar a dar mais exemplos do que é ter um direito. Neste sentido, não se pode esquecer que esses adolescentes nunca gozaram de seus direitos de cidadania. Quando se comparou o nível de elaboração dos dois grupos de participantes em relação à questão “você sabe o que é ter um direito?”, se constatou uma diferença significativa entre os adolescentes em situação de rua da capital da Paraíba (João Pessoa) e os adolescentes do interior (Cajazeiras): este pareceu ter mais dificuldade em elaborar uma definição de direito do que o grupo da capital, o que também foi constatado na pesquisa realizada por Galvão, Costa e Camino (2005). Estes verificaram um menor nível de elaboração por parte de adolescentes do interior em conflito com a lei, quando comparados aos da capital. Diante do conhecimento restrito acerca dos seus direitos apresentado pelos adolescentes em situação de rua, resta indagar: quem tem sido a fonte do conhecimento dos direitos? Os Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 135 participantes das duas cidades citaram, sobretudo, a Família (João Pessoa=46,67% e Cajazeiras=55,00%), o que também vem sendo encontrado em outros estudos (CAMINO et al., 2006). Quando indagados sobre a quem atribuem a responsabilidade pela garantia dos seus direitos, os participantes, de ambas as cidades, colocam em terceiro plano a Escola (Cajazeiras = 15,00% e João Pessoa = 3,33%). Neste caso, são os Pais (Cajazeiras = 45,00% e João Pessoa = 43,33%) e o Governo (Cajazeiras = 30,00% e João Pessoa = 33,33%) que são percebidos como os mais responsáveis pela garantia dos direitos. No que tange as respostas referentes aos cuidados no cotidiano que devem ser dispensados aos participantes, notou-se que a mãe, em ambas as cidades, foi apontada como a principal responsável. Esse resultado é compatível com os divulgados pelo último senso (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2000). Estes dados apontam para o fato de que a família do tipo nuclear (pais e filhos) diminuiu de 58,4% para 55% e aumentou o número de mulheres sem marido (viúvas, mães solteiras, divorciadas) de 15,1% para 17,1%, que assumem o papel de principais responsáveis pelos filhos e pela casa. Esse resultado também conduz a suposição de que os adolescentes entrevistados ainda possuem algum tipo de ligação com parentes ou com pessoas a quem consideram responsáveis por eles. Quanto às atividades cotidianas realizadas pelos adolescentes, destacaram-se as lícitas. Nesse caso, chama a atenção o fato de que a atividade de Trabalhar foi a mais citada pelos participantes da cidade de João Pessoa (43,33%), seguida pela categoria Ficar em Casa (21,67%) enquanto as atividades de Estudar (35,42%) e Brincar/Perambular (25,00%) foram as mais citadas pelos adolescentes da cidade de Cajazeiras. Isto qualifica os participantes da cidade de João Pessoa como meninos que quando estão nas ruas estão, sobretudo, trabalhando informalmente e os de Cajazeiras estão, sobretudo, perambulando. Também chama a atenção o fato que apenas cerca de 28,00%, em média, dos participantes de ambas as cidades disseram que a atividade de Estudar faz parte do seu cotidiano, o que leva a seguinte indagação: há 70% desses meninos fora da escola? É de se supor que sim, pois os dados revelam que a maioria dos adolescentes, ao menos na cidade de João Pessoa, diz trabalhar em alguma atividade remunerada. Esses resultados corroboram aqueles encontrados por Maciel, Brito e Camino (1998). Julga-se que a inserção desses adolescentes no mercado de trabalho esteja relacionada com a necessidade de complementação da renda familiar, tendo-se em vista que esses adolescentes provem de famílias monoparentais, nas quais a responsabilidade pelo sustento da família recai, principalmente, sobre a figura materna. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 136 Merece aqui destaque o fato de que o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) só é enfatizado como fazendo parte da realidade de alguns adolescentes da cidade de Cajazeiras, o que leva a pensar que o Programa criado está muito distante do idealizado. Vale ressaltar, ainda, que as Atividades Domésticas também foram destacadas pelos meninos de ambas as amostras como uma atividade cotidiana, o que só confirma a idéia defendida por Santana et al. (2003) que os meninos em situação de rua não vivem em um total abandono e têm um certo vínculo familiar. Destaca-se, ainda, em relação às atividades exercidas pelos meninos em situação de rua, o fato de, em João Pessoa, alguns participantes (3,33%) terem verbalizado que em sua rotina diária estava incluído o ato de se drogar. Contudo, essa atividade parece estar bem mais presente na rotina dos meninos em situação de rua do que eles disseram: assim 5,00% dos meninos de Cajazeiras e 40,00% dos meninos de João Pessoa declararam ter usado drogas. Obviamente supõe-se que, por fazerem referências a atividades ilícitas, essas porcentagens na realidade poderiam ser bem maiores. No referido especificamente às atividades remuneradas desenvolvidas pelos participantes, verifica-se que em Cajazeiras, apesar dos meninos afirmarem que o trabalho é uma atividade secundária no seu cotidiano, eles ainda listaram uma série de atividades profissionais que já foram desenvolvidas num dado momento de suas vidas. Atividades ilícitas, como roubo, furto e venda de drogas, não foi mencionado pelos adolescentes, o que era esperado, apesar de dados revelarem que um número significativo de meninos em situação de rua se envolve com este tipo de atividade. Parece ser muito mais lucrativa financeiramente que as lícitas, para complementar o seu sustendo e/ou para financiar o vício daqueles que são dependentes de drogas (SIQUEIRA, 1997). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS As crianças e adolescentes que passam os dias nas ruas que participaram deste estudo demonstraram ter conhecimento sobre os direitos, no entanto, trata-se de um conhecimento restrito e pouco elaborado. Julga-se que isto seja decorrente do fato desses participantes não terem as garantias postuladas no Estatuto da Criança e do Adolescente no seu artigo 30: os seus direitos fundamentais são constantemente violados e eles próprios precisam lutar diariamente pela sua manutenção e sobrevivência, ou seja, eles não vivenciaram de forma efetiva os seus direitos de cidadania; as precárias condições de vida e a situação de miséria social a que são submetidos são a expressão máxima dessa violação. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 137 Acredita-se que é incumbência dos Poderes Executivo e Legislativo implementar as políticas sociais através de projetos e ações direcionados às necessidades da criança e do adolescente visando a divulgação (conhecimento) e a efetiva proteção dos direitos. Contudo, considera-se também de suma importância que os diversos segmentos sociais, tais como família, escola, instituições governamentais e sociedade, articulem-se no que diz respeito à formação de jovens autônomos, solidários e participativos, isto é, conscientes da sua cidadania e da sua dignidade. Por fim, dada a riqueza social do tema, os resultados dessa pesquisa não se esgotam nesse estudo. Outrossim, apontam novas possibilidades de análises a serem consideradas em estudos futuros: uma análise quantitativa que considere amostras mais amplas, vialilizando a realização de testes estatísticos inferenciais e/ou análises textuais, e, uma outra análise de cunho qualitativo que explore, de forma mais minunciosa, o contexto social. REFERÊNCIAS ALBERTO, M. F. P. As dimensões subjetivas do trabalho precoce dos meninos e meninas em condição e rua na cidade de João Pessoa. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia)Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. ALVES, P. B. O brinquedo e as atividades cotidianas de crianças em situação de rua. 1998. Dissertação (Mestrado em Psicologia)- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998. _____. et al. Atividades cotidianas de crianças em situação de rua. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 18, n. 3, p. 305-313, 2002. ASSOCIAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DA REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE PORTO ALEGRE. 