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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
JAQUELINE BARRETO LÉ
REFERENCIAÇÃO E GÊNEROS JORNALÍSTICOS:
SISTEMAS COGNITIVOS EM JORNAL IMPRESSO E
JORNAL DIGITAL
Rio de Janeiro-RJ
Fevereiro - 2012
1
JAQUELINE BARRETO LÉ
REFERENCIAÇÃO E GÊNEROS JORNALÍSTICOS:
SISTEMAS COGNITIVOS EM JORNAL IMPRESSO E
JORNAL DIGITAL
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para
a obtenção do título de Doutor em Linguística.
Orientadora: Profa. Dra Vera Lúcia Paredes Pereira da
Silva
Rio de Janeiro-RJ
Fevereiro - 2012
2
3
_________________________________________________
Profa. Doutora Mariângela Rios – UFF, Suplente
___________________________________________________
Profa. Doutora Maria Lúcia Leitão de Almeida - PPG Letras Vernáculas-UFRJ,
Suplente
4
AGRADECIMENTOS
Em especial, à minha cara orientadora e amiga VERA LÚCIA PAREDES, por ter, ao longo
desses quatro anos, propiciado a orientação precisa, nos momentos certos, dando-me a
oportunidade de aprender com os seus ensinamentos.
Aos
professores
e
funcionários
do
PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO
EM
LINGUÍSTICA DA UFRJ, que me acolheram juntamente com o projeto que deu origem a
esta pesquisa.
Ao CNPq, pela concessão da bolsa que viabilizou o andamento do estudo aqui proposto.
A MARIA LUIZA BRAGA e LILIAN FERRARI, professoras que acompanharam esta
trajetória acadêmica na UFRJ e com as quais pude estabelecer ricas trocas teóricas.
A LÍCIA MARIA HEINE, pela orientação que me proporcionou durante o curso de Mestrado
na
UFBA
e
pela
atenção
especial
que
sempre
dedicou
ao
meu
percurso
profissional-acadêmico.
Aos ALUNOS de Linguística da UEFS e da UFBA, com os quais dialogo e aprendo
constantemente, sentindo-me motivada a pesquisar na área da ciência da linguagem.
A MARCELO CABRAL, companheiro de existência, que torna esta ou qualquer outra
caminhada mais lúcida e feliz.
Ao amigo e colega de curso WELLINGTON QUINTINO, por estar presente nos momentos
mais importantes desta jornada.
A meus FAMILIARES e AMIGOS, cujo apoio, carinho e paciência foram essenciais para a
realização do presente trabalho.
5
SINOPSE
Referenciação em gêneros jornalísticos, impressos e
digitais, analisados como práticas sociais e relativamente
estáveis, a partir de sua composição, conteúdo temático e
estilo. Sequências ou tipos textuais caracterizadores dos
gêneros do jornal impresso e do jornal eletrônico. O
hipertexto e as diferentes formas de realização textual no
domínio jornalístico, considerando-se as peculiaridades
dos gêneros digitais no ciberespaço. Processos indiretos de
referenciação e aspectos cognitivos envolvidos na
construção do sentido, por meio de anáforas associativas,
pronominais esquemáticas e encapsulamentos anafóricos.
6
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo investigar os processos de referenciação e seus aspectos
cognitivos no universo textual de construção de sentido, mais propriamente nos variados
gêneros jornalísticos (em jornal impresso e jornal eletrônico). Parte-se do pressuposto de que
é possível detectar diferenças e peculiaridades entre os processos textuais de referenciação
relativos ao jornal impresso e aqueles encontrados em seu formato on-line. Isso envolve,
naturalmente, não apenas a identificação de estratégias cognitivas diferenciadas em cada um
desses gêneros, mas também a revisão de questões teóricas ligadas às duas principais
temáticas abordadas no presente estudo: gêneros textuais e processos de referenciação.
Assim, o estudo se enquadra na perspectiva funcional, voltando-se ao escopo teórico da
Linguística Textual e da Linguística Cognitiva, de vez que analisa os chamados gêneros
textuais como práticas discursivas, social e contextualmente localizadas. Também investiga a
referenciação – especialmente os casos de anáfora indireta - com base em processos
cognitivos que são ativados no momento mesmo da ação comunicativa, o que implica
considerar não mais os “referentes”, mas sim os “objetos do discurso”. Em tal abordagem
teórica, então, seria mais adequado falar em referenciação no lugar de referência - como
destacam Mondada e Dubois (2003) -, a fim de se ressaltar a ideia de “processo” subjacente a
todo evento comunicativo. O corpus da pesquisa é formado por textos de edições (eletrônicas
e impressas) de dois jornais de circulação nacional: Folha de São Paulo e O Globo. Incluemse na amostra 60 textos de cada gênero jornalístico investigado, analisando-se um total de 9
gêneros e 120 edições (60 impressas e 60 eletrônicas). Entre os gêneros jornalísticos
abordados neste trabalho estão: a) no jornal impresso: artigo, entrevista, notícia, crônica,
opinião do leitor; b) no jornal eletrônico: plantão de notícias, enquete, blog e twitter. A
seleção de gêneros distintos nas versões impressa e eletrônica dos referidos jornais foi
motivada pelo intuito de contemplar tanto gêneros jornalísticos tradicionalmente conhecidos
(artigo, entrevista, notícia, crônica, opinião do leitor) como aqueles encontrados apenas em
meio eletrônico (plantão, enquete, blog, twitter). Todos eles foram analisados com vistas a
uma nova classificação de gêneros emergentes, a partir de Marcuschi (2005a), considerandose, neste caso, o espaço jornalístico digital como meio de produção, ou, conforme Lévy
(1999), a noção de ciberespaço. Também foi proposta, na análise das anáforas indiretas, uma
tripartição dos processos de referenciação em: a) anáforas associativas; b) anáforas
esquemáticas e c) anáforas encapsuladoras. No que concerne à produção de sentidos no jornal
on-line, reconheceu-se, em tal investigação, que o caráter não-linear do hipertexto contribui
sensivelmente para o desenvolvimento de estratégias comunicativas específicas que precisam
hoje ser focalizadas pelos cientistas da linguagem. O campo de estudo torna-se, então, mais
desafiador à medida que temáticas já pertencentes ao paradigma funcional de análise
linguística passam a ser revisitadas, a saber: linearidade, coesão, coerência, referência,
argumentação, entre outras. Por fim, em se tratando dos estudos de gêneros, tornou-se
essencial à analise, ainda, o estabelecimento de possíveis conexões entre as abordagens
sociodiscursivas da linguagem, das quais fazem parte os trabalhos de Bakhtin, Adam (1992) e
Bronckart (1999).
Palavras-chave: Referenciação, Anáforas Indiretas, Gêneros Digitais, Hipertexto,
Ciberespaço.
7
RÉSUMÉ
Cette recherche a comme but l’investigation des processus référentiels et de ses
aspects cognitifs dans l’univers textuel de construction de sens, plus proprement dans les
variés genres linguistiques (en journal imprimé et journal électronique). On part du
présupposé qu’il est possible de détecter des différences et des particularités entre les
processus textuels référenciels liés au journal imprimé et ceux qui se trouvent en son format
on-line. Ceci engage, naturellement, non seulement l’identification de stratégies cognitives
différenciées en chaqu’un de ces genres, mais aussi la révision de questions théoriques liées
aux deux principaux thématiques abordées dans cet étude: genres textuels et processus
référentiels. Ainsi, l’étude s’encadre dans la perspective de la linguistique fonctionnelle, une
fois qu’elle analyse les només genres textuels comme pratiques discursives, localisées dans le
social et dans le contexte. Recherche aussi la référenciation – spécialement – les cas
d’anaphore indirecte – ayant comme base des processus cognitifs qui sont activés au moment
même de l’action communicative, ce qui implique considérer “les objets du discours” et non
les “référents”. En tel abordage théorique, alors, serait plus convenable parler de
“référenciation” au lieu de parler de “référence” – comme mettent en évidence Mondana et
Dubois (2003) –, pour rebondir l’idée de “processus” subjacent a tout événement
communicatif. Le corpus de la recherche est composé par textes d’éditions (électroniques et
imprimées) de deux journaux de circulation national: Folha de São Paulo et O Globo. Sont
inclus dans l’échantillon 60 textes de chaque genre journalistique recherché, analysant un total
de 9 genres et 120 éditions (60 imprimées et 60 électroniques). Entre les genres
journalistiques abordés dans ce travail, nous avons: a) dans le journal imprimé: article,
entrevue, nouvelles, chronique, opinion du lecteur; b) dans le journal électronique: planton de
nouvelles, enquête, blog et twitter. La sélection de genres distincts dans les versions imprimée
et électronique des journaux cités a été motivée par le dessein de contempler aussi bien des
genres journalistiques tradicionnellement connus (article, entrevue, nouvelles, chronique,
opinion du lecteur) comme ceux trouvés seulement dans le milieu électronique (planton,
enquête, blog et twitter). Ils ont tous été analysés avec vue sur une nouvelle classification de
genres emergents, a partir de Marcuschi (2005a), considérant, dans ce cas, l’espace
journalistique digital comme milieu de production, ou, conforme Lévy (1999), la notion de
cyberespace. A été proposée aussi, dans l’analyse des anaphores indirectes, une tripartition des
processus référentiels en: a) anaphores associatives, b) anaphores schématiques et c)
anaphores encapsulatrices. Dans ce qui concerne la production de sens dans le journal on-line,
on a reconnu, en telle recherche, que le caractère non-linéaire du hipertexte contribue
sensiblement pour le développement de stratégies communicatives spécifiques qui ont besoin
aujourd’hui d’être mises en valeur par les scientistes du langage. Le champ d’étude se
devient, alors, plus défiant à mesure que les thématiques qui appartiennent déjà au paradigme
fonctionnel de l’analyse linguistique sont revues, à savoir: linéarité,cohésion, cohérence,
référence, argumentation, entre autres. À la fin, en s’agissant des études de genres,
l’établissement de possibles conexions entre les abordages sócio-discursives du langage, des
quelles font partie les travaux de Bakhtin (2003), Adam (1992) e Bronckart (1999) est devenu
aussi essenciel à analyse.
Mot-clés: Référenciation. Anaphores Indirectes. Genres Digitaux. Hipertexte. Cyberespace.
8
ABSTRACT
This research aims to investigate the reference processes and its cognitive aspects in
the textual universe of the construction of meaning, specifically in the several journalistic
genres (in the printed and digital newspaper). We defend that it´s possible to detect
differences and peculiarities between the reference processes that occur in the printed and in
the electronic version of the newspaper. That doesn´t involve, obviously, only the
identification of different cognitive strategies in these genres, but also the review of
theoretical questions that are linked to the main themes of the present study: genres and
reference processes. Thus, this job fits to the functional theory once it analyzes the textual
genres as discursive practices, social and contextually located. It also investigates the
reference, mainly the indirect anaphora occurrences, based on cognitive processes that are
activated at the communicative event which implies to consider no longer the “referents” but
the “objects of discourse”. In this theoretical approach, thus, it is more suitable to talk about
“reference process” than “reference” – as Mondada and Dubois (2003) affirm -, in order to
remark the idea of “process” that lies in each communicative event. The corpus of this
research is composed by texts of the printed and electronic editions of two Brazilian
newspapers: Folha de São Paulo and O Globo. It´s included in the sample 60 texts of each
genre, analyzing the total of 9 genres and 120 editions (60 of the printed newspaper and 60 of
the electronic newspaper). Among the journalistic genres focused on this study are: a) in the
printed newspaper: paper, interview, news/reporting, chronicle, reader´s opinion; b) in the
digital newspaper: news list, poll, blog and twitter. The selection of different genres in the
print and electronic versions of the newspapers mentioned above has to do with the purpose of
contemplating both the journalistic genres that are traditionally known and the journalistic
genres that are only found in the electronic version. All these genres were analyzed
considering the new classification of the emergent genres in digital media, based on
Marcuschi (2005a), considering, in this case, the journalistic domain as a means of textual
realization or, based on Lévy (1999), the notion of cyberspace. It was also proposed, in the
indirect anaphors analysis, a division of the reference processes into three groups such as: a)
associative anaphors; b) schematic anaphors; c) encapsulating anaphors. Concerning to the
construction of meaning in the online newspaper, it was admitted, in such investigation, that
the no-linear aspect of the hypertext contributes indeed to the development of specific
communicative strategies that, actually, must also be studied by the linguists. This area of
investigation becomes, therefore, more intriguing as some themes that are linked to the
functional paradigm in the linguistic analysis are revisited such as: linearity, cohesion,
reference, argumentation, among others. Finally, it´s worth to say that, about the digital
genres, it was a fundamental prerequisite to the analysis considering the theoretical relations
between the sociodiscoursive approaches, including the studies presented by Bakhtin (2003),
Adam (1992) and Bronckart (1999).
Keywords: Reference processes. Indirect Anaphors. Digital Genres. Hypertext. Cyberspace.
9
SUMÁRIO
LISTA DE ESQUEMAS E QUADROS
13
INTRODUÇÃO
14
1 A NOÇÃO DE REFERÊNCIA NAS ABORDAGENS SOCIODISCURSIVAS
DA CIÊNCIA DA LINGUAGEM
18
1.1 A INSTABILIDADE DAS CATEGORIAS: DA REFERÊNCIA À
REFERENCIAÇÃO
19
1.2 POR UMA CLASSIFICAÇÃO DOS PROCESSOS INDIRETOS DE
REFERENCIAÇÃO
21
1.2.1 Tipologias das anáforas indiretas
26
1.3 REFERENCIAÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E INTERAÇÃO DISCURSIVA
31
1.3.1 Expressões referenciais e escolhas lexicais
34
1.4 SOBRE A ACESSIBILIDADE DOS REFERENTES NO DISCURSO
38
2 GÊNEROS E TIPOLOGIAS TEXTUAIS: NOVAS PERSPECTIVAS NOS
ESTUDOS DE REFERENCIAÇÃO
43
2.1 DEBATES TEÓRICOS SOBRE GÊNEROS: CONCEITOS GERAIS
43
2.1.1 Algumas definições importantes
46
2.2 BAKHTIN E OS GÊNEROS DO DISCURSO
47
2.2.1 Gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciado
49
2.2.2 O enunciado como unidade de comunidade discursiva
51
2.2.3 Dos enunciados aos gêneros
55
2.3 A NOÇÃO DE SEQUÊNCIA TEXTUAL SEGUNDO JEAN-MICHEL ADAM
57
2.3.1 O que é mesmo uma sequência textual?
58
2.3.2 Classificação das sequências textuais
59
2.3.2.1 Sequência narrativa
59
2.3.2.2 Sequência descritiva
60
2.3.2.3 Sequência argumentativa
62
2.3.2.4 Sequência explicativa
63
2.3.2.5 Sequência dialogal
64
2.4 A PROPOSTA DO INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO DE BRONCKART
66
2.4.1 A abordagem teórica de Bronckart
67
10
2.5 REFERENCIAÇÃO E ESTUDO DOS GÊNEROS E TIPOS TEXTUAIS
69
3 HIPERTEXTO E GÊNEROS JORNALÍSTICOS: DO JORNAL IMPRESSO
AO JORNAL DIGITAL
73
3.1 VIRTUALIZAÇÃO, CIBERESPAÇO E HIPERTEXTO
75
3.2 HPERTEXTO E FLUXO INFORMACIONAL
79
3.2.1 As entidades do discurso
80
3.2.2 Os estados de ativação
84
3.2.3 Sobre as conexões entre referência e inferência
85
3.3 HIPERTEXTO E JORNALISMO
86
3.3.1 Os gêneros jornalísticos digitais e a estabilização do enunciado.
88
3.3.1.1 O blog jornalístico: post e comentários na interação com o leitor
89
3.3.1.2 O twitter jornalístico: a informação em 140 caracteres
90
4 MAPEAMENTO DE SENTIDOS NO HIPERTEXTO: BREVE INCURSÃO
NA TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS
93
4.1 A LINGUÍSTICA COGNITIVA E A TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS
94
4.1.1 Tipos de mapping
96
4.2 DOMÍNIOS MENTAIS NO HIPERTEXTO
99
4.2.1 Gêneros digitais: novas formas de mapeamento de sentido
101
4.2.2 Referenciação e mapeamento cognitivo
103
4.3 GÊNERO PLANTÃO DE NOTÍCIAS: ESQUEMAS MENTAIS
E ANÁFORAS INDIRETAS
107
4.3.1 Análise dos esquemas mentais ou mappings
107
4.3.2 Análise dos processos e referenciação indireta
110
5 ASPECTOS METODOLÓGICOS
113
5.1 CONSTITUIÇÃO DO CORPUS
113
5.2 COLETA DE DADOS
113
5.3 DEFINIÇÃO DOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS INVESTIGADOS
114
5.4 CLASSIFICAÇÃO DOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO
116
5.5. ELABORAÇÃO DO BANCO DE DADOS HIPERLIN
116
5.6 LEVANTAMENTO DE HIPÓTESES
117
6 ANÁLISE DOS DADOS
118
6.1 OS GÊNEROS DO DOMÍNIO JORNALÍSTICO
118
11
6.1.1 Artigo de opinião
119
6.1.2 Entrevista
122
6.1.3 Notícia
124
6.1.4 Crônica
127
6.1.5 Opinião do leitor
129
6.1.6 Plantão de notícias
131
6.1.7 Enquete
132
6.1.8 Blog
134
6.1.9 Twitter
137
6.2 OS PROCESSOS INDIRETOS DE REFERENCIAÇÃO
142
6.2.1 Anáforas associativas
142
6.2.2 Anáforas pronominais esquemáticas
148
6.2.3 Nominalizações/Rótulos
154
6.2.4 Correspondências entre espaços mentais em anáforas indiretas
158
6.3 REFERENCIAÇÃO E GÊNERO: RELAÇÕES POSSÍVEIS
163
6.3.1 Referenciação no twitter
163
6.3.1.1 Limite de 140 caracteres
163
6.3.1.2 Uso de Retweets (RT´s)
164
6.3.1.3 Identificação dos interlocutores por meio do formado @____
166
6.3.1.4 Criação de etiquetas (hashtags) por meio do fortmato #____
166
6.3.1.5 Atualização da página home
166
6.3.2 Referenciação no blog jornalístico
167
6.3.3 Referênciação no plantão de notícias
170
6.3.4 Referênciação na enquete de jornal
171
6.4 JORNAL IMPRESSO VERSUS JORNAL ELETRÔNICO
174
7 CONSIDERAÇÃOES FINAIS
181
REFERÊNCIAS
185
ANEXOS
192
12
LISTA DE ESQUEMAS E QUADROS
ESQUEMA 1 - Processamento da anáfora direta
23
ESQUEMA 2 - Processamento da anáfora indireta
23
QUADRO 1 - Proposta de classificação das anáforas indiretas
31
QUADRO 2 - Correspondência entre fluxo informacional e processos referenciais
40
QUADRO 3 - Relação entre texto e enunciado, língua e discurso
53
QUADRO 4 - Esquema da sequência narrativa
60
QUADRO 5 - Esquema típico da sequência descritiva
61
QUADRO 6 - Esquema típico da sequência argumentativa
62
QUADRO 7 - Esquema típico da sequência explicativa
63
QUADRO 8 - Esquema básico da sequência dialogal
65
QUADRO 9 - Relação entre gêneros e referentes na escala funcional
70
QUADRO 10 - Classificação do status informacional das entidades do discurso
82
QUADRO 11 - Gêneros do jornal impresso e do jornal digital
115
QUADRO 12 - Características gerais dos gêneros nos jornais investigados
140
QUADRO 13: Composição, conteúdo temático e estilo nos gêneros jornalísticos
141
13
INTRODUÇÃO
Torna-se evidente na Linguística do século XXI a real necessidade de se atentar para as
propriedades peculiares das novas formas de comunicação em meio eletrônico,
especificamente produzidas na mídia digital. E-mails, chats, aulas virtuais, blogs, entrevistas
on-line, videoconferências: esses são apenas alguns dos chamados gêneros digitais que
atualmente merecem a atenção dos estudiosos do texto ou discurso. A Linguística Textual, a
esse propósito, vem oferecer importantes contribuições e reflexões acerca da temática dos
gêneros do discurso. No que tange aos textos produzidos na hipermídia, apresenta-se um
caminho ainda mais profícuo e desafiador, considerando-se o amplo número de questões
polêmicas a serem discutidas e/ou revistas.
Os gêneros emergentes dessa nova tecnologia são relativamente variados,
mas a maioria deles tem similares em outros ambientes, tanto na oralidade
como na escrita. Contudo, sequer se consolidaram, esses gêneros eletrônicos
já provocaram polêmicas quanto à natureza e proporção de seu impacto na
linguagem e na vida social. Isso porque os ambientes virtuais são
extremamente versáteis e hoje competem, em importância, entre as
atividades comunicativas, ao lado do papel e do som. (MARCUSCHI,
2005b, p. 13)
Percebe-se, também, o surgimento de uma linguagem específica, o netspeak, da qual
trata Crystal em seu trabalho A revolução da linguagem (2005). Segundo o autor, há boas
razões para se conceber a chegada da Internet “como um acontecimento que é revolucionário
não só em termos linguísticos como também em seus aspectos tecnológicos e sociais”
(CRYSTAL, 2005, p. 76). Ganham destaque, nesse contexto, os gêneros emergentes em meio
eletrônico (alguns deles já não tão recentes), que, segundo Marcuschi (2005b, p. 29), muitas
vezes são vistos como meras projeções ou reelaborações de suas contrapartes prévias (email/carta pessoal, chat/conversação espontânea, conferência on-line/reunião etc.). O autor
ressalta, contudo, a possibilidade de diferenciação de tais gêneros discursivos (ditos virtuais)
em relação às suas contrapartes reais.
14
Esses gêneros têm características próprias e devem ser analisados em
particular. Nem sempre têm uma contraparte muito clara e não se pode
esperar uma especularidade na projeção de domínios tão diversos como são
o virtual e o real-tradicional. (MARCUSCHI, 2005b, p. 31)
Assumindo a posição do referido autor, defende-se aqui o tratamento em separado dos
gêneros discursivos em ambientes reais e virtuais, já que correspondem a diferentes
ambientes de uso comunicativo. Sendo assim, entre os vários gêneros emergentes na mídia
digital, focalizam-se, nesta pesquisa, aqueles encontrados no jornal eletrônico (blog plantão,
enquete, twitter etc.) que, como tantos outros do meio virtual, acabaram surgindo como forma
de adaptação aos novos contextos sociais de comunicação, correlacionando-se, obviamente,
com os gêneros do jornal impresso pré-existente, porém apresentando as devidas
especificidades.
A natureza multimodal dos gêneros digitais – baseada na riqueza de semioses, que vai
desde a utilização do sinal linguístico até o uso de imagens, sons e demais recursos interativos
da rede – é claramente identificada, também, na versão eletrônica dos jornais, o que faz do
ambiente on-line do jornal um local fecundo para o nascimento de novas formas de interação
e de construção textual do sentido. “Costuma-se hoje dizer que alguns aspectos da
textualização mudaram com o surgimento de novas tecnologias da escrita, como exemplo, o
hipertexto.” (MARCUSCHI, 2005b, p. 67)
No que diz respeito à materialidade da rede hipertextual, um dos assuntos que
merecem atenção, sem dúvida, é a referência. Tal temática tem se tornado, comumente, alvo
de novas reflexões e indagações, o que propiciou, na história dos estudos linguísticos, o real
questionamento da noção tradicional de referência. Há, de fato, uma reavaliação da postura
teórica oriunda da filosofia da linguagem, a partir da qual se focalizava a referência como
relação entre as formas linguísticas e os objetos do “mundo real”. Assim, em uma abordagem
sociocognitiva e interacionista do discurso, conforme sugerem Mondada e Dubois (2003), o
mais adequado seria falar em referenciação no lugar de referência, a fim de se ressaltar a
ideia de “processo” subjacente a todo evento comunicativo. Essa mudança sugere, ainda, em
relação aos referentes, a substituição da noção de “objetos do mundo real” para “objetos do
discurso”, que são interativamente e discursivamente constituídos em meio a práticas sociais.
Percebe-se, assim, que, no atual panorama dos estudos linguísticos, falar em gêneros
digitais e referenciação envolve, sem dúvida, a abordagem dos mecanismos de construção
textual do sentido ativados na rede. Conforme destacam Oliveira e Nascimento (2004, p. 285),
15
a criação do espaço de referência se dá recursivamente, “pela integração em rede de todos os
espaços de referenciação instaurados no processo discursivo”. Neste caso, assume-se a ideia
de que todo texto é, de fato, um hipertexto.
Em sentido estrito, pode-se dizer, ainda, que a rede hipertextual dos gêneros digitais
constitui um ambiente revelador de diferentes estratégias de mapeamento (cognitivas) das
quais os falantes lançam mão no ato comunicativo. Assim, estipula-se que estes desenvolvem
uma espécie de competência discursiva, noção utilizada por Oliveira e Nascimento (2004,
p. 287) para se referirem às “habilidades e/ou conhecimentos necessários à implementação e
gerenciamento do processamento discursivo”.
O problema que aqui se coloca diz respeito aos processos de referenciação (os casos de
anáfora indireta, em especial) e seus aspectos cognitivos no universo textual de construção de
sentido, mais propriamente nos variados gêneros jornalísticos (em jornal impresso e jornal
eletrônico). Assim, o trabalho se enquadra na perspectiva funcional da Linguística Textual e
da Linguística Cognitiva, de vez que analisa os chamados gêneros textuais como práticas
discursivas, social e contextualmente localizadas. Quanto aos aspectos relativos à coesão e
coerência textuais, nota-se que os gêneros digitais apresentam características que merecem ser
revistas e investigadas, dada a complexidade da rede veiculadora de sentidos no hipertexto.
Isso não implica, naturalmente, a simples identificação de estratégias cognitivas diferenciadas
em cada um desses gêneros, mas, sobretudo, a revisão de questões teóricas ligadas às duas
principais temáticas desta pesquisa: gêneros textuais e processos de referenciação.
Os corpora do presente estudo são formados por textos de edições (eletrônicas e
impressas) de dois jornais de circulação nacional: Folha de São Paulo e O Globo. Serão
incluídos na amostra 60 exemplares de cada gênero jornalístico investigado, analisando-se um
total 9 gêneros e 540 textos. Entre os gêneros jornalísticos a serem abordados neste estudo
estão: a) no jornal impresso: artigo, entrevista, notícia, crônica, opinião do leitor; b) no jornal
eletrônico: plantão de notícias, enquete, blog e twitter. A seleção de gêneros distintos nas
versões impressa e eletrônica dos referidos jornais é motivada pelo intuito de contemplar tanto
gêneros jornalísticos tradicionalmente conhecidos como aqueles encontrados apenas em meio
eletrônico.
16
No que toca às hipóteses levantadas neste estudo, apresentam-se quatro observações
iniciais: (a) O jornal, por englobar, ao mesmo tempo, os gêneros encontrados em jornal
impresso e no jornal on-line, pode ser entendido como um hipergênero no qual convergem
diferentes práticas comunicativas; (b) Os gêneros digitais encontrados no jornal eletrônico
apresentam especificidades – estruturais e funcionais – em relação àqueles associados
tradicionalmente aos jornais impressos; (c) Por ser de caráter não-linear, o hipertexto
apresentado no jornal eletrônico permite um número variado de cadeias anafóricas a depender
dos sistemas cognitivos que são ativados, por cada leitor, em uma dada ação comunicativa; (d)
Nem todos os gêneros digitais apresentam hibridismo entre fala e escrita, sendo necessária
uma reavaliação desse aspecto no que tange a essas duas modalidades.
Enfim, em sua estruturação formal, este trabalho encontra-se dividido em quatro
capítulos teóricos que focalizam, de modo abrangente, os assuntos relevantes ao tratamento
do problema em tela, a saber: (1) A noção de referência nas abordagens sociodiscursivas da
linguagem; (2) Gêneros e tipologias textuais: novas perspectivas nos estudos de referenciação;
(3) Hipertexto e gêneros textuais: do jornal impresso ao jornal eletrônico; (4) Mapeamento de
sentidos no hipertexto: breve incursão na teoria dos espaços mentais. Além dessas sessões
teóricas, apresentam-se os aspectos metodológicos da pesquisa, a análise dos dados e as
considerações finais, nos capítulos 5, 6 e 7, respectivamente.
17
1
A NOÇÃO DE REFERÊNCIA NAS ABORDAGENS SOCIODISCURSIVAS DA
CIÊNCIA DA LINGUAGEM
Se concebermos a linguagem como atividade
social, histórica e cognitiva, o essencial é
acharmos uma forma de analisar as atividades
sociais, históricas e cognitivas realizadas no
ato de dizer.
(Luiz Antônio Marcuschi)
Na história dos estudos linguísticos, a referência constitui um dos temas mais
instigantes e recorrentes e, por isso mesmo, torna-se alvo de novas reflexões e indagações,
favorecendo um debate interdisciplinar entre linguistas, lógicos, semioticistas, psicólogos etc.
Tradicionalmente, numa visão lógica oriunda da filosofia da linguagem, ela é vista como uma
relação entre as formas linguísticas e os objetos do “mundo real”1. Essa postura teórica vem
sendo constantemente questionada nas abordagens mais recentes da ciência da linguagem,
possibilitando-se uma atualização dos debates sobre questões de referenciação e sentido.
Já há algum tempo na literatura da Linguística Textual a atividade referencial deixou de
ser vista como simples etiquetagem de um mundo real e passou a estar ligada ao
processamento mental das entidades discursivas por meio da atividade interativa entre os
participantes do evento comunicativo. Autores como Apothéloz (1995, 2003), Mondada e
Dubois (2003), Berrendoner e Reichler-Béguilin (1995), entre outros, vêm se apoiando no
fato de que os referentes são dinamicamente construídos no (e pelo) evento comunicativo,
constituindo-se, pois, em objetos do discurso. Assim, em vez de se privilegiar a relação entre
as palavras e as coisas, desvia-se o foco para as relações intersubjetivas no discurso.
(MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 22). De um modo geral, pode-se dizer que a direção
assumida pelas abordagens sociodiscursivas da linguagem se resume na seguinte afirmação de
Marcuschi (2004):
1
Os filósofos da Escola de Oxford, cujas primeiras contribuições surgiram a partir de 1930, já apontavam a
referência como um modo de intervir na realidade e não meramente como uma etiquetagem entre as palavras e
as coisas. Segundo essa perspectiva filosófica, “o uso da linguagem é uma forma de ação no real e não uma
simples maneira de descrever a realidade que se observa. Ao se examinar a linguagem, está se examinando a
própria experiência do real”. (MARCONDES, 2004, p. 36)
18
Tudo indica que o melhor caminho não é analisar como representamos, o
que representamos nem como é o mundo ou a língua e sim que processos
estão envolvidos na atividade de referenciação em que a língua está
envolvida. Não vamos analisar se o mundo é ou não discretizado nem se a
língua é um conjunto de etiquetas ou não. Vamos partir da ideia de que o
mundo e o nosso discurso são constantemente estabilizados num processo
dinâmico levado a efeito por sujeitos sociocognitivos e não sujeitos
individuais e isolados diante de um mundo pronto. (MARCUSCHI, 2004,
p. 270)
No que tange ao tratamento teórico das expressões referenciais anafóricas, alguns
trabalhos mais recentes como os de Koch (2001), Koch e Marcuschi (1998), Cavalcante
(2003) revelam, ainda, que já se foi a época em que o mecanismo anafórico era visto única e
exclusivamente sob o prisma da correferencialidade entre dois elementos pontuais da
superfície textual. Os processos anafóricos indiretos de referenciação, que se desvinculam da
noção de retomada co-textual, muito embora apresentem a continuidade referencial – e por
isso mesmo são chamados de anafóricos – são cada vez mais focalizados nos estudos de
referenciação, ampliando-se não só a noção de referência, mas também a visão funcional das
expressões referenciais.
Para focalização da temática geral da referência, neste capítulo serão abordados os
seguintes aspectos: (1) a instabilidade dos constituintes referenciais; (2) a classificação geral
dos processos de referenciação (mais precisamente de referenciação indireta); (3) a relação
entre referenciação e atividade argumentativa; (4) a acessibilidade dos referentes.
1.1 A INSTABILIDADE DAS CATEGORIAS: DA REFERÊNCIA À REFERENCIAÇÃO
Mondada e Dubois (2003, p. 20) opõem duas visões de como a língua se refere ao
mundo: uma concepção de base filosófica e realista, expressa pela metáfora do espelho,
segundo a qual as estruturas linguísticas refletem diretamente as coisas, e outra concepção,
apoiada em alguns princípios fenomenológicos, de acordo com a qual as categorias
comportam uma instabilidade constitutiva. Sob esse último prisma, pode-se dizer que as
práticas linguísticas não são “imputáveis a um sujeito cognitivo abstrato, racional, intencional
e ideal, solitário face ao mundo, mas a uma construção de objetos cognitivos e discursivos na
intersubjetividade das negociações, das modificações, das ratificações de concepções
individuais e públicas do mundo”.
19
Os referentes – concebidos pelas autoras como “objetos do discurso” – podem,
portanto, ser vistos como construtos culturais, representações constantemente alimentadas
pelas atividades linguísticas processadas na instância discursiva. E, em tal perspectiva, seria
mais adequado falar em referenciação do que em referência, de modo a ressaltar a ideia de
processo que caracteriza o ato de referir. Nada teria, portanto, uma segmentação a priori:
tanto as categorias discursivas quanto as cognitivas podem evoluir e se modificar de acordo
com um contexto ou ponto de vista. As opções lexicais se reconstroem e se ajustam ao que
está sendo negociado entre os interlocutores, dependendo de seus propósitos enunciativos.
Com efeito – no lugar de partir do pressuposto de uma segmentação a priori
do discurso em nomes e do mundo em entidades objetivas, e, em seguida, de
questionar a relação de correspondência entre uma e outra – parece-nos mais
produtivo questionar os próprios processos de discretização. Desejamos,
além disso, sublinhar que, no lugar de pressupor uma estabilidade a priori
das entidades no mundo e na língua, é possível reconsiderar a questão
partindo da instabilidade constitutiva das categorias por sua vez cognitivas e
linguísticas, assim como de seus processos de estabilização”. (MONDADA;
DUBOIS, 2003, p. 19)
Ao tratar da instabilidade inerente às categorias e à prática discursiva, as autoras
ressaltam que ela é diretamente ligada às propriedades intersubjetivamente negociadas das
denominações e categorizações no processo de referenciação. Nesse contexto, os processos de
estabilização decorrentes da depreensão dos objetos do discurso são vistos como processos
“que se desenvolvem no seio das interações individuais e sociais com o mundo e com os
outros, e por meio de mediações semióticas complexas.” (MONDADA; DUBOIS, 2003,
p. 22)
Um dos processos de estabilização discursiva apontados pelas referidas linguistas é a
referenciação anafórica. Como elas assinalam, a anáfora pode ser vista tanto como um modo
de
ilustrar
tipicamente
o
problema
dos
referentes
evolutivos
(CHAROLLES;
SCHNEDECKER, 1994, apud MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 43), quanto como uma forma
de estabilizar ou de focalizar uma denominação particular, excluindo para isso outras
possibilidades, mesmo se elas estiverem potencialmente disponíveis no texto.
Os dois exemplos de objetos anafóricos em (1) e (2) - apresentados por Mondada e
Dubois (2003, p. 45) - revelam como no discurso pode-se marcar, inclusive
sintagmaticamente, a estabilização de uma categoria:
20
(1) Eu vejo que M. de la Lande fala da beleza e da situação deste palácio.
Efetivamente, eu não vi nada que tenha ares de palácio. A situação certamente
contribui muito. (Bergeret, Voyage d’Italie 1773-1774, Paris, 1948, 41)
(2) A cidade, pois é uma cidade, é composta de quarenta a cinqüenta casas, que são
contornadas por uma alta e forte muralha para protegê-las dos bandidos de terra e
de mar. (Simond, Voyage em Italie et en Sicile, Paris, 1828, v 2, 34)
Esses tipos de referenciação corroboram ou reforçam, pela repetição, a utilização de
um certo descritor - palácio ou cidade – que tem como efeito estabilizar o objeto como
prototípico. Como se vê, a necessidade de um uso redundante do mesmo designador e de sua
ratificação ao longo do desenvolvimento textual mostra a instabilidade dos descritores
(categorias) particulares, que correm constantemente o risco de serem descartados no
processo discursivo.
1.2 POR UMA CLASSIFICAÇÃO DOS PROCESSOS INDIRETOS DE REFERENCIAÇÃO
Cavalcante (2003) destaca que as expressões referenciais podem ser divididas em dois
grandes grupos: (a) expressões sem continuidade referencial, que apresentam exclusivamente
a função de introduzir referentes novos no discurso; (b) expressões com continuidade
referencial, que podem apresentar ou não uma retomada co-textual, a depender das estratégias
de ativação de referentes novos ou reativação de referentes já mencionados no discurso. Neste
segundo grupo incluem-se, segundo a autora, todos dos casos de processamento anafórico,
com ou sem retomada. Os exemplos a seguir, extraídos da página do twitter do jornal O
Globo2, ilustram esses dois tipos de expressão referencial.
(3)
JornalOGlobo Bronzeamento artificial volta a ser proibido no Brasil inteiro
http://tinyurl.com/yc6nl8n about 2 hours ago from web
2
Os exemplos aqui apresentados foram extraídos de páginas da web, no twitter oficial de dois jornais nacionais,
O Globo e Folha de São Paulo, em suas respectivas versões eletrônicas, no período de 6 de janeiro a 6 de
fevereiro de 2010.
21
(4)
JornalOGlobo Haiti encerra buscas por sobreviventes do terremoto. Desde o dia
12, foram 132 resgatados com vida http://tinyurl.com/y8wfq2a about 3 hours ago
from web
JornalOGlobo Quatro pousadas na Ilha Grande, que estavam interditadas desde a
tragédia do réveillon, já podem receber turistas http://tinyurl.com/ydlzw63 about 23
hours ago from web
Em (3), vê-se que a expressão bronzeamento artificial apenas introduz referente novo
do discurso, exercendo o papel de apresentar o tema sem promover continuidade de
referentes. Já os exemplos apresentados em (4) revelam uma continuidade referencial ora por
meio de reativação de referentes já conhecidos no discurso (sobreviventes – 132 resgatados
com vida), ora por meio da ativação de novos referentes cuja interpretação é ancorada cotextualmente, por exemplo, através de esquemas cognitivos (quatro pousadas – turistas) e/ou
de conhecimentos do mundo textual (Ilha Grande – a tragédia do réveillon). Assim, neste
segundo grupo, quando não se caracteriza uma reativação de referentes já mencionados cotextualmente, tem-se um processo de referenciação indireta, podendo este ser ancorado em
relações semânticas léxico-estereotipadas, em esquemas cognitivos e/ou em conhecimentos
do mundo textual dos interlocutores.
A expressão anáfora indireta passa a ser fortemente utilizada a partir do final dos anos
noventa por autores como Schwarz (2000), Marcuschi (2005a), Koch e Marcuschi (1998) para
se referirem aos processos anafóricos que, diferentemente da anáfora tradicional, não mantêm
vínculo com a noção de retomada, muito menos com a noção de correferencialidade. Alguns
traços típicos desse tipo de anáfora são: (a) a ativação de referentes novos como se fossem
velhos; (b) a motivação ou ancoragem no universo textual. Tais características acabaram por
ampliar, sem dúvida, o escopo teórico dos estudos sobre o processamento anafórico.
A classe das anáforas indiretas representa um desafio teórico e obriga a
abandonar a maioria das noções estreitas de anáfora, impedindo que se
continue confinando-a ao campo dos pronomes e da referência em sentido
estrito. Ameaça noções de texto e coerência hoje no mercado, constituindo
um problema central para as teorias formais da referência, sendo ignorada
pelos gerativistas. Por fim, reintroduz no contexto da gramática aspectos
sociocognitivos relevantes que permitem repensar tópicos gramaticais na
interface com a semântica e a pragmática. (MARCUSCHI, 2005a, p. 54)
22
É interessante mencionar que a anáfora indireta também promove, como em todos os
casos de processamento anafórico, uma continuidade temática ou referencial3. Ainda que não
haja uma retomada de antecedente explícito no co-texto, persiste um vínculo de continuidade
temática entre os referentes que auxilia o trabalho interpretativo. Assim, trata-se de “um caso
de referência textual, isto é, de construção, indução ou ativação de referentes no processo
textual-discursivo que envolve atenção cognitiva conjunta dos interlocutores e processamento
local.” (MARCUSCHI, 2005a, p. 54).
Ao comentar a diferença de processamento entre anáforas diretas e indiretas,
Marcuschi (2005a, p. 57) menciona que, no primeiro caso, um SNa evoca e especifica um
referente (Ea), sendo que um outro SNb apenas co-refere ou co-especifica, mas não introduz
um novo referente. Já no segundo caso, o das anáforas indiretas, tanto o SNa como o SNb
evocam e especificam um referente próprio (Ea e Eb), porém a relação entre os dois não é
aleatória, estando fundamentada cognitiva e discursivamente por algum tipo de associação ou
inferência. Vejam-se, a seguir, os dois esquemas inspirados na classificação de Webber (1988)
adotados pelo autor.
SNa
SNb
SNa
SNb
Co-refere
(co-especifica)
evoca
especifica
evoca
especifica
evoca
especifica
especifica
Ea
Ea
Ea
ESQUEMA 1: processamento da anáfora direta
3
Eb
ESQUEMA 2: processamento da anáfora indireta
Na abordagem proposta por Marcuschi (2005a), encontra-se uma equivalência entre as noções de continuidade
temática e continuidade referencial.
23
Nos exemplos (5) e (6) estabelece-se facilmente a distinção entre os dois tipos de
processamento mencionados. Em (5) a relação anafórica é direta, por retomada pronominal,
envolvendo correferencialidade com um antecedente explícito (Lula)4. Já em (6), há ativação
de referente novo (os médicos) ancorada em um elemento co-textual (quadro clínico), sem
implicar retomada ou igualdade de referentes. Tem-se, aí, uma associação indireta, pautada
em modelos mentais relacionados ao esquema cognitivo quadro clínico – os médicos, a partir
do qual se depreende o referente em questão (os médicos que assistiam a jornalista).
(5)
JornalOGlobo Na reunião ministerial, Lula volta a defender eleição plebiscitária para
comparar governo dele ao de FH http://tinyurl.com/ycq35fw 3:07 PM Jan 21st from
web
(6)
folhadesp Jornalista sobrevivente da tragédia de Angra (RJ) tem quadro clínico
estável: Os médicos disseram nesta sexta-feira... http://bit.ly/7JNCae 1:37 PM Jan 8th
from twitterfeed
Uma vez compreendida a natureza específica de cada um dos processos aqui
apontados, pode-se apresentar finalmente uma definição provisória de anáfora indireta
sugerida por Schwarz (2000) e adotada por Marcuschi (2005a, p. 59), a qual, pelo menos até o
momento, parece dar conta mais amplamente do fenômeno em questão.
No caso da Anáfora Indireta trata-se de expressões definidas [e expressões
indefinidas e pronominais] que se acham na dependência interpretativa em
relação a determinadas expressões ou informações constantes da estrutura
textual precedente [ou subsequente] e que têm duas funções referenciais
textuais: a introdução de novos referentes (até aí não nomeados
explicitamente) e a continuação da relação referencial global.
(MARCUSCHI, 2005a, p. 59)
4
Embora o exemplo apresentando em (5) seja de natureza pronominal, deve-se ressaltar que a anáfora direta
pode ocorrer, também, por meio da repetição de SNs plenos, caracterizando-se uma relação de
correferencialidade entre o SNa e o SNb.
