Jesus Ama-me
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Jesus Ama-me
David Safier Jesus ama‑me Tradução Artur Costa e Emília Ferreira jesus ama-me***.indd 5 05 mar 2012 14:28 Capítulo 1 Jesus nunca teve este aspecto, pensei ao olhar para uma Última Ceia que se encontrava no escritório do pastor protestante. Se era um judeu árabe, por que parece um dos Bee Gees na maior parte das imagens? Não continuei o meu fio de pensamentos porque o pastor Gabriel entrou no escritório. Era um homem já com alguma idade, com barba, um olhar intimidador e uma testa sulcada por vincadas rugas de preo cupação que devem aparecer em todos os que passam trinta anos a ter de cuidar das suas ovelhas. – Ama‑lo, Marie? – perguntou‑me mesmo antes de me cumpri‑ mentar. – Sim… hum… Pois claro que amo Jesus… um homem maravi‑ lhoso… – respondi. – Estou a falar do homem com quem queres casar na minha igreja. – Ah… O pastor Gabriel fazia sempre perguntas indiscretas. A maior parte dos vizinhos da nossa pequena aldeia, Malente, achava que o fazia por uma genuína preocupação com as pessoas. Já eu, em con‑ trapartida, achava que era por ele ser nada mais nada menos do que um grandessíssimo bisbilhoteiro. – Sim – respondi –, claro que o amo. 9 jesus ama-me***.indd 9 05 mar 2012 14:28 David Safier O meu Sven também era um homem maravilhoso. Um homem doce. Com o qual eu me sentia segura. Não se incomodava nada de estar com uma mulher cujo índice de massa corporal oferecia moti‑ vos para umas quantas orações de lamentação. E, além do mais, com Sven podia ter a certeza de que ele não iria enganar‑me com uma hospedeira, como fizera o meu ex, Marc, em relação ao qual desejava ardentemente que acabasse por ir parar ao inferno. Que fosse para o diabo, como toda essa chusma de criativos. – Senta‑te, Marie – disse‑me Gabriel, aproximando o seu banco de leitura da secretária. Sentei‑ me e afundei‑ me na pele escura dos anos setenta, enquanto ele se sentava à secretária. Tinha de levantar os olhos para o ver e percebi de imediato que o ângulo de visão estava muito bem estudado. – Portanto: queres casar‑te na minha igreja? – perguntou Gabriel. Não, num galinheiro, foi o que tive vontade de lhe responder, mas acabei por lhe dizer da maneira mais educada que consegui: – Pois, por isso queria falar consigo. – Só vou fazer‑te uma pergunta, Marie. – Qual? – Por que queres casar‑te pela igreja? A resposta sincera teria sido: porque não há nada menos român‑ tico do que um casamento civil. E porque desde pequena que sonhava casar‑me de branco, e ainda continuo a sonhar com isso, embora a minha cabeça me diga que não há nada mais piroso, mas quem dá ouvidos à cabeça num casamento? Contudo, pareceu‑me que admitir isso não seria o mais convin‑ cente para a minha petição. Por isso, com o melhor sorriso que con‑ segui esboçar, balbuciei: – Eu… Preciso de me casar sem falta pela Igreja… perante Deus… – Marie, já não te vejo na missa como dantes – cortou Gabriel. – Eu… Eu… tenho tido muito trabalho. – Também é preciso descansar ao sétimo dia. 10 jesus ama-me***.indd 10 05 mar 2012 14:28 Jesus ama-me Eu descansava ao sétimo dia e também ao sexto e, por vezes, até dava parte de doente para descansar um dos primeiros cinco, mas de certeza que não era a isso que Gabriel se referia. – Há vinte anos já duvidaste de Deus nas aulas de preparação para a crisma. O homem tinha mesmo boa memória. Ainda se lembrava! Nessa altura, eu tinha treze anos e andava a sair com o giraço do Kevin. Nos seus braços sentia‑ me verdadeiramente no céu e o meu primeiro beijo com língua foi com ele. Mas, por azar, ele não queria só beijar‑me, também queria sempre meter‑me a mão por debaixo da camisola. Eu não deixava, porque