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El mundo miraba mientras nos llamaban traidores y en las pantallas de los televisores de los hogares, cerradas las puertas no fuera a entrar a la verdad, los hombres escupían a las cámaras desprecio y las mujeres chillaban por teléfono ojos y corazones llenos de rabia incapaces de entender que Tahrir era suya, para ellos, mientras los ojos del gobierno mostraban sólo lo que querían que viéramos Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 141 el sol poniente sobre el Nilo y todo lo que hacía falta era girar lo mínimo la cabeza a la izquierda por el rabillo del ojo un vistazo mostrando la neblina del sol del Cairo entre los gases lacrimógenos, los hombres a la carga por las calles con sus cuerpos solo topando con los camiones de policía que los atropellaban. Los diarios hablaban de disturbios por todo el Mediterráneo pretendiendo que ese día que había comenzado en El Cairo era igual a otro cualquiera. Pero algo había empezado. Hombres y mujeres estremecían la tierra con sus voces. De norte a sur caían cuerpos al suelo, dejaban de latir los corazones pero en Tahrir por ellos mantuvimos alta la cabeza saliendo de los muros por los que, toda nuestra vida, caminamos pegados, ocultos en la sombra de la conformidad y el miedo abrimos al asesinato nuestros pechos, abrimos a las piedras nuestros rostros, a las balas nuestros ojos, nuestras mentes a los molotov que a la cabeza nos lanzaban y dijimos no tenemos miedo. porque el miedo a vivir con la cara enterrada en el suelo de una tierra que no puede ya sentír era nada, nada comparado con el miedo a morir sin haber dicho ni una vez soy libre!. Nancy Messieh, fotógrafa e poeta egípcia, autora do livro de poemas em inglês Photographs Never Taken. ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online Resenhas CONVERSACIONES CON EDWARD SAID Mabel González Bustelo67 Autor: Tariq Ali Alianza, Madrid, 2010- 132 paginas. Un duelo de gigantes. Así podría definirse el contenido de este libro, donde dos amigos que figuran entre los más relevantes intelectuales del siglo XX y de este en el que vivimos; dos voces transgresoras y disidentes, conversan sobre historia, política, música, literatura y, en definitiva, sobre la vida. Edward Said, el más grande cronista del pueblo palestino, evoca en estos diálogos su vida, su implicación en la causa Palestina, pero también su pasión por la literatura y la música, o su convicción de que se ha erigido un muro artificial entre la cultura y la política que es necesario derribar. Cuando esta conversación tuvo lugar, hacía tres años que a Said se le había diagnosticado leucemia, una enfermedad contra la que luchó durante más de diez años hasta su fallecimiento en el año 2003. Los diálogos reproducidos en este libro fueron filmados en 1994, en el apartamento de Edward Said en Riverside Drive (Nueva York). Las sesiones se editaron para convertirse en el documental Una conversación con Edgard Said, producido por Bandung Films para el canal británico Channel 4. Años más tarde, 67 Prof. Facultad de Periodismo da UCM. Jornalista e analista de política internacional. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 143 alguien pidió a Tariq Ali que localizase el material sin editar, para poder disfrutar de la riqueza de los diálogos íntegros. Esta es la trascripción de aquellas conversaciones, prácticamente literal, con poca edición para que la conversación y su ritmo fluyan de forma natural. El resultado es un libro fascinante a dos voces lleno de sentimientos y complicidades. No podía ser de otra forma. Por un lado, Tariq Ali, escritor y cineasta anglo-paquistaní, intelectual comprometido, autor de ensayos políticos e históricos, obras de teatro, novelas y guiones cinematográficos, miembro del consejo editorial de Verso y New Left Review. Por otro, y como protagonista del diálogo, Edward Said, uno de los intelectuales palestinos más importantes del siglo XX, profesor de Columbia, autor de obras de referencia como Orientalismo, Cultura e imperialismo, o La cuestión de Palestina, y miembro del Consejo Nacional Palestino hasta 1991. Ambos, nacidos en culturas de Oriente pero afincados en Occidente; ambos con un firme compromiso político, simpatizantes de la izquierda, y feroces defensores del derecho y el deber del intelectual de ser crítico frente a cualquier ortodoxia. En el inicio del volumen Said desgrana la historia de su vida, íntimamente entrelazada y a la vez lejana de la de Oriente Medio. Nacido en Jerusalén en el seno de una familia cristiana árabe adinerada, todos se ven obligados a trasladarse a Egipto en 1948. Su infancia transcurrió bajo la doble disciplina estricta de su padre y de los colegios británicos donde estudiaba. Llegada la adolescencia fue enviado a EE UU, a un colegio de Nueva Inglaterra que califica de puritano e hipócrita. La ruptura y el desarraigo afloraron en una situación totalmente nueva y desconcertante. Pese a los costes internos, su adaptación fue exitosa y del internado pasó a licenciarse en Princeton y doctorarse en Harvard, para terminar como profesor de Literatura Comparada en Columbia. Su vida plácida como profesor en Columbia se rompió con la guerra de 1967 y la humillante derrota de las tropas árabes frente a Israel. Esto cambió su vida. “En ese momento estaba en Nueva York y me dejó totalmente devastado. El mundo, como yo lo entendía y conocía, había acabado por completo en ese momento. Y fue poco después cuando comencé, por primera vez –ya llevaba viviendo en Estados Unidos quince o dieciséis años- a establecer contacto con otros árabes”. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 144 A partir de entonces Said se implicó a fondo con el movimiento de resistencia. Se convirtió en el intelectual palestino de referencia en Occidente, una voz lúcida, siempre crítica, inagotable. Entre muchas otras cosas, ayudó a escribir el histórico discurso que pronunció Yaser Arafat ante la ONU en 1984. Aquel en el que afirmó que cualquiera que lucha por una causa justa y por la libertad y liberación de su tierra frente a invasores, colonos y colonialistas, no puede ser llamado terrorista. El propio Said había de ser calificado de terrorista en los años siguientes. Aunque defendió la causa palestina de forma incansable hasta su muerte, no sucedió lo mismo con su liderazgo, al que criticó de forma ácida y feroz especialmente a partir de los acuerdos de Oslo. Esto le brindó nuevos enemigos, aunque paradójicamente no aquellos que siempre le habían llamado terrorista y ahora tenían a Isaac Rabin por un traidor, sino la gente de la que había sido más cercano. “La comunidad liberal, la que sentía ligeramente lo que estaba pasando, la que estaba ligeramente horrorizada con la ocupación, ahora estos son los que están tremendamente decepcionados conmigo y dicen que soy un enemigo de la paz, que en realidad soy un fundamentalista islámico, que me opongo desde el extremismo, que lo rechazo todo”. En realidad, Said creía que la cúpula palestina había perdido la visión política y estratégica al aceptar, a cambio de casi nada, un acuerdo tremendamente desventajoso que nunca permitiría emerger una Palestina libre e independiente. Un liderazgo, dice, que negociaba en nombre de un pueblo y un territorio que, tras tantos años de exilio, apenas conocían. Al aceptar un acuerdo que dejaba todas las cuestiones importantes (la ocupación, los asentamientos, los refugiados y el estatus de Jerusalén) abiertas, y por tanto en manos de la potencia más fuerte, Israel, pensó que habían aceptado la muerte de facto de Palestina. A pesar de esta ruptura, nunca dejó de defender los derechos palestinos. Y pese a ella, tampoco oculta su fascinación por la personalidad de Arafat. “Me impresionaron su inteligencia, su rapidez, su memoria, su fantástico atractivo (…). Podía interactuar, mantener siete conversaciones a la vez, hacer veinte cosas distintas –hablar, comer, contestar al teléfono, escribir, ver la televisión, todo al mismo tiempo (…). A diferencia de la mayoría de los líderes árabes, él era accesible”. Aunque su relación fue Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 145 compleja, y Arafat siempre vio y clasificó a Said como un estadounidense, y a pesar de las críticas que luego vendrían, esa fascinación parece haber sobrevivido al paso del tiempo. Arafat, asegura, era diferente a los líderes árabes en una cuestión fundamental: siempre escuchaba, y además parecía entender. Said y Ali abordan también el impacto y la polémica que siguieron a la publicación de Orientalismo, el primer gran ensayo de Said sobre el eurocentrismo cultural. Un producto, como él mismo dice, de su renacida conciencia árabe, y de su convencimiento de que no hay distancia ni separación entre la literatura y la política. “Comencé a leer, metódicamente, lo que se había escrito acerca de Oriente Próximo. Aquello no se correspondía con mi experiencia. A principios de la década de los setenta comencé a darme cuenta de que las distorsiones y las falsificaciones eran sistemáticas, parte de un sistema de pensamiento más amplio y endémico en toda la empresa occidental de las relaciones con el mundo árabe”. Said analizó algunas obras clave del canon estético occidental desde un punto de vista político. En sus propias palabras, trataba de socavar los presupuestos más fundamentales de Occidente con respecto al Oriente árabe, el “discurso” sobre Oriente, construido en Francia y el Reino Unido en los dos siglos posteriores a la invasión napoleónica de Egipto, y que se convirtió en instrumento de la dominación cultural y política occidental. Said se centró en de-construir sus bases: la distorsión, la exotización, la vulgarización, en realidad suposiciones imperialistas presentadas como una verdad universal en beneficio del predominio occidental. El libro tuvo resonancia mundial y amplio respaldo académico. Con los años se ha convertido en un clásico, aunque también le procuró a Said críticas feroces. Tanto en la literatura como en la política Said mantuvo una postura ética que le convirtió en eterno portador de la etiqueta de incómodo y le granjeó respeto y reconocimiento, pero también abundantes y diversos enemigos. Cosmopolita y desarraigado, era un ciudadano de todas partes y de ninguna, algo en lo que quizá coincide con Tariq Ali. Nueva York era, como confiesa en este libro, el lugar ideal para él. El lugar donde cualquiera puede ser anónimo porque nadie se puede sentir como en casa. “Nueva York es una especie de ciudad de exilio. Sin raíces”. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 146 Fiel a su identidad y aunque envuelto en una lucha atroz contra la enfermedad, nunca renunció a su derecho a la divergencia. “Siempre hay una oportunidad, sin importar que uno se sienta contra la pared sin ninguna alternativa excepto someterse; siempre hay una oportunidad de hacer otra cosa. Siempre hay una oportunidad para formular una alternativa, y no sólo quedarse callado o capitular. Creo que para mí es el precepto social más importante, y en cierto sentido rige el modo en el que yo entiendo la política”. Said y Ali abordan otras cuestiones como el colapso de la izquierda árabe y el ascenso del fundamentalismo religioso, o la falta de credibilidad de muchos regímenes árabes contemporáneos. Pero este libro también ilumina otras facetas de Said menos conocidas pero igualmente fascinantes, como su profundo conocimiento y devoción por la música (de Chopin a Glenn Gould, de Messiaen a Boulez, a los que analiza como músico experto y como crítico musical) y la literatura (Conrad, Camus, Kipling...). Guiado por la mano lúcida y cómplice de Tariq Ali, este volumen de conversaciones nos adentra en los pensamientos de dos de los intelectuales más relevantes de nuestros días. Un auténtico lujo, en poco más de cien páginas. Fonte: Revistas Papeles-de-relaciones-ecosociales-y-cambio-global. Nº110. ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online RESUCITAR A MARX Reseña de la última obra de Carlos Fernández Liria y Luis Alegre Zahonero Manuel M. Navarrete Rebelión “En la ciencia no hay calzadas reales y sólo llegarán a sus cimas luminosas quienes no escatimen esfuerzos para escalar sus senderos escarpados” (Karl Marx, prólogo a la edición francesa de El Capital, 1872). I Este artículo pretende ser una reseña de El orden de El Capital, el último libro de los profesores Carlos Fernández Liria y Luis Alegre Zahonero, que acaba de ser publicado por la editorial Akal, con prólogo de Santiago Alba Rico. Pretende, asimismo, ofrecer una somera exposición de ciertas claves de El Capital, acercando la obra magna de Marx a algunos de nuestros lectores que, a priori, podrían considerarla una lectura cuanto menos áspera. Trataremos de convencerlos de que, muy al contrario, afrontar El Capital les resultará siempre fascinante. En esta nueva colaboración, los autores del polémico contramanual de Educación para la ciudadanía (y de una visión ilustrada de la Revolución Bolivariana publicada por Hiru: Comprender Venezuela, pensar la democracia) exponen tesis que, sin duda, van a dar mucho que hablar. Sin embargo, se piense lo que se piense de dichas tesis, nadie podrá Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 148 discutir que esta nueva obra constituye un novedoso instrumento desde el que acercarse a El Capital y arrojar luz sobre sus implicaciones. Fernández Liria suele comentar que, hace una década, justo cuando se disponía a publicar un libro sobre El Capital, Luis Alegre (por aquel entonces, alumno suyo) descubrió un pequeño hilo suelto en la argumentación y, tirando de él, toda la obra se deshizo. El problema surgió a partir del desconcertante hecho de que Marx, después de haber expuesto en el libro I de El Capital que toda mercancía tiene un valor de uso y un valor (de cambio), nos informa, en el libro III, de que las mercancías... no se venden a su valor (tal como éste concepto había sido definido en el libro I), sino a su “precio de producción”. ¿Qué sentido tiene entonces la ley del valor? ¿De qué fenómeno puede dar cuenta? ¿Qué realidad invisible puede sacar a la luz? ¿Para qué, en suma, la pone en juego Karl Marx? II Para empezar, hay que tener en cuenta el dispositivo conceptual que Marx desarrolla en la Sección 1ª del libro I de El Capital. El pensador alemán (un “Galileo de la historia”, en palabras de Liria y Zahonero), en su pretensión de hacer ciencia (y no mero empirismo), genera unas condiciones artificiales de laboratorio que le permiten aislar determinados fenómenos. De este modo, nos sitúa ante un mercado simple de libres productores independientes que intercambian sus mercancías (es decir, productos fabricados para ser vendidos, y no para consumirlos). En dicho mercado, se intercambiarían equivalentes, ya que cada productor buscaría su propio interés y esto generaría un equilibrio espontáneo. Pero ¿qué cualidades comunes podemos encontrar entre dos mercancías completamente diferentes, que posibilite que dichas mercancías sean intercambiadas? Únicamente dos: saciar necesidades humanas (valor de uso) y ser productos del trabajo (mediremos ese trabajo en horas de trabajo: valor de cambio... o valor). Sólo más tarde surgirá, necesariamente, una mercancía que será adoptada como equivalente general (el dinero) y con respecto a la cual se originará un fetichismo, que, erróneamente, hará percibir en ella (y no en el trabajo) la verdadera fuente del valor. Al final de la Sección 2ª, sin embargo, Marx nos despierta de la ilusión, invitándonos a abandonar la ruidosa esfera de la circulación para seguirle hasta la zona de “No admittance except on business” . Nos recuerda, en este punto, que el mundo real no está constituido por productores independientes que intercambian mercancías equivalentes, sino estratificado en dos clases fundamentales, una de las cuales compra la fuerza de trabajo y otra de las cuales la vende. En este caso, las mercancías que se intercambian son salario Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 149 por un lado y fuerza de trabajo por el otro. Resumiendo mucho, por razones de espacio, diremos que la fuerza de trabajo, al trabajar, genera una cantidad de valor superior a la que el salario podrá adquirir más tarde en el mercado. A ese “más-valor” Marx lo denomina, sencillamente, plus-valor. A la clase de hombres que compra fuerza de trabajo, clase capitalista. Al dinero que estos hombres vuelcan en la circulación con el objetivo de generar plusvalor, sencillamente capital. De este capital, una parte será constante (el empleado en materias primas e instrumentos de trabajo, como hoces y martillos) y otra variable (el empleado en contratar a la fuerza de trabajo, cuyo trabajo es el que hace variar la suma inicial de dinero, obteniendo más dinero que, más tarde, volverá a reinvertirse, dando lugar a una reproducción ampliada). Pero ¿cómo se llega a esta situación, que ahora nos parece tan natural, pero que no deja de ser absurda, en la que unas personas son compradoras ricas y otras vendedoras pobres de fuerza de trabajo? ¿Cómo se desemboca en un mundo en el que unos hombres “eligen” trabajar gratis para otros durante varias horas al día (las horas en las que producen el plusvalor) y en el que el intercambio (fuerza de trabajo vs salario) no se da entre valores equivalentes (mundo en el que no rige, por tanto, el principio republicano de igualdad ) ? III En respuesta a estos interrogantes, en los dos últimos capítulos del libro I, Marx introduce algo que, a primera vista, podría parecer una enmienda a sí mismo, pero que cobra sentido dentro de su orden de exposición lógico-categorial: la “acumulación originaria” de capital, que, en toda Europa, tras finalizar la Edad Media, supuso un prolongado y violento proceso histórico de expulsión masiva de la población campesina de sus tierras. También nos habla de la historia de Mr. Peel, empresario de la época que llevó un ejército de trabajadores a Australia, junto con todos los materiales necesario para construir una fábrica, pero que se encontró con que sus trabajadores lo abandonaban para establecerse como campesinos en la tierra virgen de Oceanía (en la cual, por aquel entonces, aún no se había producido una “acumulación originaria”). ¿Qué significa esto? Que una persona sólo vende su fuerza de trabajo