24
O aspecto da tematização remática (Schwarz, 2000), embora não esteja diretamente
apontado na definição acima apresentada, é outro traço importante das anáforas indiretas, já
que as mesmas promovem, de certo modo, uma estratégia simultânea de ativação-reativação
na continuidade do domínio referencial. Esse recurso, obviamente, se distingue da simples
reativação correferencial de um antecedente explícito, tal como ocorre nas anáforas diretas. O
exemplo apresentado a seguir, em (7), evidencia essa característica dos processos indiretos de
referenciação. Nota-se que há a ativação de um referente novo (a cozinha de vanguarda) cuja
identificação está atrelada à reativação de referentes previamente apresentados no co-texto
(comida simples e caseira, bananas, feijões), sem que necessariamente se estabeleça um laço
correferencial. Em outras palavras, apresenta-se algo novo (tema), mas que indiretamente se
associa a elementos já dados (rema) na superfície textual.
(7)
folhadesp Comida simples e caseira entra em alta em 2010, com bananas e feijões: A
cozinha de vanguarda perderá terreno, e o... http://bit.ly/8WYBR3 10:33 AM Jan 8th
from twitterfeed
Assim, Marcuschi (2005a, p. 60), baseado em Schwarz (2000), afirma que as
principais características dos processos de referenciação indireta podem ser assim resumidas:
(a) inexistência de uma expressão antecedente ou subsequente para retomada e presença de
uma âncora; (b) ausência da relação de correferência entre a âncora e o elemento anafórico,
dando-se apenas uma estreita relação conceitual; (c) a interpretação anafórica se dá com uma
construção de novo referente (ou conteúdo conceitual) e não como uma busca ou reativação
de referentes prévios por parte do receptor; (d) a realização da anáfora indireta se dá
normalmente por elementos não pronominais, sendo menos comum a sua realização
pronominal.
25
1.2.1 Tipologia das anáforas indiretas
Se o estudo da anáfora indireta corresponde a um verdadeiro desafio teórico nos
estudos de referenciação, grande parte de tal dificuldade se deve à imprecisão ou à oscilação
na tarefa de determinar quais os tipos ou subtipos válidos para essa forma de processamento
anafórico. Sendo assim, servirão aqui como ponto de partida os seis subtipos definidos por
Marcuschi (2005a), a fim de se apresentar, posteriormente, três classes maiores de
referenciação indireta: as anáforas associativas, as anáforas esquemáticas e os
encapsulamentos.
Apoiado em Schwarz (2000), Marcuschi (2005a) adota a divisão das anáforas indiretas
em dois grupos principais: tipos semanticamente fundados e tipos conceitualmente fundados.
Com base nesses dois grandes grupos e fazendo algumas reformulações na classificação
apresentada pela autora, ele chega a seis subtipos básicos: (a) AI baseadas em papéis
temáticos dos verbos; (b) AI baseadas em relações semânticas inscritas nos SNs definidos;
(c) AI baseadas em esquemas cognitivos e modelos mentais; (d) AI baseadas em inferências
ancoradas no modelo do mundo textual; (e) AI baseadas em elementos textuais ativados por
nominalizações; (f) AI esquemáticas realizadas por pronomes introdutores de referentes.
(a) AI baseadas em papéis temáticos dos verbos
Trata-se de uma associação indireta pautada nos papéis temáticos dos verbos, que
servem como âncora do processamento anafórico. Na realidade, este subtipo funda-se
diretamente na relação semântica entre o verbo e os seus argumentos, como se vê no exemplo
abaixo, no qual o verbo dirigir apresenta um de seus argumentos com papel de tema, servindo
como âncora para a expressão definida o veículo.
(8)
folhadesp Mandar mensagem por celular ao dirigir quadruplica risco de acidente: Uma
câmera no interior do veículo... http://bit.ly/6PqJ3k about 2 hours ago from twitterfeed
26
(b) AI baseadas em relações semânticas inscritas nos SNs definidos;
Este subtipo de anáfora indireta está relacionado às relações meronímicas inscritas no
léxico (relações parte-todo), bem como às conexões por hiponímia, hiperonímia e os campos
léxicos. Em (9), a associação indireta, meronímica, se estabelece no léxico, por meio da
relação parte-todo entre novela (âncora) e os capítulos.
(9)
folhadesp Novela: Verônica começa a depor em "Bela, a Feia": A programação está
sujeita a alteração devido à edição dos capítulos. http://bit.ly/4YL9Gz 11:55 PM Jan
20th from twitterfeed
(c) AI baseadas em esquemas cognitivos e modelos mentais
O que promove a continuidade referencial, neste caso, é a série de modelos ou frames
mentais estabilizados e armazenados na memória de longo prazo, ativados pelos
interlocutores por ocasião do processamento discursivo. Embora não estejam ligados a itens
lexicais específicos, tais modelos podem ser ativados pelo léxico, servindo como um
mecanismo de ampliação de conhecimentos semânticos. Nos exemplos (10) e (11) tem-se,
respectivamente, esquemas ou modelos mentais relativos às expressões nominais astronautas
da Nasa e editora americana. O primeiro frame é ativado indiretamente pelo cenário
astronauta – espaço – missão. Já o segundo script se apoia na ativação do modelo mental
editora – capa (de livro), incluindo-se aí o processo inferencial da relação meronímica livro –
capa (vista no subtipo anteriormente apresentado)5.
(10)
JornalOGlobo Astronautas da Nasa vão usar o Twitter direto do espaço Será possível
acompanhar a nova missão em tempo real http://bit.ly/69EtDR 3:01 PM Jan 22nd from
Power Twitter
5
Assume-se, aqui, o uso indistinto dos termos esquema, frame e script para se referir aos modelos mentais
ativados pelos interlocutores por ocasião do processamento discursivo.
27
(11)
folhadesp Editora americana é criticada por mostrar personagem negra como branca em
capa. http://bit.ly/72s8uL 2:43 PM Jan 21st from twitterfeed
(d) AI baseadas em inferências ancoradas no modelo do mundo textual
Este subtipo de anáfora está ancorado em informações explicitadas no modelo do
mundo textual precedente. “Trata-se de anáforas fundadas em conhecimentos retrabalhados
por estratégias inferenciais maximizadas pelo conjunto de conhecimentos textuais
mobilizados” (MARCUSCHI, 2005a, p. 64). Como não estão estritamente ligadas a relações
semânticas inscritas no léxico ou a modelos mentais estabilizados, muitas vezes essas
anáforas exigem um esforço cognitivo maior em seu processamento. Os exemplos (12) e (13)
são ilustrativos das anáforas indiretas ancoradas no modelo de mundo textual. Em (12), a
informação apresentada no mundo textual precedente (BBB10) serve como âncora para a
interpretação e ativação de um novo referente na expressão nominal definida o paredão. O
mesmo ocorre em (13), quando o sintagma o terremoto é ancorado co-textualmente pela
expressão o Haiti.
(12)
folhadesp
"BBB10": Tessália articula estratégia para escapar do paredão.
http://bit.ly/6BbzxJ 2:43 PM Jan 21st from twitterfeed
(13)
JornalOGlobo Ministro Celso Amorim decide viajar ao Haiti nesta sexta-feira, dez
dias após o terremoto http://tinyurl.com/ykpxwtj 1:28 PM Jan 21st from web
28
(e) AI baseadas em elementos textuais ativados por nominalizações
Trata-se de processos de nominalização que remetem a algum verbo ou a porções
textuais inteiras que servem como âncoras para interpretação de uma determinada expressão
referencial. Sendo um processo anafórico indireto, não há uma retomada de antecedentes
pontualizados, mas sim a passagem de um verbo ou porção textual precedente para um nome,
evocando-se um novo referente. Pelo seu potencial encapsulador, a nominalização lato sensu
(ou nomeação) também inclui os rótulos, conforme destacam autores como Cavalcante
(2003)6 e Zamponi (2003). Sendo assim, embora esse aspecto não seja ressaltado em
Marcuschi (2005a), registra-se, aqui, a necessidade de se ampliar a percepção do fenômeno
em questão, considerando-se essas anáforas indiretas como encapsuladoras, seja na forma de
nominalizações, seja na forma de rótulos. Vê-se, em (14), que tal encapsulamento se dá por
meio de expressões como recomendações, informações, comentários, referentes a toda uma
porção textual anterior que remete ao que dizem os guias de viagem a respeito de São Paulo.
(14)
folhadesp Quando visitar SP, use colírio e evite "ressacão", dizem guias:
Recomendações, informações e comentários retirados... http://bit.ly/5M6L5e 7:42 AM
Jan 21st from twitterfeed
(f) AI esquemáticas realizadas por pronomes introdutores de referentes
As anáforas indiretas podem ainda ser realizadas, embora menos frequentemente,
através de pronomes sem antecedente explícito que se ancoram em algum elemento ou porção
co-textual. Marcuschi (2005a) também denomina esse subtipo de anáforas esquemáticas.
Nesse caso, o trabalho inferencial é bastante sofisticado e depende dos conhecimentos de
mundo ativados em função do processamento anafórico. Veja o exemplo a seguir, (15), em
que o pronome elas, embora não tenha antecedente explícito, pode ter seu referente
depreendido indiretamente por meio de informações da estrutura textual posterior e de
conhecimentos socialmente partilhados pelos interlocutores. Assim, o elas seria interpretado
como um grupo mais amplo de mulheres, mais especificamente as que se enquadram no perfil
6
Cavalcante (2003) inclui, em sua proposta classificatória para as expressões referenciais sem antecedente, as
anáforas encapsuladoras, embora estas não sejam apresentadas pela autora como subtipo de anáfora indireta.
29
da mulher moderna, que exerce múltiplos papéis sociais (mãe, profissional, esposa etc.).
Trata-se, então, de um processo indireto, diferente do que ocorre com o pronome ela, no
mesmo exemplo, cuja interpretação é direta e pontualizada no co-texto, já que retoma
anaforicamente o SN minha mulher7.
(15)
MiriamLeitaoCom Legal. abs p ela RT @rcapistra: @MiriamLeitaoCom artigo "Elas
conseguiram". mandei p/ minha mulher, profissional q vive dilema mãevstrabalho. 23
minutes ago from Seesmic
Como se vê, considerando-se os seis subtipos mencionados por Marcuschi (2005a), as
anáforas associativas8 constituem “parte substantiva” das anáforas indiretas, seja na sua
concepção estreita, de caráter léxico-estereotipado (KLEIBER, 2001) ou de natureza
cognitivo-discursiva (CHAROLLES, 1994), seja na sua concepção ampla, adotada por autores
como Apothéloz e Béguelin (1999) e Berrendoner (1994). De um modo ou de outro, Zamponi
(2003, p. 73) destaca que “dizer que as anáforas associativas são parte substantiva das
anáforas indiretas significa que toda anáfora associativa é indireta, mas nem toda anáfora
indireta é associativa”.
Sendo assim, partindo-se de tal premissa, pode-se sugerir, nesta pesquisa, a
classificação das anáforas indiretas em três grupos principais: (1) as anáforas associativas,
que incluem todos os tipos de associação indireta, como aquelas ligadas aos papéis temáticos
do verbo, às relações meronímicas instauradas no léxico, bem como aos modelos mentais
estabilizados (frames ou scripts) ou aos modelos do mundo textual; (2) as anáforas
esquemáticas, que correspondem aos casos de anáfora indireta pronominal sem antecedente;
(3) os encapsulamentos, que podem ocorrer por meio de nominalizações ou rótulos9.
7
8
9
Embora o antecedente do pronome ela, no exemplo em questão, ocupe uma posição posterior na superfície
textual, dada a natureza do Twitter, ele não pode ser visto propriamente como “catafórico”, pois o uso de RT
(retweet) implica a reprodução de um conteúdo já visto anteriormente. Tal aspecto será abordado mais
detalhadamente no capítulo 6 deste trabalho.
Não se tem por objetivo, neste trabalho, abordar as distinções e subclassificações pertinentes às anáforas
associativas stricto e lato sensu. Um tratamento teórico mais consistente sobre o tema poderá visto em Heine
(2000) e Zamponi (2003).
Também em Zamponi (2003) são discutidas algumas questões teóricas específicas que envolvem a distinção
entre nominalização (stricto sensu) e rótulo, sendo ambos considerados aqui como anáforas indiretas
encapsuladoras. Francis (2003, p. 192) menciona que a principal característica do rótulo é que “ele exige
realização lexical ou lexicalização, em seu co-texto: é um elemento nominal inerentemente não-específico cujo
significado específico no discurso necessita ser precisamente decifrado.”
30
A seguir, tem-se um quadro ilustrativo do reagrupamento das anáforas indiretas nos
três tipos principais aqui propostos.
ANÁFORAS INDIRETAS
Anáforas associativas
Anáforas pronominais
esquemáticas
1 baseadas em papéis 1 anáfora pronominal sem
temáticos do verbo
antecedente explícito
Encapsulamentos
anafóricos
1 nominalizações
2 rótulos
2 baseadas em relações
semânticas inscritas nos
SNs
3 ativadas por esquemas
cognitivos ou modelos
mentais
4 ativadas por modelos do
mundo textual
QUADRO 1: Proposta de classificação das anáforas indiretas
1.3 REFERENCIAÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E INTERAÇÃO DISCURSIVA
Ao tratar a referenciação como atividade cognitivo-discursiva e interacional, Koch
(2001) parte de três pressupostos básicos: (1) a referenciação é uma atividade realizada por
sujeitos sociais; (2) os referentes são objetos do discurso construídos no decorrer dessa
atividade; (3) o processamento do discurso é estratégico e implica, por parte dos sujeitos
ativos envolvidos na comunicação, a realização de escolhas significativas entre as múltiplas
atividades que a língua oferece.
Considerando, ainda, o potencial argumentativo no uso das expressões nominais
referenciais, Koch (2001, p. 76) assinala que, ao se colocar em ação a estratégia de descrição
definida, “opera-se uma seleção entre propriedades passíveis de serem atribuídas a um
referente, daquela(s) que, em dada situação discursiva, é (são) relevantes para o locutor, tendo
em vista a viabilização do seu projeto de dizer.” Desse modo, assumindo tal perspectiva, a
argumentação discursiva também pode, sem dúvida, ser acionada, reforçada e reestruturada
por meio de estratégias referenciais. Esse aspecto é bastante claro em processos de
31
continuidade referencial com retomada (anáforas diretas), como se vê nas recategorizações
apresentadas em (16), mas também se dá, ainda que em menor escala e de modo mais sutil, na
atividade inferencial das expressões nominais sem retomada (anáforas indiretas). Em outras
palavras, a ação de “referir” e construir um dado objeto do discurso é motivada, em última
instância, pela imagem referencial que o falante pretende ativar discursivamente, envolvendo,
sem dúvida, aspectos histórico-sociais e ideológicos.
(16)
folhadesp Roberto Carlos vê evolução no Corinthians e diz que não é maldoso: Um
dos melhores jogadores em campo na goleada s... http://bit.ly/bkWu2v about 9 hours
ago from twitterfeed
folhadesp Atirador se suicida após matar três em fábrica, diz polícia: Um trabalhador
descontente envolvido em uma disputa s... http://bit.ly/4C1Udt 10:18 PM Jan 7th from
twitterfeed
Como se observa nos exemplos acima, a recategorização das expressões nominais
Roberto Carlos e atirador se dá, respectivamente, pelo uso de uma expressão referencial com
retomada (respectivamente, um dos melhores jogadores e um trabalhador descontente) capaz
de revelar uma orientação argumentativa do produtor do texto. Em se tratando de um discurso
produzido na página do twitter do jornal Folha de São Paulo, ambas as recategorizações
tendem a sinalizar, de algum modo, a perspectiva ideológica ou ponto de vista (esportivo,
político, econômico, cultural etc.) do jornal, o que faz com que, intencionalmente,
determinadas imagens ou enquadres sejam delimitados para os referentes em questão.
No entanto, não é só nos processos de referenciação com retomada que esse aspecto
funcional das expressões nominais se manifesta. Há também, em alguns casos de
referenciação indireta – em especial nas anáforas associativas e encapsuladoras – um claro
direcionamento argumentativo do falante nas escolhas lexicais que se dão na sua ativação dos
objetos do discurso, como se nota em (17). E, uma vez que tal construção nunca é unilateral, o
entendimento dessas estratégias precisa ser continuamente ratificado e testado pelos
interlocutores discursivos.
32
(17)
folhadesp Angélica bebe além da conta e tenta beijar colegas no "BBB10": Na manhã
deste domingo, o alvoroço causado por Angé... http://bit.ly/9YGhTp about 5 hours ago
from twitterfeed
folhadesp Após negociação frustrada, Palmeiras anuncia volta de Deyvid Sacconi:
Uma notícia surpreendente foi divulgada pela... http://bit.ly/bKoHJ1 about 4 hours ago
from twitterfeed
Os encapsulamentos vistos em (17) sugerem um processo indireto de referenciação
por meio das expressões o alvoroço e uma notícia surpreendente. No primeiro caso, a
orientação argumentativa está direcionada para o valor comportamental expresso por verbos
situados anteriormente na cadeia co-textual (beber além da conta/tentar beijar colegas). No
segundo exemplo, a expressão uma notícia surpreendente também resume ou rotula toda uma
ação previamente elaborada na superfície textual, assumindo valor argumentativo através de
modificadores como surpreendente. Além desses encapsulamentos, anáforas associativas
igualmente podem revelar uma ação argumentativa estratégica em seu processamento,
sobretudo no que concerne à seleção dos itens lexicais, conforme se verifica em (18). Em tal
exemplo, a escolha de expressões onomatopeicas como o au au au e o miau miau não é
gratuita, indicando um esquema associativo com penas, pelos, escamas, de forma que o
cenário relativo ao mundo animal é cognitivamente ativado. O uso das expressões
onomatopaicas na ativação do referido modelo mental reforça o direcionamento
argumentativo voltado para a linguagem infantil.
(18)
folhadesp Leve as crianças para passear entre penas, pelos e escamas: Não é só o "au
au au" e o "miau miau" que podem ser ouvido... http://bit.ly/cuesM5 about 5 hours ago
from twitterfeed
De um modo geral, pode-se dizer que o processamento anafórico - enquanto atividade
cognitivo-discursiva e interacional - implica o reconhecimento de ações estratégicas por parte
de sujeitos ativos que, por meio de suas escolhas referenciais, terminam por conduzir, direta
ou indiretamente, a argumentação discursiva. Mesmo em textos curtos como aqueles
encontrados no Twitter, com 140 caracteres, nota-se que as redes referenciais (com ou sem
33
retomada) são frequentemente acionadas com vistas aos propósitos comunicativos do falante e
contribuem para o potencial multifuncional das expressões nominais.
É preciso ter em mente, claro, que interação discursiva se dá na construção de sentidos
mediados pelos interlocutores da comunicação, sempre pautada em pontos “instáveis” e
“dinâmicos” da teia referencial. Desse modo, o processamento de referentes, com ou sem
retomada, não só diminui a sua “a instabilidade constitutiva” (MONDADA; DUBOIS, 2003),
mas também expande o seu potencial funcional por meio dos sentidos ativados
discursivamente. Sem a colaboração mútua dos interlocutores, as estratégias de argumentação,
por exemplo, não seriam reforçadas pela depreensão dos objetos do discurso e,
consequentemente, os propósitos comunicativos teriam de ser revistos.
1.3.1 Expressões referenciais e escolhas lexicais
Segundo Koch (2001, p. 83), no uso de expressões nominais referenciais, a escolha do
nome-núcleo do sintagma nominal e/ou de seus modificadores vai ser um fator responsável
pela orientação argumentativa do texto. A autora divide o nome-núcleo em cinco categorias:
genéricos, metafóricos, metonímico ou meronímico, introdutor clandestino de referentes e
metadiscursivo. Além disso, menciona a seleção dos qualificadores, dividindo-os em
modificadores axiológicos positivos e negativos.
A seleção de um nome-núcleo genérico se dá, com bastante frequência, nas
nominalizações ou rotulações de sequências textuais anteriores (ou posteriores), podendo este
ser dotado de carga avaliativa (KOCH, 2001, p. 83). É o que se verifica em (19), por meio das
expressões genéricas o escândalo e o abuso, que encapsulam informações do co-texto
posterior da mensagem. Como se verifica, em ambos os casos, a expressão nominal utilizada
possui carga avaliativa, contribuindo para a orientação argumentativa do texto.
(19)
MiriamLeitaoCom RT @Mleitaonetto: O escandalo do DF: o que o acusado do crime
de tentativa de suborno disse à Polícia Federal? Leia no iG http://bit.ly/a7uTHR 9:22
PM Feb 5th from Seesmic
MiriamLeitaoCom É ficar de olho para evitar o abuso. RT @joseribamarmhot: O
império Odebrecht, o que vc acha da ""fome"" da empresa?`É bom? 4:10 PM Feb 1st
from Seesmic
34
O uso de um nome-núcleo metafórico nos processamentos anafóricos pode apresentar
igual função argumentativa, já que por vezes ele assume grande carga avaliativa. Os exemplos
dados em (20) retratam essa propriedade das expressões referenciais, já que o uso dos termos
o breve apocalipse e um frio medonho conduz a uma avaliação negativa os seus referentes,
por meio de uma relação metafórica. No primeiro caso, tem-se um encapsulamento por meio
de rótulo, já que a expressão o breve apocalipse reativa todo conteúdo anterior (referente ao
índice de desemprego na Espanha); no segundo caso, uma anáfora associativa ativada pelo
modelo do mundo textual, o qual permite a associação indireta entre as expressões um frio
medonho e esse desemprego.
(20)
MiriamLeitaoCom RT @natan27: A histórica marca d 4 milhões d desempregados
caiu como 1 bomba aki na España. Os jornais parecem prever o breve apocalipse 8:05
AM Feb 4th from Seesmic
MiriamLeitaoCom Pois é: 10% em média RT @mnsmns: @MiriamLeitaoCom Um
frio medonho pegou o europeu. Esse desemprego que a media é 10%. + tem lugar com
até 20%. 11:31 AM Jan 8th from Seesmic
Pode haver, também, um direcionamento da argumentação discursiva quando se utiliza
um nome-núcleo metonímico ou meronímico na cadeia referencial (KOCH, 2001, p. 84). Em
geral, esse tipo de nome-núcleo acompanha as anáforas associativas, mais especificamente
aquelas do segundo tipo descrito por Marcuschi (2005a). Como se vê em (21), o termo o
puxadinho estabelece uma relação meronímica com o confinamento do BBB10. Nesse
processamento anafórico, evidentemente, exige-se por parte dos interlocutores um
conhecimento de mundo compartilhado, contextualizado, a partir do qual se pode depreender
a ligação parte-todo na associação inferencial entre o confinamento (a casa) e o puxadinho
(parte da casa). E a carga avaliativa é claramente identificada, pois, no uso do termo
diminutivo “puxadinho”, correspondente a um lugar menos privilegiado da casa.
(21)
folhadesp Uilliam quebra dente no confinamento do "BBB10": Na tarde deste sábado,
todos conversavam no puxadinho quando Uill... http://bit.ly/9aVRxn 6:54 PM Jan 30th
from twitterfeed
35
Introdutores “clandestinos” de referentes também podem funcionar, conforme Koch
(2001, p. 85), como nomes-núcleo que conduzem a argumentação textual. Um breve exemplo
desse tipo de processamento pode ser visto em (22), na associação que é realizada por meio da
expressão aquele grupo de Brasília, ancorada na informação co-textual anterior (empresa
corrupta). Percebe-se, aí, um nível inferencial bastante sofisticado, de vez que não só
elementos da superfície co-textual são acionados, mas também conhecimentos enciclopédicos,
compartilhados entre os interlocutores.
(22)
MiriamLeitaoCom Deixa eu ver se entendi: que tal punir aquele grupo de Brasília
também? RT @gbarrosdoig: Lula quer punir empresa corrupta http://bit.ly/bNfptw
9:28 PM Feb 5th from Seesmic
Outra classe de nome-núcleo destacada por Koch (2001, p. 85) é o nome
metadiscursivo, que promove a recategorização de referentes por meio de formas
metalinguísticas ou metadiscursivas (FRANCIS, 1994, apud KOCH, 2001, p. 85). Entre tais
formas, a autora menciona: (1) nomes ilocucionários (promessa, conselho, asserção, crítica,
proposta, etc.); (2) nomes de atividades “linguajeiras” (descrição, explicação, relato,
debate etc).; (3); nomes de processos mentais (análise, suposição, opinião, conceito,
avaliação etc.); (4) nomes metalinguísticos em sentido próprio (frase, pergunta, questão,
sentença, palavra, etc.; (5) denominação reportada, que corresponde a uma citação de termos
ou expressões fazendo-se uso de aspas de conotação autonímica. A seguir, em (23),
apresentam-se dois exemplos de encapsulamento anafórico realizados através de nomesnúcleo metadiscursivos (o ditado / o debate), os quais, indiretamente, também sustentam a
direção argumentativa pretendida pelo autor. Em (24), o mesmo aspecto pode ser observado
através da denominação reportada “muita força”, que tem conotação autonímica.
(23)
MiriamLeitaoCom Três já? Com esta carinha? Vai longe RT @costavalle: Casei 3
vezes. Como diz o ditado,@MiriamLeitaoCom: "Persistir no erro é burrice", kkkk
about 2 hours ago from Seesmic
JornalOGlobo Quer @asfaltoliso, ruas com calçamento e sinalização? Participe do
debate e envie sua foto para campanha #DoisGritando http://bit.ly/
36
(24)
JornalOGlobo Lula diz que não dará palpites no futuro governo, mas fará 'muita
força' para eleger sucessora http://tinyurl.com/yhjksaq about 7 hours ago from
Echofon
Por fim, Koch (2001, p. 86) destaca o papel da seleção dos qualificadores nas
expressões referenciais, considerando a sua relevância para a argumentação discursiva. Ela
divide tais qualificadores em marcadores axiológicos positivos e negativos, os quais assumem
claramente uma carga avaliativa no processamento textual-discursivo. Os três exemplos vistos
em (25) refletem esse aspecto funcional dos qualificadores das expressões referenciais
utilizadas. No primeiro exemplo, há o modificador positivo vital que reforça a carga avaliativa
do referente retomado (a vital ajuda constitui, aí, um caso de anáfora direta co-referencial). Já
nos dois últimos casos, os encapsulamentos (anafóricos e catafóricos) presentes nas
expressões referenciais indiretas (a proposta exótica e o falso êxito) permitem que a
orientação argumentativa seja controlada e os objetos do discurso avaliados negativamente a
partir dos modificadores (exótica e falso)
(25)
folhadesp Ajuda externa a Honduras voltará após reconhecimento, diz ministro: A
vital ajuda dos organismos multilaterais a H... http://bit.ly/ap552S 9:16 PM Jan 28th
from twitterfeed
BlogdoNoblat Criação de um Conselho Nacional de Política Externa: Embaixador
critica aproposta exótica’ http://bit.ly/blMux1 about 18 hours ago from O Globo
BlogdoNoblat O falso êxito do PAC: mal gerido, o plano está longe de suas metas.
http://bit.ly/blMux1 about 18 hours ago from O Globo
Pelo que foi exposto até aqui, nota-se claramente que a função de recategorização
argumentativa pode sim ser realizada, nos processos de referenciação, apenas por meio do
nome-núcleo ou pelo acréscimo de modificadores axiológicos (positivos ou negativos). “O
discurso, à medida que alimenta a memória discursiva, fornece uma representação de seus
estádios sucessivos, particularmente formatando as expressões referenciais, que nesse sentido,
operam como chaves(clues)” (KOCH, 2001, p. 87).
37
Tal representação, assim, pode ser modificada e manipulada na dinâmica discursiva,
sendo as expressões referenciais, certamente, “um dos lugares onde a manipulação é não só
possível como visível”. Dizendo de outra forma e concordando com Koch (2001), as
expressões referenciais (com ou sem retomada) não apenas “referem”, mas também, sugerem,
orientam e re-significam as representações discursivas, revelando uma multifuncionalidade
que contribui para a argumentação e embasamento de pontos de vista dos interlocutores.
1.4 SOBRE A ACESSIBILIDADE DOS REFERENTES NO DISCURSO
Cavalcante e Koch (2007, p. 9) destacam que, do ponto de vista sociocognitivo,
grande parte das pesquisas recentes sobre referenciação “tem vinculado o emprego das formas
de expressão referencial a critérios de ativação e atenção, de menção no cotexto e de
identificabilidade”.
Numa perspectiva funcionalista, a acessibilidade dos referentes pode estar relacionada
a determinadas escalas de acesso cognitivo, que, segundo Chafe (1987), corresponderia ao
fluxo informacional. Pode, também, estar atrelada, ao status informacional das entidades do
discurso, de acordo com a abordagem textual-discursiva de Prince (1981)10. De um modo
geral, vê-se que essa escala de acessibilidade apresenta uma tripartição das categorias
discursivas, que, para Prince, se classificariam textualmente em entidades novas, inferíveis e
evocadas, enquanto que, para Chafe, revelariam o fluxo de consciência do falante/ouvinte por
meio dos estados de ativação (ativo, semiativo e inativo)
A hipótese básica desses funcionalistas, e de outros, como Givón (1990, por
exemplo), é que o fluxo informacional tem efeitos imediatos na estrutura
gramatical das manifestações discursivas: informações dadas são,
geralmente, codificadas de forma econômica na língua, enquanto que
informações novas tendem a se manifestar em sintagmas nominais plenos.
Defende Du Bois (1985) que existem padrões bem definidos para a
introdução de uma informação nova e para a condução de informação dada
no discurso. (CAVALCANTE; KOCH, 2007, p. 10)
10
Uma distinção mais detalhada entre as classificações apresentadas por Chafe (1984) e Prince (1981) poderá ser
vista no terceiro capítulo deste trabalho, no qual se aborda, especificamente, a relação entre hipertexto e fluxo
informacional.
38
O exemplo visto em (26) revela essa interferência do fluxo ou status informacional
na forma gramatical das manifestações discursivas. Por ser um exemplo extraído do Twitter,
deve-se considerar, inicialmente, o uso que aí se faz do retweet (RT), que vem como primeiro
foco de atenção do falante (escritor/leitor), o que faz com que processos referenciais
anafóricos assumam a feição de catafóricos. Sendo assim, formas novas ou inativas (O
Espaço Aberto) e semiativas (uma conversa), tenderiam a se manifestar por meio de
sintagmas nominais plenos, ao passo que formas ativas ou evocadas (ϕ, forma zero de ele)
geralmente são apresentadas de modo econômico na língua, sobretudo por meio das formas
pronominais.
(26)
MiriamLeitaoCom ϕ Repete hoje as 16h30. Quem não viu ϕ: uma conversa com
demógrafos s/ gente, população RT @CarolVolpi: O Espaço Aberto de ontem foi
ótimo! 9:54 AM Jan 8th from Seesmic
Uma relação também pode ser feita entre o fluxo informacional e o tipo de processo
referencial envolvido no discurso. De um modo geral, nota-se que apenas os elementos ativos
(em foco) e semiativos (periféricos) se vinculariam a âncoras co-textuais ou situacionais,
incluindo-se aí os casos de progressão referencial (anáfora). Assim, no que tange aos
processos referenciais, e não meramente às formas de expressão, Cavalcante e Koch (2007)
destacam que, “o que se considera como anáfora, que, a nosso ver, precisa ter sempre uma
âncora de qualquer espécie no cotexto, só poderia situar-se na consciência focal ou periférica”
(CAVALCANTE; KOCH, 2007, p. 12). Os referentes inativos (da memória de longo prazo),
por sua vez, segundo as autoras, não estariam ancorados em pistas co-textuais, pois
correspondem a elementos novos no discurso. “Os demais casos de referência não-anafórica,
isto é, o que temos chamado de introduções referenciais puras, mas especificamente as nãodêiticas,
estariam localizadas
na memória de longo termo
conceitos
inativos”.
(CAVALCANTE; KOCH, 2007, p. 12-13)
Assim, Cavalcante e Koch (2007, p. 13) sinalizam, no quadro a seguir, tal
correspondência entre o fluxo informacional e os tipos de expressão referencial no discurso.
39
Consciência
Foco
Memória
de longo termo
Periferia
Conteúdo ativo
(com âncora no cotexto
ou na situação)
Conteúdo semiativo
(com âncora no cotexto
ou na situação)
Dado
Conteúdo inativo
(sem âncora,
presente apenas
na memória)
Acessível
Anáfora
Novo
Introdução referencial
pura não-dêitica
QUADRO 2: Correspondência entre fluxo informacional e processos referenciais
(CAVALCANTE; KOCH, 2007, p. 13)
Em (27), observam-se esses tipos de expressões referenciais (com continuidade e sem
continuidade), anafóricas e não-anafóricas, associados ao fluxo informacional. Assim,
expressões como Radar, introduzida como elemento novo, situado na memória de longo
prazo do falante, são vistas como introduções referenciais, sem continuidade. Por outro lado,
categorias da consciência focal ou da memória periférica, associadas de algum modo ao
co-texto (por meio de uma âncora), com ou sem retomada, revelam processos referenciais
com continuidade, caso típico das anáforas. É o que ocorre com as expressões veículo (de
conteúdo semiativo, inferencial) e automóveis, motocicletas (de conteúdo já ativo), associados
por meio de uma relação de hiperonímia.
(27)
folhadesp Radar vai "dedar" veículo que não fez inspeção ambiental em SP: Do 1,9
milhão de automóveis e motocicletas matricu... http://bit.ly/7QynNB about 2 hours
ago from twitterfeed
40
Segundo Cavalcante e Koch (2007), essa correspondência entre funções referenciais e
fluxo informacional não deve ser vista, no entanto, como motivação principal das
classificações propostas por Chafe (1987) e Prince (1981), razão pela qual qualquer
correlação estabelecida em tal perspectiva seja, de certa forma, limitada.
[...] essas definições de acessível, novo e dado não se fundavam exatamente
em funções referenciais que um determinado conteúdo com um dado status
informacional poderia exercer no discurso; apenas diziam respeito à escolha
de diferentes formas de realização de sintagmas nominais a partir de uma
possível correspondência, a priori, entre status cognitivo e manifestação
formal de um referente. (CAVALCANTE; KOCH, 2007, p. 13)
Outra tripartição - esta já voltada especificamente para o processamento referencial no
discurso – é encontrada em Koch (2004, p. 62), que distingue três tipos de processo
envolvendo
o
referente:
a
construção/ativação,
a
reconstrução/reativação
e
a
desfocalização/desativação. Na construção/ativação, um elemento novo é introduzido e passa
a ser focalizado (cognitivamente) na rede conceitual do modelo de mundo textual, o que
corresponderia a um caso de introdução referencial. Na reconstrução/reativação, um
elemento já presente na memória discursiva é reintroduzido por meio de uma forma
referencial, fazendo que esse objeto do discurso continue saliente (em foco). Isso ocorre, em
geral, nos casos de progressão referencial, ou seja, de anáfora, com ou sem retomada (diretas
ou indiretas). Por fim, no processo de desfocalização/desativação, um novo elemento é
introduzido, passando a ocupar posição focal na memória discursiva, porém um elemento
retirado do foco permanece em stand by, podendo voltar à posição focal, a depender da
necessidade dos interlocutores no processamento discursivo. Em (28) observam-se essas três
situações de processamento do referente: construção/ativação (Joaquim Nabuco, que
corresponde à introdução de referente novo no discurso, passando a estar em foco na memória
discursiva), reconstrução/reativação (o abolicionista/certas figuras públicas, que reativam ou
reconstroem um referente já focalizado anteriormente) e desfocalização/desativação (livro
com correspondências do abolicionista, que, uma vez desativado, poderá entrar em foco
novamente no discurso, em função da necessidade interpretativa ao longo da notícia).
41
(28)
folhadesp Centenário da morte de Joaquim Nabuco terá livro com correspondências
do abolicionista: De certas figuras públicas... http://bit.ly/5TWjY9 6:54 AM Jan 9th
from twitterfeed
Vê-se, portanto, na tripartição apresentada por Koch (2004), uma classificação mais
voltada para o desenvolvimento da organização textual-discursiva, ou seja, “uma preocupação
com a evolução do estatuto cognitivo-referencial da entidade ao longo do desenvolvimento
discursivo e não com uma correlação engessada, estabelecia em abstrato, entre status
informacional e formas de manifestação linguística.” (CAVALCANTE; KOCH, 2007, p. 17)
É importante lembrar, ainda, que as tripartições aqui apresentadas, voltadas ou não
especificamente para o processamento referencial no discurso, estão distantes de uma
classificação consensual que possa dar conta dos diversos tipos de anáfora na sua correlação
com o processamento cognitivo dos referentes. Como lembram Cavalcante e Koch (1997, p.
19), “o que traz alguma ameaça a essas classificações é o estatuto das anáforas indiretas”, que
representariam, na verdade, um processo concomitante de ativação de um novo referente e
uma reativação de uma determinada âncora contextual.
Enfim, Cavalcante e Koch (2007, p. 37) assinalam que todas essas descrições
“guardam em comum o fato de proporem algum tipo escala de estatutos cognitivos a que se
relacionam tipos distintos de expressões referenciais”. As autoras também acreditam que
talvez a classificação deva se basear não propriamente na correlação com as formas
referenciais, mas na diferença entre processos de referenciação anafórica e dêitica, mais
especificamente. Além disso, concordam com Ariel (2001), quando assinalam a dificuldade de
se relacionar formas específicas de designação de referentes a uma origem cognitiva única, de
vez que “nenhuma classificação binomial ou trinomial poderia dar conta das amplas
possiblidades de variação contextual.” (CAVALCANTE; KOCH, 2007, p. 37)
42
2 GÊNEROS E TIPOLOGIAS TEXTUAIS: NOVAS PERSPECTIVAS NOS ESTUDOS
DE REFERENCIAÇÃO
Todo enunciado é um elo na cadeia da
comunicação discursiva. É a posição ativa do
falante nesse ou naquele campo do objeto e do
sentido.
(Mikhail Bakhtin)
Neste capítulo serão discutidas questões globais acerca da problemática dos gêneros
do discurso e tipos textuais, suas implicações teórico-metodológicas e possíveis conexões
entre as abordagens sociodiscursivas da linguagem. Para tanto, tomam-se como ponto de
partida a visão dialógica bakhtiniana (Bakhtin, 2003), a concepção de sequência textual de
Adam (1992, 1999), bem como a perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart
(1999). Além dessas principais fontes, alguns trabalhos de linguistas brasileiros também
sustentarão a investigação aqui proposta: Bonini (2002, 2005), Marcuschi (2001, 2008),
Machado (2005), Meurer (2002), Rojo (2005), Rodrigues (2005), Paredes Silva (2010),
Faraco (2001), Bezerra (2007), Lopes e Sousa (2007), entre outros.
A organização da discussão se dará em quatro partes principais: (1) debates teóricos
sobre gêneros; (2) Bakhtin e os gêneros do discurso; (3) A noção de sequência textual ou tipo
de texto de Jean Michael Adam; (4) A proposta do interacionismo sociodiscursivo de
Bronckart. Pretende-se, com esse panorama, não propriamente esmiuçar o tema em toda a sua
trajetória, mas sim chegar a alguns posicionamentos acerca da utilidade das abordagens
sociodiscursivas da linguagem nos estudos de gêneros e tipos textuais, considerando-se,
também, a sua aplicabilidade teórica ao ensino de línguas.
2.1 DEBATES TEÓRICOS SOBRE GÊNEROS: CONCEITOS GERAIS
O debate sobre gêneros, como lembra Marcuschi (2008, p. 147) “não é novo, mas está
na moda”. Não é recente porque remonta à Antiguidade, com a poética de Platão e a retórica
de Aristóteles, porém recebe uma nova roupagem a partir das investigações linguísticas
realizadas na segunda metade do século XX. Hoje não só a expressão “gênero” vem sendo
usada de maneira cada vez mais frequente entre os linguistas teóricos como tem sido alvo de
um número crescente de estudiosos das mais diversas áreas de atuação: teóricos da literatura,
43
retóricos, sociólogos, cientistas da cognição, tradutores, linguistas da computação, analistas
do discurso, professores de língua, etc.
Rojo (2005, p. 184) destaca que, no Brasil dos últimos anos, a partir de 1995,
especialmente no campo da linguística aplicada ao ensino de línguas (maternas/estrangeiras),
grande atenção tem sido dada às teorias de gêneros (de textos/ de discursos). Ela ressalta que,
pelo menos em parte, isso se deve à menção explícita aos gêneros encontrada nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), reconhecendo-se a sua importância nas atividades de leitura e
produção textual11.
De qualquer modo, seja no país, seja em âmbito internacional, tal interesse pelo estudo
dos gêneros de texto/discurso tem provocado uma verdadeira profusão de pesquisas, de
trabalhos que podem ser divididos teoricamente, segundo Rojo (2005, p. 185), em dois
grandes grupos: teoria dos gêneros do discurso (tendo como principal referência Bakhtin e
seu Círculo) e teoria dos gêneros de texto (encontrada especialmente nos trabalhos de
Bronckart e Adam).
Na realidade, o estudo dos gêneros é hoje uma fértil área interdisciplinar,
com atenção especial para a linguagem em funcionamento e para as
atividades culturais e sociais. Desde que não concebamos os gêneros como
modelos estanques nem como estruturas rígidas, mas como formas culturais
e cognitivas de ação social (Miller, 1984) corporificadas na linguagem,
somos levados a ver os gêneros como entidades dinâmicas, cujos limites e
demarcações se tornam fluidos. (MARCUSCHI, 2008, p. 151)
Marcuschi (2008, p. 152) faz um apanhado geral, mas não definitivo ou estrito, das
perspectivas teóricas vigentes no Brasil e das que estão em curso internacionalmente. No
Brasil, localiza as seguintes tendências: (1) a linha bakhtiniana (Bakhtin, Schneuwly, Dolz);
(2) a linha swalesiana (Swales); (3) a linha sistêmico-funcional (Halliday); (4) uma linha de
perspectiva mais geral, com influências de Bakhtin, Adam, Bronckart, Bazerman, Miller,
entre outros. No exterior, o autor situa um número ainda maior de bases teóricas: (1)
perspectiva sócio-histórica e dialógica (Bakhtin); (2) perspectiva comunicativa (Steger,
Gülich, Bergmann, Berkenkotter); (3) perspectiva sistêmico-funcional (Halliday); (4)
perspectiva sociorretórica de caráter etnográfico (Swales, Bathia); perspectiva interacionista e
11
Marcuschi (2008, p. 207) afirma que, no que tange aos PCNs, a sugestão para atividades de leitura e produção
textual com base nos gêneros ainda é muito vaga, embora aí se encontre pela primeira vez “uma posição
determinada e determinante para esse trabalho”.
44
sociodiscursiva de caráter psicolingüístico (Bronckart, Dolz, Schneuwly) (5) perspectiva da
análise crítica (Flairclough, Kress); (6) perspectiva sociorretórica/sócio-histórica e cultural
(Miller, Bazerman, Freedman).
É preciso frisar que, embora os trabalhos ligados a essas variadas bases teóricas
adotassem vias metodológicas diversas para o tratamento dos gêneros, todos eles terminam
por fazer, de um modo ou de outro, “descrições de gêneros, de enunciados ou de textos
pertencentes ao gênero.” (ROJO, 2005, p. 185-186)
Por outro lado, partindo da bipartição apresentada por Rojo (2005) para os estudos de
gênero, vê-se que características e papéis bem distintos podem ser atribuídos às teorias que
analisam os “gêneros do discurso” e àquelas que investigam os “gêneros de texto”. Uma
questão principal é levantada pela autora: será que quando enunciamos indiferentemente as
designações “gêneros do discurso (discursivos)” ou “gêneros textuais (de texto)” estamos
significando o mesmo objeto teórico ou objetos ao menos semelhantes? A resposta parece
apontar, nesse caso, para ângulos distintos, porém complementares, de um mesmo objeto,
ainda que, de um modo ou de outro, ambos se apliquem às unidades concretas de realização
da língua.