achava que havia tempo para isso. Uma opinião que ele não partilhava. Por isso, numa cerimónia de crisma, meteu a mão por baixo da camisola de outra, mesmo à frente do meu nariz. E o mundo, tal como eu o conhecia, acabou. Não me consolou o facto de o Kevin ter demonstrado com o peito da outra a mesma sensibilidade que têm os padeiros quando amassam o pão. Nem sequer a minha irmã Kata, dois anos mais velha do que eu, conseguiu acalmar‑me, por mais que me dissesse coisas como: «Ele não te merece», «É um imbecil» ou «Devia era ser morto». Assim sendo, fui falar com Gabriel e, com os olhos cheios de lágrimas, perguntei‑lhe: «Como pode existir um deus se o mundo tem coisas tão nojentas como os desgostos de amor?» – Lembras‑te do que te respondi? – perguntou Gabriel. – Deus permite que haja desgostos de amor porque dotou o homem de livre arbítrio – respondi, recitando um pouco da cartilha. Também me lembrei de que, naquela altura, pensei que Deus poderia ter retirado o livre arbítrio a Kevin. – Eu também tenho livre arbítrio – explicou Gabriel. – Estou quase a jubilar‑me e já não tenho nada de casar alguém que não tenho a certeza de ser temente a Deus. Espera pelo meu substituto. Estará cá dentro de seis meses. – Mas nós queremos casar agora! 11 jesus ama-me***.indd 11 05 mar 2012 14:28 David Safier – E por que é isso um problema meu? – perguntou, em tom provocador. Calei‑me e perguntei a mim mesma se se pode bater num pastor. – Não gosto que usem a minha igreja como um salão de festas – explicou Gabriel, lançando‑me um olhar penetrante. Estava quase a sentir‑me culpada, mas a raiva apagou a minha vaga má consciência. – Sabes que há outra igreja protestante na aldeia – disse Gabriel. – Mas… eu não quero casar lá. – Porquê? – Porque… porque… – Não sabia se devia dizê‑lo. Mas, na ver‑ dade, ia dar ao mesmo; era evidente que o pastor Gabriel não tinha uma boa impressão a meu respeito. Assim sendo, disse timidamente: – Porque foi nessa igreja que os meus pais se casaram. Para meu espanto, Gabriel tornou‑se um pouco mais compreen‑ sivo: – Tens mais de trinta anos, não devias já ter ultrapassado a sepa‑ ração dos teus pais? – Claro… claro, já a ultrapassei, o contrário seria um disparate – respondi. Ao fim e ao cabo, tinha nas costas umas quantas horas de tera‑ pia, que segui até se tornar demasiado caro. (De facto, todos os pais deviam ser obrigados a abrir uma caderneta de poupança mal os filhos nascessem, para que mais tarde pudessem pagar o psicólogo.) – Mas temes que te dê azar casar na mesma igreja em que se casa‑ ram os teus pais – insistiu Gabriel. Depois de hesitar um bocado, concordei: – É que sou supersticiosa. Deitou‑me um olhar surpreendentemente compreensivo. Pelos vistos, o seu amor cristão pelo próximo acabara de se mobilizar. – Está bem – disse. – Podem casar aqui. Nem podia acreditar. – O senhor… é um anjo, pastor! – Já sei – respondeu a sorrir, com uma estranha melancolia. 12 jesus ama-me***.indd 12 05 mar 2012 14:28 Jesus ama-me Quando Gabriel se deu conta de que me tinha apercebido disso, deu‑me ordem de marcha. – Sai daqui antes que mude de ideias. Aliviada, levantei‑me de imediato e apressei‑me em direcção à porta. Então, o meu olhar cruzou‑se com outra pintura, desta vez da Ressurreição de Cristo. E pensei que de facto ele tinha todo o ar de quem podia largar a cantar o Stayin’ Alive. 