cuando ha sido privada de cualquier otro sustento vital (como la tierra). Para Liria y Zahonero, éste es un hecho fundamental, porque de él se deduce que, a pesar de la ficción con la que la sociedad moderna se representa a sí misma, nuestro mundo no está constituido a partir del principio de la propiedad individual (requisito kantiano de la independencia civil, es decir, del principio ilustrado por antonomasia, junto a la libertad y la igualdad), sino, precisamente, a partir de Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 150 su aniquilamiento y sustitución por la gran propiedad capitalista (que supone, en palabras de Marx, la expropiación del 90% restante de la sociedad). Sin embargo, en el libro III, nos encontramos con una nueva vuelta de tuerca: el plusvalor se convierte en ganancia y el valor en precio de producción. ¿Qué significa esto? En el libro I, que narraba cómo funcionaría la circulación mercantil si existiera, digamos, una sola empresa, sólo el capital variable hacía variar (y, obviamente, crecer) el valor inicial desembolsado por el capitalista, mientras que el constante (maquinaria y materia prima), al hacer uso de él, iba transmitiéndose al valor de la mercancía progresivamente. Ahora, sin embargo, en mitad de la concurrencia capitalista, nos encontramos con que se produce una nivelación de las tasas de ganancia y las empresas no obtienen beneficios en función del dinero invertido en capital variable, sino una cantidad proporcional al capital total invertido. ¿Por qué? Porque, en una situación de competencia, los precios que establece una empresa están determinados por la tasa de ganancia media de su rama, y no por la tasa de plusvalor creada en el interior de dicha empresa en particular. De este modo, si puede vender un poco más caro (aprovechando, por ejemplo, una productividad superior a la media), en su ánimo de lucro, lo hará. El juego de la oferta y la demanda, además, tiene también su influencia sobre el precio final de mercado. Pero, entonces, ¿qué sentido tiene para Marx la ley del valor? ¿Por qué Marx, al inicio de El Capital, nos remite a un mercado generalizado de equivalentes, si éste nunca ha existido históricamente? ¿Por qué al final del libro I introduce lo que, sólo en apariencia, sería una auto-enmienda? ¿Y por qué en el libro III, miles de páginas más tarde, nos aclara finalmente la cuestión de los precios? ¿Qué sentido tiene, en suma, el desconcertante orden de los capítulos y libros de El Capital? IV Según la teoría de Liria y Zahonero, la ley del valor no consigue determinar los precios, porque tampoco lo intenta. Para Marx, la cuestión de cómo los capitalistas se reparten el plusvalor entre ellos es algo secundario (que se afronta, como hemos visto, en el libro III) . Lo primordial es investigar cómo es posible que en la sociedad moderna aparezcan dos clases fundamentales de seres humanos: los compradores ricos y los vendedores pobres de fuerza de trabajo. Para fundamentar el concepto de explotación, era estrictamente necesario construir previamente el concepto de plusvalor (y los conceptos de trabajo necesario y plustrabajo , dando cuenta de cuántas horas diarias trabaja el obrero para sí mismo y cuántas lo hace gratuitamente para engordar la fortuna del capitalista) y, obviamente, este Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 151 concepto de plusvalor no podía construirse sin la teoría del valor. También es significativo que Marx abandone, desde el principio, la denominación “valor de cambio”, para hablar de algo diferente: el “valor”. Pero no fueron pocos, nos dicen Liria y Zahonero, los marxistas que vinieron a embrollar aún más la situación, recurriendo al as en la manga de la aufhebung hegeliana, capaz de dar cuenta de una identidad entre contrarios (en este caso, entre los libros I y III de El Capital ). Al igual que Althusser (pero a diferencia de Lukács o, por citar un autor actual, Kohan), Liria y Zahonero consideran que Marx, tras su ruptura epistemológica, conserva la dialéctica como un mero recurso expositivo, pero no como dispositivo teórico fundamental ni como método de comprensión de la realidad. Para nuestros autores, el precio no es la verdadera expresión del valor, sino que estos dos términos remiten a dos consistencias estructurales diferentes, con implicaciones diferentes también. Porque la primera de ellas, la consistencia-valor, al estar determinada sólo por el capital variable, remite a las mercancías como productos del trabajo humano, no considerando todavía dicho trabajo como la consecuencia de una inversión de tipo capitalista. En cambio, desde la categoría “precio de producción” (es decir, desde los ojos del capitalista, desde la circulación del dinero como capital y no como simple dinero), las diferencias entre funcionar y trabajar (capitales constante y variable), o incluso entre invertir y trabajar (compra y venta de fuerza de trabajo), se diluyen, al no tener consecuencias económicas directas para su bolsillo. Sin embargo, para el científico social, dichas diferencias sí conllevan cruciales implicaciones metodológicas, porque someten al sistema a dos interrogantes distintos. Así pues, la construcción, al inicio del libro I, de lo que anteriormente denominamos “condiciones artificiales de laboratorio” nos permite aislar un fenómeno (el de la explotación de una clase por otra), mientras que, en contraste, el libro III constituye ya una constatación empírica y descriptiva del funcionamiento real de la sociedad capitalista. Y el orden de los libros de El Capital no implica, como asumió una parte de la tradición marxista, que baste tirar del hilo de la “libertad-para-hacer-lo-que-quiera-con-lo-que-es-mío” (es decir, de la lógica del libro I) para obtener, sin más, el mercado generalizado capitalista (o sea, la lógica del libro III), sino que, por el contrario, para llegar a esta última situación fue necesario, como ya hemos visto, introducir un mecanismo completamente ajeno y diametralmente opuesto a esa o cualquier otra libertad: el terror y la sangre de la acumulación originaria. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 152 V Los economistas burgueses, por su parte, acusaron naturalmente a Marx de incoherencia, ya que no comprendieron (o no les interesó comprender) el papel de la teoría del valor en la Sección 1ª de El Capital. Además, en su grotesco afán por justificar la estructura del poder capitalista, estos economistas trataron de asimilar nuestra realidad a un mercado justo e igualitario, en tanto que todos, compradores y vendedores de fuerza de trabajo, aparecen como propietarios de algo, que intercambian libremente. Sin embargo, la Ilustración (empezando por Kant) jamás habría aceptado la ficción jurídica que supone llamar propietario al que no posee nada exterior a sí mismo, salvo su propio pellejo, porque, obviamente, tal noción carecería de sentido jurídico, ya que, en ese caso, nadie podría no ser propietario. El pensamiento ilustrado tampoco habría aceptado jamás que se pudiera considerar ciudadano a alguien desprovisto de independencia civil; es decir, a alguien que, al no poseer nada, depende de otros para obtener su sustento. Ahora bien, efectivamente, una vez puesta en juego la “acumulación originaria”, una vez despojada la población de sus medios de subsistencia, los obreros aparecerán en el mercado y venderán su fuerza de trabajo libremente (aunque, en cambio, no tendrán libertad para cambiar de “sector” y pasar a ser compradores, en lugar de vendedores, de fuerza de trabajo...), especialmente porque la única alternativa a ejercer esa peculiar libertad (la libertad, recordemos, para vender fuerza de trabajo) será, en realidad, la muerte de hambre. Por otro lado, una vez activado este mecanismo, una auténtica liberación se hace imposible, porque, en la esfera económica, todo incremento de la libertad individual conllevará, automáticamente, un incremento de la dominación y un deterioro de las condiciones de vida. ¿Por qué? Porque, por ejemplo, si la negociación de los contratos de trabajo es libremente individual, en lugar de imperativamente colectiva, dada la existencia de una masa permanente de parados (que Marx llama “ejército industrial de reserva”), siempre habrá alguien dispuesto a vender su mano de obra por un salario más bajo del que perciban los que ya estén trabajando. Así, de no existir la negociación colectiva y sindical, los salarios descenderían hasta el límite mínimo de la subsistencia, generándose, como demostró Karl Polanyi, unas condiciones sencillamente incompatibles con el ejercicio de cualquier libertad o derecho. Así pues, ni igualdad, ni independencia civil, ni libertad. El capitalismo no fue (como trata de aparentar) el legítimo sucesor de la Ilustración, sino que, en un auténtico coup d'état, la traicionó y falsificó descaradamente. Tal es la tesis