A teoria de gêneros de texto, segundo a autora, recorre a um plano descritivo
intermediário – equivalente à estrutura ou forma composicional - que trabalha com noções
herdadas da Linguística Textual (tipos, protótipos, sequências etc.) e que integram a
composição dos textos do gênero. A teoria dos gêneros discursivos, por sua vez, pauta-se em
aspectos da materialidade linguística determinados pelos parâmetros da situação de
enunciação sem a pretensão de esgotar a descrição dos aspectos linguísticos ou textuais, mas
apenas ressaltando que as “marcas” produzem significações e temas relevantes no discurso;
baseia-se em conceitos variados de base enunciativa e considera o gênero como “universal
completo” historicamente determinado.
45
2.1.1 Algumas definições importantes
No estudo de gêneros, alguns conceitos teóricos são fundamentais e, caso não se
deseje cair numa verdadeira “panaceia terminológica”, é preciso que eles estejam claramente
definidos a priori, de acordo a perspectiva a ser adotada. Diante da grande quantidade de
propostas teóricas, faz-se necessária, por exemplo, a distinção entre “texto” e “discurso”, uma
vez que, a depender da abordagem, esses termos podem ser usados como equivalentes. Será
considerada, aqui, a separação apresentada por Marcuschi (2008, p. 24).
Deve-se ter o cuidado de não confundir texto e discurso. [....] pode-se dizer
que texto é uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada
em algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto produz ao se
manifestar em alguma instância discursiva. Assim, o discurso se realiza nos
textos. (MASCUSCHI, 2008, p. 24)
É relevante neste estudo, ainda, apresentar as definições de “gênero textual”, “tipo de
texto” e “domínio discursivo”, expressões também explicadas segundo Marcuschi (2008,
p. 154). Ele distingue teoricamente as três noções, embora saliente que elas estão
forçosamente imbricadas, frisando que a distinção entre gêneros e tipos textuais não forma
uma visão dicotômica, pois eles são dois aspectos constitutivos do funcionamento da língua
em situações comunicativas da vida diária. O autor afirma que “toda vez que desejamos
produzir alguma ação linguística em situação real, recorremos a algum gênero textual. Eles
são parte integrante da sociedade e não apenas elementos que se sobrepõem a ela.”
(MARCUSCHI, 2008, p. 156). Assim, as definições de gênero textual, tipo textual e domínio
discursivo são muito mais operacionais do que formais e seguem a posição bakhtiniana.
Tipo textual designa uma espécie de construção teórica (em geral uma
seqüência subjacente aos textos) definida pela natureza lingüística de sua
composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas,
estilo). [...] gênero textual refere aos textos materializados em situações
comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que
encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões
sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais,
objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de
forças históricas, sociais, institucionais e técnicas [...]
Domínio discursivo constitui muito mais uma “esfera da atividade humana”,
no sentido bakhtiniano do termo do que um princípio de classificação de
textos e indica instâncias discursivas.[...] Não abrange um gênero em
particular, mas dá origem a vários deles, já que os gêneros são
institucionalmente marcados. (MARCUSCHI, 2008, p. 154-155)
46
Vê-se, então, que para a noção de tipo textual predomina a identificação de sequências
linguísticas como norteadoras; para a noção de gênero textual, destacam-se os critérios de
padrões comunicativos, ações/propósitos e inserção sócio-histórica. No caso dos domínios
discursivos, Marcuschi (2008, p. 158) afirma que não se trata propriamente de um “texto” e
sim de formações históricas e sociais que originam os discursos em determinadas esferas de
atuação. O autor frisa, ainda, que os domínios ainda não estão bem definidos e oferecem
alguma resistência, mas que, seguramente, sua definição deveria ser na base de critérios
etnográficos, antropológicos, sociológicos e históricos.
No grupo reduzido dos tipos de texto Marcuschi (2008, p. 154) inclui a narração, a
argumentação, a descrição, a exposição e a injunção, ressaltando que o conjunto de
categorias para designar os referidos tipos é limitado e sem tendência a aumentar 12. O quadro
dos gêneros textuais, por sua vez, é ilimitado e corresponde, segundo ele, a uma listagem
aberta, de vez que nela se incluem realizações verbais que, embora estabilizadas, podem ser
criadas e dinamicamente modificadas por fatores sociais e históricos. Nessa lista aberta ele
apresenta como exemplos de gênero textual o telegrama, o bilhete, o sermão, o romance, a
carta comercial, a carta pessoal, a notícia jornalística, o horóscopo, o e-mail, a aula virtual
etc. Por fim, entre os exemplos de domínios discursivos, destaca o discurso jornalístico, o
discurso jurídico, o discurso religioso, etc.
2.2 BAKTHIN E OS GÊNEROS DO DISCURSO
Quando se trata do estudo de gêneros, uma das principais referências para os autores
das últimas gerações é, certamente, a obra do linguista russo Mikhail Bakhtin (1895-1975).
Pelo fato de seus trabalhos fornecerem subsídios teóricos de ordem macroanalítica e
categorias mais amplas, esse autor representa, como lembra Marcuschi (2008, p. 152), “uma
espécie de bom senso teórico em relação à concepção de linguagem”. E esse “bom senso”
tanto é verdadeiro que a maior parte de seus escritos sobre linguagem e filosofia da linguagem
influenciou todo um grupo de intelectuais com os quais trabalhou, entre 1919 e 1974, dando
12
Como será visto a seguir, a classificação proposta por Adam (1992), a ser adotada neste trabalho, apresenta
também o tipo (ou sequência) dialogal.
47
origem ao chamado Círculo de Bakhtin13. Rodrigues (2005, p. 152) ressalta que os rumos
políticos na antiga União Soviética e no ocidente na década de 1920 fizeram com que os
membros do Círculo e suas idéias permanecessem no obscurantismo até meados de 1960. A
autora afirma, a esse respeito, que a publicação completa dos textos do Círculo, com reduções
às vezes problemáticas, levou mais de 20 anos e foi feita sem obedecer propriamente a uma
ordem cronológica.
Também há o debate sobre a autoria de alguns textos do Círculo, sendo alguns deles
atribuídos a Bakhtin, mas de fato publicados por Voloshinov e Medvedev. À parte a
publicação tardia e os problemas de autoria do Círculo, Faraco (2001, p. 68) defende a
importância de Bakhtin não propriamente com precursor, mas como “problematizador dos
caminhos trilhados” no ocidente acerca dos estudos de Linguística Aplicada.
Rodrigues (2008, p. 154) frisa, contudo, que estudar os gêneros do discurso na
perspectiva dialógica requer duas considerações prévias: 1) a flutuação terminológica na obra
do Círculo também se reflete no tratamento dos gêneros; 2) a definição de gênero só pode ser
apreendida a partir de outras noções nucleares, devendo ser relacionada a conceitos básicos da
teoria, tais como interação verbal, comunicação discursiva, língua, discurso, texto, enunciado
e atividade humana.
Na perspectiva bakhtiniana, é o enunciado que representa a unidade real e concreta da
comunicação discursiva e defini-lo como tal pressupõe adotar a visão dialógica e ideológica
da língua.
E justamente com base nessa premissa é que Bakhtin lança suas críticas e
questionamentos às noções de língua vigentes. Em oposição às concepções formais de sua
época, ele ressalta que a verdadeira substância da língua não é constituída por um “sistema
abstrato de formas linguísticas” (objetivismo abstrato), nem pela enunciação monológica
isolada na expressão de uma consciência individual (no subjetivismo idealista), nem pelo ato
psicofisiológico da sua produção (atividade mental), mas sim “pelo fenômeno social da
interação verbal, realizada pela enunciação (enunciado) ou pelas enunciações (enunciados)”
(BAKHTIN, VOLOSHINOV, 1989, p. 123, apud RODRIGUES, 2005, p. 155).
Outro aspecto que merece ser ressaltado é o trabalho interdisciplinar envolvido no
estudo da linguagem a partir de uma visão dialógica. “Não se deve pensar que essa realidade
sumamente multifacetada [...] possa ser objeto de apenas uma ciência – a Linguística – e ser
13
“Círculo de Bakhtin é a denominação atribuída pelos pesquisadores ao grupo de intelectuais russos que se
reunia regularmente no período de 1919 a 1974, dentre os quais fizeram parte Bakhtin, Voloshinov e
Medvedev”. (RODRIGUES, 2005, p. 152)
48
interpretada apenas por métodos linguísticos.” (BAKHTIN, 2003, p. 124). A análise dos
“gêneros”, nessa concepção, perpassa naturalmente a sua história, a cultura, as relações
sociais de poder e todo o conjunto de elementos envolvidos na enunciação.
Desse modo, para o estudo da natureza dialógica do enunciado, dos gêneros e de
outros elementos que ultrapassam os limites do objeto da linguística, Bakhtin propõe a
constituição de um novo grupo de disciplinas o qual denomina metalinguística. Para ele, “a
linguística e a metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e
multifacético - o discurso -, mas o estudam sob diferentes aspectos e diferentes ângulos de
visão. Devem completar-se mutuamente, mas não fundir-se.” (BAKHTIN, 1997, p. 181).
Pensa-se, desse modo, na conexão entre língua-sistema e língua-discurso para uma
abordagem interdisciplinar da linguagem, incluindo-se aí a problemática dos gêneros do
discurso.
Assim, a análise dos gêneros engloba uma análise do texto e do discurso e
uma descrição da língua e visão da sociedade, e ainda tenta responder a
questões de natureza sociocultural no uso da língua de maneira geral. O trato
dos gêneros diz respeito ao trato da língua em seu cotidiano nas mais
diversas formas. E se adotarmos a posição de Carolyn Miller (1984),
podemos dizer que os gêneros são uma forma de ação social. Eles são um
artefato cultural importante como parte integrante de nossa sociedade.
(MARCUSCHI, 2008, p. 149)
2.2.1 Gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciado
Bakhtin, em Os gêneros do discurso (2003), defende que todos os diversos campos da
atividade humana estão ligados ao uso da linguagem, pois, em sua perspectiva dialógica, “o
emprego da língua efetiva-se em forma de enunciados (orais ou escritos) concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana” (BAKHTIN,
2003, p. 261)
Na abordagem bakhtiniana, esses três itens – o conteúdo temático, o estilo, a
construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são
igualmente determinados pela especificidade de um dado campo da comunicação14. Cada
campo da comunicação elabora, assim, seus tipos relativamente estáveis de enunciado, os
quais o autor denomina gêneros do discurso.
14
O conceito bakhtiniano de campo de comunicação corresponde hoje à noção de domínio, vista em Marcuschi
(2008)
49
No processo sócio-histórico de estabilização de enunciados, tem-se um verdadeiro
leque de possibilidades para criação e, simultaneamente, entrelaçamento de vários gêneros
discursivos. Nesse contexto, o referido autor considera a heterogeneidade dos gêneros do
discurso como aspecto de grande relevância, já que ela tem a ver com as variadas
manifestações da atividade humana de linguagem e com a complexidade de cada campo dessa
atividade.
Segundo Bakhtin (2003, p. 262-263), desde a Antiguidade, a questão dos gêneros
discursivos nunca tinha sido verdadeiramente colocada. “Estudavam-se – mais que tudo – os
gêneros literários [...] quase não se levava em conta a questão linguística geral do enunciado e
dos seus tipos”. Em função disso, grande parte da heterogeneidade discursiva e da
dinamicidade dos gêneros terminou sendo ignorada ao longo dos anos.
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são
inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em
cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso,
que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo. (BAKHTIN, 2003, p. 262)
Sendo assim, tendo em vista tal reflexão bakhtiniana, não se deve, de modo algum,
minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros discursivos e a dificuldade daí advinda de
definir a natureza geral do enunciado, já que o mesmo abrange, simultaneamente, conforme já
foi assinalado, conteúdo temático, estilo e estrutura composicional, estando esses três
elementos interligados da atividade real de linguagem.
Na proposta teórica do referido linguista, é essencial, ainda, o estabelecimento da
distinção entre gêneros primários (simples) e secundários (complexos). Ele ressalta que os
primários se formam em condições de comunicação discursiva imediata, ao passo que os
secundários surgem nas condições de convívio social mais complexo e relativamente muito
desenvolvido e organizado – artístico, científico, sociopolítico etc. No primeiro tipo pode-se
incluir, por exemplo, o diálogo cotidiano; no segundo tipo podem-se destacar os romances, as
pesquisas científicas, entre outros gêneros oriundos de situações sociais mais complexas.
Como adverte Bakhtin (2003), a orientação unilateral centrada nos gêneros primários redunda
fatalmente na vulgarização de todo o problema, tal como ocorreu no behaviorismo. Em
verdade, a própria relação mútua dos gêneros primários e secundários e o processo de
formação histórica dos últimos “lançam luz sobre a natureza do enunciado (e, antes de tudo,
50
sobre o complexo problema da relação de reciprocidade entre linguagem e ideologia)”.
(BAKHTIN, 2003, p. 263)
Diante do que foi até aqui exposto, vê-se que, numa análise bakhtiniana, em qualquer
corrente especial de estudo faz-se necessária uma noção precisa da natureza do enunciado em
geral e das particularidades dos diversos tipos de enunciados (primários e secundários), i.e.,
dos diversos gêneros do discurso. Daí vem o merecido destaque que hoje é dado à
problemática dos gêneros.
Entender a linguagem de tal maneira é, sobretudo, aceitar que a língua passa a integrar
a vida através de enunciados concretos (que a realizam) e que é - igualmente - através de
enunciados concretos que a vida entra na língua. “O enunciado é um núcleo problemático de
importância excepcional”, afirma Bakhtin (2003, p. 265)
Defende-se, assim, que os enunciados e seus tipos estáveis, i.e., os gêneros
discursivos, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da
linguagem, pois, conforme lembra Bakhtin (2003, p. 268), “nenhum fenômeno novo
(fonético, léxico, gramatical) pode integrar o sistema sem ter percorrido um complexo e longo
caminho de experimentação e elaboração de gêneros e estilos”. Isso faz, inclusive, com que o
tipo de análise que aí é proposto beneficie, em maior ou menor grau, diversos campos da
linguística, tal como ocorre na estilística – campo especialmente citado pelo autor,
Por fim, o estudo do enunciado como unidade real de comunicação discursiva,
permitirá, sob a ótica bakhtiniana, compreender de modo mais preciso, também, a natureza
das unidades da língua enquanto sistema (as palavras e as orações).
2.2.2 O enunciado como unidade de comunicação discursiva
Assumir o pressuposto de que o enunciado corresponde à unidade principal de
comunicação discursiva envolve, sem dúvida, uma avaliação precisa dos elementos relevantes
e dos aspectos essenciais que compõem a atividade de linguagem. Bakhtin frisa, a esse
respeito, que a Linguística do séc. XIX – nela incluindo o pensamento de Wilhelm von
Humboldt - sem negar a função comunicativa da língua, “procurou colocá-la em segundo
plano, como algo secundário; promovia-se ao primeiro plano a função da formação do
pensamento, independente da comunicação”. (BAKHTIN, 2003, p. 270)
51
Essa posição de análise - priorizando-se a formação do pensamento - trouxe, de certo
modo, algumas consequências restritivas ao campo epistemológico da linguagem. Desse
modo, o autor critica a visão limitada da função comunicativa da linguagem e a separação
funcional entre falante (ativo) e ouvinte (passivo). Para ele, todo falante é ao mesmo tempo
um ouvinte e vice-versa, uma vez que a atividade de linguagem mediada pelos enunciados
individuais pressupõe, direta ou indiretamente, a compreensão mútua entre interlocutores.
Portanto, em termos bakhtinianos, “toda compreensão plena, real, é ativamente
responsiva; não é senão uma fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma com
que ela se dê).” (BAKHTIN, 2003, p. 272). Além disso, um aspecto que sempre se destaca
quando se trata da análise de unidades concretas da língua é a interminável teia de conexão
entre os discursos, ou, nas palavras de Bakhtin (2003, p. 272), entre os “enunciados
individuais”, já que “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de
outros enunciados”.
Enfatiza-se, também, que o mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no
processo da comunicação discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo
manifestam-se no uso impreciso e ambíguo dos termos como “fala” e “fluxo da fala”, que são
associados indevidamente a uma divisão das unidades linguísticas. Para Bakthin (2003,
p. 274), “a indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico central no
pensamento linguístico são o resultado do desconhecimento da real unidade da comunicação
discursiva: o enunciado”. E, como ele ressalta, os limites de cada enunciado concreto como
unidade da comunicação discursiva são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, ou
seja, pela alternância dos falantes, e não propriamente pela divisão das unidades linguísticas.
Pelo que se pode notar, a conceituação do enunciado de Bakhtin difere daquelas
apresentadas pela Linguística de Texto e pela Semântica Argumentativa. Na sua abordagem, o
enunciado, enquanto uma totalidade discursiva, não pode ser visto como unidade do nível
último e superior do sistema da língua, como às vezes se dá em algumas definições
apresentadas pelas teorias do texto. Ele forma, ao contrário, parte de um mundo totalmente
diferente, o das relações dialógicas, que não podem ser equiparadas às relações linguísticas
dos elementos do sistema da língua.
52
Bakhtin considera, portanto, o enunciado como a unidade de comunicação discursiva
que “transcende” os limites do próprio texto. Nesse sentido, insere, ainda, a distinção entre
enunciado e texto, defendendo que o texto só pode ser visto como enunciado se partirmos de
seu caráter ideológico e dialógico.
No que tange à Semântica Argumentativa, embora Bakhtin e Ducrot estabeleçam a
distinção entre enunciado e oração e enunciado e frase, respectivamente, vê-se, a partir das
suas concepções de língua e discurso, que as noções de enunciado desses dois autores são
distintas. Como afirma Rodrigues (2005, p. 162), “além das diferenças de fundo teórico, o
enunciado bakhtiniano não é a frase ou a oração enunciada, mas, se quisermos manter uma
analogia, o texto enunciado (texto + situação social de interação = enunciado).
Observa-se, desse modo, o diálogo que Bakhtin trava com outras vertentes teóricas,
uma vez que algumas lacunas terminológicas e conceituais da teoria linguística da época
terminaram por levar o autor a considerar, também, o modo como o enunciado é concebido e
dimensionado pelas demais perspectivas científicas. “Estamos interessados primordialmente
nas formas concretas dos textos e nas condições concretas da vida dos textos na sua interrelação e interação” (BAKHTIN, 2003, p. 319). A seguir, tem-se o quadro apresentado por
Rodrigues (2001, p. 63) para explicitar as relações entre texto e enunciado, língua e discurso.
Quadro 3: Relação entre texto e enunciado, língua e discurso (RODRIGUES, 2001, P. 63)
Vê-se, no quadro acima apresentado, que o texto pode ser concebido a partir de dois
planos (o pólo da língua e o pólo do discurso), estando o enunciado bakhtiniano localizado no
plano no discurso, uma vez que inclui a situação social e os interloctures envolvidos na
comunicação. É esta a posição, a do plano do discurso, que será aqui assumida para a análise
53
dos enunciados que compõem o objeto do presente estudo. Reconhece-se, afinal, que não se
podem analisar os enunciados relativamente estáveis sem se levar em conta o contexto
sócio-histórico em que se realizam e a participação dos interlocutores na atividade linguística.
Outra característica do enunciado mencionada por Bakhtin é o fato de que ele não pode
ser repetido, somente citado, já que, a cada realização, constitui-se como um novo
acontecimento. Baseado na inter-relação discursiva, ele não pode ser o primeiro nem o último,
o que o torna parte de uma teia social. Em função disso, o autor afirma que não se pode
entender o enunciado sem estar ligado à situação social que o sustenta, pois ela se integra ao
mesmo.
O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado
momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios
dialógicos tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto
de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social.
(BAKHTIN, 1993b, p. 86, apud RODRIGUES, 2005, p. 160)
Bakhtin apresenta, também, as três características principais do enunciado como
unidade de comunicação discursiva: a alternância dos sujeitos do discurso, a expressividade,
a conclusividade. O primeiro aspecto diz respeito ao fato de que cada enunciado, como
unidade discursiva, possui um início e um fim absolutos, que o delimitam dos outros
enunciados, a partir da alternância dos sujeitos. A segunda característica – a expressividade –
corresponde à instância da expressão da posição valorativa do autor do enunciado frente ao
objeto do seu discurso e aos outros participantes da comunicação discursiva e seus enunciados
(já-ditos, pré-figurados). A conclusividade, por sua vez, representa a manifestação da
alternância dos sujeitos vista do interior do enunciado, a partir da depreensão do dixi
conclusivo do falante.
Por fim, é preciso mencionar que as características acima destacadas não constituem
traços da oração, no sentido bakhtiniano. A oração “possui natureza, conclusividade e
unidades gramaticais, mas não possui plenitude de sentido, nem capacidade de determinar
diretamente a postura da resposta” (RODRIGUES, 2005, p. 162). Em outras palavras, na ação
discursiva, ela se vincula à dimensão não-verbal e aos outros enunciados somente através do
enunciado em sua totalidade.
54
2.2.3 Dos enunciados aos gêneros
Com base na análise e definição dos enunciados, é possível, na visão de Bakhtin
(2003, p. 262), se alcançar os seus tipos relativamente estáveis, ou seja, os chamados gêneros
do discurso. E, como se disse anteriormente, as pesquisas linguísticas em torno do tema
surgiram em um cenário de profusão de vertentes teóricas que hoje tentam suprir as lacunas
de um passado de abstrações do objeto linguístico. A limitação dos estudos dos gêneros pode
ter se originado, segundo Bakhtin, na sua diversidade e heterogeneidade, resultante da
natureza ideológica das diferentes esferas, que poderia fazer crer que essas características
diversas e heterogêneas dos gêneros converteriam os seus traços comuns em algo “abstrato e
vazio de significado”.
Tentando sanar essas dificuldades, Bakhtin (2003, p. 268) investiga os gêneros a partir
da sua historicidade e lhes atribui a mesma natureza dos enunciados (natureza social,
discursiva e dialógica), concebendo-os como tipos históricos15. Por outro lado, ele afirma que
os gêneros são “impessoais”, pois não se vinculam à realização única dos sujeitos, tal como
ocorre nos enunciados, individuais e irrepetíveis. Também não são entidades abstratas; são
históricos e concretos. “A linguagem de um gênero é histórica e concreta” (BAKHTIN, 1997,
p. 142, apud RODRIGUES, p. 164)
Como se concebem, então, os gêneros? Segundo o autor, não é propriamente pela
forma, mas sim pelas esferas da atividade e comunicação humanas (pelas situações de
interação). Tomem-se como exemplos o relato policial e o relato cotidiano, que, apesar de
terem forma parecida, pertencem a esferas sociais distintas, por isso não correspondem a um
mesmo gênero. Isso prova que os gêneros se constituem e se estabelecem historicamente a
partir de novas situações de interação verbal da vida social que vão se estabilizando no
interior dessas esferas.
Bakhtin (1993, p. 362) afirma, ainda, que cada gênero tem um campo predominante de
existência (seu cronotopos), no qual é insubstituível e surge sem necessariamente suprimir
outros gêneros pré-existentes. Na esfera dos gêneros jornalísticos digitais, por exemplo, o
microblog (Twitter), embora atualmente predominante nos jornais eletrônicos, surgiu sem
excluir o blog dos colunistas. Por outro lado, um novo gênero tem, também, o potencial de
15
A designação tipos históricos é usada aqui para se referir à classificação científica de um conjunto de
elementos a partir de um determinado critério, não podendo ser associada, assim, ao conceito de tipo
enquanto sequência textual, como será visto a seguir, na abordagem de Jean-Michel Adam.
55
aumentar ou diminuir o número de gêneros de determinada esfera. Afinal um gênero recente
pode influenciar o abandono de práticas discursivas ligadas a um gênero antigo, de modo que
“o seu desaparecimento pode ocorrer pela ausência de condições sociocomunicativas que o
engendraram.” (RODRIGUES, 2005, p. 166). Um exemplo desse fenômeno estaria no
enfraquecimento, nas últimas décadas, do gênero diário pessoal em função da predominância
dos ciberdiários ou blogs, hoje tão comum entre os adolescentes nas suas práticas de escrita
virtual.
Outro aspecto da noção de gênero bakhtiniana é a sua atualização e movimento
contínuos, apesar de representarem uma “estabilização” do enunciado. Assumindo tal
perspectiva, autores como Marcuschi (2008, p. 162) reconhecem que, uma vez constituídos
como formas estáveis, dialeticamente os gêneros exercem certo efeito “normativo” (uma
coerção social) sobre as interações verbais. Afinal, para o falante, eles funcionam como
modelos ou “índices sociais” na construção do enunciado.
Desde que nos constituímos como seres sociais, nos achamos envolvidos
numa máquina sociodiscursiva e os gêneros são um dos instrumentos mais
poderosos dessa máquina, sendo que o domínio dos mesmos depende em
grande parte de nossa inserção social e de nosso poder social.
(MARCUSCHI, 2008, p. 162)
Desse modo, pode-se dizer, segundo Marcuschi (2008, p. 161), que os gêneros textuais
são atividades discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos mais variados tipos de
controle social e até mesmo ao exercício de poder. Nesse sentido, correspondem a uma forma
de inserção, ação e poder social na linguagem cotidiana. E, como lembra Bakhtin (2003), toda
e qualquer atividade discursiva se dá em algum gênero que não é decidido ad hoc. Por outro
lado, Marcuschi esclarece, também, que o controle social dos gêneros é incontornável, mas
não determinista, já que eles, por si só, não perpetuam tais relações; apenas as manifestam em
certas condições de sua realização. Em outras palavras, o falante assume certa liberdade
individual perante os gêneros, porém está condicionado à estabilização das formas de
interação social e se encontra, assim, plenamente envolvido na máquina sociodiscursiva.
56
2.3 A NOÇÃO DE SEQUÊNCIA OU TIPO TEXTUAL SEGUNDO JEAN-MICHEL ADAM
Um dos aspectos fundamentais no debate aqui proposto é a noção de sequência ou tipo
textual, postulada por Jean Michel Adam em seus estudos mais recentes. Conforme lembra
Bonini (2005, p. 209), a ideia de uma sequência textual começa a ser definida em vários
artigos publicados pelo autor no decorrer da década de 1980 (Adam, 1987), sendo
aprofundada em seus trabalhos posteriores (Adam, 1990, 1992, 1999)
No que tange às bases teóricas da noção de sequência textual, Adam procurou unir as
teorias formais às teorias enunciativas. Sofreu influência dos formalistas russos, dos trabalhos
sobre gramática narrativa (van Dijk) e, ainda, da Análise do Discurso de linha francesa
(Pêcheux e, depois, Maingueneau). Nesse arcabouço teórico, Bonini (2005, p. 209) aponta
que, de um modo geral, seis conceitos básicos que serviram para delimitar a noção de
sequência, citando alguns autores mais representativos: gênero e enunciado (BAKHTIN,
1953); base e tipo de texto (WERLICH, 1976); protótipo (ROSH, 1978); superestrutura
(VAN DIJK, 1978).
Em termos gerais, Adam aproxima os quadros teóricos da Linguística Textual (LT) e
da Análise do Discurso (AD), concebendo o texto como um objeto circundado e determinado
pelo discurso. Partindo da enunciação ou das práticas discursivas (onde localiza o gênero, o
discurso e o interdiscurso), delimita o campo da LT como responsável pelo estudo do modo
como os mecanismos de textualização se constituem e caracterizam. Em tal contexto, a
sequência textual, que corresponde a um desses mecanismos, é vista por Adam com um
conjunto de proposições psicológicas que se estabilizaram como recurso composicional dos
vários gêneros. Ele destaca que o fato de a sequência ser linguisticamente estável é o que
possibilita sua determinação, embora ela também ocorra de modo heterogêneo nas realizações
textuais.
É importante ressaltar, ainda, que conceito de sequência já foi incorporado aos Padrões
Curriculares Nacionais (PCNs) dos níveis fundamental e médio, sendo considerado valioso
ponto de reflexão no quadro de várias teorias de gênero. Serve, portanto, como peça-chave na
aplicação ao ensino de línguas da distinção teórica entre gênero e tipo textual.
57
2.3.1 O que é mesmo uma sequência textual?
Adam (1992, p. 28) define a sequência textual a partir de dois ângulos: (a) uma rede
relacional hierárquica (grandeza decomponível em partes ligadas entre si e ligadas ao todo
que elas constituem); (b) uma entidade relativamente autônoma, dotada de uma organização
interna que lhe é própria e, portanto, em relação de dependência/independência com o
conjunto mais vasto do qual faz parte.
Assim, se por um lado a sequência corresponde a um conjunto hierarquicamente
organizado de macroproposições, por outro as mesmas “são atualizadas no texto mediante as
exigências pragmáticas de enunciado” (BONINI, 2005, p. 218). Como tais atualizações são
correspondentes em parte ao gênero, uma sequência prototípica se mostra, na superfície
textual, geralmente de modo parcial em relação aos seus traços típicos. É o que ocorre, por
exemplo, em um artigo de opinião que apresenta uma sequência argumentativa como tipo
prioritário, porém acompanhada por textos característicos de outras sequências tais como a
narração e a descrição.
Bonini (2005, p. 218) ressalta, ainda, que a sequência definida pelo referido autor,
embora concebida como mecanismo cognitivo, é determinada pelas condições externas, no
discurso. Em Adam, “ela não se estabiliza (ganha status formal) pela imposição de
propriedades intrínsecas da mente, como em Werlich, mas pela sua constante retomada em
práticas discursivas” (BONINI, 2005, p. 218). O autor frisa que a proposição está em relação
pragmática de dependência com a sequência textual da mesma forma que a sequência textual
está em relação de dependência com o gênero. É nesse sentido que Adam concebe uma
pragmática textual, pois as marcas formais (gramática textual) interagem com uma
exterioridade (condições de enunciação). Esse conjunto de encaixes e relações se daria,
portanto, da seguinte forma: (# Texto # (Seqüência (Macroproposições (Proposições)))).
No trabalho de 1992, Adam concebe os gêneros como componentes da interação social
e as sequências, como esquemas de interação dentro de um gênero. Sendo organizações
linguístico-formais, as sequências se realizam nos gêneros mediante pressões de ordem
discursivo-genérica (ocorrendo, então, uma configuração pragmática).
Em tal perspectiva, a realização textual passa a ser produto da configuração
pragmática e da sucessão de proposições. A configuração pragmática do texto tem a ver com
o alvo ilocucional, a localização enunciativa e a coesão semântica (mundos), ao passo que a
58
sucessão de proposições diz respeito à conectividade e à sequencialidade. Em relação à
sequencialidade, é importante lembrar que, em tal esquema, “as proposições não são
propriamente representações linguísticas, mas unidades de conteúdo que, em forma de teia,
mapeiam as relações significativas postas em um texto”. (BONINI, 2005, p. 217)
2.3.2 Classificação das sequências textuais
Adam (1987, apud BONINI, 2005, p. 217), de início, definiu sete tipos de sequência
(narrativa, descritiva, argumentativa, expositivo-explicativa, injutivo-instrucional, dialogalconversacional e poético-autotélica). Posteriormente (ADAM, 1992), reduziu o número para
cinco (narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal). Excluiu a injutiva, por
considerá-la parte da descrição, e a poética, por conceber o texto poético como resultado de
ajustes de superfície na base do texto, mas não exatamente como uma estrutura hierárquica e
ordenada de proposições. Bonini (2005, p. 218) lembra, ainda, que a diferença fundamental
entre as sequências e os gêneros é a sua menor vulnerabilidade, ou seja, uma maior
estabilização. Em função desse aspecto, elas podem ser enquadradas em um número bastante
reduzido de composições (ou tipologias), que servirão, nesta pesquisa, como ponto de partida
para a análise da estrutura composicional dos gêneros.
2.3.2.1 Sequência narrativa
A narração é apresentada por Adam (1992) com base em algumas características
específicas, a saber: (a) a sucessão de eventos; (b) a unidade temática; (c) os predicados
transformados; (d) o processo; (e) a intriga; (f) a moral. Bonini (2005, p. 219) lembra que,
para delimitação de tais elementos narrativos, Adam se inspirou principalmente em Labov &
Waletzky (1967), apresentando como esquema prototípico da narrativa um conjunto de cinco
macroproposições (como se vê no quadro 4): situação inicial, complicação, (re)ação, situação
final e moral.
59
Quadro 4: Esquema da sequência narrativa (ADAM, 1992, p. 57)
Segundo Bonini (2005, p. 220), pode-se interpretar o quadro acima da seguinte forma:
as situações inicial e final são macroproposições que revelam ponto de equilíbrio na narrativa,
sendo de caráter mais descritivo. As fases de complicação, avaliação e resolução, por sua vez,
são as macroproposições que propriamente atribuem ao esquema narrativo a sua
dinamicidade, revelando a quebra de uma ordem estabelecida e reconstrução de uma nova
situação de equilíbrio. Por fim, a moral é uma reflexão complementar ao fato narrado que é
comumente levantada pelo narrador. Às vezes ela não está presente (ou explícita) nos textos
narrativos, mas, nesses casos, Adam frisa que, ainda assim, é em geral esperada pelo ouvinte
da história, que manifesta a sua sensação de estranhamento por meio da clássica pergunta; “E
daí?”. A seguir, tem-se um exemplo de texto narrativo, no gênero jornalístico crônica16.
(29) texto narrativo
[...] Eu também tive minha experiência Papa pum pum. Fui passar uns dias em Nova York e
deixei uma semana de colunas prontas, todas tratando de quimeras e generalidades, para cobrir
minha ausência. Foi a semana do onze de setembro de 2001. Comecei a mandar matérias de
Nova York sobre as torres esfareladas que foram publicadas no “Globo” e no “Zero Hora” de
Porto Alegre, mas outros jornais que reproduziam a coluna continuaram publicando as que eu
tinha deixado. O que quer dizer que durante uma semana passei pela pessoa mais alienada, ou
distraída, do planeta [...]
(Papa pum pum, por Luís Fernando Verísismo, O Globo, 14/11/10)
2.3.2.2 Sequência descritiva
Dentre as sequências apresentadas por Adam, a descrição revela-se como o tipo textual
menos autônomo, já que constantemente aparece como um tipo complementar dentro de
outras sequências. Na narração, por exemplo, muitas vezes o texto descritivo acompanha a
parte referente à situação inicial, quando são introduzidos os personagens e o espaço do fato
narrado. Nem por isso, contudo, a descrição deixa de assumir características próprias.
16
Os exemplos de tipos textuais aqui apresentados foram extraídos dos gêneros do jornal impresso que fazem
parte do corpus da pesquisa (reportagem, crônica, artigo de opinião, entrevista e opinião do leitor),
assumindo-se a ideia de Adam de que as sequências se realizam nos gêneros.
60
Adam determina para o texto descritivo três fases principais que não seguem
necessariamente uma ordem fixa, tal como ocorre na narração, porém apontam para a
determinação de um rótulo e de um conjunto de propriedades a ele relacionadas. Assim, ele
inclui na descrição: (a) uma ancoragem (responsável pela identificação de um tema-título); (b)
um conjunto de propriedades (aspectualização e estabelecimento de relação); (c) uma
reformulação (visão geral do tema). No quadro 5, tem-se um esquema típico da sequência
descritiva a partir das suas fases características e seus respectivos processos relacionais. Esse
tipo de texto é exemplificado em (30), a partir do gênero opinião do leitor.
Quadro 5: Esquema típico da sequência descritiva (ADAM, 1992, p. 84)
(30) texto descritivo
[...] Barradas, além de ser pessoa especialíssima, foi o estadista da saúde. Enxergava todos e
todas. Foi o secretário que incluiu as mulheres encarceradas nos mutirões de mamografia e
todos os presos na campanha de vacinação H1N1, a despeito da resistência para
implementação do direito à saúde para a população encarcerada.
Tinha a compreensão de que saúde está no patamar de direito fundamental e é obrigação do
Estado garantir atenção à assistência integral da saúde da população carcerária, sob o prisma
de que é um bem que afeta a dignidade humana.
(Barradas, por Kenarik Boujikian Felippe, Folha de São Paulo, 21/07/10)
61
2.3.2.3 Sequência argumentativa
Um texto argumentativo é, essencialmente, aquele que se define pela sua função
principal: convencer o outro no discurso, modificando a sua visão a respeito de determinado
objeto. Em Adam (1992), a sequência argumentativa consiste, basicamente, na apresentação
de um dado elemento explícito de sustentação (um argumento ou tese) e uma conclusão (um
predicado), passando por um topos (um já dito). Adam apresenta como exemplo característico
do enunciado argumentativo a frase A marquesa tem mãos suaves, mas eu não a amo. Em tal
exemplo, a conjunção mas não se opõe a qualquer elemento anterior da frase, mas ao topos:
homens amam mulheres que têm mãos suaves. A argumentação se estabelece, assim, por meio
de dados (premissas), do escoramento de inferências (parte implícita) e de uma conclusão. O
referido autor destaca, também, que muitas vezes a sequência argumentativa se completa por
mais dois elementos (como se vê no quadro 6): a tese anterior e a restrição. O trecho do artigo
de opinião apresentado em (31) exemplifica o texto argumentativo.
Quadro 6: Esquema típico da sequência argumentativa (ADAM, 1992, p.118)
(31) texto argumentativo
[...] As ilusões propostas como verdades sólidas fazem muitos acreditarem que o casamento é
um Oásis a ser usufruído. Ora, isso só ocorre se for construído e defendido dia a dia. No
momento em que se pensa apenas em desfrutá-lo e, por vezes, à margem dos valores morais,
envereda-se pelo caminho que leva à destruição do lar. A saúde espiritual e moral da família é
um assunto fundamental para a sociedade civil e religiosa. Merece todo sacrifício em sua defesa
e promoção. Não nos faltarão a graça de Deus e o amparo da Sagrada Família.
(O complexo de Agar, por D. Eugênio Sales, O Globo, 13/11/10)
62
2.3.2.4 Sequência explicativa
Adam reúne numa mesma categoria a explicação e a exposição, concebendo esta última
como parte da primeira. Afirma que, embora a sequência explicativa apresente pontos
semelhantes com a descrição e a argumentação, ela se revela de modo distinto em sua
composição e função. Na explicação, o objetivo é responder claramente às perguntas Por
quê? e Como?, mostrando quadros parciais de resolução da ideia. Diferentemente da
argumentação, o texto explicativo não tem por objetivo modificar uma crença (visão de
mundo), mas sim transformar uma convicção (estado de conhecimento). Vê-se, abaixo, o
esquema típico da sequência explicativa apresentado por Adam.
Nota-se, no quadro 7, que a explicação se sustenta em três fases principais, podendo
estas ser antecedidas por uma esquematização inicial. A primeira fase corresponderia a uma
apresentação do problema (questão), induzindo-se às perguntas Por quê? ou Como? O
segundo momento, central nesse tipo de texto, seria destinado a fornecer propriamente uma
explicação (resposta) do problema levantado. E, por fim, uma conclusão-avaliação do
problema, que traduz uma tentativa de sumarização da resposta dada. O texto explicativoexpositivo apresentado em (32) exemplifica essa sequência no gênero reportagem.
(32) texto explicativo-expositivo
O Twitter tornou-se a segunda fonte de informação da internet. Como 24 bilhões de buscas
mensais, ele é maior do que o pioneiro Yahoo (9,4 bilhões) e do que aquela iniciativa da
Microsoft que nunca pegou, o Bing (4,1 bilhões) – somados. O líder continua a ser o Google,
com mais de três vezes esse volume, levando em conta subsidiários como o YouTube.
O crescimento de Twitter mostra uma característica interessante da dinâmica de redes: a
distribuição de seus competidores em uma lei de potência, em que o primeiro lugar é bem
maior do que o segundo e este, do que terceiro, uma curva descendente que adoram chamar de
“cauda longa”. [...]
(Três tipos de busca, Folha de São Paulo, 21/07/2010)
Quadro 7: Esquema típico da sequência explicativa (ADAM, 1992, p. 132)
63
2.3.2.5 Sequência dialogal
Entre as cinco sequências apresentadas por Adam, a dialogal se revela como aquela
que apresenta características mais peculiares. Diferentemente das outras, ela não se manifesta
a partir da ação de um único interlocutor, sendo sempre necessária a troca conversacional para
a manutenção do enunciado. Além disso, em suas formas de realização discursiva, é aquela
que que está presente nos gêneros mais interativos da comunicação humana (conversação
espontânea, entrevista, conversação telefônica, debate etc.), em que a troca de turno constitui
uma das principais características, como se vê na entrevista jornalística apresentada em (33).
(33) texto dialogal
O GLOBO: Como o senhor vê a corrosão da fronteira entre as esferas pública e privada numa
era marcada pela superexposição?
CHAIM SAMUEL KATZ: Ainda temos o preconceito de raciocinar sobre essa questão da
individualidade e termos iluministas, quando o “eu” era centralizado. Não acredito na
unicidade do eu do iluminismo. O que há é uma multiplicidade de “eus”. Temos várias
identidades dependendo das circunstâncias.
O GLOBO: As redes sociais móveis que utilizam a geolocalização não estão superexpondo a
intimidade?
KATZ: Acho menos grave do que os pais que controlam e vigiam seus filhos através de
celulares com GPS, sob a alegação de preservarem a integridade deles. Nessas redes, a adesão
é voluntária. Elas reúnem interesses e crenças contemporâneas que há dez anos não
imaginávamos que pudessem acontecer. Não estou defendendo o uso delas, mas sim tentando
entender o fenômeno. [...]
(Novos modos de agregação, por Adriana Barsotti, O Globo, 13/11/10)
No quadro 8 apresentado a seguir, tem-se um esquema típico da sequência dialogal,
que basicamente se resume a duas partes principais, envolvendo troca de turnos entre os
interlocutores. A primeira delas é a sequência fática (de abertura e encerramento) e a segunda
corresponde às sequências transacionais (o diálogo propriamente dito). No esquema, as
indicações A1, B1, A2 se referem à alternância dos interlocutores.
64
QUADRO 8: Esquema básico da sequência dialogal (adaptado a partir de ADAM, 1992, p. 159-163)
De um modo geral, os itens aqui apresentados são os principais elementos apresentados
por Adam na identificação e caracterização das sequências textuais. Bonini (2005, p. 231)
ressalta que “a noção de sequência - embora não formalizada nos termos de Adam e
recebendo geralmente o nome de tipo de texto - aparece na literatura da área em proposições
teóricas relativamente distintas e mesmo em datas anteriores ao trabalho de Adam (Werlich,
1976, Brewer, 1980, etc.)”. Ele afirma que é a partir da proposta teórica de Adam, contudo,
que tal noção ganha credibilidade e passa a integrar os debates acadêmicos como conceito
mais ou menos estabilizado.
No que tange às críticas que podem ser lançadas ao modelo de Adam, Bonini (2005)
menciona três aspectos principais: (1) o problema do interno/externo; (2) o problema do
gênero primário; (3) o problema da categorização. O problema do interno/externo diz respeito
ao modo como o autor combinou uma perspectiva discursiva externa com uma perspectiva
cognitiva interna, não deixando muito explícito quais limites separam essas duas esferas.
O segundo entrave aponta para o fato de Adam ter proposto a substituição da ideia do
gênero primário (menos complexo) pela noção de sequência, considerando-o mais estável que
os gêneros secundários e rompendo com o conceito de enunciado de Bakhtin. Por último, uma
terceira questão polêmica na teoria de Adam diz respeito à afirmação de que as categorias
textuais se organizam mediante protótipos sequenciais, atribuindo-se a noção de protótipo de
forma metafórica, como se as sequências fossem entidades vivas (tais como os gêneros).
Por fim, vale ressaltar que, embora o trabalho de Adam tenha suscitado todos esses
pontos críticos, incluindo a própria formalização e o número de sequências, a sua abordagem
teórica constitui, sem dúvida, importante referência nos estudos de gênero mais recentes,
sendo tomado como ponto de partida nas investigações acerca das noções de tipos e gêneros
textuais.
65
2.4 A PROPOSTA DO INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO DE BRONCKART
Segundo Machado (2005, p. 237), não há, propriamente, um conceito de gênero que
possamos atribuir de forma isolada a Bronckart. O que se tem divulgado no Brasil com sendo
“de Bronckart” deve ser visto, segundo ela, de forma contextualizada (é de um grupo de
pesquisadores da Universidade de Genebra – Bronckart, Schneuwly e Dolz – que constituíram
a base do interacionismo sociodiscursivo).