13 jesus ama-me***.indd 13 05 mar 2012 14:28 Capítulo 2 – Já te disse, o pastor Gabriel é um bom homem – comentou Sven enquanto me fazia uma massagem aos pés no sofá do nosso pequeno apartamento, um sótão bonitinho. Ao contrário dos outros homens, ele adorava fazer isso, coisa que eu atribuía a um estranho problema genético. Os meus ex‑namorados tinham‑me sempre feito massagens de dez minutos, no máximo, e sempre a troco de sexo por esse magnífico trabalho. Sobretudo Marc, o amante de hospedeiras, o tal que eu desejava que acabasse no meio de demónios muito, muito criativos, e especializados na veneranda arte da castração. Antes de conhecer Sven, já com trinta e tais, eu estava single e a minha vida sexual primava pela inexistência. Sempre que via uma mulher com filhos, sentia que o meu relógio biológico fazia tiquetaque. E sempre que essas mães cansadíssimas me sorriam compreensivas e me explicavam que só através dos filhos é que uma mulher é realmente feliz, realizada e fica em paz consigo mesma, a minha auto‑estima, já de si bastante frágil, ressentia‑se ainda mais. Nesses momentos, só conseguia acalmar‑me com um estribilho que havia composto de propósito para tais ocasiões: «Eu não tenho estrias, chata, irritante! Eu não tenho estrias, chata, irritante!» No dia em que conheci Sven, já andava a tentar acomodar‑me à ideia de que iria acabar como uma dessas velhas que são encontradas 14 jesus ama-me***.indd 14 05 mar 2012 14:28 Jesus ama-me já presuntos, no seu apartamento de uma assoalhada, sete meses depois de terem entregue a alma ao Criador. Pouco tempo antes, num café de Malente, tinha cantado dema‑ siado alto esta minha cançãozinha das estrias a uma mãe reluzente e com os nervos à flor da pele. A feliz e realizada mãe tratou logo de me explicar o quanto estava em paz consigo mesma: atirou‑me o café à cara. Tropecei, caí e bati contra a quina de uma mesa. Abri logo uma ferida na testa, apanhei um táxi que me levou ao hospital e foi aí que conheci Sven. Era enfermeiro e não exibia nenhuma beleza extraor‑ dinária: e nisso fazíamos um belo par. Quando chorei ao coserem ‑me a ferida, passou‑me um lenço para as mãos. Quando me lamentei sobre as manchas que tinha na minha preciosa blusa, consolou‑me. E quando lhe agradeci por tudo, convidou‑me a ir comer uma piza com ele. Quinze pizas depois fui viver com ele, contentíssima por dei‑ xar para trás o meu apartamento de uma assoalhada. Oitenta e quatro jantares depois, Sven pediu‑me em casamento como manda o figurino: de joelhos e com um belo anel que lhe devia ter custado pelo menos um mês de salário. Além disso, pediu à equipa de futebol júnior que treinava nos tempos livres que fizesse um gigan‑ tesco coração de rosas e que cantasse O Meu Coração É Teu. – Queres casar comigo? – perguntou‑me. Por um momento, pensei: Se digo que não, estes miúdos vão ficar traumatizados para o resto da vida. – Claro que quero! – respondi então, muito comovida. Sven começara a massajar‑me os pés com um óleo Extra Sensitive que cheirava a rosas, quando o meu olhar pousou no Malenter Kurier, o jornal local. Tinha colocado uma marca num anúncio imobiliário. – Foste tu que… marcaste isto? – É que há uma promoção nova de vivendas a um preço que podemos pagar. – E por que temos de a ir ver? – perguntei, alarmada. – Bem, não fazia mal ter uma coisa maior… se quisermos ter filhos. 15 jesus ama-me***.indd 15 05 mar 2012 14:28 David Safier Filhos? Tinha ouvido bem? «Filhos»? Nos meus tempos de single olhava para as mães com inveja, mas desde que estava com Sven pen‑ sava que ainda tinha tempo, antes de me pôr a explicar, no programa zombie com olheiras, como estava realizada. – Eu… acho que devíamos gozar um bocado mais a vida de casal – sugeri. – Eu tenho trinta e nove anos e tu trinta e quatro. Cada ano que esperarmos aumenta a possibilidade de virmos a ter um filho com problemas – explicou Sven. – Bela maneira de tentar convencer uma mulher a ter filhos – repliquei, tentando esboçar um sorriso. – Desculpa. – Sven desculpava‑se logo a seguir. – Não tem