fundamental de este sugerente libro Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 153 (tesis en la que aquí, por razones de espacio, no profundizaremos más, pero para cuya comprensión recomendamos la lectura directa de la obra de Liria y Zahonero). VI ¿Qué alternativas nos deja esta situación? La socialdemocracia, nos dicen nuestros autores, ha tratado de reformar el capitalismo o de hacerlo “más humano”, sin comprender que el Estado de bienestar fue una excepción histórica, lograda hace más de medio siglo por un sindicalismo radicalizado y ante la presión política de la Unión Soviética (que tenía una “quinta columna” en todos los países del mundo), es decir, en una correlación de fuerzas que no volverá a darse en mucho tiempo, si es que se vuelve a dar. Para colmo, la socialdemocracia no tuvo en cuenta que el nivel de vida del Primer Mundo es un privilegio imposible de generalizar a todo el planeta, dato que ha sido demostrado matemáticamente por el Global Footprint Network (California). Obvió, asimismo, que, bajo el capitalismo, el Estado de bienestar sólo es posible sobre la base de lo que Emmanuel Arrighi denominó “intercambio desigual”. Dado que los capitales no chocan contra fronteras institucionales, pero las personas sí, la clase obrera no podrá trasladarse a las empresas del mundo que ofrezcan mejores salarios, sino que, con suerte, podrá elegir entre las que existan en un determinado país. Por tanto, aunque las tasas de ganancia tenderán, como siempre, a nivelarse a escala global (nivelación de la que, como vimos, dependen los precios), las tasas de explotación, en cambio, serán diferentes en cada marco de relaciones laborales, en función de los éxitos y derrotadas en las luchas políticas, sindicales y de clases. En consecuencia, un salario primermundista dará acceso a bienes en los que habrá cristalizada una cantidad de horas de trabajo tercermundista muy superior a la que el trabajador primermundista ha necesitado efectuar para cobrar su salario, produciéndose, de facto, un fenómeno de explotación global del norte al sur (lo que, obviamente, no anula la contradicción entre clases también existente en el norte). Descartados el capitalismo (que motiva esta auténtica barbarie) y la socialdemocracia (ineficaz para contener al capitalismo), como conclusión, Liria y Zahonero aclaran cuál es la alternativa que proponen: el comunismo, la cooperativización o incluso estatalización de los medios de producción. Sin embargo, aclaran también que, como proyecto político, no están dispuestos a defender cualquier versión posible del comunismo (como tampoco lo estuvo Marx), sino sólo una versión que respete los principios de la Ilustración (que el capitalismo, como hemos visto, proclama pero a la vez anula): la igualdad, la independencia civil y la libertad, como exigencias irrenunciables de la razón. Además, matizan que, en una sociedad Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 154 socialista, podrían encomendarse determinadas funciones, como la asignación de recursos escasos, a un mercado controlado. VII Ésta es, pues, la resurrección de Marx que los autores de El orden de El Capital proponen. Una resurrección que, por supuesto, tendrá sus seguidores y sus detractores. Pero a la que todos, incluso sus detractores, tendrán que reconocer el mérito de ir más allá de la merarepetición-inútil de las ideas de nuestro gigante del pensamiento y, en definitiva, de proponer algo mejor: una reapropiación crítica de su genial método de análisis de la sociedad capitalista. Un método que, a día de hoy, sigue demostrando extraordinaria fertilidad. Esperamos, para terminar, que no sea preciso insistir en la importancia (tan subestimada por la estrechez de miras del espontaneísmo) del análisis teórico para un correcto diseño de la táctica política. Por eso, como dirían los autores de esta magnífica obra, hay que leer, o seguir leyendo, El Capital. Fonte: rebelión.org ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online Notícias DEFAULTS Alfredo Zaiat68 En una muestra de 66 países de los cinco continentes, que representan el 90 por ciento del PBI mundial, se relevó que en el período 1800-1945 se registraron 127 episodios de default, con una duración promedio de 6 años. En los años que van de 1946 a 2006, la interrupción en el pago de deudas se repitió 169 veces, de lapso medio de 3 años. Ese inventario también abarcó de 1300 a 1799, cuando países europeos considerados hoy muy ricos (Alemania, Francia) contabilizaron varios acontecimientos de cesación de pago, al igual que Austria, España y Portugal. Estados Unidos no declaró formalmente un default pero alteró en dos oportunidades la paridad del dólar con el oro (1933 y 1971), lo que implicó pagar su deuda con una moneda depreciada, que en los hechos significó una quita de capital a los acreedores. Este recorrido histórico forma parte de una investigación apabullante de cifras e indicadores de los economistas Kenneth Rogoff (ex economista jefe del FMI) y Carmen Reinhart (ex vicepresidente del banco de inversión Bear Stearns) en “Ocho siglos de crisis financieras. Historia mundial de los defaults”. Es un libro oportuno en momentos donde el temor al default de deuda de economías europeas provoca fuertes oscilaciones en las cotizaciones de activos financieros y puede sumergir a las potencias en una nueva recesión. La perspectiva histórica ofrece un análisis más sereno en un escenario de incertidumbre y desmorona afirmaciones ligeras vinculadas con lo que representa un default, en particular con la cercana experiencia argentina. 68 Economista, comentarista de economia do jornal Pagina 12. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 156 Rogoff advierte que “los inversores, como los funcionarios y líderes políticos, generalmente ignoran las muchísimas experiencias históricas de crisis financieras. Y los pocos que tienen una mínima noción de lo sucedido en otras épocas muy a menudo dicen: ‘esta vez es diferente...’”. Junto a Reinhart han registrado los defaults de deudas externas de 66 países: 13 africanos, 18 latinoamericanos, 12 asiáticos, 19 europeos, además de Norteamérica y Oceanía. En una de sus conclusiones afirman que “los defaults en serie siguen siendo la norma” a lo largo de la historia, destacando que entre 2003 y 2007 no hubo esos episodios pero que no es motivo para alegrarse porque fue “un típico respiro, una típica tregua, luego de una larga crisis”, y que desde entonces se ha iniciado una nueva ola. En esa investigación se observa como factor distintivo que los defaults recorren toda la historia del capitalismo. Ocurrieron en diferentes etapas, desde la formación de los Estados nacionales, el mercantilismo, el capitalismo moderno hasta la globalización financiera. Una de las características que destacan es que “el fenómeno de los defaults más bien pareciera un rito de pasaje universal para casi todos los países mientras transitan el camino desde la condición de emergente a la de Estados desarrollados”. Ponen como ejemplo a Francia, que defaulteó los pagos de su deuda externa 8 veces entre 1558 y 1788, mientras que España lo hizo 6 veces entre 1557 y 1647. En esa época los defaults eran tan usuales que los reyes franceses ejecutaban a sus acreedores (bloodletting) como estrategia para “reestructurar deudas”. El ministro de Finanzas francés Abbe Terray entre 1768-1774 reivindicó que los gobiernos deberían defaultear una vez cada cien años, a fin restaurar el equilibrio. Con esos antecedentes, afirman que “no sería justo calificar a ninguno de los mercados emergentes de hoy con el título de defaulteador serial”. Desde 1800 los datos son más completos, lo que les permitió agrupar los episodios de cesación de pago en cinco ciclos: - El primero es durante las Guerras Napoleónicas, período que fue muy importante puesto que solo en el peor momento de la crisis de la deuda de 1980 se aproxima a los niveles de defaults de comienzos de 1800. - El segundo va de 1820 hasta finales de 1840, cuando cerca de la mitad de todos los países del mundo estaban en default, incluyendo a todos los de América latina. - El tercer capítulo arrancó a principios de la década de 1870 y duró aproximadamente dos décadas. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 157 - El cuarto comenzó con la Gran Depresión de los años ’30 del siglo pasado y se extendió hasta principios de la década del ’50. En estos años que siguieron a la Segunda Guerra Mundial se produjo el pico más grande en la historia moderna, cuando los países que no pagaban o estaban reestructurando sus deudas representaron el 40 por ciento del Producto mundial. Esto se explica por la guerra pero también por el arrastre de la crisis económica del ’30. - La etapa más reciente fue entre los años ’80 y ’90 en los países en desarrollo, con el caso argentino como el más notable. Si bien es el incumplimiento de deuda más reciente y estruendoso por su magnitud, en el estudio de Rogoff y Reinhart se revela que Argentina no se encuentra al tope de los países defaulteadores de la región. Desde su independencia al 2006, Argentina defaulteó 7 veces; Brasil lo hizo en 9 oportunidades; México en 8; y Venezuela en 10. También se precisa que Ecuador, México, Perú, Venezuela y Nicaragua estuvieron en cesación de pagos o reestructurando deudas más del 40 por ciento de los años transcurridos desde que lograron la independencia. Argentina, 32 por ciento. En Europa, España defaulteó el record de 13 veces; Alemania y Francia lo hicieron 8 veces cada uno. Grecia, 5 desde 1829, pero más del 50 por ciento de los años estuvo en default o reestructurando. Pocos países no han defaulteado formalmente: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Nueva Zelanda, Australia, Bélgica, Suecia, Noruega, Dinamarca, Finlandia, Corea del Sur, Singapur. De todas formas, algunos de ellos defaultearon de hecho, como Estados Unidos. Lo hizo cuando rebajó el contenido de oro de la moneda en 1933 o cuando suspendió la convertibilidad en el siglo XIX durante la Guerra Civil y luego otra vez más y definitiva en agosto de 1971. Una de las enseñanzas más contundentes que Rogoff y Reinhart extraen de su monumental investigación es “la impresionante correlación entre la libre movilidad del capital y la ocurrencia de crisis bancarias”. “Los defaults son altamente sensibles a los vaivenes de los flujos de capitales”, indican, lo que revaloriza una estrategia de desendeudamiento y marginación del mercado financiero internacional, conducta que transita a contramano de la evolución histórica de los países en un contexto de abundancia de capitales que induce a un sobreendeudamiento. Este proceso desembocó en crisis por algún shock externo (suba de la tasa de interés, baja de las materias primas o crisis de deuda en las potencias) y pone en evidencia la vulnerabilidad de esas economías. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 158 En esta instancia resulta un valioso complemento el análisis del economista de formación marxista Rolando Astarita, que explica en su blog que “los defaults han permitido restablecer el curso de la acumulación a lo largo de prácticamente toda la historia del capitalismo”. Agrega que ésta “está marcada por períodos de intensa acumulación, que llevan a la sobreexpansión, empujada por el crecimiento del crédito y el aumento de los flujos de capitales”. Las crisis bancarias se deben a que las fases alcistas son seguidas por crisis de sobreproducción, con violentas caídas de los precios y los valores. “La acumulación de deudas por parte de los gobiernos, y su posterior liquidación violenta, no es ajena a esta dinámica”, apunta, puesto que “los defaults de las deudas externas de los gobiernos forman parte de las desvalorizaciones de capitales, que acompañan toda crisis”. El repudio de las deudas o su pago con moneda depreciada son las vías por medio de las cuales se realizan esas desvalorizaciones. Por esto también, en determinado punto, se acuerda que la única salida para restablecer la acumulación del capital pasa por el default y la reestructuración de las deudas. Sucedió en Argentina en 2001 y es lo que se vislumbra hoy para Grecia. Como dicen Rogoff y Reinhart en el último párrafo de la investigación, pensar que Grecia u otro país europeo “nunca más defaultearán porque ‘esta vez es diferente’ debido a que ‘esta vez está de por medio la Unión Europea’ podría revelarse en cualquier momento, no necesariamente en el largo plazo, como una inferencia poco feliz. Como tantas otras de la historia financiera mundial”. Fonte: Pagina12: 08.10.2011 ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online QUEN DEVE A QUEN? A VERDADEIRA DIVIDA EXTERNA A propósito da crise atual da União Européia e a polemica sobre si Brasil e outros países latino-americanos devem o não colaborar com o FMI para ajudar a Europa, apresentamos uma dissertação do Cacique Guaicaipuro Cuatémoc perante a reunião de Chefes de Estado da UE, proferido no aniversario dos 500 anos do descobrimento de América. Com linguagem simples, que era transmitido em tradução simultânea a mais de uma centena de Chefes de Estado da Comunidade Européia, o líder indígena, Guaicaipuro Cuatémoc conseguiu inquietar a sua audiência quando discorreu: "Aquí pues yo, Guaicaipuro Cuatémoc he venido a encontrar a los que celebran el encuentro. Aquí pues yo, descendiente de los que poblaron la América hace cuarenta mil años, he venido a encontrar a los que la encontraron hace sólo quinientos años. Aquí pues, nos encontramos todos. Sabemos lo que somos, y es bastante. Nunca tendremos otra cosa.” El hermano aduanero europeo me pide papel escrito con visa para poder descubrir a los que me descubrieron. El hermano usurero europeo me pide pago de una deuda contraída por Judas, a quien nunca autoricé a venderme. El hermano leguleyo europeo me explica que toda deuda se paga con intereses, aunque sea vendiendo seres humanos y países enteros sin pedirles consentimiento. Yo los voy descubriendo. También yo puedo reclamar pagos y también puedo reclamar intereses. Consta en el Archivo de Indias, papel sobre papel, recibo sobre recibo y firma sobre firma, que Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 160 solamente entre el año 1.503 y 1660 llegaron a San Lucas de Barrameda 185 mil kilos de oro y 16 millones de kilos de plata provenientes de América. ¿Saqueo? ¡No lo creyera yo! Porque sería pensar que los hermanos cristianos faltaron a su Séptimo Mandamiento. ¿Expoliación? ¡Guárdeme Tanatzin de figurarme que los europeos, como Caín, matan y niegan la sangre de su hermano! ¿Genocidio? Eso sería dar crédito a los calumniadores, como Bartolomé de las Casas, que califican al encuentro como de destrucción de las Indias, o a ultrosos como Arturo Uslar Pietri, que afirma que el arranque del capitalismo y la actual civilización europea se deben a la inundación de metales preciosos!. ¡No! Esos 185 mil kilos de oro y 16 millones de kilos de plata deben ser considerados como el primero de muchos otros préstamos amigables de América, destinados al desarrollo de Europa. Lo contrario sería presumir la existencia de crímenes de guerra, lo que daría derecho no sólo a exigir devolución inmediata, sino la indemnización por daños y perjuicios. Yo, Guaicaipuro Cuatémoc, prefiero pensar en la menos ofensiva de estas hipótesis. Tan fabulosa exportación de capitales no fueron más que el inicio de un plan "Marshalltezuma", para garantizar la reconstrucción de la bárbara Europa, arruinada por sus deplorables guerras contra los cultos musulmanes, creadores del álgebra, la poligamia, el baño cotidiano y otros logros superiores de la civilización. Por eso, al celebrar el Quinto Centenario del Empréstito, podremos preguntarnos: ¿han hecho los hermanos europeos un uso racional, responsable o por lo menos productivo de los fondos tan generosamente adelantados por el Fondo Indoamericano Internacional? Deploramos decir que no. En lo estratégico, lo dilapidaron en las batallas de Lepanto, en armadas invencibles, en terceros reichs y otras formas de exterminio mutuo, sin otro destino que terminar ocupados por las tropas gringas de la OTAN, como en Panamá, pero sin canal. En lo financiero, han sido incapaces, después de una moratoria de 500 años, tanto de cancelar el capital y sus intereses, cuanto de independizarse de las rentas líquidas, las materias primas y la energía barata que les exporta y provee todo el Tercer Mundo. Este deplorable cuadro corrobora la afirmación de Milton Friedman según la cual una economía subsidiada jamás puede funcionar y nos obliga a reclamarles, para su propio bien, el pago del capital y los intereses que, tan generosamente hemos demorado todos estos siglos en cobrar. Al decir esto, aclaramos que no nos rebajaremos a cobrarles a nuestros Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 161 hermanos europeos la viles y sanguinarias tasas del 20 y hasta el 30% de interés, que los hermanos europeos les cobran a los pueblos del Tercer Mundo. Nos limitaremos a exigir la devolución de los metales preciosos adelantados, más el módico interés fijo del 10 por ciento, acumulado sólo durante los últimos 300 años, con 200 años de gracia. Sobre esta base, y aplicando la fórmula europea del interés compuesto, informamos a los “descubridores” que nos deben, como primer pago de su deuda, una masa de 185 mil kilos de oro y 16 millones de plata, ambas cifras elevadas a la potencia de 300. Es decir, un número para cuya expresión total, serían necesarias más de 300 cifras, y que supera ampliamente el peso total del planeta tierra. Muy pesadas son esas moles de oro y plata. ¿Cuánto pesarían, calculadas en sangre? Aducir que Europa, en medio milenio, no ha podido generar