Esses autores tiveram como fonte de referência Vygotsky e Marx e defenderam a
reunificação da psicologia, à qual atribuíam uma dimensão social e cujo principal objetivo
seria “elucidar as condições de emergência e de funcionamento do pensamento consciente
humano” (BRONCKART, 2002a, apud MACHADO, 2005, p. 238).
A autora também defende a posição de que o interacionismo sociodiscursivo (ISD) não
toma os gêneros de textos como sua unidade da análise privilegiada. De fato, como ela
esclarece, as unidades de estudo privilegiadas pelo ISD são as ações verbais e não-verbais,
sendo os objetivos dessa análise dirigidos por concepções epistemológicas específicas.
A apresentação e discussão de todas essas questões parece-me bastante
oportuna, dado que o ISD sofreu uma crescente divulgação no Brasil a partir
dos últimos dez anos. [...] Voltados de modo significativo para a perspectiva
de intervenção na educação – imediata ou prospectivamente – todos esses
trabalhos têm trazido conclusões e questionamentos que nos obrigam a
efetivar uma contínua reflexão sobre o ISD, ao mesmo tempo que sua
divulgação tem multiplicado interpretações sobre seus conceitos de base e
sobre o modelo de análise de textos. (MACHADO, 2005, p. 239)
Na verdade, a intensa divulgação da perspectiva sociodiscursiva de análise textual veio
acompanhada, como destaca a autora, de uma série de problemas interpretativos. Algumas das
dificuldades apontadas são: (1) o fato de o ISD ser uma vertente da psicologia da linguagem
bastante complexa; (2) o fato de o ISD ter-se constituído em relação dialética com a didática
de línguas, disciplina que apresenta finalidades, questões e objetivos próprios; (3) o fato de o
ISD estar em contínua construção; (4) o fato de seus autores usarem termos que têm valor
diferente do que lhes é mais comumente atribuído (em matéria de linguagem). Ao fazer
referência aos “giros” em torno do conceito de gênero no ISD, Machado (2005) frisa que, em
tal perspectiva, gênero de texto não se define: é o que existe. Nota que, partir dos exemplos
dados para gêneros de texto, como história de vida, editorial etc., conclui-se que os gêneros
eram tomados simplesmente a partir de sua rotulação social, sem conceituação teórica maior.
66
Se o conceito de gênero de texto ainda não se encontra aí formalmente
construído, o de tipos de discursos ou tipos discursivos e a sua classificação
já aparecem de forma mais elaborada. Mantendo-se até hoje, esse conceito é
central para a teoria em vários sentidos, sendo necessário compreendê-lo e
discutir sua relação com os gêneros (MACHADO, 2005, p. 242)
2.4.1 A abordagem teórica de Bronckart
Ao retomar e reformular criticamente o conceito de sequência apresentado por Adam
(1992), Bronckart (1999) considera que ela seria uma das formas possíveis de planificação
dos conteúdos, planificações que incluiriam, ainda, os scripts e as esquematizações. Para o
autor, as sequências se distribuem em seis tipos básicos: dialogal, descritivo, narrativo,
explicativo, argumentativo e injutivo (texto procedural). Como se destacou anteriormente, não
há, ainda, um real consenso no que diz respeito ao número de tipos textuais e, sendo assim,
sua classificação tem sido variável.
A respeito da utilidade dos conceitos de tipos de discurso e tipos de sequência para a
caracterização de gêneros, Machado (2005) ressalta que a perspectiva do ISD, na qual
Bronckart se inscreve, rejeita atualmente a possibilidade de fundamentação teórica da análise
textual apenas com base na materialidade tipológica. Referindo-se à hipótese inicial do grupo
de Genebra, a de que a tipos de texto diferentes deveriam corresponder a tipos de discurso
diferentes, a autora menciona que, naquele momento, os autores acreditavam que os gêneros
poderiam ser identificados e classificados a partir dos tipos de discurso, ou, em outras
palavras, com base na materialidade linguística. Isso, contudo, não foi confirmado pelas
pesquisas desenvolvidas posteriormente, sendo tal hipótese descartada.
Assim, de acordo com Bronckart (1999), pode-se afirmar que os autores do ISD
passaram a considerar que os gêneros de texto nunca podem ser identificados e definidos
apenas com base meramente em suas propriedades linguísticas, devendo-se abandonar
qualquer projeto de identificação-definição-classificação dos textos a partir, de forma
exclusiva, de suas propriedades internas. Como frisa Machado (2005, p. 248), isso não quer
dizer, no entanto, que as noções de tipos de discurso e tipos de sequência não sirvam como
critério, ao lado de muitos outros, para identificar os gêneros. Não significa, também, que
esses tipos não existem enquanto textos ou que eles não precisam ser ensinados e aprendidos
na escola, nem que não seja útil desenvolver pesquisas sobre esses conceitos.
67
Os autores do ISD também apontam os gêneros de texto como reguladores e como
produtos das atividades (sociais) de linguagem. Em tal abordagem, há uma distinção
fundamental entre “atividade” (coletivo) e “ação” (individual). Assim, Bronckart et al.
consideram que a atividade social e os produtos dessa atividade são o princípio explicativo
das ações individuais.
O ISD propõe, de um ponto de vista sócio-histórico, que as atividades são os
determinantes primeiros do funcionamento psíquico humano e das ações. Essas atividades se
sustentam fundamentalmente nas atividades linguajeiras, ou seja, nas atividades
correspondentes aos gêneros discursivos ou enunciados, no sentido bakhtiniano.
Desse modo, em relação aos gêneros, Bronckart (1996b, apud MACHADO, 2005,
p. 250) afirma que: (1) No decorrer da história, no quadro das atividades sociais, foram e são
produzidas determinadas formas comunicativas que, estabilizando-se de modo mais ou menos
forte, constituem os gêneros de textos; (2) A diferenciação das esferas de atividade teria
levado – e leva – a uma constante diferenciação dos gêneros de texto próprios de cada uma
dessas esferas. Portanto, os gêneros de texto constituem-se como pré-construtos
(BRONCKART, 2001, apud MACHADO, 2005, p. 250), isto é, construtos existentes antes de
nossas ações, necessários para a sua realização.
Por fim, vale destacar a posição de Schneuwly (1994, apud MACHADO, 2005, p.
251), também adepto ao ISD, que considera que, nas atividades de linguagem, os gêneros
podem ser concebidos como verdadeiras ferramentas semióticas, complexas, que permitem
que realizemos as ações da linguagem participando de variadas atividades sociais. A
apropriação dos gêneros é, portanto, um mecanismo fundamental de socialização, de
possibilidade de inserção prática dos indivíduos nas atividades comunicativas humanas.
Afinal, como lembra o autor, é pelo acúmulo de processos individuais de reprodução e
adaptação que os gêneros se modificam e assumem um estatuto fundamentalmente dinâmico e
histórico.
68
2.5 REFERENCIAÇÃO E ESTUDO DOS GÊNEROS E TIPOS TEXTUAIS
Parte-se aqui do pressuposto de que a distinção entre “gêneros” e “tipos” pode ajudar,
de certo modo, a elucidar outras questões pertinentes aos estudos do texto, tais como os
processos de referenciação abordados no primeiro capítulo deste trabalho.
Conforme Paredes Silva (2010, p. 485), a diferença entre essas duas noções pode ser
estabelecida a partir de critérios bem definidos, pautados, ao mesmo tempo, em aspectos
formais da materialidade textual-discursiva e nas realidades de interação do discurso que se
traduzem em diferentes situações comunicativas.
Desse modo, entendemos os tipos textuais como estruturas disponíveis na
língua, com marcas linguísticas específicas, identificadas principalmente
com base no sistema de tempo/aspecto/modo do verbo, e ainda na centração
em determinada pessoa do discurso (1ª, 2ª e 3ª), na tendência semântica a
predicados de natureza mais verbal ou nominal, à ordenação
predominantemente lógica ou cronológica, entre outros aspectos. A
conjugação dessas propriedades nos conduz a um conjunto limitado de tipos
textuais. (PAREDES SILVA, 2010, p. 485-486)
Por outro lado, de nosso ponto de vista, os gêneros correspondem a uma
atualização dessas estruturas (potencialmente disponíveis na língua) em
circunstâncias concretas de comunicação. [...] Dado o caráter
sociointeracional do gênero, e dada a diversidade de situações comunicativas
com que nos defrontamos, daí decorre uma multiplicidade de gêneros de
discurso. No entanto, são até mais facilmente identificáveis pelos usuários da
língua do que as estruturas/tipos de texto que os constituem. (PAREDES
SILVA, 2010, p. 486)
A autora enfatiza, no entanto, a possibilidade de superposição desses conceitos e a
dificuldade de identificação/segmentação quando se procede à análise de dados, de “textos
reais” da língua. Paredes Silva (2010, p. 488) menciona, a esse respeito, a possibilidade de
superposição de gêneros, i.e., de situações comunicativas, bem como a heterogeneidade
tipológica dentro de um mesmo gênero. Assim, ela afirma que um gênero (não-literário)
como a entrevista poderia incluir outros gêneros como o relato cotidiano. Da mesma forma,
pode haver naturalmente mais de uma sequência em um determinado gênero, como no caso do
conto de fadas, que apresenta tanto sequências narrativas como descritivas. “Alguns poderão
até defender que a descrição faz parte da narração, dificilmente tendo vida própria.”
(PAREDES SILVA, 2010, p. 488).
69
No que tange à problemática da referenciação, sugere-se, aqui, que a relação com a
noção de gênero pode ser vista a partir de uma visão funcional da estabilidade/instabilidade
das categorias.
No plano textual-discursivo, a instabilidade constitutiva dos objetos do
discurso (MONDADA; DUBOIS, 2003) leva a um processo – direto ou indireto - de
estabilização/identificação dos referentes, com base em diferentes fatores co-textuais e
contextuais. Da mesma forma, no plano histórico-discursivo, a instabilidade e multiplicidade
de situações comunicativas conduz o falante a uma posterior estabilidade/identificação dos
enunciados (BAKHTIN, 2003), que passam a ser reconhecidos como gêneros do discurso. O
esquema a seguir, apresentado no quadro 9, ilustra tal relação entre os referentes e os gêneros
+ instável
situação
comunicativa
1, 2, 3, 4....
referente
- instável
+ instável
objeto
do
discurso
1, 2, 3, 4....
gênero
- instável
PLANO HISTÓRICO-DISCURSIVO
PLANO TEXTUAL-DISCURSIVO
com base no aspecto funcional de instabilidade/estabilidade.
QUADRO 9: Relação entre gêneros e referentes na escala funcional de instabilidade/estabilidade
O exemplo apresentado em (34) traz um pequeno post do blog do jornalista Marcelo
Coelho, na versão eletrônica da Folha de São Paulo, em 16/05/11. O blog, de um modo geral,
corresponde a um gênero que, no contexto histórico-discursivo, somente a partir da segunda
metade década de noventa, adquiriu status de “enunciado relativamente estável”. Houve, no
entanto, antes mesmo de seu reconhecimento enquanto gênero digital independente, uma série
de situações comunicativas ligadas à escrita na internet que estimularam o surgimento e
identificação dos primeiros blogs como ciberdiários, assim como, posteriormente, do
70
subgênero blog jornalístico. Obviamente, a frequência e a natureza discursiva dessas
situações comunicativas levaria a uma estabilização do enunciado, no sentido bakhtiniano.
Ainda no exemplo (34), destaca-se esse mesmo processo de estabilização no plano referencial
dos objetos do discurso, em função da sua instabilidade constitutiva. Caso se atente
especificamente para a expressão gente diferenciada apresentada no post, a depreensão e
consequente estabilidade do referente depende, sem dúvida, da ativação de elementos
contextuais relacionados a um cenário sociopolítico envolvendo o caso Palocci e a polêmica
da estação de metrô em Higienópolis.
(34)
Assim, pode-se dizer, de acordo como o esquema apresentado no quadro 7 e com o
exemplo apresentado em (6), que os planos histórico-discursivo e textual-discursivo
forçosamente se intercruzam na tentativa de se estabelecer uma relação entre “gênero” e
“referência”, dando margem à visualização escalar, na forma de continuum, da
estabilidade/instabilidade funcional associada à identificação dessas categorias. Além disso,
outros questionamentos teóricos podem ser levados em conta quando se focaliza a
importância das noções de “gênero” e “tipo” nos estudos dos processos de referenciação, a
saber: Quais gêneros (e tipos) favorecem o estabelecimento de processos indiretos de
referenciação? Há uma relação direta entre o mapeamento cognitivo dos referentes e o
reconhecimento/domínio dos gêneros envolvidos?
Em suma, pode-se dizer, de acordo com Marcuschi (2008), que o debate sobre gêneros
encontra-se em plena ascensão, implicando em significativas mudanças teóricometodológicas. Embora, como lembra Paredes Silva (2010, p. 479), a noção de gênero
estivesse até pouco tempo associada apenas aos estudos literários, atualmente é parte
fundamental das teorias de texto e discurso, podendo também ser vinculada a outras temáticas
71
centrais da Linguística Textual tais como a referenciação.
No que concerne aos autores aqui destacados – Bakhtin, Adam e Bronckart – é válido
afirmar que cada um deles contribui, a seu modo, para a elucidação das questões envolvidas
nesse debate. Bakhtin torna-se sempre, em função de suas considerações teórico-filosóficas,
uma primeira referência na visão dialógica da linguagem, tão importante para as atuais
abordagens funcionalistas do sistema linguístico. Adam, por sua vez, ainda que esteja sujeito a
críticas em seu modelo teórico, consegue, em uma proposta pragmático-textual, apresentar e
difundir a noção de sequência tal como é hoje concebida. E Bronckart, por fim, revela-se um
difusor da perspectiva interacionista e sociodiscursiva, focalizando a real interface entre a
materialidade linguística e as formas de interação discursiva, ressaltando que as atividades
humanas são, sobretudo, atividades de linguagem.
72
3 HIPERTEXTO E GÊNEROS JORNALÍSTICOS: DO JORNAL IMPRESSO AO
JORNAL ELETRÔNICO
O mundo da Internet é extremamente fluido, com usuários
explorando suas possiblidades de expressão, introduzindo
combinações novas de elementos e reagindo aos
desenvolvimentos tecnológicos. Mas uma coisa é certa. Essas
três funções, em suas diferentes formas, facilitam e dificultam
nossa capacidade de comunicação de modos que são
fundamentalmente diversos dos encontrados em outras
situações semióticas. Muitas expectativas e práticas que
associamos à língua falada e escrita não se realizam mais, e
novas oportunidades surgem.
(David Crystal)
O termo hipertexto surge em meados dos anos 60, criado por Theodore Nelson, para
“exprimir a ideia de escrita/leitura não linear em um sistema de informática” (LÉVY, 1999,
p. 29). Tal definição já apontava, a essa época, para duas faces essenciais de uma nova
ferramenta comunicativa: o aspecto tecnológico e textual.
Do ponto de vista tecnológico, pode-se dizer, conforme Cavalcante (2005, p. 164), que
“o percurso desta ferramenta aponta para sua adequação, a partir da otimização dos sistemas
criados, visando à acessibilidade de um novo usuário, o doméstico”. É justamente quando
esses sistemas passam a ser acessíveis a uma comunidade não especializada, principalmente a
partir da década de 90, que o hipertexto passa a suscitar, na área da linguística e da
comunicação, variadas reflexões acerca do modo como a informação se apresenta no espaço
virtual.
A referida autora destaca que, para teóricos como Bolter (1991) e Douglas (1998), o
hipertexto pode ser entendido com um novo espaço de escrita, a escrita eletrônica, que
possibilita que a ordenação textual se estruture de maneira variada. Crystal (2005) enfatiza,
também, o surgimento de um novo tipo de linguagem a partir das ferramentas virtuais de
comunicação, motivado pelo advento da Internet: o netspeak.
Tendo em vista, então, a importância do hipertexto nos variados tipos de relações
sociais contemporâneas, o que constitui a sua identidade enquanto objeto linguístico? O que o
torna particular em termos estruturais e funcionais, linguisticamente falando? Como lembra
73
Cavalcante (2005), a tessitura textual representa o diferencial do hipertexto, ou seja, o que o
faz singular é justamente a presença e utilização de seus constituintes internos: os nós e links.
Podemos dizer que os links promovem ligações entre blocos informacionais
(outros textos; fragmentos de informação: palavra; parágrafo;
endereçamento etc.) conhecidos como nós. No entanto, estes blocos não
necessitam estabelecer uma relação sêmica entre si, isto é, as ligações
possíveis não formam a tessitura daquele texto específico, mas promovem a
abertura para outros textos, mas nunca para qualquer texto.
(CAVALCANTE, 2005, p. 166)
Como se vê, para a autora, os links e os nós que caracterizam a rede hipertextual
indicam, mais propriamente, possibilidades de leitura, de acordo com o que é disponibilizado
pelo autor na organização de sua tessitura textual. Essa espécie de mapeamento de construção
de sentido não delimita o caminho exato que o leitor irá seguir naquele ambiente virtual
específico. É interessante notar, ainda, que, ao mesmo tempo em que evidenciam as direções
de leitura a serem tomadas, os links e nós do hipertexto também são limitados pelo autor, ou
seja, ele não sugere “qualquer texto’ como trilha a ser seguida. Isso revela, sem dúvida, uma
limitação na suposta criação desenfreada do sentido, uma limitação que se faz na própria
materialidade do ambiente virtual. Segundo Cavalcante (2005, p. 168), “a discussão sobre a
natureza do hipertexto permite pensar o próprio texto em sua materialidade, bem como as
estratégias de seu processamento ou do simulacro dele”.
Uma vez que, dentro dos estudos linguísticos, o hipertexto é visto como uma forma de
se entender a construção de sentidos em seu processamento, assume-se, também, a
possibilidade de se estudar o fluxo informacional das entidades nele apresentadas com base,
também, na sua materialidade. Nessa perspectiva, pode-se investigar quais elementos do
ambiente virtual explicitam as diferentes categorias de informação no discurso (nova, evocada
ou inferível), conforme Prince (1981), e ainda, descobrir uma forma de associá-los a estados
de ativação na mente do leitor (ativado, não-ativado ou semi-ativado), segundo Chafe (1984).
Certamente, estudar o fluxo informacional no hipertexto exige uma análise ampla, que
envolve a consideração tanto dos aspectos textuais e cognitivos, como dos elementos físicos,
materiais, que compõem a construção do sentido nessa ferramenta. Em tal investigação,
considera-se que uma das principais questões envolvidas é o processamento da rede de
inferências, como será visto a seguir.
74
Neste capítulo, serão focalizados, inicialmente, aspectos gerais relacionados às noções
de virtualização e ciberespaço que permitem desvendar a natureza da rede hipertextual17. Em
seguida, serão feitas considerações acerca do fluxo informacional no hipertexto a partir da
tripartição apresentada por Prince (1981) e Chafe (1984) para as entidades do discurso e os
estágios de ativação, respectivamente. Por fim, analisa-se o surgimento dos gêneros digitais,
particularmente no domínio jornalístico, como fator decisivo na reorganização e
reestruturação das novas práticas comunicativas e do acesso geral à informação.
3.1 VIRTUALIZAÇÃO, CIBERESPAÇO E HIPERTEXTO
Lévy (1996, p. 11) destaca que a virtualização, em sentido amplo, é um processo que
interfere não apenas no modo como serão representados os espaços e veículos de
comunicação, mas também nos domínios da cultura e da sociedade que transcendem a esfera
da informatização.
Um movimento geral de virtualização afeta hoje não apenas a informação e a
comunicação mas também os corpus [ sic.], o funcionamento econômico, os
quadros coletivos da sensibilidade ou da inteligência. A virtualização atinge
mesmo as modalidades do estar juntos a constituição do “nós”: comunidades
virtuais, empresas virtuais, democracia virtual... Embora a digitalização das
mensagens e a extensão do ciberespaço desempenhem um papel capital na
mutação em curso, trata-se de uma onda de fundo que ultrapassa
amplamente a informatização. (LÉVY, 1996, p. 11)
O referido autor defende que a noção de “virtual” apresenta, na verdade, pouca
afinidade com a ideia de um processo “falso”, “ilusório” ou “imaginário”. Afirma que a
virtualização, ao contrário, corresponde “a um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em
jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença
física imediata.” (LÉVY, 1996, p. 12).
Para relacionar o virtual às possibilidades de atualização da informação, Lévy (1996,
p. 15) parte da origem etimológica da palavra, lembrando que, no latim medieval, o termo
virtualis, derivado de virtus, remete ao significado de “força”, “potência”. Mas esclarece, por
17
“A palavra ciberespaço foi inventada em 1984 por Willian Gibson em seu romance de ficção científica
Neuromancer. No livro, esse termo designa o universo das redes digitais, descrito como campo de batalha
entre as multinacionais, palco de conflitos mundiais, nova fronteira econômica e cultural.” (LÉVY, 1999,
p. 94)
75
outro lado, que virtualização deve ser vista como um movimento inverso da atualização, já
que “consiste em uma passagem do atual ao virtual, em uma “elevação à potência” da
entidade considerada.” (LÉVY, 1996, p. 17). No caso específico da comunicação na web, a
entidade em questão seria o texto, potencializado pelo formato específico do hipertexto.
A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade
em um conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um
deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em
vez de se definir principalmente por sua atualidade (uma “solução”), a
entidade passa a encontrar sua consistência num campo problemático.
Virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão geral à
qual ela se relaciona, em fazer mudar a entidade em direção a essa
interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma
questão particular. (LÉVY, 1996, p. 17-18)
Em tal perspectiva, a virtualização do texto traria como resposta uma nova atualidade
de partida, o hipertexto, que, como já foi aqui assinalado, por meio de seus links e nós,
permite o deslocamento de uma leitura tradicional, linear, para um ambiente tentacular de
possíveis leituras ou, simplesmente, de leitura não-linear.
Desterritorializado, presente por inteiro em cada uma de suas versões, de
suas cópias e de suas projeções, desprovido de inércia, habitante ubíquo do
ciberespaço, o hipertexto contribui para produzir aqui e acolá
acontecimentos de atualização textual, de navegação e de leitura. Somente
esses acontecimentos são verdadeiramente situados. Embora necessite de
suportes físicos pesados para subsistir e atualizar-se, o imponderável
hipertexto não possui um lugar. (LÉVY, 1996, p. 20)
Desse modo, constrói-se a ideia do virtual como um “não estar presente”, na qual a
virtualização se processa como êxodo, permitindo o desprendimento do “aqui” e “agora”.
Segundo Lévy (1996, p. 21), “quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação
se virtualizam, eles se tornam “não-presentes”, se desterritorializam.” Ressalta, contudo, que,
essa independência do espaço-tempo de referência deve ser considerada apenas do ponto de
vista do processo do “deslocamento” que o hipertexto produz enquanto fonte de virtualização.
Afinal, em sua atualização, desde a inserção em um suporte físico específico até o
processamento da informação pelo leitor, há uma relação espaço-temporal inerente a qualquer
prática comunicativa.
76
Em sua abordagem teórica, Lévy (1996) apresenta a leitura como uma atualização do
texto, a escrita, como uma virtualização da memória, e a digitalização, como uma
potencialização do texto. Daí surge a noção de hipertexto como virtualização do texto e
virtualização da leitura. Para o autor, “um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo
que alguns deles vão se realizar sob o efeito da interação com um usuário” (LÉVY, 1996,
p. 40). Dois planos são, assim, distintos na relação entre hipertexto e leitura: o do par
potencial-real e o do par virtual-atual.
Uma vez claramente distinguidos esses dois planos, o do par potencial-real e
o do par virtual-atual, convém imediatamente sublinhar seu envolvimento
recíproco: a digitalização e as novas formas de apresentação do texto só nos
interessam porque dão acesso a outras maneiras de ler e compreender.
(LÉVY, 1996, p. 40)
Destaca-se, aqui, mais uma vez, a diferença entre leitura linear e não-linear. “Para
começar, o leitor em tela é mais ‘ativo’ que o leitor em papel: ler em tela é, antes mesmo de
interpretar, enviar um comando a um computador para que projete esta ou aquela realização
parcial do texto sobre uma pequena superfície luminosa” (LÉVY, 1996, p. 40)
Sendo assim, ao se analisar o ciberespaço, é possível concebê-lo, em certo sentido,
como uma virtualização do computador, que, para Lévy (1996, p. 41), não deve ser visto
como mero instrumento de produção de textos sobre um suporte físico determinado. Isso
equivaleria a deixar de reconhecer, por exemplo, o surgimento de práticas comunicativas
tipicamente estabilizadas na web, tais como os variados gêneros digitais.
Considerar o computador apenas como um instrumento a mais para produzir
textos, sons ou imagens sobre suporte físico (papel, película, fita magnética)
equivale a negar sua fecundidade propriamente cultural, ou seja, o
aparecimento novos gêneros ligados à interatividade. (LÉVY, 1996, p. 41)
O computador é, portanto, entendido pelo autor como um operador de potencialização
da informação e a tela informática como uma nova “máquina de ler”, ou um local onde a
reserva de informação possível chega a se realizar por seleção de um leitor particular. “Toda
leitura em computador é uma edição, uma montagem singular.” (LÉVY, 1996, p. 41)
É justamente essa forma de atualização do texto que surge como característica
marcante da leitura hipertextual. “Um texto linear clássico, mesmo digitalizado, não será lido
como verdadeiro hipertexto, nem com uma base de dados, nem como um sistema que
engendra automaticamente textos em função das interações com as quais o leitor o alimenta.”
77
(LÉVY, 1996, p. 42). Assim, ler no hipertexto, na hipermídia ou multimídia consiste em
selecionar outros recursos, associar palavras e imagens a uma memória pessoal que se
reconstrói permanentemente em cada edição.
Pode-se se argumentar que, antes mesmo da informática, já havia uma espécie de
leitura hipertextual tentacular e entrecortada, com caminhos sugeridos ao leitor, tal como se
apresenta, por exemplo, nas enciclopédias. No entanto, conforme lembra Lévy (1996, p. 44),
o suporte digital faz toda a diferença na caracterização do hipertexto, pois “permite associar
na mesma mídia e mixar finamente os sons, as imagens animadas e os textos.” (LÉVY, 1996,
p. 44). Tal aspecto faz do hipertexto digital uma reunião de informações multimodais
dispostas em rede para navegação rápida e “intuitiva”.
Há, de fato, na tendência contemporânea à hipertextualização dos documentos, uma
mistura das funções de leitura e escrita, já que, como já foi assinalando antes, o leitor que
constrói e escolhe seu percurso na rede também é autor, fazendo da sua navegação um
verdadeiro labirinto de sentidos. E essa interferência do leitor pode se dar, inclusive, de
maneira mais incisiva que um simples passeio na rede, já que podem a todo instante “não
apenas modificar as ligações, mas igualmente acrescentar ou modificar nós (textos, imagens
etc.), conectar uma hiperdocumento a outro e fazer assim de dois hipertextos separados um
único documento, ou traçar ligações hipertextuais entre uma série de documentos.” (LÉVY,
p. 1996, p. 46). Tem-se, portanto, uma espécie de “escrita-leitura coletiva”, conforme sugere
Lévy.
Assim a escrita e a leitura trocam seus papéis. Todo aquele que participa da
estruturação do hipertexto, do traçado pontilhado das possíveis dobras do
sentido, já é um leitor. Simetricamente, quem atualiza um percurso ou
manifesta este ou aquele aspecto da reserva documental contribui para a
redação, conclui momentaneamente uma escrita interminável. As costuras e
remissões, os caminhos de sentido originais que o leitor inventa podem ser
incorporados à estrutura mesma do corpus. A partir do hipertexto, toda
leitura tornou-se um ato de escrita. (LÉVY, 1996, p. 46)
Outro aspecto importante a ser considerado é a difícil distinção entre original e cópia
no ciberespaço. Como lembra Lévy, nele qualquer ponto pode ser acessado a partir de
qualquer ponto, sendo cada vez mais comum a substituição das cópias dos documentos por
ligações hipertextuais. “Basta que o texto exista fisicamente uma única vez na memória do
computador conectado à rede para que ele faça parte, graças a um conjunto de vínculos, de
78
milhares ou mesmo de milhões de percursos ou de estruturas semânticas diferentes.” (LÉVY,
1996, p. 48). E, nessa conexão multimídia, o hipertexto sempre se modifica, nunca é o
mesmo, já que, “alimentado por captadores, ele abre uma janela para o fluxo cósmico e a
instabilidade social.” (LÉVY, 1996, p. 48).
A interpretação, isto é, a produção do sentido, doravante não remete mais
exclusivamente à interioridade de uma intenção, nem a hierarquias de
significações esotéricas, mas antes à apropriação sempre singular de um
navegador ou de um surfista. O sentido emerge de efeitos de pertinência
locais, surge na intersecção de um plano semiótico desterritorializado e de
uma trajetória de eficácia ou prazer. Não me interesso mais pelo que pensou
um autor inencontrável, peço ao texto para me fazer pensar, aqui e agora,. A
virtualidade do texto alimenta minha inteligência em ato. (LÉVY, 1996,
p. 49)
3.2 HIPERTEXTO E FLUXO INFORMACIONAL
Conforme foi visto no capítulo 1, e já há algum tempo na literatura linguística, a
questão do status informacional das categorias referenciais vem sendo associada às noções de
dado (given) e novo (new), como se verifica nos trabalhos de autores como Halliday (1967),
Prince (1981), Chafe (1984), entre outros. O ponto comum entre as diversas abordagens
consiste na tentativa de entender como se organiza o nível informacional, i.e., a informação
do enunciado e seus reflexos na oração.
Nesta seção do trabalho serão consideradas, particularmente, as classificações
apresentadas por Prince (1981) e Chafe (1984), visto que ambas permitem uma categorização
intermediária das entidades do discurso. Entre as categorias novas e evocadas, Prince (1981)
insere uma terceira noção, a de entidade inferível. Chafe (1984), numa perspectiva mais
cognitivista, ainda que associe as noções de dado e novo aos estados ativado e não-ativado na
consciência dos interlocutores, também considera um nível intermediário de ativação, o das
categorias acessíveis ou semi-ativadas.
A delimitação de um nível intermediário parece constituir, nas duas classificações,
uma ferramenta relevante para o entendimento do fluxo informacional e da construção de
sentidos no âmbito discursivo. Além disso, tal estratégia está em consonância com a
visualização escalar, em continuum, dos fenômenos linguísticos, presente em grande parte das
abordagens funcionalistas mais recentes.
79
Paralelamente à análise do caráter informacional das entidades linguísticas,
pretende-se investigar o mapeamento de sentidos no hipertexto, pautando-se em estudos dos
gêneros digitais emergentes na Internet, realizados por autores como Marcuschi (2005),
Xavier (2005), Cavalcante (2005), Galli (2005), entre outros. A preocupação central, aqui,
será apresentar aspectos gerais da construção do sentido que estão condicionados, de certo
modo, ao fluxo da informação, considerando-se, sobretudo, a importância das redes de
inferência em tal categorização.
3.2.1 As entidades do discurso
Prince (1981), ao considerar o tipo de informação apresentado nas entidades
referenciais do discurso, substitui a clássica divisão dado/novo pela tripartição
novo/evocado/inferível. Antes de se abordar a classificação e subdivisões propostas pela
autora, é importante mencionar aqui a sua definição de entidade do discurso.
Uma entidade é um objeto do modelo de discurso, semelhante ao referente
discursivo de Karttunen (1971); ela pode representar um indivíduo
(existente ou não no mundo real), uma classe de indivíduos, um exemplar,
uma substância, um conceito, etc. De acordo com Webber (1978), entidades
podem ser pensadas como ganchos onde dependurar atributos. (PRINCE,
1981)18
Como se vê na definição acima apresentada, a uma entidade do discurso
necessariamente está atrelado um referente, que pode ser um indivíduo, um objeto, uma classe
de indivíduos, um conceito etc. Porém, ao tratar da questão dos atributos ou predicativos, a
autora frisa que estes não são propriamente entidades referenciais no discurso, mas sim
qualidades ou propriedades das mesmas.
Tomando essa definição como ponto de partida, e considerando que ela torna o grupo
das entidades do discurso uma categoria bastante ampla, nota-se que, de um modo geral,
qualquer sintagma nominal (SN) que não exerça a função de atributo ou predicativo poderá
18
An entity is a discourse-model object, akin to Katteunen’s (1971) discourse-referent; it may represent an
individual (existent or not in the real world), a class of individuals, an exemplar, a substance, a concept, etc.
Following Webber (1978), entities may be thought of as hooks on which to hang attributes.
80
constituir, em princípio, uma entidade do discurso. No entanto, algumas limitações a essa
definição foram sinalizadas por Braga & Oliveira e Silva (1984), especialmente no que
concerne à inclusão ou de não de determinadas categorias no quadro de entidades.
O problema inicial é que essa lista não delimita com precisão a entidade
considerada como tal pela autora. A análise-exemplo fornecida por ela
também não contribui para a solução desta dificuldade. Assim, ao iniciar sua
análise, ela menciona, sem maiores explicações, que “adverbiais”,
expletivos e cadeias reparadoras foram omitidos. Se por um lado,
compreendemos intuitivamente porque as duas últimas fogem à definição de
entidade, por outro lado, sabemos que o tratamento de advérbios, ou melhor,
de sintagmas adverbiais, é matéria delicada. (BRAGA; OLIVEIRA e
SILVA, 1984, p. 35)
Assim, para as referidas linguistas, alguns sintagmas adverbiais seriam facilmente
incluídos no grupo das entidades do discurso, como se verifica em exemplos como: Aqui
também tem meio da gente ir para a praia / Não tem esse que mora no subúrbio / O futebol
tem aquele que nasce com o dom de jogar
Tendo em vista essas considerações iniciais, adotar-se-á, neste estudo, a noção de
entidade do discurso proposta por Prince (1981), excluindo-se as seguintes classes: atributos
ou predicativos, predicativos, expletivos, cadeias reparadoras e sintagmas adverbiais cuja
cabeça não seja nome.
Para classificar as entidades do discurso de acordo com o seu status informacional, a
autora apresenta três grandes categorias: nova (new), evocada (evoked) e inferível
(inferrable), No grupo das entidades novas, é estabelecida uma primeira subdivisão:
totalmente novas ou disponíveis. A segunda subdivisão seria referente ao conjunto das
categorias evocadas, que podem ser, em tal classificação, textualmente evocadas ou
situacionalmente evocadas. Por fim, as entidades inferíveis também são apresentadas em dois
grupos: inferíveis incluidoras e inferíveis não-incluidoras. Vê-se, a seguir, o quadro geral do
status informacional das entidades do discurso.
81
Entidade
nova
totalmente nova
disponível
inferível
incluidoras
não-incluidoras
evocada
textualmente
situacionalmente
QUADRO 10: Classificação do status informacional das entidades do discurso (PRINCE, 1981)
Na categoria das entidades novas, a autora inclui aqueles referentes que estão sendo
introduzidos pela primeira vez no discurso. A entidade pode ser totalmente nova - exemplo
(35) ou disponível - exemplo (36) -, quando se supõe que ela pode já ser familiar ao
ouvinte/leitor, ainda que não tenha sido mencionada anteriormente no discurso. Nota-se, nos
exemplos abaixo, extraídos de gêneros do jornal eletrônico, que, por se tratarem de títulos dos
textos em questão, apresentam entidades novas como principais referentes. O sintagma
exemplificado em (35) introduz o assunto que será mantido ao longo de todo o texto (plano de
saúde) e, por estar sendo reconhecido pela primeira vez no discurso, constitui uma entidade
totalmente nova. Contudo, o sintagma apresentado em (36) claramente se vincula a um
referente já disponível para maior parte dos cidadãos brasileiros, já que se trata de um cantor
renomado da bossa nova, expoente em nossa cultura. Trata-se, então, de uma entidade nova,
mas disponível.
(35)
Preso ao plano de saúde (título do post , no blog da Maria Inês Dolci, Folha de São Paulo,
06/08/08)
(36)
João Gilberto (título de comentário apresentado no painel do leitor, Folha de São Paulo,
06/08/08)
82
No que tange às entidades evocadas, Prince (1981) afirma que são textualmente
evocadas quando já mencionadas anteriormente no texto, podendo ser recuperadas
co-textualmente. Por outro lado, são situacionalmente evocadas quando recuperadas com base
no contexto extralinguístico. Os exemplos (37) e (38) mostram, respectivamente, esses dois
tipos de entidade evocada. No exemplo (37), a forma pronominal ela se refere à colunista da
Folha de São Paulo, Danuza Leão, citada anteriormente no texto. É, portanto, uma entidade
textualmente evocada. Já no exemplo (38), a forma pronominal eu, por se referir a um dos
participantes do discurso, constitui entidade situacionalmente evocada.
(37)
A julgar pelos seus conselhos, ela pode ter mentido bastante em seus artigos anteriores.
(Filosofia, comentário apresentado no painel do leitor, Folha de São Paulo, 05/08/08)
(38)
Eu acho que foi um grande passo mas, prefiro esperar até o fim do ano para comemorar.
(comentário de post, blog da Maria Inês Dolci, Folha de São Paulo, 31/07/08)
Por fim, Prince (1981) apresenta um terceiro grupo, o das entidades inferíveis, que
correspondem a categorias que o falante supõe serem dedutíveis pelo ouvinte/leitor com base
em outras entidades já evocadas ou inferíveis, via raciocínio lógico ou plausível. Se a dedução
for estabelecida a partir de entidades que se encontram num mesmo sintagma nominal, tratase, segundo a autora, de uma categoria inferível incluidora. Tal diferença pode ser
exemplificada nos dois casos de inferência apresentados a seguir. A entidade veiculada pelo
sintagma os brinquedos da promoção, no exemplo (39), é inferível não-incluidora porque a
dedução se faz a partir de uma entidade localizada em sintagma diferente (o Mc Donalds). No
exemplo (40), ao contrário, a inferência é estabelecida dentro de um mesmo sintagma pelas
formas um e os primeiros sinais. Sendo assim, o sintagma os primeiros sinais é entendido
como uma entidade inferível incluidora.
(39)
Já achei absurdo obrigarem o McDonalds a vender separado os brinquedos da promoção
porque os país não sabem educar os filhos e não conseguem dizer NÃO.
(comentário de post, no blog da Maria Inês Dolci, Folha de São Paulo, 05/08/08)
83
(40)
Em nosso país, um dos primeiros sinais do 'sucesso pessoal' está justamente no carro que se
tem.
(comentário no painel do leitor, Folha de São Paulo, 05/08/08)
3.2.2 Os estados de ativação
Chafe (1984), ao abordar a questão do fluxo informacional em narrativas orais,
focalizando o modo como a informação é “embalada” pelo ouvinte, destaca que é bastante
difícil estabelecer uma terminologia satisfatória na área dos estudos de processos cognitivos.
Termos como informação velha ou dada, informação nova, tópico, comentário, entre outros,
têm sido alvo constante de interpretações equivocadas e, por isso, são usados de diferentes
modos. Diante desse problema, o autor prefere substituir as expressões dado e novo pelos
termos correspondentes aos níveis ativado e não-ativado, concebendo-as de modo
essencialmente cognitivo. Ele sugere, também, a noção de acessível ou semi-ativado como um
terceiro tipo nível de ativação, que corresponde a um estágio intermediário entre o dado e o
novo.
Segundo o referido autor, há uma grande quantidade de informação e conhecimento na
mente do falante, sendo que apenas uma pequena parte dessa informação é ativada de uma
única vez. O importante a ser destacado, para ele, é o fato de que a memória de curto prazo
não acumula muita informação. Desse ponto de vista, o termo ativado parece apropriado.
Embora Chafe (1984), em sua abordagem, trate particularmente das chamadas
unidades de entonação em narrativas orais, a sua classificação do fluxo informacional a partir
dos estágios ativado, não-ativado e semi-ativado mostra-se perfeitamente aplicável a outros
tipos de texto, orais ou escritos. Na realidade, o que está em jogo aí é o fluxo de consciência,
aquilo que o falante supõe estar introduzindo na mente dos interlocutores (ouvinte/leitor).
“Uma unidade de entonação é uma sequência de palavras agrupadas em um único e
coerente contorno entonacional, geralmente precedido por uma pausa”
19
(CHAFE, 1984,
p. 22). Para especificar o conteúdo das unidades de entonação a ser considerado, o autor faz
referência às ideias de objeto, evento e propriedades, destacando que estes são conceitos
19
“An intonation unit is a sequence of words combined under a single, coherent intonation contour, usually
preceded by a pause.”
84
distintos que podem residir numa mesma fatia informacional (unidade de entonação) e aos
quais os estágios de ativação estão relacionados. Segundo Chafe (1984), há evidências,
portanto, de que um dado conceito, num dado momento da vocalização, pode estar em
qualquer um dos três estados por ele propostos: ativado, semi-ativado ou não-ativado.
Um conceito ativo seria, na opinião do autor, um tipo facilmente acessado, que está no
foco de consciência do falante/ouvinte. Um conceito semi-ativado, por sua vez, seria um tipo
localizado na consciência periférica do indivíduo, mas que não está sendo diretamente
focalizado. Por fim, um conceito não-ativado é aquele situado na memória de longo prazo,
que não é nem focalizado, nem ativado perifericamente.
Assim, em tal abordagem, o caráter dado é estabelecido na consciência do ouvinte
tanto pelo contexto linguístico como pelo contexto extralinguístico. No primeiro caso, a
informação é considerada dada quando já mencionada previamente no texto. Na segunda
situação, o compartilhamento de um mesmo contexto físico, de um campo perceptível, é o que
define se a informação é dada.
Em comparação às entidades discursivas apresentadas por Prince (1981), nota-se que
as unidades de entonação de Chafe (1984) apresentam uma maior abrangência de conteúdo, já
que incluem, por exemplo, os atributos e eventos. Em outras palavras, aquilo que é ativado
como conceito pode funcionar também com predicado e predicativos. Afinal, a ativação pode
ser dizer respeito a outros elementos.
Outra diferença fundamental entre as duas classificações está na abordagem de
natureza mais cognitiva. Enquanto Prince (1981) destaca claramente os aspectos textuais das
entidades do discurso para categorizar o tipo de informação veiculada, Chafe (1984) considera
o fluxo informacional a partir de processos cognitivos, dos estados de ativação, assumindo
como relevante o tipo de informação introduzida na mente dos interlocutores. .
3.2.3 Sobre as conexões entre referência e inferência
Conforme foi destacado no capítulo introdutório deste trabalho, e assumindo a posição
de Oliveira e Nascimento (2004, p. 287), os falantes desenvolvem uma espécie de
competência discursiva, que corresponde às habilidades e conhecimentos utilizados em
função do processamento discursivo. É justamente na utilização dessas habilidades que os
processos inferenciais são ativados, o que faz com que a depreensão de um referente se dê não
85
apenas por meio dos elementos co-textuais e situacionais (do contexto), mas, sobretudo,
através dos conhecimentos de mundo partilhados entre os interlocutores.
O fato de que o falante recorre a processos inferenciais para chegar aos referentes no
discurso também não é propriamente uma exclusividade do hipertexto. Porém, o que se quer
destacar aqui é que a cadeia hipertextual materializa as redes de inferências, em condições
físicas, por meio dos links e do seu formato não-linear.
No que toca ao fluxo informacional, sugere-se, aqui, que essas redes de inferências
acessadas no processo de referenciação são, sobretudo, as principais vias de mapeamento do
texto nos estágios intermediários entre informação nova e dada. Na visão de Prince (1981)
este seria justamente o espaço das entidades inferíveis, aquelas que são dedutíveis
logicamente a partir de esquemas, por intermédio de outra entidade mencionada anteriormente
no discurso. Para Chafe (1984), tais cadeias cognitivas representam, sobretudo, no estado
semi-ativado da informação, ou seja, elas estão acessíveis na consciência periférica do
indivíduo, mas não diretamente focalizada.