importância. – Mas tu também queres ter filhos, não queres? – perguntou. Não soube o que havia de responder. Será que queria mesmo ter filhos? O meu parêntesis aproximou‑se perigosamente do minuto de silêncio e Sven, cada vez mais inseguro, insistiu: – A sério, Marie? Como não conseguia suportar ver aquele homem encantador a sofrer, brinquei: – Claro que sim, quinze. – Uma equipa de futebol, mais os reservas – disse ele, sorrindo feliz. E beijou‑me no pescoço. Era assim que costumava começar os preliminares. Mas, ao contrário do que era habitual, foi‑lhe difícil fazer com que eu ficasse com vontade. 16 jesus ama-me***.indd 16 05 mar 2012 14:28 Capítulo 3 «A estação depuradora de águas residuais irá completar trinta anos», escrevi, sem o mais pequeno entusiasmo, como título do meu novo artigo de capa de revista. Quando terminei o curso de jornalismo, ainda tinha esperanças de arranjar emprego numa revista como Der Spiegel, mas para isso devia ter conseguido uma média melhor. Assim sendo, fui primeiro parar a Munique, à revista Anna, uma publicação dirigida à mulher moderna, onde, com sorte, se podia encontrar meia página com interesse. Não era um trabalho de sonho, mas nos dias bons sentia‑me quase como a Carrie, de O Sexo e a Cidade. Para ser como ela ainda me faltava um orçamento de cinco dígitos para roupa de marca e uma lipossucção. Com sorte, teria ficado eternamente na Anna. Mas, por azar, Marc passou a ser o redactor‑chefe. Por azar, era supergiro. Por azar, acabá‑ mos por começar a andar. Por azar, enganou‑me com uma hospedeira toda gira e, por azar, não reagi à coisa com a dose certa de serenidade: tentei atropelá‑lo com o carro. Bom, não foi mesmo a sério. Mas ele teve de dar um pequeno salto para sair do caminho. Depois dessa acção, despedi‑me da Anna e, com o meu curri culum pouco óptimo, o único trabalho que encontrei no batido mer‑ cado jornalístico foi no Malente Kourier e apenas porque o meu pai conhecia o editor. Regressar à minha aldeia aos trinta e um anos foi 17 jesus ama-me***.indd 17 05 mar 2012 14:28 David Safier como se andasse a passear com um cartaz que dissesse: «Olá, a minha vida é um fracasso total.» A única vantagem de trabalhar numa redacção tão ultrapas sada era ter tempo para pensar na distribuição dos convidados do casamento; o que, como se sabe, é uma verdadeira ciência. Preo cupava‑me sobretudo a questão de onde iria sentar os meus pais divorciados. Enquanto espremia a cabeça com isto, o meu pai entrou na redacção e complicou‑ me por completo a distribuição dos convidados. Complicou‑a ao ponto de me provocar uma enxaqueca. – Tenho de te explicar uma coisa com a maior urgência – disse ‑me à laia de cumprimento. Fiquei surpreendida de o ver com uma cara tão radiante, em vez da sua habitual palidez. Tinha mandado para cima de si mesmo um bom jacto de colónia e, coisa rara, penteara o pouco cabelo que lhe restava. – Não podes esperar um bocadinho, pai? – perguntei‑lhe. – Agora não tenho tempo, tenho de escrever um artigo sobre tudo o que nunca me interessou saber sobre a eliminação de excrementos. – Tenho uma namorada – soltou. – I… I… Isso é excelente – balbuciei, esquecendo por completo os excrementos. O meu pai tinha uma namorada? Isso era realmente uma sur‑ presa. Conjecturei sobre quem poderia ser essa mulher: talvez uma mulher mais velha, do coro da igreja? Ou uma paciente do seu con‑ sultório de urologia (embora preferisse não imaginar com demasiados pormenores o primeiro encontro). – Chama‑se Svetlana – disse, radiante, o meu pai. – Svetlana? – repeti enquanto tentava afastar da cabeça todos os preconceitos contra os nomes de mulheres com ressonância eslava. – Tem um som… agradável. – Não é apenas agradável. É fantástica – afirmou, ainda mais radiante. 