riquezas suficientes para cancelar ese módico interés, sería tanto como admitir su absoluto fracaso financiero y/o la demencial irracionalidad de los supuestos del capitalismo. Tales cuestiones metafísicas, desde luego, no nos inquietan a los indoamericanos. Pero sí exigimos la firma de una Carta de Intención que discipline a los pueblos deudores del Viejo Continente; y que los obligue a cumplir su compromiso mediante una pronta privatización o reconversión de Europa, que les permita entregárnosla entera, como primer pago de la deuda histórica...." … Dicen los pesimistas del Viejo Mundo que su civilización está en una bancarrota que les impide cumplir con sus compromisos financieros o morales. En tal caso, nos contentaríamos con que nos pagaran entregándonos la bala con que mataron al poeta. Pero no podrán; porque esa bala es el corazón de Europa. Quando o Cacique Guaicaipuro Cuatémoc deu sua conferencia perante a reunião de Chefes de Estado da Comunidade Européia, no sabia que estava expondo una tese de Direito Internacional para determinar a verdadeira divida externa, agora só resta que algum governo latino-americano tenha o valor suficiente para fazer o reclamo perante os Tribunais Internacionais. Fonte: www.elhistoriador.com.ar ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online UN ESTUDIO CON PECES APUNTA A QUE LA IGNORANCIA FAVORECE LA DEMOCRACIA Si un cierto número de individuos no tiene preferencia por un bando u otro, finalmente se acaba uniendo al grupo más numeroso y el control de la decisión regresa a la mayoría Washington. (EFE).- Un estudio realizado con un banco de peces demuestra que cuando un grupo quiere tomar una decisión, los más ignorantes pueden contrarrestar la posición de un grupo minoritario que quiere imponer su opinión, sumándose a la mayoría. El estudio titulado Los individuos sin formación promueven el consenso en grupos animales, saldrá publicado el viernes en el número del 16 de diciembre de la revista Science. El profesor Ian Couzin, del departamento de Ecología y Biología Evolutiva de la Universidad estadounidense de Princeton se plantea si la ignorancia puede favorecer la democracia. El equipo parte de la premisa de que cuando un grupo debe tomar una decisión por consenso, los miembros más testarudos pueden intimidar en los procesos decisivos para imponer su posición, aunque estén en minoría. No obstante, el estudio, realizado con bancos de peces, demuestra que contar con miembros no formados en el grupo puede ayudar a contrarrestar ese efecto. "Este resultado es inesperado, porque cuando un grupo incluye individuos sin fuertes preferencias parecería que son más vulnerables a la influencia de una minoría extremista", indica la investigación. Los investigadores primero desarrollaron un modelo experimental basado en la congregación animal y otro en dinámicas de grupo en el que, ante dos objetos posibles a los que dirigirse, una pequeña minoría podría dictar las decisiones del grupo. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 163 Sin embargo, si un cierto número de individuos no tiene preferencia por un blanco u otro, finalmente acaban uniendo al grupo más numeroso y el control de la decisión regresa a la mayoría. Los autores probaron estas predicciones en bancos de peces de la especie Notemigonus crysoleucas conocidos como carpitas doradas o sardinilla de quilla. Entrenaron a los peces para moverse hacia un plato azul o amarillo y observaron el comportamiento de los peces instruidos cuando fueron mezclados con otros que no habían recibido ningún tipo de entrenamiento. Los resultados experimentales confirmaron que los individuos no formados pueden promover un resultado democrático al hacer valer la representación igualitaria de preferencias en un grupo. "El trabajo de Couzin es un aporte importante en el estudio del comportamiento y la toma de decisiones de grupos grandes", dijo a Efe, Carl Begstro, de la Univesidad de Washington en Seattle, que publica un comentario sobre el artículo en Science. Sin embargo, aclara que "hay que ser muy cautelosos, y no saltar de un estudio como éste a extrapolaciones sobre la forma en que los humanos toman las decisiones". "Nuestro modelo se refiere, exclusivamente, a una minoría empecinada que no cambia su opinión", explicó. A diferencia de lo que sucede en el mundo real, "no es una minoría que haga esfuerzo alguno por persuadir a otros en el grupo mayor, sino que mantiene inflexiblemente sus posiciones. Esto no es lo que ocurre normalmente cuando hablamos de sistemas de votación o como funciona la democracia entre los humanos. Ésa no fue la intención". Fonte: http://www.lavanguardia.com/vida/20111216/54241164970/estudio-ignoranciafavorece-democracia.html ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online Resumos dos Trabalhos O TERREIRO E A CIDADE: Ancestralidade e territorialidade nas disputas pelo espaço público THE YARD AND THE CITY: Ancestry and territory in dispute of public space Resumo Os movimentos sociais negros incorporam em suas narrativas políticas as comunidades religiosas de matriz africana como parte das lutas de emancipação negro-africana no Brasil. A identidade “negro-africana” articula as diversas identidades sociais, políticas ou religiosas do campo afro-brasileiro. A ancestralidade, como relação entre “negritude/africanidade”, converte-se em lugar de uma tensão inerradicável, conformando as demandas das comunidades religiosas afro-brasileiras como religiões “territoriais” em sua luta pelo uso do espaço urbano. O “retorno à África” é um modo de territorialização diaspórica do espaço urbano, influenciando a organização política dos grupos religiosos, a formulação de suas demandas sociais e a implantação das políticas públicas. Contudo, a construção dessas demandas e das políticas se dá fortemente influenciada pelos discursos políticos dos movimentos sociais negros e do Estado. A demanda política das religiões não é a mera expressão política de sua "natureza territorial", muito menos, a formulação e a implantação das políticas são a mera transferência dessa demanda para o campo do Estado. Há transformações significativas que ocorrem nos percursos de constituição da representação política de uma identidade religiosa, transformações que têm um efeito de feedback sobre essa última. Palavras-chave: relações étnico-raciais, ancestralidade, movimentos sociais negros, espaço urbano, políticas públicas. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 165 Abstract Black social movements involve religious communities of African origin in their political narratives as part of the Black-African emancipation fight in Brazil. Black-African identity engages several social, political and religious identities, from the Afro-Brazilian field. Ancestry considered as a relationship between being black and having African origin becomes an ineradicable tension, making the demands from afro-Brazilian religious communities “territorial” religions in their fight for urban space. The “return to Africa” is a form of diasporic territorialisation of the urban space, influencing the political organization of religious groups, the formulation of their social demands and the implantation of public politics. However, the formation of such demands and of politics is strongly influenced by political speeches of the black social movements as well as by the State. The political demand of religions is not a mere political expression of its “territorial nature”, nor is their formulation and implantation a mere transfer of such demand to the field of the State. There are relevant transformations that occur during the constitution of political representation of a religious identity, transformations that have a feedback effect over the transformation. Keywords: race and ethnic relations, ancestry, black social movements, urban space, public politics. ELEMENTOS CONSTITUTIVOS E DINÂMICOS DA CORRUPÇÃO: Um exercício conceitual CONSTITUENT ELEMENTS AND DYNAMICS OF CORRUPTION: A conceptual exercise Resumo Conceituar corrupção constitui um dos maiores desafios para aqueles que têm esse tema como objeto de pesquisa. Sugere-se uma miríade de conceitos, que em grande parte, são marcadamente imprecisos, tanto no que se refere a apontar os elementos e a dinâmica em torno do fenômeno, como também seu espaço de manifestação. Esse quadro impõe assim uma importante barreira para investigações empíricas sobre o tema, o que dificulta fortemente sua mensuração, bem como estratégias para explicar seus condicionantes e suas consequências. Aliado a dificuldade conceitual, os estudos sobre corrupção tem seu nível de dificuldade incrementado por se configurar um crime que, via de regra, é considerado inobservável. Diferentemente de outros crimes onde há sempre alguém disposto a denunciar, corruptos e corruptores se empenham em apagar vestígios de