O que mais interessa à discussão aqui proposta é essa diferença de concepção das
inferências no processamento discursivo entre as duas abordagens apresentadas (Prince e
Chafe). Na realidade, entende-se que a teia de inferências no processamento textual (jogo que
envolve participação de ambos interlocutores) está intrinsecamente relacionada à capacidade
do falante de acessar o referente por via indireta, co-textualmente, contextualmente ou
cognitivamente (por meio de conhecimentos de mundo e partilhado). Assim, neste trabalho,
assume-se o pressuposto, seja numa ótica textual-discursiva, seja numa visão cognitivista do
fenômeno comunicativo, de que o processamento do texto é, de fato, uma rede de inferências.
Afinal, a mobilização de diferentes tipos de conhecimento no ato discursivo só á viável tendo
em vista os canais inferenciais que interlocutores são capazes de alcançar.
3.3 HIPERTEXTO E JORNALISMO
Em seu livro Jornalismo Digital, Ferrari (2004) destaca que há uma relação
estratrégica, e até mesmo orgânica, do jornalismo com a rede mundial de computadores, a
Internet. Ela lembra que, para entender a evolução do jornalismo na Internet e todas as suas
particularidades, é necessário voltar no tempo, entender como se deu, inclusive, a criação do
86
ambiente gráfico da rede, o World Wide Web. Como afirma a autora, apesar de ter sido
criada há poucas décadas, já em 2003 a Internet contava com “mais de duzentos milhões de
usuários espalhados pelo mundo.” (FERRARI, 2004, p. 15)20.
Na era da informação, hoje já se pode dizer que a Internet veio para ficar,
principalmente na esfera jornalística, na qual a fluidez do hipertexto casa perfeitamente com a
velocidade da notícia. Essa forma de lidar com o objeto jornalístico, segundo Ferrari (2004,
p. 21), “não é mais uma moda passageira e não haverá retrocesso.” A autora menciona, a esse
respeito, o clássico exemplo da cobertura online dos atentados terroristas de 2001. “A Web –
para a maioria dos cidadãos comuns que estava no trabalho e não contava com um aparelho
de TV ao alcance dos olhos – cumpriu o papel de mídia de massa e deu seu recado com
recorde absoluto de acessos no mundo todo.” (FERRARI, 2004, p. 22)
Ferrari (2004, p. 23) destaca que os sites jornalísticos, em sua maioria, surgiram como
“meros reprodutores do conteúdo publicado em papel”, embora hoje a situação já seja bem
diferente, com veículos bastante interativos e com gêneros específicos da web. O jornal
digital pioneiro foi o americano The Wall Street journal, que, em março de 1995, lançou
Personal journal. Tratava-se de um jornal digital personalizado, chamado pela mídia de
“jornal com tiragem de um exemplar”, no qual o assinante poderia ter acesso, na tela do
computador, aos conteúdos escolhidos de acordo com suas áreas de interesse, como em um
portfólio pessoal. Obviamente, esta era apenas uma forma incipiente de interação com o leitor
do jornal, já que não se apresentavam, ainda, todos os recursos de hipermídia hoje
desenvolvidos na atual versão online do The Wall Street journal.
Se compararmos a quantidade de leitores da versão impressa do The Wall
Street journal com a dos leitores digitais, comprovamos que o volume online
ainda é muito menor, mas a distribuição de notícias via Web representa uma
tendência importante, se levarmos em conta sua capacidade de segmentar o
público leitor. A Web começou, assim, a moldar produtos editoriais
interativos com qualidades convidativas: custo zero, grande abrangência de
temas e personalização. (FERRARI, 2004, p. 23)
20
A Internet foi concebida em 1969, quando o Advanced Research Projects Agency, uma organização ligada ao
Departamento de Defesa norte-americano, desenvolveu a Arpanet, rede nacional de computadores, que mais
tarde , na década de 80, iria configurar o cenário da World Wide Web. (FERRARI, 2004, p. 15-16)
87
No Brasil, o primeiro jornal eletrônico de que se tem notícia é o Jornal do Brasil, que,
após completar 104 anos de publicação impressa, lança, em maio de 1995, a sua versão
eletrônica. Logo depois vieram outros importantes jornais nacionais em sua versão online: O
Globo, das Organizações Globo, O Estado de São Paulo e Jornal da tarde, do grupo Estado, e
Folha de São Paulo, do grupo Folha.
Para entender o surgimento dos portais brasileiros, na segunda metade da
década de 90, é necessário olhar um pouco a história da imprensa brasileira,
composta por grandes conglomerados de mídia, na maioria oriundos de
empresas familiares. Esses mesmos grupos detêm, também, a liderança entre
os portais - por isso são informalmente chamados de “barões da Internet
brasileira.” (FERRARI, 2004, p. 25)
3.3.1 Os gêneros jornalísticos digitais e a estabilização do enunciado
Segundo Ferrari (2004, p. 41), uma definição que já há algum tempo tem ganhado
terreno no meio acadêmico é o ciberjornalismo. “Criar e manter um blog, mediar chats,
escrever em um fórum, enfim, todas as tarefas que envolvem a criação de textos para os
produtos do meio podem ser chamadas de ciberjornalismo”.
Nesse contexto, percebe-se que os elementos do conteúdo on-line vão muito além do
que é apresentado no jornal impresso, envolvendo, além de textos, fotos e gráficos, sequências
de vídeo, áudio e ilustrações animadas. Todos esses recursos terminam por definir novas
práticas comunicativas de escrita jornalística na web, influenciando no surgimento de novos
gêneros relacionados a determinadas funções e a variadas formas de apresentação do
conteúdo. Chega-se, assim, à noção de hipergênero, defendida por autores como Marcuschi
(2005b) e Bonini (2003) como um tipo especial de suporte no qual convergem diferentes
gêneros, sendo o jornal considerado, em uma das hipóteses desta pesquisa, exemplo
prototípico. “Entendo por hipergênero os suportes de gêneros que são, ao mesmo tempo,
gêneros que se compõem a partir de outros gêneros, como é o caso dos jornais, das revistas,
de vários tipos de home-pages “(BONINI, 2003, p. 210).
88
Assim, as atuais práticas comunicativas associadas ao jornalismo digital têm permitido,
nos últimos anos, a estabilização de gêneros como o blog, plantão de notícias, enquete e o
recente twitter. Serão focalizados, neste capítulo, dois desses gêneros digitais – o blog e o
twitter – com vistas à elucidação de aspectos diferenciais e, também, de pontos de
convergência entre duas “formas relativamente estáveis de enunciado” (BAKHTIN, 2003).
3.3.1.1 O blog jornalístico: post e comentários na interação com o leitor
Um blog (contração do termo web log21) corresponde um site cuja estrutura permite a
atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos ou posts. Estes são, em geral,
organizados de forma cronológica, tendo como foco a temática proposta no blog, podendo ser
escritos por um número variável de pessoas, de acordo com a política do blog. No caso dos
blogs jornalísticos, a tendência observada é de sites assinados por colunistas, cada um deles
sendo responsável por uma espécie de blog temático (política, economia, cinema etc.)
Em geral os blogs jornalísticos fornecem comentários ou notícias sobre um assunto
em particular, de acordo com temas abordados na versão on line do jornal. Um blog típico de
jornal combina texto, imagens e links para outros blogs, páginas da Web e mídias
relacionadas a seu tema. A capacidade de leitores deixarem comentários de forma a interagir
com o autor e outros leitores é uma parte importante de muitos desses sites, contituindo,
assim, aspecto essencial da sua textualidade.
É importante ressaltar que, no que tange à sua natureza semiótica, embora os blogs
sejam primariamente textuais (com escrita virtual), pelo fato de boa parte deles estar focada
em temas exclusivos como arte, fotografia, vídeos, música ou áudio, eles terminam por formar
uma ampla rede de mídias sociais e semioses.
Em (41) tem-se um exemplo de blog jornalístico com todas as características acima
mencionadas: (a) assinatura de um colunista do jornal (Miriam Leitão, no Jornal O Globo, em
12/05/11); (b) ordem cronológica de apresentação (com os posts mais recentes apresentados
no início da página)22; (c) foco temático (neste caso, política e economia são os assuntos
21
O termo weblog foi criado por Jorn Barger em 1997. A abreviação blog, por sua vez, foi criada por Peter
Merholz, que desmembrou a palavra weblog para formar a frase we blog ("nós blogamos") na barra lateral de
seu blog Peterme.com, em 1999.
22
Em função do tamanho da página na web, o aspecto da ordem cronológica só pôde ser registrado (capturado
em imagem) a partir de uma das datas de publicação, que aparece no canto superior direito da página.
89
centrais); (d) correspondência com os assuntos tratados nas edições mais recentes do jornal
eletrônico (o código florestal, no exemplo em questão); (e) interação com o leitor a partir da
permissão de comentários no post, conforme convite proposto no link comente; (b) natureza
multissemiótica, envolvendo, ao mesmo tempo, porções textuais escritas e vídeos (com
trechos do comentário da colunista no programa de televisão Bom dia Brasil).
(41) Blog MiriamLeitão.Com (jornal eletrônico Globo.com)
3.3.1.2 O twitter jornalístico: a notícia em 140 caracteres
Criado em março de 2006, o Twitter é um serviço de comunicação virtual idealizado
por uma empresa de podcasting de São Francisco, nos Estados Unidos (O’REILLY;
MILSTEIN, 2009, p. 13). No Brasil, o uso dessa rede social é relativamente recente, tendo
apresentado destaque maior na mídia a partir de 2009, quando não só artistas e celebridades,
mas também jornais e demais veículos de comunicação passaram a usar o microblog como
espaço complementar da informação.
90
Atualmente, o espaço do twitter na versão eletrônicas dos principais jornais brasileiros
tem sido notório, sendo um dos mecanismos mais utilizados pelos jornais para interagir com o
seu leitor digital. As páginas jornalísticas do twitter podem ser associadas ao twitter oficial do
jornal - que geralmente lista as principais notícias com links de acesso (tal com um plantão de
notícias) – ou ao twitter dos colunistas, que, além de promover a comunicação mais direta
com o leitor, divulga os posts publicados em seus blogs temáticos (de política, economia,
cultura, informática etc.)
Em termos estruturais e discursivos, analisado enquanto gênero textual, o Twitter
apresenta semelhanças com o já conhecido blog – e por isso é chamado de “microblog” por
vários estudiosos da comunicação -, no entanto revela algumas peculiaridades em seu
funcionamento. Não é intenção, aqui, esmiuçar todas as características desse gênero virtual,
mas apenas se pretende apresentar aquelas que se podem mostrar relevantes para se
estabelecer distinção com os demais gêneros digitais do jornal eletrônico, a exemplo do blog.
Sendo assim, seis aspectos hipertextuais parecem particularmente definir o twitter enquanto
gênero: (a) limite de 140 caracteres; (b) uso de RT´s (retweets); (c) mensagem aos
interlocutores por meio de link no formato @___; (d) criação de etiquetas (hashtags) por
meio de link no formato #___; (e) atualização da página home (tweets). (f) envio de direct
messages (DMs), que têm acesso limitado ao usuário da conta. Todos esses aspectos podem
ser vistos em (42), exemplo extraído da página do twitter da colunista Miriam Leitão, do
jornal eletrônico Globo.com, no dia 28/06/11.
(42) Twitter da colunista Mirian Leitão (@MiriamLeitaoCom)
91
Em suma, pode-se dizer que, a partir dos avanços teóricos no debate acerca dos
gêneros discursivos, admite-se atualmente, de modo mais ou menos consensual e seguindo a
tendência bakhtiniana, que os gêneros constituem entidades dinâmicas, reforçadas e
relativamente estabilizadas no contexto das práticas comunicativas e caracterizadas por um
conteúdo temático, uma estrutura composicional e um estilo.
O estudo dos gêneros digitais, nas recentes teorias linguísticas do texto e do discurso,
parece propiciar, além da possibilidade de classificação de novos gêneros, um caminho
alternativo na análise e caracterização da composição, conteúdo temático e estilo do
enunciado proposto por Bakhtin (2003). A esse respeito, é válido considerar a relevância das
práticas comunicativas associadas ao domínio jornalístico no processo de estabilização desses
gêneros digitais, que, como se viu através dos gêneros blog e twitter, assumem funções
específicas no contexto do jornal eletrônico.
A análise proposta nessa perspectiva dos gêneros digitais pode, sem dúvida, conduzir
novos debates e a resolução de questões pertinentes ao escopo da Linguística Textual, da
Análise de Gênero e demais campos teóricos interessados no estudo dos gêneros discursivos.
Com base no que foi abordado neste capítulo sobre o fluxo informacional no
hipertexto, observou-se, também, a necessidade de atualização das abordagens que discutem o
status da informação das entidades do discurso. Se a clássica taxionomia dado/novo foi
reformulada e ampliada por Prince (1981) e Chafe (1984), parece o momento atual propício a
uma reanálise dessas duas perspectivas, à luz das teorias cognitivas e da linguística textual.
É essencial, ainda, a reflexão e discussão acerca dos limites da inferência para a compreensão
do tipo de informação apresentado pelas entidades no processamento discursivo. Tal debate,
que já faz parte das análises linguísticas funcionalistas mais recentes, pode ajudar, de modo
significativo, a desvendar os caminhos da construção textual do sentido.
Vale ressaltar, enfim, que os gêneros digitais, e, mais propriamente, as suas
especificidades materiais no hipertexto, constituem atualmente um importante meio de se
investigar o processamento linguístico da informação e as próprias bases da textualidade. São,
portanto, terreno fértil para futuras descobertas linguísticas.
92
4 MAPEAMENTO DE SENTIDOS NO HIPERTEXTO: BREVE INCURSÃO NA
TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS
As estruturas de conhecimento armazenadas
na memória permanente têm papel decisivo na
construção do significado. Na verdade, são
essas estruturas que nos permitem explicar
por que a interpretação envolve sempre mais
informação do que aquela diretamente
codificada na forma linguística.
(Lilian Ferrari)
Fauconnier e Sweetser (1996) focalizam, em sua abordagem teórica, a relação entre
estruturas linguísticas e construções cognitivas por meio de espaços mentais. Tal perspectiva,
segundo os autores, é vantajosa tanto para os estudos científicos da linguagem como para as
ciências cognitivas. Com base na teoria de espaços mentais pode-se, inclusive, reconhecer e
analisar os diferentes graus/tipos de complexidade cognitiva por ocasião do processamento
discursivo. Concebendo-se os espaços mentais como domínios que revelam determinados
esquemas cognitivos relativos às nossas experiências, sendo eles ativados por “pistas
linguísticas”, torna-se crucial, aqui, o entendimento da dependência entre contexto e cognição,
bem como dos vários efeitos produzidos a partir dessa relação.
Em um mundo globalizado, onde se torna cada vez mais presente a comunicação
mediada por computador – denominada por Crystal (1995) de netspeak – quais implicações
pode apresentar a teoria dos espaços mentais na análise do processamento cognitivo de cadeia
hipertextual? Qual(is) domínio(s) de referência é(são) criado(s) por meio de links e nós do
hipertexto? Qual(is) o(s) efeito(s) produzido(s) pelo atualmente conhecido contexto virtual?
Os gêneros digitais emergentes revelam formas específicas de ativação dos espaços mentais?
Todas essas questões fazem parte do estudo que aqui se pretende levantar acerca de esquemas
cognitivos que podem ser ativados com base em ambientes virtuais de comunicação.
Obviamente, dada a necessidade de se visualizar a cognição atrelada à realidade
sociointeracional do falante, a vertente teórica do cognitivismo experiencialista parece ser a
mais adequada para a investigação do referido fenômeno. Também servirão de apoio ao
estudo algumas noções apresentadas pelas recentes teorias do texto para se referir ao universo
da comunicação em ambiente virtual, quais sejam: hipertexto, links, nós, comunidades
93
virtuais etc. Na análise dessa conexão entre mapeamento cognitivo e processamento da
informação no hipertexto, é importante destacar, ainda, que os domínios referenciais que
envolvem a depreensão dos objetos do discurso (MONDADA; DUBOIS, 2005) - mais
precisamente, as anáforas indiretas ou associativas – constituirão nosso principal alvo de
interesse.
4.1 A LINGUÍSTICA COGNITIVA E A TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS
Fauconnier (1997, p. 1), na teoria dos espaços mentais, parte de uma ideia básica: o
mapeamento entre domínios mentais está no centro da faculdade humana de produzir,
transferir e processar significado. Ele destaca que, embora simples, essa ideia é poderosa de
duas formas: a) é capaz de dar conta de procedimentos e princípios para uma grande escala de
fenômenos argumentativos e de significado, incluindo projeção conceitual, integração
conceitual ou blending, analogia, referência e contrafactuais; 2) pode fornecer insights sobre a
organização de domínios cognitivos ao quais não temos nenhum acesso direto. Além disso,
conforme lembra o autor, esse estudo da construção do significado se refere às operações
mentais complexas em alto nível que se aplicam dentro e entre domínios quando o indivíduo
pensa, age e se comunica.
Um dos principais objetivos da linguística cognitiva tem sido especificar a construção
de significado, suas operações, seus domínios e como estes são refletidos na linguagem.
Pesquisas nessa área têm desvendado, nos últimos anos, os misteriosos esquemas cognitivos
por trás da gramática cotidiana, a riqueza dos sistemas conceituais subjacentes e a
complexidade da configuração dos espaços mentais no discurso comum. Uma recente
descoberta tem sido a de que “a linguagem visível é apenas a ponta do iceberg da invisível
construção do significado que se dá quando nós pensamos e falamos”
23
(FAUCONNIER,
1997, p. 1) Essa cognição “de fundo” ou “escondida” define nossa vida mental e social e,
nesse contexto, a linguagem é apenas uma das suas manifestações externas proeminentes.
Fauconnier (1997, p. 2) ressalta que a ciência procede indiretamente; ela correlaciona
fenômenos da superfície interpretando-os de modo específico, num nível observacional,
criando hipóteses acerca das relações mais profundas, e mais gerais, subjacentes a tais
23
“that visible language is only the tip of the iceberg of invisible meaning construction that goes on as we think
and talk.”
94
fenômenos. Com a ciência cognitiva não é diferente. Embora cérebros estejam fisicamente
próximos e acessíveis, muito do que se pode supor sobre a sua organização, num nível
neurobiológico fundamental, ou mesmo num nível mais abstrato da cognição, é apreendido
indiretamente, pela observação de vários tipos de entrada e saída (input e output).
No caso da mente/cérebro humano, um tipo de sinal é especialmente penetrante e
livremente acessível: a linguagem. Como se sabe que a linguagem está intimamente ligada a
importantes processos mentais, tem-se, em princípio, uma rica e virtualmente exaustiva fonte
de dados para se investigar alguns aspectos relevantes dos fenômenos cognitivos.
Mas, como lembra Fauconnier (1997), essa fonte de dados é também, paradoxalmente,
um empecilho. Podem a linguagem e o pensamento servir, ao mesmo tempo, como
instrumento e objeto de análise? O problema de tal implicação metodológica é que, como os
seres humanos estão inseridos no contexto da vida diária, tem-se sempre uma série de noções
baseadas no senso comum a respeito do que eles pensam e falam - noções que, apesar de úteis
em algum sentido, são também bastante errôneas e facilmente questionáveis no processo de
investigação científica.
Outro desafio das ciências cognitivas é, segundo o referido autor, tornar aparente o
extraordinário mistério da linguagem. Ele afirma que, apesar de os dados linguísticos serem
uma fonte rica e estruturada de sinais emanando da mente/cérebro, estes são frequentemente
subestimados cientificamente e socialmente como uma poderosa veia de estudo da mente
humana. Na verdade, é correto dizer que a pesquisa linguística tem focalizado muito mais a
estrutura do sinal linguístico em si mesmo do que as construções não-linguísticas às quais
esse sinal está conectado. É correto dizer, por outro lado, que a pesquisa não-linguística tem
dado pouca atenção à natureza básica (estrutural) das construções do significado e às suas
conexões com a forma sintática.
A linguística moderna, mais especificamente a de cunho estruturalista ou gerativista,
como destaca Fauconnier (1997, p. 4), tem tratado a linguagem como objeto de estudo
autônomo. Não está preocupada, assim, em usar os dados linguísticos dentro de um projeto
mais amplo para se ter acesso às ricas construções de significado por meio das quais as
línguas operam. Para os linguistas interessados na construção dinâmica do significado, a
clássica versão da autonomia da forma linguística parece apresentar lacunas quando aplicada
às línguas naturais. Reconhece-se, cada vez mais, que julgamentos de gramaticalidade e
aceitabilidade são dependentes, em vários graus, de muitos traços ligados ao contexto,
95
significado e uso. E essa importante propriedade das línguas naturais teve uma simples
consequência para a pesquisa de base estruturalista: ao passo que a linguística avançava no
estudo da forma, tropeçava-se cada vez mais nas questões do significado.
Segundo Fauconnier (1997, p. 8), o certo é que os dados linguísticos “sofrem” quando
restritos à língua, pela simples razão de que as interessantes construções cognitivas
subjacentes ao uso linguístico têm a ver com situações completas que incluem conhecimentos
de mundo altamente estruturados, vários tipos de argumentação, construção on-line de
significado e negociação do significado.
No que tange aos estudos mais recentes, o referido autor ressalta que hoje os linguistas
começam a se separar das concepções anteriores e comuns a respeito de como os homens
argumentam, falam e interagem e, também, passam a identificar alguns dos modelos,
princípios de organização e mecanismos biológicos que podem entrar em cena. O que se
descobre em tais modelos, por sua vez, é bastante surpreendente, indo de encontro às crenças
do senso comum e às altamente sofisticadas teorias formais.
4.1.1 Tipos de mapping
De um modo geral, pode-se dizer que a discussão a respeito da importância do estudo
do significado e do desenvolvimento das ciências cognitivas tem a ver com a teoria dos
espaços mentais, segundo a qual o mapeamento (mapping) entre domínios cognitivos se
estabelece quando nós pensamos e falamos. Muito frequentemente esses mappings, sendo
desconhecidos na sua totalidade, eram relegados à posição de fenômenos periféricos, tais
como metáfora ou analogia. Recentemente, contudo, há uma quantidade suficiente de
evidências do seu papel central nas línguas naturais e na argumentação diária. Três tipos
básicos de mappings serão aqui ilustrados: projeções, funções pragmáticas e esquemas.
Na projeção, parte da estrutura de um domínio é projetada em outro. A ideia básica é a
de que, para falar e pensar sobre alguns domínios (domínios alvo), o falante usa a estrutura e o
vocabulário de outros domínios (domínios fonte). Algumas dessas projeções são usadas por
todos os membros de uma cultura, como, por exemplo, em inglês, na metáfora do tempo
como espaço (Christmas is approaching / The weeks go by).
96
Os mappings tornam-se culturalmente e lexicalmente enraizados e, como Turner
(1998) assinala, eles na verdade definem a estrutura ou categoria para a linguagem e cultura.
Mais curiosamente ainda é o fato de que, apesar de o vocabulário tornar o mapping
transparente, os falantes em geral não se dão conta do mapeamento durante o seu uso e
costumam se sentir surpresos quando o fenômeno lhes é apontado. Em tais casos, o mapping,
ainda que cognitivamente ativo, é opaco e a projeção de um domínio em outro é, de certa
forma, automática. As projeções podem, também, ser estabelecidas localmente, em contexto
específico, sendo então percebidas não propriamente como algo pertencente à língua, mas
como algo “criativo”, como parte da argumentação e construção discursivas. Pode-se citar
como exemplo, no discurso publicitário, a projeção do domínio do corpo feminino no
domínio de bebidas ao se usar a metáfora da cerveja como mulher (Uma loira gelada)
Outro importante tipo de conexão entre domínios são os mappings de função
pragmática. Neste caso, os dois domínios em questão, que podem ser estabelecidos
localmente, tipicamente correspondem a categorias de objetos que são “mapeados” por meio
de uma função pragmática. Por exemplo, autores são vinculados aos livros que eles escrevem,
os pacientes de hospital são associados à doença a cujo tratamento estão sendo submetidos
etc. (A gastrite úlcera no quarto 12 deseja um café). Esse tipo de mapping exerce um papel
importante na estruturação do conhecimento e fornece meios de identificar elementos de um
domínio, via sua contraparte, em outro. Fauconnier (1997) afirma, também, que os mappings
de função pragmática, assim como os de projeção, são frequentemente responsáveis por
mudanças semânticas ao longo do tempo.
Um terceiro caso de mapping são os esquemas, que operam quando um esquema geral,
frame ou modelo cognitivo é usado para estruturar uma situação em dado contexto. Para
Langacker (1987, 1981, apud FAUCONNIER, 1997, p.11), construções gramaticais e itens do
vocabulário podem ativar, por exemplo, esquemas de significado.
De um modo geral, pode-se dizer que os mappings operam para construir e relacionar
espaços mentais, que Fauconnier (1994) define como estruturas parciais que são produzidas
quando pensamos e falamos, permitindo um fracionamento lógico de nosso discurso e
estruturas de conhecimento. Ao se dizer, por exemplo, Lis acha que Ricardo é maravilhoso,
tem-se um espaço mental para as crenças de Lis, com uma estrutura mínima explícita
correspondente a Ricardo é maravilhoso. Ao dizer No ano passado Riçado foi maravilhoso,
nós construímos um espaço para o último ano entrelaçado ao espaço de crenças, que por sua
97
vez, é entrelaçado ao espaço base24. Nesse caso, a expressão “no ano passado” funciona como
um space builder25 que será responsável pela construção de um novo espaço mental.
O autor menciona, também, que espaços mentais são estruturados por MCI (modelos
cognitivos idealizados) e, sendo assim, eles podem ser vistos como uma espécie de esquema.
Tomemos como exemplo o frame ou MCI “compra e venda” apresentado a seguir, incluindo
comprador, vendedor, mercadoria, concorrência, preço, etc. Se uma sentença como
Jack compra ouro na mão de Bill ocorre no discurso, e se Jack, Bill e ouro são representados
pelos elementos a, b e c em um espaço mental, então esses elementos serão mapeados nos
pontos correspondentes do frame “compra e venda”, como se vê no esquema a seguir. O
simples uso de expressões definidas como “o vendedor” identifica papéis no frame
correspondente, fazendo com que o mapping entre o frame e o espaço seja direto.
a.
comprador
b.
c.
vendedor
mercadoria
circulação
preço
...
etc.
Vale ressaltar, enfim, que os três tipos de mapping aqui mencionados – projeção,
função pragmática e esquema – são centrais a qualquer interpretação semântica e pragmática
da linguagem e de sua construção cognitiva. Uma vez que se atenta para esses processos, eles
nos mostram uma série de lugares inesperados. Fauconnier (1997) centraliza sua análise nos
mapeamentos de espaços mentais, os quais estabelecem ligações de espaços mentais ativados
no discurso e dão conta de propriedades lógicas de vários tipos de fenômenos linguísticos tais
como metáforas, analogias, metonímias, contrafactuais, hipóteses, quantificações, uso
atemporal do quando, tempos da narrativa, dêiticos, discurso direto e indireto, etc.
24
25
Espaço base representa um ponto de vista ou espaço mental a partir do qual outros espaços podem ser
ativados.
Os space builders, segundo Fauconnier e Sweeter (1996, p. 10), correspondem a mecanismos usados pelo
falante (na forma de expressões lingüísticas contextualizadoras) que servem para induzir o ouvinte a
estabelecer um novo espaço mental.
98
4.2 DOMÍNIOS MENTAIS NO HIPERTEXTO
Como foi visto no capítulo 3, os links e os nós que caracterizam a rede hipertextual
sinalizam, sobretudo, as possibilidades de leitura, de acordo com o que é disponibilizado pelo
autor na organização de sua tessitura textual. (CAVALCANTE, 2005, p. 166) Essa espécie de
“mapeamento” de construção de sentido não delimita o caminho exato que o leitor irá seguir
naquele ambiente virtual específico. Em outras palavras, o autor somente sugere, por meio de
links, numa espécie de simulacro, as direções do sentido que será percorrido, ativado. De
certo modo, o leitor passa a assumir papel semelhante ao do autor.
É interessante notar, ainda, que, ao mesmo tempo em que evidenciam as direções de
leitura a serem tomadas, os links e nós do hipertexto também são limitados pelo autor, ou seja,
ele não sugere “qualquer
texto’ como trilha a ser seguida. Segundo Cavalcante (2005,
p. 168), “a discussão sobre a natureza do hipertexto permite pensar o próprio texto em sua
materialidade, bem como as estratégias de seu processamento ou do simulacro dele”.
Uma vez que, dentro dos estudos linguísticos, o hipertexto é visto como uma forma de
se entender a construção de sentidos em seu processamento, assume-se, neste estudo, a
possibilidade de se relacionar o mapeamento não-linear dos links e nós (blocos
informacionais) ao mapeamento de domínios mentais. Sendo assim, parte-se do princípio de
que a informação processada na rede hipertextual, em seus diversos gêneros digitais, depende
essencialmente dos esquemas cognitivos que são ativados, mais precisamente dos espaços
mentais que se relacionam no ato discursivo.
No exemplo apresentado a seguir – extraído de um blog de jornal eletrônico – tem-se,
já a partir do título Transforme a brincadeira em arte, o mapeamento de espaços mentais por
projeção. Um domínio mental é projetado em outro por meio de uma relação metafórica (a
informática como arte). Vê-se que o mapping é reforçado ao longo do texto por meio de
Expressões como “você pinta a tela e, de acordo com o mouse, muda a cor da tinta e a
espessura do traço”.
99
(43)
Transforme a brincadeira em arte
Jackson Pollock
Que
tal
criar
obras
de
arte
brincando?
Em
http://www.jacksonpollock.org/ você pinta a tela e, de acordo com o
mouse, muda a cor da tinta e a espessura do traço. O site é inspirado
na obra de Jackson Pollock, que trocou os pincéis por ferramentas
como latas furadas e pedaços de madeira para compor suas obras,
consideradas
importantes
exemplares
da
pintura
do
século
20. (STEFHANIE PIOVEZAN)
Escrito por Rafael Capanema às 11h22
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(exemplo extraído do Blog Circuito Integrado, da versão online da
Folha de São Paulo, em 29/11/2008)
Por outro lado, o mapping também é reforçado na materialidade do hipertexto a partir
de links e nós que sinalizam e compõem, respectivamente, os pontos de acesso e os blocos de
informação. Dito de outra forma, ao clicar no link sinalizado pelo autor - site que remete a um
programa que simula uma tela de pintura – o leitor é conduzido a outro bloco informacional
(nó) e estabelece, igualmente, o mapping entre esses dois espaços mentais (informática/arte).
Um breve esquema dessa projeção conceitual entre domínios pode ser visto a seguir. Em tal
exemplo, elementos de um domínio – tela, cor, traço – são projetados em outro domínio.
100
(44)
4.2.1 Gêneros digitais: novas formas de mapeamento do sentido
Conforme lembra Marcuschi (2008, p. 198), “mais do que em qualquer outra época,
hoje proliferam gêneros novos dentro de novas tecnologias, particularmente na mídia
eletrônica (digital)”.
E, concordando com Erickson (1997), esse autor enfatiza que “a
interação online tem o potencial de acelerar enormemente a evolução dos gêneros, tendo em
vista a natureza do meio tecnológico e os modos como se desenvolve”.
Nesse contexto, como já se assinalou anteoriormente neste trabalho, mesmo que os
gêneros emergentes se apresentem muitas vezes como projeções ou transmutações de suas
contrapartes prévias (e-mail/carta pessoal, chat/conversação espontânea, conferência
online/reunião. etc.), existe, ainda, a possibilidade de diferenciação de tais gêneros (ditos
virtuais) em relação às suas contrapartes reais. Marcuschi (2008, p. 198) frisa, também, que,
ao concebermos o gênero enquanto texto concreto, histórica e socialmente situado,
“relativamente estável” do ponto de vista estilístico e composicional, que funciona como
instrumento comunicativo com propósitos específicos, é fácil perceber que um novo meio
tecnológico (o virtual), que interfere em boa parte dessas condições, deve também interferir
na natureza do gênero produzido. O chat virtual, por exemplo, se comparado com a
conversação espontânea, possui particularidades em sua produção e sofre, naturalmente,
adaptações do meio.
101
Do ponto de vista dos gêneros realizados, Crystal (2005) ressalta que a Internet
transmuta de maneira bastante radical os padrões comunicativos existentes, desenvolvendo
alguns gêneros realmente novos. E, ainda segundo esse autor, a relevância de se tratar dos
gêneros digitais reside em pelo menos quatro aspectos: (1) são os gêneros em franco
desenvolvimento e fase de fixação com o uso cada vez mais generalizado; (2) apresentam
peculiaridades formais próprias, não obstante terem contrapartes em gêneros prévios; (3)
oferecerem a possibilidade de se rever alguns conceitos tradicionais a respeito da
textualidade; (4) mudam sensivelmente nossa relação com a oralidade e a escrita, o que nos
obriga a repensá-la.
Em sentido estrito, pode-se dizer que a rede hipertextual dos diversos gêneros digitais
constitui um ambiente revelador de poderosas estratégias de mapeamento de sentidos
(cognitivas) das quais os falantes lançam mão no ato comunicativo. Isso vale, naturalmente,
tanto para os gêneros que possuem uma contraparte real como para aqueles que se apresentam
como formas peculiares ao meio virtual.
Como foi visto no capítulo 3 deste trabalho, levando-se em conta o amplo universo
dos gêneros jornalísticos, vê-se, por exemplo, que nesse domínio se proliferam gêneros
digitais e impressos, de modo que estes podem ter ou não correspondentes em relação ao
meio. Artigo, notícia, crônica, editorial são exemplos de gêneros jornalísticos que se realizam
tanto no jornal impresso como no jornal on-line. Por outro lado, blog, twitter, plantão de
notícias e fórum de discussões se materializam especificamente no meio digital e, constituem
assim, gêneros novos nesse amplo domínio discursivo.
Resta saber, enfim, em que medida esses gêneros emergentes contribuem para o
surgimento de novas formas de mapeamento do significado e construção do sentido. A esse
propósito, a interdisciplinaridade entre os estudos do texto e as teorias cognitivas parece
constituir fundamental ponto de partida na resolução de questões polêmicas.
102
4.2.2 Referenciação e mapeamento cognitivo
Pretende-se focalizar, nesta seção, os procedimentos de estabilização discursiva
envolvidos nas estratégias de referenciação anafórica, mais especificamente na segunda
perspectiva – a da referenciação indireta – por parecerem esclarecedores da ampla rede
semântica cognitiva ativada por ocasião do processamento textual-discursivo.
Conforme foi visto no capítulo 1, para Marcuschi (2005a), as anáforas indiretas
assumem as seguintes características: (1) são geralmente constituídas por expressões nominais
definidas, indefinidas e pronomes interpretados referencialmente, sem que lhes corresponda
um antecedente (ou subsequente) explícito no texto; (2) correspondem a uma estratégia
endofórica de ativação de referentes novos e não de reativação de referentes já conhecidos;
(3) frequentes em todos os gêneros textuais, podem ancorar cognitivamente em expressões
nominais antecedentes que lhes dão suporte; (4) como forma de progressão multilinear e não
direta, reintroduzem aspectos sociocognitivos em interface com a semântica e a pragmática;
(5) são casos de referência textual, isto é, de construção, indução ou ativação de referentes no
processo textual-discursivo que envolve atenção cognitiva conjunta de seus interlocutores; (6)
não dependem de uma congruência morfossintática.
A título de ilustração, tem-se a seguir um pequeno exemplo de anáfora indireta,
extraído do jornal O Globo, no plantão de notícias da sua versão eletrônica, em 06/01/2009.
No caso apresentado, a expressão fenômeno é inferida a partir de pistas textuais inespecíficas,
uma vez que esse SN não retoma explicitamente nenhuma informação prévia, mas é ativado
por algumas delas, fundamentais para compor a descrição implícita do referente: esportes,
alvo de elogios. Sendo assim, a anáfora indireta fenômeno é coerente com os elementos do
texto e encontra aprovação pelo conhecimento culturalmente compartilhado, resgatável pela
memória de longo prazo, ainda que não exista o critério correferencial. Ao SN fenômeno
agregam-se, portanto, informações de caráter enciclopédico e cultural que tornam possível a
identificação indireta de um referente preciso: o jogador de futebol Ronaldo.
(45)
00h09m | Esportes
Fenômeno evolui e já é alvo de elogios
103
Ao comparar anáforas associativas e anáforas indiretas, nota-se que a distinção nem
sempre se dá de modo pacífico, se é que tal distinção efetivamente existe, pois ambas são
estratégias de referenciação com limites tênues e, com frequência, idênticos procedimentos
são ativados no funcionamento da língua, quando se trata de anáforas sem antecedente
explícito.
Marcuschi (2005a) afirma que as anáforas associativas são parte substantiva das
anáforas indiretas e que estas constituem um fenômeno mais amplo e mais abrangente do qual
a anáfora associativa faz parte. Assim, a partir da constatação de Marcuschi (como foi visto
no capítulo 1), é possível estender o campo para outras modalidades indiretas de expressão
anafórica como, por exemplo, as anáforas esquemáticas e até as nominalizações, uma vez que
essas construções não retomam pontualmente expressões materializadas na superfície textual.
Quanto à noção de anáfora associativa que será aqui adotada – considerando que esse
tipo de referenciação indireta tem sido abordado de maneira diversificada por diferentes
pesquisadores -, segue-se a linha de Apothéloz. (2003), representante da visão mais ampla,
segundo a qual a anáfora associativa é toda anáfora não-correferencial. Dessa forma, em tal
perspectiva, todas as anáforas indiretas seriam também associativas. E esse dado é oposto ao
que preconiza Marcuschi (2005a), quando afirma que as anáforas associativas constituem um
subtipo de anáforas indiretas.
Apothéloz (2003, p. 75) afirma que a anáfora associativa pode ser concebida, de um
modo geral, como sintagmas nominais definidos que apresentam simultaneamente as duas
características seguintes: de um lado, certa dependência interpretativa relativamente a um
referente anteriormente (às vezes posteriormente) introduzido ou designado; (b) de outro lado,
a ausência de correferência com a expressão que introduziu ou designou anteriormente (às
vezes, posteriormente) esse referente. Um exemplo característico desse tipo de anáfora e que
foi comentado em diversos trabalhos sobre o fenômeno anafórico é a expressão a igreja no
contexto seguinte:
(46) Nós chegamos a uma cidade. A igreja estava fechada.
104
Segundo Hawkins (1977a, apud APOTHÉLOZ, 2003, p. 76), o mecanismo da anáfora
associativa (da associação propriamente dita) se baseia em conhecimentos gerais
supostamente partilhados, “exprimíveis sob a forma de proposições que colocam em relação
referências genéricas” (por exemplo: uma cidade tem uma igreja). Dito de outra forma, a
anáfora associativa funciona sobre os estereótipos – como lembra Kleiber (1990a, apud
APOTHÉLOZ, 2003, p. 76) – e, portanto, atua como procedimento de estabilização
discursiva.
No caso do exemplo acima, a depreensão do objeto (referente) está intimamente ligada
a um processo de estereotipação/estabilização com base na cadeia associativa cidade-igreja,
considerando-se que tais expressões, tomadas separadamente e em contextos variados –
passariam a assumir um distanciamento em relação à referência genérica estereotipada,
revelando a sua instabilidade constitutiva.
E como esses procedimentos de estabilização discursiva presentes na anáfora
associativa podem se vincular à estratégia de mapeamento entre domínios mentais? Como foi
assinalado anteriormente, os mappings são estabelecidos para criar e relacionar espaços
mentais, fazendo que, na expressão discursiva, haja um fracionamento lógico da informação.
Isso, evidentemente, só é possível a partir da ativação cognitiva de esquemas genéricos
(MCI’s) compartilhados entre os interlocutores, tal como ocorre na anáfora associativa. A
seguir, tem-se, em (47), um exemplo de anáfora associativa no hipertexto - extraído do gênero
plantão de notícias, do jornal O Globo, na versão online – a partir do qual se pode apresentar
um mapping com base em esquemas cognitivos.
105
(47)
A notícia apresentada em (47) revela duas cadeias associativas por meio das quais o
leitor pode ativar o espaço mental M. A primeira delas corresponde à relação PROCON- lista
negra de devedores, que se estabelece com base nos conhecimentos de mundo dos
interlocutores ou no modelo cognitivo idealizado. Reconhece-se, neste caso, que os órgãos de
defesa do consumidor têm acesso direto às listas de devedores em serviços de proteção ao
crédito. A segunda cadeia associativa, por sua vez, encontra-se na ligação escolas-lista negra
de devedores é ativada pelo conhecimento de que as escolas privadas mantêm, em seu
gerenciamento, listas dos alunos com mensalidade em atraso ou cujos pais são devedores.
O que se pode depreender do exemplo acima apresentado é que os mecanismos de
referenciação anafórica – mais precisamente os que ocorrem nos casos de anáfora associativa
– dependem em grande medida da ativação de espaços mentais por meio de modelos
cognitivos idealizados (MCI’s), de vez que se estabelecem, discursivamente, no conjunto de
conhecimentos/crenças gerais dos interlocutores.
106
Também pode ser mencionado, aqui, que essas cadeias associativas responsáveis pelo
encadeamento anafórico, além de contribuírem para a progressão textual-discursiva,
permitem, do ponto de vista semântico-cognitivo, a estabilização das categorias ou objetos do
discurso. Isso só é possível, por outro lado, graças ao mapeamento ou correspondência de
domínios mentais, ativando-se, assim, os frames prototípicos que permitem reduzir a
instabilidade constitutiva das categorias.
4.3 GÊNERO PLANTÃO DE NOTÍCIAS: ESQUEMAS MENTAIS E ANÁFORAS
INDIRETAS
A investigação proposta nesta seção se divide em duas partes principais: (1) análise de
esquemas mentais ou mappings; (2) análise processos de referenciação indireta. Para tanto,
foram selecionados alguns exemplos do gênero plantão de notícias, no jornal eletrônico O
Globo.com, nas edições de 11/12/2008 e 06/01/2009.
Assim, a respeito do tema investigado, três hipóteses podem ser aqui levantadas: (a) os
mappings estabelecidos no gênero plantão são apoiados nos links e nós do hipertexto, já que
os esquemas ativados se confirmam ao se clicar no link da notícia, dirigindo-se aos blocos
informacionais a ela correspondentes; (b) a indicação da seção temática, antes da notícia, é
também essencial para que se estabeleça um frame associativo no gênero plantão;
(c) nos processos de referenciação anafórica, os objetos de discurso podem ser ativados a
partir de esquemas mentais, mappings.
4.3.1 Análise dos esquemas mentais ou mappings
Consideram-se nesta análise as correspondências que envolvem 1 ou 2 espaços
mentais. Esses mappings serão ilustrados, aqui, com base em três exemplos extraídos do
gênero plantão de notícias.
107
(48)
(49)
108
(50)
A partir desses exemplos, nota-se que, no primeiro esquema, em (48), há apenas a
composição e ativação de um espaço mental com base em dois MCI’s (governo e
investigação policial). Nos dois esquemas seguintes – (49) e (50) -, os MCI’s (culinária,
televisão e economia) promovem a ativação de um espaço base e de um novo espaço mental a
partir de um space builder, de uma expressão contextualizadora (no Japão e em Nova York)
De um modo geral, as correspondências aqui analisadas revelam que a ativação de
espaços mentais no hipertexto, mais precisamente no gênero plantão de notícias, depende
essencialmente dos modelos cognitivos idealizados dos falantes e, também, que o
mapeamento entre domínios é ratificado materialmente na rede hipertextual por meio de seus
links e nós, confirmando-se a primeira hipótese da pesquisa. Considera-se, ainda, que a
indicação da seção temática no início de cada notícia (esportes, mundo, tecnologia, economia
etc.) é também relevante na formação de frames associativos e, consequentemente, no
procedimento de estabilização das categorias discursivas. Esse aspecto, além de corroborar a
necessidade de correspondência entre domínios mentais, valida a segunda hipótese aqui
apresentada.