18 jesus ama-me***.indd 18 05 mar 2012 14:28 Jesus ama-me Meu Deus, estava apaixonado! Pela primeira vez em vinte anos. E, embora sempre o tivesse desejado, não sabia como havia de me relacionar com a notícia. – De certeza que te vais dar muito bem com a Svetlana – conti‑ nuou o meu pai. – Ah, sim? – São da mesma idade. – O quê? – Bem, quase. – O que queres dizer com isso? Que tem quarenta anos? – per‑ guntei. – Não, vinte e cinco. – Quantos? – Vinte e cinco. – quantos? – Vinte e cinco. – quantos? – Mas por que perguntas isso tantas vezes? Porque, perante a ideia de o meu pai ter uma namorada de vinte e cinco anos, o meu cérebro estava prestes a sofrer uma fusão nuclear. – De… de… de onde é? – De Minsk. – Rússia? – Bielorrússia – corrigiu ele. Desconcertada, deitei uma olhadela em redor, tentando descobrir uma câmara oculta em algum lado. – Já sei o que estás a pensar – disse ele. – Que deve estar uma câmara oculta em algum lado? – Pronto, está bem, não sei o que estás a pensar. – E o que pensavas que eu estava a pensar? – perguntei. – Que a Svetlana só está interessada no meu dinheiro porque a conheci na internet, num site de contactos… – Conheceste‑a onde? – interrompi. – Em www.amore‑esteeurope.com. 19 jesus ama-me***.indd 19 05 mar 2012 14:28 David Safier – Ah, www.amore‑esteeurope.com parece‑me uma coisa muito séria! – Estás muito irónica, não achas? – E tu, ingénuo – respondi. – O site www.amore‑esteeurope.com tem os melhores ratings – argumentou. – Ah, bem, se o www.amore‑esteeurope.com o atesta, então de certeza que a Svetlana é uma mulher muito nobre e que não está inte‑ ressada nem no teu dinheiro nem na tua nacionalidade alemã – disse eu com azedume. – Tu não conheces a Svetlana! – exclamou o meu pai, todo ofendido. – E tu conheces? – O mês passado estive em Minsk… – Calma, calma, calma; aguenta aí os cavais… – Levantei‑me da cadeira num salto e plantei‑me à frente dele. – O que me disseste era que ias a Jerusalém com o coro da paróquia. Que fazias muita questão de ver o Santo Sepulcro. – Menti. – Mentiste à tua própria filha? Nem podia crer. – Porque me terias impedido de ir. – Nem que tivesse de ser com recurso a uma arma de fogo! O meu pai respirou fundo. – A Svetlana é uma criatura arrebatadora. – Sim, acredito. A mim já me está a arrebatar – respondi. – Mas… – Mas coisa nenhuma! Associares‑te a uma mulher dessas é uma loucura! O meu pai respondeu com uma mistura de teimosia e tristeza: – Não ficas feliz com a minha felicidade. Isso sensibilizou‑me. Pois claro que ficava feliz por o ver feliz. Desde os meus doze anos, desde o dia em que a minha mãe o abando‑ nara, que sempre tinha querido vê‑lo feliz outra vez. 20 jesus ama-me***.indd 20 05 mar 2012 14:28 Jesus ama-me Nesse dia, quando me explicou, branco como a cal, que a mamã se fora embora, nem podia acreditar. Perguntei‑lhe se havia alguma possibilidade de ela voltar para o pé de nós. Calou‑se. Durante muito tempo. Por fim, abanou a cabeça sem dizer nada. E então desatou a chorar. Levei algum tempo a perceber o que estava a ver: o meu pai estava a chorar. Como não conseguia parar, abracei‑o. E ele chorou no meu ombro. Nenhuma criatura de doze anos devia ver o pai a chorar assim. Eu só pensava: «Querido Deus, por favor, faz com que fique tudo bem outra vez. Que a mamã volte para ele.» Mas a minha oração não foi ouvida. Talvez Deus estivesse ocupado a salvar as pessoas do Bangladesh de alguma inundação. Agora o meu pai voltava a ser feliz, finalmente, depois de tantos anos. Mas em vez de me congratular com isso só tinha medo de o ver chorar outra vez. Estava escrito que aquela Svetlana ia destroçar‑lhe o coração. – E, para que saibas, irei ao teu casamento com ela – disse ele, em tom decidido. E saiu de seguida, batendo a porta com toda a força; de modo demasiado teatral, na minha opinião. Fiquei a olhar para a porta e depois o meu olhar voltou a cair sobre a distribuição dos convidados. E lá veio a enxaqueca. 