suas práticas. A despeito dos limites, fazem-se necessários reflexões teóricas e avanços metodológicos que busquem superar as barreiras que envolvem o estudo sobre o tema. Este trabalho tem como objetivo contribuir com o primeiro aspecto, em que se apresenta um Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 166 conceito de corrupção que pretende ser operacional empiricamente. Expõe-se um conceito que se distingue crimes assemelhados e que comumente são utilizados como sinônimos de corrupção. Com isto pretende-se, portanto, diminuir os problemas referentes à imprecisão conceitual. Palavras-chave: Corrupção, tríade da corrupção, interação voluntária. Abstract Conceptualizing corruption is one of the main challenges for those who do research on this theme. A myriad of concepts is suggested, but in great part such concepts are markedly inaccurate, in both pointing out the elements and the dynamics surrounding the phenomenon as well as its space of manifestation. This framework imposes an important barrier to empirical investigations on the theme, complicating its measurement and strategies to explain their conditions and consequences. Together with conceptual difficulties, studies about corruption have their level of difficulty intensified, becoming a crime which, as a rule, is considered unobservable. Differently from other crimes where there’s always someone willing to denounce, corrupts and corruptors strive to erase traces of their practices. Despite limitations, it is necessary to theoretically reflect on and methodological advances that seek to overcome barriers that involve the study over the theme. This paper aims to contribute to the first aspect, in which a concept of corruption that intends to be empirically operational is presented. A concept which differs similar crimes and that commonly is used as synonyms of corruption are exposed. It is intended, therefore, to reduce problems related to conceptual imprecision. Keywords: Corruption, triad of corruption, voluntary interaction. Hermes Augusto Costa Doutor em Sociologia. Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais. E-mail: [email protected] TRABALHO E INTEGRAÇÃO EUROPEIA: Um balanço sobre o caso português LABOUR AND EUROPEAN INTEGRATION: An investigation of the Portuguese case Resumo Este texto analisa algumas das principais transformações que ocorreram no domínio laboral em Portugal após 25 anos de adesão de Portugal à União Européia (UE). Argumenta-se que ocorreram de facto alguns impulsos modernizadores em vários domínios do mercado de Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 167 trabalho, mas a realidade dos números e das práticas mostra igualmente que Portugal se encontra próximo da “liderança” do atraso em muitos aspectos. Inclusive numa Europa mais alargada como é hoje a UE composta por 27 Estados-Membros. Palavras-chave: mundo do trabalho; integração européia; Portugal; progressos/atrasos Abstract: This paper examines some of the main changes that have occurred in labour in Portugal after 25 years of Portugal's accession to the European Union (EU). It is argued that there were some modernizing impulses in various areas of the labor market, but numbers and practice show that Portugal is close to the "leadership" of delay in several aspects, including in an enlarged Europe composed of 27 Member States. Keywords: labour world, European integration, Portugal, progress/delay O CONHECIMENTO DOS DIREITOS PARA ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA1 THE KNOWLEDGE OF THE RIGHTS FOR HOMELESS TEENAGERS Resumo O presente estudo teve como objetivo geral conhecer as concepções de direitos de adolescentes que passam o dia nas ruas. Administrou-se um questionário a 50 adolescentes em situação de rua das cidades de Cajazeiras e João Pessoa, no Estado da Paraíba. Os participantes responderam a questões sobre os direitos humanos e sobre aspectos relevantes do seu perfil sócio-demográfico. De um modo geral, os resultados denotaram que os participantes das duas cidades tinham um conhecimento limitado sobre as noções de direito e apresentavam características sócio-demográficas muito semelhantes das demais crianças e adolescentes brasileiras em condição de rua. Palavras-chave: adolescentes em situação de rua; direitos humanos; adolescentes Abstract The objective of the present study is to know homeless teenagers’ conceptions of rights. A questionnaire was applied to 50 homeless teenagers in Cajazeiras and João Pessoa, cities in the State of Paraíba. The participants have responded to questions about children’s and teenagers’ rights and also about relevant aspects of social-demographic profile. In general, results have shown that the participants’ knowledge from the two cities was limited concerning the notions of right and social-demographic aspects, presenting very similar characteristics to other Brazilian homeless teenagers. Keywords: homeless teenagers; human rights; teenagers. Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 168 TRANSICIÓN DEMOCRÁTICA Y NEOLIBERALISMO: La crisis de la deuda externa en Argentina DEMOCRATIC TRANSITION AND NEOLIBERALISM: The external debt crisis in Argentina TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E NEOLIBERALISMO: A crise da dívida externa em Argentina Resumo Com o objetivo de entender como o neoliberalismo penetrou em Latino América durante a década dos 80, este artigo analisa o processo de negociação da dívida externa entre as autoridades argentinas e as do FMI no tempo imediatamente posterior ao restabelecimento do regime democrático em 1983, e os conflitos políticos conseqüentes. Palavras-chaves: Neoliberalismo. Transição Democrática. Dívida Externa. Abstract This article analyzes the process of negotiation between the Argentinean authorities and those of the “International Monetary Fund” (IMF) in the period 1983-1985 with the purpose of observing in a historical particular process the activation of the “case by case strategy” designed by IMF to struggle against the “external debt crisis” that affected Latin America during the eighties. In particular, this article tries to show that some of the main principles of democratic regimes have been damaged in the neoliberal globalization era because the indebted governments of peripheral and semiperipheral countries, such as the case of Argentina, must negotiate the orientation of its internal policies with transnational agents; agents who have not been chosen democratically. Keywords: Neoliberalism. Democratic Transition. External Debt. Resumen El Dr. Alfonsin asumió el gobierno en 1983 con el objetivo principal de asegurar la vigencia de la democracia luego de 50 años de continuos golpes de Estado en Argentina. Si bien el grueso de sus esfuerzos se dirigieron a desmantelar la estructura represiva heredada de la última dictadura militar (1976-1983), en especial a juzgar los crímenes de lesa humanidad cometidos, también buscaron recomponer la delicada situación económica imperante. El principal problema a enfrentar en este sentido giraba en torno a la deuda externa; deuda cuyo monto se había multiplicado por cuatro en un período de seis años y cuyo peso en el “Producto Bruto Interno” (PBI) era tal que desestabilizaba por si misma al resto de las variables económicas. Este artículo analiza el proceso de negociación entre las autoridades argentinas y las del Fondo Monetario Internacional (FMI) en el período inmediatamente Ariús, Campina Grande, v. 17, n.2, jul./dez. 2011 169 posterior al restablecimiento de la democracia (1983-1985), y con la finalidad de observar, en una dinámica histórica concreta, la puesta en práctica de la “estrategia caso por caso” diseñada por esa organización para lidiar con la “crisis de la deuda externa” que afectó a Latinoamérica durante la década de los 80. Esta estrategia convirtió a la deuda externa en un “mecanismo de disciplinamiento” en la medida en que a través de la misma los países centrales podían participar en el diseño de la política interna de los países endeudados y controlar palmo a palmo su implementación. Este análisis, de carácter socio-histórico, se efectúa tomando como marco de referencia empírico fuentes de datos secundarias, en especial bibliografía específica sobre la materia. La hipótesis orientativa que guía este trabajo es que el proceso de transición democrático argentino se vio afectado por la puesta en práctica de un programa económico neoliberal. Subyace en esta hipótesis la idea base del paradigma crítico de que la democracia y el Estado de Derecho no son fenómenos abstractos sino, por el contrario, fenómenos históricos que se reproducen a través de luchas de poder entre agentes con poderes diferenciales. Palabras Claves: Neoliberalismo. Transición Democrática. Deuda Externa Argentina. ISSN 0103-9253 versão impressa – ISSN 2236-7101 versão online