109
4.3.2 Análise dos processos de referenciação indireta
Os processos de referenciação indireta serão ilustrados, aqui, a partir dos mesmos
exemplos utilizados da análise dos mappings do gênero plantão de notícias. Embora esse
gênero não contemple, em primeiro plano, a notícia em toda a sua extensão, possibilita, como
foi visto antes, por meio de links e nós, o acesso cognitivo ao total da informação, fazendo
com que a mesma seja compartilhada discursivamente entre os interlocutores. Como o gênero
plantão revela, em seu formato, conteúdos variados através de uma lista de notícias, observase que muitas associações indiretas (incluindo-se aí as anáforas indiretas ou associativas) se
tornam possíveis na construção textual-discursiva do(s) sentido(s), o que faz com o leitor
recorra a conhecimentos prévios e culturalmente partilhados, revelados pelo contexto léxico,
semântico e pragmático. Vejam-se, a seguir, alguns casos de referenciação indireta
encontrados nos exemplos anteriormente citados: (48); (49) e (50).
12h48mPaís
Câmara aprova projeto que dá autonomia a perito criminal
Observa-se que a interpretação da expressão projeto, por exemplo, depende de
esquemas cognitivos previamente elaborados pelo leitor e acionados a partir de âncoras
co-textuais como Câmara e autonomia, que permitem a ativação do frame governo-projetolei. Neste caso, ao se acessar o conteúdo completo da notícia, tem-se a confirmação de que se
trata de um “projeto de lei”, objeto de discurso indiretamente processado anteriormente.
10h46m Economia
Setor de telefonia segura as bolsas em Nova York
Nota-se, aqui, que a expressão definida as bolsas também só pode ser entendida com
base em esquemas cognitivos prévios, relativos a modelos cognitivos idealizados (MCI´s).
Os conhecimentos enciclopédicos na área de economia permitem, ao lado de pistas do cotexto como setor de telefonia, que tal expressão seja interpretada como “bolsa de valores”. O
termo que funciona como space builder, Nova York, também serve como âncora atrelada aos
conhecimentos de mundo do leitor.
110
11h35mViverMelhor
'Comilões' se transformam em celebridade no Japão
Neste exemplo, vê-se que a depreensão da expressão comilões depende de alguns
elementos co-textuais engatilhadores (âncoras) que irão fornecer subsídios a sua interpretação,
tais como ViverMelhor e celebridade. Tendo como suporte, ainda, o seu conhecimento de
mundo a respeito do universo da culinária, bem como da sua relação com o meio midiático, o
leitor é capaz de identificar indiretamente esse referente, relacionando-o a indivíduos que
participam de concurso ou provas de degustação, o que é confirmado a partir do link que dá
acesso ao conteúdo completo da notícia. Assim, ainda que a teia correferencial não seja
instaurada, trata-se de um caso de referenciação anafórica, uma vez que a ativação desse novo
referente (comilões) depende de pistas (ou âncoras) co-textuais e contextuais que viabilizam,
indiretamente, a sua identificação.
O que se observa, a partir dos exemplos de referenciação apresentados, é que a
instabilidade das categorias discursivas contribui de modo significativo para a ativação de
frames associativos que possibilitam, via indireta, a depreensão dos objetos. No que tange ao
gênero plantão de notícias, o formato reduzido em que se apresenta a notícia, bem como
materialidade textual dos links e nós, propiciam ainda mais os processos indiretos de
identificação dos referentes, formando-se, assim, uma ampla teia anafórica que dá suporte à
progressão textual-discursiva do sentido.
Pode-se também concluir, com base nos casos apresentados, que a depreensão
cognitiva dos referentes tem ligação direta com os esquemas mentais ativados pelos
interlocutores - o que ratifica a terceira hipótese apresentada neste estudo. Conforme foi
ilustrado nos mappings do gênero plantão de notícias, todos os esquemas ou frames de
associação mental dependem essencialmente, na sua conexão, dos modelos cognitivos
idealizados pelos interlocutores, bem como de elementos contextuais, tal como ocorre nas
anáforas indiretas ou associativas.
A Teoria dos Espaços Mentais, defendida por linguistas como Fauconnier e Sweetser,
aponta interessantes caminhos a serem desvendados pela Linguística Cognitiva e pelas demais
abordagens do significado na compreensão da relação entre estrutura linguística e fenômenos
mentais. Ainda que o estudo de conexões entre linguagem e cognição pressuponha uma
investigação interdisciplinar – envolvendo linguística, psicologia, neurociência etc. – e uma
111
longa trilha a ser percorrida, a noção de mapping, como lembra Fauconnier (1997), já é em si
bastante útil e poderosa, uma vez que dá conta de uma diversidade de processos cognitivos
responsáveis pela construção do significado.
Conforme foi apontado neste capítulo, o hipertexto também favorece materialmente,
por meio de seus links e nós, a ativação de espaços mentais e correspondência entre domínios,
o que caracteriza de modo fundamental o mapeamento de sentido no meio discursivo virtual.
Outra questão abordada foi uma possível relação entre referenciação e mapping, dada a
natureza das atividades cognitivas envolvidas nos processos de referência, saindo-se de um
ponto de instabilidade constitutiva das categorias para a sua estabilização via contexto
discursivo.
Enfim, sugere-se nesta pesquisa um estreitamento de laços entre a Linguística
Cognitiva e as teorias do texto, considerando que as recentes descobertas nessas duas áreas
podem efetivamente contribuir para um entendimento mais amplo daquilo que chamamos de
“significado”. Quem sabe a conexão entre mapping, hipertexto e processos de referenciação
não seja apenas a ponta visível de outro “iceberg”? Isso tornaria, talvez, um pouco mais claro
o curioso enigma que envolve a linguagem e a construção do sentido.
112
5 ASPECTOS METODOLÓGICOS
Neste capítulo focalizam-se os principais procedimentos metodológicos da pesquisa,
tais como a constituição dos corpora e seleção da amostra, coleta de dados, definição dos
gêneros jornalísticos investigados, classificação dos processos de referenciação, elaboração do
site Hiperlin e levantamento de hipóteses. A seguir, tais aspectos são abordados
separadamente, com vistas à elucidação da metodologia utilizada.
5.1 CONSTITUIÇÃO DOS CORPORA
Os corpora da pesquisa, o impresso e o digital, constituíram-se de textos das edições
de dois jornais de circulação nacional: Folha de São Paulo e O Globo, selecionando-se nove
gêneros discursivos para este estudo (5 do jornal impresso e 4 do jornal eletrônico). Assim,
incluíram-se na amostra 60 exemplares de cada gênero, analisando-se um total de 540 textos
de edições variadas dos referidos jornais. (60 impressas e 60 eletrônicas).
5.2 COLETA DE DADOS
Os dados do corpus impresso e do corpus digital da pesquisa foram coletados e
catalogados na seguinte ordem cronológica:
1) De 20 de julho a 19 de agosto de 2010
30 edições impressas do jornal Folha de São Paulo
2) De 1º de outubro a 30 de outubro de 2010
30 edições impressas do jornal O Globo
3) De 20 de março a 20 de julho de 201126
30 edições (intervaladas) no portal Folha.com
30 edições digitais (intervaladas) no portal OGlobo.com
26
Os dados do corpus do jornal digital já haviam sido coletados anteriormente, no período de janeiro a fevereiro
de 2010, porém os arquivos foram perdidos, sendo necessária uma nova coleta em 2011.
113
A coleta dos sessenta exemplares dos gêneros do jornal digital foi feita em datas
intervaladas, uma vez que nem todos os gêneros escolhidos se apresentam na edição diária.
Isso se deu, por exemplo, com os textos dos gêneros blog e enquete, que levaram um tempo
maior de coleta em função da periodicidade de sua publicação, que não ocorria,
necessariamente, em todas as edições. Esses textos do jornal digital foram extraídos a partir
da função printscreen de captura de imagens, sendo salvos no formato de arquivo jpeg (jpg)
para uso posterior num sítio eletrônico organizado pela pesquisadora, compondo o material do
banco de dados Hiperlin. No que se refere aos textos do jornal impresso, houve, do mesmo
modo, a digitalização do material, também em imagens no formato jpeg, a fim de se compor,
no referido site, o acervo relativo aos demais gêneros investigados na pesquisa.
5.3 DEFINIÇÃO DOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS INVESTIGADOS
Nesta pesquisa selecionaram-se nove gêneros jornalísticos para análise: artigo,
entrevista, notícia/reportagem, crônica, opinião do leitor, plantão, enquete, blog e twitter.
A escolha de gêneros distintos nas versões impressa e eletrônica do jornal teve por objetivo
contemplar tanto os gêneros jornalísticos tradicionalmente conhecidos (artigo, entrevista,
notícia/reportagem, crônica, opinião do leitor) - e que aparecem nas duas versões do jornal como aqueles encontrados somente em meio eletrônico (plantão, enquete, blog e twitter).
Esses gêneros foram considerados relevantes na caracterização das práticas comunicativas
típicas do domínio jornalístico.
Quanto aos textos do jornal eletrônico, com exceção do gênero enquete, todos eles
foram coletados de forma parcial, já que foi necessário se fazer um recorte da publicação
diária para edição em corpus digitalizado. Sendo assim, no caso do plantão e do twitter,
selecionou-se apenas uma parte do volume diário postado. No blog, foram escolhidos somente
alguns dos comentários do post em questão, utilizando-se como critério a quantidade de
comentários que poderia de capturada em tela através da função printscreen (no máximo,
entre 4 a 6 comments).
Cada gênero, tanto no jornal impresso como no jornal eletrônico, foi analisado
considerando-se os três elementos que o definem como tal, na perspectiva teórica bakhtiniana:
composição, conteúdo temático e estilo. Sendo esses três aspectos vistos como essenciais na
caracterização das práticas comunicativas relativamente estáveis, procurou-se, na análise dos
114
dados, traçar um quadro comparativo das diferentes realizações textuais que se apresentam no
domínio jornalístico.
Além da abordagem das três noções bakhtinianas, os nove gêneros também fizeram
parte de uma análise geral comparativa entre jornal impresso e jornal digital, focalizando-se,
essencialmente, quais aspectos do ciberjornalismo são marcados pela presença de novos
gêneros e práticas comunicativas associadas à hipermídia. Buscou-se destacar, ainda, o que de
fato mudou na passagem do jornal impresso para o jornal digital em termos de: (a)
interatividade com o leitor; (b) linearidade na disposição e absorção do conteúdo; (c) uso de
diferentes semioses (multimodalidade); (d) velocidade da informação.
No quadro 11, tem-se o conjunto de gêneros jornalísticos presentes nesta pesquisa,
cuja análise será sustentada pelas discussões teóricas já apresentadas no capítulo 2 deste
trabalho, tanto no que se refere à abordagem bakhtiniana - focalizando as noções de gênero e
prática discursiva - como no que diz respeito à proposta teórica de J.M.Adam (1992) –
destacando-se a noção de sequência textual.
JORNAL IMPRESSO
JORNAL
ELETRÔNICO
1 ARTIGO DE OPINIÃO
1 PLANTÃO
2 ENTREVISTA
2 ENQUETE
3 NOTÍCIA/REPORTAGEM
3 BLOG
4 CRÔNICA
4 TWITTER
5 OPINIÃO DO LEITOR
QUADRO 11: Gêneros do jornal impresso e do jornal digital
115
5.4 CLASSIFICAÇÃO DOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO
Seguindo a proposta de classificação apresentada no capítulo 1, foi adotada na análise
dos dados a tripartição dos processos indiretos de referenciação em anáforas associativas,
anáforas pronominais esquemáticas e encapsulamentos anafóricos (nominalizações/rótulos).
Tendo em vista que o objeto desta pesquisa segue na direção de uma reflexão mais teórica em
vez de uma análise quantitativa desses tipos de anáfora, eles não serão apresentados em
termos de um tratamento exaustivo dos dados, mas sim com base na discussão acerca de
alguns exemplos mais representativos dos corpora. Inicialmente será feita a análise em
separado dos tipos de referenciação indireta e, logo em seguida, apresentam-se algumas
peculiaridades da construção de sentido envolvendo tais anáforas nos gêneros que constituem
os corpora deste estudo. Neste caso, pretende-se estabelecer uma correlação entre os
processos de referenciação e os gêneros investigados, focalizando-se, apenas, aspectos
singulares de construção de sentido e acessibilidade dos referentes em cada gênero.
5.5 ELABORAÇÃO DO BANCO DE DADOS HIPERLIN
A presente pesquisa deu origem a um banco de dados, correspondente ao material
digitalizado presente nos corpora impresso e eletrônico, que inclui 540 textos capturados em
imagem no formato de arquivo jpeg (.jpg). O intuito de se preceder à organização desse
acervo digital foi apresentar, por meio de um sítio eletrônico, uma espécie de laboratório
linguístico de gêneros jornalísticos, disponibilizando-se o material dos corpora (impresso e
eletrônico), bem como os resultados deste estudo, para futuros trabalhos na área. O site
Hiperlin.com.br encontra-se dividido, assim, em cinco partes principais: (1) apresentação do
banco de dados Hiperlin (2) blog Hiperlin (3) gêneros jornalísticos do jornal impresso;
(4) gêneros jornalísticos do jornal digital; (5) eventos e vídeos relacionados às seguintes
temáticas: gêneros textuais, hipertexto e ciberjornalismo.
+
116
5.6 LEVANTAMENTO DE HIPÓTESES
Neste estudo foram levantadas quatro hipóteses principais:
(a) O jornal, por englobar, ao mesmo tempo, os gêneros encontrados em jornal impresso e
no jornal on-line, pode ser entendido como um hipergênero no qual convergem diferentes
práticas comunicativas;
(b) Os gêneros digitais encontrados no jornal eletrônico apresentam especificidades –
estruturais e funcionais – em relação àqueles associados tradicionalmente aos jornais
impressos;
(c) Por ser de caráter não-linear, o hipertexto apresentado no jornal eletrônico permite um
número variado de cadeias anafóricas a depender dos sistemas cognitivos que são
ativados, por cada leitor, em uma dada ação comunicativa;
(d) Nem todos os gêneros digitais apresentam hibridismo entre fala e escrita, sendo necessária
uma reavaliação desse aspecto no que tange a essas duas modalidades.
117
6 ANÁLISE DOS DADOS
Pretende-se, neste capítulo, focalizar quatro aspectos principais que envolvem os
dados da pesquisa: (1) caracterização dos gêneros jornalísticos em termos de composição,
conteúdo e estilo; (2) análise dos processos indiretos de referenciação: anáforas associativas,
anáforas pronominais esquemáticas e encapsulamentos anafóricos (nominalizações/rótulos);
(3) consideração de algumas conexões entre gêneros e processos de referenciação; (4) jornal
impresso versus jornal eletrônico. Tais temáticas serão apontadas com vistas à investigação
dos corpora propostos neste estudo, referentes ao jornal impresso e ao jornal eletrônico.
6.1 OS GÊNEROS DO DOMÍNIO JORNALÍSTICO
Conforme foi assinalado no capítulo anterior, referente aos procedimentos
metodológicos da pesquisa, abordam-se aqui nove gêneros distintos que atualmente fazem
parte do domínio jornalístico, nas edições impressas e eletrônicas dos jornais Folha de São
Paulo e O Globo. Artigo de opinião, notícia, crônica, entrevista, opinião do leitor, plantão,
enquete, blog e twitter: todos eles correspondem a práticas comunicativas essenciais ao
conteúdo jornalístico e podem ser vistos, no sentido bakhtininano, como tipos relativamente
estáveis de enunciados, social e historicamente situados no domínio em questão, ou seja, na
esfera de atuação do jornalista e do leitor do jornal.
Cada gênero jornalístico será abordado, a seguir, a partir de sua estrutura
composicional, seu conteúdo temático e seu estilo, de acordo com as noções apresentadas por
Bakhtin (2003) que definem a natureza do enunciado bem como a sua relativa estabilidade.
Levaram-se em conta, na definição da estrutura composicional, aspectos como a organização
e disposição da informação, além da sequencialidade presente em cada gênero, observando-se
os tipos textuais mais recorrentes. O conteúdo temático, por sua vez, foi identificado com base
na seleção dos assuntos ou tópicos discursivos propostos nos textos apresentados, verificandose, principalmente, se houve ou não flutuação temática no gênero em questão. Buscou-se,
ainda, quanto ao estilo, notar como os enunciados são individualmente marcados em função
das escolhas lexicais e fraseológicas do autor, e, também, em função do uso de um tom de
maior formalidade/informalidade. Por fim, apresentam-se dois quadros gerais referentes aos
nove gêneros, destacando-se alguns elementos mais recorrentes nesses enunciados.
118
6.1.1 Artigo de Opinião
O artigo jornalístico é, essencialmente, um artigo de opinião, já que, diferentemente do
artigo científico, tem como objetivo precípuo apresentar a opinião do autor sobre um dado
assunto, geralmente contestável, com a qual o leitor pode ou não concordar. Em relação ao
conteúdo temático, portanto, os dados do corpus impresso revelaram que geralmente os
artigos de opinião versam sobre temas polêmicos e ligados principalmente a determinadas
áreas sociais (política, religião, economia, educação, entre outras). Na sua estrutura
composicional predomina a sequência argumentativa e o uso variado de 1ª, 3ª pessoa ou da
forma impessoal27. Também se apresentam em destaque, além do corpo do texto, título, nome
do autor, bem como seus dados complementares (profissão, formação acadêmica etc.) no final
do artigo. Nesse gênero, o estilo é marcado por certa formalidade e pelo tom de
convencimento que permeia os argumentos do autor. É um gênero que assume, sem dúvida,
posição de destaque no jornal impresso, uma vez que aparece no primeiro caderno, tanto na
Folha de São Paulo (na seção Tendências e debates) como no Globo (na seção Opinião),
podendo também ocorrer nos demais cadernos do jornal. Vejam-se a seguir, em (51) e (52),
dois exemplos de artigo de opinião do corpus impresso, na Folha de São Paulo, em 20/07/10 e
28/07/10, respectivamente.
Ao se considerar os textos apresentados em (51) e (52) em termos de sua estrutura
composicional, nota-se que ambos são prioritariamente marcados pelo tipo argumentativo em
sua organização linguística. Argumentos como, em (51), “Dados do Ipea comprovam que os
mais pobres pagam 49% de sua renda em impostos...” reforçam a posição anunciada pelo
autor, a de que “a falácia encontra-se na premissa de que o Estado é sustentado por toda a
sociedade, igualmente”. Em (52), o posicionamento da autora, de que “leis existem, ao menos
no papel, mas precisamos de uma legislação célere como a própria internet”, também é
corroborado em argumentos como “Quantos se valem de uma rede tão valiosa nos nossos dias
para arquitetar o mal e por meio dela disseminar todo tipo de leviandade, abrigados no
perigoso manto da impunidade?”
27
Na argumentação, importa mais o entrelaçamento das ideias que irão sustentar a tese do que, propriamente,
a pessoa que argumenta, por isso há esse uso variado de 1ª, 3ª ou da forma impessoal.
119
Vê-se, também, no que toca ao conteúdo temático, que os dois artigos tratam de temas
polêmicos e atuais, relacionados a duas diferentes áreas/aspectos da sociedade. Em (51) o
foco temático é o financiamento da educação superior e sua correlação com as camadas
sociais. Em (52) o assunto abordado é a mídia digital e o uso da Internet na disseminação da
informação, mais especificamente as questões ligadas à liberdade e à legislação do conteúdo
apresentado na rede. Esses são temas de fácil contestação e que motivam a participação a
posteriori do leitor do jornal (na seção Painel do Leitor, por exemplo). No que se refere ao
estilo apresentado, percebe-se que os dois autores fazem uso, na exposição de seus
argumentos, de um tom mais formal, tipicamente associado aos artigos jornalísticos.
120
(51)
(52)
121
6.1.2 Entrevista
A entrevista, enquanto enunciado estabilizado no domínio jornalístico, é um gênero
com características bastante peculiares: a alternância de turno (texto dialogal) e a focalização
na opinião de um entrevistado (não de um colunista) são seus aspectos mais conhecidos. Nos
jornais investigados, observou-se que esse gênero não tem espaço fixo, podendo ocorrer em
variados cadernos/seções, mas principalmente naqueles com foco temático bem definido
como, por exemplo, Esporte e Mercado (na Folha de São Paulo) e Ciência/Saúde e O País (no
Globo), que apresentam entrevistas ligadas aos cenários esportivo, econômico, científico e
político, respectivamente. Logo, em relação ao seu conteúdo temático, a entrevista acompanha
os assuntos gerais do caderno, desenvolvendo um dos subtópicos apresentados na edição e
promovendo uma espécie de atualização temática. Como se vê no trecho da entrevista
apresentado em (53), da Folha de São Paulo, em 23/07/10, o jogador pivô Nenê fala da sua
volta à seleção após três anos e do campeonato mundial de basquete, o que representa o
desenvolvimento de um dos subtópicos do caderno. Em relação à sua estrutura
composicional, além da típica sequência dialogal, é comum a realização de outros tipos
textuais no gênero entrevista. Em (53), nota-se que o entrevistado, em seu turno, utiliza da
sequência descritiva ao falar da atual seleção brasileira de basquete e, ainda, a sequência
argumentativa na última pergunta, sobre as possibilidades do Brasil chegar ao título. Outro
aspecto que faz parte da composição do gênero entrevista é uma espécie de apresentação do
entrevistado para o leitor antes mesmo de introduzir a sua fala, situando-se, comumente no
início do texto e a partir de sequências descritiva e narrativa, como se vê em (54), no trecho
inicial da entrevista com o pivô Nenê. O estilo da entrevista jornalística escrita é geralmente
formal, dada a ausência, na edição, de elementos paralinguísticos e interacionais que
caracterizaram a conversação oral espontânea.
(53)
(54)
122
(55)
Verifica-se em (55), entrevista extraída do jornal O Globo, em 17/10/10, na seção
Ciência/Saúde, que a composição desse gênero jornalístico é também definida por uma
espécie de heterogeneidade ou hibridismo tipológico, que envolve, em geral, a sequência
dialogal (com troca de turnos) e outras sequências predominantes, as quais se evidenciam,
principalmente, no turno corresponde à fala do entrevistado. Na primeira pergunta, por
exemplo, o especialista em coluna vertebral Eduardo Barreto descreve o que caracteriza a
hérnia de disco, fazendo uso da sequência descritiva, marcada pela presença de verbos
estativos (ser) e de adjetivos (central, gelatinosa, intervertebral, aguda, entre outros).
123
Na quarta pergunta, sobre a real necessidade de cirurgia, o especialista expõe sua
opinião, utilizando os tipos injuntivo e argumentativo em sequências como “o paciente precisa
procurar um especialista e fugir dos remédios ditos milagrosos.”, “é bom lembrar que dor de
coluna nem sempre é hérnia de disco.” Por fim, na última parte da entrevista, ao ser
questionado sobre a cura da hérnia de disco, ele apresenta em sua resposta, basicamente, a
sequência explicativa/expositiva, já que se detém a informações técnicas sobre as
possibilidades de cura da doença. No que toca ao conteúdo temático, observa-se que a
entrevista aborda sempre um assunto ou tópico casado com o tema geral do caderno/seção no
qual é publicada. No caso visto em (55), o tema “hérnia de disco” apresenta-se como
subtópico vinculado a uma seção do jornal - Ciência/Saúde, Qual é o seu problema? -, na qual
o leitor é convidado a interagir com o jornal através do envio de sugestões temáticas. Como se
vê na nota localizada no canto superior direito da coluna, ainda que se trate de um gênero do
jornal impresso, essa interação é mediada pela versão eletrônica do jornal, já que é solicitado
aos leitores o envio de sugestões por meio do site www.oglobo.com;br/saude. Enfim, a
respeito do estilo revelado na entrevista, nota-se que, principalmente em função do assunto
tratado no texto, há uma preferência por um estilo mais formal, com tendência ao uso de um
vocabulário mais técnico na linguagem do entrevistado, como convém ao propósito da
comunicação apresentada. Percebe-se, no entanto, que tal uso, que se revela em termos como
disco intervertebral, plexos nervosos e hérnias extrusas, não chega a prejudicar a clareza e
objetividade na apresentação das informações.
6.1.3 Notícia/Reportagem
No domínio jornalístico, tanto no meio impresso como no meio digital, o gênero
notícia pode ser considerado como “carro-chefe” da redação, pois é nele que se baseia grande
parte do conteúdo do jornal, atraindo o leitor antes mesmo de ser visto integralmente, na
visualização prévia das manchetes28. O seu conteúdo temático é o mais variado possível,
podendo focalizar desde assuntos de grande relevância nos cenários político, econômico,
social e cultural - em nível internacional, nacional ou local - a assuntos menos abrangentes ou
28
Nesta pesquisa, optou-se por não se estabelecer a distinção entre notícia e reportagem, muitas vezes ligada ao
aspecto da autoria (se o texto é ou não assinado) e à extensão. Como, diante dos dados analisados, tal diferença
não se mostrou claramente na estrutura composicional dos textos jornalísticos em questão, preferiu-se considerar
como gêneros equivalentes a notícia e a reportagem, neutralizando-se as diferenças tanto no que tange à extensão
como no que se refere à autoria.
124
específicos do cotidiano no leitor. Tem caráter eminentemente informativo e, por esse motivo,
apresenta uma estrutura composicional bem definida, marcada pelo uso de 3ª pessoa e pela
presença dos tipos explicativo/expositivo ou narrativo. Seu estilo é mais formal e direto,
sendo caracterizado, na maioria das vezes, pela objetividade e impessoalidade em relação ao
assunto abordado, mesmo quando assinada por algum repórter do jornal. Ainda que na notícia
possam ser incluídos alguns trechos que reproduzem a fala de interlocutores, esse é o tom de
linguagem que mais predomina nos dois jornais investigados. Do ponto de vista discursivo,
no entanto, deve-se reconhecer, como lembra Cunha (2005, p. 173), que “apesar de a notícia
ter o objetivo de fazer saber um fato novo, ela tem caráter apreciativo, revelado em seu
funcionamento dialógico.” Portanto, a suposta imparcialidade/objetividade associada ao estilo
apresentado pelo repórter do jornal está, de todo modo, condicionada à sua apreciação do fato
e, claro, ao posicionamento ideológico do jornal, o que se evidencia ao longo de cada notícia.
Tem-se, no exemplo apresentado em (56), uma notícia publicada no jornal O Globo,
em 04/10/10, no caderno O País, na seção especial Eleições 2010, em que se podem verificar
todas essas características do gênero. A composição, na referida notícia, é essencialmente
definida pelo tipo narrativo, já que há, em tal prática comunicativa, o intuito de narrar um fato
da atualidade, de interesse do leitor, tal como a votação do ex-presidente Lula no primeiro
turno das eleições de 2010. Sequências como “Lula cumprimentou eleitores e pousou para
fotos”, “levou apenas 25 segundos para votar” e “o presidente deixou o posto de votação às
9:35 e foi para o Aeroporto de Congonhas..” são parte da narração que se realiza ao longo do
texto, valorizando-se a cronologia das ações. Vê-se, além da presença de um título ou
manchete em destaque, que, em geral, a notícia recebe a assinatura do jornalista responsável
pela matéria (Tatiana Farah), embora esse aspecto não tenha sido verificado em todos os
textos do corpus investigado neste estudo. Quanto ao conteúdo temático, é interessante
ressaltar que, em geral, ocorre na notícia um casamento do assunto apresentado na notícia
com a temática geral associada ao caderno/seção em que é publicada. O tópico abordado em
(56) está vinculado à seção especial Eleições 2010, que, no período de publicação da notícia,
era destinada a uma ampla cobertura de assuntos eleitorais de interesse do leitor. Um tom
mais direto e objetivo, típico das narrativas jornalísticas, marca o estilo apresentado na notícia
em questão. Embora o estilo da notícia seja normalmente marcado por uma tentativa de certa
formalidade/imparcialidade do colunista, percebe-se, em tal exemplo, no que tange ao seu
efeito discursivo, um tom mais irônico na seleção de algumas expressões linguísticas como
125
“situação privilegiada” (abaixo do título, com o uso de aspas de conotação autonímica),
“ouviu a bronca de uma eleitora” e na reprodução da fala do ex-presidente: “– Eu só lamentei
que é a primeira vez que eu vou votar e não tem a minha cara lá no telão...”.
(56)
126
6.1.4 Crônica
A crônica, muitas vezes classificada também como gênero literário, recebe destaque
no domínio jornalístico já há um bom tempo, constituindo-se uma de suas práticas
comunicativas recorrentes desde a época em que assumia no jornal o formato de folhetim.
Sendo geralmente assinada por colunistas do jornal ou escritores renomados, tem como
principal intuito levar o leitor a uma reflexão, um questionamento, focalizando um tema
cotidiano. Por isso mesmo, o cronista, em relação ao estilo, costuma apresentar um texto leve,
mais informal e envolvente, que revele aproximação com a realidade e com o presente no dia
a dia do leitor. Em sua estrutura composicional predomina a sequência narrativa, já que, na
maioria das vezes, relata um fato do cotidiano, atual, podendo-se também apresentar outros
tipos textuais como o descritivo, o argumentativo e o dialogal29. Como é assinada
normalmente por um colunista do jornal, há quase sempre o uso de 1ª pessoa nesse gênero
jornalístico. Pelo seu estilo leve e informal, a crônica costuma frequentemente seduzir o leitor
do jornal que se encontra imerso, em sua leitura, na grande quantidade de textos informativos.
A seguir, em (57) apresenta-se uma crônica do corpus do jornal impresso, do escritor
Arnaldo Bloch, colunista no jornal O Globo, em 02/10/10, na qual ele faz com o leitor reflita
sobre o excesso de atenção que é dada, ainda que involuntariamente, aos compromissos,
agendas, calendários e planejamentos em nosso cotidiano. Esses são dois pontos essenciais na
escrita do cronista: gerar uma indagação acerca de um acontecimento banal do dia a dia e,
também, relacioná-lo ao tempo do leitor, apresentando-o como fato novo. Afinal, pela própria
origem etimológica do termo que define o gênero – Krónos, do grego – o cronista está
necessariamente ligado ao tempo da escrita, atualizado e renovado em cada publicação. Notase, em tal crônica, uma estrutura composicional do gênero definida, prioritariamente, pelos
tipos narrativo e argumentativo. A narração é feita logo no início do texto, em sequências
como “Outro dia soube, através de meu Facebook, que 23 amigos...”. “ao mesmo tempo, tive
que pagar contas, tratar de questões relacionadas com o carro e com o amor, contatar a
completa ausência de renovação no debate político e explicar à minha avó as razões de eu ser
quem sou...”. Também há o uso marcado da 1ª pessoa, tanto no singular (“outro dia soube”)
como no plural (“a gente prefere...”), e, ainda da 2ª pessoa (“ouça aqui o grande bruxo...”).
29
Paredes Silva e Costa Pinto (2010, p. 39) defendem que não são mais as sequências narrativas que
caracterizam este gênero, já que, segundo esses autores, “pode-se dizer que a crônica jornalística é um
gênero com mais tendência à exposição de opinião do que à narração de eventos.”
127
(57)
No que refere ao estilo, inclusive, essa utilização das 1ª e 2ª pessoas define um tom de
maior aproximação com o leitor. Afinal, como já foi assinalado antes, as opções estilísticas do
cronista, que revelam uma maior informalidade no texto apresentado, tendem a atrair o seu
interlocutor conduzindo-o a uma leitura mais leve, agradável, servindo com uma espécie de
“pausa” nos textos informativos dos demais gêneros do jornal. Em (57), esse tom mais
informal pode ser destacado em expressões como “grita mais alto que...”, “ô sorte!”, “em que
casa do cacete...”.
Sobre o conteúdo temático da crônica, observa-se que esse gênero,
diferentemente de outros que foram investigados no corpus impresso, necessariamente não
apresenta um assunto vinculado a um caderno/seção do jornal, sendo de livre escolha do
cronista. Ainda que o texto possa ser publicado em um dos cadernos temáticos ou seções
específicas, nota-se que há uma maior liberdade do colunista no que diz respeito à seleção dos
temas abordados, cujo intuito maior seria, na realidade, seduzir o leitor, chamando a sua
atenção para um fato cotidiano.
128
6.1.5 Opinião do leitor
O gênero opinião do leitor, do mesmo modo que o gênero notícia, está ligado ao
conteúdo geral do jornal, sendo umas das práticas comunicativas essenciais ao domínio
jornalístico. É por meio dele que, tradicionalmente, o leitor sinaliza o seu ponto de vista, a sua
opinião acerca de temas abordados nas edições anteriores30. Em função dessa característica, o
seu conteúdo temático também é amplo e variado, pois pode abarcar qualquer assunto já
apresentado anteriormente no jornal, em diferentes gêneros, sendo o aspecto da flutuação
temática recorrente nesse gênero. Em relação aos textos investigados no corpus impresso, viuse que a seção destinada à opinião do leitor apresenta, principalmente, considerações sobre
temas polêmicos, principalmente nas áreas de política, educação e esportes, como se verifica
no exemplo dado em (58), extraído do Painel do Leitor, no Jornal Folha de São Paulo, em
23/07/10.
A sua estrutura composicional pode ser caracterizada pela pequena extensão, já que o
próprio jornal, ao editar a carta/email do leitor, delimita o tamanho a ser ocupado na seção.
Também é marcada pela predominância das sequências argumentativa e expositiva, já que o
leitor, ao escrever para o jornal e emitir sua opinião sobre um dos textos anteriormente
publicados, geralmente defende um ponto de vista, cumprimenta um articulista, interage com
outro leitor ou, simplesmente, expõe um conteúdo ainda não apresentado acerca do assunto
tratado. Por isso é comum, tal como na crônica, o uso da 1ª pessoa. Outro aspecto da
composição desse gênero é a sua estrutura organizada em diferentes unidades ou blocos
temáticos, com título próprio para os assuntos mais comentados na seção, como se vê em (58)
- eleições, futebol, cotas raciais. Em relação ao estilo apresentado, como é assinado por
diferentes leitores do jornal, o painel do leitor é bastante variado, podendo apresentar uma
realização mais ou menos formal a depender de quem emite a opinião e de qual tema é
abordado. Mas, de um modo geral, seja por edição do jornal, seja por escolha do leitor,
prevalece um estilo semiformal. Como se nota em (58), apenas um dos leitores, aquele que
comenta na seção Futebol, adota um estilo mais informal, em tom irônico, revelado em
expressões como “um goleiro medíocre” e “ fala o que bem entende...”
30
Esse gênero era tradicionalmente conhecido como carta do leitor, porém, com a permissão de envio de
comentários por e-mail , passa-se a chamá-lo, simplesmente, de opinião do leitor, tanto na versão eletrônica
como na versão impressa do jornal.
129
(58)
130
6.1.6 Plantão de notícias
Com o surgimento das edições eletrônicas do jornal, a notícia passou a ser divulgada
em tempo real nos portais jornalísticos, caracterizando e estabilizando uma nova prática
comunicativa relacionada ao processamento da informação. O conteúdo veiculado pelo jornal
passa a ser fornecido online, através de uma seção intitulada Plantão (no jornal O Globo) e
As últimas que você não leu (no jornal Folha de São Paulo). O que antes ficava em stand by e
restrito aos bastidores da redação até a próxima edição, agora é publicado imediatamente na
rede hipertextual. Sendo assim, exclusivamente nas edições eletrônicas dos jornais, pode-se
falar no gênero plantão de notícias, que, apesar de apresentar em si a notícia, assume outra
velocidade e um formato específico de realização. A diferença em relação ao gênero notícia é
especialmente vinculada à estrutura composicional, já que o plantão focaliza, através de sua
estrutura disposta em tópicos, apenas os títulos das notícias, também conhecidos como
manchetes. Obviamente, no jornal impresso tal gênero não teria muita funcionalidade, já que
ele precisa da estrutura hipertextual, não-linear, para conduzir o leitor à notícia propriamente
dita. No jornal eletrônico isso é feito de modo bastante prático, bastando clicar em um dos
links apresentados no gênero plantão, que dá acesso ao bloco da notícia. É bem evidente,
aqui, a fluidez e velocidade da rede, já que as notícias são atualizadas a todo instante, a cada
vez que a página do plantão é atualizada pelo leitor. Vejam-se dois exemplos em (59) e (60),
extraídos das seções Plantão (O Globo, 02/06/11) e As últimas que você não leu (Folha de
São Paulo, 08/06/11), ambas em destaque na página principal do portal.
(59)
(60)
131
6.1.7 Enquete
Sendo uma das formas de interação com o leitor do jornal eletrônico, a enquete
permite ao jornal registrar a opinião do público sobre determinado tema, de forma bastante
objetiva, através de perguntas e respostas previamente apresentadas e posteriormente
traduzidas em resultados quantitativos. Esse gênero, portanto, apresenta conteúdo temático
específico, de interesse do jornal ou do colunista que o apresenta, por exemplo, em seu blog.
No caso do portal Folha.com (Folha de São Paulo), ele aparece frequentemente ao final da
página principal do jornal, ainda que esteja associado hipertextualmente a uma seção/caderno
específico, conforme se verifica em (61). No caso do portal OGlobo.com (O Globo), não há
um lugar próprio para esse gênero, podendo o mesmo ocorrer em diferentes seções e páginas
do portal e, também, em blogs dos colunistas, como se vê nos exemplos apresentados em
(62), extraídos dos blogs dos colunistas Ricardo Noblat e Ancelmo Gois. No que toca à
composição, nesse gênero se realiza essencialmente o tipo dialogal, já que as enquetes
jornalísticas buscam travar um diálogo direto com o leitor (por meio de uma pergunta direta),
muito embora, no preâmbulo que é feito antes pergunta, possa haver, ainda, a predominância
do tipo narrativo. Convém notar, nesse caso, que, mesmo sendo feito uso da sequência
dialogal, a interação entre os interlocutores é diferente daquela que ocorre na entrevista, já
que não há, efetivamente, uma troca de turnos, sendo esta apenas subentendida a partir dos
resultados quantitativos apresentados. Vê-se, também, que o contato não se dá entre o entre o
jornal e um entrevistado que é posto em posição central, mas sim entre o jornal e os leitores
em geral. Como as respostas já vêm pré-formatadas e são apresentadas em resultados
quantitativos, essa interação também se distingue daquela tipicamente presente no gênero
opinião do leitor, no qual há um espaço exclusivo (individual) para manifestação de um dado
ponto de vista. É comum na enquete, ainda, o uso da 2ª pessoa e apresentação em tópicos das
possíveis respostas a serem apresentadas. O estilo revelado nas enquetes jornalísticas é mais
direto, apesar de ser ainda formal, priorizando-se o tom de aproximação com o leitor. Tudo
isso pode ser observado nas enquetes dos exemplos (61) e (62). Em (61), tem-se uma enquete
extraída do portal Folha.com (Folha de São Paulo, em 18/05/11); em (62), duas enquetes do
Blog do Noblat (em 18/05/11) e Blog Ancelmo.com (em 16/05/11), respectivamente.
132
(61)
(62)
(Blog do Noblat, O Globo.com 18/05/11)
31
(Blog Ancelmo.com, OGlobo.com, 16/05/11)31
Quanto aos textos jornalísticos do portal OGlobo.com, foram selecionadas, para o gênero enquete, apenas
enquetes apresentadas nos blog dos colunistas Ricardo Noblat e Ancelmo Gois, já que esse gênero se
apresenta com mais frequência no blog desses colunistas do que na página principal do jornal eletrônico.
133
6.1.8 Blog
Correspondendo a mais uma forma de interação com o leitor digital, o gênero blog,
como foi visto no capítulo 3 deste trabalho, aproxima o colunista do seu público alvo, uma
vez que permite o comentário direto em suas postagens. É um gênero verdadeiramente
atrativo para o leitor, que se vê inclinado a comentar, opinar, elogiar e criticar as matérias
publicadas por determinado colunista. Ainda que haja a opção de moderação de comentários,
sabe-se que, em geral, eles são aceitos e publicados pelo autor do blog. Em termos do seu
conteúdo temático, viu-se, também no capítulo 3, que os posts de blogs jornalísticos tendem a
se enquadrar em um assunto vinculado à temática geral da página do colunista, havendo,
portanto, uma espécie de centração temática.
No que tange à sua estrutura composicional, destacam-se alguns aspectos, a saber:
(a) a apresentação dos posts numa ordem cronológica na página do blog. (b) uso
predominante das sequências expositiva e argumentativa; (c) estruturação em duas partes
principais, o post e seção de comentários do leitor; (c) assinatura do colunista do jornal;
(d) amplo uso de diferentes semioses, já que abarca não só o texto escrito, mas também
imagens, links e vídeos.
Quanto ao estilo apresentado nos blogs, verificou-se, no corpus digital da pesquisa,
que cada colunista pode marcar seu estilo, bem como apresentar variação na escala de
gradação formalidade/informalidade, a depender do tema abordado. Observem-se em (63) e
(64), além dos aspectos relativos ao tema e à composição que já foram mencionados, essa
diferença de estilo entre posts apresentados, respectivamente, nos blogs dos colunistas
Marcelo Coelho (Folha de São Paulo, em 27/05/11) e Miriam Leitão (O Globo, em 11/05/11).
Em (63), o colunista Marcelo Coelho revela um estilo semiformal por meio de escolhas
lexicais em expressões como “isso até eu pintava”, “mas não é bem assim” e, ainda, por meio
de um tom irônico no uso de aspas de conotação autonímica em “manipulada”. Em (64) o
estilo formal é evidenciado no uso de um vocabulário mais técnico, típico da área de
conhecimento em questão (Direito do Trabalho): sentença, juíza da Vara do Trabalho,
procurador do Trabalho, o infrator, a ordem jurídica trabalhista, o princípio constitucional, a
indenização.
134
(63)
No que tange à seção de comentários no blog, nota-se que o estilo apresentado pelos
leitores é, geralmente, próprio de uma linguagem informal ou semiformal, muitas vezes
revelando o uso de um tom mais irônico, ainda que o post do colunista assuma um caráter
mais formal/impessoal. É o que se pode perceber nos comentários vistos em (63), a partir de
expressões como “no chute” (que revela informalidade) e “ou por macacos ou por elefantes
pintores” (que revela ironia). Em (64), apesar da linguagem formal associada ao post, vê-se,
por exemplo, no primeiro comentário, o uso de um tom semiformal e irônico por parte do
leitor (“já deram o seu ao PT...”)
135
(64)
136
6.1.9 Twitter
Entre os gêneros investigados no corpus digital, o twitter é o mais recente no domínio
jornalístico. Presente nos principais portais jornalísticos nacionais desde 2009, ele
corresponde a uma nova forma de acesso ao conteúdo online, apresentando semelhanças e
diferenças com o já conhecido blog (como foi visto no capítulo 3). Também se assemelha ao
plantão de notícias, já que, quando se trata do twitter oficial do jornal, também tem o papel de
levar ao leitor digital as principais notícias do dia, mas em outro ambiente, conectado
hipertextualmente ao portal jornalístico. Considerando-se que atualmente muitos leitores
digitais são também usuários do Twitter, esse gênero aproxima ainda mais o jornal ao seu
público alvo, divulgando as notícias muitas vezes antes de qualquer outro canal de informação
online.
O seu conteúdo temático é bastante variado, seguindo as notícias que são apresentadas
no plantão do portal jornalístico. Ainda que se trate do twitter de colunistas, segue-se essa
tendência de apresentação dos principais assuntos do dia, muito embora, como se viu no
capítulo 3, as páginas de colunistas também versem sobre assuntos pessoais, não estritamente
ligados às notícias do jornal.
A estrutura composicional é o que mais distingue o twitter dos outros gêneros
jornalísticos digitais. Retomando os elementos diferenciais mencionados no capítulo 3,
podem-se mencionar: (a) a extensão limitada a 140 caracteres b) o uso de RT´s (retweets);
(c) envio de mensagem aos interlocutores por meio de link no formato @___; (d) criação de
etiquetas (hashtags) por meio de link no formato #___; (e) atualização da página home
(tweets). (f) envio de direct messages (DMs), cujo acesso é limitado ao usuário da conta.