21 jesus ama-me***.indd 21 05 mar 2012 14:28 Capítulo 4 Por muito que o pastor Gabriel achasse que não, eu rezava a Deus com frequência. Não acreditava a cem por cento na existência de um Deus Todo‑Poderoso, lá no céu, mas tinha grandes esperanças na sua existência. Rezava‑lhe quando estava prestes a descolar ou a aterrar num voo low cost. Ou antes da retransmissão do sorteio da lotaria. Ou quando queria que o tenor do andar de baixo, que não parava de cantar a plenos pulmões, perdesse a voz. Mas, sobretudo, rezei para que aquela Svetlana não estraçalhasse o coração do meu pai. Para Kata, a minha irmã mais velha, que, com os seus cabelos loiros escadeados, parecia uma versão rebelde da Meg Ryan, as minhas preces pareciam uma coisa ridícula, tal como deixou logo claro. Tinha chegado a Malente uma semana antes do casamento e estávamos a correr nas margens do lago. – Marie – disse Kata, sorrindo –, se existisse Deus, por que haveria coisas como os nazis, as guerras ou a música disco dos Modern Talking? – Porque deu aos homens o livre arbítrio – respondi, citando Gabriel. – E por que razão lhes concedeu um livre arbítrio com o qual se martirizam mutuamente? Pensei nisso por algum tempo e, em seguida, dando‑me por ven‑ cida, respondi: 22 jesus ama-me***.indd 22 05 mar 2012 14:28 Jesus ama-me – Touchez. Kata fora sempre a mais equilibrada das duas. Com dezasseis anos abandonou os estudos, foi‑se embora para Berlim, saiu do armá‑ rio e começou a sua carreira como autora de banda desenhada, com publicação diária num jornal nacional. Com o título de Irmãs. Sobre duas irmãs. Sobre nós. Kata, achas que as pessoas mudam? Marie, está provado que o carácter de uma pessoa se forma aos três anos e fica para o resto da vida. aaaahhhhh !!! 23 jesus ama-me***.indd 23 05 mar 2012 14:28 David Safier Das duas, Kata também era a que se encontrava em melhor forma física. Ela não ofegava nem um bocadinho, ao passo que eu, ao fim de oitocentos metros, já não achava o lago de Malente assim tão bonito. – Queres parar? – perguntou. – Tenho… de perder dois quilos antes do casamento – respondi, ofegante. – Então continuas a pesar sessenta e nove quilos – disse Kata, com um sorriso gozão. – Ninguém gosta de sabichonas magras – respondi, arquejando. – Parece‑me bem que o pai tenha relações sexuais depois de vinte anos de abstinência – comentou Kata, puxando o tema de www. amore‑esteeuropa.com. O meu pai tinha relações sexuais? Era uma imagem que preferia nunca ter tido. Mas, para meu espanto, acabava de me perfurar o cérebro. – De certeza que isso o faz feliz e… Kata não continuou, tapei os ouvidos com as mãos e pus‑me a cantar em voz alta: – La‑la‑la, não tenciono ouvir‑te. La‑la‑la‑la‑la‑la, não quero saber. Kata calou‑se. Eu tirei as mãos dos ouvidos. – É claro que os homens como o pai – insistiu ela, sorrindo –, que passaram tanto tempo sem uma relação fixa, devem ter recorrido aos serviços de prostitutas… Voltei a tapar os ouvidos e cantei com todas as forças possíveis: – La‑la‑la, se continuas a falar, levas… Kata sorriu, satisfeita. – Sempre me impressionou a maturidade que consegues ter. Eu sentia‑me demasiado esgotada para responder e deixei‑me cair, esfalfada, num banco que estava à sombra de um castanheiro. – E sempre me impressionou o facto de estares em tão boa forma. Atirei‑lhe uma castanha à cabeça. Kata limitou‑se a esboçar um sorriso gozão. Não era nada queixi‑ nhas, ao contrário de mim. Enquanto eu me queixava de tudo, de ter uma unha do pé partida, ela nunca se queixou sequer quando, quase 24 jesus ama-me***.indd 24 05 mar 2012 14:28 Jesus ama-me cinco anos antes, lhe aparecera um tumor na cabeça. Ou, como ela dizia, «a oportunidade de descobrir quem eram os seus verdadeiros amigos». Quando ela estivera assim doente, eu voava todos os fins‑de ‑semana para Berlim para ir visitá‑la à clínica. Era difícil ver a minha irmã a sofrer, sem poder dormir com as dores que tinha. Os com‑ primidos mal aliviavam o sofrimento. As infusões também. E a qui‑ mioterapia fez o resto: a minha vigorosa irmã transformou‑se numa criatura enfraquecida e sem cabelo, que cobria a careca com um inso‑ lente lenço com caveiras estampadas. Dava a impressão de estar quase a alistar‑se no Pérola Negra, o navio‑pirata do capitão Sparrow. Ao fim de seis semanas, estranhei que Lisa, então a namorada de Kata, não a fosse visitar. – Separámo‑nos – explicou‑me Kata com toda a simplicidade. – Como? – perguntei, emocionada. – Tínhamos interesses diferentes – respondeu ela, sucinta. – Quais? – perguntei, desconcertada. Kata esboçou um sorriso agridoce. – Ela gosta da vida nocturna e eu vomito por causa da químio. A minha irmã estava firmemente decidida a vencer o tumor. Quando lhe perguntei aonde ia buscar a sua inacreditável força de vontade, respondeu: – Não tenho outro remédio. Não acredito na vida depois da morte. Mas eu rezava por ela, sem lho dizer, claro, para não lhe dar cabo dos nervos. Agora estava prestes a consegui‑lo: se nos meses seguintes não sofresse qualquer recaída, teria pela frente uma longa vida. E eu iria saber, de uma vez por todas, se Deus ouvira as minhas preces. Porque essa era a sua área de especialidade. De certeza que um tumor não tinha nada a ver com o livre arbítrio das pessoas. – Para onde estás tu a olhar tão pensativa? – perguntou Kata. 25 jesus ama-me***.indd 25 05 mar 2012 14:28 David Safier Não me passava pela cabeça falar‑lhe do tumor porque, como era compreensível, ela não suportava que a sua doença me deixasse mais triste do que a ela. Levantei‑me do banco e encetei o caminho de regresso. – Já não corremos mais? – perguntou. – Prefiro emagrecer com dieta. – Por que queres emagrecer? – perguntou Kata. – Estás sempre a dizer que o Sven gosta de ti como és. – Ele sim, mas eu não – respondi. – E então? Estão a planear ter filhos em breve? – perguntou Kata, com um ar ligeiro. – Temos tempo – respondi. Kata olhou‑me de soslaio, como fazia sempre que queria chegar a algum lado. – Olha, anda ali a nadar um cisne negro – disse eu, tentando mudar de assunto mas sem grande jeito. – Com o Marc querias ter filhos – lembrou ela, que nunca me deixava mudar de assunto quando eu queria. – O Sven não é o Marc. – Por isso estou a perguntar – disse ela, muito séria. – Gostavas tanto do Marc que duas semanas depois de começares a sair com ele já me estavas a anunciar os nomes das duas criaturas que ias ter com ele. Mareike e… – … Maja – completei, em voz baixa. Sempre quisera ter duas filhas que se dessem tão bem como Kata e eu. – E o que se passa agora com as manas Mareike e Maja? – per‑ guntou Kata. – Quero gozar algum tempo a vida em casal – respondi –, as miú‑ das terão de ter paciência e esperar até virem dar‑me cabo dos nervos. – E o Sven tem alguma coisa a ver com isso? – Kata não desistia. – Disparate! – disse ela, protestando em voz demasiado alta. Kata sorriu irónica, mas deixou de me picar com o assunto. Confusa, perguntei a mim mesma se teria realmente protestado demasiado alto. E se eu não quisesse ter filhos? 26 jesus ama-me***.indd 26 05 mar 2012 14:28
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