Como já foi anteriormente assinalado, o estilo do twitter oficial do jornal é mais
formal do que aquele encontrado nas páginas dos colunistas, e bem parecido com o do plantão
de notícias, embora já permita a interação direta como o leitor (aspecto não encontrado no
gênero plantão). Em (65) e (66) encontram-se dois exemplos desse gênero jornalístico. No
primeiro, a atual página no twitter do jornal Folha de São Paulo - @folha_com (em 01/05/11);
no segundo, o twitter do colunista Ancelmo Gois, do jornal O Globo - @AncelmoGois (em
12/05/11).32
32
Quanto ao gênero twitter, foram selecionados para o corpus digital, além das páginas oficiais no twitter dos
jornais Folha de São Paulo e O Globo, o twitter dos colunistas Miriam Leitão e Ancelmo Gois, ambos
ligados ao portal O Globo.com.
137
(65)
(66)
138
Por se tratar do twitter oficial do jornal, o estilo observado em (65) varia entre o
formal e o semiformal, considerando-se a seleção de vocabulário, o tom mais direto e objeto
na apresentação da notícia e, ainda, a forma de interação com o leitor: “obrigado a você por
nos seguir, Júlio!”. Já o estilo verificado no twitter do colunista é mais próximo de um tom
informal e irônico no uso da linguagem, que está presente em expressões como “Viver sem
fronteiras só em comercial da TIM...”, “Quer moleza?”.
Por fim, apresentam-se, a seguir, dois quadros gerais dos nove gêneros discursivos
analisados na pesquisa, focalizando-se, no quadro 12, alguns principais aspectos que os
caracterizam e os definem e, no quadro 13, elementos que marcam a sua composição (a
sequência ou sequências predominantes), o seu conteúdo temático (a centração temática ou
flutuação temática) e o seu estilo (o tom mais ou menos formal). Deve-se ressaltar que, tanto
no quadro 12 como no quadro 13, essas características gerais foram definidas em função de
uma maior recorrência ou predominância dos traços em questão no universo de textos
jornalísticos investigado, de modo que se pode encontrar, em um exemplar ou outro, traços
distintos daqueles aqui apontados.
139
JORNAL IMPRESSO
Artigo de opinião
• texto de opinião assinado pelo autor, com foco temático
• predominância de sequência argumentativa
• uso de 1ª, 3ª pessoa ou da forma impessoal
Entrevista
• texto em forma de diálogo com foco em uma das partes e com
tema específico
multiplicidade de sequências com predominância do tipo
argumentativo.
• uso de 1ª, 2ª ou 3ª pessoa
•
Notícia
•
•
•
texto informativo assinado ou não pelo autor
predominância das sequências expositiva e narrativa
uso de 3ª pessoa
Crônica
•
texto de caráter reflexivo e baseado em fatos do cotidiano
(geralmente assinado por um colunista do jornal)
predominância das sequências narrativa e argumentativa
uso de 1ª, 2ª ou 3ª pessoa
•
•
Opinião do leitor
•
•
•
texto de opinião assinado pelo leitor mas editado pelo jornal,
de pequena extensão, relacionado a textos anteriormente
publicados
predominância das sequências argumentativa e expositiva
uso de 1ª, 2ª ou 3ª pessoa
•
JORNAL ELETRÔNICO
Plantão
•
•
•
Enquete
•
•
•
Blog
•
•
•
Twitter
•
•
•
textos informativos curtos, equivalentes às manchetes
jornalísticas, que funcionam com links para o total da notícia
predominância de sequência expositiva
uso de 3ª pessoa
texto “dialogal” de pequena extensão em que se busca registrar
a opinião do leitor
predominância da sequência dialogal
uso de 2ª ou 3ª pessoa
texto opinativo ou informativo assinado pelos colunistas do
jornal e que permite, ao mesmo tempo interação in loco com
o leitor
predominância das sequências expositiva e/ou argumentativa
uso de 1ª, 2ª ou 3ª pessoa
textos informativos curtos, de no máximo 140 caracteres,
assinados por colunistas do jornal ou pela redação
predominância de sequência expositiva
uso de 2ª ou 3ª pessoa
QUADRO 12: Características gerais dos gêneros nos jornais investigados
140
COMPOSIÇÃO
CONTEÚDO
ESTILO
TEMÁTICO
GÊNERO
JORNALÍSTICO
Artigo
de sequência
opinião
argumentativa
Entrevista
sequências
centração temática
dialogal, centração temática
argumentativa
formal
formal e semiformal
e
expositiva
Notícia
sequências narrativa e centração temática
semiformal e formal
expositiva
Crônica
sequências narrativa e flutuação temática
informal
argumentativa
Opinião do leitor sequências
argumentativa
flutuação temática
e
semiformal
e
informal
expositiva
Plantão
de sequência expositiva
flutuação temática
semiformal e formal
centração temática
formal
notícias
Enquete
sequência dialogal
Blog
sequências expositiva e centração temática
formal, semiformal e
argumentativa
informal
sequências expositiva e flutuação temática
formal, semiformal e
dialogal.
informal
Twitter
QUADRO 13: Composição, conteúdo temático e estilo nos gêneros jornalísticos
141
6.2 OS PROCESSOS INDIRETOS DE REFERENCIAÇÃO
Considerando-se a tripartição proposta no capítulo 1 para o grupo das anáforas
indiretas, nesta seção serão focalizados alguns exemplos dos corpora da pesquisa que
atendem aos três tipos mencionados: as anáforas associativas, as anáforas pronominais
esquemáticas e os encapsulamentos anafóricos (nominalizações/rótulos). Busca-se, na
caracterização desses grupos anafóricos, exemplificá-los a partir dos diferentes gêneros que
compõem os corpora impresso e digital deste estudo. Pretende-se, ainda, associar tais tipos de
anáfora, mais precisamente as anáforas associativas e as nominalizações, ao mapeamento
cognitivo que se dá por meio dos mappings, projeções ou esquemas, conforme se discutiu no
capítulo 4 deste trabalho.
6.2.1 Anáforas associativas
Como já foi assinalado anteriormente neste trabalho, as anáforas associativas
constituem parte substantiva do grupo das anáforas indiretas, podendo estar atreladas,
segundo Marcuschi (2005a), a quatro fatores básicos no processo de referenciação: (a) papéis
temáticos associado ao verbo; (b) relações semânticas inscritas nos SNs (meronímias,
hiperonímias, hiponímias); (c) esquemas cognitivos ou modelos mentais; (d) modelos de
mundo textual. Será proposta, nesta análise, uma condensação dos dois últimos subtipos
apresentados pelo autor, tendo em vista a similaridade ou dificuldade de distinção nos dados
investigados. Os exemplos (67) a (77), apresentados a seguir, ilustram esses tipos de anáforas
associativas.
(a) Anáforas associativas baseadas em papéis temáticos do verbo
Essas anáforas indiretas se efetivam por meio da relação associativa que os verbos
mantêm com os seus argumentos (internos ou externos), geralmente focalizando, na
depreensão do referente, a relação que se dá entre a forma verbal e os complementos (objetos
direto e indireto), ou mesmo entre o verbo e o sujeito. Isso ocorre em (67), já que se verifica
uma relação associativa entre o verbo lançar e a expressão definida o livro, cuja interpretação
se apoia no conhecimento do papel temático associado ao verbo, que projeta, semanticamente,
um complemento (objeto direto), formando-se a cadeia lançar - o livro. No exemplo visto em
142
(68) tem-se uma relação associativa que aponta, também, para a relação que se dá entre o
verbo e seus argumentos. O verbo captar está associado, de modo indireto, à expressão
indefinida nenhum microfone, que representa o papel temático ligado ao argumento externo
(sujeito),
formando-se a cadeia anafórica a partir da relação captar – nenhum microfone. É
interessante observar, ainda, que essa associação indireta do verbo com o seu argumento
externo (sujeito) também é reforçada na relação direta e lexicalmente explícita entre a referida
forma verbal (captar) e seus complementos (uma frase, suspiro), o que faz com que o leitor
vincule a expressão nenhum microfone ao sujeito do verbo captar. Vê-se, assim, que, mesmo
em se tratando de anáforas indiretas associativas, outras redes de sentido que se dão cotextualmente, por meio das relações diretas e explícitas, podem estar a serviço do processo
inferencial instaurado na depreensão dos referentes.
(67)
MiriamLeitaoCom Recife @AlmirTavaress é terra de meu pai. É que e só comecei
lançar. Obrigada por comprar o livro.
(gênero twitter, Miriam Leitão, 06/05/11)
(68)
“Ao contrário do que ocorreu em janeiro nos escombros do Haiti, ou na cobertura dos
deslizamentos provocados pelas chuvas de Niterói, em abril o vale-tudo para captar uma frase,
suspiro ou imagem de sobrevivente não teve vez. Nenhum microfone à queima-roupa, nenhuma
imagem invasiva. Pela primeira vez, em muito, muito tempo, a mídia teve de se contentar em
assistir à distância a epopeia que fora cobrir. E reaprendeu a olhar”. (gênero artigo de opinião,
O Globo, 17/10/10, História quase soterrada, por Dorrit Harazim)
(b) Anáforas associativas baseadas em relações semânticas inscritas nos SNs definidos
Esse tipo de anáfora indireta, pautado em relações semânticas inscritas nos SNs
definidos, estabelece uma associação instaurada no léxico, por meio de um vínculo
meronímico que vai do todo para a parte ou da parte para o todo. O primeiro caso é
observado em (69), na associação, via indireta, que se dá entre as expressões definidas o tórax
e o corpo, já que o anafórico (o corpo) representa o todo de uma parte (tórax). Também pode
ocorrer, como lembra Marcuschi (2005a, p. 62), nos casos que envolvem hiponímia e
hiperonímia, destacando-se aí, hierarquicamente, uma relação semântica de maior ou menor
143
especificidade entre os termos envolvidos. No exemplo visto em (70), que se dá por meio da
cadeia associativa sutiã/a peça, o termo peça estabelece uma relação de hiperonímia
representada, no nível semântico, por uma menor especificidade em referência ao item
anterior, pois o termo a peça é mais geral (ou menos específico) do que sutiã.
(69)
“O ambulante Benedito José da Silva, de 52 anos, estava apreensivo com o quadro de saúde do
filho, o ajudante de pedreiro Alex José da Silva, de 32. Na noite de terça-feira ele foi baleado no
tórax, ao tentar apartar uma briga. Alex estava no Pedro II, mas foi transferido para o Rocha
Faria. - Ainda não tiraram a bala do corpo dele. Disseram que não tinha material para fazer a
cirurgia – reclamou.
(gênero notícia, O Globo, 16/10/10)
(70)
“MEU PRIMEIRO SUTIÃ- A coluna da jornalista Mônica Bergamo informou que as lojas
Pernambucanas estão vendendo sutiã com bojo que imita o formato dos seios para meninas de 6
anos. Assinante por ler a coluna aqui. O que você acha?
( ) Gostei da ideia, as crianças têm de se acostumar desde cedo à peça.
( ) Acho errado, uma menina de 6 anos é muito nova para usar sutiã.
( ) Não tenho opinião formada sobre o assunto.”
(gênero enquete, Folha de São Paulo, 06/04/11)
Assim, nos exemplos aqui apresentados, de (67) a (70), encontram-se os tipos de
anáforas associativas stricto sensu, léxico-estereotipadas de Kleiber (1999a, apud ZAMPONI,
2003, p. 74). Como se viu, em (67) e (68), a associação é baseada em papéis temáticos do
verbo e se dá a partir da relação verbo-argumento (lançar/o livro). Já em (69) e (70) tem-se
uma relação por meronímia, que vai do todo para a parte (o tórax/o corpo), e por hiperonímia
(sutiã/a peça), pautada na relação semântica hierárquica (de especificidade) entre os termos.
(c) Anáforas associativas baseadas em esquemas cognitivos ou modelos mentais
As anáforas baseadas em esquemas cognitivos são muitas vezes consideradas prototípicas
no grupo das anáforas associativas, por se instaurarem a partir de modelos socioculturais
ativados no momento mesmo de depreensão dos referentes do discurso. São modelos mentais
previamente internalizados e facilmente acessados pelo falante por ocasião do processamento
discursivo, no como vê nos exemplos (71) a (73), apresentados a seguir.
144
(71)
“FUTEBOL – Parabéns ao técnico Leão (“Após a briga, Leão e atletas vão à delegacia”,
(Esporte, ontem). Um goleiro medíocre no Palmeiras, viveu da fala, na fez na seleção quando
convocado. Gente com resquícios de autoritarismo, agrediu o repórter, fala o que bem entende e
ainda acha tem razão, um verdadeiro leão”
(gênero opinião do leitor, Maurício Villela, SP, Folha de São Paulo, 23/07/11, Futebol)
(72)
“Já sabemos que as mulheres, em geral são mais consumistas. Não resistem às seduções do
mercado de consumo e, agora, passaram a liderar os calotes.”
(gênero blog, Maria Inês Dolci, Folha de São Paulo, 13/05/11)
(73)
“CASAMENTO – No texto “Religião não evita o fim do casamento”, do articulista Hélio
Schwartsman (Cotidiano, ontem), vimos que os casamentos que possuem parcerias, com
divisões igualitárias dos afazeres domésticos e demais obrigações familiares são mais longevos.
Eu incluiria que os casais que têm “assessores”, sejam eles máquinas de lavar roupa, lavar
louça, cortar grama etc., bem como humanos, a exemplo de empregadas domésticas e demais
funcionários, conseguem ser mais efetivos nessas parcerias que buscam igualdades conjugais.
Caso o dinheiro não dê para ter tantos assessores, que tal desenvolver o alter ego, colocar as
mãos para trabalhar e continuar firme no propósito do dia do seu casamento: “até que a morte os
separe”?
(gênero opinião do leitor, Eliel Miranda, SP, Folha de São Paulo, 23/07/11)
Como se vê em (71), um modelo cognitivo é ativado desde o início do texto, a partir
da relação futebol-o técnico-um goleiro-a seleção. O mesmo ocorre em (72), na associação
que se estabelece com base no esquema mercado de consumo-calote. É interessante notar, que
o vínculo associativo, indireto, não se dá apenas por meio de expressões definidas, já que
pode ocorrer, também, através de sintagmas nominais indefinidos, como se vê em (71), no uso
da expressão um goleiro. Outro aspecto que também deve ser mencionado é a possibilidade,
ainda que pequena, de esse tipo de anáfora se realizar por meio de itens pronominais.
Observa-se, em (73), por exemplo, uma anáfora associativa pronominal, uma vez que a
intepretação da forma os está ligada ao frame casal – marido. - mulher. Nota-se, nesse caso,
que o pronome os não se refere propriamente à expressão definida os casais, citada
anteriormente co-texto e com a qual estabeleceria uma relação direta e correferencial, mas sim
se vincula, indiretamente, ao frame cognitivo os – ele – ela – casal, que aponta para uma frase
associada um modelo sociocultural específico relativo ao casamento (heterossexual): “até que
a morte os separe” (marido e mulher).
145
(d) Anáforas associativas baseadas em modelos de mundo textual
As anáforas baseadas em modelos de mundo textual, da mesma forma que aquelas
pautadas em modelos cognitivos, se vinculam a esquemas mentais ativados por ocasião do
processamento discursivo. No entanto, segundo Marcuschi (2005a, p. 64), os esquemas
mentais ativados nesse tipo de anáfora são instaurados por meio do modelo de mundo textual
e envolvem um trabalho cognitivo maior por parte do falante. A âncora co-textual é, nesse
caso, capaz de ativar não propriamente um frame ou modelo cognitivo independente,
previamente internalizado, mas sim um esquema mental que se constrói no próprio co-texto,
ainda que também se baseie em conhecimentos de mundo dos interlocutores.
(74)
“Com a possível exceção de sua invenção do orgasmatron, Woody Allen não é necessariamente
conhecido como um dos primeiros a aderir à tecnologia inovadora. Apesar disso, ele descreveu
um salto ousado para dentro do século 21 e gravou edições em audiolivro das quatro
coletâneas de ensaios de humor que escreveu entre 1971 e 2007.”
(gênero entrevista, Folha de São Paulo, 23/07/11)
(75)
“PERGUNTA - Como você se deixou convencer a aderir ao formato do audiolivro?
WOODY ALLEN – Fui persuadido em um momento de apatia, quando estava convencido de
estar com uma doença fatal. Não tenho computador e tenho interesse zero por tecnologia.
Muitas pessoas acharam que seria uma ideia simpática que eu lesse minhas histórias, e eu cedi,
(gênero entrevista, Folha de São Paulo, 23/07/11)
(76)
“Síria diz ter tomado controle após protesto por fim do regime.”
(gênero plantão de notícias, Folha de São Paulo, 10/06/11)
Como se vê nos exemplos (74) e (75), uma associação ou relação indireta se dá entre
as expressões indefinidas um salto ousado para dentro do século XXI e uma doença fatal e
suas respectivas âncoras co-textuais, criando-se esquemas mentais a partir do modelo de
mundo textual. Em (74), um salto ousado para dentro do século XXI seria associado
anaforicamente à tecnologia inovadora; em (75) uma doença fatal seria atrelada
cataforicamente à âncora Não tenho computador e tenho interesse zero por tecnologia. Em
(76), um esquema associativo é ativado a partir de expressões como o regime e Síria, também
pautado no modelo de mundo textual, já que somente se pode interpretar o anafórico com
referência a um regime político se a depreensão se apoiar em uma âncora co-textual (Síria).
146
Embora Marcuschi (2005a) tenha apresentado esses quatro tipos de anáfora indireta,
pautados em relações associativas, propõe-se aqui uma fusão entre os dois últimos casos
(anáforas baseadas em esquemas cognitivos e anáforas baseadas em modelos de mundo
textual), pois, nos dados analisados, esses processos indiretos se revelaram bastante similares,
sendo difícil, por vezes, se definir claramente quando a interpretação do anafórico de fato se
baseia exclusivamente em frames cognitivos independentes (relacionados meramente ao
conhecimento enciclopédico do leitor) ou quando ela se sustenta em esquemas cognitivos
construídos a partir do modelo de mundo textual. O exemplo dado em (77) apresenta essa
similaridade e dificuldade de distinção entre os dois tipos aqui mencionados.
(77)
“[...] Meus dois amigos não se conheciam e morreram de repente, de ataque cardíaco, pouco
antes ou pouco depois de completarem 50 anos. Como eu dizia, essas perdas me colocaram
para pensar não na morte, mas na amizade. Porque o bode decorrente tem algo de paradoxal.
Associo a amizade a algo leve, sem cobranças, ressentimentos ou segundas intenções, a um
exercício prazeroso normalmente praticado entre tragos largos e ingredientes gordurosos
(aliás, um dos meus amigos era garçom), a ocasiões nas quais se tem a impressão de que a
vida é bela. A morte, nesse cenário, é a quela bêbada chata que insiste em sentar-se
à mesa. [...] Eu não quero ter um milhão de amigos, não, Roberto. Nem Facebook. Não que
seja homem de poucos amigos – e, isso vai sem eu dizer, amigas -, mas gosto de cultivá-los
um a um, por suas características peculiares, não via estatística. Também não menosprezo
amizades nascidas na internet. Entretanto, para se efetivarem amizades, elas têm de sair do
virtual, para o prazer do convívio à mesa. [...] Infelizmente, amigos não duram para sempre, é
a óbvia constatação dos últimos meses. Ou porque eles fazem a desfeita de morrer antes da
gente ou porque alguma circunstância os afasta em vida. Porém, o bem-estar que a amizade
proporciona, este sim, é eterno. Até a hora em que nosso próprio coração, cansado de ver a
mesa se esvaindo, faz ao garçom que não está mais lá o gesto de escrever algo no ar.”
(gênero crônica, O Globo, 15/10/10, Da amizade, por Arthur Dapieve)
No exemplo acima, trecho da crônica de Arthur Dapieve, intitulada Da amizade, vê-se
que o frame associativo baseado em esquemas mentais a internet – o virtual, ao mesmo tempo
em que se instaura a partir do conhecimento de mundo do leitor, também é desencadeado por
uma expressão dada no co-texto, Facebook, referente a um modelo de mundo textual
(Facebook - a internet – o virtual). O outro modelo cognitivo levantado em tal exemplo (a
mesa – o garçon), embora seja, igualmente, vinculado ao conhecimento enciclopédico de que
o garçom atende à mesa de um restaurante, também é sustentado pelos modelo de mundo
textual. Afinal, a expressão definida a mesa, para ser depreendida como a mesa de um
restaurante, também é associada indiretamente a âncoras anteriormente apresentadas no cotexto (ingredientes gordurosos). A própria forma adverbial lá é capaz de ativar tal esquema,
147
fazendo menção anafórica ao restaurante (a mesa – o garçom – lá) num processo inferencial.
Por outro lado, a própria interpretação do restaurante como local onde se encontra a referida
mesa é metafórica, já que, na menção que o cronista faz à morte de seu amigo garçom, a
expressão lá pode ser entendida como plano terreno, em que se encontram as pessoas vivas ou
encarnadas. Constrói-se assim, um outro frame, com base em interpretação metafórica (a
morte – lá)
Enfim, em função da dificuldade, na análise dos dados, de se achar a linha tênue que
separa esses dois tipos de anáfora associativa, e considerando que raramente se encontram
associações indiretas que não se apoiam em modelos do mundo textual, a partir das âncoras
do co-texto (mesmo nas anáforas pautadas em papéis de temáticos e nas relações semânticas
inscritas no léxico), assumem-se aqui, basicamente, três tipos anafóricos associativos: (a) as
anáforas pautadas em papéis temáticos; (b) as anáforas pautadas em relações semânticas
inscritas nos SNs (meronímias, hiperonímias e hiponímias); (c) as anáforas pautadas em
modelos mentais. As duas primeiras representam o que se será identificado, neste trabalho,
como anáforas associativas stricto sensu, enquanto que o último tipo corresponderá ao grupo
das anáforas associativas lato sensu33.
6.2.2 Anáforas pronominais esquemáticas
As anáforas pronominais esquemáticas são definidas por Marcuschi (2005) como
aquelas que se realizam a partir de pronomes sem antecedente explícito, ou seja, são
pronomes introdutores de referentes, porém não têm um antecedente definido no co-texto nem
é ancorado em modelos cognitivos previamente ativados. É o que ocorre em (78) e (79), em
que há o uso da forma pronominal eles. No primeiro caso, em (78), uma relação indireta,
esquemática, impede que tal pronome seja interpretado correferencialmente, já que, a partir
dos conhecimentos de mundo do leitor, vincula-se tal expressão aos donos/gerentes de
concessionárias. Em (79) também há uma relação indireta realizada por item pronominal sem
antecedente explicitado, sendo o anafórico eles referente aos funcionários de banco em geral.
Nota-se que esse tipo de anáfora, embora tenha caráter um tanto indefinido em função da
33
Nota-e que a distinção proposta nesta análise, entre as anáforas associativas stricto e lato sensu apresenta
diferença em relação àquela adotada por autores como Apothéloz, e comentada por Zamponi (2003) e Heine
(2000), já que, aqui, parte-se de um grupo maior (o das anáforas indiretas) que contempla, além das anáforas
esquemáticas pronominais e encapsulamentos anafóricos, as anáforas associativas sctricto e lato sensu.
148
ausência de antecedente explícito co-textualmente, é perfeitamente passível de interpretação
no contexto comunicativo, já o leitor ativa, de imediato, seus conhecimentos enciclopédicos,
bem como os conhecimentos partilhados com autor.
(78)
“[hestia] [ sr j preto, SP Brasil ]
Eu não sei o q significa cartão de crédito básico. Se for esse de bancos q usamos diariamente,
acho uma providência muito oportuna pra evitar esse inferno de bônus. Tem q proibir mesmo!
Quando se faz uma compra grande como um carro p. ex. eles não aceitam cartão de crédito. Então
vc fica anos comprando pão e combustível com cartão pra quando conseguir um boa qtdde de
bônus e qd vai usar ele já expirou. Sacanagem.”
(comentário no gênero blog, Maria Inês Dolci, Folha de São Paulo, 09/03/11)
(79)
“[Fábio César] [Belo Horizonte /MG]
Entre em uma concessionária de veículos e logo um vendedor lhe atenderá. Entre em uma loja de
roupas e logo um vendedor lhe atenderá. É o normal: clientes normalmente são bem atendidos
porque o comércio sobrevive disso. Mas entre em um banco. A impressão que se tem é que eles
vão prestar um imenso favor a você, e não prestar um serviço.”
(comentário no gênero blog, Maria Inês Dolci, Folha de São Paulo, 25/03/11)
É curioso observar, ainda, o potencial generalizador que esse tipo de anáfora indireta
apresenta, pois o referente está sempre atrelado a um grupo mais genérico, amplo, ainda que
seja realizado por meio de pronomes pessoais na sua forma singular (ele ou ela). Em (80), por
exemplo, vê-se que a expressão pronominal ele, apesar de estar na forma singular, ativa
indiretamente um referente mais genérico, vinculado ao amplo conjunto dos jogadores
profissionais. O mesmo ocorre em (81), mas no uso da forma plural, com o pronome eles, que
tem seu referente atrelado a uma interpretação mais geral, pois remete ao grupo maior dos
políticos petistas que assumiram o governo de São Paulo, no mandato anterior.
(80)
“O GLOBO: E a hora de se reciclar...
VANDERLEI: Estou sossegadão. A interferência não é com o Vanderlei, é com o Futebol. Os
jogadores do Flamengo vão fazer um media training (treinamento para dar entrevistas), serão
obrigados, porque precisam entender a importância disso no trabalho. Perdeu o jogo, se encolhe?
Não, ele tem contrato de imagem, tem que dar resposta ao torcedor.”.
(gênero entrevista, O Globo, 24/10/2010, Olha o Luxa aí)
149
(81)
“Um juiz invalidou o projeto de revisão do Plano Diretor da cidade de São Paulo com o
argumento de que a população deve ser incluída na sua discussão (“Juiz invalida proposta de
Kassab para Plano Diretor”, Cotidiano, ontem). Tenho duas perguntas: o que eu fui fazer na
audiência pública que discutiu o projeto? O Judiciário quer manter a população refém da equipe
da ex-prefeita petista que elaborou o plano anterior, já que apenas eles compreendem como
funciona?”
(gênero opinião do leitor, Tiago Vinícius Matos, SP, Folha de São Paulo, 13/08/10, Urbanismo)
Outro aspecto que deve ser mencionado é a possível ocorrência de pronomes
demonstrativos nesse tipo de anáfora. Os pronomes demonstrativos, quando não encapsulam,
ou não apresentam um antecedente explícito no co-texto, também assumem um caráter de
anáfora indireta, esquemática. É o que ocorre no exemplo dado em (82), trecho extraído da
crônica Quem é você meu amor?, de Moacyr Scliar. Em tal exemplo, a expressão pronominal
aquilo não têm um antecedente que se possa recuperar diretamente, via co-texto, mas
apresenta uma interpretação indireta, atrelada a âncoras co-textuais e, ao mesmo tempo, aos
conhecimentos de mundo do leitor. Ao longo de toda a crônica o autor não explicita o
referente (sexo), mas é possível depreende-lo a partir do frame associativo ele-ela-casal, bem
como de outras âncoras presentes no co-texto. Percebe-se, ainda, que o uso do demonstrativo
neutro está ligado, nesse caso, a uma situação de informalidade, em que cabe um tom de
eufemismo ao tema abordado, revelado, de algum modo, no estilo e na orientação
argumentativa assumida pelos interlocutores. Isso corrobora a ideia de que a atividade de
referir está sempre ligada aos propósitos enunciativos dos interlocutores (KOCH, 2001).
(82)
“Não, ele não se lembrava de nada. Mas, de fato, gostava de champanhe; talvez tivesse exagerado
um pouco na dose e isso poderia ter contribuído para a amnésia que agora o cometia. De qualquer
forma, o que estava ouvindo eram boas notícias, e ele se sentia muito contente de estar casado.
Mas havia ainda um pergunta que tinha de fazer, uma pergunta importantíssima. Hesitou um
momento, criou coragem, indagou: - E nós fizemos... aquilo? Ela deu uma gargalhada: claro,
querido, fizemos aquilo e devo lhe dizer que, fazendo
aquilo, você foi absolutamente
notável; você disse que, depois de tantos anos, estava sem prática, mas você se saiu muito bem,
nota dez.”
(gênero crônica, Folha de São Paulo, 09/08/10, Moacyr Scliar, Quem é você, meu amor?)
150
Ressalta-se, contudo, a partir dos dados observados, que é bem mais comum a
realização dessas anáforas indiretas por meio de pronomes pessoais, na sua forma plural, tal
como ocorre no exemplo dado em (83), no qual o pronome eles tem como referente o grupo
dos políticos americanos responsáveis pelas políticas de segurança do Estado, depreendido via
esquemática e indireta.
(83)
“TRAGRAM A CABEÇA DE BIN LADEN
Leio na internet que o governo americano continua deliberando sobre a conveniência de
divulgar ou não a foto de Bin Laden morto. “Ela é horrível”, diz um porta-voz. Não vejo
outra resposta a não ser a de que eles têm obrigação de divulgar. A decisão de matar
matar Bin Laden, a qual não me deixa nada infeliz, tem de ser assumida em todas as suas
consequências. [...]”
(post no gênero blog, Marcelo Coelho, Folha de São Paulo, 04/05/10)
Além do tipo de pronome (pessoal, demonstrativo) vinculado a esse grupo de anáforas
indiretas, foi observada, nos dados apresentados, certa flexibilidade em termos da sua
realização ou não na superfície textual. Em (84), tem-se um exemplo canônico, no qual a
anáfora esquemática se realiza por meio de um pronome pessoal, lexicalmente realizado, na
sua forma plural, cuja interpretação remete ao grupo mais genérico dos homossexuais e não é
correferencial, mesmo estando vinculada à âncora dois garotos, apresentada no co-texto. Em
(85), apesar de o item pronominal revelar, igualmente, um potencial generalizador, já que tem
como referente o grupo de corretores e organizadores da prova do Enem, ele não se realiza na
superfície textual, pois corresponde a uma forma nula (ϕ)34. Nota-se, aí, como em todos os
outros casos de anáfora esquemática, que não há um antecedente explícito no co-texto e que a
depreensão do referente é, também, indireta.
34
Não se está considerando, aqui, a noção tradicional de “sujeito indeterminado”, mas sim a ativação de um
referente novo a partir de âncoras (co-textuais e contextuais) e de esquemas cognitivos acionados pelo leitor.
151
(84)
“[josé ribeiro] [ São Paulo - SP - BR]
Estava como minha esposa e minha filha de 9 anos em um shopping, na esquina da Rua Augusta
com a Paulista, quando subindo a escada rolante para o segundo piso onde fica os restaurantes ia
em nossa frente dois garotos de aproximadamente 15 anos de mãos dadas e de repente
começaram-se a se beijar de maneira frenéticas e absurdas. Minha esposa tampou os olhos da
menina para não ver e a cena continuou sem qualquer constrangimento por todo o percurso até a
ala dos restaurantes. Olhei para as outras pessoas todos se sentindo agredidos mas com expressão
de muito medo. Tive a curiosidade de perguntar a um dos seguranças sobre o ocorrido e fiquei
mais espantado ainda. Agora são eles que mandam, qualquer advertência ou controle de
comportamento é encarado como ato homofóbio, se vc, eu ou qualquer outra pessoa se dirigir a
eles, solicitando um comportamento mais comedido, já ameaçam a dar escândalos e começam a
gritar que somos homofóbicos, melhor não frequentar por aqui com família amigo”.
(comentário no gênero blog, Maria Inês Dolci, Folha de São Paulo, 30/03/11)
(85)
“Tenho 17 ano, prestei vestibular em 2009 e, atualmente, estudo na Faculdade de Direito da USP.
Com base na reportagem divulgada, em 20/07, na página C8 do caderno Cotidiano, quero tornar
públicas as injustiças que vêm sendo cometidas pelo Inep. Se tal órgão não consegue manter a
prova original em segredo, demasiado sigilosa é a forma pela qual as provas do Enem apuradas e
corrigidas. Houve algum equívoco quanto à minha nota de redação, cuja discrepância em relação
às demais notas é gritante. Infrutíferos foram os diversos e-mails mandados ao Inep, nos quais
solicitava a revisão da nota que arbitrariamente ϕ me outorgaram. Ademais, a indolência foi
tamanha que até ϕ “se esqueceram” de incluir o colégio Integrado Objetivo no ranking divulgado.
Resultam disso tudo enormes injustiças, seja para os alunos, que, como eu, se empenharam e se
dedicaram por longos períodos, seja para o colégio, cujo mérito devido não se reconheceu.”
(gênero opinião do leitor, Adriana Regina Sarra de Deus, SP, Folha de São Paulo, 01/08/10,
Enem)
As ocorrências apresentadas em (86) e (87) também revelam o processamento anafórico
indireto que se dá através de pronomes não realizados superficialmente no texto. Os referentes
são obtidos por vias inferenciais, que remetem, respectivamente, ao grupo de políticos de
americanos responsáveis pela segurança do Estado (no comentário do post de blog que trata
da morte de Bin Laden) e ao conjunto de funcionários responsáveis pelo setor de serviços
financeiros da Universidade Anhambi Morumbi.
(86)
“[Miriam]
Olá, Marcelo. Nada disso me deixa feliz. Mas estou de acordo com vc, quando vc diz que acha
que ϕ deveriam mostrar o corpo. Pois claro, com corpo ou sem corpo essa história não vai parar
por aí né mesmo?”
(comentário no gênero blog, Marcelo Coelho, Folha de São Paulo, 05/05/11)
152
(87)
“[Haley] [São Paulo – SP]
O desrespeito ao consumidor é absurdo. Queria reclamar de outra fila, que é a do atendimento ao
Aluno da Anhambi Morumbi. Outro dia assisti esperando uma sessão de Uma Noite no Museu e
mais metade da segunda. Agora estou dependendo da declaração financeira solicitada em 18 de
março e prometida para 1º de abril de 2011 e até agora ϕ não me deram e ϕ não sabem informar
quando darão. Somos atendidos apenas por funcionários que não têm autonomia e não temos
acesso a esferas superiores para reclamar.”
(comentário no gênero blog, Maria Inês Dolci, Folha de São Paulo, 15/04/11)
Por fim, é preciso destacar que as anáforas pronominais esquemáticas, por serem
indiretas, não devem apresentar nenhum vínculo de correferencialidade com um antecedente
co-textual. Quando houver alguma possibilidade de interpretação por esse tipo de vínculo,
ressalta-se que o processamento anafórico deve ser visto como direto, ancorado em uma
expressão pontualizada no co-texto. Em (88), verifica-se certa ambiguidade na interpretação
do pronome eles, que tanto poderia ser relacionado a um antecedente explícito
co-textualmente (aqueles que se declaram como tal) como se vincular indiretamente a um
grupo mais geral, o dos políticos brasileiros. Nesses casos, preferiu-se não considerar, na
análise, tais pronomes como uma anáfora indireta, dada a natureza correferencial do
processamento.
(88)
“Concordo com a Fernanda Torres (Poder, 24/07): a disputa hoje não é entre esquerda e direita,
mas sim entre esquerda e esquerda. Na verdade, o pensamento de direita no Brasil deixou de
existir ainda no começo da Revolução de 1964. Durante a repressão, esquerda e direita acabaram
virando sinônimos de contra e a favor da ditadura. Hoje, na ausência do inimigo comum, a
definição se esculhambou de vez: esquerda são aqueles que se declaram como tal, e direita são
aqueles que eles não gostam!”
(gênero opinião do leitor, Aldo Felício Naletto Junior, SP, Folha de São Paulo, 25/07/10,
Fernanda Torres)
153
6.2.3 Nominalizações/Rótulos
O terceiro tipo de referenciação indireta aqui apresentado diz respeito às anáforas com
potencial encapsulador, mais conhecidas como nominalizações ou rótulos, que resumem todo um
conteúdo ou porção co-textual no processamento discursivo, como se observa nos exemplos
apresentados a seguir. Em (89), a expressão o caso rotula ou encapsula tudo aquilo que foi
mencionado anteriormente na notícia sobre o crime cometido pelo consultor de vendas. Já em (90), o
conteúdo do primeiro período apresentado (Síria ataca civis com helicópteros) é resumido na
expressão definida a violência.
(89)
“A 10ª Vara Federal Criminal de São Paulo condenou o consultor de empresas M.R.G., de 65
anos, a cinco anos de prisão, mais 161 dias de multa, por fornecer, divulgar e publicar, por 90
vezes, imagens de pornografia infantil na internet. O Caso foi descoberto na Operação
Carrosel 2, da Polícia Federal, realizada em setembro de 2008, em colaboração com a
Interpol.” (gênero notícia, Folha de São Paulo, 23/07/10)
(90)
“Síria ataca civis com helicópteros: EUA pedem fim da violência.
(gênero plantão de notícias, Folha de São Paulo, 06/06/11)
Os exemplos apresentados em (91) e (92) revelam, ainda, que o encapsulamento pode
estar, muitas vezes, associado a uma relação, indireta, instaurada no próprio léxico, sendo
marcado morfologicamente (o que corresponderia a uma nominalização stricto sensu,
diferente da nominalização lato sensu ou nomeação, conforme Cavalcante, 2001)35. Isso
ocorre no processamento anafórico que se dá a partir da relação semântico-morfológica perdi
– essas perdas, em (91) e convocar – a convocação, em (92). Vê-se, ainda em (92), que esse
processo é diferente daquele que ocorre a partir da expressão referencial a decisão, que
também encapsula, mas corresponderia a um rótulo ou nominalização lato sensu.
35
Cavalcante (2001) adota o termo nomeação para o fenômeno que Apothéloz e Chanet (1997) denominam
nominalização. Tal perspectiva, que é correspondente a uma visão ampla dos encapsulamentos anafóricos,
inclui também os rótulos. Segundo a autora, “a nomeação, que consiste numa operação de encapsulamento de
porções textuais de extensão variada, desempenha um importante papel de organização de informações no
discurso, bem como, às vezes, de veiculação de conteúdos de valor axiológico” (CAVALCANTE, 2001,
p. 127).
154
(91)
“Nos últimos meses perdi dois amigos, além de uma tia de quem eu gostava, mas que já não
me reconhecia. Dizer que essas perdas me colocaram para pensar na morte pela enésima vez
seria banal. Inclusive porque não há dia da vida em que eu não pense na morte, ora com um
sentimento de injustiça, ora com uma esperança de descanso.”
(gênero crônica, O Globo, 15/10/10, Da amizade, Arthur Dapieve)
(92)
“A câmara derrubou pedido para convocar o ministro Antonio Palocci para explicar sua
evolução patrimonial. Você concorda com a decisão dos deputados?
( ) Sim, faltam elementos suficientes para a convocação.
( ) Talvez, Palocci vai ter que se explicar mesmo sem depoimento na Câmera.
( ) Não, já que o ministro não deve temer explicações”.
(gênero enquete, Folha de São Paulo, 18/05/11)
Também é importante mencionar que as nominalizações/rótulos podem ou não explicitar o
direcionamento argumentativo na situação discursiva, principalmente em função da presença ou
ausência de “modificadores axiológicos positivos ou negativos” (KOCH, 2001, p. 86). Em (93),
a expressão a medida, por exemplo, assume caráter neutro em termos de orientação argumentativa, já
que a sequência apresentada em tal gênero é basicamente expositiva/explicativa e que não há uso de
modificadores. Em (94), por outro lado, a direção argumentativa se revela claramente, já que ao usar a
forma encapsuladora uma grave sandice, o autor do blog direciona (negativamente) sua opinião acerca
do assunto, tanto por meio de uso de modificadores como grave, como pela seleção do nome núcleo
metafórico sandice.
(93)
“Para atender as famílias de pacientes que foram levados para o Hospital Dona Lindu, em
Paraíba do Sul, o secretário Sérgio Côrtes informou que um ônibus levará, todos os domingos,
os acompanhantes – até dois por cada internado – até a unidade. A medida começa amanhã.
Os ônibus sairão do Pedro II às 8h30m e voltarão às 16h. (gênero notícia, O Globo, 16/10/10)
(94)
“Em discurso, hoje, na tribuna do Senado, Eduardo Suplicy (PT-SP), tentou reescrever a
história do maior e mais vil atentado terrorista de todos os tempos – o 11 de setembro de 2001.
[...] Suplicy cometeu uma grave sandice”. (gênero blog, O Globo, Blog do Noblat, 09/05/11)
155
Convém, dizer, ainda, que mesmo quando o direcionamento argumentativo não é
propriamente explicitado nesse tipo de anáfora - sendo o encapsulamento realizado por meio
de termos mais neutros ou genéricos, não envolvendo uso de modificadores axiológicos
positivos ou negativos - a orientação argumentativa está sempre presente nas escolhas das
expressões referenciais, como lembra Koch (2001, p. 87). Exemplos em que isso pode ser
revelado claramente são os que se apresentam em (95) e (96). Em (95), a expressão genérica
essas coisas, ao mesmo tempo em que encapsula todo um conteúdo anterior (Você já
participou de um site de compras coletivas?), sugere um tom valorativo em relação ao tópico
discursivo abordado (site de compras coletivas). Do mesmo modo, em (96), o uso do rótulo
ironia sustenta – por meio de remissão catafórica - um posicionamento argumentativo
desfavorável ou de desaprovação da atitude de Obama no resgate do terrorista Bin Laden pelo
governo americano.
(95)
Você já participou de algum site de compras coletivas?
( ) Sim, e gostei. Virei freguês
( ) Sim, mas me arrependi. Nunca mais volto.
( ) Não, mas vou tentar qualquer dia.
( ) Não, e nem vou. Não acredito nessas coisas.
(gênero enquete, O Globo, 26/06/11)
(96)
“AncelmoCom RT @BlogdoNoblat Que ironia. Obama, Prêmio Nobel da Paz,
autorizou a morte de um terrorista desarmado q poderia ter sido capturado, julgado e
condenado.”
(gênero twitter, Ancelmo Gois, 04/05/11)
Outro aspecto observado nos dados da pesquisa, em relação a essas anáforas indiretas,
foi a ocorrência de nominalizações/rótulos por meio de expressões indefinidas e de pronomes
demonstrativos determinantes do núcleo dos SN´s. O exemplo visto em (97) apresenta
processos indiretos de referenciação – catafórica e anafórica, respectivamente no uso de
expressões indefinidas como uma vida normal e uma liberdade. Em (98), tem-se um caso se
uso de pronome demonstrativo como determinante do núcleo, bastante comum nos
encapsulamentos anafóricos, presente na expressão esse pleito.
156
(97)
“O GLOBO: Foi importante viver longe da fama do pai?
EDINHO: Lá eu tive uma vida normal. Pude crescer e viver como qualquer outro jovem.
Uma liberdade que não teria em qualquer outro país do mundo. E lá, onde o futebol não é o
primeiro esporte, joguei basquete, futebol americano, beisebol, hóquei no gelo...”
(gênero entrevista, O Globo, 23/10/10, Pelé não era só meu, só da família, era do mundo)
(98)
“O respeito ao meio ambiente associado à noção de desenvolvimento sustentável, marca da Rio92, chegou para ficar. É atitude solidária em relação ao planeta e à própria humanidade. Agora
mesmo, nas eleições de 2010, foi pano de fundo de boa parte das opções de voto. Em análise a
propósito desse pleito, a jornalista Miriam Leitão considera que “há uma compreensão maior de
que a sustentabilidade não é uma palavra oca, mas uma nova forma de estruturar o projeto
econômico.”
(gênero artigo de opinião, O Globo, 21/10/10, A sustentabilidade entrou na agenda, Sérgio
Magalhães)
Verificaram-se, ainda, nas ocorrências investigadas, rótulos que sugerem interpretação
metafórica em sua relação com o referente. Esse tipo de processamento anafórico, indireto,
ocorre em (99), uma vez que, no exemplo dado, a expressão cara limpa, ao encapsular
cataforicamente um conteúdo posteriormente apresentado, remete à metáfora da limpeza
como ausência de enfeites (acessórios exagerados).
(99)
“23h34m Economia
De cara limpa: Citroën C3 Picasso chega sem os enfeites exagerados do Air Cross.”
(gênero plantão de notícias, O Globo, 24/05/11)
Por fim, um último questionamento levantado a partir dos dados, no caso dos
encapsulamentos anafóricos, foi acerca da dificuldade de se situar em uma classificação mais
apropriada as anáforas encapsuladoras realizadas exclusivamente por meio de pronomes
demonstrativos, tal como visto em (100). É certo que a expressão pronominal isto resume
tudo que é mencionado anteriormente na superfície textual, porém não pode ser classificada
como nominalização ou rótulo, já que é realizada por meio de item pronominal.
Corresponderia, então, a uma espécie de encapsulamento anafórico, de natureza pronominal,
que também não poderia ser enquadrado no grupo das anáforas pronominais esquemáticas.
157
Sendo assim, preferiu-se não manter tais casos, nessa análise, no grupo das anáforas
indiretas com a ressalva de que essas expressões são encapsuladoras, mas não são nominais –
portanto, são podem se encaixar no grupo das nominalizações/rótulos - e, também,
correspondem a um tipo pronominal diferente daquele apresentado em nossa proposta
classificatória (anáforas pronominais esquemáticas). Também se deve esclarecer que tais
anáforas não correspondem, propriamente, aos casos de dêixis textual, que simplesmente
apontam para uma porção do co-texto, mas não têm, necessariamente, potencial encapsulador.
(100)
“É lamentável assistir a políticos e religiosos discutirem sobre o aborto. Aborto não é política
nem religião: é vida, ou melhor, morte. Acredito que a mulher tem direito ao seu corpo, à sua
vida, mas não tem direito de decidir sobre a vida que não lhe pertence. Isto é crime.
(gênero opinião do leitor, O Globo, 11/10/10, João Mattos, Maricá-RJ, O Brasil é maior)
6.2.4 Correspondência entre espaços mentais em anáforas indiretas
Relacionam-se, nesta seção, quatro exemplos de anáforas indiretas encontrados nos
gêneros twitter e plantão de notícias à ativação de espaços mentais, buscando ressaltar a
importância das correspondências (ou mappings) na construção do sentido e na depreensão
dos objetos do discurso. Para tanto, apresentam-se a seguir as correspondências envolvendo 1
ou 2 espaços mentais em (101), (102), (103) e (104).
158
(101)
folha_com Santos inicia venda de ingressos para os associados. http://bit.ly/IEKYwV
(gênero twitter, Folha de São Paulo, 09/05/11)
No exemplo apresentado em (101), vê-se que a interpretação da expressão os
associados se dá via indireta, a partir da ativação de um espaço mental atrelado ao MCI sobre
futebol (a partir do qual se constrói o frame futebol-time-associado, que permite ao leitor
conceber esse grupo de associados como integrantes de determinado time (Santos).
Já em (102), percebe-se que há a ativação de dois espaços mentais, em função da
presença do space buider, em Minas, que serve, ao lado de cachaça com chumbinho, como
âncora co-textual para a identificação de referente associado à expressão definida o hospital.
Nesse caso, a interpretação da expressão o hospital é dependente das âncoras co-textuais
mencionadas, bem como dos conhecimentos de mundo vinculados aos MCI´s em questão
(bebidas e doenças)
159
(102)
folha_com Cachaça com chumbinho leva oito pessoas ao hospital em Minas.
http://bit.ly/J5vsgN (via @folha_cotidiano)
(gênero twitter, Folha de São Paulo, 15/05/11)
Nos dois exemplos que seguem, (103) e (104), observam-se correspondências que,
igualmente, revelam a ativação de dois espaços mentais, porém indicando um mapping
associado a possibilidade, condição, suposição etc. Em (103), há o espaço da possiblidade
(crise do etanol), ativado a partir de um espaço base, que, por sua vez, está associado aos
MCI´s (economia e combustível) acionados pelo leitor. Desse modo, a safra corresponde aí a
uma expressão definida que, apesar de revelar um referente novo, é dependente de âncoras
como etanol, apresentadas anteriormente no co-texto. Por isso, tem-se um caso de
processamento anafórico indireto, associativo, realizado a partir da ativação de espaços
mentais.
160
(103)
21h35m | Economia
Para Fecombustíveis, crise do etanol pode chegar antes da safra.
(gênero plantão de notícias, O Globo, 25/05/11)
161
(104)
Aparelho dá visão parcial em caso de problema na retina
(gênero plantão de notícias, O Globo, 25/05/11)
O mesmo ocorre em (104), no qual a ativação de um espaço base a partir do MCI
sobre oftalmologia, permite a correspondência com outro espaço, o de condição, ligado à
hipótese de se ter ou não problema de retina. Vê-se, também, que só de depreende a expressão
a retina como base no frame visão-retina, construído a partir do MCI ativado pelo leitor.
De um modo geral, a partir dos exemplos vistos de (101) a (104), verifica-se que o
trabalho com espaços mentais pode ampliar a compreensão dos processamentos anafóricos
indiretos, especialmente os casos das anáforas associativas aqui mencionadas (sctricto e lato
sensu). Afinal, nota-se que os MCI´s estudados em tal abordagem correspondem, em geral, às
associações e aos esquemas cognitivos acionados pelo falante em processos anafóricos
indiretos. Obviamente, o que se analisou nesta seção foi apenas uma tentativa de captar
contribuições de uma perspectiva teórica relevante ao estudo construção do sentido textual – a
Teoria dos Espaços Mentais – já mencionada por Marcuschi (2005a, p. 92) em seu estudo
sobre as anáforas indiretas.
162
6.3 REFERENCIAÇÃO E GÊNERO: RELAÇÕES POSSÍVEIS
Embora haja, no percurso teórico da Linguística Textual, muita discussão em torno das
duas grandes temáticas desta pesquisa – referenciação e gêneros discursivos – pouca atenção
tem sido dada propriamente à conexão entre esses dois temas.
Como os processos de
referenciação se manifestam em diferentes gêneros? Quais aspectos dos gêneros podem ser
pertinentes ou decisivos na análise dos processos de referenciação? Quais funções
hipertextuais envolvidas nos gêneros digitais são pertinentes aos processos de referenciação?
Ainda que não se proponha, aqui, exaurir essas questões (e com relação a todos os gêneros),
selecionaram-se os gêneros do corpus digital (twitter, blog, plantão de notícias e enquete), a
fim de se tecer algumas considerações acerca dessa problemática. A escolha desses gêneros
se fez pelo fato de eles apresentarem particularidades bem interessantes ao estudo da
referenciação, reveladas, inclusive, em sua estrutura composicional. A seguir, tem-se uma
discussão dos aspectos gerais envolvidos nos processos de referenciação que se dão nos
gêneros jornalísticos digitais adotados nesta pesquisa.
6.3.1 Referenciação no twitter
Já foram apresentadas, no capítulo 3, algumas propriedades que definem o twitter
como gênero, em termos de conteúdo temático, composição e estilo. Não é intenção, aqui,
esmiuçar todas as características desse gênero digital, mas apenas se pretende apresentar
aquelas que podem se mostrar relevantes para o processamento referencial no discurso. Sendo
assim, cinco aspectos parecem interessar particularmente à análise aqui proposta: (1) limite de
140 caracteres; (2) uso de RT´s (retweets); (3) mensagem aos interlocutores por meio de link
no formato @___; (4) criação de etiquetas (hashtags) por meio de link no formato #___; (5)
atualização da página home (tweets).
6.3.1.1 Limite de 140 caracteres
Uma das peculiaridades do Twitter - aspecto que o caracteriza como “microblog” - é o
texto, chamado de tweet, limitado em sua extensão a 140 caracteres. Isso obriga o produtor a
exercer a sua capacidade de síntese, postando mensagens essencialmente curtas e objetivas.
Em termos de processamento anafórico, essa característica do microblog traz, também,
163
algumas consequências para a atividade textual-discursiva. Um texto de 140 caracteres não dá
margem a longas cadeias referenciais e, muitas vezes, a depreensão dos objetos do discurso se
dá hipertextualmente, por meio de links. Como se verifica em (105), na página da jornalista
Miriam Leitão, o referente da expressão o livro é interpretado hipertextualmente, já que, no
tweet anterior, ela apresenta o link de divulgação do lançamento do livro Saga brasileira, de
sua autoria. Assim, para que o usuário depreenda o referente corretamente, ele precisará
recorrer ao link que dá acesso à timeline da colunista ou ao link de divulgação do referido
livro.
(105)
MiriamLeitaoCom Então, @carl_fogag, são histórias assim, como aquela da semana
do confisco do Collor, que conto no livro. 25 minutes ago from Seesmic
6.3.1.2 Uso de retweets (RT´s)
O recurso do RT na página do Twitter corresponde ao encaminhamento de uma
mensagem ou tweet que já foi postado anteriormente e que o produtor deseja tornar visível em
sua página principal. O RT equivale a um recurso de citação ou intertextualidade, que, no
Twitter, vem sempre acompanhado da autoria antes da mensagem, indicada por @_____. Na
referenciação discursiva, o RT mostra-se relevante por indicar co-textualmente muitos
referentes anafóricos que, sem tal recurso, só poderiam ser recuperados hipertextualmente. É
o que se pode notar em (106), já que a expressão referencial irmã pianista tem a sua
interpretação atrelada à informação apresentada co-textualmente, estabelecendo relação
associativa com o verbo toco, pautada no papel temático associado ao seu argumento externo.
Desse modo, percebe-se que a estratégia do retweet possibilita a recuperação (direta ou
indireta) de várias cadeias referenciais apresentadas no Twitter, uma vez que aquilo que é
postado antes pelos interlocutores é apresentado novamente no novo tweet.
(106)
MiriamLeitaoCom Irmã pianista!. RT @SMilwardL Dia 23/5 toco em POA.
Abertura do Fronteiras do Pensamento. Programa:Rachmaninoff. Salão de Atos da
UFRGS. 31 minutes ago from Seesmic
164
Outra característica importante desse recurso, no que se refere ao processamento
anafórico, é que o “antecedente” (para as anáforas diretas) ou “âncora co-textual” (para
anáfora indireta), do ponto de vista cronológico (sequencial), pode deixar de ocupar a posição
canônica anterior na cadeia co-textual, já que, ao usar RT, o usuário do Twitter muitas vezes
apresenta a mensagem encaminhada em posição posterior à sua resposta ao interlocutor. Em
(106), por exemplo, a âncora do referente da expressão nominal utilizada na resposta da
colunista (irmã colunista) vem depois, no texto do RT (ϕ toco), o que comprova essa
flexibilidade no posicionamento do anafórico. Caso o RT não fosse utilizado, esse aspecto
também poderia aparecer hipertextualmente, por meio de links de acesso à timeline que
apresentariam o antecedente ou a âncora em posição não canônica, a posteriori. De um modo
ou de outro, é garantida, aí, a continuidade referencial.
6.3.1.3 Identificação dos interlocutores por meio do formato @___
Os interlocutores no Twitter são apresentados e identificados por meio de expressões
no formato @__, que correspondem, ao mesmo tempo, a um link da cadeia hipertextual que
pode ser acessado a qualquer instante. Sendo assim, em se tratando de referenciação, um link
associado a uma expressão no formato @___ é o que abre espaço e dá margem a uma série de
informações
co(n)textuais
relevantes
ao
processamento
discursivo,
ampliando
as
possibilidades de retomadas hipertextuais ou de associações indiretas de toda ordem. Em
(107), a interlocutora da colunista Miriam Leitão é identificada pelo formato @clarafavilla,
link que dá acesso a sua página no Twitter e a seus posts anteriores, a partir dos quais se pode
depreender a informação de que ela estará no lançamento do livro Saga Brasileira.
(107)
MiriamLeitaoCom Conto com você, @clarafavilla about 19 hours ago from Seesmic
165
6.3.1.4 Criação de etiquetas (hashtags) por meio de link no formato #____
O formato de expressão #____ é usado no Twitter para criação de um assunto ou
nome-etiqueta (hashtag) que será que será mencionado de modo recorrente por vários
usuários. A partir do momento em que é criado, ele funciona hipertextualmente como link
para todas as mensagens com o mesmo hashtag. No que toca à sua importância para o
processamento referencial no discurso, pode-se dizer que, da mesma forma que o formato
@____ , usado para identificação de interlocutores, uma etiqueta (tag) corresponde,
literalmente, a um link aberto para informações relevantes à continuidade referencial no
discurso. Conforme se vê em (108), na página do twitter oficial da Folha de São Paulo, a
hashtag #gentediferenciada serve como um link que dá acesso hipertextualmente a uma lista
de tudo o que foi dito no Twitter sobre o assunto – a construção do metrô de Higienópolis, em
São Paulo - utilizando-se essa mesma etiqueta (relacionada à expressão linguística usada no
protesto, amplamente divulgada em redes sociais da web) . Como a escolha das expressões
nominais revela sempre uma orientação argumentativa (KOCH, 2001), pode-se dizer que o
uso da expressão “gente diferenciada” na hashtag indica, de alguma forma, a intenção do
jornal de ressaltar a polêmica criada em torno da construção do metrô, entre os moradores de
Higienópolis e não moradores (#gentediferenciada). Em suma, percebe-se que esse recurso
também é capaz de sinalizar as porções textuais que assumem relevância para a continuidade
referencial no discurso.
(108)
folha_com #gentediferenciada Protesto por metrô aumenta se desloca para a av.
Angélica. http://bit.ly/jqt1Xu
6.3.1.5 Atualização da página home
A atualização da pagina home no Twitter é o modo pelo qual seus usuários podem ter
acesso a todas as mensagens daqueles que constam na sua lista following. Assim, é por meio
dela que podem, também, ser engatilhadas as cadeias referenciais dos seus próximos posts, ao
responder aos tweets, direta ou indiretamente, ou simplesmente ao ler os tweets. É, sobretudo,
a lista de mensagens na página home que permite que o usuário do Twitter, como leitor,
166
interprete co(n)textualmente as cadeias referenciais, estabelecendo, sem dúvida, as inferências
necessárias ao seu processamento.
Enfim, pelo que foi observado no corpus digital da pesquisa, pode-se dizer que o
twitter, enquanto gênero digital relativamente novo no domínio jornalístico, apresenta
algumas propriedades estruturais interessantes ao estudo da referenciação, tais como o limite
de 140 caracteres, o uso de RT´s, a identificação dos interlocutores por meio do formato
@___, a criação de etiquetas ou hashtags e, ainda, a atualização da página home. O espaço
das cadeias referenciais nesse microblog interativo torna-se, assim, tema bastante produtivo
em trabalhos de pesquisadores preocupados com aspectos funcionais do discurso.
6.3.2 Referenciação no blog
O gênero blog, descrito com mais detalhes anteriormente, no capítulo 3 desta pesquisa,
também revela especificidades no que tange aos processos de referenciação que têm a ver
com a sua própria composição. A estrutura dividida em posts e comentários é o aspecto que
mais torna evidente a relação desses processos com as funções hipertextuais do gênero. Em
termos de referenciação, nota-se que muitas cadeias anafóricas que são realizadas na seção de
comentários do leitor não poderiam ser ativadas (direta ou indiretamente), sem acesso ao que
é mencionado nos posts, como se vê no exemplo (109).
167
(109)
168
Em tal exemplo, extraído do Blog da Maria Inês Doci, Folha de São Paulo, em
31/03/11, observam-se, na seção de comentários, processos diretos e indiretos de
referenciação cuja interpretação depende da remissão hipertextual ao link do post (Você
pagaria mais por poltrona confortável?). A expressão nominal espaço digno e confortável
pode retomar diretamente um antecedente co-textual explícito no post (espaço), enquanto que
expressões como os preços e um absurdo promovem cadeias anafóricas indiretas cujas
âncoras, a partir de esquema mental associativo e encapsulamento anafórico, respectivamente.
Outra característica interessante, em termos referenciais, é o fato de, na própria seção
de comentários, cadeias anafóricas novas ou independentes serem ativadas com base no que
foi mencionado por outros leitores (e não pela colunista). É o que ocorre com o
encapsulamento anafórico visto na expressão frase, que rotula ou encapsula tudo que outro
leitor do blog (Donald Torres) mencionou. Nota-se, por fim, que, embora o blog apresente
uma centração temática, na seção de comentários pode haver também uma flutuação em
relação ao tema relacionado ao post, o que interfere nos fenômenos referenciais/inferenciais
que serão realizados. O comentário de um dos leitores – Gustavo - em (109), por exemplo,
claramente foge ao tema do post, muito embora ainda esteja ligado à temática geral do blog
(defesa do consumidor). Vê-se, assim, que os processamos anafóricos que são ativados nesse
gênero, assim como no Twitter, são bastante sofisticados, levando o leitor, muitas vezes, a
trilhar o caminho hipertextual necessário à construção do sentido, seja por meio de cadeias
anafóricas diretas ou indiretas.
169
6.3.3 Referenciação no plantão de notícias
No gênero plantão, como foi dito anteriormente, apenas o título/manchete da notícia é
apresentado, o que faz que com que o leitor geralmente recorra, na ativação dos processos
referenciais, ao link que dá acesso ao conteúdo completo da notícia. Isso pode ocorrer em
cadeias anafóricas mais diretas, correferenciais, ou indiretas, processadas por meio de
encapsulamentos e esquemas cognitivos gerais. Os exemplos a seguir, (110) e (111), são
esclarecedores desse aspecto do plantão de notícias, que também pode se revelar nos dois
gêneros anteriormente citados (twitter e blog) caso o link da notícia seja apresentado na
postagem. A diferença, nesse caso, está no fato de que o plantão assume, em sua composição,
o formato exclusivo de uma lista de notícias, que serve como uma espécie de chamada para o
conteúdo completo publicado no jornal, o que faz com que grande parte do processamento
referencial/inferencial se projete para a informação que será lida posteriormente, após acessar
o link. Em (110), a cadeia correferencial, direta, entre o anafórico livro e seu antecedente, só
será recuperado cataforicamente, após a leitura da notícia completa (o livro Exultant Ark, do
inglês Jonathan Balcombe. Ainda em (110), a expressão comentário rotula e encapsula todo o
conteúdo que será visto posteriormente pelo leitor, a partir do arquivo áudio que traz
informações sobre o caso Palocci, em destaque na política nacional em junho de 2011.
(110)
(111)
(Folha de São Paulo, 01/06/11)
(O Globo, 08/06/11)
170
Em (111), também há um processo indireto de referenciação no uso da expressão
indefinida um ouro, que tem a sua interpretação atrelada ao nome do caderno associado à
notícia (Esportes), âncora co-textual, por meio de um esquema mental responsável pela
ativação do frame esporte--Daniela Hipólito-medalha. Embora esse esquema indireto seja
ativado na própria manchete apresentada no plantão, ele acaba sendo confirmado
hipertextualmente na leitura do conteúdo completo da notícia, que também dá margem à
construção de novas cadeias anafóricas (diretas e indiretas).
6.3.4 Referenciação na enquete de jornal
O gênero enquete, embora apresente como característica de sua estrutura
composicional a pequena extensão, dá margem a processamentos anafóricos de diferentes
tipos (diretos e indiretos), podendo, também, como nos gêneros anteriormente mencionados,
se fazer uma remissão hipertextual ao conteúdo completo de um dos textos do jornal. Como o
propósito da enquete nos jornais está associado a uma espécie de pesquisa de opinião,
promovendo-se uma interação com uma parcela de seus leitores (os leitores da versão
eletrônica), geralmente se faz menção a um assunto recentemente apresentado e discutido nas
notícias/reportagens e demais textos do jornal, o que faz com que o redator da enquete sintase à vontade para fazer determinadas escolhas referenciais, pautado em informações
implícitas que o tema sugere. Em (112), por exemplo, o uso da expressão nominal
declarações supostamente racistas e homofóbicas do deputado Jair Bolsanaro favorece a
ativação de informações gerais que já foram publicadas no jornal e na mídia sobre o caso do
referido deputado. Em outras palavras, pode-se dizer que o leitor supostamente já conhece
quais são as declarações mencionadas no texto e as ativa no processamento discursivo. Mas a
enquete pode, também, apresentar processos anafóricos mais simples e diretos, com indicação
de retomada correferencial, como no caso da expressão nominal o congressista, que promove
uma recategorização do antecedente anafórico o deputado Jair Bolsanaro. Em (113), também
se observa uma diversidade de processos referenciais através das anáforas sutiã (direta, por
repetição), a peça (indireta e associativa, por hiperonímia) e assunto (indireta, por
encapsulamento). Interessante é observar que enquete, às vezes, também permite a sua
composição a ativação de um link ou caminho hipertextual, que também servirá como fonte
de novas cadeias anafóricas diretas e indiretas, tal como pode ocorrer nos três gêneros
171
anteriormente mencionados (twitter, blog e plantão de notícias). Isso pode ser exemplificado
em (113), por meio da deixis textual (ou hipertextual) aqui, que aponta para conteúdo do link
que dá acesso à coluna de Mônica Bergamo. No exemplo apresentado em (114), mais uma
vez, a escolha de expressões referenciais é atrelada a conhecimentos partilhados entre os
interlocutores, envolvendo informações implícitas, como aquela referente ao crime cometido
pelo jornalista Antônio Pimenta Neves, ativada por meio da expressão definida o crime
cometido.
(112)
(Folha de São Paulo, 01/04/11)
(113)
(Folha de São Paulo, 06/04/11)
172
(114)
(O Globo, 24/05/11)
Enfim, por tudo que foi aqui mencionado acerca dos gêneros jornalísticos digitais,
vê-se que os mesmos apresentam, sim, peculiaridades em relação ao processamento das
expressões referenciais. De um modo geral, pode-se dizer que as funções hipertextuais
apresentadas em cada um deles são fundamentais para a ativação dos objetos do discurso, seja
via direta, correferencial, seja via indireta, sem antecedentes pontualizados no co-texto.
Recursos como o retweet (RT) e as hashtags do twitter, a seção de comentários no blog e a
remissão hipertextual aos links das notícias no plantão e mesmo na enquete fazem toda a
diferença na depreensão dos referentes ao longo do processamento discursivo. Ainda que não
se tenha feito uma análise de ordem quantitativa dos processos de referenciação , os dados do
corpus digital parecem revelar, nos gêneros investigados, uma certa tendência ao
processamento hipertextual de cadeias anafóricas indiretas (por esquemas cognitivos,
pronomes sem antecedente explícito e encapsulamentos). Isso tem a ver, certamente, com o
caráter não-linear do hipertexto, que permite ao leitor uma maior flexibilidade em termos de
acesso aos locais de conteúdo, e, por consequência, aos locais de identificação/ativação dos
referentes textuais.
173
6.4 JORNAL IMPRESSO VERSUS JORNAL ELETRÔNICO
A análise do corpus desta pesquisa permitiu, além da caracterização dos gêneros
discursivos, o estabelecimento de algumas considerações mais gerais sobre o domínio
jornalístico enquanto área de atuação que envolve diferentes práticas comunicativas. A seguir,
apresentam-se quatro aspectos essenciais que, de acordo com os dados deste estudo, parecem
estabelecer a diferença entre o jornal impresso e o jornal eletrônico: (1) a interatividade com o
leitor; (b) a linearidade textual (3) o uso de diferentes semioses (multimodalidade) (4) a
velocidade da informação. Tais aspectos parecem indicar, de um modo geral, as principais
mudanças envolvidas no surgimento do ciberjornalismo, que, como lembra Ferrari (2004)
constituem um verdadeiro desafio ao jornalista que pretende trabalhar com a redação na web.
Segundo a autora, o desafio está vinculado à necessidade de preparar as redações, bem como
os jornalistas, para conhecer e lidar com essas transformações. “Além da necessidade de
trabalhar com vários tipos de mídia, é preciso desenvolver uma visão multidisciplinar, com
noções comerciais e de marketing.” (FERRARI, 2004, P. 39-40)
A interatividade com o leitor corresponde a uma propriedade discursiva que costuma
ser valorizada na edição dos jornais em questão - Folha de São Paulo e O Globo -, tanto nas
suas versões impressas como nas suas versões on-line. No entanto, no jornal eletrônico, em
função da natureza dinâmica do hipertexto nos variados gêneros digitais, essa interatividade
torna-se mais efetiva e abrangente, uma vez que ocorre em variadas seções do portal
jornalístico, dando-se praticamente na mesma velocidade da apresentação das notícias. No
jornal eletrônico, à semelhança da interlocução oral, especialmente nos gêneros blog, twitter e
notícia, os comentários do leitor normalmente acompanham a rapidez do conteúdo publicado
na rede, distanciando-se do formato tradicional da participação no jornal impresso, por meio
do gênero opinião do leitor (antiga seção carta do leitor). O exemplo (115), extraído do
gênero blog (Folha de São Paulo, 22/05/11), retrata claramente esse aspecto ao revelar a
expectativa do leitor pela publicação imediata dos comentários: “Estranhamente sem
comentário algum, hein Marcelo? Sintomático?” O colunista Marcelo Coelho (Folha de São
Paulo) responde, em seguida, ao questionamento do leitor referente à ausência temporária
desses registros: “Não, eu é que demorei para ler e autorizar a publicação. É orientação da
Folha Online que se autorize (ou não).”
174
Essa intervenção imediata dos interlocutores, marca da oralidade prototípica, não seria
possível, por exemplo, no jornal impresso, uma vez que a opinião do leitor só é publicada a
posteriori e, muitas vezes, condicionada a uma edição. No caso específico dos comentários de
blogs, embora também possa ser ativada a opção de moderação de comentários,
condicionando-se a publicação à aprovação do colunista, a opinião do leitor, quando
publicada, não sofre cortes ou reduções em função de um processo editorial. Em outras
palavras, os comentários do leitor no blog podem até deixar de ser publicados (pela
moderação), mas não serão editados ou reduzidos em sua extensão, como pode ocorrer no
jornal impresso, nos e-mails ou cartas enviadas à seção opinião do leitor.
(115)
175
Ainda no que diz respeito à interatividade nos jornais, é preciso mencionar que todos
os gêneros digitais investigados, de uma forma ou de outra, promovem essa aproximação com
o leitor, ao passo que, no jornal impresso, apenas o gênero opinião do leitor manifesta tal
aspecto explicitamente. Isso não quer dizer, contudo, que não haja no jornal impresso atual
uma preocupação em alcançar o leitor de modo mais direto. Pelo contrário, nota-se que,
mesmo em gêneros do jornal impresso, há sim uma tendência geral em aproximar os dois
formatos de edição (impressa e eletrônica) por meio de um diálogo com o leitor. É o que se
verifica na nota publicada ao fim da entrevista apresentada em (116), que convida o leitor a
ouvir um trecho da conversa com o governador Sérgio Cabral, publicada no O Globo, em
10/10/10.
(116)
176
No que se refere à linearidade, percebe-se que ela é um dos principais aspectos que
caracterizam a mudança do jornal impresso para o jornal digital. A tendência a uma redação
não-linear, própria para a web, é o que se evidencia no casamento das duas versões do jornal.
A não-linearidade dos gêneros digitais permite que o leitor navegue livremente pelo caminho
hipertextual sugerido pelo jornal, podendo, assim, desvendar os links e nós de acordo com
uma rede de conteúdos tentacular, em que as informações se apresentam gradativamente, à
medida que ele deseja acessá-las. Isso pode ser visto claramente no gênero plantão de notícia,
como no exemplo dado em (117), no qual o leitor pode escolher em qual notícia ou link
prefere navegar e, no local mesmo da notícia, poderá comentar o seu conteúdo e acessar
outros links, tais como arquivo de vídeo e de áudio. Em tal exemplo, observa-se como o
plantão de notícias foge da linearidade textual da notícia do jornal impresso, já que convida o
leitor a trilhar, hipertextualmente, os diversos blocos de informação que estão ali disponíveis.
A partir da manchete “Veja em flash como foi a queda do voo 447”, caso seja de interesse do
leitor, pode ser desvendado um novo bloco de informação, que dá acesso ao conteúdo
completo da notícia, bem como ao arquivo de vídeo (flash), que mostra em detalhes como foi
a queda do voo 447 da Air France, em junho de 2009. Isso não seria possível, naturalmente,
no jornal impresso, dado o seu aspecto linear de apresentação da informação, decorrente da
forma da escrita convencional.
(117)
(Folha de São Paulo, 27/05/11)
177
A multimodalidade, ou uso de diferentes semioses, é outro aspecto ressaltado com a
chegada do jornalismo digital. Não é mais suficiente a antiga junção texto verbal-imagem, que
tanto valorizou o jornalismo fotográfico (ou fotojornalismo) no jornal impresso. Agora, na era
dos jornais eletrônicos, entram em cena também os arquivos de áudio, vídeo e também os
flashs (animações), que tornam a disposição dos conteúdos bastante interativa e dinâmica, em
consonância com o caráter não-linear do hipertexto. Obviamente, o texto e a imagem mantêm
a sua importância na versão digital dos jornais, porém há outras possibilidades de acesso ao
conteúdo (que podem ou não ser acessadas pelo leitor). Ainda que se possa sugerir no jornal
impresso o acesso a tais mídias por meio do endereço eletrônico do jornal, fisicamente, devese ressaltar que elas só podem ser lidas a partir do jornal digital, na trilha hipertextual a ser
percorrida pelo leitor. É o que ocorre em (116), na entrevista com o governador Sérgio Cabral,
na qual o jornal convida o leitor a ouvir um trecho da entrevista. Em (117), exemplo do
gênero plantão de notícias, citado anteriormente, viu-se que a notícia apresenta um recurso
que não seria possível na sua edição impressa (o acesso ao arquivo de vídeo em flash). Sendo
assim, as versões eletrônicas dos jornais investigados revelaram um uso significativo dessas
diferentes semioses, que geralmente têm a ver com os possíveis caminhos a serem trilhados
pelo leitor, hipertextualmente falando.
A velocidade de informação também é uma das diferenças que mais sinalizam a
passagem do jornal impresso para o jornal digital. Em todos os gêneros digitais investigados
tal aspecto pôde ser evidenciado. No twitter e no plantão de notícias, principalmente, o
conteúdo é atualizado a cada hora, várias vezes ao dia. No blog – em especial, naqueles de
natureza mais dinâmica, nos quais os colunistas publicam com mais frequência -, também a
informação pode ser atualizada mais de uma vez ao dia. A enquete, embora aparentemente
seja um gênero digital que não revela essa grande velocidade de informação – por ter
publicação ao longo de alguns dias no portal eletrônico dos jornais – apresenta, igualmente,
atualização do conteúdo na seção de resultados, a partir da qual se pode ter acesso aos dados
atualizados da pesquisa. Sendo assim, é possível afirmar que, diferentemente do que ocorria
no jornal impresso, o tempo da informação jornalística agora não é mais “diário”. E é por
meio das suas versões eletrônicas que os jornais aceleram (a cada hora, a cada minuto) a
disponibilização de conteúdo para o leitor, tornando a sua leitura mais dinâmica e atrativa36.
36
Cabe ressaltar, aqui, que embora atualmente os jornais impressos assumam o caráter de publicação diária, há
algumas décadas, até os anos 70, mais precisamente, ainda se encontravam jornais de publicação matutina
ou vespertina (como o jornal carioca Correio da Manhã), o que revela, também no jornal impresso, uma
178
O exemplo abaixo, (118), mostra como essa velocidade da informação se processa no
jornal digital, por meio da página no twitter da Folha de São Paulo, dia 02/07/11. Vê-se que as
informações sobre a morte do ex-presidente Itamar Franco são atualizadas rapidamente em
poucos minutos, na publicação dos seguintes tweets: “Ex-presidente Itamar Franco morre aos
81 anos, em SP; leia mais em instantes.”, “Ex-presidente Itamar Franco morre aos 81 amos
em São Paulo. Leia mais em http//bit.ly/jeljtp” “#itamarfranco veja a cronologia da vida do
presidente Itamar Franco http//bit.ly/IGg72K.”, “#itamarfranco Dilma telefona para amigo de
Itamar para lamentar morte http//bit.ly/KTdUhs” e “#itamarfranco Lula diz que Itamar Franco
foi grande democrata. http//bit.ly/iEAoF1 (via @folha_poder)”. Sendo assim, a partir das
leituras dos tweets em sua ordem cronológica, o leitor vai tendo acesso, de modo veloz, a
conteúdos relevantes sobre a morte do ex-presidente. Caso ele queira obter informações sobre
esse assunto não só a partir do jornal, mas das páginas de outros usuários do Twitter, basta que
ele clique na hashtag #itamarfranco e todas o que foi dito sobre a morte do ex-presidente
(com o uso dessa hashtag) está disponível em sua página.
(118)
preocupação em atualizar o leitor com mais frequência (mais de uma vez ao dia), ainda que tal estratégia não
seja viabilizada pela dinamicidade da web.
179
A diferença quanto ao tempo da informação entre o jornal digital e o jornal impresso
foi um dos temas postos em destaque no filme Intrigas de Estado (EUA/Reino Unido, 2009),
dirigido por Kevin Macdonald. A trama discute o trabalho da imprensa nos dias atuais,
incluindo o papel de novos meios, surgidos a partir da internet. É uma obra que traz à tona a
reflexão sobre os rumos do jornalismo e da informação no contexto virtual das sociedades
contemporâneas, perpassando, também, pela discussão acerca da fronteira entre ética e
jornalismo.
Por fim, reconhece-se que esses quatro aspectos – interatividade com o leitor,
linearidade, multimodalidade e velocidade de informação - estão de fato imbricados e
envolvidos nas mudanças promovidas pelo jornalismo online. É difícil atualmente, inclusive,
se conceber, nas práticas jornalísticas, a ausência de uma versão eletrônica do jornal. O
contrário, no entanto, já é possível e, em alguns casos, bastante viável: a ausência da versão
impressa. Cita-se, aqui, a esse propósito, o exemplo de um dos jornais nacionais de grande
circulação – o Jornal do Brasil (JB) – que, em função de uma crise financeira deflagrada a
partir de 2001, abandonou de vez a sua versão impressa e adotou o formato exclusivamente
digital. Tal mudança foi anunciada em julho de 2010 e efetivada em 1º de setembro do
mesmo ano, quando a edição diária do JB passou a ocorrer apenas no seu portal eletrônico.
Hoje o referido jornal, fundado em 1891, destaca, em sua página inicial na web, que foi o
primeiro jornal 100% digital do país, além de ser o primeiro a adotar uma versão eletrônica ao
lado de uma versão digital.
180
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa - pautada numa perspectiva funcional, no sentido de usar dados de
uso real da língua - considerou, ao mesmo tempo, os gêneros do discurso e os processos de
referenciação como temas que apresentam conexões no âmbito da constituição
textual/discursiva. As práticas discursivas atreladas à concepção bakhtiniana de gênero, bem
como os processos cognitivos envolvidos na construção do sentido e na identificação dos
objetos do discurso foram aqui focalizadas, propriamente, no intuito de se estabelecer novas
reflexões e relações teóricas entre essas duas grandes temáticas.
No que concerne aos processos de referenciação, viu-se que, além de parecer
adequado o acompanhamento das indagações que hoje se faz nas teorias de texto acerca da
noção tradicional de referência, as anáforas indiretas constituem, ainda, um desafio entre os
temas que atualmente fazem parte do escopo da Linguística Textual. As abordagens
recentemente apresentadas por pesquisadores brasileiros (MARCUSCHI, 2005a, KOCH,
2001, CAVALCANTE; KOCH, 2007, entre outros) surgem, assim, como um diferencial em
um terreno fértil para novos posicionamentos e descobertas. Sem dúvida, dada a natureza da
temática das anáforas indiretas, os variados pontos de vista teóricos e as diferentes
classificações servem como aspecto motivador no caminho epistemológico a ser trilhado por
estudiosos dos mecanismos funcionais do uso da língua.
A proposta classificatória apresentada no capítulo 1 deste trabalho corresponde a uma
tentativa de reagrupamento dos processos indiretos de referenciação de acordo com os três
tipos que pareceram mais marcados na observação dos dados: as anáforas associativas, as
anáforas esquemáticas e os encapsulamentos anafóricos. Essa tripartição indica uma
visualização mais clara das possíveis formas de referenciação indireta, como aquelas pautadas
em associações (instauradas no léxico ou em esquemas cognitivos), as que se realizam a partir
de pronomes sem antecedente explícito (esquemáticas) e, ainda, as que resumem ou
encapsulam uma informação apresentada no co-texto (nominalizações/rótulos). E essas três
formas de referenciação revelam as principais características das anáforas indiretas apontadas
por Marcuschi (2005a): (a) ausência de um antecedente explícito para retomada e presença de
uma âncora (co-textual ou contextual); (b) ausência de vínculo correferencial entre o
anafórico e a sua âncora; (c) apresentação se um referente novo como se fosse velho, i.e.,
181
interpretação ligada à construção de um novo referente (ou conteúdo conceitual) e não a uma
reativação de referentes prévios por parte do receptor. Quanto ao primeiro tipo mencionado, o
grupo das anáforas associativas – notou-se, ainda, certa dificuldade de separação entre os
subtipos indicados por Marcuschi (2005a), principalmente entre as anáforas indiretas pautadas
em modelos cognitivos e aquelas baseadas em modelos do mundo textual. Preferiu-se, assim,
adotar a divisão em dois grandes grupos: anáforas associativas sctricto sensu (incluindo as
relações semânticas inscritas no léxico) e anáforas associativas lato sensu (contemplando os
esquemas mentais de um modo geral). As anáforas pronominais esquemáticas, sem
antecedente explícito, revelaram, de um modo geral, um potencial generalizador que remete o
falante à ativação conhecimentos de mundo sustentados em âncoras do co-texto. No que diz
respeito ao encapsulamentos anafóricos (nominalizações/rótulos), ficou evidente na análise
que o caráter resumitivo desse tipo de anáfora também pode favorecer o direcionamento
argumentativo que o falante pretende assumir. Se, conforme lembra Koch (2001), a atividade
de referir está bastante ligada à atividade de argumentar, o processamento anafórico indireto
que se dá por meio de rótulos e nominalizações parece potencializar essa dependência.
Em relação à problemática dos gêneros do discurso, muito embora o tema também não
seja novo, viu-se que a perspectiva das abordagens sociodiscursivas da linguagem atribui uma
nova roupagem ao estudo das práticas comunicativas estabilizadas e reconhecidas como
gêneros. A partir do domínio jornalístico - ponto central desta investigação – observou-se a
heterogeneidade discursiva proposta por Bakhtin e representada nesse domínio pela
multiplicidade de gêneros presentes no jornal impresso e no jornal eletrônico. Todos os nove
gêneros investigados na pesquisa (artigo de opinião, notícia/reportagem, entrevista, crônica,
opinião do leitor, plantão de notícias, enquete, blog e twitter) puderam ser descritos no
capítulo 6 como “tipos relativamente estáveis de enunciado”, em termos de composição,
conteúdo temático e estilo. Constituindo práticas diversas no domínio jornalístico, viu-se que
esses gêneros contribuem de um modo específico para a efetivação dos propósitos
comunicativos e objetivos do jornal ou dos interlocutores envolvidos.
O quadro 9, proposto no capítulo 2 deste trabalho, aponta para a relação entre gêneros
e referentes na escala funcional de instabilidade/estabilidade. Buscou-se, a partir dele, mostrar
que esses dois temas – gêneros discursivos e referenciação – podem ser concebidos a partir de
uma escala de estabilidade que se dá em dois planos: o plano histórico-discursivo (para os
gêneros) e o plano textual-discursivo (para os objetos do discurso). Convém ressaltar, aqui,
182
que esses planos se entrelaçam e são interdependentes no processamento discursivo, sendo tal
bipartição uma mera tentativa de explicar como os gêneros, bem como os referentes,
adquirem e mantém (relativamente) uma estabilidade na dinâmica textual-discursiva.
Uma questão essencial discutida nesta pesquisa foi a relação entre os gêneros
jornalísticos digitais e os processos de referenciação. Em especial, verificou-se, quanto a essa
problemática, que as funções hipertextuais atreladas aos gêneros do jornal eletrônico podem
sim influenciar na forma de ativação dos objetos do discurso e, por consequência, nos
processamentos anafóricos que estarão ligados à construção textual do sentido. Entre os
gêneros analisados, viu-se que o twitter é um dos que revelam mais claramente essa conexão
entre funções hipertextuais (como uso de retweets e hashtags) e os processos anafóricos
(diretos ou indiretos).
No que toca à comparação entre jornal impresso e jornal digital, foram mencionados,
no capítulo 6, quatro pontos essenciais envolvidos na mudança e na adaptação dos jornais
para a sua versão eletrônica, quais sejam: (a) a maior interatividade com o leitor, confirmada
pelas múltiplas possibilidades de interação do jornal online; (b) a não-linearidade envolvida
nos gêneros do jornal digital, que promove uma leitura tentacular e, possivelmente, mais
dinâmica; (c) a multimodalidade, já que também se ampliou o uso de diferentes semioses em
gêneros do meio eletrônico; (d) a velocidade da informação, que, com a chegada internet, não
pode ser mais processada, principalmente pelos jornais, a partir de um conteúdo meramente
“diário”, mas sim atualizada e renovada a cada hora, e mesmo cada minuto.
As
hipóteses
apresentadas
inicialmente
neste
estudo
foram
confirmadas,
considerando-se os dados encontrados no jornal impresso e no jornal eletrônico. Sobre a
primeira hipótese, viu-se que a diversidade de gêneros encontrados nas duas versões dos
jornais investigados - Folha de São Paulo e O Globo – permite que visualizemos o jornal
como uma espécie de hipergênero, como um suporte no qual convergem diferentes práticas
comunicativas. Como se destacou no capítulo 3, muitas dessas práticas estão associadas ao
chamado ciberjornalismo, que, segundo Ferrari (2004), constitui hoje um dos principais focos
na redação do jornal. A segunda hipótese, acerca das especificidades dos gêneros digitais,
também foi comprovada, já que, como se observou no capítulo 6, as funções hipertextuais
atreladas a esses gêneros, além de indicarem novas formas de interação e de comunicação
com o leitor, influenciam nas diferentes formas de apresentação e depreensão dos objetos do
discurso. Isso conduz à confirmação da terceira hipótese da pesquisa - que diz respeito ao
183
número variado de cadeias anafóricas no hipertexto -, pois, conforme também foi assinalado
no capítulo 6, o caráter não-linear da leitura hipertextual permite que as possibilidades de
ativação de novos meios referenciais (diretos ou indiretos) sejam ampliadas nos gêneros do
jornal eletrônico. Constatou-se, ainda, o aspecto mencionado na quarta e última hipótese –
relacionada ao continuum fala versus escrita –, levando-se em consideração que nem sempre
os gêneros digitais revelam um hibridismo entre fala e escrita. O gênero plantão de notícias,
por exemplo, é um dos que melhor ilustram essa questão, uma vez que não apresenta
explicitamente, em sua estrutura composicional ou em seu estilo, marcas da oralidade. Em
outras palavras, contrariando o senso comum, a análise evidencia que gêneros digitais não
são, necessariamente, mais próximos da fala.
Enfim, considera-se, aqui, que quatro pontos essenciais neste estudo merecem ser
fonte de pesquisas futuras e revisões teóricas, a saber: (1) a acessibilidade dos referentes e a
classificação das anáforas indiretas; (2) a relação entre gêneros e referencia(ção);
(3) o processo de estabilização dos gêneros digitais; (4) a ativação de espaços mentais na
leitura não-linear do hipertexto. Todos esses temas encontram-se, ainda, em plena ascensão no
escopo da Linguística Textual e da Linguística Cognitiva, podendo, certamente, ser
aprofundados e revistos em prol de um maior entendimento teórico da construção do sentido
no processamento discursivo e das propriedades estruturais/funcionais do hipertexto.
184
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